Pólvora

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| literatura | 48 eu nome não está no Wiki- pédia, mas Hélio Pólvora é um imortal: sentava-se na cadeira de número 29 da Academia de Letras da Bahia (ALB) e, quando na Academia de Ilhéus, lhe cabia a de número 24. Confesso que nada sabia a seu respeito quando meu editor e amigo Gustavo Ranieri me convidou para perfilá-lo. Imaginei se tratar de uma homena- gem, posto que o escritor havia falecido na madrugada do último 26 de março, segundo me relatava. Entregou-me, então, uma caixa contendo sete de suas obras. Verifiquei, em uma rápida pesquisa, que se tratava de uma rasa porção de seu trabalho, que incluía mais de 20 livros apenas de contos, sem contar romances, tradu- ções, ensaios, colunas, crítica de arte etc. Como um fiel amante da existência horizontal, comecei pelo menor dos livros, intitulado Mar de Azov. Não poderia ter começado melhor. Era uma tar- de fria, o chimarrão revirou o bucho e os contos acalentaram as ideias. O Sol já se escondia quando, não satisfeito, agarrei Massa- cre no Km 13 e o li na sequência, deixando que a noite se achegasse e o mate, mesmo lavado, roncasse um par de vezes, ecoando como um lamento de despedida: “Como eu não conhecia esse cabra?”. Juro que pensei essa exata frase já com os dedos em Don So- lidon, seu segundo romance. Relutei, ainda surpreso com meu desconhecimento, passei a mão no celular e mandei recados a seis escritores comparsas. Cinco deles não o conheciam, e um tinha ouvido falar por ocasião de sua morte. Não apenas para mim, Hélio nasceu póstumo. Poucos dias depois, Rosel Soares, editor de Hélio na Casarão do Verbo, me enviou uma espécie de autoentrevista do escritor, composta para a 22ª edição da extin- ta Revista Exu, de Salvador. Suspeito que date do começo da dé- cada de 1990. Lanço mão de trechos deste texto para que você, leitor, se achegue junto comigo aos territórios de Hélio. Já ia me esquecendo de mencionar que a frase, abaixo do título desta ma- téria, foi também retirada desse material. Como um personagem de Jorge Amado, ele deslizou “do ventre dos cacauais” direta- mente para os capinzais de Itabuna, sul da Bahia, no longínquo 1928. A solidão da roça o fez um sujeito tímido e desconfiado, mas desde muito moço tinha o dedo apontado para o alto, fin- gindo que escrevia em um idioma imaginário nas paredes de casa. Hélio lembrava bem dos trambiques de sua mãe para com- prar romances de um mascate que, de vez em quando, dava as caras na região. Seu pai era um pequeno produtor de cacau que nunca passou das 2 mil arrobas.Um esteta por definição, adora- va jornais e livros policiais. Hélio aproveitou-se de ambas as fon- tes. Leu tudo. Aos 9 anos, se viu metido nos enredos de Raptado, clássico de Stevenson, e chorou na cena de despedida entre David Balfour e Alan Breck, os heróis do escocês Robert Louis, autor de O médico e o monstro. Pronto, estava feito o estrago da litera- tura na alma daquela criança. Não à toa, no meio da década de 1940, enquanto aluno do Colégio Estadual da Bahia, Hélio corria para a Praça Municipal e passava as tardes na Biblioteca Pública. Não pude deixar de notar que apenas no último parágrafo de sua autoentrevista, o escritor fala da profissão que exerceu com esmero e paixão até o derradeiro suspiro de vida. “Já ia me es- quecendo de verificar no espelho que também sou jornalista.

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eu nome não está no Wiki-pédia, mas Hélio Pólvora é um imortal: sentava-se na cadeira de número 29 da Academia de Letras da Bahia (ALB) e, quando na Academia de Ilhéus, lhe cabia a de número 24. Confesso que nada sabia a seu respeito quando meu editor e amigo Gustavo Ranieri me convidou para perfilá-lo. Imaginei se tratar de uma homena-gem, posto que o escritor havia falecido na madrugada do último 26 de março, segundo me relatava. Entregou-me, então, uma caixa contendo sete de suas obras. Verifiquei, em uma rápida pesquisa, que se tratava de uma rasa porção de seu trabalho, que incluía mais de 20 livros apenas de contos, sem contar romances, tradu-ções, ensaios, colunas, crítica de arte etc. Como um fiel amante da existência horizontal, comecei pelo menor dos livros, intitulado Mar de Azov. Não poderia ter começado melhor. Era uma tar-de fria, o chimarrão revirou o bucho e os contos acalentaram as ideias. O Sol já se escondia quando, não satisfeito, agarrei Massa-cre no Km 13 e o li na sequência, deixando que a noite se achegasse e o mate, mesmo lavado, roncasse um par de vezes, ecoando como um lamento de despedida: “Como eu não conhecia esse cabra?”.

Juro que pensei essa exata frase já com os dedos em Don So-lidon, seu segundo romance. Relutei, ainda surpreso com meu desconhecimento, passei a mão no celular e mandei recados a seis escritores comparsas. Cinco deles não o conheciam, e um tinha ouvido falar por ocasião de sua morte. Não apenas para mim, Hélio nasceu póstumo. Poucos dias depois, Rosel Soares, editor de Hélio na Casarão do Verbo, me enviou uma espécie de autoentrevista do escritor, composta para a 22ª edição da extin-ta Revista Exu, de Salvador. Suspeito que date do começo da dé-cada de 1990. Lanço mão de trechos deste texto para que você, leitor, se achegue junto comigo aos territórios de Hélio. Já ia me esquecendo de mencionar que a frase, abaixo do título desta ma-téria, foi também retirada desse material. Como um personagem de Jorge Amado, ele deslizou “do ventre dos cacauais” direta-mente para os capinzais de Itabuna, sul da Bahia, no longínquo 1928. A solidão da roça o fez um sujeito tímido e desconfiado,

mas desde muito moço tinha o dedo apontado para o alto, fin-gindo que escrevia em um idioma imaginário nas paredes de casa. Hélio lembrava bem dos trambiques de sua mãe para com-prar romances de um mascate que, de vez em quando, dava as caras na região. Seu pai era um pequeno produtor de cacau que nunca passou das 2 mil arrobas.Um esteta por definição, adora-va jornais e livros policiais. Hélio aproveitou-se de ambas as fon-tes. Leu tudo. Aos 9 anos, se viu metido nos enredos de Raptado, clássico de Stevenson, e chorou na cena de despedida entre David Balfour e Alan Breck, os heróis do escocês Robert Louis, autor de O médico e o monstro. Pronto, estava feito o estrago da litera-tura na alma daquela criança. Não à toa, no meio da década de 1940, enquanto aluno do Colégio Estadual da Bahia, Hélio corria para a Praça Municipal e passava as tardes na Biblioteca Pública.

Não pude deixar de notar que apenas no último parágrafo de sua autoentrevista, o escritor fala da profissão que exerceu com esmero e paixão até o derradeiro suspiro de vida. “Já ia me es-quecendo de verificar no espelho que também sou jornalista.

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Ou melhor: sou essencialmente jornalista. Já passei pelo hor-ror de quase todas as redações cariocas, andei pela Veja e Cor-reio Braziliense, como crítico literário”, escreveu ele, que também passou depois a colaborar com o Caderno 2 do jornal baiano A Tarde, do qual foi articulista e editorialista. Escrevia tam-bém uma coluna dominical, a qual publicou interruptamente até duas semanas antes de morrer, quando o câncer de pulmão, contra o qual lutava, levou-o à internação no Hospital São Ra-fael. Por fim, sublinho um trecho que me parece particularmen-te autobiográfico no texto da Exu. “A glória não me interessa. (…) Sou um desses humilhados escritores brasileiros que conti-nuam escrevendo enquanto o público leitor parece encolher-se.”

Bem, seu amigo, escritor e presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, acredita que o que aconteceu com Hélio é o mesmo que aconteceu, acontece e continuará acontecen-do com muitos outros autores brasileiros de altíssima qualidade: “Não chegam ao grande mercado editorial porque a visão caolha de nossos editores não permite”. Os principais trunfos de Hélio são justamente os traços de seu estilo: a precisão, a poética concisa, um frasear enxuto que faz Aramis lembrar-se de Graciliano Ramos. Há, de fato, poucos adjetivos e uma emoção bastante contida, além de uma aparente inexistência de pontos de exclamação ou reticên-cias. “Hélio deixou um imenso patrimônio literário. Uma obra fic-cional à altura do que melhor se fez na ficção em qualquer língua, em qualquer país, em qualquer época. Essa literatura é plenamente reconhecida pelos que a conhecem, mas são poucos os que a co-nhecem.” A declaração não podia ser mais verdadeira: o próprio Aramis veio conhecê-la tardiamente. Os galos da aurora, primeiro livro de Hélio, saiu em 1958. Só 35 anos depois, no final de 1993, foi que os futuros amigos foram apresentados, em um evento da ALB.

O escritor soteropolitano Mayrant Gallo conheceu a lite-ratura de Hélio ainda no segundo grau, emprestando seus li-vros de contos na Biblioteca Pública do Rio de Janeiro. A leveza de seu estilo, que Mayrant define como elegante e pro-fundo, o impactaram diretamente. “Vejo Hélio ao lado de Ignácio de Loyola Brandão, Marcos Rey, Oswaldo França Júnior, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, autores que pas-saram a ser lidos por leitores que de fato leem literatura.”

O papo que tive poucos dias depois com o escritor tocantinen-se Jádson Barros Neves veio corroborar a teoria de Mayrant: ele também é influenciado por Hélio. Tudo começou em 2002, quan-do Neves entrou em um sebo de Fortaleza e começou a folhear Mar de Azov. De pronto, surpreendeu-se com a poesia disfarçada naquela prosa aparentemente simples. Encantou-se especialmente com esta frase: “O mar desdobrava rolos de algodão na praia”. Bo-tou o livro debaixo do sovaco, cavocou entre os títulos de literatura brasileira e encontrou outra obra de Hélio, O grito da perdiz. Leu ambos com tamanha voracidade que, acometido de uma admira-ção instantânea, conseguiu o e-mail de Hélio e iniciou uma ami-zade, que infelizmente ficou restrita às missivas.

Por menos massiva que seja a literatura de Hélio, ela tomou seu tempo e chegou a todos nós por vias diversas: Aramis e a ALB; Mayrant e a Biblioteca Pública; Jádson e o sebo; eu e o jornalismo. Seus contos não querem morrer sem antes semear histórias no latifúndio das ideias de uns, nas selvas dos juízos de outros, e até mesmo nos ermos desertos dos leitores preguiçosos. Sinto que um cacau nasce entre meus cactos espinhosos.

oUTroS DEpoIMENToSRosel Soares, editor de Hélio: “No caso dele, o trabalho com

tradução e crítica deu no que deu: um escritor pleno, ciente do uso de cada vírgula e de cada palavra. E o jornalismo deu-lhe, penso, a oportunidade do convívio mais direto com grandes nomes da literatura brasileira. A troca de ideias, de opinião, pareceres, tudo isso junto acabou por formar o homem que ele era”.

Ligia Nerici, leitora: “Quando li Inúteis luas obscenas, fui acome-tida por sensações que até então só alguns russos tinham arrancado de minhas entranhas. A narrativa nos envolve com as personagens numa ficção muito próxima da realidade, como se uma história tão comovente à Romeu e Julieta pudesse acontecer dentro da gente”.

Karla Melo, editora e leitora: “Vivo como leitora e editora numa militância ferrenha em divulgar este gigante da literatura brasileira. Apaixonadíssima pela escrita do Pólvora, que, pasme; tão poucos ainda o conhecem, e a nova geração, nem pensar.” c