Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

152
POL˝TICA INDIGENISTA Leste e Nordeste Brasileiros

Transcript of Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Page 1: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

POLÍTICA INDIGENISTA Leste e Nordeste Brasileiros

Page 2: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 3: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Organizador

Marco Antonio do Espírito Santo

2 0 0 0

Brasília - DF

POLÍTICA INDIGENISTA Leste e Nordeste Brasileiros

Ministério da JustiçaFundação Nacional do Índio

Page 4: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Revisão Textual: Karla Bento de CarvalhoFicha Catalográfica: Cleide de Albuquerque Moreira - Bibliotecária - CRB 1100

Editoração Eletrônica/Planejamento Visual: Marli Moura/DIE/DEDOCServiço Gráfico: Wilson Machado/José Alexandrino/SEGRAF

Departamento de DocumentaçãoSEPS 702/902 - Ed. Lex - Bloco A - 1º Andar

CEP: 70390-025 - Brasília-DFFone/Fax: (0xx61) 313-3653

Dados internacionais de catalogaçãoBiblioteca �Curt Nimuendajú�

Espírito Santo, Marco Antonio do. (Org.) Política Indigenista:Leste e Nordeste Brasileiros / Júlio M.G. Gaiger... (et al.) - Brasília: FUNAI/DEDOC, 2000. 149 p.

Bibliografia

1. Índios - Nordeste 2. Indigenismo 3. Terra Indígena 4. Tabepa. 5. Fulniô 6.Arrendamento 7. Kiriri 8. Xucuru 9. Tuxá 10.Tremembé 11. Tupiniquin 12. FUNAI13.Serviço de Proteção aos Índios 14.Território Indígena 15. Sociedades Agrárias 16.Faccionalismo 17. Nordeste Brasileiro 18. Tutela I. Título II. Autor

CDU 572.95(81)

Ministro da JustiçaJOSÉ GREGORI

Presidente da FunaiGLENIO DA COSTA ALVAREZ

Diretora de AdministraçãoGISELDA PEDROSA LIBERAL

Chefe do Departamento de DocumentaçãoANDRÉ RAIMUNDO FERREIRA RAMOS

Capa :

Ilha da Viúva,Tuxá-BAFoto: Marco Antonio do

E.Santo,1984

Igreja da Santíssima TrindadeT.I. Massacará-BA

Foto: Marco Antonio do E.Santo,1983

Posto Indígena GuidoMarlière, 1940T.I. Krenak-MG

Foto: Acervo do Museu doÍndio

Igreja de N.Sra. daConceição de Almofala

Séc. XVIIIT.I. Tremembé-CE

Foto: Acervo IPHAN

Empresa Aracruz CeluloseT.I. Tupiniquim-ES

Foto: Marco Antonio doE.Santo,1998

Igreja de São PedroSec. XVII

T.I. Ilha de São PedroXocó

Foto: Hélio de Paula,1996

Igreja do Senhor daAscenção

T.I. Kiriri-BAFoto: Pedro Floret,1996

Posto Indígena Fulni-ôT.I. Fulni-ô - PE

Foto: Agência Estado, 1968

Page 5: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

APRESENTAÇÃO

POVO DESUNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO ...

( ... MAS VENCERÁ ? )

Júlio M. G. Gaiger

TRÊS TESES EQUIVOCADAS SOBRE O INDIGENISMO

(EM ESPECIAL SOBRE OS ÍNDIOS DO NORDESTE) 17João Pacheco de Oliveira Filho

IDENTIDADES EMERGENTES, SOLUÇÕES HETERODOXAS:

O CASO DA (NÃO) DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA TAPEBA 27Henyo Trindade Barreto Filho

RUPTURA E CONFLITO:

A PRÁTICA INDIGENISTA E A QUESTÃO DA TERRA ENTRE OS FULNIÔ 41Ivson J. Ferreira

REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO FUNDIÁRIA FULNIÔ 55Walter Coutinho Jr.

Juliana Gonçalves Melo

O ARRENDAMENTO COMO UMA FORMA DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS AGRÁRIOS:

O SPI E OS FULNIÔ DE ÁGUAS BELAS 65Sidnei Peres

UMA ETNOGRAFIA PARA UM CASO DE RESISTÊNCIA:

O ÉTICO E O ÉTNICO 73Miguel Foti

O “CASO KIRIRI” 79Sheila Brasileiro

ÍNDIOS XUCURU-KARIRI:

CONFLITOS E PRÁTICAS TUTELARES 87Silvia Aguiar Carneiro Martins

FACCIONALISMO XUKURU-KARIRI E A ATUAÇÃO DA FUNAI 97Adolfo Neves de Oliveira Junior

07

SUMÁRIO

11

Page 6: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

INTERPRETANDO O PASSADO, ORIENTANDO O FUTURO:

UMA ANÁLISE COMPARATIVA DAS DIVISÕES POLÍTICAS ENTRE OS TUXÁ (BA) E

OS TREMEMBÉ (CE) E SUAS RELAÇÕES COM O ESTADO 107Marcos Luciano Lopes Messeder

BREVE HISTÓRIA DA PRESENÇA INDÍGENA NO EXTREMO SUL BAIANO E A QUESTÃO

DO TERRITÓRIO PATAXÓ DE MONTE PASCOAL 121José Augusto Laranjeiras Sampaio

A VIDA DOS TUPINIQUIM DO ESPÍRITO SANTO EM MEADOS DO SÉCULO XX 137Carlos Augusto da Rocha Freire

Page 7: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

APRESENTAÇÃO

É com satisfação que apresentamos esta coletânea de estudos de diversos es-pecialistas, a qual traça um panorama dos casos exemplares debatidos durante oworkshop promovido pela FUNAI, em 1997, na cidade de Carpina-PE, denominado “Polí-tica Indigenista para o Leste e Nordeste Brasileiros”.

A maioria dos textos resulta de palestras proferidas durante os painéis do citadoevento. Na ocasião, foram desenvolvidas oficinas sobre saúde, educação, atividadesprodutivas e gestão ambiental, faccionalismo e tutela, terra e demarcação, cujos resulta-dos já foram publicados pela FUNAI, dando publicidade ao que se propôs o workshop:oferecer subsídios para o estabelecimento de políticas públicas específicas à realidadedas sociedades indígenas localizadas no Leste e Nordeste brasileiros.

O ex-Presidente da FUNAI, Júlio Gaiger, fez a palestra de abertura do evento eretoma, com seu texto, as preocupações da época, o que veio a dar o tom exato parauma introdução ao conjunto de ensaios ora apresentados.

A coletânea ressente-se por não ter sido registrada a palestra sobre os Xakriabá,localizados no estado de Minas Gerais. Com referência ao Leste brasileiro, incorpora-seo trabalho de Carlos Augusto da Rocha Freire, antropólogo do Museu do Índio, que abor-da o período anterior à instalação da empresa Aracruz Celulose nas terras reivindicadaspelos Tupinikim e Guarani, situados no estado do Espírito Santo.

A apresentação da palestra, feita pelo antropólogo Henyo Trindade Barreto Filho,a respeito dos Tapeba, é anterior à edição da portaria ministerial declaratória de ocupa-ção indígena no Município de Caucaia-CE, posteriormente anulada por decisão do Supe-rior Tribunal de Justiça. Ele discorre, com propriedade, sobre o esfacelamento dos pro-cedimentos iniciais que buscavam “uma solução fundiária abrangente que contemplas-se reforma agrária e direitos indígenas” em Caucaia.

Cabe acrescentar o que não ficou suficientemente claro no relatório de identifica-ção da Terra Indígena Tapeba: tentou-se, ao encaminhar a proposta de colônia agrícoladefendida pelo CIMI/Arquidiocese de Fortaleza, respeitar os propósitos, já postos na épo-ca, de manter a convivência entre os sem-terra Tapeba e não-Tapeba, reunidos em tornodo trabalho da Igreja-CEBs e da proposta de reforma agrária cogitada pelo INCRA/MIRAD.

Com a chegada da FUNAI, entretanto, ocorreu que o representante não-índio dasCEBs, que acompanhava o GT de identificação e delimitação, retirou-se dos trabalhosde campo ao perceber a supremacia dos direitos indígenas sobre uma possível “solu-ção fundiária abrangente” na qual estivessem incluídos.

O Ceará constitui, hoje, uma região onde existem várias sociedades indígenasemergentes e, em se tratando de um estado sem tradição da presença do SPI e daFUNAI, é de se questionar os parâmetros da política indigenista a serem adotados lá,neste momento em que estamos repensando a prática indigenista brasileira, seja dasorganizações governamentais, seja das não-governamentais ou religiosas.

Page 8: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

A existência de quatro textos sobre os Fulniô nesta coletânea justifica-se pelo fatode, originalmente, o workshop ter sido pensado para discutir a situação daquela socieda-de indígena, que passava por sérios problemas faccionais, ocasionando disputa pelodomínio do Posto Indígena. Sobre isso, Ivson José Ferreira, antropólogo e indigenista daAdministração Regional da FUNAI em Recife, produziu o seu estudo, que serviu de baseao texto dos antropólogos Walter Coutinho Júnior, da Diretoria de Assuntos Fundiários/FUNAI e Juliana Gonçalves Melo, no qual procuram compreender a situação dessa etniae iluminar as possíveis estratégias de resolução do problema fundiário daquela terraindígena.

Sobre os Fulniô, existem poucos estudos depois de Estevão Pinto (1956). É pos-sível que isso se deva às restrições impostas pela própria sociedade indígena, comoforma de resguardar sua privacidade e defender uma identidade exclusiva no municípiode Águas Belas-PE. O estudo do antropólogo Miguel Foti, originário de sua pesquisa demestrado, brinda-nos pela qualidade do delicado enfoque.

O caso Kiriri – BA, apresentado pela antropóloga Sheila Brasileiro, da Procurado-ria Geral da República em Salvador, e dos Xukuru-Kariri – AL, apresentados pela antropó-loga Silvia Aguiar Carneiro Martins, do Museu Théo Brandão-UFAL, e pelo antropólogoAdolfo Neves de Oliveira Júnior, do Ministério Público, estão entre os exemplos maissignificativos e exacerbados de conflitos e crises faccionais da região discutida em Carpina.Problemas fundiários antigos tornaram-se de extrema complexidade e tensão, quando aiminência de morte e expulsão de famílias indígenas inteiras tornaram-se fatos reais.

No caso dos Xukuru-Kariri, existe hoje, dentro do seu antigo território, a cidade dePalmeira dos Índios e um significativo número de índios desaldeados. Quanto aos Kiriri,depois de desocupadas pelas primeiras fazendas, a extrusão das suas terras envolveuum considerável número de famílias de posseiros a serem indenizados e reassentados.

Estamos publicando, também, o estudo de Marcos Luciano Lopes Messeder,antropólogo da Universidade Estadual da Bahia-UNEB, originário de sua participação emum outro evento, promovido pelo CIMI no estado de Pernambuco. Ele apresenta umainteressante análise comparativa entre os Tuxá – BA, desalojados pela construção daUHE Luiz Gonzaga (antiga Itaparica), da CHESF, e os Tremembé – CE, impossibilitadosde ocuparem suas terras tradicionais devido à violência que impera na região.

Apesar da situação dos Pataxó não ter sido abordada no workshop, José AugustoLaranjeiras Sampaio, antropólogo da Universidade Estadual da Bahia - UNEB e membroda Associação Nacional de Ação Indigenista-ANAI-BA, atendendo a uma sugestão doorganizador da coletânea, optou por oferecer-nos seu estudo sobre a presença destaetnia no sul baiano .

Nota-se um incremento, nestes últimos anos, da produção acadêmica a respeitodas sociedades indígenas da região brasileira em destaque, até então preterida emfunção do grande interesse que despertam as etnias de menor tradição de contato etutela.

Segundo um levantamento de José Augusto Laranjeiras Sampaio, até a décadade 60 havia apenas um estudo sobre as sociedades indígenas do Nordeste, relativo auma tese sobre os Kiriri de Mirandela, defendida na Universidade Federal da Bahia.

Nos anos 70, surgem mais quatro pesquisas sobre os índios da região. Na déca-da de 80, houve mais sete trabalhos e, na década de 90, a produção saltou para dezenoveteses de especialização, apresentadas em diversas universidades, inclusive da própriaregião.

Page 9: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Nesta coletânea, cinco textos constituem o resultado do trabalho de uma novageração de antropólogos, que dedicou seus esforços ao estudo das sociedades indíge-nas do Nordeste, tendo sido algumas dessas teses orientadas pelo Professor JoãoPacheco de Oliveira Filho, antropólogo do Museu Nacional/UFRJ.

As sociedades indígenas do Leste e Nordeste brasileiros demandam respostaseficazes e inovadoras para seus antigos problemas. Cabe aos agentes indigenistas,governamentais e não-governamentais, repensarem suas práticas e impulsionarem apolítica indigenista brasileira, promovendo, em parceria, o etnodesenvolvimento de formacontínua e sustentável.

Esse foi o espírito público que norteou o workshop de Carpina. Atenderam aoconvite da FUNAI 101 participantes inscritos, representando vários estados, organiza-ções governamentais, indigenistas, indígenas (APOIME), religiosas e internacionais (Ban-co Mundial e UNICEF).

Para a realização desse acontecimento inédito, registramos aqui o apoio decisivode Rosângela Gonçalves de Carvalho e de Luiz Otavio Pinheiro da Cunha, além da cola-boração de Ana Maria Costa, todos da FUNAI.

Ao parceiro Sérgio Chamon, que na época chefiava a Coordenação de Treina-mento e Desenvolvimento da FUNAI, os agradecimentos pela paciência e execução doworkshop.

A José Augusto Laranjeiras Sampaio, os agradecimentos especiais pela colabo-ração desde a primeira hora.

A todos que participaram do evento, emprestando seus conhecimentos e experi-ência ao trabalho das oficinas e acreditando ser possível corrigir, especificar e qualificaros meios para a construção da cidadania indígena nas regiões Nordeste e Leste doBrasil, o nosso reconhecimento.

Marco Antônio do E. Santo Organizador

Maxacali-MG, 1958José Silveira de Souza (Seu Juquinha)

Page 10: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 11: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

POVO DESUNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO...(...mas vencerá?)

Júlio M.G. Gaiger

Page 12: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 13: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Não lembro em que época forjei esta ver-são contrária à divisa popular; ela brotou ins-tantaneamente quando tive consciência de quea resistência dos povos indígenas certamentese explica, em grande parte, pela multiplicidadede estratégias que eles desenvolvem, tornandomuito mais complicada sua dominação. Já sefalou muito sobre a homogeneização persegui-da pelos setores dominantes; daí a tentativa per-manente de impor uma visão uniforme das coi-sas, um mesmo gosto estético, um idêntico es-quema de ideais a ser alcançado. Uma socie-dade homogênea é mais facilmente previsível econdicionada, e, portanto, é uma sociedademais fácil de se manter sob controle.

Em parte por isso, deixei de partilhar doentusiasmo que setores de oposição geralmen-te votam pelas estratégias unionistas. Pode atéfuncionar (embora nunca, de fato, tenha funcio-nado) quando se pensa nas centrais sindicais(que, contraditoriamente, são várias...), maspassei a desconfiar que, para os índios em ge-ral, seria melhor permanecerem o que sempreforam: distintos, peculiares, irredutíveis.

Essas lembranças vieram à mente quan-do, lendo os diversos ensaios que compõem apresente coletânea, reconduzi-me não só aoevento que lhe deu causa, em Carpina, mas tam-bém às inúmeras situações trazidas à minhaconsideração quando exerci a presidência daFunai; estas, por sua vez, remetiam-me imedi-atamente à visão que alimentei em anos demilitância indigenista, oposicionista por defini-ção. Em vários dos ensaios, permeia um pas-mo onipresente quanto aos desafios colocadospor um dos aspectos mais complexos dairredutibilidade indígena; o chamado“faccionalismo”, tão forte entre várias socieda-des nativas do Nordeste.

Esse faccionalismo é a dor de cabeçamais aguda dos indigenistas. Dependendo da

hora e do local político em que se encontre, oindigenista agonia-se com vários dos seus efei-tos perversos e/ou deleita-se em acusar a Funaipor sua desastrada, quando nãodeliberadamente tendenciosa, intervenção. Ten-do estado em ambos os lados desta trincheira,e sabendo hoje que esta não é mais a trincheiraque define os lados, atrevo-me a desenvolveralgumas idéias que a experiência inspira.

No Nordeste, os índios precisaram elabo-rar estratagemas que os tornassem visíveis àsatenções oficiais e não-oficiais, compensandoos resultados de processos que os teriamdesindianizado. Quem pôde, manteve uma lín-gua e alguns rituais; mas diante dos seuspatrícios amazônicos ou oriundos do Centro-Oeste, os índios nordestinos parecem ter umaaguda consciência da distância que a históriaos fez percorrer. Não é, então, surpreendenteque, em seus diversos sabores, ofaccionalismo, ou seja lá que outra denomina-ção se lhe queira dar, tenha sofrido a exacerba-ção ao menos aparente que se constata há tem-pos.

Os povos indígenas brasileiros semprevivenciaram antagonismos internos mais oumenos significativos. Em sociedades de tama-nha homogeneidade, o antagonismo respondiaà necessidade de alimentar um impulso con-tra-inercial. Fossem estes antagonismoscorporificados em clãs, metades, faixas etáriasou na rivalidade entre aldeias vizinhas, a com-petição por eles incentivada impedia as socie-dades indígenas de se acomodarem ao confor-tável equilíbrio que tivessem logrado atingir.

Curiosamente, ao contrário da nossa,essas sociedades não tinham nenhuma neces-sidade ideológica de disfarçar ou negar estesantagonismos; eles inclusive passaram a inte-grar o corpo simbólico dos atributos da

POVO DESUNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO...(.. .mas vencerá?)

Júlio M.G. Gaiger 1

Page 14: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

14

JÚLIO M. G. GAIGER

indianidade. Se os demais elementos destecorpo simbólico pareciam inacessíveis aos ín-dios do Nordeste, o faccionalismo, talvez de res-to nunca realmente abandonado, recebia umanova função: afirmar a indianidade.

Tal função compete com a de mobilizaressas mesmas sociedades em torno de objeti-vos comuns: o reconhecimento de suaetnicidade particular, a demarcação das terrase a disponibilização dos cuidados e aparatosassistenciais, tanto por parte do Estado comopor parte de quaisquer outras agências ou ins-tâncias. Para isto, o faccionalismoinstrumentaliza-se como fonte de estratégiasdirigidas a tais alvos.

Mais ou menos naquela seqüência de pri-oridade, constata-se, não só no Nordeste, masem todo o território brasileiro, um corresponden-te apelo à estratégia faccionalista. Para quem,aos olhos do Estado ou de quaisquer outros se-tores da sociedade neobrasileira, nem índio aindaera, chamar a atenção por meio de conflitos exa-cerbados foi e é uma tática interessante. Namedida em que a etnicidade e o corresponden-te território passam a ser reconhecidos, a dis-puta desenvolve-se em torno da terceira ordemde aquisições, com intensidade proporcional-mente menor, dependendo, contudo, da impor-tância que os cuidados e aparatos assistenciaistenham para cada sociedade – vide os Xavante,que me abonam neste momento.

O problema, contudo, não é só compre-ender essa possível natureza e função dofaccionalismo. Pode-se de todo modo dizer queisto não é compreendido porque vários dos de-mais textos da coletânea testemunham a per-plexidade de todos os agentes diante do fenô-meno, hesitantes no adotar uma ou outra linhade conduta.

Questão maior, diante da qual os própri-os índios certamente precisarão deter-se maisou menos dia, é que em muitos casos o apelo àestratégia terá, possivelmente, subtraídas doseu controle, as conseqüências negativas dela.

Bartolomeu (Bartomeu) Meliá estudou ofaccionalismo entre os Kaingang (também umaetnia do tronco Macro-Jê) para compreender as

razões do excepcional conflito ocorrido em1983, na área de Guarita, quando vários índiosforam mortos. Tratava-se ali da disputa pelomonopólio dos arrendamentos (como ocorreentre os Fulniô) e da exploração ilegal de ma-deira. Meliá percebeu que o faccionalismo erauma característica cultural dos Kaingang, ape-nas menos visível nos dias atuais. Até aí, suaevidência podia ser considerada como sinal im-portante de vitalidade cultural.

Acontece que os Kaingang de Guarita che-garam a matar-se competindo por recursos tor-nados importantes pela incapacidade do Esta-do de lhes oferecer alternativas legais e viáveis.Não eram, pois, recursos intrinsecamente im-portantes do ponto de vista Kaingang.

Dir-se-á que a terra é intrinsecamente im-portante para os Kiriri; e o é. Mas a disputa quetem na reconquista da terra seu pretexto imedi-ato alveja algo circunstancialmente mais impor-tante, que é a hegemonia política, e esta certa-mente não vale a cisão sofrida pelos índios.

Do mesmo modo, tornou-se difícil supe-rar a fissura a que chegaram os Xucuru-Kariri.Neste, como nos outros casos, o meio absor-veu o fim, e certamente os índios não vislubram,e talvez nem mesmo se perguntem sobre, asaída deste labirinto.

Os índios não conseguem perceber quejá alcançaram todos os fins justificáveis pormeio da exacerbação do faccionalismo, quan-do atraíram as atenções de todos os agentes –governamentais ou não. Mas ninguém se arris-ca a abdicar da estratégia, temendo perder es-tas atenções, e reproduz-se, então, uma me-donha roleta-russa que poucos se dispõem adenunciar, temendo igualmente que se percamas atenções tão duramente conquistadas.

Até aqui, portanto, os índios não se deixa-ram dominar; nem por isso se vislumbra que oatual caminho de resistência os conduzirá aoêxito.

Como parte sempre invariável do quadro,inclui-se a disputa pelo domínio dos postos bu-rocráticos do órgão de assistência, e aí, certa-mente, os exemplos são abundantes e trans-

Page 15: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

15

POVO DESUNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO ...

cendem o Nordeste. Este domínio pode assu-mir forma indireta, por meio da indicação dosocupantes dos cargos, ou direta, por meio dasua ocupação pelos próprios índios. Sabe-seque esta parte da estratégia possui, além daóbvia função de incrementar o poder político, aserventia de redistribuir renda.

Sucede que o exercício das funções ad-ministrativas, que deveria beneficiar a todos osíndios da respectiva jurisdição, é também ex-pressivamente desviado em favor dofaccionalismo, ao final aprisionando a estruturae os recursos do órgão indigenista e agravan-do ainda mais o antagonismo. Engendra-se umcírculo vicioso. O órgão é acusado por suas in-tervenções desastradas, mas não se conside-ra o fato de que, em nível local, ele está literal-mente tomado por uma das partes; e é sabidoo quanto se protesta – dando então ensejo amais acusações – quando é tentada qualquerassepsia que neutralize o desvio.

Esses aspectos do processo somenteserão recuperados com uma atitude firme dopróprio Estado, desde que os índios e seus ali-ados estejam dispostos a rever sua estratégia.Talvez não se possa desencadear nenhum pro-cesso mais abrangente, mas valeria a pena in-sistir em sanar situações mais graves.

Neste passo, retribuo a homenagem queme fez Henyo Trindade Barreto Filho, no textode sua autoria, quando me provocou insinuan-do que o discurso pela reforma do aparelho doEstado ressentia-se da ausência da percepçãodo processo histórico que determinou sua con-figuração. Nada mais distante disso. Mas nempor conscientes desta historicidade devemosrenunciar à bandeira da reforma, sob pena de,justamente os que nos dizemos progressistas,desempenharmos o papel assinalado aos con-servadores.

Isto é muito mais importante agora quena época do workshop em Carpina, porque fi-cou claro que a reforma do aparelho do Estadoera apenas retórica governamental – possivel-mente, embutida numa estratégia de “jogar obode no pau de arara” * . Impõe-se, então, res-gatar a bandeira para as mãos dos que estão

comprometidos em fazer do aparelho do Esta-do um instrumento de serviço efetivo à socie-dade, índios principalmente, advertidos de quenão existe garantia de resultados por meio deprocedimentos – esta é a desculpa, falsa, daburocracia, que a usa para sua própria conser-vação e reprodução!

Entendo que os índios não aceitariam,como até hoje não aceitaram, desistir dofaccionalismo, mesmo com toda esta argumen-tação. É preciso, então, sugerir-lhes opções quecanalizem esta energia.

Talvez tenha sentido sugerir a conquistade, e o exercício nos, espaços de cidadania parafins “indígenas”.

Ao fim e ao cabo, a cidadania para os ín-dios, no Nordeste e fora dele, é também espe-cífica. Índio só é cidadão integral enquanto ín-dio, ou seja, enquanto membro de um grupo ét-nico específico de ascendência pré-colombia-na a que (i. e. ao grupo) a Constituição reco-nheceu um elenco de direitos especiais de na-tureza coletiva. A noção ocidental de cidadania,embora resultante de um processo a sua veztambém peculiar, pode oferecer possibilidadesinteressantes para o exercício de uma cidada-nia indígena. Não me refiro aqui à idéia vencidado “voto étnico”, de resto um reducionismo daidéia de cidadania; cogito o envolvimento dosíndios na apreensão dos instrumentos da cida-dania em favor da promoção de objetivos indí-genas.

Em instâncias em que a especificidadeindígena seria um ponto entre outros, lograr-se-ia um caminho de duas mãos. Por um lado, in-corpora-se à pauta mais abrangente da cidada-nia o componente indígena. Por outro, os índiosteriam a oportunidade de articular suas ques-tões com problemas mais amplos, passando aentender-se em contexto e, assim se espera,adquirindo elementos que os ajudariam a supe-rar ou pelo menos a mitigar os efeitos mais no-civos do faccionalismo.

Isso supõe, com certeza, a superação deuma concepção maniqueísta e de permanenteconflito sobre o Estado e a sociedade, e uma

Page 16: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

16

JÚLIO M. G. GAIGER

redefinição de atitudes: dos próprios índios e deseus aliados, diante tanto do Estado quanto da

sociedade; e, acima de tudo, dos índios diantede si mesmos.

veementes. Quando o berreiro já enfraquecia, tão exaustosestavam os viajantes, o motorista parou o veículo e retirou obode, com o que todos, desafogados, passaram a achar razoávelo conforto...

Advogado – consultor legislativo da Câmara dos Deputados.

* A piada é conhecida, mas vamos lá: conta-se que viajantescomprimidos num pau de arara queixaram-se tanto do seudesconforto que o motorista parou junto a uma posse, comprouum bode e jogou-o na carroceria, junto com os infelizespassageiros. Seguiu viagem, surdo às reclamações ainda mais

1

Page 17: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

TRÊS TESES EQUIVOCADAS SOBRE OINDIGENISMO

(Em especial sobr e os índios do Nor deste)

João Pacheco de Oliveira Filho

Page 18: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 19: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Existem índios no Nordeste? Esta é aquestão crucial que detona as suspeitas do sen-so comum e torna bastante difícil e suscetívelde contestação a argumentação dos antropólo-gos e as propostas de ação indigenistas. Oobjetivo deste texto é discutir um conjunto inter-ligado de pressupostos que sustentam talquestionamento.

Aqui apresento desde logo o primeiro obs-táculo: supor que os índios (tal como falamosdeles hoje) sempre existiram. Um notável his-toriador da ciência, George Stocking Jr. (1968),chamou isto de “o vício do presentismo”: des-crever os fatos e idéias do passado com osolhos do presente, tomando o que nos é famili-ar e natural como contemporâneo aos fatos re-latados do passado.

Entrando diretamente no assunto, não po-demos supor – muito menos instilar ou reforçarem outros (juízes, legisladores, indigenistas, nospróprios índios ou no público em geral) uma talcrença – que aqueles índios com que estamoslidando concretamente, em nossas pesquisasou nas ações indigenistas cotidianas, sempreexistiram e são anteriores à constituição da na-ção brasileira. Que, se encontrássemos algumregistro esquecido de um cronista colonial, al-gum documento ou termo de doação do Impe-rador Pedro II, poderíamos localizá-los perfeita-mente no passado, há séculos de distância, bas-tante modificados, é verdade, mas ainda reco-nhecivelmente eles.

Não podemos nos apossar da listagematual de sociedades indígenas no Nordeste epretender retroceder, para cada etnônimo es-pecífico, por meio de um processo de filogênese,até os primórdios da colonização portuguesa.Isto nem sempre é possível e tem conseqüên-cias perversas, mesmo quando aparenta po-

der ser realizado com alguma verossimilhan-ça.

Algumas identidades indígenas já sãoregistradas em crônicas dos séculos XVI e XVII,nos primeiros contatos com as feitorias, as mis-sões religiosas ou a frente de expansão da pe-cuária; outras são de elaboração recente, re-sultando de processos históricos igualmenteconhecidos e estudados, que remontam algunsà década de 1940 e outros aos anos 70/80.

Em nossos trabalhos, algumas vezes fa-lamos em “identidades emergentes” e em“etnogênese” para caracterizar aqueles proces-sos socioculturais que foram objeto de descri-ções históricas densas2. O que não significa,de modo algum, que nas outras unidades soci-ais, aquelas portadoras de etnônimos mais an-tigos, as categorias utilizadas para marcar aidentidade étnica decorressem de alguma su-posta condição “natural”, ou que remontassemà “origem dos tempos” ou, ainda, que resultas-sem de processos dados como “endógenos”ou “espontâneos”.

Sabemos, com Barth (1969), que as ca-tegorias étnicas são veículos para a organiza-ção social das diferenças, e que isto só ocorreem um contexto de interação social. Osetnônimos mais antigos também têm a suahistória, bem como, em princípio, sempre sepoderia proceder a uma sociogênese de qual-quer unidade social. A única diferença é que nãodispomos de documentos ou testemunhos su-ficientes para descrever com densidade socio-lógica como surgiram estes etnônimos, fato quenão decorre da natureza dos fatos descritos,mas sim da função político-legitimadora dahistoriografia oficial e, também, da distância cro-nológica que nos separa de tais eventos (o quedificulta o apelo à memória e à historia oral).

João Pacheco de Oliveira Filho1

TRÊS TESES EQUIVOCADAS SOBRE O INDIGENISMO(Em especial sobre os índios do Nordeste)

Page 20: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

20

JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA FILHO

É correto reificar tal diferença e passar atratar essas identidades étnicas em categoriasconceitualmente distintas, ao preço de aceitaruma visão ingênua e naturalizada das demais?Ou assim não corremos o risco de vir a justifi-car uma eventual política indigenistadiscriminatória, que pretenda estabelecer dife-renças no plano do reconhecimento de direitos?

Uma estranha maldição nos persegue, demodo que quanto mais aprofundamos a pes-quisa sobre as identidades emergentes, para-doxalmente, mais parecemos contribuir paranaturalizar as identidades étnicas mais antigase lançar suspeitas na opinião pública sobre aautenticidade dos índios emergentes. Mas ire-mos retomar esse ponto mais adiante, quandojá tivermos falado do ponto seguinte.

A segunda tese tem, também, umenraizamento político e chama a atenção porsua evidente aplicação prática, pois estabeleceuma tarefa, bastante difícil, a ser realizada poretnohistoriadores e antropólogos: apresentar asevidências históricas sobre a antigüidade doterritório indígena.

Aqui, seria oportuno retomar os comen-tários críticos anteriores sobre o vício dopresentismo. A noção com que trabalhamos,atualmente, de “território indígena”, que está pre-sente na legislação e que demanda dos antro-pólogos relatórios técnicos de identificação eperitagens judiciais, é uma elaboração dos bran-cos e historicamente datada. A sua constitui-ção ocorreu na década de 1950, por ocasiãodos debates relativos à criação do Parque Indí-gena do Xingu. A proposta final apresentada peloSPI incorporava argumentos e sugestões de di-versos antropólogos, como Darci Ribeiro,Roberto Cardoso de Oliveira e Eduardo Galvão.Nela tomava-se como dever do Estado, e finali-dade explícita de uma política pública, a preser-vação das culturas indígenas estabelecidas pelomenos há mais de um século na região dos for-madores do rio Xingu, mantendo uma relaçãosimbiótica com aquele nicho ecológico, sempermitir a implantação de empreendimentosmercantis e de colonos brancos, mas desen-volvendo técnicas próprias de convivência e re-

lações internas estáveis. Pela primeira vez, pro-punha-se a destinação, aos índios, de uma par-cela bastante extensa do território nacional3, eo argumento utilizado para justificar tal propos-ta, bem como os limites geográficos ali estabe-lecidos, era que os recursos naturais ali exis-tentes seriam os necessários e suficientes paragarantir aos índios a plena reprodução de suacultura e de seu modo de vida.

Foi esse padrão de definição de terra in-dígena que veio a estar presente na EmendaConstitucional de 1969 e na Constituição de1988, fundamentando, ainda, os critérios quesubsidiam os atuais processos de reconheci-mento de áreas indígenas. As iniciativas anteri-ormente colocadas em prática pelo SPI preten-diam justificar-se por argumentos exclusivamen-te humanitários, indicando a necessidade deoferecer assistência e proteção aos índios eevitar a sua destruição física. Por sua vez, asterras destinadas aos índios eram obtidas pormeio de mecanismos diversos, como a requi-sição aos órgãos públicos (federais ou estadu-ais), a doação de particulares ou, ainda, pelaaquisição de domínio por compra. Usualmente,tais áreas eram de dimensões bem mais mo-destas, correspondendo a glebas e fazendasmenores.

Imbuído de uma perspectiva evolucionistae contribuindo para a regularização do merca-do de terras nas regiões de fronteira, por meiode sua ação pacificadora, o SPI não costuma-va verbalizar a intenção de preservação cultu-ral, nem estabelecia uma conexão necessáriaentre uma cultura indígena e um dado meioambiente. As terras que eram atribuídas peloSPI a populações indígenas que foram objetode um processo de pacificação – e conseqüen-te sedentarização e tutela – eram muito meno-res que a região onde construíam seusaldeamentos (sazonais ou com periodicidademais extensa) e transitavam com certa regula-ridade.

Diferentemente das avaliações idealiza-das próprias ao indigenismo oficial, os critérios(não-explicitados) efetivamente utilizados paradefinir as terras dos índios passavam pela fun-

Page 21: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

21

TRÊS TESES EQUIVOCADAS SOBRE O INDIGENISMO

ção do SPI como mediador nas situações so-ciais de expansão da fronteira econômica .O objetivo fundamental era estabelecer contro-le sobre as relações entre índios e brancos, evi-tando o conflito e prevenindo suas conseqüên-cias maléficas para os índios (extermínio, cor-rerias, escravizamento etc.)4. A faixa ou parcelade terra reservada aos índios deveria servir aesse propósito, permitindo: a) distanciá-los dosbrancos; b) não ser foco de interesse econômi-co maior pela frente colonizadora; c) ser aceitapelos índios. A relação entre índios e territórionão era colocada em discussão, a não ser nostermos (altamente assimétricos) desta últimanegociação.

Embora atender a tais situações de ex-pansão da fronteira econômica fosse justamen-te a razão de existência do SPI no quadro dasestruturas do Estado brasileiro, o órgãoindigenista também, algumas vezes, veio a atu-ar junto a populações indígenas com alto graude contato e integração com a sociedade naci-onal. Nessas situações, a intervenção oficial vi-sava a reparar processos extremados de po-breza, dependência e degradação social (alco-olismo, prostituição, criminalidade), o que seriarealizado por meio da obtenção e destinação, aum grupo de famílias indígenas, de uma glebade terreno que lhes viesse a permitir exerceratividades de subsistência. Quando osindigenistas do SPI manifestavam alguma pre-ocupação quanto a uma possível unidade dasfamílias beneficiadas por sua atuação, o fatorbásico era garantir a sua condição de indígena,e não levar em conta uma possível diversidadeem sua composição étnica. Na práticaassistencialista e clientelista do SPI, a rela-ção entre índios e terra era instaurada pelo re-conhecimento ou concessão de uma determi-nada gleba, não sendo sequer consideradas de-mandas específicas quanto a um certo espaçogeográfico (o caso dos Kambiwa, com sua for-te relação com a Serra Negra, é um sinal bemevidente dos desacertos dessa políticademarcatória).

Se recuarmos mais ainda no tempo, nãonos satisfazendo com décadas, mas remon-tando a séculos de diferença, verificaremos que

o Nordeste foi uma das áreas de colonizaçãomais importantes e antigas na formação da na-ção brasileira. A sua população indígena sofreuprofundo e persistente impacto econômico esociocultural por parte dos empreendimentoseconômicos e religiosos que viabilizaram a ocu-pação dos sertões e a expansão territorial dosdomínios portugueses. Para as etnias que so-breviveram, só existiram dois caminhos: ou bus-caram temporariamente áreas de refúgio, algu-mas vezes coexistindo com quilombos, até queviessem a ser incomodados por novas preten-sões territoriais das fazendas e dos pequenosagregados urbanos, ou foram logo incorpora-das pelo processo civilizatório – seja insuladas(isto é, reunidas, reterritorializadas e disciplina-das pelas missões religiosas), ou colhidas nasua capilaridade (i.e., fragmentadas em famíli-as e coletividades acabocladas oudestribalizadas).

Em tais situações históricas 5 não hácomo falar em território indígena no sentido atu-al em que empregamos o termo e que os pró-prios índios contemporaneamente reivindicam.A missão, a fazenda ou as povoações de cabo-clos podem, no máximo, constituir indícios his-tóricos da presença de índios naquele local,mas não configuram, de forma alguma, uma si-tuação de posse exclusiva pelos índios de umdado território. Até mesmo no caso das mis-sões, as terras que lhes eram destinadas emsesmarias não visavam a assegurar a preser-vação ou sequer a continuidade socioculturaldessas etnias. Ao contrário, as missões eramnúcleos coloniais que objetivavam acatequização dos indígenas e a geração de ri-quezas para a Coroa e as próprias ordens reli-giosas. Nesse quadro político e jurídico, os es-forços do etnohistoriador em estabelecer co-nexão entre uma etnia específica e um certoespaço geográfico, pretendendo assim demons-trar a anterioridade da presença indígena, po-dem estar freqüentemente fadados aoinsucesso.

E felizmente isso não é de forma algumanecessário para fundamentar as reivindicaçõesindígenas. A incorporação do modelo xinguano

Page 22: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

22

JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA FILHO

como paradigma para as práticasdemarcatórias da FUNAI, nas décadas de 1970e 1980 fez-se por meio da noção deimemorialidade. Isto é, caberia ao antropólogorealizar estudos etnohistóricos que lhe permi-tissem provar que aqueles índios já ocupavamaquela área anteriormente à chegada dos bran-cos. Como observei em outro trabalho (Olivei-ra, 1994), tal demonstração pode ser bastantedifícil e criar sérios inconvenientes ao reconhe-cimento das demandas indígenas. Mas a Cons-tituição de 1988 adota um outro e único critériopara a definição de uma terra indígena – quesobre ela os índios exerçam de modo estável eregular uma “ocupação tradicional”, isto é, queutilizem tal território segundo “seus usos e cos-tumes”. Trata-se, portanto, de substituir umaidentificação meramente “negativa” (da presençado branco), por uma “identificação positiva”, quepode ser feita por meio de trabalho de campo eda explicitação de uma “territorialidade indíge-na” (ou seja, dos processos socioculturais pe-los quais os indígenas se apropriam daquele ter-ritório).

A terceira tese, por sua vez, recomenda-ria aos etnohistoriadores e antropólogos: “paraconhecer a verdadeira singularidade de umacultura indígena é preciso perseguir os elemen-tos de sua cultura originária, isentos da máculada presença de instituições coloniais”. Mas, an-tes de aprofundar esta questão, é importanteque possamos discutir melhor sobre os dife-rentes modos de conceituar cultura.

Os primeiros evolucionistas falavam decultura no singular, como um amplo processocivilizatório, cumulativo e sem fronteiras. Como advento do trabalho de campo, do funciona-lismo e do relativismo, os antropólogos passa-ram a falar de cultura sempre no plural, comofenômenos ancorados em distintas e isoladaslatitudes do planeta, formando sistemas relati-vamente integrados e auto-reguláveis. Quantomais diferentes fossem entre si as culturas, talcomo descritas nas monografias dos antropó-logos, mais segura seria a indicação de com-petência etnográfica, bem como de que o pes-quisador levara ao mais fundo o seu mergulhona alteridade.

Existe, também, um uso mais atual do ter-mo cultura, bastante comum entre antropólo-gos e sociólogos cujos objetos de pesquisa re-sidem nas chamadas “sociedades complexas”.Nesta acepção, cultura é todo conjunto de sím-bolos que permite a comunicação entre os ho-mens e implica o estabelecimento de obriga-ções recíprocas e a convergência em termosde crenças e valores.

Tais conjuntos de símbolos possuem ní-veis muito diferentes de abrangência, incluindofenômenos que podem situar-se em uma es-cala infra-societária (como a cultura peculiar decertas categorias ocupacionais, de geração,étnicas, de habitantes ou freqüentadores dedeterminados espaços urbanos etc.), ou abran-ger contextos mais amplos, intersocietários(como a diplomacia ou o ambientalismo) ou ain-da transnacionais (como as religiões universais,associações culturais e recreativas, algumasideologias políticas etc.).

Nessa perspectiva a relação entre cultu-ra e sociedade (entendida esta como socieda-de nacional) não é de maneira alguma unívoca.Uma sociedade é composta por umamultiplicidade de culturas, que mantêm umascom as outras relações que precisam ser estu-dadas empiricamente (pois nem sempre sãounicamente de justaposição, harmonia eintegração, podendo envolver exclusão e confli-to, como também passar por esferas de indife-rença, ou por conexões menores, mediatizadaspor formas múltiplas, ambíguas etc.).

Por sua vez, as culturas não são neces-sariamente coextensivas com as sociedadesnacionais. Alguns teóricos sugerem a conveni-ência de se abandonar imagens arquitetônicas,de sistemas fechados, e se passar a trabalharcom processos de circulação de significações.Barth serve-se da metáfora da corrente(streams) – que não mantém uma forma regu-lar e definida, mas que, em algum lugar, possuium centro dotado de força e aderência para ar-rastar ou envolver outros artefatos, tal capaci-dade diluindo-se em suas extremidades. Paraindicar a circulação das tradições culturais den-tro ou através de diferentes unidades sociais,

Page 23: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

23

TRÊS TESES EQUIVOCADAS SOBRE O INDIGENISMO

Hannerz (1997) utiliza-se da noção de fluxos cul-turais (cultural flows) para enfatizar que o cará-ter não-estrutural, dinâmico e virtual é constitutivoda cultura.

Tal alternativa de construção teórica re-vela-se mais profícua e universal, permitindouma base mais ampla de comparações, semexigir a aceitação ingênua de pressuposiçõesnão mais verificadas historicamente (se é quealgum dia o foram).

A expansão colonial forneceu o quadropolítico e ideológico para a consolidação de umadisciplina que focalizava especificamente o pen-samento e a existência dos povos indígenascomo “nossos contemporâneos primitivos”. E,por mais paradoxal que isso fosse, as culturasnativas eram exaustivamente descritas pelosantropólogos – com destaque maior para a Áfri-ca e a Polinésia, em escala bem menor naAmérica – como sistemas fechados e coeren-tes, quase inteiramente virgens da influênciacultural do Ocidente. Menos que observadasna plenitude de sua operação, as culturasnativas foram idealmente reconstituídas , opesquisador praticando um esforço de abstra-ção para imaginar como tudo se passaria casoos brancos (ele incluído) ali não estivessem.

No contexto brasileiro, tratar as culturasindígenas como bolas de bilhar, homogêneas eautocontidas, e distintas apenas por sua colo-ração e ordem de entrada no jogo (segundo afamosa imagem de Wolf, 1982), seria um equí-voco grave, que também apresenta conse-qüências práticas extremamente perigosas.

O que ocorre de pior, no entanto, é que aconcepção naturalizada de cultura se conectacom perfeição à representação do senso co-mum sobre os índios, formando um complexoideológico de bastante difícil desmontagem, emque um lado se encarrega da suposta evidên-cia empírica e o outro garante a legitimidade ci-entífica.

A representação cotidiana sobre o índio,como já dissemos em outras ocasiões, é a deum indivíduo morador da selva, detentor dastecnologias mais rudimentares e das institui-

ções mais primitivas, pouco distanciado, por-tanto, da natureza. É justamente essa repre-sentação que informa as manifestações literá-rias e artísticas, a ideologia sertanista, o estatu-to legal, a política indigenista e ainda conformaos mecanismos oficiais de proteção e assis-tência.

Embora seja muitas vezes acionada comoinstrumento de defesa dos interesses indíge-nas, a maldição que persegue tal representa-ção é que, uma vez ocorrida a “pacificação” einiciados os primeiros contatos amistosos eregulares com o homem branco, rapidamenteela se volta contra os seus interesses. Passa aser um argumento que recomenda a prudênciae suspeição quanto a sua pureza e autenticida-de, justificando também os debates sobre o graude mudança cultural que ainda seria razoáveladmitir naqueles que fossem reconhecidoscomo indígenas. Logo entram em cena as sus-peitas quanto a uma manipulação falseadora,seja elaborada pelo próprio interessado, seja porterceiros (funcionários do órgão indigenista , an-tropólogos, missionários, organizações não-go-vernamentais etc.).

A força persuasiva e as evidênciaspretensamente acionadas nesse discurso de-correm da antiga e superada concepção do ín-dio como primitivo. É partindo dessa arraigadarepresentação que o senso comum pode dis-cutir e questionar a existência de “índios” noNordeste, instituindo implicitamente uma pola-ridade entre as culturas indígenas “intocadas”(seriam as autênticas) e aquelas afetadas por“processos de aculturação” (essas já seriaminautênticas, pois conteriam elementosexógenos e espúrios). Com isso, abre-se umperigoso precedente para que o Estado venhaa ceder à pressão de interesses particulares,passando a normatizar de forma diferenciadaos direitos indígenas, e sem qualquer rigor ci-entífico, vindo a legitimar uma classificaçãofundamentada exclusivamente no preconceito6.

Devemos extrair todos os ensinamentospossíveis desse raciocínio crítico. Um primeiroé que o conceito de aculturação deve ser am-plamente criticado por sua imprecisão e gene-

Page 24: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

24

JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA FILHO

ralidade, homogeneizando situações muito di-versas. Contrastando apenas com uma condi-ção irreal e fantasmática (as culturas indígenas“intocadas”), não tem qualquer valor operativoe analítico, sua eficácia sendo de outra nature-za, funcionando como peça acusatória em umdiscurso político de questionamento da condi-ção de indígena. Ou seja, é um conceito cujavalidade cientifica deve ser negada, buscando-se outros instrumentos mais adequados parafalar sobre a mudança sociocultural.

O outro aspecto a considerar é que posi-ção adotar quanto à representação cotidiana doíndio como primitivo. Aqui, acredito, é necessá-rio ser radical e recusar qualquercontemporização como infundada em termoscientíficos (antropológicos) e perigosa enquan-to estratégia política. Para constituir, por abs-tração analítica, uma cultura, é preciso partirdo que pensam, fazem e sentem os seusportadores atuais . Uma cultura indígena, porsua vez, não pode ser, portanto, algo diverso dopatrimônio simbólico dos índios atuais, não ten-do sentido alimentar qualquer discussão sobreautenticidade de culturas indígenas específicas.Não é possível nem justificado estabelecerparâmetros exteriores e arbitrários para definiro que é (ou o que deva ser) uma cultura indíge-na específica.

Ademais, é preciso entender que um talpatrimônio estará marcado comumente por di-ferentes tradições culturais. Para serem legíti-mos componentes de uma cultura, tais costu-mes e crenças não precisam ser exclusivosdaquela sociedade, freqüentemente sendo com-partilhados com outras populações (indígenasou não). Tais elementos culturais também nãosão necessariamente antigos ou ancestrais, aadaptação de suas pautas culturais ao mundo

moderno e globalizado constituindo-se fato cor-riqueiro.

A incorporação de rituais, crenças e práti-cas exógenas não necessariamente significaque aquela cultura já não seria “autenticamenteindígena” ou pertencesse a “índios aculturados”(no sentido pejorativo de ex-índios ou falsos ín-dios). Operadores externos podem serressemantizados e, assim, virem a ser funda-mentais para a preservação ou adaptação deuma organização social e de um modo de vidaindígena. E, sobretudo, cabe indagar quais índi-os ou coletividades indígenas reais – comoquaisquer outras coletividades humanas – po-deriam demonstrar-se totalmente refratárias aosfluxos e correntes culturais?

Os direitos indígenas não decorrem deuma condição de primitividade ou de purezacultural a ser comprovada nos índios e coletivi-dades indígenas atuais, mas sim do reconheci-mento, pelo Estado brasileiro, da condição des-tes de descendentes da população autóctone.Trata-se de um mecanismo compensatóriopela expropriação territorial, pelo extermínio deincontável número de etnias e pela perda deuma significativa parcela de seus conhecimen-tos e de seu patrimônio cultural. Por isso, a ca-tegoria jurídica que está em vias de afirmação éa de sociedades indígenas, e não a de cultu-ras, povos ou nações. A demonstração de queuma coletividade enquadra-se nessa situação– e que portanto deva ser objeto de demarca-ção de terras e assistência – faz-se mediantea investigação de seus critérios identitários e aexplicitação de fatores simbólicos que conectamos índios atuais com as populações autócto-nes, nada tendo a ver com alguma comprova-ção de pureza cultural segundo antigos padrõesmuseológicos ou representações do senso co-mum.

1 Antropólogo, Professor do Departamento de Antropologia doMuseu Nacional / UFRJ.

2 Para um crítica dessas noções e para o encaminhamento de alter-nativas, vide Oliveira (1998).

3 Para uma análise mais detida sobre o processo de criação do ParqueIndígena do Xingu, ver a dissertação de mestrado de Maria LúciaPires Menezes (1990); para uma ampliação dessa discussão, videLima (1989 e 1995).

Page 25: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

25

TRÊS TESES EQUIVOCADAS SOBRE O INDIGENISMO

Referências Bibliográficas

AGOSTINHO, Pedro (organizador). 1988. O Índiona Bahia. Fundação Cultural do Estado daBahia.

ANDERSON, Benedict. 1983. ImaginedCommunities. Verbo, London/New York.

BARTH, Fredrik. 1969. “Introduction”. In: EthnicGroups and Boundaries. F. Barth (ed.).George Allen & Unwin/Universitets Forlaget,London/Oslo.

____1984. “Problems in conceptualizing culturalpluralism, with illustrations from Somar”. In:The Prospects for Plural Societies. D.Maybury Lewis (ed.). The AmericanEthonological Society, Washington (DC).

____1988. “The analysis of culture in complexsocieties”. Ethnos ¾: 120-142.

CARVALHO, Maria do Rosário G. 1984. Aidentidade dos povos do Nordeste. AnuárioAntropológico: 169-188. UFCE/TempoBrasileiro, Fortaleza/Rio de Janeiro.

CLIFFORD, James. 1988. The Predicament ofCulture. Harvard University Press, Cambridge.

CUNHA, Manuela Carneiro da. 1992. História dosÍndios no Brasil. FAPESP/SMC/Companhiadas Letras, São Paulo.

DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José Augusto L.& CARVALHO, Maria do Rosário G. 1992.Os povos indígenas no Nordeste brasileiro:Um esboço histórico. In: Cunha, 1992. op.cit. (pgs. 431-456).

DIAMOND, Stanley. 1969. Primitive views of theworld. Columbia University Press.

GALVÃO, Eduardo. 1978. Encontros deSociedades. Paz e Terra, Rio de Janeiro.

HANNERZ, Ulf. 1997. “Flows, Boundaries andHybrids: Keywords in TransnationalAnthropology”. In: Mana. PPGAS, MuseuNacional, UFRJ.

LIMA, Antônio Carlos de Souza. 1989. “Aidentificação como categoria histórica”. In: OsPoderes e as Terras dos Índios. J. P. deOliveira (organizador). Comunicações, 14.PPGAS, Museu Nacional, UFRJ.

MENEZES, Maria Lúcia Pires. 1990. ParqueIndígena do Xingu: A construção de umterritório estatal. Dissertação de Mestrado.Instituto de Geociências, UFRJ.

OLIVEIRA, João Pacheco de. 1983. Terrasindígenas no Brasil. Boletim do MuseuNacional, 44, UFRJ.

____1988. Nosso Governo: Os Ticuna e o RegimeTutelar. Marco Zero/CNPq. São Paulo.

____1994. “A viagem de volta: Reelaboração culturale horizonte político dos povos indígenas doNordeste”. In: Atlas das Terras Indígenas/Nordeste. PETI, Museu Nacional, UFRJ.

____1994. “Os Instrumentos de Bordo: Expectativase possibilidades do trabalho do antropólogo emlaudos periciais”. In: A Perícia Antropológicaem Processos Judiciais. O. Silva, N. Luz e C.M. V. Helm (organizadores). Associação

das populações indígenas no Nordeste, vide Oliveira (1988).

6 Como foi o caso, no passado, com a portaria que distinguia asterras indígenas em “áreas” e “colônias”, usando como critério o“grau de aculturação”.

4 Para uma discussão sobre ambigüidade constitutiva de tutela – queé tanto um instrumento protetor quanto um mecanismo repressordos interesses indígenas – vide Oliveira (1988: cap. 6).

5 Para uma definição de situação histórica, vide Oliveira (1988: pgs.57-58) e, para o aprofundamento da discussão sobre territorialização

Page 26: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

26

JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA FILHO

Brasileira de Antropologia/Comissão Pró-Índiode São Paulo, UFSC, Florianópolis.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. 1964. O Índio eo Mundo dos Brancos. DIFEL, São Paulo, 4ªed., Ed. UNICAMP, Campinas, 1996.

____.1972. A Sociologia do Brasil Indígena.Editora da Universidade de Brasília, Brasília.

RIBEIRO, Darcy. 1970. Os Índios e a Civilização.Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.

STOCKING JR. & GEORGE W. 1968. Race,Culture, and Evolution. The Free Press, NewYork.

WOLF, Eric. 1982. Europe and the People WithoutHistory. Berkeley/Los Angeles, University ofCalifornia Press.

Page 27: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

IDENTIDADES EMERGENTES, SOLUÇÕES HETERODOXAS:O caso da (não) demarcação da Terra Indígena Tapeba

Henyo Trindade Barretto Filho

Page 28: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 29: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Introdução

Dissertar sobre os Tapeba num workshopcom as características deste e diante de umpúblico qualificado é, ao mesmo tempo, umahonra e uma responsabilidade. É, assim, comum misto de satisfação e desconforto que ofaço. Lisonjeado pelo convite, porém, desafia-do pela responsabilidade de ser fiel em meu re-lato, diante de uma liderança indígena Tapeba –Dourado – e de tantas pessoas que estiverame permanecem envolvidas com a situação deque vou tratar – algumas das quais, certamen-te, muito mais credenciadas a falar do assuntodo que eu, que deixei o Ceará há sete anos evenho acompanhando apenas como um espec-tador engajado o desdobramento da situação.

Tendo em vista o caráter do workshop, quepretende reunir subsídios para “definir uma prá-tica indigenista que trate com habilidade ques-tões comuns a quase todas as etnias do Lestee Nordeste”, optei por reconstituir aqui o casoTapeba naquilo que ele me parece importantepara atingir esse objetivo: as lições eensinamentos que podemos extrair das peculi-aridades do processo de reconhecimento ofici-al, pelo Estado, dos Tapeba e de sua terra, comouma contribuição para redefinir o procedimentode demarcação de terras indígenas no Nordes-te e Leste. Tento destacar, nesta comunicação,o que torna os Tapeba um caso exemplar. Paratanto, faz-se necessário, no meu entendimen-to, partir de alguns princípios normativos preli-minares (que eu gostaria de sugerir e colocarem discussão), bem como considerar algumasquestões gerais (já abordadas em palestras ecomunicações precedentes) e dar algumas in-formações sobre os próprios Tapeba, parasituarmo-nos melhor.

Princípios normativos preliminares

Um princípio que quero sugerir e proporpara a discussão é o seguinte: a açãoindigenista – qualquer que ela seja, oriunda dequalquer instituição ou pessoa que atua junto asociedades indígenas – deve assegurar condi-ções que possibilitem aos povos indígenas (i)determinarem o curso de seu desenvolvimen-to, (ii) controlarem a direção e o ritmo das mu-danças que afetam as suas vidas e (iii) terem aliberdade de escolher o tipo de relações quedesejam ter com o Estado, com a sociedadeem geral e com o mercado (nas formas parti-culares em que estes se apresentam a essespovos). Creio que são noções como estas quefundamentam as idéias de autodeterminação,autodesenvolvimento, auto-sustentação e de-mais termos correlatos com o prefixo “auto”.

Quando eu sugiro isso como um princí-pio normativo preliminar, não se trata de umaformulação genérica de autoria própria. Propo-nho isso a partir de alguns trabalhos de antro-pologia aplicada e de antropólogos que têm seenvolvido com a implementação e a análise deiniciativas de desenvolvimento junto a socieda-des indígenas. Estou afirmando isso com baseem experiências que têm se dado nas Améri-cas Latina e Central, nos contextos andino e dafloresta tropical. Não estou pensando em Aus-trália, Canadá e Estados Unidos e sim olhandoaqui para as experiências de nossos vizinhosmais próximos. Os antropólogos que aí têm atu-ado vêm destacando uma série de aspectos,dos quais eu gostaria de enfatizar dois, comocomplementos ao princípio normativo que aca-bei de enunciar.

O primeiro é que qualquer possibilidadede autodeterminação no domínio econômico ou,ainda, de auto-sustentação, demanda ações

Henyo Trindade Barretto Filho1

IDENTIDADES EMERGENTES, SOLUÇÕES HETERODOXAS:O caso da (não) demarcação da Terra Indígena Tapeba

Page 30: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

políticas ativas e independentes da parte dosseus promotores. Daí que a organização políti-ca é condição sine qua non de (e deve prece-der) todo e qualquer esforço de promoção dodesenvolvimento. Refiro-me à organização po-lítica dos próprios índios, constituídos em pro-motores preferenciais dessas iniciativas.Autodesenvolvimento e determinaçãosocioeconômica genuínos não ocorrem semuma organização política forte para promovê-la. Isso significa dizer que ninguém promoverádesenvolvimento e emancipação pelos ou parapovos indígenas.

O segundo aspecto tem a ver com o ca-ráter das próprias organizações indígenas. Apossibilidade de sucesso dessas organizaçõespolíticas e de coordenação de iniciativas dos po-vos indígenas depende não apenas das deman-das formais de organização e coordenação, masda qualidade da relação entre estas demandase os critérios informais configurados pela orga-nização sociocultural do(s) grupo(s) em ques-tão. Dizendo de um outro modo, depende deum encaixe mais ou menos perfeito entre oordenamento formal e os informais, quais se-jam, as configurações culturais característicasde cada um desses povos.

Essas são as orientações normativas pre-liminares que quero trazer à discussão, porquevoltarei a elas ao final da exposição: a idéia deque não há alternativa de futuro para os gruposindígenas, se estes não forem sujeitos de suaspróprias escolhas, da determinação do ritmo eda direção das mudanças que os afetam, e senão tiverem a liberdade de escolher o tipo derelação que desejam ter tanto com o Estadoquanto com a sociedade de mercado.

A “Questão da Terra” no Leste e Nordeste indígenas

Uma dimensão de caráter geral importan-te, que precede a referência que farei ao casoTapeba e que amarra a minha exposição ao ladoda orientação político-normativa de que parto, éa “questão da terra”. Quero sublinhar esse as-pecto porque ele já foi destacado em outros mo-mentos por outros expositores – como o Dr.

Sérgio Leitão o fez, ao debater com o Prof. JoãoPacheco. Este, na sua palestra, com base emdados quantitativos gerais para o Brasil comoum todo, sugeriu que talvez hoje a preocupa-ção com a terra não seja tão importante quantoa preocupação com a viabilidade da mesma, apartir do momento em que se encontrademarcada e sob o controle dos grupos. Eu di-ria que, se isso vale em termos de dados agre-gados gerais de caráter quantitativo para o Bra-sil, não vale para o Nordeste e Leste indígenas.Não vale porque a terra ainda não é matériavencida nessas regiões e como nós estamosaqui para discutir essas regiões, o documentofinal deveria destacar as singularidades que ascaracterizam. Se desagregarmos esses dadosgerais para o Nordeste e o Leste, veremos quehá um número expressivo de terras indígenasaí que, ou carecem de reconhecimento oficial,ou ainda encontram-se em fases preliminaresdo procedimento de demarcação.

Isso não significa dizer que nós devemosperder de vista a questão do controle, da manu-tenção e da ocupação efetiva da terra pelos gru-pos – que era a preocupação expressa pelo Prof.João Pacheco na ocasião. Nós devemos, sim,ter essa preocupação no horizonte de ação doprocedimento demarcatório mesmo, que preci-sa ser redimensionado – ou seja, o procedimen-to demarcatório não mais visto como um pro-cesso único, singular e isolado de outras preo-cupações e horizontes de ação indigenista,como ele tem se caracterizado até hoje.

Quando se define que se vai demarcaruma terra indígena, constitui-se um GT(Grupode Trabalho) que só vai lá para realizar a identi-ficação. Em seguida, constitui-se um outro GT,com uma composição diferente do anterior, quevai fazer o levantamento fundiário. Na demar-cação física, se tudo correr bem (se a identifi-cação não for contestada e, caso seja, se forrespondida; se a Portaria declaratória for assi-nada pelo Ministro), também é outra a equipeque vai trabalhar. Uma descontinuidade deações marca este procedimento, que é vistoúnica e exclusivamente como um procedimen-to de regularização fundiária e não a partir deuma perspectiva mais abrangente e integrada.

Page 31: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

O caso Tapeba

Ao apresentar o caso Tapeba, limitar-me-ei a destacar alguns elementos que nele me pa-recem importantes, os quais, por um lado, sin-gularizam-no, e, por outro, tornam-no seme-lhante a outras situações no Nordeste e no Lesteindígenas. Para além das notícias históricas queeu vou dar, o que me interessa são aspectosdo procedimento jurídico-administrativo de re-conhecimento da Terra Indígena Tapeba, que ca-minha pari passu – e está indissociavelmenteligado, como no caso Xacriabá – ao processomesmo de reconhecimento oficial, pelo Esta-do, de que os Tapeba constituem um grupo di-ferenciado. Este é o cerne da minha comunica-ção. Quero extrair dele lições e ensinamentospara o procedimento jurídico-administrativo dereconhecimento de terras indígenas no Nordes-te e Leste, mas que podem, eventualmente,transcender as singularidades regionais.

Notícias históricas

Neste item, darei apenas umas rápidaspinceladas para entender minimamente o por-quê da presença de um grupo como os Tapebaem Caucaia hoje. Estes não se distinguem, emmuitos aspectos, de outros grupos étnicos esociedades indígenas do Nordeste e Leste,cujas situações foram apresentadas ao longodo workshop.

Ao município de Caucaia, que fica na zonametropolitana de Fortaleza, no Ceará, vai-se deônibus em menos de 45 minutos. Há mesmoum ponto de ônibus em frente a uma localidadeonde residem tapebas. É uma área de facílimoacesso. O município tem origem na Aldeia deNossa Senhora dos Prazeres de Caucaia, umaldeamento originalmente Potiguara missionadopor jesuítas a partir de fins do século XVII. Hásuspeitas de que indígenas Tremembé, Jucá eCariri teriam se reunido aos Potiguara original-mente aldeados naquela área.

Se isso corresponde efetivamente ao queocorreu, o que se tem é aquela situação clássi-ca de reunião de grupos étnicos distintos nummesmo aldeamento, sob a gestão temporal e

espiritual de uma mesma ordem religiosa. O pro-cesso é muito semelhante ao de outras áreasem que existiram aldeamentos, que passarampor todas as mudanças jurídicas e administrati-vas até o Diretório dos Índios, instituído por Pom-bal, quando os aldeamentos são extintos.Caucaia vira Vila Nova de Soure (nome de umafreguesia em Portugal), que é referida como “vilade índios” até meados do século passado, comomostram documentos de até1860.

Assim como em outras situações no Nor-deste, na Província do Ceará os índios são da-dos como extintos no século seguinte àqueleem que se extinguem os aldeamentos e as ter-ras destes passam para a administração pro-vincial. O Presidente da Província do Ceará, emseu Relatório à Assembléia Provincial de 1863,afirma que não há mais índios no Ceará e, as-sim, põe-se uma “pá de cal” sobre o tema. Defato, tendo em vista o discurso das agências doEstado, gestoras das classificações oficiais, oque se tem é um verdadeiro gap, uma lacunade informações sobre os índios no Ceará, quetem sido fatal para a pretensão dos Tapeba ede vários outros grupos indígenas que partilhamcom eles dessa hi(e)stória de extinção por de-creto ou “extinção formal”. 3

Dados os atuais limites da nossa ignorân-cia histórica e etnológica, só se vai voltar a ou-vir falar de índios no Ceará, e especialmenteem Caucaia, a partir da segunda metade da dé-cada de 1960, em matérias jornalísticas de pe-riódicos de circulação nacional. Exemplos sãoas matérias sobre os Tapeba publicadas no Jor-nal do Brasil e O Estado de São Paulo – estasproduzidas por um correspondente do jornalque é cearense, Hidelbrando Espíndola. Em abrilde 1982, o Porantim, numa das primeiras inici-ativas de elaborar listagens de terras e povosindígenas, cita nove tapebas, grupo de línguaMacro-jê, vivendo em terras não-demarcadasno município de Paracatu, no Estado do Ceará.Estas referências são equivocadas4 , mas é sig-nificativa a presença dos Tapeba na listagem.

A partir de 1984, a Equipe de Assessoriaàs Comunidades Rurais da Arquidiocese de For-taleza começa a atuar em Caucaia. Desde en-

Page 32: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

tão, os Tapeba ganham uma visibilidade que nãotinham. Por que digo “ganham visibilidade”? Por-que quem conhece Caucaia, quem teve opor-tunidade de residir, de viver em Caucaia, sabeque Tapeba é uma categoria de atribuição deuso franco no município. Tapeba é, antes de maisnada, um topônimo: nome de uma lagoa e deum riacho temporário, em torno dos quais resi-diram e ainda residem famílias Tapeba. Se al-guém lhe perguntar, em Caucaia, “O que vocêestá fazendo aqui?” e você responder: “Eu vimvisitar fulano de tal Tapeba”, a resposta será ple-namente inteligível. O termo é usado justapostoa nomes próprios de pessoas, para diferenciá-las. É, de fato, uma categoria demarcadora ediferenciadora, sinalizando a existência de umprocesso de organização social da diferençacultural em nível local.

O processo de reconhecimento oficial pelo Estado

As peculiaridades do processo de reco-nhecimento oficial dos Tapeba e de sua terrapelo Estado os tornam um caso exemplar paraextrair lições e ensinamentos que podem con-tribuir para uma redefinição do procedimento dedemarcação de terras indígenas no Nordeste eLeste. Em alguns aspectos, o caso Tapeba seassemelha ao caso Xacriabá, que acabou deser exposto, distinguindo-se em outros.

Todo o procedimento administrativo de re-conhecimento da Terra Tapeba, até mesmo asua deflagração, é marcado pela discussãosobre os Tapeba serem ou não serem índios.Faço referência, a seguir, a alguns elementosdo processo social de reconhecimento.

O documento original do Processo FUNAI/BSB/1986/85 é um abaixo-assinado de 70tapebas, de 20 de maio de 1985, que dá entra-da, simultaneamente, em três lugares distintos:no Gabinete da Presidência da República, noGabinete da Presidência da FUNAI e no Gabi-nete de Ministério da Fazenda. Dirigido ao Exmo.Sr. Presidente da FUNAI, nele os 70 tapebassignatários pedem “terra para nós morar e plan-tar” e “um posto médico e uma escola para osíndios”.

Porém, um mês antes do referido abaixo-assinado dar entrada naqueles locais, tinha-seiniciado um outro processo, numa outra instân-cia da FUNAI, a Assessoria de Estudos e Pes-quisas (AESP), em abril de 1985. A AESP en-viou um radiotelegrama (no 325, de 19.04.85)ao Museu do Índio, consultando-o sobre a pos-sibilidade de envio de dados etnohistóricos so-bre o grupo indígena Tapeba de Caucaia, noCeará. Isso porque havia se apresentado àFUNAI, em Brasília, no início daquele ano, umcerto senhor, chamado Mingo Auá, declarando-se índio desaldeado e autodenominando-se re-manescente indígena Tapeba. Foi elaborado umparecer antropológico sobre o senhor MingoAuá, parecer que concluiu, “diante da ausênciade dados concretos e comprobatórios”, não jul-gar procedente atribuir-lhe a identidade de índioTapeba. Referido parecer elencava, entre as su-gestões finais, a expedição de radiotelegramas(como o supracitado) a vários setores da FUNAIsolicitando informações, inclusive ao Museu doÍndio e ao Departamento do Patrimônio Indíge-na.

Em resposta ao radiotelegrama, a antro-póloga Jussara Gomes, do Museu do Índio, ela-bora um documento de caráter etnohistórico.Assim, a AI (Área Indígena) Tapeba foi incluídana programação de identificações do Plano deMetas para 1985. Desse modo, o consenso his-tórico rapidamente produzido e as notícias oriun-das do Ceará, bem como as pressões exercidaspelos Tapeba e os abaixo-assinados, cedo le-varam a FUNAI a pautar a AI Tapeba para identi-ficação.

Se tomarmos o Relatório de Identificaçãoda AI Tapeba como um indicador, um indício,um sinal, ainda que preliminar, do reconheci-mento oficial dos Tapeba pelo Estado, o pro-cesso foi, por assim dizer, meteórico. Vejamosas datas: em 1984, a Equipe Arquidiocesanacomeça a atuar na área; em 1985, a FUNAI sedá conta da existência de grupos indígenas noCeará; e em 1986 (com um ano de atraso, anteo estabelecido no Plano de Metas para 1985) aárea está identificada. De 1984 a 1986 são ape-nas dois anos. A FUNAI nunca tinha estado noCeará. O SPI não tinha estrutura nenhuma na-

Page 33: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

quele estado, à diferença da situação de outrosgrupos no Nordeste, já relatadas no workshop.A FUNAI intervém tardiamente – ao contrário dosoutros casos apresentados, em que o órgão tu-tor se faz presente há décadas – e, rapidamen-te, dá uma sinalização positiva, estando a áreaidentificada desde outubro de 1986. É impor-tante destacar este elemento, porque, no meuentendimento, trata-se de algo realmente inusi-tado em face do padrão prevalecente de atua-ção do órgão.

Consideremos, agora, alguns aspectosque precederam e orientaram a identificação daárea indígena.

Tendo em vista o conflito pela posse deterras da União entre indústrias situadas à mar-gem direita do rio Ceará (Cerapeles e T.B.A.) ehabitantes (entre os quais Tapeba) de localida-des situadas na mesma área, no dia 1o de se-tembro de 1985 o Arcebispo de Fortaleza en-viou carta ao Ministro da Fazenda, propondoque a União reouvesse o domínio útil das terrasem questão e o transferisse à Associação dasComunidades do Rio Ceará. Esta organizaçãofoi criada em agosto de 1985, a partir de estí-mulo da Arquidiocese, e congregava tapebas ebrancos no desenvolvimento de projetos comu-nitários e no fortalecimento da organização po-lítica.

Assim, no caso dos Tapeba, a idéia origi-nal que motivou a ação da EquipeArquidiocesana era extremamente interessan-te: tratava-se de resolver a questão fundiáriapara tapebas e brancos igualmente. Visava re-aver o domínio útil de terras da União não paracriar uma terra indígena, mas para transferi-laspara a associação das comunidades, que con-gregava índios e brancos, com representaçãoparitária na Diretoria.

Pouco antes, a Prefeitura Municipal deCaucaia havia reconhecido formalmente a exis-tência e a presença dos índios Tapeba no muni-cípio, por meio de uma Declaração da Secreta-ria de Administração e Finanças ao Serviço doPatrimônio da União (SPU), de 21 de agosto de1985. Nesta, o então Secretário de Administra-ção disse com todas as letras que a Prefeitura

Municipal de Caucaia reconhecia que há maisde 50 anos os Tapeba habitavam, mansa e pa-cificamente, as áreas de mangue do rio Ceará.Não só isso, no dia seguinte a esta declaração,a Lei Municipal no 416, de 22 de agosto de 1985,que dispõe sobre a preservação do mangue dorio Ceará, cita nominalmente os Tapeba e ascomunidades do rio Ceará como co-responsá-veis no poder de fiscalização da aplicação des-ta.

Em virtude da preocupação com uma so-lução ampla para a questão fundiária local, quecontemplasse igualmente tapebas e brancos,já reunidos na referida associação, a EquipeArquidiocesana procurou, pessoalmente, emmaio de 1986, o então Ministro da Reforma eDesenvolvimento Agrário, Nelson Ribeiro, parainformá-lo sobre a situação dos Tapeba e soli-citar urgente atuação do MIRAD na regulariza-ção das terras do município. Cabe destacar quea Arquidiocese não foi procurar a FUNAI, massim o MIRAD, pois pensava, naquele momento,numa solução integrada para a questãofundiária.

Foi assim que, em atenção ao pedido daArquidiocese de Fortaleza e das informaçõesde que já dispunha àquela ocasião, aCoordenadoria de Terras Indígenas (CTI) doMIRAD constituiu uma comissão destinada aproceder estudos preliminares ao processo deregularização fundiária (Portaria no 30, de 08 deabril de 1986). Não se falava, ainda, àquele mo-mento, em demarcar uma terra indígena. Naconstituição desta comissão, considerou-se ainclusão de instituições afetas ao problemafundiário (três funcionários de diferentes forma-ções do INCRA: um procurador, um agrônomoe um topógrafo), bem como a experiência e oconhecimento da Equipe Arquidiocesana sobrea questão (dois membros desta), além da parti-cipação de representantes dos grupos em ques-tão (um tapeba e um branco, representando aassociação das comunidades). A composiçãodesta comissão é digna de nota.

Em função do resultado da iniciativa daCTI/MIRAD, a FUNAI, que havia incluído de novoa AI Tapeba na programação operacional da Di-

Page 34: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

visão de Identificação (DID), desta vez para1986, apressa a constituição do GT de identifi-cação da área. Ora, como a composição da co-missão da CTI/MIRAD contou com a participa-ção formal de representantes tanto daArquidiocese quanto dos grupos em questão, oGT da FUNAI não foi constituído sem que antesocorressem duas reuniões em Brasília: uma em19 de agosto de 1986, entre Marco Antônio doEspírito Santo, sociólogo que coordenaria o GTde identificação, e as técnicas da CTI/MIRAD,Rita Heloísa Almeida e Élia Menezes Rola; e aoutra, cinco dias depois, com representantesda FUNAI, do MIRAD, do INCRA, do CIMI e daArquidiocese. Foi só então que se constituiu oGT, que trazia também como novidade a pre-sença de um membro da Equipe Arquidiocesanana sua composição. O trabalho de identifica-ção foi feito em conjunto com uma equipe doINCRA que, paralelamente à identificação daárea indígena, realizou vistoria em imóveis ru-rais do município passíveis de desapropriaçãopor interesse social para motivo de reforma agrá-ria. É bom que se diga que parcerias efetivas eações conjuntas entre FUNAI e INCRA não sãoa regra.

Qual a importância de reconstituir issotudo? Nesse momento inicial do que veio aconstituir o procedimento de demarcação da AITapeba, há elementos sobre os quais precisa-mos refletir, em termos da ação fundiária do pró-prio órgão indigenista. Tratava-se de uma inici-ativa pioneira que expressava pelo menos doisaspectos relevantes, se estamos preocupadosem redefinir a ação da FUNAI em processos deregularização fundiária – em particular no Nor-deste e Leste indígenas. O primeiro é que severifica aí uma articulação interinstitucional emultissetorial clara, de distintos segmentos go-vernamentais, não-governamentais e com par-ticipação de representantes da sociedade indí-gena em questão e de grupos não-indígenas in-teressados no processo. O segundo, já salien-tado antes, é a preocupação em gerar uma so-lução para a questão fundiária que fosseabrangente: o reconhecimento explícito da rela-ção entre reforma agrária e garantia dos direi-tos territoriais indígenas.

Por uma série de motivos, essa iniciativaserá abortada e vai se esfacelar. Naquele mo-mento, ainda havia um plano nacional de refor-ma agrária no horizonte. Embora Sarney já fos-se o Presidente, ainda estávamos sob o Minis-tério Tancredo Neves e Nelson Ribeiro era oMinistro da Reforma Agrária. A perspectiva deuma reforma agrária se esfacela rapidamente,havendo uma mudança abrupta de conjunturacom a primeira reforma ministerial do governoSarney. Um viés conservador passa a orientara ação do governo nessas questões. Somem-se a isso as vicissitudes da própria atuação daEquipe Arquidiocesana, dadas a fronteira tênueentre assistência social e assistencialismo, e aambivalência das intervenções de desenvolvi-mento comunitário (nas quais as “comunidades”constituem, simultaneamente, o alvo e o resul-tado que se espera produzir com essas inter-venções). Várias foram as discussões em tor-no da reformulação e da redefinição da própriaorientação da Equipe.

O fato é que se chega a um momento emque a FUNAI interfere na hi(e)stória. Há uma áreapassível de ser identificada como área indígenae aí se passa a conceder-se um tratamento pri-vilegiado e diferenciado à resolução, única e ex-clusiva, do problema dos Tapeba. É aí que co-meçam a se configurar os problemas caracte-rísticos do padrão de atuação da FUNAI – anali-sados nos trabalhos de João Pacheco de Oli-veira, Alfredo Wagner Berno de Almeida e Antô-nio Carlos de Souza Lima.

Colocou-se, ademais, um problema quetranscende a ação da FUNAI, mas que viciamuitos dos procedimentos de identificação deterras indígenas. Refiro-me às noções “român-ticas” – para usar a expressão do Prof. JoãoPacheco – sobre a natureza desses grupos.Produziu-se, na época, uma proposta de áreaque está veiculada em alguns documentos daArquidiocese: a demarcação de 18.000 ha.Como esta proposta surge? Em função de umcálculo aproximado do que teria sido o“patrimônio” da Aldeia de Nossa Senhora dosPrazeres de Caucaia, tendo em vista os regis-tros de doações feitas não apenas à Missão,mas a principais indígenas a seus descenden-

Page 35: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

tes, feitas na segunda metade do século XVII eprimeira metade do século XVIII.

Uma das agências que estava atuandoapresenta, assim, uma proposta de área combase em uma orientação histórica. Essa pro-posta reproduz a ênfase historicista caracterís-tica da maioria dos procedimentos de identifi-cação de terras indígenas (não só no Nordes-te), em detrimento de uma orientação propria-mente etnográfica. Creio que essa ênfase so-bre o “consenso histórico” – analisada nos tra-balhos do Prof. Antônio Carlos de Souza Limasobre a ação de identificação de terras indíge-nas – é problemática e passível de discussão.

A área encontra-se, hoje, identificada com4.675 ha. Seguiu-se o levantamento fundiário,em 1987, que apontou 118 ocupantes não-índi-os incidentes na AI. Este me parece o nó górdioda quase totalidade dos procedimentos de de-marcação de terras indígenas no Nordeste, oponto de estrangulamento: o volume do contin-gente populacional não-indígena presente. Pre-sente, entre outros motivos (é bom que se diga),porque estamos falando de regiões de coloni-zação antiga, onde trocas culturais eintercasamentos se sucederam por geraçõese gerações. Neste aspecto, a situação dosTapeba em nada difere de outras Nordeste afo-ra. Daí porque a preocupação original em solu-cionar a questão fundiária de modo maisabrangente e integrado era a mais coerente eadequada.

O processo é arquivado em 1988. Reca-pitulemos as datas: identificação em 1986, le-vantamento fundiário em 1987 e arquivamentodo processo em 1988, numa reunião do“grupão”. Para concluir satisfatoriamente estacomunicação, devemos considerar a situaçãoque levou ao arquivamento do processo, por-que se trata de um capítulo da história indígenae do indigenismo que merece registro.

Em abril de 1988, os dados referentes àAI Tapeba entram em pauta para a avaliação doGrupo de Trabalho Interministerial (instituído peloDecreto no 94.945/87), o “grupão”. Na avaliaçãoda Arquidiocese, dos Tapeba, do representantedo Instituto de Terras do Ceará (ITERCE) e do

próprio Governo do estado (que, à época, eramuito favorável à demanda) a questão estavaresolvida: tratava-se de deliberar pela criaçãoda AI Tapeba, acatando-se a proposta da FUNAI,visto que as autoridades estaduais confiavamem decisão a favor do grupo, havia o compro-misso de assentar os pequenos posseiros inci-dentes na área em duas fazendas desapropria-das em fevereiro e março de 1988 (Boqueirãodos Cunha e Capim Grosso)5 e a documenta-ção que dava suporte ao consenso históricosobre a presença indígena em Caucaia era far-ta.

Ocorre que, por deslize ou manobra in-tencional, na convocação dos membros do“grupão” para a reunião, o então Presidente daFUNAI, Romero Jucá, apresentou o valor dasindenizações como sendo quatro vezes supe-rior ao efetivamente orçado. Após muita discus-são, decidiu-se, por maioria simples, retirar oprocesso Tapeba de pauta e deliberou-se poruma viagem para inspeção in loco da situaçãoe, após consultas, audiências e visita à área,realizar uma reunião extraordinária deliberativaem Fortaleza, no Palácio do Governo do esta-do. Fato inédito até então: uma reunião do“grupão” fora de Brasília para deliberar sobre ademarcação de um área indígena no Gabinetede um governo estadual. Esta reunião foiagendada para o dia 25 de maio de 1988, às 16horas, no Palácio do Governo, em Fortaleza.

Na semana para a qual a reunião haviasido agendada, estaria sendo apreciada, pelaprimeira vez, no plenário da Assembléia Nacio-nal Constituinte, em Brasília, a primeira versãodo Capítulo “Dos Índios” da Constituição Fede-ral. Elaborada pelo relator Bernardo Cabral, re-ferida versão estabelecia a distinção entre índi-os aculturados e não-aculturados. Esta distin-ção daria suporte à figura jurídica da “colôniaindígena” instituída pelo Decreto nº 94.946/87 eque se pretendia aplicar ao caso Tapeba. Pode-se levantar inúmeras suspeitas quanto às arti-culações por detrás de uma reunião marcadanesse contexto.

A reunião foi cancelada em cima da hora,mas a visita do “grupão” à área ocorreu entre

Page 36: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

os dias 26 e 27 de maio e foi precedida de umasérie de acontecimentos bizarros e significati-vos. Na manhã do dia 21 de maio, os Tapebadas Pontes receberam um convite para partici-par de uma reunião na sede da FazendaSoledade (imóvel rural que tem parte de sua áreaincidente na AI Tapeba)6 , com um dos proprie-tários, José Geraldo, e representantes da FUNAI.Na oportunidade, esclareceu o emissário doconvite, seriam realizados exames de sanguepara definir quem efetivamente era índio e osque não comparecessem ao encontro perderi-am o direito à terra. Instruídos pelo assessorjurídico da Equipe Arquidiocesana, os Tapebada localidade não compareceram7 . Há indíciosde que alguns dos componentes do “grupão” jáse encontravam em Fortaleza desde o dia 21de maio, em contato com os proprietários daFazenda Soledade (a família Arruda) e que teri-am participado desta reunião na sede da fazen-da, segundo testemunharam brancos da locali-dade que compareceram à reunião8 .

A visita do “grupão” foi marcada, também,pela presença, em Caucaia, de trinta represen-tantes de seis grupos indígenas do Nordeste,dispostos a lutar contra a implementação da fi-gura da “colônia indígena” no caso dos Tapeba,pois receavam que esta decisão pudesse tor-nar-se exemplar para toda a região em ques-tão. A situação dos Tapeba era, então, o centrodas atenções das lideranças indígenas do Nor-deste. Tomar a situação dos Tapeba como casoexemplar não é, portanto, uma decisão marcadapelo bias do analista.

Na reunião seguinte do “grupão”, em 20de julho de 1988, a AI Tapeba voltou à pauta.Coordenada pelo Presidente da FUNAI, este, ale-gando dúvidas nos corpos dos relatórios ane-xados ao processo (o que teria justificado a vis-toria in loco), base processual insuficiente (oprocesso era farto em documentação históri-ca, mas insuficiente em dados sobre a presen-ça dos Tapeba em Caucaia neste século)9 , fal-ta de recursos para indenização eindisponibilidade de terras para o assentamen-to10 , “sugeriu a retirada da Terra Indígena Tapebade pauta, determinando-se, em resolução doGTI, que a mesma não fosse reconhecida como

imemorial e que se aguardassem, para enrique-cer o processo, novos dados acerca da etnia,quando, então, a FUNAI voltaria a analisar ocaso” (Ata da 6a Reunião Ordinária do GT no

94.945/87, de 20.07.88).

O processo ficou paralisado por quaseum ano, até que, em 24 de maio de 1989, pormeio da CI no 167/ASS/SUAF/89, a Assessoriada Superintendência de Assuntos Fundiários,tendo em vista as várias “questões pendentesno setor e que necessitam de posição urgente”(que diziam respeito a “terras indígenas baixa-das em diligência”), incluiu a AI Tapeba, ao ladode outras quatro, em pauta de reunião ordiná-ria. Considerou essencial “rediscuti-la”, não sóporque se estava à espera de maiores subsídi-os, mas também porque “é indiscutível tratar-se de terra de ocupação tradicional e perma-nente indígena”. Arquivado tendo em vista “dú-vidas sobre a etnia dos remanescentes”, o pro-cesso é reaberto por considerar-se “indiscutí-vel” tratar-se de terra tradicionalmente ocupadapor índios – tal como definida na (e já sob a égideda) Constituição Federal de 1988.

Desse modo, desde a sua identificação,a Terra Indígena Tapeba passou por todas asvicissitudes das várias mudanças no procedi-mento jurídico-administrativo de demarcação deterras indígenas. O processo foi revisto ao lon-go de todas essas mudanças, sobrevivendo atodas elas, mas não dando um passo além. Des-de o seu desarquivamento em 1989, há oitoanos, os Tapeba aguardam a portariadeclaratória.

Como está a situação da Terra IndígenaTapeba hoje? Qual a última providência? Eu citoum trecho do parágrafo final de um fax do Sr.Áureo de Araújo Faleiros, Diretor de AssuntosFundiários da FUNAI, em Brasília, ao “Dourado”Tapeba, aqui presente, cuja cópia este acabade me passar.

“Dessa forma, para que se deflagre o pro-cesso demarcatório, resta apenas a assinaturado ato legal [a portaria declaratória] pelo Exmo.Sr. Ministro da Justiça”.

O fax é de dezembro de 1996. Façam ascontas: há pelo menos três meses desta última

Page 37: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

manifestação o processo repousa sobre a mesado Ministro esperando a assinatura do atodeclaratório. Um procedimento administrativosem vício de forma e que atravessou todas asmudanças no procedimento jurídico-administra-tivo de demarcação de terras indígenas. Cons-ta, inclusive, que o Ministro acatou a respostada FUNAI à contestação do senhor Esmerinodos Reis Arruda.

Algumas conclusões

Creio que é possível extrair duas conclu-sões do que acabo de apresentar. Vamos à pri-meira.

Tendo em vista pelo menos dois momen-tos importantes nesse processo, quais sejam,a decisão do “grupão” de arquivar o processoem 1988 – e os argumentos oferecidos à épo-ca11 – e a protelação da assinatura da portariadeclaratória pelo atual Ministro da Justiça, é im-perioso reconhecer que o futuro desses gruposcomo povos culturalmente diferenciados depen-de de decisões de caráter eminentemente polí-tico – e, conseqüentemente, simbólico12 . Prin-cipalmente no Nordeste e no Leste, onde aquestão central permanece o reconhecimentodesses grupos como indígenas pelo Estado. De-cisões como extinguir aldeamentos, como ar-recadar e repartir as terras de extintosaldeamentos pelas fazendas provinciais, comodeclarar uma área como de posse tradicionalindígena são decisões em que há uma acentu-ada dimensão política, que, em muitos casos,transcende e engloba o que há de técnico ne-las. Como disse o Prof. João Pacheco em suapalestra, essas unidades socioculturais, que sãoas identidades indígenas, constituem-se histo-ricamente e – eu acrescentaria – assim se cons-tituem por força de ações e omissões de natu-reza política.

O que me leva a questionar uma certa con-cepção de reforma de Estado que foi expressano workshop pelo Exmo. Sr. Presidente daFUNAI: substituição do modelo burocrático pelomodelo gerencial – como se o Estado fosse umamáquina impessoal, a-histórica e infensa a de

terminações sociais, políticas e econômicas.Nenhuma objeção que se pense em formas doEstado e suas agências atuarem mais livremen-te e de modo mais flexível, para buscar maioreficiência em suas ações e terem mais liberda-de de procedimento. Contudo, a retórica da “so-ciedade controlar na ponta”, na verificação e naavaliação dos resultados, de medir o sucessoobtido pelos “resultados objetivos” alcançadosé extremamente perniciosa.

Permitam-me uma pequena boutade, mashá uma peça publicitária de divulgação nacio-nal, ora em veiculação, na qual o Presidente doPartido Progressista Brasileiro (PPB), PauloMaluf, diz: “O povo está cansado de conversa,o povo quer resultados!”. A despolitização doprocedimento jurídico-administrativo de demar-cação das terras indígenas e do debate em tor-no deste, a busca por uma pretensatecnificação progressiva da ação do Estadonessa área (bem como em outras), conspiracontra o controle social e democrático de pro-cessos sociais de interesse de uma sociedadeque se deseja justa e plural. Conspira contra oanseio de democratização e ampliação da par-ticipação das sociedades indígenas nos proces-sos que dizem respeito ao recurso e fator deprodução básico de que depende a sua repro-dução sociocultural – a terra.

Desse modo, eu retorno aos dois temasdo início desta comunicação: organização polí-tica e terra. A segunda conclusão que eu querodestacar relaciona-se a esta última. Para mim,a posição a adotar no caso dos Tapeba é muitoclara. É imperioso pressionar o Ministro paraque este assine a portaria declaratória. Creioque todos aqui temos o compromisso de extra-ir – ainda que a fórceps – uma demonstraçãode boa vontade das instâncias às quais com-petem as decisões de que depende a reprodu-ção sociocultural desses grupos como gruposdiferenciados. É importante que o documentofinal se posicione sobre essa questão.

Ademais, o caso Tapeba nos traz algunselementos que podem dar um norte mais ade-quado ao procedimento de demarcação de ter-ras indígenas, tanto mais porque constituem um

Page 38: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

repertório de procedimentos que o órgão já atu-alizou ou do qual já partilhou, quais sejam: arti-culação multisetorial e interinstitucional, partici-pação de representantes da sociedade indíge-na em questão e de grupos não-indígenas inte-ressados no processo, busca de uma soluçãoabrangente e integrada para a questão fundiárialocal (contemplando igualmente índios e bran-cos em mesma condição de vida), articulaçãopolítica com as instâncias estadual e municipaldo Poder Público, realização de estudos prévi-os e preliminares, (caráter multidisciplinar eproblem oriented de alguns dos GTs – elemen-tos, enfim, que apontam para uma concepçãomenos setorializada do procedimento de demar-cação.

Esses procedimentos configuram umademarcação que poderia ter ocorrido e são tan-to mais significativos quanto quando eles co-meçaram a faltar o processo se centralizou,distanciando-se do controle pelos atores locais,perdendo a sua celeridade inicial e entrando nalógica do funil demarcatório e da protelação in-tencional – modo clássico de inviabilizar e neu-tralizar demandas sociais legítimas, aumentan-do o grau de intensidade dos conflitos localmen-te. É claro que, como também indica o casoTapeba, uma conjuntura favorável – no caso, aperspectiva de um plano nacional de reformaagrária – constituiu condição indispensável. Issosignifica dizer que procedimentos como essesse relacionam estreitamente a concepções

mais abrangentes de ordem social e modelo deEstado.

Ainda assim, creio que faltou uma orien-tação mais etnográfica na percepção da situa-ção local e no trabalho de identificação da terraindígena – já que, a partir de um determinadomomento, configurou-se um cenário no qual oequacionamento da questão fundiária passavapela demarcação de uma terra indígena. Vivía-mos, contudo, em outro horizonte, no qual a“imemorialidade” era o que a definia . Os Tapebahoje e a existência histórica presente deles ca-racteriza-se por uma multiplicidade de situaçõesdistintas que mereceriam um tratamento e so-luções diferenciados. Creio que uma ênfasemais etnográfica, com a devida atenção às for-mas de apropriação fundiária e de uso dos re-cursos e à constituição de histórias de vida (combase na observação direta e em depoimentospessoais de índios e não-índios), poderia terreforçado uma caracterização mais adequadados projetos e demandas de ocupação territorialdos Tapeba. Voltando mais uma vez à palestrado Prof. João Pacheco, como ele disse: “a cul-tura indígena é a cultura que o índio tem hoje, oque os índios são hoje. Não há que se sentirculpado quanto à origem, porque não existe um‘ponto zero’ no domínio da cultura”. Aliás, pare-ce que os Tapeba e os outros grupos do Nor-deste e do Leste existem para nos ensinar exa-tamente isso, que a “nossa” origem e a “nossa”identidade são uma fabricação e uma luta coti-dianas.

1 Este texto foi produzido a partir do registro gravado dacomunicação apresentada no Painel “As Etnias do Ceará eXacriabá”, durante o workshop Política Indigenista para o Lestee Nordeste Brasileiro, promovido pela Diretoria deAdministração e pela Diretoria Executiva de Políticas Setoriaisda FUNAI, em Carpina, PE, de 16 a 21 de março de 1997.Contudo, não corresponde a uma mera transcrição literal daexposição. Optei por manter o estilo informal e o tom coloquialcaracterístico da apresentação, preservando as referências àspalestras e comunicações precedentes. Outrossim, trata-se deuma exposição datada que não incorpora desdobramentosposteriores do caso analisado.

2 Professor do Departamento de Antropologia da UnB.Doutorando em Antropologia Social na FFLCH/ USP.

3 Expressão usada pelo antropólogo José Augusto LaranjeirasSampaio durante o workshop.

4 Paracatu fica em Minas Gerais. O município do Ceará cujonome mais se aproxima deste é Paracuru que, inclusive, épróximo a Caucaia. Quanto à filiação Macro-jê dos Tapeba,aparentemente trata-se de erro de impressão do jornal, pois,logo em seguida, os Potiguaras, sabidamente Tupi, aparecemcomo Macro-jê.

Page 39: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

5 Resultado daquele esforço de ação conjunta entre FUNAI eINCRA durante a identificação.

6 E que até hoje é o grande “pé-na-roda” no desdobramentodo procedimento demarcatório da AI Tapeba.

7 Alguns chegaram a se refugiar no mangue, como eu tive aoportunidade de tomar conhecimento pouco depois. Haviacrianças que, com medo do “vampiro que ia tirar sangue”,esconderam-se dias a fio no manguezal.

8 Conforme notícias veiculadas pelos jornais O Povo (22.05.88,p.10) e Diário do Nordeste (22.05.88, p.12).

9 Conforme salientei antes, este gap de informações explicaparte do martírio dos Tapeba.

10 Ao contrário do que havia sido apresentado na reuniãoanterior.

11 Decisão que não deixou de ser ambivalente: o “grupão”resolveu não considerar como terra indígena a área propostapela FUNAI (tendo em vista, entre outras coisas, dúvidas acercada etnia dos remanescentes), ao mesmo tempo em que decidiuaguardar novos subsídios do governo do estado ou das entidades,sobre a etnia, para reestudar o assunto – como se reconhecessea dinâmica e historicidade do processo.

12 Tendo em vista as dimensões classificatória e taxonômicaenvolvidas em decisões dessa natureza.

Page 40: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 41: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

RUPTURA E CONFLITO:A Prática Indigenista e a Questão da

Terra entre os Fulniô

Ivson J. Ferreira

Page 42: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 43: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

RUPTURA E CONFLITO:A Prática Indigenista e a Questão da

Terra entre os Fulniô

A Terra Indígena Fulniô está localizada nomunicípio de Águas Belas, Vale do Ipanema,agreste pernambucano (o núcleo urbano domunicípio encontra-se inserido na sua totalida-de no interior da Terra Indígena). Possui popula-ção estimada de 2900 índios (Funai, 1995) eextensão de 11.505,71 ha., e até o presente nãofoi objeto de regularização fundiária.

Há uma pecualiridade na situação atualda TI Fulniô: é constituída por 427 lotes medi-dos e delimitados pela Comissão de Mediçãode Terras Públicas desde o século passado (en-tre os anos 1876-1878). Desse total, 330 lotescompreendem extensão aproximada de 30 ha.e o restante, 97, possui dimensão diversa, po-rém não superior a 30 ha., principalmente aque-les localizados nas extremidades da área; amaioria não chega a medir 5 ha. e são tratadospelos índios por “sobras” (de lotes). Isso ocor-re, segundo os Fulniô, porque a área tem for-mato quadrado com base na concessão de lé-guas em quadra pelo Governo Imperial, e as li-nhas que delimitam os lotes não são coinciden-tes àquelas que delimitam a área.

Antecedentes históricos

Elementos da história oral e registroshistóricos indicam que os atuais Fulniô seriamoriginários de duas aldeias habitadas por índiosidentificados pelo etnônimo Carnijó ou Carijó.Uma dessas aldeias localizava-se ao pé da serrado Comunati (onde hoje é Águas Belas) e a ou-tra às margens do rio Ipanema, conforme refe-rência de Mário MELO (1929). Afirmava esseautor que os grupos que habitavam essas al-deias, os Carnijós de Comunati e os Carnijósde Ipanema, inimigos a princípio, de tiposetnográficos diferentes, estão hoje reunidos naaldeia de Águas Belas, com uma só língua esob os mesmos preceitos religiosos(...)

Segundo Estevão Pinto (1956), os atu-ais Fulniô seriam originários de várias etniascom as quais teriam compartilhado um mesmoespaço geográfico em momentos da sua histó-ria, citando os Pancararu, os Shucuru, os Tushá,os Shocó,(…) e que sua organização social eracomposta por frações ou ‘clãs’ do grupo dosCarnijó que habitavam o Vale do Ipanema: (…),Foklasá, viviam no Zumbi, à subida da Serrados Cavalos; Fola, no vale do riacho do Funil,quase junto a serra do Tanquinho (ainda hojehá um ribeiro, nessa zona, com o nome de Fola-fuli); e os Brogodá ou Brogradá(…), esse últi-mo não localizado geograficamente pelo autor.

A origem da cidade de Águas Belas estárelacionada ao aldeamento existente ao pé daserra do Comunati. Em fevereiro de 1832, osíndios doaram uma área com aproximadamen-te 80 ha., para que fosse erigida uma capelapara N. S. da Conceição (atual padroeira da ci-dade). Desde então, os moradores do povoadoestavam obrigados ao pagamento de foro embenefício da Igreja, com exceção dos índios,cuja aldeia era independente do povoado.

Ainda no século passado, seguindo le-gislação vigente na época, o Governo Geral de-terminou que se procedesse à demarcação eque se legitimasse a posse daqueles ocupan-tes que se achassem nos terrenos dosaldeamentos indígenas, extintos por lei de 1875.Para as terras do aldeamento de Ipanema foirealizado serviço de medição entre os anos de1876-1878, pela Comissão de Medição de Ter-ras Públicas, que elaborou planta da área e adividiu em 427 lotes. Desse total, 113 lotes fo-ram distribuídos aos índios, porém sem que fos-se providenciada a sua regulamentação; quan-to ao restante, é possível que tenha sido ocupa-do por não-índios.

Ivson J. Ferreira1

Page 44: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

44

IVSON J. FERREIRA

No Período Republicano, as terras dosantigos aldeamentos passaram para o domíniodos estados onde estavam localizadas e no iní-cio deste século as terras do aldeamento deIpanema foram arrendadas para não-índios pelogoverno do estado de Pernambuco e só restitu-ídas aos índios em 1914. O fato de a Terra Fulniôter sido fragmentada em lotes não adescaracterizou como indígena, tampouco talmedida significou solução para os problemasrelacionados à sua posse. Em 1928, tendo emvista a permanente disputa pelo domínio da ter-ra entre índios e não-índios, o governo do esta-do interviu, sancionando o Decreto nº 637, em20 de julho, objetivando regularizar a situação eatuar como árbitro nesses conflitos.

Pelo decreto mencionado, a área doaldeamento de Ipanema, ressalvando aqueladoada em 1832 para o patrimônio da Igreja, foientregue à administração do MAIC (Ministérioda Agricultura, Indústria e Comércio), a quemera subordinado o SPI, para que nela residamos descendentes dos Carnijós (acto 1º). Esta-belecia ainda que os posseiros que ocupassemcom moradia e culturas efetivas terras sobreas quais não incidissem reclamações por seudono índio poderiam ser adquiridas pelo pos-seiro (no máximo 25 ha.), mediante determina-das condições. Já os lotes que tivessem nelesculturas de qualquer natureza seriam arrenda-dos aos seus retentores e aqueles não-cultiva-dos entregues ao SPI (acto 4º).

Para cada índio ‘proprietário’ ou possui-dor de parte de lote, seria providenciado regis-tro em seu nome, ficando o ocupante não-índio,quando houvesse, obrigado ao pagamento doarrendamento correspondente à quantidade equalidade dos terrenos que ocupasse (acto 3º).Este decreto institucionalizou formalmente o ar-rendamento, que era intermediado pelo próprioórgão indigenista oficial da época, o SPI.

De acordo com o decreto, mais áreasdos índios seriam transferidas para o domínioda municipalidade:

a) aquelas necessárias a resguardar as nas-centes, consideradas de utilidade pública (acto6º); e,

b) aquelas necessárias para completar a áreaurbana e de acordo com o desenvolvimento quevai tendo a cidade, contígua ao perímetro atual,para ser combinada por uma comissão com-posta por representantes dos governos federal,estadual e municipal e representante dos índi-os (acto 16º).

Dois meses depois de sancionado odecreto, foi assinado Termo de cessão de umaárea de terras que fazem os índios Carnijós amunicipalidade de Águas Belas. Ficaram for-malizados ‘novos’ limites para a cidade, alémda criação de uma avenida, ‘separando’ a áreada cidade daquela dos índios. Em 1929, foramfornecidos pelo MAIC, aos índios proprietáriosde lotes, Títulos Provisórios de Posse os quais,hoje, correspondem ao documento mais impor-tante para os Fulniô, no que se refere à possedos lotes e sua respectiva cadeia dominial.

Atualmente os problemas mais gravesverificados na TI Fulniô são decorrentes dosarrendamentos e da presença do núcleo urba-no da cidade de Águas Belas no interior da área.Percebe-se progressivo avanço além mesmodos limites fixados pelo Decreto nº 637/1928,que constitui, ainda hoje, o único ato formal dopoder público que tenta regulamentar a situa-ção da Terra Fulniô. Em 1971 a FUNAI teria exe-cutado a demarcação física da área, porém semproceder à regularização fundiária. Os registrossobre a suposta demarcação são imprecisos,sequer há notícias sobre terem sido realizadoslevantamentos topográficos descrevendo as di-versas formas de ocupação da área pelos Fulniô;sobre presença de ocupantes não-índios; se foiproposta medição/delimitação dos lotes etc.

A área atualmente reconhecida aosFulniô, com extensão aproximada de 11.506 ha.,tem como referência légua em quadra concedi-da a eles pelo Governo Imperial, com base noAlvará Régio de 1700. Segundo os índios, ospontos que definem sua Terra vão muito alémdos limites fixados desde o século passado,quando aconteceu a medição, confinando-os aoperímetro atual. Referem-se, além da serra doComunati, à Serra dos Cavalos e serra na lo-calidade Tanquinhos.

Page 45: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

45

RUPTURA E CONFLITO

A dimensão atual atribuída pela FUNAIpara a Terra Fulniô parece não levar em contaalterações que ocorreram em momentos histó-ricos distintos, como mostram os exemplos aseguir, com apropriações de áreas pelos go-vernos municipal, estadual e federal: a) para aconstrução de rodovias que cortam a área (BR423, PE 244 e PE 300); b) para linhas de trans-missão da CHESF e da CELPE – Companhiade Eletricidade de Pernambuco (os índios ale-gam que o total atingido corresponde aproxima-damente a 120 ha.); c) núcleo urbano de ÁguasBelas (incluindo as áreas cedidas pelos índiosem 1832 e 1928 e a expansão hoje além des-ses limites); d) aquelas consideradas de utili-dade pública pelo Decreto nº 637/1928 (há re-gistro referindo-se a 227 ha. destinados à re-serva florestal em LIMA, 1992:72 anexo 3, inFERREIRA, 1996). Existem, ainda, 13 lotes2

resguardados para o Ouricuri, incluindo a aldeiae reserva ao contorno do mesmo e, finalmente,a área que constitui o Patrimônio da Aldeia (área“coletiva” onde está localizada a aldeia-sede,contígua à cidade de Águas Belas). Levando-se em conta todas essas situações e outrasque poderiam vir a ser identificadas por meioda realização de estudos para regularizaçãofundiária, percebe-se que a área sob domíniodos índios parece ser bastante reduzida, semlevar em conta ainda os arrendamentos.

Arrendamentos

Um dos problemas mais graves verifi-cados na TI Fulniô hoje é a prática do arrenda-mento de terras realizado pelos índios. Essatransação, que ocorre desde o século passa-do, até recentemente era intercedida pela pró-pria Funai, por meio do Posto Indígena, pelo me-nos até o final da década de 1980 e início dosanos 1990, inclusive com o fornecimento derecibos para os respectivos arrendatários.

Para o controle dessas transações eramconfeccionados Livros de Registros de Terrasdo Posto Indígena Fulniô, datando de 1956 (omais antigo encontrado em arquivos do PI) até1988 (embora nesse último constem também

informações mais recentes, dos anos 90). Namaioria desses livros (pelo menos nos maisantigos), há um conjunto de informações sobrecada um dos lotes, entre as quais constavam onome do índio proprietário, a relação nominaldos arrendatários com a extensão e a catego-ria da terra ocupada (se de 1ª, 2ª ou 3ª, classifi-cação relacionada a fatores tais como qualida-de da mesma ou a forma de arrendamento, serural ou urbano), o valor total do arrendamento,a importância recolhida pelo posto e a destina-da ao índio, as transações realizadas (transfe-rências de domínio de lotes entre índios) etc.Do valor cobrado dos arrendamentos, 70% eradestinado ao(s) índio(s) proprietário(s), e o res-tante, 30%, recolhido pelo PI. Não é claro, po-rém, o destino deste valor, se era incluído narenda do Patrimônio Indígena ou se aplicado di-retamente na área (ATLAS, 1993). Há registrosde inúmeros projetos de desenvolvimento co-munitário executados pela Funai na área, o quenão chega a esclarecer, mas, relacionada à si-tuação dos demais povos indígenas dePernambuco, na relação assistencialista/clientelista que tem caracterizado ações do ór-gão em nível local, os Fulniô aparecem comoum grupo indígena “privilegiado”, o que tem apa-rentemente lhe causado também inúmeros pro-blemas, haja vista nos últimos anos o acirra-mento de cisões no grupo, em conseqüênciaprincipalmente da ingerência da Funai em as-suntos internos do grupo.

Sobre a transferência de posse de lotesentre os índios existe uma diversidade de docu-mentos elaborados, geralmente pelo chefe ouencarregado do PI, e entregues às partes en-volvidas; são denominados: Declaração, Termode Doação, Termo de Permuta, Termo de Trans-ferência. Esses documentos ratificavam tran-sações realizadas entre os índios, de parcelasou lotes inteiros e, segundo os Fulniô, para nãoficar caracterizado negociação como compra evenda (a maioria dos casos), geralmente utili-zava-se um artifício: era registrada a ajuda fi-nanceira prestada pelo índio adquirente paraaquele índio doador, seja para a construção decasa ou outra justificativa pertinente. Os docu-mentos eram assinados pelas partes envolvi-

Page 46: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

46

IVSON J. FERREIRA

das, por testemunhas e pelo chefe ou encarre-gado do Posto Indígena.

O arrendamento de terras para não-índi-os ocorre de duas maneiras: a) os destinadospara pastagens e/ou agricultura, e; b) aquelesdenominados chão de casa. No primeiro caso(embora seja observado também entre índios),os contratos preferencialmente são entre índi-os e não-índios. Quanto ao tempo de duração,varia bastante, há situações que o lote ou par-cela do mesmo está arrendado por muitos anos,mas na sua maioria, segundo os índios, o tem-po de duração não é longo. Para essas transa-ções eram redigidos contratos ‘assinados’ pe-las partes e fornecidos, pelo chefe ou encarre-gado do posto, recibos para os arrendatários.Aparentemente não existia restrição para cons-trução de benfeitorias pelos arrendatários, des-de que se estabelecesse acordo prévio com oíndio proprietário do lote. Se o índio interrom-pesse o contrato, estaria sujeito ao pagamentode “indenização” pelas benfeitorias construídaspelo arrendatário, e no caso de não dispor derecursos para a “indenização”, poderia tentaralgum “acordo”, por exemplo, propor ao arren-datário um determinado tempo de usufruto pelaterra sem o pagamento de renda.

Quanto à outra modalidade de arrenda-mento denominada chão de casa, é observadaespecificamente nos lotes localizados no perí-metro urbano da cidade, constituindo talvez aprincipal fonte de renda para um grupo restritode índios possuidores de lotes ou parcelas dosmesmos nessa região. O chão de casa con-siste em determinado terreno no lote, negocia-do entre o índio e o não-índio, em que é deter-minado o pagamento de uma taxa única e anu-al pelo usufruto do terreno, geralmente recolhi-do no início de cada ano, sendo essa transa-ção, como as demais verificadas, até bem pou-co, intercedida pelo PI, que fornecia recibos. Eracomum nessas transações os índios solicita-rem adiantamento ao arrendatário, com o pa-gamento antecipado do valor total (ou parcial)do chão de casa.

Não havia limites para aquisição do chãode casa, existem inúmeros casos de não-índi-

os possuídores de mais de um chão. Ao arren-datário era permitida a construção de imóveis,tanto residenciais quanto comerciais ou outrasbenfeitorias, podendo, ainda, realizar transaçõescomo alugar, vender etc. Segundo os Fulniô, nocaso da venda do imóvel, ao índio proprietáriodo lote era destinada uma porcentagem que va-riava entre 10% e 30% do total da transação(antigamente, 30% desse total era também re-colhido pelo posto). Muitas vezes os acordoseram feitos verbalmente entre índios e não-índi-os detentores de chão.

Nos últimos anos houve aumento signifi-cativo no número de chãos de casa, associadoà expansão de Águas Belas, uma vez da im-possibilidade física de crescimento da cidadehoje, a não ser invadindo ainda mais o períme-tro da área indígena. Como os limites fixadosem 1928 foram ultrapassados em várias dire-ções, o chão de casa caracteriza-se como maisuma forma de apropriação por não-índios da Ter-ra Fulniô. Aparentemente apresenta-se tambémcomo um grande negócio, não só para os não-índios como para os índios possuidores de par-celas ou lotes urbanos, percebendo-se por par-te desses últimos uma ambigüidade no tratocom a terra. Sem muitas opções ‘permitem/to-leram’ a sua apropriação por brancos (não setratando os Fulniô de agentes históricos passi-vos nessa relação). Por último, contavam coma cumplicidade da Funai, que até recentementenão só intermediava essas transações, comotambém se beneficiava delas, uma vez que umaporcetagem do valor dos arrendamentos, entreoutras transações realizadas, era destinada aoórgão.

O chão de casa consistia também objetode transação entre os índios, seja por meio davenda direta (se bem que nos documentos con-feccionados para estas transações isso não fi-cava caracterizado) ou da permuta (de um de-terminado número de chão) por terra, seja par-celas ou mesmo lotes inteiros, ou por casasetc.

Também a prefeitura municipal de ÁguasBelas é arrendatária3 da Terra Fulniô, caracteri-zando situação atípica, ao “pagar arrendamen-

Page 47: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

47

RUPTURA E CONFLITO

to” aos índios pelo usufruto de terrenos ondefuncionam por exemplo escolas do município,cemitério público, mercado e matadouro públi-cos, depósitos de lixo etc., o governo municipalreconhece formalmente a terra como indígena.Por outro lado, o poder público municipal sebeneficia irregularmente pelo recolhimento detributos sobre outras áreas que pertencem aosFulniô. Segundo relatos dos índios, grande nú-mero de ocupantes não-índios se apossou deterras, deixando de pagar o chão de casa. Issoocorre porque, em muitos casos, a prefeiturapassou a cobrar imposto territorial sobre áreasdos índios e o detentor do chão, pressionadopelo poder público local, deixou de pagar rendaao índio. A justificativa da prefeitura prendia-seao fato que, sem o imposto, não poderia pro-mover serviços nas localidades, uma vez quenão disporia dos recursos financeiros oriundosdo tributo. Os índios relatam também que até adécada de 1980 existia recolhimento irregularde renda pela Igreja sobre área que lhes perten-cia, sob alegação que estava incluída no perí-metro doado à Santa4 em 1832, pressionandotambém pelo não-pagamento do chão.

A presença (e a invasão) do núcleo urba-no da cidade na TI, historicamente originária daconcessão de terras pelos Fulniô àmunicipalidade e à Igreja, tem gerado conflitosentre índios, de um lado, e, de outro, poder pú-blico local, Igreja e não-índios, principalmenteos detentores de chão de casa. A situação vemse agravando continuamente sem se verificarações eficazes que possam condicionar pelomenos algum tipo de ‘controle’ por parte dasinstâcias oficiais (seja Funai, Procuradoria daRepública, entre outras). Em 1993, a FUNAI ten-tou realizar a delimitação do Patrimônio da ci-dade com o Patrimônio da aldeia, utilizandocomo base cartográfica o memorial descritivoda doação de 1928. Esse trabalho foi executa-do parcialmente, em virtude de reações locaiscontrárias, desencadeada principalmente pelaprefeitura municipal. Não se observou na épo-ca, nem posteriormente, providências que ga-rantissem de fato a necessidade da sua reali-zação.

Atualmente não existem dados que pos-sam ilustrar a dimensão do problema do chãode casa e dos arrendamentos para os Fulniô.Para se ter uma idéia, em 1985, funcionáriosdo PI deram início a um levantamentoobjetivando identificar o número de novos chãode casa na época. Este trabalho foi interrompi-do por reações adversas a sua realização (Pre-feitura, Igreja, ocupantes não-índios da TI etc.).Em apenas quatro lotes que chegaram a serparcialmente vistoriados constatou-se a exis-tência de 368 novas edificações. Levando-seem consideração que esses dados referem-sea uma situação observada há 15 anos, e emapenas 4 lotes, a conseqüência dessa ocupa-ção por não-índios na TI é hoje incalculável paraos Fulniô.

Outro problema que destaco em relaçãoà posse da terra entre os Fulniô refere-se à con-centração de lotes tanto por algumas famíliasindígenas como individualmente. Segundo rela-tado por índios de um dos segmentos faccionais,isso ocorre por fatores diversos, tais como ob-servado nos casamentos interétnicos (especi-almente índio x branco), o que pode significarmais um modo do não-índio apropriar-se da ter-ra. Ao cônjuge não-índio não é permitida emhipótese alguma a propriedade da terra; o artifí-cio usado por este ao adquirir lotes ou parcelasé o de providenciar registro no PI em nome dopróprio cônjuge índio, dos filhos (que podemcontextualmente vir a ter sua identidade étnicaquestionada) ou outros parentes consangüíne-os do cônjuge índio.

A concentração de lotes pode estar asso-ciada também ao nível econômico de algunsíndios ou famílias indígenas (alguns funcionári-os e/ou ex-funcionários da FUNAI5, principal-mente ex-chefes de posto; comerciantes etc.).Para não caracterizar concentração, o índio queadquire utiliza o mesmo método daquele não-índio cônjuge, ou seja, providencia o registro emnome de filhos (às vezes crianças menores de10 anos); cônjuge etc. Tais fatores, aparente-mente de menor relevância, aliados a outros demaior gravidade, como visto anteriormente, fazem com que se perceba hoje na TI contingen-

Page 48: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

48

IVSON J. FERREIRA

te considerável de índios Fulniô sem (acessoà) terra.

Dados etnográficos/conflitos/cisões/“ruptura”

Uma das características que distingue osFulniô das demais etnias indígenas no Nordes-te é o fato de serem bilingües, falam o Iatê e oPortuguês. Também destacam-se por possuí-rem uma organização religiosa que os orientanum complexo sistema de clãs6. Língua, paren-tesco e religião constituem elementos funda-mentais na afirmação da sua identidade étnica,tanto que: (a) aos índios Fulniô não mais prati-cantes de religião indígena (Ouricuri) nem fa-lantes de Iatê é restringido, por segmento dogrupo, direito de acesso à terra. Restrição quese estende também aos (b) indivíduos oriundosdos casamentos interétnicos, especificamenteíndios e brancos, não praticantes de religião in-dígena nem falantes de Iatê.

Índios contrários a essa percepção afir-mavam que o fato de não serem falantes deIatê nem praticantes de religião indígena nãocondicionaria esses indivíduos à mesma situa-ção do não-índio (a quem não é permitida emhipótese alguma a propriedade da terra. Ao nãoíndio só é permitido deter a posse por meio dosarrendamentos). Dessa maneira, alegavam queo direito de acesso à terra estendido àquelesindivíduos, embora admitido com alguma res-trição, estaria relacionado a sua descendênciaindígena consangüínea. Esses indivíduos sãoclassificados internamente em categorias defi-nidas por remanescente e/ou descendente. Tra-tam-se de questões complexas e bastante sub-jetivas, uma vez que envolvem aspectos de na-tureza simbólica e cultural dos Fulniô, estandoainda diretamente relacionadas a um dos prin-cipais pontos de divergências entre eles hoje,que é a disputa pelo domínio sobre os lotes.

Nos últimos anos o conflito entre segmen-tos faccionais Fulniô se intensificou, determi-nado principalmente pela ingerência da FUNAIem questões internas do grupo, ocasionandoum processo que identifico como “ruptura” naestrutura organizacional do grupo, onde se per-cebia uma aparente acomodação mesmo des-

sas divergências internas, associadas a situa-ções históricas vivenciadas pelos Fulniô (quetanto podem estar relacionadas a hipótesescomo a característica cultural do grupo, classi-ficado por alguns autores como Macro-Jê [Pin-to, 1956] ou pelo fato de serem os atuais Fulniôdescendentes de grupos étnicos diferentes, deacordo com registros mais antigos sobre o gru-po). Estudos sobre o sistema de clãs entre osFulniô reforçam essa última hipótese, dois des-ses clãs seriam constituídos por índios de fora,povos com os quais mantinham relaçõesinterétnicas (conflituosas ou não), como é ocaso dos Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio- AL, único grupo indígena ao qual os Fulni-ôpermitem hoje (se bem que com algumas res-trições7), a participação no ritual do Ouricuri.

Destacam-se atualmente dois principaissegmentos faccionais entre os Fulniô: a) o gru-po dos líderes tradicionais (utilizo uma termino-logia própria dos índios, mesmo do segmentodissidente, quando se referem ao cacique epajé), do cacique João de Pontes e do pajéCláudio Pereira Júnior; e, b) aquele sob lideran-ça do índio José Correia Ribeiro, identificado re-centemente em atos da Funai por cacique ad-ministrativo. Esse último grupo emergiu politi-camente em oposição ao primeiro, motivadoprincipalmente pelo domínio sobre a terra e temcomo uma das principais reivindicações a(re)redistribuição8 dos lotes ocupados pelos re-manescentes e/ou descendentes. Cabem aquiduas ressalvas para melhor se perceber aspec-tos internos do grupo: (1) A primeira está relaci-onada à organização política dos Fulniô (ondeserá enfatizada a questão da sucessão do prin-cipal líder político, o cacique, (2) a segundaconstitui breve discussão acerca das categori-as em uso: descendente e/ou remanescente.

Organização política

Tradicionalmente os Fulniô têm como au-toridades políticas mais importantes um caci-que, um pajé e um grupo de conselheiros docacique. Esses últimos são líderes políticos queformam uma espécie de conselho, que temcomo principal função auxiliar o cacique em

Page 49: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

49

RUPTURA E CONFLITO

suas decisões (não se trata aqui daquela cate-goria comumente encontrada em outros gruposindígenas no Nordeste, identificados por líderesde aldeias, embora sua origem possa estar as-sociada a práticas indigenistas da época do SPI).Os cargos de cacique e pajé são hereditários evitalícios e a sucessão, bem como o surgimentodesses líderes do conselho, acontecem dentrode critérios estabelecidos pelos Fulniô, que levam em consideração principalmente fatoresvinculados a parentesco (descendência con-sangüínea), religião e outras característicasdesse grupo indígena, como a estratificação emclãs.

No caso do cacique, a substituição ocor-re sempre dentro do mesmo clã e da mesmafamília, assumindo, de preferência, o filho maisvelho. Quando não é possível, recorre-se a ou-tro membro da família em caráter transitório, atéque um descendente direto tenha condições deassumir o cargo, como aconteceu antes do atu-al cacique João de Pontes ser efetivado no car-go, segundo registro em DÍAZ (1983:74-75).Com a morte do velho Sarapó, último caciqueantecessor a João de Pontes, hierarquicamen-te o cargo corresponderia ao seu filho mais ve-lho, porém, este não o aceitou e como os de-mais filhos eram muito jovens, assumiu a fun-ção transitoriamente outro índio que, apesar deser parente de Sarapó, não era seu descendentedireto. Posteriormente um dos filhos mais no-vos de Sarapó, ao completar 16 anos, assumiua função e é lembrado por ter sido um dos caci-ques mais jovens do grupo. No entanto, ele foiassassinado e novamente assumiu interinamen-te outro parente de Sarapó, que entregaria maistarde o cargo a João de Pontes, neto de Sarapó(filho do seu filho mais velho).

Em estudos mais recentes realizadossobre os Fulniô (DÍAZ, 1983 e FOTI, 1994), emesmo naqueles mais antigos, entre as déca-das de 1920 a 1950 (MELO, 1929; BOUDIN, 1949e PINTO, 1956), não encontrei dadosetnográficos que indicassem a existência demais de um cacique. Essa situação hoje pare-ce estar relacionada a práticas indigenistas dopresente (não que isso não ocorresse em ou-tros momentos da história do indigenismo ofici-

al no Brasil), nas quais as unidades administra-tivas da Funai (PI, ADR e Administração Cen-tral) atuam, muitas vezes, sob pressão e demaneira parcial, no sentido de atender reivindi-cações mais imediatas, que privilegiam peque-nos grupos de índios ou famílias indígenas, re-presentando, ao que parece, uma espécie debarganha conjuntural, um conluio entre admi-nistradores ineptos e índios.

No caso Fulniô, esse processo de inter-ferência do órgão indigenista (por meio das suasdiversas instâncias administrativas) desenca-deou o que identifico como uma “ruptura” de seg-mentos/elementos confrontantes na estruturasocial do grupo indígena, legitimando osurgimento (e o fortalecimento interno também)da figura do cacique administrativo, seja por ali-anças contextuais por interesses diversos, sejapor meio do assistencialismo às demandas dosegmento que ele diz representar. No entanto,essa representatividade para os Fulniô pareceser bastante flexível, ocorre, por exemplo, pormeio das alianças em momentos em que sereivindica a (re)distribuição dos lotes dos rema-nescentes para índios desapossados ou na dis-tribuição de cestas básicas, de insumos agrí-colas etc., ações muitas vezes intermediadaspor Associações Indígenas9. E, de acordo ain-da com os interesses envolvidos, nem semprese observa uma coesão muito forte no nível dosegmento dissidente (utilizo o termo no sentidode contextualizar um movimento em nível inter-no de oposição às lideranças tradicionais),como ocorreu mais recentemente10 . As alian-ças externas11, especificamente aquelas queenvolvem instâncias do órgão indigenista ofici-al, acontecem geralmente por meio de barga-nhas, por exemplo, para a manutenção de car-gos tanto em nível de posto indígena como e/ouda administração regional, em troca de açõesde caráter assistencialista etc.

Categorias em uso: remanescente/descendente

Percebe-se uma certa complexidade (eambigüidade) na atribuição da identidade étni-ca entre os Fulniô. Apesar de circunstancialmen-te segmentos do grupo não reconhecerem em

Page 50: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

50

IVSON J. FERREIRA

determinados indivíduos origem indígena, nes-se mesmo contexto, subjetivamente identifica-se o reconhecimento de uma identidade étnica(meio ambígua), seja por atitudes e/ou discur-sos, evidenciando, ao que parece, vários mo-dos de ser Fulniô. A própria discriminação entreeles, de diversas categorias de indivíduos, re-mete a essa situação:

A) seja o indivíduo oriundo de casamen-tos interétnicos (especificamente no caso índioe branco) que é praticante de religião indígena efalante de Iatê, tratado internamente por rema-nescente; que é detentor dos mesmos direitosdaqueles indivíduos oriundos de casamentos ex-clusivamente entre índios Fulniô, praticantes dereligião indígena e falantes de Iatê;

B) seja o indivíduo oriundo de casamen-tos exclusivo entre índios Fulniô praticantes dereligião indígena e falantes de Iatê, porém não-praticante de religião indígena nem falante deIatê, em muitas situações tratado por descen-dente (com restrição de direitos geralmente emnível de segmento faccional do grupo), ou, ain-da;

C) o próprio remanescente e/ou descen-dente, detentor de lote(s) ou parcela(s), não pra-ticante de religião indígena nem falante de Iatê(neste caso, o indivíduo estaria muito próximodo não-índio, embora seja feita a distinção en-tre eles, e sua inserção por mim como catego-ria em uso se deu por uma outra variável, ter-ra).

Observa-se que essas atribuições são de-terminadas por fronteiras que os Fulniô estabe-lecem entre si, ao utilizarem indicadores/determinantes que os diferenciam entre elespróprios e daqueles que os diferenciam do não-índio. Na situação analisada atualmente, a con-testação da identidade étnica entre eles, alémde levar em consideração fatores como religiãoe cultura, está diretamente vinculada ao domí-nio sobre os lotes (que se confunde aqui com odomínio sobre a terra). No último caso citado, avariante terra constitui, talvez, o sinal diacríticodeterminante12 , uma vez que se observa, no ní-vel dos próprios segmentos faccionais, uma dis-puta na atribuição do direito ou não desses indi-víduos sobre a terra que ocupam.

O problema ou os problemas

O que levou à realização de levantamen-to pela Funai de Recife sobre a situação quantoao domínio dos lotes na TI Fulniô, que originouo presente texto, foram denúncias do segmen-to do índio José Correia Ribeiro, cacique admi-nistrativo, de que vários lotes estavam ocupa-dos, em sua totalidade ou em parte, por não-índios, que haviam sido negociados sob autori-zação do (ou pelo) cacique João de Pontes epajé Cláudio Pereira Júnior. Em sua maior par-te, porém, esses ocupantes considerados não-índios pelo segmento sob liderança de JoséCorreia são aqueles indivíduos identificados in-ternamente por remanescentes e/ou descen-dentes, assim, era reivindicado junto à FUNAIque se procedesse ao recolhimento dessas ter-ras, promovendo posteriormente sua(re)distribuição entre índios Fulniô sem-terra.

Essa reivindicação do grupo liderado porJosé Correia tem um precedente: no início de1980, os líderes políticos tradicionais, juntamentecom o delegado regional da FUNAI na época,decidiram promover o recolhimento da metadedo que cada remanescente/descendente ocu-pava para que fosse distribuída entre índiosdesapossados. Foi formada uma comissãocomposta principalmente por índios, que iria exe-cutar esse trabalho. Há denúncias que pesso-as dessa comissão teriam cometido irregulari-dades e se apossado de lotes inteiros. Apesarda disputa pelo domínio sobre os lotes consti-tuir-se num dos principais motivadores das di-vergências entre os Fulniô hoje, existiam algu-mas pendências da Funai, não só no âmbito daAdministração Regional do órgão em Recife,mas também de setores da administração cen-tral, com relação a demandas do segmento li-derado pelo índio José Correia Ribeiro, que re-forçavam divergências no grupo.

Constata-se, no caso Fulniô, que os con-flitos internos agravados recentemente relacio-nam-se, direta e indiretamente, a problemas li-gados à posse e acesso à terra, seja pelos ar-rendamentos, pelos chão de casa ou pela con-tínua invasão da cidade na área indígena; pela

Page 51: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

51

RUPTURA E CONFLITO

não-regularização fundiária da atual TI Fulniô,reconhecida formalmente desde o século pas-sado; pela não-realização de estudos de áreareivindicada (Folklassa – Serra dos Cavalos).Há necessidade de estudos jurídicos sobre odecreto estadual 637/1928 (por exemplo, se épertinente ou não sua revogação); sobre atradicionalidade verificada nas diversas formasde ocupação e uso da terra pelos índios e daprópria pecualiaridade da Terra Fulniô; além deinúmeros outros fatores discutidos ao longo dotexto. Conclui-se, assim, que o processo de rup-tura interna e as divergências entre os Fulniôestão associados a uma crescente insuficiên-cia de terras, seja pelos fatores acima citados,seja ainda pela sua apropriação/concentraçãopor segmentos familiares ou indivíduos, pelaquantidade finita de terra frente ao crescimento

demográfico ou pela situação de reserva a queestão condicionados os índios.

Noutro aspecto, mais grave porém, a atu-ação da Funai, não só quando intervém sob ajustificativa de dirimir conflitos internos, seja pormeio do PI, das AERs e da Administração Cen-tral, vem contribuindo significativamente para oagravamento desses conflitos, tendo em vistaa parcialidade com que ocorre em momentosquando atende demandas de segmentosfaccionais ou privilegia grupos de famílias noâmbito interno do povo indígena, revelando prá-ticas indigenistas calcadas no clientelismo e noassistencialismo, que geram apenas expecta-tivas e frustrações nos diferentes segmentosdo povo indígena Fulniô.

1 Antropólogo FUNAI/AER-Recife. O presente texto sefundamenta principalmente em informações do RelatórioGrupo Indígena Fulni-ô, elaborado a partir de levantamentosrealizados pelo autor no ano de 1996. Com objetivo de ilustrara situação em foco e desdobramentos posteriores, são utilizadosdados mais recentes, coletados de outras fontes, relacionadosa novos acontecimentos na área.

2 Os índios informaram que quatro desses 13 lotes constituemuma espécie de reserva, aqueles resguardados para oOuricuri, com a finalidade de preservar, por exemplo, avegetação de caatinga que circunda o local. Os lotes estãoregistrados em nome dos seus respectivos ‘proprietários’indígenas, não observando restrições quanto a sua utilizaçãopara atividades produtivas, porém são vedados arrendamentosou outras transações que envolvam transferência de domíniopara não-índios.

3 Recentemente (maio/97), os índios Fulniô interditaram ocemitério público de Águas Belas, localizado em um dos lotesda TI, impedindo a realização dos sepultamentos de habitantesda cidade, que tiveram que ser transferidos para municípiovizinho. Também foi interditada a torre que serve à centraltelefônica e ao sistema repetidor de televisão. Essa mobilizaçãodos índios foi motivada pelo fato de a Prefeitura não ter pago osarrendamentos correspondentes à utilização das áreas. Apósnegociações, os índios estabeleceram um prazo para que fosseregularizada a situação, por meio de acordo que reduziu partedo débito (cujo valor ultrapassava, na época, R$ 11.000,00).

4 Essa situação, como inúmeras outras, é decorrente de umasérie de fatores, a começar pela própria indefinição da TerraFulniô como figura jurídica, ou da ausência da demarcaçãofísica entre os limites da área reconhecida formalmente aos

índios e aquelas concedidas por eles à municipalidade e aoPatrimônio da Santa, enfim, pela ausência até mesmo deestudos prévios para a regularização fundiária.

5 Existiam 43 funcionários lotados no PI Fulniô, dos quais 41eram índios Fulniô. Esse dado aparentemente revela práticasindigenistas oficiais de caráter clientelista/paternalista; a maioriadesses funcionários índios (em torno de 40 %), foi contratadaentre os anos 1985-87, período coincidente à gestão de RomeroJucá na presidência da Funai, responsável pela reestruturaçãodo órgão na época, criando as Superintendências ExecutivasRegionais em substituição às antigas Delegacias Regionais. Aantiga estrutura burocrática-administrativa sofreu mudançasque se refletiram,principalmente no considerável aumento doquadro funcional do órgão indigenista oficial, de acordo comdados de levantamento realizado por técnicos da Funai (EspíritoSanto, 1996). Nesse levantamento há informações ainda sobremais 10 índios Fulniô funcionários da Prefeitura de ÁguasBelas, especificamente professores (60% do total), o quetotalizava 53 índios Fulniô funcionários públicos (entre federaise municipais), teoricamente exercendo alguma atividade naárea.

6 Os Fulniô conservam uma organização em clãs que rege suavida social e política. Conforme dados etnográficos de autoresque pesquisaram entre os Fulniô, estes grupos clânicos sãoidentificados por: Sedaytô (grupo do Fumo); Faledaktoá (grupodo Pato); Waledaktoá (grupo do Porco); Lidyaktô (grupo doPeriquito); e, Txokôtkwá (grupo do Peixe) [DÍAZ; 1983: 62].Esses clãs estabelecem certas regras nas práticas religiosas ena organização social e política do grupo, existindo uma relaçãohierárquica entre eles, e dois desses clãs seriam constituídospor índios de fora, o que no último caso repercutiria em restriçõesimpostas a elementos destes clãs na organização interna dos

Page 52: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

52

IVSON J. FERREIRA

Fulniô. Informações recentes fornecidas por alguns índiosindicam que durante o Ouricuri essa estratificação em clãs éreforçada, juntamente com outras manifestações da culturaFulniô, significando um retorno às origens.

7 Por exemplo, segundo os Fulniô, não é permitida a participaçãono ritual do Ouricuri daqueles indivíduos não-índios que tenhamsido incorporados aos Kariri-Xokó. Não tenho informações setal restrição se estenderia também aos indivíduos Kariri-Xokódescendentes dos casamentos interétnicos, especificamenteíndio x não-índio.

8 Utilizo o termo (re)redistribuição intencionalmente, a partirde fatos vivenciados recentemente pelos Fulniô. No início dadécada de 80 ocorreu redistribuição dos lotes ou parcelas dosmesmos (na proporção de 50% de cada ocupação), então sobdomínio dos remanescentes/descendentes, para índiossupostamente desapossados. Essa redistribuição, na época,foi intermediada pela FUNAI, juntamente com os líderespolíticos tradicionais Fulniô.

9A maioria das associações indígenas, especificamente nocaso Fulniô, tem funcionado hoje mais como fator dedesagregação/fragmentação interna. Atuam junto a organismosoficiais e não-oficiais sob pretexto de angariar recursos paraprojetos que atendam expectativas da comunidade, mas quemuitas vezes são apropriados por indivíduos ou pequenosgrupos de famílias indígenas, geralmente vinculadas asegmentos faccionais. Existem atualmente atuando,formalmente estruturadas (pelo menos regularizadas), em tornode 10 Associações de índios Fulniô: Associação MistaComunidade Fulni-ô; Associação FowClassa (Muitas Pedras);Associação Artesãos Indígenas Fulni-ô; AssociaçãoComunitária dos Costureiros e Estilistas Fulni-ô; AssociaçãoComunitária Fowhá Pypny (Pedra Brilhante); AssociaçãoGrupo Jovem; Cooperativa Agropecuária dos Índios Fulni-ôLtda.; Associação Indígena Hilário Barbosa; Associação GrupoFully Fulni-ô (Rio Ipanema); Associação Mista CaciqueProcópio Sarapó. Com exceção de uma, todas as associaçõesFulniô foram fundadas depois de 1991, a maioria nos últimos 6anos. Essa possibilidade hoje, da obtenção de recursos pormeio das Associações, está relacionada a determinantes taiscomo falência de um modelo de política indigenista pautadasobretudo no assistencialismo da Funai. Por outro lado, refletedentro do movimento indígena uma busca de alternativas apesarde todos os vícios herdados desse modelo. Não pretendoelaborar aqui discussão minuciosa sobre a figura dasassociações indígenas, muito menos sou contrário à existênciadas mesmas. Pela sua complexidade, o assunto deveria serobjeto de estudos mais aprofundados, meu objetivo ao fazertais consideraçõe é mais uma tentativa de esclarecer pontosimportantes para uma melhor compreensão da temática emfoco no presente artigo.

10 Recentemente esse segmento faccional dissidente promoveuocupação (em outubro de 1998), de uma fazenda limítrofe à

área indígena oficialmente reconhecida, com objetivo deincorporá-la ao seu perímetro. Essa ação mobilizou grandenúmero de índios e teve apoio dos líderes tradicionais (cacique/pajé), não significando contudo uma aliança ou trégua entre osgrupos faccionais. Concordavam com a anexação da fazendacomo medida de segurança pela sua proximidade do localonde se recolhem para as suas práticas religiosas, o Ouricuri.Mas, ao concordarem com a ação, os líderes tradicionaisenfatizavam que a área da fazenda não deveria ser incorporadaà área indígena, uma vez que pertenceria à facção dissidentee que por sua vez deveria assim se separar definitivamente dacomunidade Fulniô. A ação que desencandeou a ocupaçãodessa fazenda se deu aparentemente a partir de aliançasestabelecidas daquele segmento faccional com instâncias daFunai na época, principalmente em nível de administraçãoregional e tem pontos bastante “obscuros” (que ocasionaramcríticas e desconfianças de índios e não-índios), tendo sidorecentemente objeto de estudo através de parecer elaborado(por antropólogo e sociólogo), em que se destaca uma série derecomendações à forma como a própria Funai vem conduzindoo processo de aquisição da respectiva fazenda. Posteriormentea essa mobilização, divergências internas na facção dissidente,talvez também relacionadas aos interesses em questão àocupação, desencadearam o afastamento do índio José CorreiaRibeiro do cargo de cacique administrativo, assumindo outroíndio a função de líder faccional. Sobre o assunto, é fundamentalver o Parecer técnico necessário à composição do processoque estuda a possibilidade de regularização da Fazenda Peró,elaborado conjuntamente pela antropóloga Vânia Fialho e osociólogo Marcondes Secundino, ambos vinculados auniversidades de Pernambuco, por solicitação da Funai (Memo074/DEF de 10.03.99). Apesar do afastamento do índio JoséCorreia da liderança desse segmento faccional, mantive osdados conforme a versão original do texto, tendo em vista queos fatos são posteriores a sua elaboração.

11 Embora neste caso as alianças ocorram com outros agentese instâncias externos, inclusive em nível político-partidário,interessa-nos aqui as alianças estabelecidas no âmbito daatuação da Funai. É interessante acrescentar que, em termosde microrregião, os Fulniô representam contingentepopulacional e de eleitores considerável. Os índios contestamos números demográficos oficiais da Funai, alegando que apopulação indígena atual é de aproximidadmente 5000 pessoas.

12 Ainda sobre os termos remanescente e descendente,gostaria de esclarecer que, apesar de utilizá-los comoindicadores de categorias distintas, é possível serem tratadospelos índios, pelo menos no nível do discurso, como uma mesmacategoria de pessoas. A tentativa de discriminar pelo menostrês situações diferentes de identidade está relacionada asituações em que os Fulniô internamente atribuem diferençasentre si e a determinados indivíduos, de acordo com adescendência consangüínea, prática da religiosidade indígena,língua e domínio sobre lotes na TI.

Referências Bibliográficas

ATLAS da Terras Indígenas do Nordeste. 1993.

BOUDIN, Max H. 1949. “Aspectos da vida tribaldos Fulni-ô.” In: Cultura. a.I, n.3. Rio deJaneiro.

Page 53: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

53

RUPTURA E CONFLITO

DÍAZ, Jorge Hérnandez. 1983. Os Fulni-ô:Relações Interétnicas e de Classes em ÁguasBelas. Dissertação de Mestrado. Brasília, Prog.Pós-Graduação, Antropologia/DepartamentoCiências Sociais.

ESPÍRITO SANTO, Marco Antônio do & outros.1996. Rel. (GT Port. 359/96). FUNAI-Brasília,DF.

FERREIRA, Ivson J. 1996. Grupo Indígena Fulni-ô. Rel. FUNAI/ADR-Recife.

FIALHO, Vânia & SECUNDINO, Marcondes.Maio/1999. Parecer técnico necessário àcomposição do processo que estuda apossibilidade de regularização da FazendaPeró.

FOTI, Miguel Vicente. 1994. Resistência e Segredo:relato de uma experiência de antropólogocom os Fulni-ô. Diss. Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Brasília, UNB.

MELO, Mário. 1929. Os Carnijós de Águas Belas.Separata do tomo XVI da Revista do MuseuPaulista. São Paulo.

MENEZES, Cláudia. 1993. Posto Indígena Fulni-ô. Relatório de Viagem. Brasília, FUNAI.

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. 1989. OsPoderes e as Terras dos Índios. Rio deJaneiro, PPGAS/MN/UFRJ. Comunicação 14.

PINTO, Estevão. 1956. Etnologia Brasileira(Fulni-ô Os últimos Tapuias). São Paulo, Cia.Ed. Nacional.

Page 54: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 55: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO FUNDIÁRIA FULNIÔ

Walter Coutinho Jr.Juliana Gonçalves Melo

Page 56: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 57: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Os índios Fulniô habitam o município deÁguas Belas, numa microrregião do Vale doIpanema, no agreste pernambucano, a cercade 275 quilômetros de Recife e 80 quilômetrosde Garanhuns. Durante muito tempo identifica-dos como Carnijó, os Fulniô são os únicos índi-os do Nordeste que ainda conservam sua lín-gua nativa e especialmente íntegra sua religião,além de vivenciarem uma situação fundiáriaatípica. A origem desta condição atípica, tal comoconfigurada no presente, remonta à tentativa deregularização procedida em 1928, que definiu oatual status legal da área, mas responsável, emúltima análise, pela continuidade e acirramentoda disputa em torno da posse do território se-cularmente habitado pelos Fulniô.

Contexto histórico

A crônica do reconhecimento públicosobre a posse e domínio territorial dos Fulniôteve início há quase três séculos. Por CartaRégia de 05.06.1705, a Rainha da Grã-Bretanhae Infanta de Portugal confirmou a doação de umalégua em quadra determinada pelo GovernoImperial por meio do Alvará com força de lei de23.11.1700, e reafirmada pela Carta Régia de23.05.1703, para os aldeamentos de caboclose tapuias do sertão de Pernambuco. Essesaldeamentos seriam, conforme a InformaçãoGeral da Capitania de Pernambuco, o da alagoada Serra do Comonaty, formado por uma na-ção de caboclos da língua geral chamadosCarnijós, e a aldeia dos Carnijós sita na Ribeyrado Panema, composta por uma nação deTapuyos.

Os índios da região foram efetivamentealdeados, tendo sido criada, em 1788, a Fre-guesia de Nossa Senhora da Conceição dasÁguas Belas. Em 15.03.1832, por sentença do

REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO FUNDIÁRIA FULNIÔ1

Walter Coutinho Jr Juliana Gonçalves Melo3

2

Ouvidor Geral, Corregedor e Provedor daComarca de Garanhuns, foi validada a doaçãode um patrimônio para a construção da capelada povoação, ficando os moradores, à exceçãodos índios, obrigados ao pagamento, em bene-fício da igreja, do foro de 20 réis por cada palmode terreno cedido.

Em 1875, com base presumivelmentena Lei n.º 1.114, de 1860, que autorizou oaforamento e a venda de terras das antigas mis-sões ou aldeias que se achassem abandona-das, o governo provincial decretou, pela Lei n.º1.672, de 30.10.1875, a extinção de diversosaldeamentos indígenas em Pernambuco, entreeles o de Ipanema ou Águas Belas. Em decor-rência desse ato, as terras do aldeamento deÁguas Belas foram medidas e demarcadas em1876-78, discriminando-se a área de 795.664m² do patrimônio doado à igreja em 1832, sen-do o restante dividido em 427 lotes de 302.500m², em sua maioria, dos quais 113 foram imedi-atamente distribuídos entre os índios.

Embora incontestavelmente ocupadaspelos índios, as terras do antigo aldeamento deÁguas Belas foram, em 1908, arrendadas pelogoverno estadual a Nicolau Cavalcanti Siqueirapor um prazo de seis anos, findo o qual foramrestituídas aos Fulniô, ficando estabelecido que,se fossem abandonadas, reverteriam ao domí-nio do Estado.

A instalação do Posto do SPI ‘GeneralDantas Barreto’, em 1924, coincidiu com o agra-vamento dos conflitos pela posse das terras doantigo aldeamento. Nessa época, registrava-sejá a presença de 154 posseiros no interior daterra indígena. Em 1928, como árbitro da pen-dência entre os ocupantes das terras do antigoaldeamento de Ipanema, no Município de ÁguasBelas e os descendentes de índios Carnijós, oGovernador do estado expediu o Decreto n.º 637,

Page 58: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

de 20.07.28, pelo qual reconheceu que o direitodos remanescentes dos índios Carnijós apóia-se em justo título e transferiu a área do antigoaldeamento à administração do Ministério daAgricultura, Indústria e Comércio, ao qual sesubordinava o SPI, ressalvando, entre outrasrestrições, o patrimônio de N.S. da Conceiçãode Águas Belas, doado pelos índios em 1832.

Pelo artigo 2º do Dec. nº 637/28, foi fa-cultada a aquisição de lote ou parte de lote so-bre o qual não incida nenhuma reclamação doseu dono índio, pelos posseiros que os ocupas-sem com moradia e cultura efetivas. Em seuart. 3º, dispunha o mencionado ato que, nos lo-tes em posse de terceiros que pertencessem aalgum índio ou descendente de índio, ficaria oocupante obrigado ao pagamento do arrenda-mento correspondente à quantidade e qualida-de dos terrenos que ocupar. De acordo com odisposto no art. 12 do decreto, os arrendamen-tos deveriam ser efetuados mediante recibo erigorosa escrituração.

Além das fontes d’água, consideradasde utilidade pública e entregues àmunicipalidade de Águas Belas em virtude doart. 6º, o Dec. nº 637/28 determinou ainda, emseu art. 16, para completar a área urbana e deacordo com o desenvolvimento que vai tendo acidade, a cessão ao município de nova fraçãode terras do antigo aldeamento, em área contí-gua à doada em 1832. Essa disposição foi for-malizada pelo Termo de Cessão de uma áreade terras que fazem os índios Carnijós àMunicipalidade de Águas Belas, datado de05.09.1928, que estabeleceu os novos limitesdo patrimônio da cidade.

Determinava, enfim, o art. 7º do citadodecreto que a cada índio reconhecido na possede um lote fosse passado o título respectivo,com a condição de não fazer sobre esta suapropriedade nenhuma transação. Em cumpri-mento a essa determinação, o SPI forneceu,em 1929, Títulos Provisórios de Posse aos ín-dios titulares de lotes na área do antigoaldeamento.

A partir do Dec. nº 637/28, o arrendamen-to de terras na área Fulniô foi institucionalizado

e passou a ser intermediado formalmente peloSPI, ainda que a prática fosse proibida pelosEstatutos do órgão. Estimulou-se, a partir deentão, a apropriação da terra indígena por ter-ceiros, instaurando um permanente conflito pelaposse fundiária entre índios e não-índios.

Após 1928, o poder público veio a ocu-par-se da Terra Fulniô somente em 1971, quan-do a FUNAI teria procedido à demarcação topo-gráfica da área, resultando na medição de11.505,71 ha. Novo levantamento topográfico foideterminado pelo órgão em 1985, como formade definir os limites entre o patrimônio da cida-de e a terra indígena, sem que se tenha, contu-do, conhecimento de seus resultados.

Não obstante, com o passar do tempo acidade de Águas Belas expandiu seu perímetrourbano, avançando sobre o território indígenanão apenas por meio da prática do arrendamen-to, mas também pela construção de residênci-as que, ocupando permanentemente a regiãoda terra indígena contígua ao patrimônio da ci-dade, ficaram sujeitas ao pagamento de foro,denominado localmente “chão de casa”. Pos-teriormente, parte das residências situadas forados limites definidos em 1928 foram cadastra-das pela Prefeitura Municipal, que sobre elaspassou a cobrar impostos, deixando conseqüen-temente seus ocupantes de pagar o “chão decasa” devido aos índios possuidores dos lotescorrespondentes. Dados de 1983 indicam aexistência de pelo menos 485 residênciasconstruídas nas terras contíguas ao patrimônioda cidade e sujeitas ao pagamento do “chão decasa”.

Em 1983, tendo em vista a indefiniçãode limites existentes entre a área indígena e operímetro urbano da municipalidade, as ques-tões relativas ao limite e acesso às áreas deuso coletivo do patrimônio indígena e lotes “par-ticulares” dos índios, e o impasse existente en-tre a comunidade indígena e a Prefeitura deÁguas Belas com relação à cobrança de taxas,a FUNAI designou grupo de trabalho para reali-zar levantamento topográfico e avaliação antro-pológica na Terra Indígena Fulniô. Consta noRelatório de Viagem ao Posto Indígena Fulniô,

Page 59: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

da antropóloga Cláudia Menezes, que teriamsido concluídos os trabalhos de aviventação delimites do patrimônio da cidade, de acordo comas especificações técnicas do Termo de Ces-são de 1928 e de demarcação do patrimônio daaldeia de uso comum dos índios. O termo deacordo então elaborado para regularização dasituação fundiária entre índios ocupantes de lo-tes no interior da terra indígena e Prefeitura Mu-nicipal não chegou a ser assinado, por oposi-ção desta última.

Contexto jurídico-administrativo

O atual estatuto da Terra Indígena Fulniô,tal como definido pelo Decreto Estadual nº 637/28, padece de uma flagrante contradição inter-na, que tem origem exatamente na ambigüida-de daquele ato legal em relação ao reconheci-mento da identidade étnica de seusbeneficiários. Por um lado, o decreto reconhe-ce que o direito dos remanescentes dos índiosCarnijós apóia-se em justo título, cujo fundamen-to seria a própria Carta Régia de 05.06.1705.Condizente com este reconhecimento, não há,propriamente falando, qualquer artigo doando ouconcedendo as terras do antigo aldeamento aosíndios Fulniô. Ao contrário, a concessão é pre-sumida pelo art. 1º do decreto, que transfereapenas a administração da área ao MAIC/SPIpara que nela residam os descendentes de ín-dios Carnijós. Por outro lado, em seu último ar-tigo, o decreto revela a convicção de que as ter-ras por ele mencionadas seriam de domínioestadual. Com efeito, menciona-se ali que porextinção do Serviço Federal, ou emancipaçãodo Posto, todos os lotes que estiverem deso-cupados e todos aqueles cujos donos não hou-verem liquidado a sua aquisição, voltarão aodomínio do Estado de Pernambuco.

Conhece-se a origem dessa ambigüida-de: ela reside exatamente na extinção formaldo aldeamento, decretada pelo governo provin-cial em 1875, contraposta à evidente continui-dade da existência e da ocupação territorial dacomunidade indígena. Como se sabe, as terrasdevolutas, entre as quais se contavam as ter-ras dos aldeamentos extintos, foram

transferidas ao domínio dos estados pela Cons-tituição Republicana de 1891. Do ponto de vistaformal, portanto, a extinção decretada em 1875é nula, por contrariar a própria situação fáticada ocupação indígena nas terras do aldeamentoconcedido em 1705.

Como se constata, as terras dosaldeamentos coincidem freqüentemente com oterritório originário do grupo indígena, como é ocaso dos Fulniô, sendo esta ocupação originá-ria protegida por uma sólida tradição jurídicaluso-brasileira, que tem seu fundamento no ins-tituto do indigenato. Assim, em princípio, deve-se considerar como terras tradicionalmenteocupadas pelos índios Fulniô a área reconheci-da como a eles pertencente pelo Dec. n.º 637/28. O único dispositivo do mencionado decretoque poderia obnubilar a manifesta condição deterras ocupadas pelos índios, e portanto passí-veis de serem consideradas de acordo com oatual art. 231 da CF de 1988, seria o já mencio-nado art. 7º, que determinava a expedição detítulos sobre os lotes adscritos aos índios ouseus “descendentes”. Sabe-se, porém, que ospoucos títulos expedidos pelo SPI em 1929,além de provisórios, foram títulos de posse, enão de domínio, ficando vedada qualquer tran-sação sobre os lotes assim caracterizados.

Por outro lado, o arrendamento das ter-ras Fulniô, “legalizado” pelo art. 3º do decretoestadual, contrariava formalmente, nesse pon-to, os termos do Dec. nº 8.072, de 20.06.1910,que instituiu o Serviço de Proteção aos Índios(SPI). De acordo com as concepções da épo-ca, nisso partilhadas tanto pelo governo esta-dual quanto pelos agentes do SPI, pretendia-setransformar os índios em “trabalhadores nacio-nais”. A antevisão do processo históricosubjacente aos termos do Dec. nº 637/28 seriaa da assimilação com os futuros proprietáriosde lotes não-indígenas, o que, evidentemente,não ocorreu.

De todo modo, o arrendamento das ter-ras Fulniô a não-índios perdurou ao longo doséculo, ignorando soberanamente os dispositi-vos de todas as Constituições promulgadas apartir de então, que ordenaram o respeito à pos-

Page 60: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

se dos índios, cujas terras não poderiam seralienadas ou transferidas. Com a edição daEmenda Constitucional n.º 1, de 1969, nisso ali-ás reafirmada pela atual CF, ficaram “declara-das a nulidade e extinção dos efeitos jurídicosde qualquer natureza que tenham por objetivo odomínio, a posse ou a ocupação de terras habi-tadas pelos silvícolas”.

Se dúvidas ainda pairassem sobre a ile-galidade da prática do arrendamento, foramdefinitivamente estancadas pela edição da Lein.º 6.001, de 19.12.1973. Definindo em seu art.17 três categorias de terras indígenas – as ocu-padas, as reservadas e as de domínio –, essalei dispôs em seu art. 18: As terras indígenasnão poderão ser objeto de arrendamento ou dequalquer ato jurídico que restrinja o pleno exer-cício da posse direta pela comunidade indígenaou pelos silvícolas. Em princípio, portanto, o ar-rendamento a não-índios de lotes ou parcelasde lotes da Terra Indígena Fulniô contraria fron-talmente dispositivo de uma lei federal em vi-gor, resultando daí a necessidade de sua regu-larização fundiária e legal.

Contexto sociocultural

Seguindo distinção sugerida pelo antro-pólogo Jorge Hernández Díaz (1993), podemosdiscernir analiticamente dois aspectos do con-ceito de terra para os Fulniô, que estão relacio-nados entre si. Em primeiro lugar, a terra é umterritório, espaço geográfico ligadoindissoluvelmente à sua história e à sua cultu-ra. O território é, assim, suporte da identidadeétnica. Em segundo lugar, a terra é tambémmeio de produção, é nela que os índios reali-zam suas atividades produtivas e de onde ex-traem seus principais recursos econômicos,garantia de sua perpetuação como indivíduos ecomo grupo.

Ao retornar a divisão das terras do anti-go aldeamento em lotes “particulares”, o Dec.nº 637/28 contribuiu para a transformação danoção, comum entre as sociedades indígenas,de propriedade coletiva da terra, fomentando aperpetuação e incorporação dos lotes como

parte do conceito de território indígena para osFulniô atuais. Não se compreende, assim, a di-nâmica interna da sociedade Fulniô contempo-rânea sem fazer menção aos lotes e às regrasde transmissão e uso que regulam sua existên-cia e controle. Do ponto de vista econômico,por outro lado, a existência dos lotes gera umprocesso dialético de pulverização das unida-des produtivas, dada a quantidade finita de ter-ra face ao crescimento demográfico da unida-de familiar que dela sobrevive, ao mesmo tem-po em que possibilita a concentração dessemeio produtivo por segmentos familiares espe-cíficos da sociedade Fulniô, que passaram aexercer, ao longo do tempo, o controle produti-vo sobre mais de um lote. Muitas vezes a apro-priação da terra como meio de produção con-traria o ideário indígena sobre a terra conside-rada como território.

Um outro aspecto sociocultural que deveser levado em consideração para a compreen-são da problemática fundiária Fulniô é o con-ceito de descendente ou remanescente. A soci-edade Fulniô mantém uma ênfase muito gran-de em seus próprios valores e crenças nativas.Hohenthal acreditava que a capacidade de so-breviver ou resistir era uma das característicasmais notáveis deste grupo indígena, conside-rando os Fulniô como um caso especial de povonativo, donos de uma ideologia étnicaetnocêntrica. Pela manutenção de sua língua, oIatê, e pela atualização de seus conceitos e prá-ticas religiosas, particularmente no ritual doOuricuri, os índios resgatam e perpetuam suamemória cultural e a essência de sua identida-de étnica. Os Fulniô identificam como descen-dentes ou remanescentes, prioritariamente, osfilhos de membros do grupo ou de uniõesinterétnicas não-falantes do Iatê e não-partici-pantes do Ouricuri. 4

Adivinha-se, de qualquer forma, que ageneralização do uso das categorias descen-dente e remanescente entre os próprios índiostem relação com o emprego de ambos os ter-mos pelo Dec. nº 637/28. De certo modo, a as-similação do teor e da linguagem do decretopelos Fulniô parece ter criado uma nova cate-goria de identificação étnica no seio da comuni-

Page 61: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

dade indígena. Porém, enquanto o decreto nãoformaliza por si mesmo nenhuma distinção dedireitos entre índios e descendentes ou rema-nescentes, com o tempo, a adscrição dessasegunda identidade passou a balizar, pelo me-nos em nível de ideário social, a possibilidadeou não de acesso e posse dos lotes. Para umaparte do grupo, a identificação étnica comoFulniô ou descendente/remanescente tornou-secritério de legitimação social da “propriedade”dos lotes, pois em relação a ele se justificariaou não a posse de tratos da terra indígena. Defato, em 1980, os Fulniô realizaram uma reu-nião, na sede do posto, com os remanescen-tes detentores de lotes no interior da terra indí-gena, deliberando-se, na ocasião, a cessão demetade das áreas por eles ocupadas, que fo-ram posteriormente sorteadas entre as famíli-as indígenas despossuídas de terra. Outrosmembros do grupo, no entanto, parecem reco-nhecer aos remanescentes um certo direito àposse da terra, dada sua ascendência Fulniô, oque os diferenciaria dos não-índios, a quem issonão é permitido, a não ser por meio do arrenda-mento.

Ocorre que, dada a ambigüidade da ca-tegoria descendente/remanescente no quadrodas relações interétnicas locais, um certo nú-mero de moradores da cidade de Águas Belaspassou a apropriar-se de lotes ou partes de lo-tes no interior da terra indígena. Esses não-ín-dios têm adquirido glebas dentro dos limites daTerra Indígena Fulniô, usando para tanto o artifí-cio de fazer constar o nome de algum descen-dente/remanescente nos Termos de Doação,Termos de Transferência, Termos de Permutaou Declarações com que se registraram noposto indígena essas transações. Deste modo,manipulando habilmente suas relações com asfamílias remanescentes – descendentes deFulniô não-falantes do Iatê e não-participantesdo Ouricuri – , os não-índios de Águas Belaspassaram a deter a posse e o usufruto de lotesna terra indígena, cuja obtenção ou aquisiçãofoi mascarada comumente sob a forma de co-laboração ou ajuda pecuniária para a constru-ção de casa em favor do índio ou descendente/remanescente.

Esse estado de coisas, entre outrasconsiderações relativas à assistência e gestãode patrimônio do órgão indigenista, esteve nocerne do sério conflito de lideranças surgido oumanifesto a partir de 1994, com a “nomeação”de um novo cacique por um segmento da co-munidade indígena. Tradicionalmente, o cargode cacique, assim como o de pajé, é vitalício,sendo sua transmissão regulada por regrasoutras que não a eleição ou “indicação popu-lar”. O fato é que a facção liderada pelo caciqueemergente tem questionado a transferência delotes entre índios e remanescentes, acusandoas lideranças tradicionais de se beneficiarempessoalmente por meio de dessas transações.Fundamentalmente, a liderança emergente ale-ga que os descendentes/remanescentes nãosão índios, e portanto não devem ter direito àterra; enquanto as lideranças tradicionais, semconsiderá-los Fulniô propriamente ditos, para oque seria necessário o domínio do Iatê e a par-ticipação no Ouricuri, crêem possuírem os mes-mos um certo direito ao usufruto dos lotes her-dados de seus ascendentes indígenas. Caberessaltar que tampouco aqueles indicados comodescendentes/remanescentes consideram-seíndios, relacionando-se com os Fulniô exclusi-vamente em função da posse dos lotes no inte-rior da terra indígena.

Perspectivas

Em 13.01.95, a liderança emergente dacomunidade indígena encaminhou solicitação àPresidência da FUNAI para que fosse realizadauma “redemarcação” da Terra Fulniô, porqueenquanto existem muitos índios que não pos-suem terras, existem muitos brancos possuin-do terras da área indígena, queixando-se aindado avanço do perímetro urbano de Águas Belassobre os lotes indígenas. Entretanto, para seproceder à regularização da situação fundiáriae legal da Terra Indígena Fulniô, parece ser ne-cessária, em primeiro lugar, uma discussão dasimplicações sociais e jurídicas da proposta aser encaminhada com este objetivo.

Por efeito de uma série de atos legaisemitidos ao longo da história, a légua em qua-

Page 62: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

dra dada aos índios pela Carta Régia de 1705voltou formalmente ao domínio da União no pri-meiro terço deste século. De fato, o DecretoImperial n.º 2.672, de 20.10.1875, autorizou oGoverno a alienar as terras dos aldeamentosextintos que estivessem aforadas e passar aosmunicípios as que pudessem ser utilizadas paraa criação de povoações e logradouros públicos.A Lei nº 3.348, de 20.10.1887, determinou queos foros dos terrenos não-alienados de acordocom o disposto no Dec. nº 2.672 deveriam pas-sar aos municípios, transferindo às Provínciasos terrenos dos extintos aldeamentos não-in-clusos nas disposições daquele ato legal. Fi-nalmente, pelo Decreto n.º 5.484, de 27.06.1928,foi autorizada a cessão gratuita ao domínio daUnião das “terras devolutas” ocupadas por índi-os e das terras dos aldeamentos extintos quehaviam sido transferidas às Províncias pela Lein.º 3.348, de 1887. Assim, em princípio, a TerraIndígena Fulniô deveria ser considerada comoum bem da União e, dado o fato de ser efetiva-mente ocupada pelos índios, regularizada deacordo com os termos do atual art. 231 da Cons-tituição Federal.

Há, contudo, uma dificuldade básica emencaminhar a regularização da Área IndígenaFulniô de acordo com o art. 231 da atual CF,que reside na questão do arrendamento de ter-ras realizado pelos próprios índios. Embora deorigem forânea, o arrendamento foi incorpora-do ao longo do tempo pela sociedade Fulniô,que dele hoje depende não somente como umade suas principais fontes de renda e meio desobrevivência econômica, mas também comouma realidade social incontestável. Observe-seque aquilo que a liderança emergente questio-na não é o arrendamento propriamente dito, masa compra e venda dos lotes por não-índios,mascarada sob a forma de doação ou transfe-rência aos remanescentes. A conveniência ounecessidade da permanência do arrendamen-to como instituição socioeconômica aparentaser uma unanimidade entre os Fulniô, seja qualfor a facção a que pertençam.

A regularização da Terra Fulniô como“tradicionalmente ocupada pelos índios”, deacordo com o art. 231 da CF, deve, assim, ser

precedida por uma discussão com a comuni-dade indígena sobre sua incompatibilidade coma instituição do arrendamento. Caso os índiosestejam dispostos a abrir mão dessa prática, aFUNAI deve proceder a um reestudo da área deacordo com as disposições do Decreto n.º1.775/96, com a elaboração de proposta paradefinição de seus limites e extrusão dos ocu-pantes não-índios. Para isso, será necessáriolevar em consideração não somente os casosindividuais de apossamento de lotes no interiorda terra indígena, com a extrusão de todos os“rendeiros” e não-índios que adquiriram lotesusando o nome de remanescentes, mas tam-bém a difícil questão dos “chãos de casa” es-pacialmente contíguos ao perímetro urbano dacidade de Águas Belas. Se a proposta que vi-esse a ser elaborada retomasse os limites defi-nidos pelo Dec. n.º 637/28 e pelo termo de Ces-são derivado de seu art. 16, os “chãos de casa”implantados deveriam ser objeto de levantamen-to fundiário e avaliação de benfeitorias para finsde indenização, nos termos do art. 231, § 6º, daCF. A União deveria estudar, igualmente, a pos-sibilidade de imputar juridicamente àmunicipalidade de Águas Belas a obrigação dopagamento das indenizações devidas, no todoou em parte, tendo em vista o fato de a Prefeitu-ra Municipal vir se locupletando indebitamentecom a cobrança de impostos em áreassabidamente pertencentes aos índios. Caso seconsiderasse que o usufruto indígena ficou pre-judicado naquelas áreas tomadas por “chãosde casa”, o limite entre o patrimônio municipal ea terra indígena deveria ser redefinido, sendoos índios ressarcidos com áreas de terras com-patíveis com a quantidade e qualidade de terre-no subtraído à área definida em 1928. A adoçãodesse procedimento, no entanto, deve levar emconta medidas que evitem a continuidade domesmo processo de invasão nos novos limi-tes, sob pena de os Fulniô verem-se cada vezmais afastados do centro do aldeamento a elesconcedido em 1705.

A regularização da terra dos índios deacordo com o art. 231, § 1º, da CF, por outrolado, não obsta a continuidade da prática detransmissão ou transferência dos lotes realiza-

Page 63: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

das entre os próprios Fulniô, que deve continu-ar a ser realizada como normalmente tem ocor-rido. Ainda que as terras indígenas sejam ca-racterizadas como bens públicos (Código Civil,art. 66) inalienáveis e indisponíveis (art. 231, §4º, da CF), a transferência da posse e/ou direitode ocupação dos lotes entre os próprios índiosdeve ser respeitada, por constituir-se prática in-corporada aos seus usos, costumes e tradições,reconhecidos pelo caput do art. 231 da CF. Ocaso dos lotes em posse de descendentes/re-manescentes, por outro lado, deve ser objetode discussão com a comunidade indígena, vis-ta a ambigüidade dessa classificação étnica ea disparidade de opiniões existentes entre asfacções sobre o direito à terra que hipotetica-mente os assistiria. Uma solução possível se-ria impedir os remanescentes que não se con-sideram índios de transmitirem a seus descen-dentes a posse dos lotes por eles hoje possuí-dos, sendo estes lotes, por ocasião do decessode seus atuais titulares, sorteados entre as fa-mílias indígenas falantes do Iatê e participantesdo Ouricuri ainda despossuídas de terras. Poroutro lado, os remanescentes que se conside-ram índios e são assim considerados pela co-munidade Fulniô poderiam preservar a possedos lotes atualmente possuídos, com a condi-ção de seus novos descendentes passarem afreqüentar o Ouricuri.

Situação completamente diversa ficaráconfigurada se a comunidade indígena não es-tiver disposta a abandonar a prática do arren-damento a não-índios. Neste caso, não se pode,com conhecimento de causa, propor a regulari-zação dessa terra indígena de acordo com oart. 231 da CF. Seria preciso, então, em conjun-to com a comunidade Fulniô, estudar uma ou-tra proposta de regularização para sua área,reconhecendo-a, possivelmente, como terra dedomínio indígena. Esse reconhecimento, no en-tanto, não teria o condão, por si só, de legalizara prática do arrendamento, visto o fato já obser-vado da Lei n.º 6.001/73, em vigor, vedar o ar-

rendamento de terras indígenas tout court, in-cluindo aí as dominiais. É verdade que a lei ofaz, de certo modo, inadequadamente: se asterras de domínio são as havidas pelos índiosou comunidades indígenas por intermédio dosmeios admitidos no direito civil, não existe ra-zão para lhes vedar a destinação que mais jul-garem conveniente dar a essa sua proprieda-de. Pela lógica ordinária, essas terras poderi-am, do mesmo modo como foram adquiridas,serem vendidas, permutadas, arrendadas etc.,como quaisquer outras terras particulares.Deve-se observar, de todo modo, que a regula-rização como terra de domínio deveria ser pro-cedida em nome da comunidade indígena comoum todo, e não tomando por base os lotes indi-viduais. Certamente, a regularização dos lotesde forma individualizada traria como conse-qüência imediata o recrudescimento das pres-sões sobre os índios por parte dos moradoresde Águas Belas, reforçando o processo já exis-tente de apropriação dos lotes, tendo como des-fecho previsível o alijamento dos Fulniô de seuterritório tradicional.

Finalmente, observamos que a identifi-cação e delimitação da área da antiga aldeiaFoklassa, constante da programação da Dire-toria de Assuntos Fundiários da FUNAI, deveriaser precedida pelo entendimento com a comu-nidade indígena Fulniô, esclarecendo questõeslegais já mencionadas ao longo deste texto, afim de que os problemas hoje encontrados naTerra Indígena de Águas Belas – em particularo arrendamento – não sejam reproduzidos naárea da Serra dos Cavalos.

A questão fundiária Fulniô, como se vê,é de grande complexidade, reclamando, paraseu encaminhamento, não apenas a atuaçãoda FUNAI, mas também a participação da soci-edade civil e de instituições científicas, comoforma de viabilizar a formulação de uma políticaindigenista conseqüente, voltada para o conjuntodos povos indígenas do Nordeste.

1 Este texto foi preparado para o workshop “Política Indigenistapara o Leste e Nordeste Brasileiros”, promovido pela FUNAI nacidade de Carpina (PE) entre 16 e 21.03.97.

2 Antropólogo/DID/DAF/FUNAI.

3 Antropóloga. Atualmente, consultora Funai/PPTAL.

Page 64: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

4 Etnograficamente, os Fulniô foram caracterizados como umasociedade dividida em cinco clãs, que idealmente mantinham entresi relações de parentesco hierarquizadas. A escolha do cônjuge erasempre extra-clânica e os homens dos clãs-netos deviam tomarmulheres dos clãs-avós (esta última regra não aplicada ao clã demaior hierarquia). Importa somente observar a existência de umacategoria referente a índios de outro grupo (sêtso), como eventual-

mente eram referidos os membros dos clãs de maior e menor hierar-quia, fato que motivou a suposição de que parte dos índios de ÁguasBelas seria constituída por grupos alógenos incorporados à estruturada sociedade Fulniô. Mencionamos o fato apenas para constatar aexistência de uma certa “tradição cultural” de incorporação de indi-víduos estranhos ao próprio grupo indígena, o que explica, talvez, acomplexidade dos processos de identificação étnica entre os Fulniô.

Referências Bibliográficas

DÍAZ, Jorge Hernández. Os Fulni-ô: RelaçõesInterétnicas e de Classe em Águas Belas.Dissertação de Mestrado em Antropologia/UNB, Brasília, 1983.

FERREIRA, Ivson José. Relatório sobre Grupo In-dígena Fulni-ô. Recife, ms., 1996.

MENEZES, Cláudia. Posto Indígena Fulni-ô. Re-latório de Viagem. Brasília, ms., 1993.

Page 65: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

O ARRENDAMENTO COMO UMA FORMA DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS AGRÁRIOS:

O SPI e os Fulniô de Águas Belas

Sidnei Peres

Page 66: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 67: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Introdução

Com a criação do PI Gal. Dantas Barreto– PE, uma nova configuração de forças passoua orientar a distribuição dos recursos fundiáriosem Águas Belas. Ao conseguir impor-se comoporta-voz legal dos Fulniô – o que significavafazer reconhecer a sua competência exclusivaem determinar a indianidade daquele grupo ét-nico – o SPI colocou sob a sua jurisdição osintrusos do antigo aldeamento indígena. Trans-formados em arrendatários do órgão indigenistaoficial, os antigos invasores deixaram de pagarforo à respectiva coletoria estadual. Destemodo, o SPI – por meio de seus representan-tes – passou a intervir na dinâmica de valoriza-ção das terras cedidas pelos governos estadu-ais.

Durante as décadas de 1920 e 1930, oarrendamento de terras indígenas transformou-se em receita para a resolução de conflitos agrá-rios. Deste modo, pretendia-se regularizar/con-trolar as várias formas de organização e valori-zação do espaço em terras reivindicadas porgrupos indígenas, inscrevendo-as em uma sé-rie de procedimentos normativos. Existiam di-versos mecanismos de implementação de talmodelo de ação conciliador (arrendamentos,contratos de extração de madeira, de explora-ção de coqueirais, transferências de arrenda-mento etc.). No âmbito político-administrativo da4a IR, o arrendamento tornou-se o procedimen-to paradigmático de intervenção do SPI no mer-cado fundiário local. Os acontecimentos e a atu-ação do Inspetor Estigarribia, quando instaurou-se o arrendamento de terras indígenas no PIGal. Dantas Barreto, adquiriram um valor sim-bólico considerável, tornando-se pontos de re-ferência modelares para a ação posterior de fun-cionários do SPI nos postos indígenas do Nor-deste.

O arrendamento no PI Gal. Dantas Barreto

Em 1924 foi criado o Posto Indígena Gal.Dantas Barreto (como passou a se chamar aunidade de assistência aos Fulniô), e no anoseguinte – mais precisamente em 01/07/1925– implantou-se o arrendamento das terras indí-genas. A inspetoria do SPI em Pernambuco pro-curou afirmar a sua autoridade sobre o acessoaos recursos fundiários existentes no posto aodeterminar a suspensão da extração de madei-ra e a limitação dos arrendamentos aos terre-nos pastoris e culturais, vetando os arrendamen-tos das áreas de vestimenta de madeira de lei,de consumo e renda exclusiva do posto. A linhade intervenção nos conflitos agrários locais aci-onada pelo encarregado do posto traduziu-seem estratégias de confronto com personagensdominantes no cenário social regional. Nestesentido, o Inspetor Jacobina decidiu implementara desapropriação dos terrenos desprovidos debenfeitorias. Entretanto, as pressões exercidassobre a diretoria do SPI surtiram efeito: o Inspe-tor Estigarribia ficou encarregado de averiguaras irregularidades existentes na inspetoria dePernambuco, e foram suspensas as funções eatos da administração Jacobina. O encarrega-do do posto do SPI em Águas Belas, desde asua fundação, foi transferido para a povoaçãoindígena de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul,em 28/08/1928.

O Engenheiro Antonio Martins ViannaEstigarribia foi nomeado para promover as ba-ses de um acordo sobre as terras do antigoaldeamento do Ipanema, junto ao governo dePernambuco, em 20/04/1928. Neste momentoEstigarribia já havia acumulado um considerá-vel capital simbólico, que lhe proporcionavagrande autoridade no circuito político de exercí-cio da prática indigenista. Sua competência jáera amplamente reconhecida nas instâncias su-

O ARRENDAMENTO COMO UMA FORMA DE MEDIAÇÃO

DE CONFLITOS AGRÁRIOS:

O SPI e os Fulniô de Águas Belas

Sidnei Peres1

Page 68: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

periores do SPI, principalmente em relação àregularização da ocupação fundiária de popula-ções sertanejas em área indígena, demonstra-da quando dirigia a Inspetoria de MG, ES e BAna década anterior. O acordo foi firmado, emlinhas gerais, segundo os termos da propostaelaborada pelo ministro da agricultura, econsubstanciada no Ato 637, de 20/07/1928 doGoverno de Pernambuco.

Pretendia-se, assim, estender a malha tu-telar do SPI à população sertaneja ao instituir-se a figura do arrendatário, e o endividamentoconstituiria uma fonte de recursos econômicose políticos fundamentais nas mãos dos chefesde posto em face de índios e foreiros. Estabele-ceu-se, assim, um novo padrão de açãoindigenista, no qual o SPI atuou como principalagência mediadora dos conflitos agrários ecomo instância distribuidora dos recursosfundiários a partir do reconhecimento oficial degrupos e terras indígenas. O arrendamentoemergiu como procedimento predominante deoperacionalização de tal estratégia, porém co-existiu com outros expedientes utilizados paraimplementar a regularização fundiária em uni-dades territoriais indigenistas; os contratos deextração de recursos florestais (madeiras,côcos etc.).

Sendo assim, importava ao SPI encenara sua condição de sujeito privilegiado da ordemagrária no PI Gal. Dantas Barreto. Uma equipepermanente foi montada para refazer os limitesdos lotes arrendados (reavivando as picadasentre os lotes, repondo os marcos e mediçãodas áreas sob arrendamento), anteriormente es-tabelecidos conforme as declarações dos pró-prios arrendatários. Até 1930 foram refeitas asmedições e o balizamento de 67 lotes, medi-das 1.858 ha. de áreas arrendadas e feitos 120km de picadas. Por outro lado, a organizaçãodo posto indígena implicava uma série de pro-cedimentos de controle das relações desenvol-vidas entre índios e não-índios. Neste sentido,Estigarribia sugeriu a formação de um aparatopolicial, formado por índios de confiança, paramanter a disciplina na aldeia, e também em si-tuações de contato com civilizados, como porexemplo nas feiras. Nesta situação, buscar-se-

ia a cooperação do delegado de polícia local e aação seria comandada por um funcionário doposto. Um índio seria escolhido, semanalmen-te ou mensalmente, para responder pelas ativi-dades da polícia, para evitar desordens, prosti-tuição, alcoolismo e jogatina.

Portanto, o órgão indigenista seria umaempresa moralizadora, que libertaria os índiosdas trevas inerentes a sua vida inconstante, tra-zendo-os para a luz da civilização, por meio dainculcação de hábitos de trabalho sistemáticos.Para tanto o SPI ensinaria as melhores técni-cas agrícolas e pecuárias, forneceria semen-tes e ferramentas. Cada membro da comuni-dade indígena deveria ter sua roça, a qual culti-varia sob a vigilância dos funcionários do posto.Em contrapartida, se o índio não beneficiasseseu lote no prazo máximo de um ano, suas ter-ras seriam transferidas a outro índio. Segundoesta lógica colonizadora, o índio é objetivado –assim como o trabalhador nacional nos centrosagrícolas, o colono em núcleos coloniais esta-duais e federais, ou até o arrendatário nos pos-tos indígenas – como fator de valorização/na-cionalização do espaço. Na medida em que elenão cumprisse tal função, perderia o sentido –do ponto de vista governamental – o seu víncu-lo com a terra. Na medida em que trabalho aquitem um conteúdo moral muito forte, a correçãodos hábitos (racionalização) na relação homem-homem e na relação homem-terra correspondea duas faces da mesma moeda da coloniza-ção/moralização do sertão.

Por outro lado, à medida que o posto indí-gena foi-se consolidando como um elementoimportante de estruturação do contexto socialda região, tornou-se objeto de interesse de per-sonagens do cenário social local, em vista dosrendimentos políticos e econômicos que pro-porcionava. Além da oposição frontal à atuaçãodo SPI em Águas Belas, uma outra linha de açãofoi delineada por elementos integrantes ou liga-dos à elite política do município: a ocupação docargo de encarregado de posto, a partir de liga-ções com autoridades situadas em posições-chave do Estado brasileiro. Constata-se, então,o paradoxo inerente ao próprio modelo de açãoindigenista no qual foi gerado o arrendamento,

Page 69: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

que resulta em duas possíveis linhas de condu-ta supostamente opostas. Na medida em queele institui os postos indígenas como agênciasmediadoras dos conflitos agrários, o encar-regado – assim como o inspetor – insere-seno contexto interacional local ressaltando o seunão-pertencimento/envolvimento, a sua origemexterna. O agente indigenista procura identifi-car-se por meio de uma atitude dedistanciamento ante os interesses e forças so-ciais locais – inclusive indígenas, pois o tutoratribui-se a tarefa de conduzir o destino do tute-lado. A preservação da condição de estrangeiroseria fundamental na constituição da ética im-plícita que orientaria a conduta do funcionáriodo SPI, cuja intervenção deveria salientar umapresença afirmada enquanto ausência. Ao con-trário, as decisões emitidas pela diretoria do SPItraduziriam uma ausência que se faz presente,configurando à distância uma realidade especí-fica. Por outro lado, na medida em que nestemodelo de ação indigenista os postos são con-cebidos como instância distribuidora dos recur-sos fundiários existentes em terras indígenas,o encarregado assume uma importância políti-ca substancial diante dos atores da malha so-cial local. O monopólio sobre a gestão dos bense serviços públicos inerentes à administraçãode postos indígenas – passíveis de serem es-tendidos a populações não-indígenas – incor-pora neste modelo a possibilidade de sua utili-zação para estabelecer alianças com persona-gens eminentes do circuito político municipal.

A questão dos arrendamentos nas terrasdo posto Gal. Dantas Barreto passou a ser tra-tada a partir de um ângulo diferente, dentro doSPI, na primeira metade da década de 40. Naposição manifestada antes em relatórios sobresindicâncias e inspeções, os arrendamentoscombatidos eram aqueles classificados comoirregulares, isto é, aqueles que foram efetuadosde uma forma não-controlada pelo órgãoindigenista (sem o conhecimento da direção)ou que fugia ao seu domínio (descumprimentodas cláusulas do contrato). No período aqui de-lineado, o arrendamento em si mesmo passa aser considerado como nocivo à “existência eao desenvolvimento econômico e moral dos índi-

os”. Em relatório sobre os trabalhos executa-dos no Posto Indígena de Águas Belas, duranteo ano de 1944, o Encarregado Tubal FialhoVianna afirmou que os arrendamentos represen-tavam “um entrave à emancipação econômicae social dos remanescentes Carnijós”. Tubalsugeriu, então, à diretoria, a distribuição de umsuprimento específico para indenizar asbenfeitorias dos arrendatários, a fim de deso-cupar gradativamente os lotes arrendados. Ébom lembrar que desde o início dos anos 40 jáestava ocorrendo um processo de retirada dearrendatários no posto Paraguaçu, no municí-pio de Itabuna, sul da Bahia. Parece que tal pro-posta tornou-se hegemônica, quando a direçãodo SPI decidiu aprovar o Plano de Extinção deForeiros, mediante indenização pelas rendas in-ternas dos postos, em 1949.

A ampliação de tensões, decorrente dosarrendamentos, foi-se tornando insustentávelpara alguns funcionários do SPI, que passarama defender uma outra alternativa para resolveros problemas existentes nos postos indígenas:a redução da área indígena, liberando desta for-ma as terras ocupadas por sitiantes não-índi-os. Este modelo de ação – fortemente investidode argumentos jurídicos – enfatiza a idéia deaproveitamento ou valorização dos recursosexistentes nas terras indígenas, onde a antigüi-dade da ocupação opera como fator adicionalde legitimação de demandas por terra. Segun-do esta lógica, a ausência de meios documen-tais de comprovação de um vínculo pretéritoentre os remanescentes indígenas e as terraspor eles reivindicadas inviabilizava qualquer ten-tativa conseqüente do órgão de recuperá-las.Tal atitude reforça a estratégia peculiar das eli-tes fundiárias brasileiras, que consiste em pro-duzir uma série de registros (pagamento de im-postos, arrendamentos, transferências etc.)sobre o terreno ocupado a fim de reunir instru-mentos legais que garantam os direitos sobretal apropriação. O resultado é uma trama tãointrincada de títulos que se torna difícil o seuquestionamento jurídico. Este modelo de açãovigorou como padrão de criação de terras indí-genas no âmbito político-administrativo da 4a

Inspetoria Regional (IR 4), desde meados dosanos 40.

Page 70: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Conclusão

Na década de vinte, o modelo de ação econtrole de recursos fundiários (atualizado apartir da criação de terras indígenas), vigentena década anterior no âmbito da inspetoria daBA, MG e ES, constituiu-se em dispositivo deresolução de conflitos agrários, de controle depopulações não-indígenas estabelecidas emterras reivindicadas por índios. A colonização,entretanto, não deixou de constituir um dos ele-mentos da intervenção indigenista, pois estaincluía também uma série de instrumentosnormativos que procuravam orientar a produ-ção do espaço agrário. Esta dimensão do tra-balho de representação exercido pelo SPI pre-dominou nas chamadas zonas pioneiras, ondeas tarefas de povoamento e integração territorialsão privilegiadas pelos inspetores desta agên-cia estatal. Aqui tratam-se de regiões que já so-freram fluxos de colonização passados, masque não são caracterizadas por uma saturaçãoda reserva de recursos fundiários disponíveis(livres), e sim por uma intrincada trama de di-reitos territoriais, muitas vezes justapostos econflitantes. Em outros termos, o quadro aci-ma descrito, em linhas gerais, é marcado pelaexistência de uma gama considerável de recur-sos fechados, cujo acesso é disputado por meioda utilização de instrumentos políticos ou jurídi-cos e por intensos processos de concentraçãode terras.

Por outro lado, a liberação de terras tam-bém continuou presente no horizonte projetadopor este padrão conciliador de atuação, pois osacordos firmados para a cessão das terrasmencionavam a possibilidade futura de retornoao patrimônio estadual, caso o SPI interrompes-se suas atividades junto ao grupo indígena be-neficiado. Não obstante, estes dois fatores es-truturais da ação indigenista estão subordina-dos à perspectiva segundo a qual os postos in-dígenas constituem-se em instâncias de medi-ação de conflitos agrários e distribuição de re-cursos fundiários. O arrendamento de lotes deterras em área indígena emergiu, então, comoprocedimento paradigmático de negociaçãocom autoridades governamentais estaduais.

A estratégia posta em jogo consistia emcolocar sob a tutela do órgão os processos deorganização do espaço e utilização dos recur-sos fundiários na área indígena. Submeter osarrendatários sob uma fina teia de controles, e,ao mesmo tempo, constituí-los em considerá-vel fonte de renda. O posto indígena estava des-tinado à colonização e à valorização do espaçosob sua jurisdição. Se levado às suas últimasconseqüências, tal projeto conduziria a uma es-tabilização da situação fundiária nos postos in-dígenas, sob pleno controle do SPI. Porém, efe-tivamente, a sua aplicação intermitente era umacondição fundamental para a sua reproduçãoampliada, ou seja, a transformação constantede novos invasores em futuros arrendatários.Ou seja, neste caso, a fraqueza da agênciaindigenista era a sua força. Ao institucionalizaro modelo de ação colonizador em contextos emque os recursos fundiários já haviam sido imo-bilizados – em alguns casos por diferentes ato-res – por meio de uma série de mecanismospolíticos que envolviam o reconhecimento do Es-tado, a agência indigenista assumiu concreta-mente a tarefa de mediar conflitos agrários econtrolar a distribuição de recursos em terrasindígenas.

Tal modalidade de ação tinha, portanto,um caráter ambíguo. Ao mesmo tempo em quelegalizava, por meio de uma solução extra-jurí-dica, as demandas fundiárias dos ocupantes,por outro lado, visava a induzi-los a reconhecer– por meio de formalização de um acordo – asprerrogativas do SPI ante a ordenação do es-paço agrário e a preeminência dos direitos indí-genas sobre os terrenos em litígio. Porém, ape-sar de preservar a integridade formal do territó-rio indígena, o acesso e controle plenos aos re-cursos nele existentes encontravam-seinviabilizados para os índios.

Essa disposição geral em legalizar ilega-lidades – inerente ao modelo de ação concilia-dor e que articula critérios de ordem moral, po-lítica e econômica para legitimar-se – serviacomo instrumento de negociação dos recursosexistentes em áreas indígenas, monopolizadopelos chefes de posto e inspetores do SPI. Por

Page 71: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

outro lado, criava as condições para a perpetu-ação deste modelo de ação, pois gerava a pers-pectiva de novas regularizações, estimulando,assim, as constantes apropriações de áreasnão-arrendadas. Tal fato pode ser ilustrado pormeio dos periódicos atos de regularização dasituação dos ocupantes, implementados em di-versos postos do Nordeste, e das várias con-cessões de aumento de áreas arrendadas emi-tidas pelos encarregados. Tais procedimentostornaram-se freqüentes para legalizar tanto aentrada de novos ocupantes quanto as incor-

porações de novas terras por arrendatários an-tigos. Sendo assim, a linha de ação conciliado-ra constituía um círculo vicioso no qual as inva-sões de terras e as medidas de regularizaçãofundiária implementadas nos postos indígenasalimentavam-se reciprocamente. O pesado apa-rato normativo que se pretendia impor aos ar-rendatários e o precário e esporádicomonitoramento exercido pelo órgão indigenistasobre os procedimentos de arrendamento eramas duas faces de uma mesma moeda: a da ló-gica paradoxal da mediação de conflitos.

1 Professor da Universidade Federal Fluminense.

Page 72: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 73: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

UMA ETNOGRAFIA PARA UM CASO DE RESISTÊNCIA:O Ético e o Étnico

Miguel Foti

Page 74: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 75: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

A religião Fulniô é segredo, sob vigilânciaincontinente. Querer enxergar esses índios peloângulo da sua resistência religiosa (um fato to-tal, porque expressa a resistência em outros ní-veis) é se defrontar com questões do tipo: “porque conhecer”, “com que propósito” e “até ondese pode fazê-lo”? O importante, inicialmente, édeixar marcado que são eles mesmos, osFulniô, que colocam essas questões. Isto podeser descrito como uma alusão às nossas fra-quezas.

Há uma “grande discussão”, filosófica eantropológica, a exibir o lado provisório e parci-al de qualquer análise ou interpretações de rea-lidades culturais2. Essa discussão indica quenão há fundação segura para o saber de umacultura, a única onde os intelectuais intentamconhecer as outras, quando estes se propõema fazê-lo intimamente e sem deformações.Pode-se considerar “grande” demais a discus-são sobre as implicações últimas desse sabere desposar a tradição, escolhendo objetos depesquisa bem comportados, apropriáveis.Pode-se, outras vezes, construir objetos quenos atiram ao rosto esse tipo de indagações,uma provocação do campo. Os Fulniô, que fre-qüentam os brancos, têm para si que o conhe-cimento que estes últimos querem ter resultainútil e às vezes nocivo. Circula na aldeia umaclara indisposição quanto aos livros que os bran-cos escreveram e eles leram. Pelo que se podeapreender, é o tom científico, nos escritos quefalam das coisas do Ouricuri, o que os chocamais. “– Não sabe mas tá escrito que sabe”, ovelho Joventino declara, percebendo algo quepara nós deveria ser norteador: que um saberimobiliza o outro, no processo da intelecção purae simples dos sentidos da experiência, sobre-tudo a religiosa. Mais que de resguardo, ou tão-somente de vingança, a atitude dos Fulniô é desuspeita e recusa, como se estivessem a sina-

lizar: “ciência aqui não”. “O sr. vai ‘especular’?”alguém perguntou literalmente.

Os Fulniô, eles mesmos, questionam oporquê de estarmos ali e o valor do que estamosfazendo. Um objeto de estudo como o escolhi-do já está predisposto a indagações desse tipo.Não é à “grande discussão”, há pouco mencio-nada, que objetivamos, mas àquilo que enxer-gamos como uma conseqüência prática possí-vel: assumir o trabalho nos limites de uma ex-periência com um texto etnográfico, sobre o queé necessário algumas colocações.

“Os Fulniô assim o pedem”, precisa ser atônica de um trabalho que envolve o segredo. Osegredo pede um limite ético claro: não é coisaque se viole. O primeiro passo em direção a eleé, portanto, a escolha de um meio ético. Trata-se de um objeto ironicamente rebelde às for-mas usuais, ou mais tradicionais, ou maisprestigiadas de investigação e conhecimento.Estas requerem um tipo de cooperação dosdados que exigiria transformar o sagrado eminformação, o que os Fulniô não autorizam. Masrebelde também enquanto problema, pois obri-garia a deixar sempre, no fundo de qualquer in-terpretação, perguntas, pela fé que nós bran-cos depositamos no valor do nosso conheci-mento, pela justificação das suas finalidades,e, acima de tudo, pela sua capacidade de al-cançar um outro conhecimento, que se firmaem outro registro.

Tendo como chão o provisório e o parcial,o que se tem a fazer é assumi-los menos ouassumi-los mais. A opção pela etnografia (v.Geertz, 1978,1989), ou, mais precisamente,pela instância do trabalho etnográfico ligada àexperiência de campo, e a opção por umaetnografia que persegue uma “individualidadehistórica” (cf. Weber, 1904) – que um sujeito deconhecimento constrói – já é, na base, conse-

UMA ETNOGRAFIA PARA UM CASO DE RESISTÊNCIA:

O Ético e o Étnico

Miguel Foti1

Page 76: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

qüência de uma posição nesse “grande proble-ma”. Mas é também, no caso, uma exigênciaexterna, isto é, daquela porção da realidade quefoi selecionada, acentuada, colocada num cer-to foco por tal sujeito. Tal porção carece de umaleitura informada por um ponto de vista declara-do, apoiada pelos sujeitos a que se dirige. A idéiade resistência foi aprovada pelos Fulniô, comoum eixo comum em que se pode apoiar a tra-dução de um significado possível, compatívelcom a experiência religiosa própria do grupo,um significado que emerge já nas aparências(por exemplo, no gosto manifesto em viver co-letivamente em segredo).

A construção da realidade (individual, his-tórica) obedece a um interesse à aceitação ex-plícita de um valor. Mais especificamente, uminteresse (político, do autor e dos Fulniô), emler o objeto como resistência, e um valor-resis-tência. A resistência não existe como um abso-luto, ela existe em meio a uma totalidade confu-sa, anárquica, que inclui até mesmo a não-re-sistência. Ela pode ser vista como uma elabo-ração ideal dos sujeitos Fulniô que se imiscuina sua prática social e interfere em sua ordena-ção, a ser resgatada por um outro sujeito. Elacorresponde a uma noção que entra na produ-ção do ritual e o traduz para o investigador bran-co. Diante deste, ela é quase um grito na gar-ganta.

A opção pela etnografia precisa, ainda, nocaso, ser radical, já que o objeto abordado temuma especial rebeldia, ele adora se esconder.Porque os Fulniô, em tese, dão à sua resistên-cia a forma de ocultação, tal radicalidade é ne-cessária. Pelo fato de que só ela, a etnografia,permite considerar um objeto escondido aindacomo um objeto. Radical no sentido de, naquiloque busca, ser necessário expor o seu visceral,assumir-se como “grafia”, como texto ou, maisalém, como discurso.

Os etnógrafos que seguiram esse cami-nho já expuseram algumas implicações de suaprática, já levantaram determinadosquestionamentos que se desdobram a partirdela, muitos dos quais pulsam no tipo de con-fronto com o mundo dos Fulniô a que somos

conduzidos a escrever sobre ele. Quais são,como configuram uma concepção de etnografiae como se aplicam ao escrever sobre a resis-tência é algo que é preciso expor.

Há muito a trabalhar no estudo da resis-tência religiosa desses índios, ou melhor, have-ria muito a trabalhar. Modelos teóricos como osde ritual poderiam ser acionados e se benefici-ariam desse trabalho, certamente forneceriaminterpretações penetrantes. Nada, em princípio,impediria escolher um destes modelos e fazê-lo fecundar e ampliar possibilidadesinterpretativas, ao mesmo tempo trabalhando-se um discurso, assumindo-o e refletindo so-bre as condições de sua produção. Contudo,os Fulniô, embora queiram ser vistos, não que-rem ser estudados, molesta-os ver sua experi-ência envolvida num metadiscurso qualquer,principalmente o do branco. Nenhummetadiscurso, ou interpretação de qualquer tipo,traduziria algo do sentido profundo que lhes co-munica a experiência, pelo caminho de umapura busca de intelecção, exatamente daquiloque, quando se apresenta no contexto da expe-riência, a faz cessar. Tal intenção, além do mais,estaria unicamente apoiada num outro mito, istoé, num “texto” que “acredita” na possibilidadedo resgate do “sentido” no plano da ideação.Os Fulniô sentiriam-se agredidos em ver trans-formados em conceitos certos elementos deuma experiência ritual genuína, cujo sentido re-aliza-se nela própria.

O aspecto principal da escrita sobre osFulniô não está tanto na instância doenfrentamento dos dados de campo quanto nascondições de obtenção destes dados, as quaisenvolvem a experiência do pesquisador de talforma que colocam nela o centro do problema.O discurso é o meio de resgatar o que é dadoquase que tão-somente por intermédio dessaexperiência. Esta circunstância torna relevantemarcar a presença e a posição do pesquisa-dor, torna especialmente necessário “etnografar-se junto”. Os Fulniô fazem ficar vivo este pontoda crítica etnográfica (v. Clifford & Marcus,1986). Outros pontos, encontrados ao longo dostrabalhos dessa frente crítica, impõem-se tam-bém como uma demanda premente do campoFulniô.

Page 77: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Um desses pontos é a questão do con-texto da dominação e das relações de podersubliminares ao trabalho etnográfico. Entre osFulniô não há como disfarçar o poder de que oescritor se investe. “Antropólogo”, para eles (fo-mos apresentados sob tal rubrica quando nosconhecemos na Funai em Recife), significa al-guém do time de Estevão Pinto, que muitos alijá leram ou folhearam e com o qual se zanga-ram, alguém que, não admitem, saiba “o princi-pal”. 3 Esse alguém, portanto, não deve ser osenhor absoluto de instrumentos como o gra-vador e a caneta. Mais ainda, com o segredo,fazem da autoridade científica uma arrogânciainsuportável e pedem compromisso ao visitan-te. Este último, entre os Fulniô, não é um típicoBwana, nem um tipo exótico que os diverte, masalguém que deve justificar a sua presença, umavez que escreve e, portanto, representa o peri-go da publicidade. O que escrever sobre a re-sistência religiosa dos Fulniô tem de se resol-ver num equacionamento político que, antes detudo, implica, no caso, fazer uso dos meios deque dispomos de uma maneira autorizada pe-los Fulniô.

Ligados a este ponto, há dois outros tam-bém comuns à crítica etnográfica: como nãopromover os informantes à condição de co-au-tores do texto? E como dissociar o perigoso au-tor, na instância da narração, no texto, diantedesse fato?

O compromisso que pedem é, em primei-ra mão, político, por se tratar, o investigador, dealguém que vai falar deles para outros, que vaitraficar com eles no mundo dos kla’í e que, afi-nal de contas, vai obter um ganho. Mas, aindaquanto a este último aspecto, é inconcebível queo autor, que se vê obrigado a reconhecer verda-des de conteúdo ético, amarrando, na base, oseu escrito, não lhes dê nada em troca, não secomprometa ao menos com os limites do“etnos” e com o “étnico” no grupo. Os Fulniôtêm uma concepção de troca com os brancosem que dinheiro e favores não são cercadospela mesma austeridade que possuem no mer-cado de Águas Belas. O favor é, normalmente,diante de um branco “dotô”, encarado como um

contrapagamento, em função dos prejuízos cau-sados por todos os brancos. Sua ausência, numvisitante branco que veio em busca de umganho, causa sempre estranheza. Cobraramprontamente, por exemplo, uma intervenção emnível de Funai na exumação da sua “questãoterritorial”, para efeito de correção e ampliaçãodos limites da área indígena oficial. Mas há umaoutra cobrança, também direta: já que o pes-quisador “viu mas não viu” o narrador, noescrito,deve “dizer mas não dizer”. Cobrançadireta, pois eles lembram dela a todo momento.

A inserção em campo, os valores ético-políticos, a necessidade da presença donarrador tornam necessário o acento sobre a“grafia”, na aproximação etnográfica. Neste as-pecto, conta-se com a possibilidade dedirecionamento da capacidade evocativa do dis-curso, por meio de certo uso do recursoestilístico. Este caminho permite tentar abrigar– lembrando a expressão de Malinowski – um“imponderável” da vida do grupo e nos joga maisna direção da experiência. Por outro lado, per-mite “abrir” a mensagem final, i.e., o “ético” e o“étnico” da resistência, a possibilidade de dife-rentes captações pelos sujeitos leitores, na me-dida em que se coloca claramente como ascores dadas por um sujeito-narrador e não omiteo fato.

O recurso ao aspecto estético do discur-so é uma chave com a qual se intenta expres-sar uma certa vocação totalizadora do detalhe,que um certo observador observa, mais do quealgo puramente ornamental. O estilo daria opoder de chamar, autor, leitor e índios, a co-participarem de uma “fantasia” (cf. Tyler, 1986),mais precisamente, de um realismo fantástico,por ter o poder de provocar e convocar, além deevocar. Sua direção precisaria ser o compro-misso de não trair os Fulniô, enquanto donosdo seu texto, compromisso desdobrado no com-promisso de não trair nem os Fulniô nem osleitores no plano formal. Trata-se, em suma, deum recurso comprometido com o que os Fulniôpermitem que seja escrito. No texto de Resis-tência e Segredo, limitado pela sensibilidade donarrador, o recurso narrativo quis ser uma com-pensação por um tipo de penetração subjetiva,

Page 78: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

da falta de uma tão sonhada riqueza de dadose conseqüente riqueza interpretativa, que tal-vez nos teriam conduzido a outros tipos decompreensão da resistência.

O elemento fantasia, alicerçado numresgate fragmentário do empírico, mas sem-pre referido a uma totalidade real, captada pelonarrador, exibe, não uma mentira, evidente-mente, mas a opção por deixar o real do textoguardar uma distância maleável em relaçãoao real inatingível do mundo. Isto por um con-

vite lúdico à manipulação com o tempo, porexemplo, no que na estilística cinematográfi-ca chamou-se “diegese” (Metz, 1980), na “edi-ção”. Aqui também os Fulniô “pedem” que seconceba etnografia de forma a não violá-losem sua reticência, no seu “tom afetivo”, se-gundo a caracterização de “ethos” dada porBateson (1958), que se a conceba, por exem-plo, como uma terapêutica do ponto de vista.Nada se sabe sobre os Fulniô-ti, os “verdadei-ros”; isso é melancólico e talvez seja este oúnico motivo para exercitar nossas glosas.

1 Mestre em Antropologia pela UnB.

2 Sem entrar nela, limitamo-nos a citar, por exemplo, as refle-xões de Bernstein (Bernstein, 1983) ou o quadro das posições daantropologia traçado por R. C. de Oliveira (Oliveira, 1988).

3 V. Pinto, 1957.

Bibliografia

BATESON, Gregory. Naven. Stanford University.Press, Stanford, 1958.

BERNSTEIN, Richard J. Beyond Objectivism andRelativism: Science, Hermeneutics andPraxis. University of Pennsylvania. Press,Philadelphia, 1983.

CLIFFORD, James and George E. Marcus ed.Writing Culture, The Poetics and Politics ofEthnography. University of California. Press,Berkeley, Los Angeles, London, 1986.

GEERTZ, Clifford.“A Interpretação das Culturas.”Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1978. El Antropó-logo como Autor. Ed. Paidos, Barcelona, 1989.

METZ, Christian. A Significação no Cinema. Ed.Perspectiva, São Paulo, 1980.

OLIVEIRA, Roberto C. de. A Categoria de(Des)Ordem e a Pós-Modernidade da An-tropologia. Anuário Antropológico/86, Ed. Uni-versidade de Brasília/Tempo Brasileiro, Brasília,1988.

PINTO, Estevão. Etnologia Brasileira. (Fulniô -Os Últimos Tapuias). Companhia Editora Na-cional, São Paulo, 1956.

TYLER, Stephen A. Post-Modern Ethnography:From Document of the Occult to OccultDocument. In: Clifford & Marcus, op. cit.

WEBER, Max. Ensayos sobre Metodologia So-ciológica. Amorrortu Editores, Buenos Aires,1978.

Page 79: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

O �CASO KIRIRI�

Sheila Brasileiro

Page 80: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 81: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Muitos grupos indígenas queperambulavam pela região Nordeste do Brasiltiveram, no decurso dos diversos momentoshistóricos e pressões de toda ordem que pon-tuaram uma relação de cerca de três séculoscom a sociedade regional, a sua condição etni-camente diferenciada diluída. De alguns destesgrupos só guardamos hoje parcos testemunhose, ainda assim, de uma existência sempre refe-rida a um passado efêmero, não-atualizado. Ou-tros lograriam, a partir da segunda metade doséculo XX, reemergir como segmento étnico,no bojo de processos de reestruturação sócio-organizativos engendrados geralmente em si-tuações de renovadas pressões fundiárias, earticulados, por um lado, a um contexto delegitimação formal mais favorável e, por outro,à mediação de antropólogos e organizações dasociedade civil interessados na história e no des-tino dos povos indígenas.

Entre os índios kiriri, localizados no nortedo estado da Bahia, nos atuais municípios deBanzaê e Quijingue, esta “linha” étnica divisóriapermaneceria sempre viva, ainda que nãoinalterada, ao menos no âmbito do campointersocietário instituído quando do seualdeamento por jesuítas, em fins do século XVII.

Como em outras aldeias na região, tam-bém a de Saco de Morcegos, que reuniu os Kiririda língua kipeá que habitavam o sertão nordes-te do que é hoje o estado da Bahia, seria atingi-da pelas compulsões e disputas decorrentesda expansão da pecuária, comandada pelos se-nhores da Casa da Torre, sesmeiros de umamuito ampla extensão de terras.

Como se sabe, como forma encontradapara solucionar os conflitos referidos recorren-temente pelos jesuítas entre a Casa da Torre ea administração das aldeias na região, em 1700o rei de Portugal destinaria, mediante expedi-ção de um alvará, uma légua em quadra de ter-

ras a todas as aldeias missionárias dos ser-tões com mais de cem casais. Saco dos Mor-cegos, que contava à época com uma popula-ção estimada em 700 habitantes (Leite, 1945),também seria contemplada.

Menos de um século após a sua criação,a aldeia de Saco dos Morcegos seria elevada avila e ocupada progressivamente por segmen-tos camponeses depauperados, repelidos pelapecuária das áreas mais férteis do agreste. Oquadro de perseguições e desmandos adminis-trativos que dominou a cena no século XIX ecaracterizou a ação dos diretores de índios, fun-cionários geralmente ligados a interesses locais,agravar-se-ia, entretanto, ainda mais, com aextinção dessa Diretoria. Como conseqüência,durante os próximos cinqüenta anos os Kiriri nãoencontrariam qualquer eco oficial à sua condi-ção de etnia diferenciada.

Durante todo esse período, pode-se su-por que boa parte das terras da antiga aldeia deSaco dos Morcegos – os 12.300 ha. que com-preendem a légua em quadra – tenha sido ne-gociada, sob diversas formas, pelos própriosíndios, constrangidos por uma situação de mi-séria e abandono, e mesmo grilada pura e sim-plesmente por posseiros e pequenos fazendei-ros. Desse modo, gradualmente, a populaçãokiriri se dispersaria a partir do seu núcleo cen-tral, renomeado como vila de Mirandela, pas-sando a ocupar, em seu entorno, pequenos ni-chos pouco atrativos, assim, pois, viáveis à suainstalação.

Apenas em meados do século XX, pres-sionados pelas constantes intrusões de possei-ros regionais nas suas já exíguas áreas de ocu-pação, os Kiriri reivindicariam mais enfaticamen-te a assistência do então Serviço de Proteçãoao Índio (SPI) e o reconhecimento do direito àlégua em quadra.

O �CASO KIRIRI�

Sheila Brasileiro1

Page 82: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

A presença do órgão tutelar na Terra Kiriri,efetivada com a criação de um Posto Indígenano ano de 1949, a despeito do enfoquepaternalista assumido por seus encarregadose do âmbito muito restrito de sua atuação, inau-guraria uma nova etapa na situação interétnicaem Mirandela, mediando conflitos entre índios eposseiros e, principalmente, proporcionando aosprimeiros um amparo legal. Contudo, a ques-tão fundiária apenas seria concretamente trata-da a partir dos anos oitenta.

Ao longo das décadas de cinqüenta e ses-senta, a decadência geral do SPI se refletiriaem seu Posto de Mirandela, desaparelhado e,mais que isso, fortemente enfronhado nos me-andros clientelísticos da política regional.

Manipulados política e economicamentepelos encarregados do Posto, a situação dosKiriri é, ainda a essa época, bastante desfavo-rável no contexto regional. A partir da atuaçãode missionários baha’i, iniciada entre esses ín-dios em fins da década de sessenta, os Kiriricompreenderiam que somente no âmbito de ummodelo sócio-organizativo eficaz estariam emcondições de ali negociar uma melhor inserção.A parceria com os baha’i estabeleceria um vín-culo de dependência sócio-religiosa indígena ex-terior ao plano local, facultando-lhes arevitalização de modelos próprios de organiza-ção comunitária e a ascensão de liderançasmais representativas. Vale notar que, no casodessa religião, como no de muitas outras deintrodução recente no Brasil, há um inequívocapredileção por segmentos socialmente margi-nalizados, para os quais a nova identidade reli-giosa constitui, para além dos claros apelossalvacionista e messiânico, um elemento deoposição, ainda que muitas vezes não-explicitado, às camadas dominantes.

A campanha de combate ao alcoolismo,estimulada no contexto dos dogmas da religiãobaha’i, afigurar-se-a aos índios como uma pos-sibilidade de confronto mais simétrico em facedo quadro regional, atenuando-lhes o referencialestereotipado de “índios bêbados e preguiço-sos” (Bandeira, 1972). Isto posto, embora pare-ça ingênuo superestimar o papel da fé baha’i no

processo de organização comunitária Kiriri, e adespeito do modo fragmentário com que seusprincípios seriam absorvidos e mesmo mani-pulados por estes índios, é iniludível o valor dacontribuição, para a construção do povo Kiriri,de aspectos ideológicos advindos desta fé, quese consubstanciariam, inclusive, com a indica-ção, em 1972, de um líder formado nos qua-dros baha’i para o cargo de cacique.

Enquanto isso, no interior do campoindigenista em formação, o cargo de caciquevinha adquirindo novos significados, gestadose difundidos principalmente nas assembléiasparticipativas promovidas pelo ConselhoIndigenista Missionário, que realizava um inten-sivo trabalho de estímulo à mobilização e à cir-culação de informações entre os índios no Nor-deste. Nesses encontros, que transcorriam se-gundo os moldes da linha de atuação popularda Igreja Católica, seriam conformados algunsdos critérios que definiriam a representatividadedos líderes emergentes nos anos seguintes.

Atentas a esse novo contexto, as lideran-ças Kiriri vislumbrariam de imediato a relevân-cia de tentar resgatar e mesmo produzir inter-namente alguns dos traços e valores diacríticosaí destacados como fundamentais à afirmaçãode uma indianidade (Oliveira,1988), tais comoa prática de rituais e a realização de outras ati-vidades coletivas. Os baha’i haviam semeadoelementos de uma moral religiosa orientada àerradicação ou contenção de comportamentostidos como desviantes, como o alcoolismo e oroubo, fontes de deslegitimação étnica. Busca-ram, pois, reforçar nos Kiriri um sentimento desolidariedade que ultrapassasse aqueles obje-tivos circunscritos ao plano individual, criandoas condições para o surgimento de uma per-cepção orientada no sentido da constituição deum grupo. Neste cenário, as lideranças Kiriri sa-beriam bem orquestrar esta passagem do indi-vidual ao coletivo (Bourdieu,1984), inicialmentese articulando no plano interno, fortalecendo ali-anças com lideranças tradicionais, cooptadas,na condição de “conselheiros”, a atuar comoporta-vozes e mediadores de suas comunida-des, seus núcleos de residência.Concomitantemente, essas lideranças se em-

Page 83: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

penhariam na realização de viagens, a fim dese familiarizar com os ditames administrativosda política indigenista oficial, e estreitariam re-lações com outros povos indígenas e com or-ganizações não-governamentais.

Essa reestruturação sociopolítica Kiririseria percebida pelos regionais como uma níti-da ameaça à reprodução da estrutura de su-bordinação vigente. O acirramento da tensãointerétnica seria, nesse contexto, capitalizadopelas lideranças como instrumento políticolegitimador de ações centradas, por um lado,no pleito, pela demarcação e extrusão e, poroutro, em apropriações parciais, efetivas e sim-bólicas do seu território. Para tal fim, contribui-ria uma base institucional antes inexistente, oapoio da FUNAI e de organizações civis como aAssociação Nacional de Ação Indigenista/BA, oCentro de Trabalhos Indigenistas etc.

As sucessivas “retomadas”, divulgadasna imprensa e no campo indigenista de modogeral – Estado, Igreja, ONGs, lideranças indí-genas – trariam prestígio e visibilidade aos Kiriri,sendo apontadas como um exemplo a ser se-guido por outros povos indígenas no Nordeste.A consolidação de uma posição estrategica-mente melhor situada na cena política ensejariacerta reestruturação nas relações do povo Kiriricom o Estado nacional e, notadamente, com oseu principal mediador, o órgão tutelar. Assim,as ações Kiriri com vistas na recomposição dalégua em quadra também se ampliariam no sen-tido de colocar sob seu controle o aparato infra-estrutural da FUNAI na área. Tal fato evidenciauma mudança significativa nas expectativasKiriri com relação às atribuições da FUNAI. Con-seqüência disso é que, doravante, esses índiospassariam a se perceber como gestores do seuterritório, assim como do patrimônio indígenaem geral.

A essa mesma época, buscando ampliaro alcance e a profundidade de suas ações nocampo político, os Kiriri investiriam em alterna-tivas capazes de promover, a curto e médio pra-zo, melhorias em sua qualidade de vida e, as-sim, conseqüentemente, uma relativa autono-mia infra-estrutural. Diversos projetos agrícolas

seriam, sob a supervisão das lideranças e coma intermediação de entidades de apoio, elabo-rados e aprovados pelas agênciasfinanciadoras; programas de formação de pro-fessores indígenas seriam implementados naárea e, pela primeira vez, a FUNAI, por meio daatuação combativa e da marcada independên-cia política de um chefe de posto, opernambucano Gilvan Cavalcanti – que perma-neceria entre esses índios entre 1976 a 1983 –respaldaria as suas iniciativas, inclusive comvistas na obtenção da posse do território. Gilvanestimularia e mesmo subsidiaria as “retoma-das”; mais do que isso, encetaria esforços nosentido de efetivar o processo de regularizaçãoda Terra Indígena Kiriri. A sua atuação contribui-ria, pois, para assegurar aos índios o necessá-rio apoio oficial à condução do pleitodemarcatório.

Essa nova estratégia de mobilização ado-tada pelos Kiriri – tanto em nível interno quantode opinião pública, seria, nessa fase, bem-su-cedida, já que no início de 1981 o órgão tutelardemarcaria a terra indígena, reconstituindo comexatidão a “légua em quadra”. Após concluído oprocesso demarcatório, cabia então à FUNAI ca-dastrar, indenizar e retirar os seus ocupantesnão-indígenas. Seguindo uma prática comumde transferir tarefas, pulverizando os ônus polí-tico, o órgão tutelar firmaria, em 1982, convêniocom o Instituto de Terras da Bahia, para a reali-zação dos levantamentos necessários. Em anoeleitoral e diante da apreensão e pressões dasfamílias de posseiros ali incidentes, o INTERBA,fugindo à sua esfera de competência, dedicar-se-ia a questionar a extensão do território Kiriri,tentando fundamentar uma vaga pretensão des-ses ocupantes de que o seu raio de abrangênciase estenderia por apenas meia légua em tornodo centro da área, o que a reduziria a menos deum terço (Reesink, 1984).

Levantada a polêmica, e com a conivên-cia do governo estadual à contestação dos pos-seiros, instaurar-se-ia uma longa discussãoentre os diversos segmentos políticos envolvi-dos no caso e, pior que isso, sobreviriam agu-dos conflitos entre as partes, os quais mar-

Page 84: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

cariam os cinco anos subseqüentes. Ao acirra-mento de ânimos por parte dos posseiros, osKiriri responderiam com a ocupação da Picos,maior fazenda instalada no interior da terra indí-gena, exigindo da FUNAI a sua imediata indeni-zação. A ampla divulgação do fato – ocorrido naSemana do Índio, em 1983 – e as pressões doBanco Mundial, órgão financiador do ProjetoNordeste – um amplo programa de regulariza-ção fundiária e modernização agrícola, articula-do ao Programa de apoio ao Pequeno Produtor,que condicionaria a execução do mesmo ao en-caminhamento satisfatório das demandas Kiriri– seriam fundamentais para assegurar uma rá-pida liberação dos recursos para a indenização.

O episódio da Picos e as delicadas cir-cunstâncias políticas em que este ocorreu pre-cipitariam, da parte da FUNAI, um controle maisrigoroso e repressivo sobre as ações dos Kiriri,desestimulando francamente a intervenção dasentidades de apoio, expulsas da terra indígena.Por outro lado, o aumento das pressões con-correria para desestabilizar o precário equilíbrioda chefia do Posto Indígena, substituída algumtempo depois, e em especial do próprio caci-que, incomodamente situado entre as pressõesda FUNAI e as demandas da comunidade indí-gena. O processo de mobilização política kiririsofreria, nesse período, um refluxo, fruto de umaradicalização, por parte das lideranças, do con-trole do grupo, o que redundaria no acirramentodas disputas internas e, posteriormente, aliadoa outros fatores, desdobrar-se-ia em umfaccionalismo que seccionaria o grupo em doissegmentos políticos hoje cristalizados.

Nenhum outro “chefe” permaneceria portanto tempo entre os Kiriri quanto GilvanCavalcanti. A sua passagem, associada a umdos períodos mais representativos da históriarecente do grupo, restará, ao que tudo indica,indelevelmente inscrita em sua memória. Cer-ca de uma dezena de encarregados passariambrevemente pelo PI Kiriri após a transferênciade Gilvan. Contudo, nenhum destes se desta-caria em termos de atuação. Isto pode, basica-mente, ser remetido a duas ordens distintas defatores:

– A falência da estrutura administrativo-finan-ceira da FUNAI e o conseqüente distanciamentodas administrações regionais e representaçõeslocais da organização central, localizada emBrasília;

– A consolidação de dois grupos politicamentedistintos na TI Kiriri: as facções.

Sem o respaldo da sede central, os ad-ministradores regionais, assim como os encar-regados dos postos, passariam a não mais dis-por dos meios para responder satisfatoriamen-te às demandas das comunidades indígenas,restando, perante elas, desacreditados. Poroutro lado, o esvaziamento do quadro adminis-trativo, com a suspensão de concursos para aatualização do corpo técnico e de cursos decapacitação, e a não-definição de uma políticade ação indigenista global, redundariam emuma progressiva desqualificação dos “técnicos”que atuavam na “linha de frente” indígena,despreparados para lidar com questões tãocomplexas como aquelas advindas da carên-cia de recursos financeiros do órgão e das dis-putas faccionais. Equilibrar-se-iam, pois, essesservidores, de forma precária, oscilando caoti-camente entre as pretensões dos diversos gru-pos locais de interesse, certamente almejandopermanecer no cargo o tempo requerido paraque a gratificação dele proveniente fosse incor-porada à sua precária remuneração.

Em março de 1995, os Kiriri ocupariam opovoado de Mirandela, centro da Terra Kiriri, re-tirando as cerca de trezentas famílias de regio-nais ali residentes. Até então não havia, por par-te dos posseiros instalados secularmente nes-sa terra indígena e organizados em torno do Sin-dicato de Trabalhadores Rurais da região, qual-quer perspectiva de uma possível transferênciada área. Pelo contrário, demonstravam acredi-tar poder reverter o quadro conflituoso ali esta-belecido desde a década de oitenta e seguir vi-vendo com os Kiriri de forma “pacífica”.

Para além do recrudescimento dos con-flitos interétnicos na área, a ocupação deMirandela, na medida em que realizada por ape-nas um dos segmentos faccionais que com-põem o grupo kiriri, acirrou os conflitos inter-

Page 85: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

nos, redimensionando o conteúdo das relaçõesentre as facções e, ainda que em menor esca-la, ensejando algumas modificações nas ade-sões e lealdades constituídas de parte a parte.

Para que se compreendam as implica-ções desse processo conflituoso que se verifi-ca num contexto de antagonismos centrado emtorno da questão fundiária, em que operam ne-cessariamente duas escalas distintas de moti-vação e interesse definidas, em última análise,pela desigual correlação de forças entre as duasfacções Kiriri, vale ressaltar que os segmentosfaccionais, secundados por seus aliados, vêmadotando perspectivas muito distintas de atua-ção política, divergindo, em especial, quanto ànatureza das ações encetadas em prol da re-conquista do território. Uma dessas facções, li-derada hoje pelo cacique Manuel, vem sendoassistida por setores da Igreja Católica forte-mente engajados no movimento de trabalhado-res rurais na região e que ali viriam a constituirum segundo poder, sua fonte de controle resi-dindo, essencialmente, na eficácia com quevêm injetando uma diversidade de bens e servi-ços de significativa relevância. Contudo, acontrapartida requerida para a manutenção des-sas ações assistenciais, a observância, por par-te da referida facção, de uma postura passiva

com relação à questão fundiária, isto é, aprevalência de uma expectativa de solução ne-gociada no âmbito institucional, vem colocan-do-a em uma situação de franca desvantagemem face do segmento contrário, liderado pelocacique Lázaro, cuja atuação tem sido histori-camente marcada por uma postura de confron-to aberto com os regionais incidentes em seuterritório, mediante, como referido, a adoção deuma estratégia de ocupações progressivas deporções da terra, como forma de pressionar aFUNAI a finalmente promover a sua extrusão.

Em julho de 1996, a facção do caciqueLázaro empreenderia a ocupação de mais umnúcleo, o Gado Velhaco, dali retirando cerca desessenta famílias de regionais. Os desdobra-mentos internos da sua ocupação, a eclosãode conflitos localizados entre os dois segmen-tos faccionais, noticiados amplamente na im-prensa local e mesmo nacional, seriam mani-pulados pela Diocese de Paulo Afonso, secun-dada por políticos da região, que envidaria to-dos os esforços, inclusive junto ao Ministro daJustiça e ao presidente da FUNAI, para tentarbloquear o processo de extrusão e, pior que isso,promover, entre as facções, uma partilha arbi-trária do território indígena em duas porçõesequivalentes.

Referências Bibliográficas

BANDEIRA, Maria de Lourdes. Os Kiriri deMirandela, um grupo indígena integrado.Salvador, UFBA, 1972.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. São Pau-lo, Difel, 1984.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesusno Brasil. Vol. V. Rio de Janeiro, INL, 1945.

OLIVEIRA, João Pacheco de. O Nosso Governo:os Ticuna e o Regime Tutelar. Rio de Janeiro,Marco Zero, 1988.

REESINK, Edwin B. A Intervenção de órgãos es-taduais na definição de áreas indígenas: oexemplo do Instituto de Terras da Bahia nocaso Kiriri de Mirandela. Salvador, 1984, dat.

Mestra em Antropologia/FFCH/UFBA; Analista Pericial emAntropologia do MPF; Pesquisadora do Programa de PesquisaPovos Indígenas no Nordeste do Brasil.

1

Page 86: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 87: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

ÍNDIOS XUCURU-KARIRI:

Conflitos e Práticas Tutelares

Sílvia Aguiar Carneiro Martins

Page 88: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 89: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Atualmente o grupo Xucuru-Kariri encon-tra-se dividido em quatro segmentos diferenci-ados, que ocupam áreas territorialmente distin-tas: em Palmeira dos Índios podem ser aponta-das a Fazenda Canto (área de 276 ha. e popu-lação 800 índios), Mata da Cafurna (área de310 ha. e população 215 indivíduos) e, mais re-centemente, um segmento “expulso” da Fazen-da Canto, que está morando na cidade de Pal-meira dos Índios e utilizando área denominadaAldeia Capela (4 ha.); no município de NovaGlória/BA existe um segmento do grupo que mi-grou em 1986 por causa de um homicídio, es-tando hoje na Fazenda Quixaba (área de 40há. e população de 52 índios)2.

Aqueles da Aldeia Capela estão utilizan-do essa área para práticas de rituais religiosose estão vivendo provisioriamente em casasalugadas pela FUNAI na cidade de Palmeira dosÍndios. Em 95, por conta de um homicídio ocor-rido na Fazenda Canto, cuja vítima foi o entãocacique Luzanel Ricardo, os irmãos Celestinoforam impedidos de continuar vivendo em suasposses dentro da Fazenda Canto. Participamdesse grupo que saiu da Fazenda Canto cincomembros da família Celestino (todos irmãos,filhos do antigo cacique, Sr. Alfredo Celestino).Atualmente, há indícios de que se trata de umapopulação mais extensa, devido a um recense-amento que vem sendo feito pelo Sr. ManoelCelestino (líder político dessa facção), cuja es-timativa é de um total de 489 indívíduos perten-centes a esse segmento.

Ao mesmo tempo em que esses eramimpedidos de retornarem às suas moradias, naMata da Cafurna dois irmãos dos Celestino (Sr.Antonio e Ermilina), bem como sua mãe, foramimpedidos de continuarem habitando essa área.Eles também se juntaram aos que ficaram nacidade de Palmeira dos Índios.

ÍNDIOS XUCURU-KARIRI:Conflitos e Práticas Tutelares

Sílvia Aguiar Carneiro Martins/UFAL1

O processo de regularização fundiáriado território Xucuru-Kariri encontra-se numimpasse, estando ainda em fase de conclusãodo relatório de identificação e delimitação e comlevantamento fundiário interrompido. OsXucuru-Kariri estão hoje nessa situação enquan-to não ocupam a área do território reivindicado.

Alguns dados sobre Ações Indigenistas:SPI – FUNAI3

Tentando situar a presença efetiva doEstado em áreas indígenas no Nordeste, emque nativos foram inseridos na situação de re-serva, o início deu-se a partir da década de 1940,quando vários grupos receberam assistênciadireta do Serviço de Proteção aos Índios (SPI),por meio da instalação de Postos Indígenas.Lima (1992:(1)251) observa que o reconheci-mento oficial desses grupos localizados na re-gião Nordeste aconteceu principalmente a par-tir das solicitações dos próprios nativos, reivin-dicando a presença do poder tutelar. É impor-tante destacar que se incluem nessas situaçõesa presença/atuação de agentes de contato quecontribuíram para esse reconhecimento. Comrelação aos Xucuru-Kariri, isso foi confirmadopor meio de dados sobre o processo de expan-são da ação indigenista.

Com a aquisição da Fazenda Canto e ainstalação do Posto Indígena (PI) Irineu dos San-tos, em 1952, várias famílias que viviam em di-ferentes localidades foram reassentadas naque-la área. A expansão do campo de açãoindigenista em Palmeira dos Índios, com a ins-talação do PI, proporcionou a proteção oficial,sendo os índios inseridos numa situação de re-serva. Essa condição, apontada por OliveiraFl°(1988), referindo-se a grupos indígenas tute-lados pela FUNAI, implica o estabelecimento de

Page 90: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

determinadas relações econômicas e políticas.Percebendo que em ambos os contextos deatuações, tanto do SPI como posteriormente daFUNAI, e considerando uma diferenciação emtermos de ações indigenistas desses órgãos,grupos indígenas vivenciaram semelhante con-dição situacional. Nesse sentido, novas ordens(econômica e política) foram estabelecidas, aprincípio com a atuação de funcionários do ór-gão SPI (chefes de posto, funcionários índios enão-índios etc.), e papéis, principalmente políti-cos, foram regulamentados (por exemplo a atu-ação do cacique Alfredo Celestino), por meioda ação do órgão FUNAI.

Dados sobre a localização anterior denativos que ocuparam a Fazenda Canto reve-lam um movimento migratório (arregimentaçãode nativos) que se processou com a instala-ção do PI em Palmeira dos Índios. O motivo prin-cipal de terem sido aquelas famílias as escolhi-das parece estar relacionado ao sentimento deparentesco entre elas. O fato de compartilha-rem uma mesma origem e ascendência co-mum, contatos interétnicos (com outros gruposétnicos indígenas na região) e presença/atua-ção de agentes históricos consistiu em elemen-tos contextuais históricos propulsores para umaafirmação étnica indígena em Palmeira dos Ín-dios.

Migrações, a produção de umaindianidade (com o reconhecimento oficial e re-lações políticas e econômicas estabelecidas apartir da situação de reserva), formas padroni-zadas de controle político da área reservada etc.,continuam a se processar. Isso porque, aindahoje, nas três áreas Xucuru-Kariri, por exem-plo, em termos de migrações, há uma certamobilidade de indivíduos/”famílias” que se su-cede por vários motivos e situações, geralmen-te com o respaldo (“permissão”/”convite”/”de-terminação”) dos caciques das áreas e contro-le/legitimidade do órgão tutor. A intenção de in-troduzir esse tema aqui deve-se a minhaconstatação de que processos iniciados a par-tir da atuação/presença do órgão indigenista –SPI – no Nordeste tiveram continuidade/regu-laridade, um caráter processual, repetitivo, que

se dá em contextos históricos também da atu-ação da FUNAI, consistindo numa repetiçãofactual, baseada na situação de reserva.

Sobre ações indigenistas realizadas peloSPI e FUNAI, algumas práticas foram encontra-das em ambas atuações desses órgãos, como,por exemplo: o incentivo à produção, por partedos índios, de agricultura de subsistência; ocontrole político das áreas reservadas, inclusi-ve com a utilização da polícia local para resolu-ção de conflitos etc.

O controle exercido pelo SPI sobre oacesso a parcelas de terras dentro da área Fa-zenda Canto e orientação de cultivos agrícolasé refletido nas distribuições de roças e semen-tes aos índios. Como em 1954, citado num Avi-so de janeiro, onde Mário Furtado (1954) refere-se à distribuição de 8 ha. de terra para índios daCafurna. Consta também que mais 4 ha. de ter-renos para futuras culturas de feijão, fava, mi-lho e algodão foram entregues aos “índios daSerra”.

Por meio da verificação de documenta-ção produzida pelo PI (localizada no próprio postoe em arquivos do Museu do Índio/RJ) pude cons-tatar que uma das principais diretrizes do SPIconcentrava-se na produção econômica do pos-to, voltada principalmente para a auto-susten-tação do mesmo e a transformação dos nati-vos índios em trabalhadores produtivos. Na prá-tica, tratava-se de coordenar e incentivar a eco-nomia de subsistência por parte dos índios e ocontrole político do espaço reservado para usu-fruto do grupo indígena. A existência de roçasdo posto, como em 1953 é citado em documen-to um cafezal do posto e o pagamento a umíndio por ter trabalhado naquela roça (Carneiro,1957); bem como de atividades pecuárias (cons-tando áreas exclusivas para pastos, como o cer-cado do Meio e cercado das Baraúnas) no PIIrineu dos Santos, são dados que confirmam oque Lima (1992:(1):246) salienta: que o SPI, nasdécadas de 40 e 50, marca intenções mais cla-ramente voltadas para o uso do trabalhador in-dígena nos próprios postos, com a busca decrescente extração de renda indígena, recursosgerados para o patrimônio indígena4.

Page 91: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

O incentivo às atividades ligadas à pro-dução agrícola foi predominante na atuação doSPI nesse posto, a pecuária, por sua vez, ser-vindo para utilização na agricultura (por meiodo uso de tração animal) e abastecimento deleite para consumo do posto e distribuição aosíndios. Durante o ano de 1961, vários documen-tos enviados pela Diretoria do órgão à IR4 eencaminhados ao PI Irineu dos Santosenfatizam a exploração agrícola das áreas (verFurtado, 1961).

Com relação a imposições em questõesde organização política, no início e durante aatuação do SPI, aparece difusa a legitimaçãode papéis como cacique e pajé. Em 62, um Ofí-cio Circular (Silva, 1964), enviado ao chefe daIR4 e encaminhado por este ao encarregado doPI, transcreve a Circular (nº 46/64) que reco-menda aos postos “o fomento da produção daslavouras de subsistência”, colocando nelaspessoal do SPI, “a fim de que sejam orientadosos índios,” e “executados(...) os trabalhos agrí-colas necessários.” Recomenda, ainda, que “aprodução das referidas lavouras deverá ser en-tregue aos silvícolas, por intermédio de seuschefes, reconhecidos como tais pelas suascomunidades.” Assim, há a legitimação de umchefe a ser reconhecido pelos índios, encarre-gado de intermediar relações econômicas en-tre o SPI e o grupo indígena.

Na documentação pesquisada sobre afase do SPI não há menção a cacique, emborao Sr. Alfredo Celestino tenha sido destacadopelos próprios índios como o “antigo caciquedos Xucuru-Kariri” desde a época de atuaçãodaquele órgão. O fato de “permitir” e “convidar”nativos para ocuparem a Fazenda Canto de-monstra que desempenhou, desde o início, umpapel de liderança política para o grupo. EmAntunes (1973:75), num depoimento já na fasede atuação da FUNAI, o “caboclo AlfredoCelestino da Silva” diz que se considera o “ca-cique” porque é “o mais inteligente da tribo”, e“o primeiro quem cuidou da tropa”(arregimentação de nativos), sendo “bastanteconhecido em Águas Belas” (onde localizam-se os Fulniô, primeiro grupo a ser reconhecidopelo SPI no Nordeste). Numa carta encaminha-

da ao então Diretor do SPI, José Maria da GamaMalcher, Sr. Alfredo Celestino assinou comopagé da tribo dos índios Chucurus-Kariris (inAntunes,op.it.:76). Mais adiante continuarei adissertar sobre esse tema, no momento sendosuficiente destacar que parece ser na fase deatuação da FUNAI que esses papéis são real-mente legitimados pelo órgão tutor entre osXucuru-Kariri. Mais adiante, conflitos havidosentre Sr. Alfredo Celestino e o chefe de postoMário Furtado serão descritos, talvez tendo sidoo motivo principal de não ter sido dado desta-que, em documentação produzida pelo SPI, àatuação de Sr. Alfredo Celestino enquanto caci-que.

A atuação do SPI no sentido de solucio-nar conflitos que surgiam entre índios (inseri-dos na nova situação, marcada pela convivên-cia em área reservada pelo órgão) e não-índi-os, deu-se por meio da utilização da polícia lo-cal. Um exemplo disso está na solicitação dochefe de Posto ao Delegado da polícia de Pal-meira, apresentando índios que iriam prestarqueixa contra um não-índio (Furtado, 1961). Emvários momentos a polícia local é requisitadapara resolver ocorrências ou conflitos entre ospróprios índios. Por exemplo, um encarregadodo posto, já na fase FUNAI, chefe substituto,solicita ao Delegado para tomar providênciassobre um furto de motor e rodete completo dacasa de farinha (Levay, 1968).

Envolvimentos da polícia local foram lo-calizados em vários documentos. Por exemplo,quando houve um conflito entre o chefe do pos-to e o “cacique” Alfredo Celestino. Nessa situa-ção, a Polinter também foi solicitada, pois trata-va-se de questão que envolvia entorpecentes.Sobre este último fato, é interessante observarque, durante a pesquisa de campo, aqueles queeram descendentes ou mais afetivamente liga-dos ao antigo “cacique” Alfredo Celestino men-cionam que o chefe de posto, Mário Furtado,tinha sido um péssimo funcionário, “foi o piorchefe que tivemo!”. Parentes do Sr. Alfredo mediziam que perseguições ao cacique ocorreramdurante aquele período, que “o chefe butô a po-lícia atrais dele”, mas não explicavam concre-tamente o motivo dos conflitos, apesar de mi-

Page 92: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

nha insistência em coletar informações maisdetalhadas. Quando realizei pesquisa documen-tal no Museu do Índio, Rio de Janeiro, localizeium Aviso (Furtado,1962) sobre esses fatos. Noitem sobre Ocorrências, o chefe do posto men-ciona que estiveram no PI funcionários desig-nados pelo Diretor do SPI, soldados da Polinter,comandados pelo Tenente Barros, e que encon-traram nas roças dos índios, inclusive do caci-que, plantações de cannabis sativa. Houve“apreensão da droga” e, como aqueles envolvi-dos se encontravam foragidos, “escaparam dasmãos da Polinter.” Cita ainda que o Sr. Alfredojá havia sido “preso correcional”, por ter sidoprovado que ele “cultivava e negociava a referi-da erva.” Menciona que concordou e apoiou aprisão “para ver se este [Sr. Alfredo Celestino]procuraria ter uma vida honesta e se corrigiria.”O fato de não ter havido a legitimidade do papelde cacique que o Sr. Alfredo desempenhavaparece estar relacionado a esses conflitos ha-vidos entre o chefe do posto, Mário Furtado, e oSr. Alfredo Celestino.

A transição entre a atuação do SPI e daFUNAI se deu com a manutenção dos mesmosfuncionários que já atuavam no PI. Isso demons-tra que houve continuidade da forma de açãoindigenista do SPI, mesmo com a mudança parauma outra orientação por parte da FUNAI. Mas,a partir da década de 70, a rotatividade de che-fes de posto, inclusive a crescente absorção eutilização de índios nesses cargos ou na áreade educação e saúde, vão caracterizar uma atu-ação diferenciada da que existiu com o SPI. So-bre os chefes de posto índios que atuaram, jána fase da FUNAI, alguns nomes citados pelosíndios são: “Gilvan Luna” e “Waldemar”, queeram Fulniô; “Zé Heleno”, Kariri-Xocó; “AfonsoCelestino”, filho do Sr. Alfredo Celestino, que tra-balhou durante mais de um ano.

O controle da condição de índio –indianidade – por meio da imposição de organi-zação política baseada na legitimação/fortale-cimento de alguns papéis, como o de cacique,pajé e também do Conselho Tribal, por meio dasituação de reserva, parece terem sido meca-nismos utilizados principalmente durante a atu-ação da Funai. Esse tipo de organização políti-

ca foi a que predominou entre os Xucuru-Kariri,apesar de acontecerem conflitos refletindo-sena legitimidade e desempenho dos papéis decacique e pajé. Com relação ao Conselho tribal,por exemplo, aparece bastante ativo em algunsmomentos, sendo inclusive mencionados con-selheiros, com estatuto instituído.

Em 1979, o cacique Alfredo Celestinofaleceu; em abril desse mesmo ano, um convi-te impresso foi distribuído para a posse do novocacique, Manoel Celestino da Silva, aconteci-mento que ocorreu no dia 22 do corrente (abril)às 15h, na Fazenda Canto, o qual estava assi-nado pelo Pajé Miguel Celestino. No ano seguin-te, conflitos entre o pajé Miguel e seu sobrinho,o novo cacique, Manoel Celestino, levam esteúltimo a elaborar um documento, datado em 2de junho de 1980 (datilografado em Brasília eassinado por índios Xavante, Bororo, Potiguara,Kariri-Xocó, Kaimbé etc.) intitulado: “Marcada aposse do Novo Cacique Xucuru-Kariri, Sr.Manoel Celestino da Silva.” Neste documentoconsta que entre os Xucuru-Kariri “ManoelCelestino foi escolhido para Cacique substitu-indo seu Pai Alfredo Celestino, sendo a culturapor geração de Pai para filho; foi tomado o car-go por Manoel Celestino com apoio da maioriada tribo. Alguns da UNIND junto os caciques dediversas tribos apoiarão o novo cacique que é oSr. Manoel Celestino. E junto a vossa chefia nãoaceitamos eleição por ser a cultura de jeraçãode cacicario.”5

Vários documentos ainda foram produ-zidos pelos índios, demonstrando a articulaçãodos mesmos no sentido de mobilização políti-ca. Exemplo é o abaixo-assinado encaminhadoreivindicando ao Ministro Mário Andreazza acompra do terreno da Mata da Cafurna. UmOfício (Santos, 1982), assinado pelo então chefede posto, solicita ao Delegado Regional a mu-dança do nome do posto indígena para PIXucuru-Kariri, decidido em reunião com o gru-po e de acordo com o pajé e cacique, que ale-gam ser o nome ideal para o posto, uma vezque Palmeira dos Índios é o nome da cidade.

Na década de 80, um dado importantesobre a questão da organização política refere-

Page 93: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

se à criação do Conselho Tribal, instituição bas-tante fortalecida pelo Delegado Regional daFUNAI, Leonardo Reis. O Conselho Tribal apa-rece extinto em alguns momentos, enquantonoutros é bastante atuante. Segundo informa-ções, Luiz Torres (historiador e comerciante dePalmeira dos Índios) constituiu a personalidadecentral para a articulação/elaboração de “Esta-tuto Tribal dos Índios Xucuru-Kariri,” chegandoa ter participação ativa em reuniões do Conse-lho.

Como pode ser constatado, houve ten-tativa de institucionalizar burocraticamente umtipo de organização política. Apesar dessa re-gulamentação consistir num exemplo em nívellocal, que se deu em Palmeira dos Índios, ondepersonalidades daquela cidade interferiram di-retamente nesse Estatuto, é importante perce-ber que em vários grupos indígenas hoje existea menção ao “Conselho Tribal”, ou “Conselhei-ros”. Trata-se, portanto, de um modelo promo-vido e incentivado pela FUNAI, pois é justamen-te no final da década de 70 e início dos anos 80que aparecem informações sobre esse tipo deorganização política.

Com relação à atuação do Conselhoentre os Xucuru-Kariri, alguns exemplos de-monstram que funcionou por meio de reuniões,nas quais participavam, segundo depoimentode índios, funcionários da FUNAI e personalida-des da cidade. Foi por meio de decisão tomadaem Reunião do Conselho Tribal que o caciqueManoel Celestino foi destituído do cargo, embo-ra concretamente ele nunca tenha aceito a legi-timidade dessa decisão.

Conflitos + Cisões Faccionais

É a partir da morte de Sr. AlfredoCelestino e após conquista da Terra IndígenaMata da Cafurna, a partir da mobilização políti-ca dos índios, que vários conflitos começam ase acentuar, principalmente entre membros dafamília Santana e membros da família Celestino.Ao ponto de um segmento migrar para a referi-da área, Mata da Cafurna, e se estabelecer lájuntamente com índios Kariri-Xocó e de outros

grupos (como Fulniô, Pankararu). Neste seg-mento também estava presente um dos irmãosCelestino, Sr. Antonio, cuja liderança política ereligiosa é bastante significativa nesse período(final da década de 80). Rompendo com Sr.Manoel Celestino, quando migrou com osSantana em 86, reata relações políticas em1995, sendo essa uma das razões da sua saí-da da área Mata da Cafurna em 95. Algumasinformações indicam que Sr. Antonio queria, in-clusive, introduzir seu irmão na prática religiosado Ouricuri. Essa religiosidade, bastante influ-enciada pelos Kariri-Xocó de Porto Real do Co-légio/AL, só vem sendo praticada pelos Xucuru-Kariri da Mata da Cafurna.

Em 85, com o homicídio de JoãoCelestino, dá-se um rearranjo de forças políti-cas entre os Xucuru-Kariri, quando há a migra-ção de um grupo faccional, composto pela fa-mília Santana e liderado pelo Sr. AntonioCelestino e seu filho, Zé Augusto. Aqueles en-volvidos diretamente no homicídio migram parauma área primeiramente em Ibotirama/BA eposteriormente para uma terra adquirida pelaFUNAI para reassentamento desses índios (Ter-ra Indígena Quixaba, em Nova Glória/BA), emsua maioria membros da família “Satile” (ou“Sátiro”).

Em 91 há outro homicídio na FazendaCanto, de um índio pertencente a uma famíliapouco significativa em termos de poder político.Esse homicídio acontece com a participaçãode várias pessoas, mas pelo menos dois rapa-zes da família “Salustiano” (ou “Macário”) es-tão diretamente envolvidos. A família da vítima(Manoel Messias) tinha vínculo com a facçãodo Sr. Manoel Celestino. Dessa forma, um acir-ramento de conflitos entre Manoel Celestino e afamília Macário estava acontecendo nessa épo-ca.

Uma Associação Indígena, organizadaprincipalmente por Quitéria Celestino e o pajéMiguel Celestino (pai de Quitéria, irmão do ca-cique falecido em 80, Alfredo Celestino), conta-va com a participação de várias famílias dessaárea indígena (Fazenda Canto), inclusive mem-bros da família Macário faziam parte dessa or-

Page 94: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

ganização. Embora existisse uma relação ten-sa entre os Macário e as demais famílias nessaárea (particularmente com Quitéria e seu pai),uma aliança entre todos contra uma facção co-mum, a de Manoel Celestino, fortalecia forçasantagônicas, como se fossem duas facçõesexistentes na Fazenda Canto.

Foi nessa época, início da década de 90,que contatos entre Sr. Antonio Celestino e seuirmão, Manoel, começaram a acontecer, em-bora membros da família Santana desaprovas-sem esses contatos, inclusive a presença deManoel Celestino na Mata da Cafurna. Assim, adiscórdia entre membros da família Santana eo Sr. Antonio Celestino se acentua, tendo eleperdido seu prestígio e autoridade perante osdemais índios da Mata da Cafurna. A presençada mãe dos Celestino e de sua filha Ermilinatambém acentua os conflitos na Mata daCafurna, uma vez que viviam tendo desenten-dimentos com pessoas da família Santana nocotidiano da vida na aldeia.

Desde a década de 80, a questãoterritorial, mais especificamente a regularizaçãooficial do território, estava pendente entre osXucuru-Kariri. Apesar de o território ter sido iden-tificado em 88, continha propostas que torna-ram inviável juridicamente a sua regularizaçãofundiária. A área então identificada formava umcírculo ao redor da cidade de Palmeira dos Índi-os, um território com dimensão de 13.020 ha.,proposta que não foi considerada pela FUNAI.Somente em 95 foi determinado um reestudoda área e em 97 um novo GT de identificaçãofoi instituído, objetivando elaborar proposta quepudesse considerar áreas para a expansão edesenvolvimento da cidade de Palmeira dos Ín-dios.

A partir de pressões políticas, principal-mente de membro de uma organização não-governamental indígena (Associação dos Po-vos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Es-pírito Santo/APOINME), Maninha Xucuru-Kariri(sua mãe, Marlene, da família Santana, e seupai Sr. Antonio Celestino), e Quitéria Celestino,da Fazenda Canto, foram líderes fundamentaisna articulação de reivindicação para encaminha-

mento de regularização do território Xucuru-Kariri.

Outro motivo para a determinação daregularização de território são também os inú-meros homicídios ocorridos na área desde1986. Esses assassinatos estão certamenteassociados às cisões faccionais no grupo, masprincipalmente às limitações territoriais (dificul-dades econômicas, pressões demográficas naFazenda Canto, a convivência próxima de fa-mílias que se tornaram inimigas etc.). A regula-rização territorial pode ser considerada comofator fundamental para resolução de conflitosentre os Xucuru-Kariri como um todo.

Os Xucuru-Kariri têm, atualmente, umaexpressividade étnica diferenciada a partir dossegmentos e das áreas que ocupam hoje. Te-nho chamado atenção para o fato de que a reli-giosidade vem sendo um elemento político bas-tante significativo com relação à identidade ét-nica indígena e, no caso dos índios Xucuru-Kariri,isso fica bem evidenciado quando se percebeque os diferentes segmentos desse grupo a vêmpraticando (ver Martins, 1994b). Há religiosida-de indígena de formas particulares: índios daMata da Cafurna vêm praticando rituais ligadosao Ouricuri (bastante interligados com os Kariri-Xocó); os que estão realizando rituais na AldeiaCapela estão praticando religião de influênciaPankararu (liderada pelo Sr. Manoel Celestino);o segmento que se localiza em Nova Glória (BA)tem práticas ritualistas bastante influenciadaspelos Pankararé (BA), utilizando indumentáriaelaborada em fibra de Ouricuri.

Quitéria Celestino, líder política funda-mental para a organização política e a manu-tenção de uma ordem na Fazenda Canto, mor-reu em 95, devido a problemas de saúde. Essaperda contribuiu para um maior acirramento deconflitos dentro da Fazenda Canto, acontecen-do outro homicídio em 96, sendo a vítima ummembro da família Ricardo (cuja esposa per-tencia à família Macário), que ocupava o “car-go” de cacique, legitimado pela Funai.

Durante o ano de 1997, foi realizado es-tudo para a identificação da Terra IndígenaXucuru-Kariri. O levantamento fundiário da área

Page 95: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

proposta estava sendo executado com a parti-cipação de índios de três segmentos do grupo(das áreas Fazenda Canto, Mata da Cafurna eCapela). Estava sendo uma experiência muitoimportante para eles, porque conseguiram sereunir. Apesar das divergências políticas, dis-córdias, ressentimentos que guardam etc., têmpercebido a necessidade de juntarem forçaspara a conquista de seu território. Foi nesse pro-cesso que ficou bastante visível a unidade dosXucuru-Kariri, apesar da diversidade em termosde segmentos políticos e de práticas religiosasindígenas diferenciadas.

Nessa nova etapa de regularização doterritório Xucuru-Kariri, particularmente na fasede levantamento fundiário, tornou-se evidentetambém a articulação e mobilização entre polí-ticos do estado de Alagoas e ocupantes não-indígenas locais contra a regularização fundiáriadessa terra indígena. Isso se deu através da in-gerência desses políticos junto à Presidênciada Funai e ao Ministro da Justiça, visando anu-lar e interromper a proposta de identificação

territorial. Outros exemplos que podem serapontados e que demonstram essa mobilizaçãoforam reuniões havidas na própria cidade dePalmeira dos Índios e com o Governador doestado de Alagoas (em Maceió) entre dirigentesda Funai, políticos e fazendeiros locais (v.Ferreira, 1998). Atualmente o processo de re-gularização encontra-se num impasse, no qualo levantamento fundiário foi interrompido, prin-cipalmente devido à não permissão dos ocu-pantes não-indígenas às vistorias dos imóveisincidentes na área delimitada.

Dados etnográficos apresentados sobreos índios Xucuru-Kariri exemplificam como essegrupo indígena constituiu-se numa diversidadeem termos de segmentos políticos, refletidostambém por meio de práticas de religiosidadeindígena diferenciadas. A regularização do terri-tório não é somente fundamental para a resolu-ção de conflitos internos, mas principalmentepara legitimação de direitos históricos que essegrupo étnico indígena possui e que até o pre-sente não foram reconhecidos.

1 Professora Assistente do Departamento de Ciências Sociais/SetorAntropologia/UFAL. Atualmente encontra-se no programa de Ph.D.na Universidade de Manitoba/Canadá. A maioria dos dadosetnográficos contidos neste texto baseiam-se em pesquisa de camporealizada entre os Xucuru-Kariri nos anos 1991 e 1992, pesquisavoltada para a elaboração de dissertação para mestrado em Antro-pologia/UFPE, bem como na participação em grupo de trabalhosobre reestudo da área em 95.

2 Essas estimativas populacionais baseiam-se numa publicação daFUNAI de 1988, estando portanto esses dados desatualizados. Re-centemente o administrador Regional, Paulo Fernando da Silva, deuinício a um recenseamento nas áreas em Alagoas, inclusive na Xucuru-Kariri. Sem orientação metodológica com relação a critérios utili-zados e uma vez que a questão da identidade étnica é algo bastantepolítico em termos contextuais, esse censo (que estava sendo feitopor funcionários da FUNAI, geralmente indígenas ou líderes indíge-nas) não chegou a ter respaldo científico.

3 Esse item contém basicamente informações que constam em mi-nha dissertação de mestrado (Martins,1994a).

4 Sobre a roça do posto, alguns depoimentos coletados durante apesquisa de campo revelam que a percepção que os índios têm dessefato está vinculada ao relacionamento que tiveram (ou parentes,aliados políticos) com o chefe de posto. Por exemplo, aquelesligados à família Celestino (cujo chefe do PI, Mário Furtado, teveconflitos diretos com o Sr. Alfredo Celestino), de uma forma geral,percebem que a roça do posto era bastante lucrativa para o chefe eque este chegava inclusive a “negociar” com o que colhia da roça.

5 É interessante a utilização do termo “cacicario”, expressando umainstitucionalização do exercício deste “cargo”, função legitimadapor meio da descendência (cultura de geração) patrilinear. Essedocumento foi elaborado pelo Sr. Manoel, procurando apoio políti-co de outros grupos indígenas, quando tentaram retirá-lo do “cargo”por meio de decisão do Conselho Tribal.

Referências Bibliográficas e Documentais

ANTUNES, Clovis. 1984. Índios em Alagoas.Documentário. Maceió: s/ed.

ATLAS das Terras Indígenas no Nordeste. Rio deJaneiro: PETI/MN/UFRJ, 1993.

Page 96: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

CARNEIRO, Raimundo Dantas (Inspetor Regionalda I.R. 4 –SPI)1957 – Plano de Trabalho/1957, IR 4/SPI, filme 167, fotog. 0.628, Museudo Índio, Rio de Janeiro.

FERREIRA, Ivson J.1998 – Segundo RelatórioParcial de Atividades: LevantamentoFundiário da Terra Indígena Xucuru-Kariri.AER - Recife/Funai.

FURTADO, Mario da Silva (Chefe do P.I. Irineu dosSantos)1954 – Aviso do Posto; Janeiro, PIIrineu dos Santos/SPI, Palmeira dos Índios.

____1961 – Ofício n. 01, 18 de fevereiro, PI Irineudos Santos/SPI. Palmeira dos Índios.

1962 – Aviso do Posto; PI Irineu dos Santos/SPI,julho, filme 167, fotog. 803 – Museu do Índio.Rio de Janeiro.

LEVAY, Alipio (Chefe da Inspetoria Regional 4/F.N.I.)1968 Memo Circular n.09/68, 28 deagosto, IR 4, Recife.

LIMA, A. C. 1992. Um Grande Cerco de Paz -Poder Tutelar e Indianidade no Brasil. Tesede Doutorado (2 vols.). Rio de Janeiro.PPGAS/MN/UFRJ.

MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1994a. Os Ca-minhos da Aldeia...;Indios Xucuru-Kariri em

Diferentes Contextos Situacionais. Disser-tação de Mestrado. PPGAS/UFPE.

____1994b. Algumas observações sobre a etnicidadede um grupo indígena no Nordeste: o caso dosXucuru-Kariri de Palmeira dos Índios, AL. In:Anais da III Reunião Regional de Antropo-logia de Antropólogos do Norte-Nordeste.Vol. 01 – UFRP.

OLIVEIRA F.º, João Pacheco de. 1988. Nosso Go-verno Ticuna e o Regime Tutelar. São Paulo,Marco Zero/MCT/CNPq.

____1993. “A Viagem da Volta - Reelaboração Cul-tural e Horizonte Político dos Povos Indígenasno Nordeste”. In: Atlas das Terras Indígenasno Nordeste. Rio de Janeiro: PETI/MN/UFRJ.

____1995. “Muita terra para pouco índio? Uma in-trodução (crítica) ao indigenismo e à atualiza-ção do preconceito”. In: A temática indígenana Escola - Uma introdução ao Indigenismo.São Paulo.

SANTOS, Jose de Jesus (Chefe do P.I. Palmeirados Índios).1982 – Oficio n. 34/PIPI/FUNAI,Palmeira dos Indios.

SILVA, Antonio Avelino da (Chefe da InspetoriaRegional 4/SPI).1964 – Oficio Circular n. 85,30 de abril, IR 4, Recife.

Page 97: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

FACCIONALISMO XUKURU-KARIRI E AATUAÇÃO DA FUNAI

Adolfo Neves de Oliveira Júnior

Page 98: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 99: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

O objetivo deste trabalho é apresentaruma interpretação do chamado faccionalismopresente entre os Xukuru-Kariri de Alagoas, apartir de uma análise de sua forma específicade organização social como grupo diferenciadoda sociedade nacional. A intenção é fornecer ele-mentos para uma discussão sobre a atuaçãodo órgão indigenista federal não apenas frenteaos Xukuru-Kariri, mas também em face dasmúltiplas e recorrentes questões de naturezasimilar, que representam um considerável en-trave à atuação da FUNAI em toda a região Les-te-Nordeste.

Em meados de 1995, estive entre osXukuru-Kariri, coordenando um Grupo de Tra-balho que tinha por objetivo a realização de es-tudos preliminares para a identificação da TerraIndígena Xukuru-Kariri, delimitada anteriormen-te pela FUNAI, tendo por centro a cidade de Pal-meira dos Índios, segunda maior de Alagoas. Ocurto período (menos de um mês) em que esti-ve no local foi particularmente significativo noque tange à atividade faccionária, razão que melevou a buscar preencher de significado mo-mento tão revelador da organização social da-quele grupo indígena.

Procuro trabalhar aqui com representa-ções mantidas pelos índios com relação à suadinâmica faccionária. Esta opção é decorrentede uma postura que não pretende julgar a vera-cidade dos fatos relativos a disputas entrefacções – o que seria não apenasepistemologicamente ingênuo, mas, creio, tam-bém eticamente duvidoso – mas compreendera encenação, a tonalidade distintiva que os en-volve quando interpretados por aqueles que de-les participam. Conforme ficará claro no decor-rer do trabalho, tive menos acesso às repre-sentações referentes a uma das facções políti-cas de que trato, devido ao envolvimento

involuntário de meu GT em uma disputafaccionária; não havendo, porém, compreensãocapaz de englobar a totalidade das interpreta-ções de um dado evento, resigno-me a colocarem discussão as diversas interpretações frag-mentárias que me foi dado colher ao longo demeu trabalho, esperando com isso contribuirpara um entendimento mais criterioso da ques-tão do faccionalismo entre os Xukuru-Kariri edemais índios do Nordeste brasileiro.

O termo faccionalismo, tal como tem sidousado pelos órgãos públicos afetos à questãoindígena no país, engloba várias e diferentes prá-ticas, sendo o delineamento dasespecificidades de cada uma necessário ao tratoda questão. Acredito que o caráter faccional dofaccionalismo indígena, tal como entendido pelaFUNAI, é construído muitas vezes com seu pró-prio concurso, dotando os grupos envolvidos nomesmo – ou alguns deles – de possibilidadesde atuação e de significados que são passíveisde apropriação e conversão em cacife políticopor parte destes grupos, alterando seu poderde barganha e persuasão tanto em nível da di-nâmica de suas relações internas quanto anteo próprio órgão indigenista, que contribuiu origi-nalmente para a geração de tais possibilidadese significados.

O interesse do trabalho não é, portanto,centrado nas múltiplas e variadas interpretaçõesdadas ao termo pela antropologia ao longo desua história, mas naquela adotada pela FUNAIa qual, ainda que não seja formulada de formaclara e explícita, pode ser delineada, em algunsde seus aspectos, a partir da análise de suaprática em face das questões concretas quese lhe apresentam.

Os Xukuru-Kariri, originalmente dois po-vos indígenas distintos – os Xukuru e os Kariri– encontravam-se já estabelecidos na região

FACCIONALISMO XUKURU-KARIRI E A ATUAÇÃO DA FUNAI

Adolfo Neves de Oliveira Júnior1

Page 100: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

em que atualmente habitam por volta de mea-dos do século XVIII, em regiões distintas mascontíguas, hoje parte do município de Palmeirados Índios, que deriva seu nome do fato de tersido formado a partir do aldeamento original in-dígena, sendo o centro da sesmaria de terrasconfirmada aos mesmos pela Coroa portugue-sa2. Em 27 de junho de 1773, ocorre a doaçãode meia légua de terras em quadra ao patrimônioda Capela do Bom Senhor Jesus da Boa Morte,constituindo o núcleo do aldeamento formadonas terras ocupadas pelos índios3. Tal doaçãonão teve por móvel apenas a benemerência dosdoadores, uma vez que já desde o início do sé-culo anterior a Coroa Portuguesa produzira co-piosa legislação visando a garantir aos índiosnão apenas o direito sobre as terras que ocu-pavam, mas ainda sua (relativa) autonomia nointerior das mesmas. Em 29 de maio de 1759foi instituída Direcção com que Interinamentese Devem Regular os Índios das Novas Villase Logares Erectos nas Aldeias da Capitania dePernambuco e suas Annexas4, regulamentoque representou uma tentativa clara de criaçãode uma camada camponesa etnicamenteindiferenciada dos colonos portugueses em pro-cesso de ocupação das terras brasileiras, pormeio de uma política institucionalizada dedescaracterização dos indígenas aldeados en-quanto grupos social e culturalmente diferenci-ados da sociedade colonial, efeito que se espe-rava obter por meio do uso compulsório da lín-gua portuguesa e da adoção de nomes própri-os, vestimentas e habitações semelhantes àsdos coloniais, somada a uma diretriz para seuestabelecimento como produtores autônomosde produtos agrícolas passíveis decomercialização, de maneira a inseri-los no sis-tema econômico colonial. Coroando tais dispo-sições, o estabelecimento de uma infra-estru-tura institucional nos aldeamentos, semelhanteàquela colonial (com a criação de Casas deCâmara e Cadeias Públicas), procurava assi-milar o aldeamento às povoações não-indíge-nas, o que seria apressado pela instalação decolonos em suas terras e pela promoção de ca-samentos interétnicos.

Não há dados que possam esclarecer so-bre as transformações ocorridas na organiza-

ção social dos Xukuru e Kariri após submetidosa este sistema, ainda no século XVIII. Porém,as inúmeras referências disponíveis sobre estaquestão ao longo do século XIX mostram quedurante todo esse período o plantio de produtospassíveis de comercialização, em especial o al-godão, e a venda de mão-de-obra tornaram-seindispensáveis à sobrevivência dos índios, in-corporando-se à sua economia e modo de vida.Revelam ainda a dispersão dos mesmos pelaregião, à procura de trabalho remunerado ca-paz de lhes fornecer os meios econômicos su-ficientes para o provimento das necessidadesimpostas pela sociedade colonial.

Já em meados do século XIX, encontra-va-se consolidada esta transição de sociedadeautônoma a grupo étnico inserido em um con-texto intersocietário, tanto em termos econômi-cos quanto em termos sociais mais amplos. Poresta época – mais especificamente a 3 de ju-nho de 1872 – uma Portaria do Presidente daProvíncia autoriza a extinção de todos osaldeamentos de Palmeira, em um dos momen-tos mais difíceis de sua história: atingido peladevastadora seca de 1870, grande número defamílias abandonara sua gleba, abrigando-se noengenho do Diretor-Geral de Índios da Provín-cia, obrigado pelo cargo a lhes prestar assis-tência em tais casos, o que foi feito mediante oarrendamento das próprias terras dos índios5.Ainda assim, fontes documentais oficiais ates-tam que o processo de espoliação da gleba in-dígena contou com teimosa resistência por par-te dos índios, que ocupavam mesmo regiõeslimítrofes à sua gleba, em flagrante desafio aosgrandes proprietários – em especial ospecuaristas, os quais durante aquele períodose empenhavam em ocupar as terras planasque compõem mais da metade do patrimônioterritorial do atual município de Palmeira dos Ín-dios – que buscavam arrancar-lhes os trechosmais valiosos de sua sesmaria.

O domínio indígena sobre a área, que ha-via sido demarcada fisicamente e confirmadapor sentença judicial transitada em julgado a 17de abril de 18616, chega ao fim do século emcompleta reviravolta, passando, com o correrdo tempo, a ser reconhecida apenas pelos pró-

Page 101: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

prios índios, ao passo em que o ordenamentojurídico à sua volta se transforma em seu preju-ízo.

Durante o período de meio século queabrange o último e o primeiro lustros dos sécu-los XIX e XX, a história oral dos Xukuru-Karirirelata seu paulatino deslocamento das férteisterras planas que constituíam originalmentecerca de metade de seu patrimônio (e que con-tavam com recursos hídricos escassos na re-gião), em direção à franja de serras que borde-ja a cidade de Palmeira dos Índios, centro origi-nal de sua sesmaria. Empurrados cada vezmais para cima, à medida que os derradeirosusurpadores apossavam-se também dos me-lhores trechos destas últimas terras, os Xukuru-Kariri passaram a dividir este seu resquício deespaço vital com camponeses pobres oriundosde outras regiões. Com o passar das décadas,o espaço das serras adquiriu características deespaço intersticial, ilhado em meio a grandes emédias propriedades e transformando-se emrefúgio para as camadas camponesas pobres7,consolidando a situação encontrada por CarlosEstêvão em sua visita à região em 1937 e porHohenthal em 1952, quando este constata queos Xukuru-Kariri ocupavam “(...) as terras maispobres e menos desejáveis nas montanhas.”8

Essa longa introdução tem por objetivo evi-denciar as características camponesas presen-tes na organização social dos Xukuru-Kariri, que,não obstante seu projeto político de recriaçãodo povo indígena enquanto grupo étnico diferen-ciado, que se poderia dizer inicia-se vinculadoà retomada de sua luta pela terra por volta de1940, organizam-se em moldes camponesescomuns à região, tendo a família nuclear comounidade primária de produção e consumo,coadjuvada por práticas interfamiliares de auxí-lio mútuo. Tal forma organizativa, como ressal-ta K. Woortman9, baseia-se na autonomia daunidade familiar como pilar de uma ética de re-lações familiares enquanto constituintes do ‘ca-pital humano’ que possibilita o exercício destetrabalho e a liberdade decorrente desta mesmaautonomia constrói um mundo de relaçõesmarcadamente horizontais entre as unidadesfamiliares que o compõem. Isso não equivale a

afirmar a inexistência de uma diferenciação eco-nômica entre seus membros, fenômeno inclu-sive já apontado pela antropóloga DelmaPessanha Neves (1985) entre populações cam-ponesas brasileiras. Contudo, nestas comuni-dades, poder e prestígio são função da capaci-dade demonstrada pelo indivíduo de intermediarbens e serviços para suas parentelas, no senti-do extensivo do termo (que inclui igualmentemembros de diferentes grupos familiares liga-dos entre si por laços de parentesco e/oucompadrio). Estes indivíduos foram denomina-dos por E. Woortman (1983) sitiantes fortes .

Entretanto, os Xukuru-Kariri não são ape-nas um grupo social organizado segundo osmoldes camponeses, mas também um grupoindígena que, como lembra Amorim10, dispõe dereservas territoriais e de uma certa proteção doEstado, o que, ao menos em tese, garante aeles o uso não-contestado desta terra. A estarelativa proteção do Estado vincula-se uma es-trutura institucional lá presente, criada pelo an-tigo SPI em vários grupos indígenas em toda aregião Nordeste a partir da década de 1940,composta pelos ‘cargos’ de cacique, pajé e peloconselho indigenista, prática que continuou apósa criação da FUNAI e que vigora até hoje. Vin-cula-se a ela, ainda, um conjunto de atividadesde caráter assistencial, formando um conjuntode serviços básicos cujos executores são pre-ferencialmente tomados da própria comunida-de indígena, ou ainda de outros povos indíge-nas da região.

Fica evidente a tensão entre ambas asformas de organização, na medida em que acentralização promovida por esta estruturainstitucional e pelo conjunto de serviços bási-cos fornecidos e/ou gestados, direta ou indire-tamente, pelo órgão indigenista, reduz, em maiorou menor medida, a depender do caso, a auto-nomia dos grupos familiares que conformam opovo indígena e colocam em xeque a própriaética que norteia suas relações sociais. A insta-lação de uma tensão resultante do deslocamen-to da centralidade das relações de poder daesfera dos grupos familiares para aquela do gru-po étnico como um todo foi constatada e anali-sada por Brasileiro (1996)11 com relação aos

Page 102: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Kiriri de Mirandela (BA). A autora interroga-sesobre os limites impostos ao projeto de‘indianidade’ Kiriri pela instalação deste pontode tensão, constituindo-se em uma ruptura coma ética campesina do grupo. Creio que é a par-tir desta tensão entre estas duas instânciasconstituintes da organização social dos Xukuru-Kariri que se deve pensar a questão dofaccionalismo presente em seu seio. A ameaçapermanente representada por esta tensão agecomo elemento definidor da ação de agentespolíticos, e o delineamento das facções dar-se-á a partir das várias possibilidades de acomo-dação desta tensão, correspondente a diferen-tes estilos de liderança ligados a interesses dis-tintos que se articulam na tentativa de equilibrarambas as esferas de relacionamento, de ma-neira a reafirmar a centralização das relaçõesde poder em nível do grupo indígena como umtodo, sem contudo romper a delicada teia derelações sociais que une os grupos familiaresXukuru-Kariri. Neste processo, desempenhapapel importante a própria prática da FUNAI coma relação às dissenções e conflitos internos dogrupo.

O faccionalismo Xukuru-Kariri é associa-do historicamente à oposição entre as famíliasCelestino e Santana. Já na década de 1940,quando das primeiras gestões para a recupe-ração de algo de seu território tradicional, as vi-agens do cacique José Celestino (pai do atualpajé da Faz. Canto, uma das duas fazendasonde o grupo se encontra atualmente), em bus-ca de uma solução para a questão fundiária in-dígena, eram acompanhadas por um membroda outra família. Estas duas famílias aparente-mente ocupavam partes distintas da antigagleba em um passado relativamente recente;na atualidade a aldeia da Faz. Canto é a áreade influência da facção da família Celestino, e ada Cafurna da família Santana. Na primeira, oscargos de cacique e pajé eram ocupados, atérecentemente, por membros da famíliaCelestino; na última, apesar de nenhum mem-bro da família Santana os ocupar, sua mais ex-pressiva liderança é Maninha Xukuru, pertencen-te a esta família e de certa forma promotora daconsolidação de sua facção na aldeia, ainda que

nem todos os membros da família Santana aapoiem.

Um terceiro grupo foi formado a partir dacisão de parte da família Celestino, em torno deManoel, ex-cacique da aldeia da Faz. Canto. Emdezembro de 1994 foi assassinado o caciqueLuzanel Ricardo, de outra das ‘grandes famíli-as’ locais e que havia assumido o cargo após adeposição de Manoel Celestino. Luzanel eraapoiado pela outra parte da facção dosCelestino, que contava com a presença do pajéMiguel Celestino, tio de Manoel, e de sua filhaQuitéria, agente de saúde na aldeia. Tido porgrande parte desta como mandante do crime,Manoel e os membros mais próximos de suafamília fugiram da aldeia, seguidos pelas famíli-as de alguns de seus aliados, temendo repre-sálias, após o que não foram mais admitidosnesta.

Na verdade, a interdição expressa deacesso à aldeia da Faz. Canto (e também à daCafurna) aplicam-se tão-somente a Manoel eseus familiares mais próximos; em conversascom os habitantes de ambas as aldeias isto foiadmitido ‘informalmente’, isto é, fora dos con-textos de decisão coletiva das aldeias. O quese argumentava é que, uma vez que todos aque-les que saíram com Manoel “são parentes” –isto é, uma vez que todos participam das mes-mas redes de relações sociais interfamiliaresque congregam os membros da aldeia – qual-quer um deles poderia retornar individualmen-te, embora a facção de Manoel, acusada justa-mente de romper a “ética camponesa” do gru-po, como se verá mais adiante, não mais fosseadmitida nas aldeias. Percebe-se nestes co-mentários a clara distinção feita pelos própriosXukuru-Kariri entre as distintas esferas de rela-ções sociais de que participam em sua vidacotidiana.

Três formas distintivas de liderança erampraticadas nestes três grupos. A de Miguel eQuitéria centrava-se, principalmente, emboranão exclusivamente, nas famílias da Faz. Can-to, por meio de relações familiares e decompadrio ativadas pelo pajé Miguel e pelosserviços prestados por sua filha no posto de

Page 103: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

saúde local. Quitéria, que em 1995 era chefeinterina do PI, cargo local mais cobiçado, e quefaleceu pouco após este período, fora formadapela missão baha’i e exercia expressiva lideran-ça na aldeia, tendo participado de movimentospor entidades como o CIMI, pertencentes a estecampo indigenista gestado durante a década de1980, a partir da luta pela demarcação das ter-ras indígenas.

Maninha Xukuru-Kariri, por sua vez, umadas mais expressivas lideranças deste povo in-dígena, foi formada dentro do campo de atua-ção indigenista ao longo de toda a década de80, sendo ainda articuladora de ponta daCAPOIB – Coordenação de Apoio às Organiza-ções Indígenas do Brasil, e da APOINME – As-sociação dos Povos Indígenas do Nordeste,Minas Gerais e Espírito Santo. Sua trajetóriapolítica é marcada por uma passagem do âm-bito local ao nacional, movimento que ocorreconcomitantemente à consolidação de sua le-gitimidade no plano interno, construída a partirda assunção de certos pressupostos valoriza-dos no interior do campo indigenista, como osentido de unidade do povo indígena, o que sereflete em um estilo de liderança que se preten-de transcendente em relação a questõesfaccionais. Esta estratégia pode serexemplificada pela adoção do etnônimo do gru-po como parte de seu nome pessoal, práticanão estranha às lideranças gestadas junto aocampo indigenista. Por outro lado, ela pertenceà família Santana, um dos troncos familiaresmais tradicionais e influentes dos Xukuru-Kariri,inclusive junto à FUNAI, no plano local, cuja ex-tensa rede de relações interfamiliares lhe for-necia uma base de apoio consistente neste ní-vel. Ressaltava, porém, sua condição de primados Celestino (ou, como ela própria coloca, demembro de ambas as famílias), o que lhe per-mitia, novamente, colocar-se algo acima das dis-putas cotidianas envolvendo membros daque-las duas famílias.

A liderança de Manoel Celestino, antigocacique da Faz. Canto, era marcada por alian-ças em nível das relações familiares que, damesma forma que com Miguel Celestino, nãose limitavam às famílias presentes na área indí-

gena ou mesmo que fossem ‘potencialmenteindígenas’, isto é, passíveis de reconhecimentoenquanto descendentes de famílias indígenas.Em seu caso, porém, estas não apenas erammais ressaltadas como ainda traduzidas ematos concretos que ameaçavam tanto os recur-sos da aldeia quanto, em última análise, o pró-prio projeto de constituição do grupo étnico emsi mesmo, uma vez que este se afirma em umprocesso que pretende demarcar uma nítida di-ferenciação entre índios e não-índios. Manoelarticulava-se com políticos e comerciantes lo-cais, e não faltavam acusações na Faz. Cantoe na Cafurna de que arrendava terra para usopor gente ‘de fora’, tanto camponeses locais semascendência indígena reconhecida quanto fa-zendeiros.

Ainda da mesma forma que Miguel,Manoel buscava basear sua liderança em umpleito à ancestralidade de sua família, vinculan-do-a ao contexto pretérito dos ‘caboclos puros’,de ascendência exclusivamente indígena.Miguel, porém, buscava fazê-lo especialmenteno contexto religioso, colocando-se aos índiosna condição de herdeiro de toadas (canções ce-rimoniais ligadas ao ritual do Toré) de seu avô ebisavô paternos (e provavelmente também dafamília de sua mãe), bem como de Encanta-dos, entidades espirituais que são associadasa antepassados genéricos, do grupo indígenacomo um todo, o que sugere uma linha deancestralidade remetendo ao tempo mítico dogrupo indígena ‘puro’, anterior à presença dosbrancos. Manoel, por sua vez, ressaltava o ca-ráter da liderança secular, por assim dizer, rei-vindicando-se descendente direto do últimogrande cacique Xukuru e afirmando a‘tradicionalidade’ da vinculação do cargo de ca-cique a sua família desde tempos imemoriais,reivindicação que não era assumida por Miguel,que afirmava inclusive que o ‘correto’ seria quea aldeia contasse com cacique e pajé proveni-entes de famílias distintas, as quais durante oritual do Toré liderariam duas diferentes colu-nas de dançarinos12. A própria forma comoManoel assina seu nome em contextos perti-nentes, com a colocação do nome wakonã –nome original dos Xukuru, segundo pesquisa-

Page 104: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

dores locais – entre parênteses após seu so-brenome, evidencia o caráter de sua reivindica-ção de liderança, fundada em um suposto mo-nopólio ancestral do cargo de cacique por suafamília, ao mesmo tempo em que colocava emevidência, com seu sobrenome, a rede de rela-ções mantidas por sua família com outros gru-pos familiares. Manoel monopolizava, ainda, vá-rios cargos no interior da administração daFUNAI na região, tanto em Recife, antiga cir-cunscrição administrativa da FUNAI a que esta-va subordinado o PI da Faz. Canto, quanto emMaceió, sede da atual Administração Regionalda FUNAI , e em Palmeira dos Índios. Possuíatambém contatos com setores da administra-ção pública em nível municipal e estadual, bemcomo com fazendeiros e comerciantes da ci-dade. Este conjunto de relações em vários ní-veis lhe permitia exercer com admirável mes-tria o papel de verdadeiro broker junto a índios enão-índios na região.

As diferenças entre os vários estilos deliderança pode ser vista no posicionamento dasmesmas com relação à questão fundiária dosíndios. Enquanto os grupos que lideram a Faz.Canto e a Cafurna eram partidários da demar-cação de uma terra indígena na extensão deseus antigos domínios de uma légua em qua-dra (13020 ha., que tinham por centro a cidadede Palmeira dos Índios) como forma de resolu-ção de sua crônica falta de terras, Manoel rei-vindicava a compra de uma fazenda no interiordesta área histórica para seu assentamento eo de seus seguidores. A proposta de demarca-ção não poderia ser assumida por Manoel, umavez que seria fonte de conflitos insuperáveiscom os não-índios residentes na cidade, cujaboa vontade concorria para seu sustento, jun-tamente com a parca assistência da FUNAI, ago-ra que sua presença não mais era aceita naFaz. Canto. Tais aliados chegaram a colocar àsua disposição um advogado, que debalde ten-tava convencer Manoel da viabilidade da pro-posta de emancipação dos índios e divisão dasterras das duas áreas indígenas em lotes indi-viduais tituláveis, proposta absolutamenteinviável para Manoel, por eliminar as fontes desua autoridade centralizada enquanto pretenso‘chefe tradicional’ de todos os Xukuru-Kariri.

De certa forma, a própria família de Manoeltinha uma certa margem de liberdade ante seusaliados locais, que é garantida pelo fato de pos-suir vários membros trabalhando como servi-dores da FUNAI, empregados graças à influên-cia de Manoel junto à administração da FUNAI,em especial quando essa foi administrada porRomero Jucá. Isto lhes garantia relativa inde-pendência material face a seus aliados da cida-de e, portanto, possibilitava recusar algumasdas posições destes aliados, permitindocompatibilizá-las com sua influência sobre asfamílias que o acompanhavam, então morandona cidade e em situação material bem pior quea de Manoel, por não contarem com os mes-mos meios que esta. Assim, um campo demanobra se constitui a partir desta relativa in-dependência e da situação desesperadora emque se encontram tais famílias, bem como ou-tras, de ascendência indígena reconhecida pe-los índios das áreas indígenas mas que não sereivindicavam ainda enquanto tais, a quemManoel procura polarizar com a promessa deterras para assentamento. Completa tal campoa intermediação do auxílio prestado pela FUNAI,feita por Manoel a partir de seus contatos nointerior da estrutura administrativa do órgão eque é essencial para a sobrevivência das famí-lias que deixaram a Faz. Canto com ele.

Ao arregimentar novas famílias de ‘indí-genas potenciais’ sob sua liderança com a pro-messa de compra de uma propriedade rural parasua instalação, junto com aquelas que deixa-ram com ele a Faz. Canto, Manoel coloca-seperante a FUNAI como líder de um grande con-tingente de índios desaldeados, solicitando pro-vidências para a resolução da questão à admi-nistração do órgão indigenista. No entanto, suaprópria condição de líder deste contingente édependente da intermediação exercida por elee por sua família dos bens e serviços ofereci-dos pela FUNAI e é precisamente ao conseguircolocar-se no precário centro de equilíbrio en-tre os dois pólos que se evidencia o talento ge-nial de Manoel enquanto líder: ao mesmo tem-po em que constrói sua liderança junto aos índi-os a partir de sua pretensa capacidade decarrear bens e serviços para eles a partir de

Page 105: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

sua intermediação junto à FUNAI, constrói estamesma capacidade de intermediação a partirde sua suposta liderança sobre os índios. Oórgão indigenista participa, assim, da constru-ção de sua facção, ao atribuir à sua liderançaum significado para cujo estabelecimento elaprópria concorre, de forma essencial.

Este equilíbrio, no entanto, é sempre ins-tável, e pode-se caracterizar a partir daí o movi-mento que derrubou Manoel da liderança da al-deia da Faz. Canto. Esse teve por cerne a insa-tisfação causada pelo desequilíbrio entre a ten-dência ao favorecimento de seus parentes maispróximos e a disposição em favorecer a comu-nidade da aldeia como um todo. Dependendotanto do apoio de seu grupo quanto da anuênciado resto da aldeia para continuar na direção damesma, Manoel parece ter-se excedido nofavorecimento aos seus, comprometendo osparcos recursos da área indígena da Faz. Can-to, em especial seu bem mais precioso: terraarável. Várias críticas foram feitas a ele e seusfamiliares mais próximos, acusados de apos-sarem-se de grandes trechos de terreno culti-vável, resultando no aumento da dependênciapor parte dos habitantes da aldeia, do trabalhoem terras estranhas, no regime de meação, quenão é compensador do ponto de vista dos ren-dimentos, devido às técnicas rudimentares detrato da terra utilizadas na região, bem como defontes de renda externas, em especial o traba-lho nos canaviais, de outubro a fevereiro, épocado corte de cana, reputada a menos desejáveldas atividades (vários índios a comparam à es-cravidão). À saída de Manoel seguiu-se o con-fisco das terras utilizadas por ele e por sua fa-

mília, algumas das quais, segundo os habitan-tes da Faz. Canto, deixadas sem cultivar, oumesmo arrendadas a outros índios e não-índios.

A expulsão de Manoel aparenta, assim,ter-se formado a partir do rompimento da éticaexpressa pelas práticas de reciprocidade eco-nômica e social entre os grupos familiares lo-cais. Com o acúmulo de terras nas mãos deum grupo familiar, engendra-se o pecado maiorde um agente econômico no interior de umaeconomia de base camponesa: o desejo de‘enricar’ às custas das relações horizontaisinterfamiliares, justificado por Manoel e seusfamiliares por meio de um discurso que ressal-ta, por sua vez, outra das características daética camponesa: as virtudes do trabalho e doacúmulo vindo ‘do suor do próprio rosto’.

Aquilo que é tratado indiferenciadamentecomo ‘facção’ pela FUNAI pode, portanto, serretratado como um conjunto de práticas distin-tas e diferentes estilos de liderança, com baseem uma tensão primordial entre as relações ho-rizontais características da organizaçãointerfamiliar do grupo e aquelas, de caráter cen-tralizado, atinentes à estrutura institucional en-carregada de intermediar a ação da FUNAI jun-to ao cargo indígena. Para a consolidação detais ‘facções’ concorre o próprio órgãoindigenista, que na melhor das hipóteses bus-ca imprimir a suas ações um sentido deeqüanimidade abstrata, aplainando as diferen-ças entre os variados grupos e os múltiplosestilos de liderança envolvidos.

1 Mestre em antropologia (UnB) e doutorando em antroplogia naUniversity of St. Andrews, Escócia; Antropólogo da ProcuradoriaGeral da República e Pesquisador Associado da UnB.

2 Antunes 1974: 45

3 Antunes 1973: 45; Torres 1973: 56-57

4 RIHGB Tomo XLVI, Parte I, 1883, pp. 121-71

5 Antunes 1984: 68-69; Torres 1973: 110

6 Antunes 1973: 69

7 Oliveira Jr. 1995: 39-43

8 Hohenthal 1954: 109

9 1980: 38

10 1975: 15

11 Brasileiro 1996: 38

12 Miguel traçava a origem da autoridade de cacique atribuída amembros de sua família à intervenção de Carlos Estêvão na décadade 1930, que teve na figura do tio de Miguel seu principal informan-te.

Page 106: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Bibliografia

AMORIM, P. M. Acamponesamento eProletarização Indígenas do Nordeste Bra-sileiro. In: Boletim do Museu do Índio. Antro-pologia/nº 2, Rio de Janeiro, Maio/1975.

ANTUNES, C. Wakona-Kariri-Xukuru: aspectosSócio-Antropológicos dos RemanescentesIndígenas de Alagoas. Imprensa Universitá-ria/UFAL, Maceió, 1973.

_____. Índios de Alagoas: Documentário. Impren-sa Universitária/UFAL, Maceió, 1984.

BRASILEIRO, S. A Organização Política e o Pro-cesso Faccional no Povo Indígena Kiriri.Dissertação (mestrado), UFBA, Salvador, 1996.

HOHENTAL, W. Notes on the Shukuru Indiansof Serra Araroba. Pernambuco, Brazil. In:

Revista do Museu Paulista. N. S., Vol. VIII,São Paulo, 1954, pp. 92-116.

NEVES, D. M. Diferenciação Sócio-Econômicado Campesinato. Ciências Sociais Hoje,ANPOCS/Cortez, 220-241, São Paulo, 1985.

OLIVEIRA, JR., A. N. Terra Indígena Xukuru-Kariri . Relatório do Grupo Técnico designadopela Portaria nº 0553/FUNAI. FUNAI, Brasília,1995.

WOORTMAN, E. O Sítio Camponês. Anuário An-tropológico. 1983, Brasília, 1984.

WOORTMAN, K. Com Parente não se Niguceia.Anuário Antropólogo. 1980, Brasília, 1981.

Page 107: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

INTERPRETANDO O PASSADO, ORIENTANDO O FUTURO:Uma Análise Comparativa das Divisões Políticas

entre os Tuxá (BA) e os Tremembé (CE)e suas Relações com o Estado

Marcos Luciano Lopes Messeder

Page 108: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 109: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

INTERPRETANDO O PASSADO, ORIENTANDO O FUTURO: Uma Análise Comparativa das Divisões Políticas entre os Tuxá (BA) e os

Tremembé (CE) e suas Relações com o Estado

Marcos Luciano Lopes Messeder1

Tomarei como objeto de comparação nopresente trabalho dois povos indígenas no Nor-deste, um na Bahia e outro no Ceará, cujas his-tórias de relacionamento com a assistênciaestatal ocorreram em períodos bastante diver-sos, a primeira datando da década de 1930 e asegunda tendo-se iniciado na década de 1980.O objetivo básico é entender como a relaçãocom o Estado tutor é construída internamente ede que maneira influencia os projetos políticosdos grupos que disputam a hegemonia dos po-vos em questão. A base comparativa aqui émuito mais a heterogeneidade das situaçõesétnicas entre os Tuxá e os Tremembé, dado queos primeiros têm uma trajetória política marcadapelo imbricamento do projeto étnico com a as-sistência estatal e os segundos, orientados poruma visão autonomista, pelo menos em um dosseus grupos internos, resistiram, inicialmente,a serem tutelados pelo Estado. A idéia é verifi-car em que medida a assistência estatal emcontextos diferentes orienta a definição dos pro-jetos étnicos e que tipo de posições podem serassumidas pelos índios em relação ao Estadoa depender dos valores coletivos construídosem torno da identidade étnica.

A história desta comparação, que hoje ten-to alinhavar, teve início com minha participaçãoem um encontro de missionários do ConselhoIndigenista Missionário - CIMI, realizado emJaboatão/PE, no ano de 1988. Naquele momen-to funcionei, junto com outro antropólogo queme havia convidado, como assessor antropo-lógico do encontro, procurando discutir os pro-blemas relativos à autonomia política dos po-vos indígenas frente à relação tutelarestabelecida pelo Estado, por meio da FUNAI.

O caso Tuxá foi tratado como modelar dadependência forjada pela tutela, dado que pro-cessos complexos de reorganização econômi-

ca fizeram com que parcela da força de traba-lho da coletividade passasse a compor os qua-dros do órgão tutor, chegando ao ponto, comono momento da nossa pesquisa, de todos oscargos da FUNAI do Posto Indígena de Rodelasserem ocupados pelos próprios Tuxá.

Por outro lado, o relato de uma missionáriado Ceará dava conta de que os Tremembé re-jeitavam a tutela estatal e haviam se organiza-do em torno de um sindicato de trabalhadoresrurais, tendo também participado ativamente dafundação do diretório municipal do Partido dosTrabalhadores (PT). Atitude bastante inusitadapara um grupo étnico “emergente”2, cuja ten-dência, nestes casos, é buscar o reconheci-mento oficial.

A heterogeneidade das situações susci-tou-me de imediato uma analogia de extremos.Em princípio, tomaria a unidade étnica como for-madora de um conjunto de valores e interessescomuns, ou seja, pensaria os Tuxá e osTremembé como grupos homogêneos, comuma clara definição de valores e projetos coleti-vos. No caso Tremembé tal atitude era maistemerária, levando-se em consideração a su-perficialidade das informações disponíveis,aquelas fornecidas oralmente pela agentemissionária. Com relação aos Tuxá, embora ti-vesse consciência da divisão faccional, a uni-dade étnica assumia contornos mais nítidos,dado basear-se em trabalho de pesquisa siste-mático, ficava claro que, embora divididos, osTuxá compartilham e reconhecem um conjuntode referências comuns para sua autodefiniçãoenquanto grupo étnico, conjunto este definidorde um padrão de relacionamento com o Estadoe com os regionais, configurador de uma uni-dade.

O que quero mostrar com estacontextualização analítica da idéia original da

Page 110: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

comparação é a tendência a tomar como su-postas unidades coletividades que em seus cir-cuitos internos de relação compõe-se de gru-pos que guardam diferenças relativas de posi-ção, as quais devem ser levadas em conside-ração. Evidentemente, pesquisas antropológi-cas sistemáticas acabam por constatar a exis-tência dessas clivagens internas, contudo, aação política pouco ou não-refletida dos agen-tes, sejam eles missionários, funcionários daFUNAI ou mesmo antropólogos, assume ahomogeneidade como fato.

Procurarei agora traçar um breve quadroda organização social e política dos povos emapreço e ao final procurarei alinhavar alguns co-mentários sobre as duas situações e o que elaspodem guardar de “edificantes” lições para asrelações políticas do órgão tutor com seus tute-lados e refletir sobre a própria experiência deproduzir este exercício de antropologia práticaou como se posicionar nessa etapa dadialogicidade.

TUXÁ: o movimento da história

Os Tuxá viviam até o ano de 1987 agru-pados em torno da aldeia de Rodelas, municí-pio do norte da Bahia, na região do submédioSão Francisco, fronteira com o estado dePernambuco. A história da relação desse povocom a sociedade colonial/nacional é longa, da-tando das primeiras penetrações da frente pas-toril que adentrou o sertão a partir do século XVII.Acompanhando de perto os passos dessa fren-te vieram os missionários, que fundaram váriasmissões na região. A cidade de Rodelas origi-nou-se de uma dessas missões, consagrada aSão João Batista, sendo então chamada de Mis-são de São João Batista de Rodelas. Váriospovos indígenas foram aldeados nessa e emoutras missões e, à medida em que as pres-sões dos pecuaristas pelos territórios aumen-tavam, foi sendo reduzido o espaço dado àsmissões, resultando no agrupamento compul-sório de vários povos em um mesmo território3.

Os Tuxá resultam de uma espécie de sín-tese histórica dos diversos povos que foramaldeados na Missão de São João Batista de

Rodelas. Sua história oral fala da posse de trin-ta ilhas naquela região do São Francisco. Nãohá registro do etnônimo Tuxá até o presenteséculo, quando os Tuxá, por intermédio de seumais eminente líder, procura o SPI, na décadade 1930, para exigir garantias quanto ao seuterritório, que corria o risco de ser completa-mente usurpado por pressões regionais. O ca-pitão João Gomes, como passou a ser conhe-cido, avô do atual pajé dos Tuxá de Rodelas,manteve um encontro com o Marechal Rondone obteve deste o apoio para a manutenção daárea da Ilha da Viúva, local destinado às ativida-des agrícolas da comunidade.

A partir deste período os Tuxá passarama ser assistidos regularmente pelo Estado. Nadécada de 1950 foram implantadas na Ilha al-gumas bombas para irrigação que propiciaramuma maior autonomia produtiva, tornando as ati-vidades agrícolas independentes do regime dechuvas na região. Desde então os Tuxá passa-ram a desenvolver uma agricultura de subsis-tência articulada à produção de cultivos comer-ciais destinados ao mercado regional, particu-larmente arroz e cebola. Esta nova configura-ção da organização produtiva, por sua vez, pos-sibilitou uma reprodução mais tranquila da po-pulação Tuxá, que começou a crescer. O cres-cimento demográfico esbarrou nas limitaçõesda área de cultivo e o escasseamento de terre-nos para a força de trabalho emergente passoua incentivar uma migração constante que ame-açava inviabilizar a comunidade.

Face a este quadro, os Tuxá tiveram queassumir outras estratégias socioeconômicaspara evitar a migração maciça. A saída encon-trada foi o investimento em escolarização dapopulação mais jovem4. Aqui, creio, começa-ram as primeiras interações mais sistemáticascom o universo das relações políticas regionais.O cenário que se apresentava era o seguinte:todos os serviços públicos eram controlados poroligarquias locais que garantiam sua reprodu-ção política por meio de concessões ao aces-so a esses serviços. Assim, para ingressar naescola ou receber atendimento médico, qual-quer cidadão, neste contexto, necessita estarligado ao grupo político que monopoliza tais apa-relhos.

Page 111: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Para os Tuxá, então, só restava uma al-ternativa5 : aliar-se às oligarquias e obter as con-dições para manter-se enquanto coletividade,dado que sem escolarização seria impossívelcompetir pelos postos de trabalho locais, dis-poníveis quase que exclusivamente no serviçopúblico. Esta articulação propiciou um alto índi-ce de escolarização e, graças às alianças aífirmadas, puderam os Tuxá ingressar no servi-ço público. A esta altura o padrão de relaciona-mento desenvolvido pelo órgão tutor, é prová-vel, teve um papel significativo no reforço de taislaços, ademais levando em consideração o prin-cípio orientador da ação tutelar (Lima, 1995), ouseja, a integração das comunidades indígenas“à comunhão nacional”. Tanto é quegradativamente vários Tuxá foram sendo incor-porados aos quadros do SPI e depois da FUNAI.Neste caso um alto nível de integração.

O ingresso no serviço público é uma por-ta aberta por alianças políticas que articulam si-multaneamente as relações interétnicas em doisplanos complementares e problemáticos. Porum lado definiu lealdades com as oligarquiaslocais que propiciaram postos de trabalho naestrutura estatal nas instâncias estadual e mu-nicipal, por outro reorientou a posição dos Tuxácom o órgão tutor, em função mesmo da ocu-pação de cargos no Posto Indígena na aldeia6 .

Um dado que ainda não introduzi na aná-lise desse universo é a localização geográficada aldeia em relação à cidade. A história da or-ganização espacial tem como metáfora a posi-ção do frontal da igreja de São João Batista, oqual era voltado para a aldeia, dado que a pri-meira nave tinha como centro a aldeia. À medi-da em que a cidade cresce, desloca-se acentralidade e, na reforma da igreja, que mate-rializa a reorientação espacial do lugar, o frontalmuda de posição e passa a contemplar a cida-de, assumindo então uma posição lateral emrelação à aldeia. Os protagonistas passam acoadjuvantes da história local, embora nesta tra-ma as posições de importância tendam a sedefinir de maneira muito interdependente. OsTuxá não estão ligados à cidade por simplesrelações de subordinação. O jogo é bem mais

complexo. Vários níveis de aliança existem en-tre índios e regionais, firmados por casamen-tos, compadrios, havendo várias famílias Tuxáresidentes na cidade. Como avaliei, em conjun-to com Martins:

A princípio, as relações entre aldeadose citadinos caracterizavam-se por umaestabilidade baseada na compatibilida-de de interesses. Valiam comoreferencial da aldeia fora dela e atravésdesses interesses estavam firmadas ali-anças por afinidade e compadrio, dentrode estratégias de convivência e apoiomútuo. O surgimento da cisão Rodelas-Ibotirama e seu caráter definitivo põemem xeque a coesão grupal e a sua orga-nização sócio-política. Emerge daí a ne-cessidade de reagrupamento,intencionando restabelecer a sua forçapolítica e, logicamente, o seu poder debarganha frente à cidade (Martins eMesseder, 1987b: 12).

Mas é claro e óbvio que para as oligarqui-as os Tuxá equivaliam a uma espécie de “curralétnico”7 . Contudo, as alianças não se faziamde maneira homogênea, ou seja, nem todas asfamílias Tuxá estavam atreladas aos mesmosgrupos políticos na cidade. E aqui, creio, estáum dos mais significativos nós das relaçõespolíticas índios – oligarquias – órgão tutor. Oestabelecimento, pelo órgão tutor, de um mo-delo político de representação comunitária cons-tituído por um certo número de cargos forja umtipo de “camisa-de-força” que obriga a coletivi-dade a expressar suas relações de poder emcargos com atribuições que, por sua subordi-nação a orientação tutelar, tornam-se ambíguas.A ocupação de cargos, de qualquer maneira,exige que um grupo de parentes assuma ahegemonia da coletividade. Desse modo, a re-presentação passa a ser também o controle deum grupo de parentes sobre as benesses esta-tais. O controle parental da relação com o ór-gão tutor é, a meu ver, no caso Tuxá, o que de-terminou a divisão política interna. Para melhorclarificar isto, é evidente a relação entre quemsão os ocupantes de cargos políticos na aldeia,cacique, pajé, conselheiros e aqueles que obti-

Page 112: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

veram postos de trabalho na FUNAI, filhos, so-brinhos e afilhados dos primeiros.

Quando iniciei a pesquisa entre os Tuxá, noano de 1987, a comunidade vivia a iminência dainundação da aldeia pelas águas do rio trans-formado em lago, resultante da construção daBarragem de Itaparica, projeto desenvolvido pelaCompanhia Hidrelétrica do São Francisco -CHESF. A presença da CHESF na região, pro-vocando uma transformação radical, visto quea formação do lago atingiu oito municípios naBahia e em Pernambuco, significou oaçambarcamento de todas as estruturais locaisde poder. A grande obra de engenharia assumiaas proporções de um fato totalizador, ou, naspalavras de Castro e Andrade (1988), uma “obrado destino”.

O destino de 7.800 famílias passava a sercontrolado por um só órgão estatal. A dinâmicade transformações era imensa, três sedes mu-nicipais foram submergidas, entre elas a cida-de de Rodelas. Os Tuxá já estavam divididosem dois grupos que optaram porreassentamentos diferentes. A princípio a razãoda divisão faccional parecia assentar-se nadisruptura social provocada pela grande obra.Uma análise mais acurada revelou que osdeterminantes eram disputas internas para asquais já apontamos, mas vamos recorrer àetnografia das discussões sobre oreassentamento para entender a minha pers-pectiva.

Quando os Tuxá tiveram que avaliar efeti-vamente como enfrentariam o deslocamento dacomunidade, chegaram a uma conclusãoconsensual que indicava a saída da região comoo mais sensato. As terras que estariam fora daárea de inundação eram consideradas de baixaqualidade para o desenvolvimento de atividadesagrícolas. Assim, parecia que, mesmo com osprojetos de irrigação previstos para serem ins-talados nas áreas de reassentamento à bordado lago, a permanência era um risco alto de seter problemas futuros com a base econômicada comunidade. Todos concordavam que pro-curar outro local era o mais indicado. Logo, po-rém, as lideranças oligárquicas locais ficaram

sabendo desta disposição dos Tuxá, ao queparece informadas que foram por um funcioná-rio da FUNAI, também Tuxá. Movimentaram-seentão para convencer as famílias aliadas a per-manecerem em Rodelas, temendo um esvazi-amento eleitoral significativo. Após essas pres-sões políticas, o pajé Tuxá passou a recebermensagens dos “encantados”8, que se mani-festaram nas águas do rio, instruindo os Tuxá apermanecerem na área de Rodelas, local ondeestavam as “raízes” ancentrais, cujo rompimen-to poderia significar a “morte” da comunidade.

Outra parcela da comunidade insistia quea permanência significava um “suicídio” econô-mico e manteve-se firme no propósito de deixara região. Para viabilizar áreas dereassentamento diferenciadas, as facções tive-ram que reunir um conjunto mínimo de famílias,como exigência da CHESF para financiar doisprojetos de reassentamento. Mas quem eramessas duas facções? Em torno do cacique, dopajé e do mais influente conselheiro articulava-se uma rede de parentesco, tendo como baseo fato de serem pajé e conselheiro casados comirmãs do cacique. Este bloco parental organi-zava uma larga teia de influência na aldeia, daqual resultou um amplo controle dos postos detrabalho no órgão tutor e também dos benefíci-os advindos da assistêncial estatal, como me-dicamentos, sementes e outros. Por outro ladohavia um conjunto de famílias extensas queagregavam os dissidentes em relação à paren-tela hegemônica, descontentes sobretudo como controle sobre o órgão tutor.

Em ambos os casos, os grupos aí confi-gurados tiveram que arregimentar outras famí-lias de forma a compor o número mínimo exigi-do pela CHESF. Deste modo, os optantes pelapermanência em Rodelas passaram ao traba-lho de cooptação das famílias Tuxá residentesna cidade para voltarem a residir na aldeia, apóso enchimento do lago. Esta atitude criou confli-tos com algumas famílias que estavam estabi-lizadas na cidade e não gostariam de retornar àaldeia, decorrendo desta reação dos “índios ci-tadinos” um acirramento da política de retornoforçado implementada pelas lideranças a qualdeterminou uma espécie de “desterritorialização

Page 113: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

étnica” dos que resistiram ao retorno, tendo es-tes que se incorporarem aos projetos dereassentamento agrícola dos regionais.

O bloco dos descontentes procurouaglutinar as famílias Tuxá que haviam se deslo-cado para áreas próximas, na cidadepernambucana de Itacuruba, também incluídana cota de inundação. Estas famílias há muitohaviam saído da aldeia em função doescasseamento de terrenos na Ilha da Viúva.Procurados pelos líderes da facção que aca-bou sendo reassentada na cidade de Ibotirama,centro-oeste da Bahia, também às margens dorio São Francisco, esse conjunto de famíliasaderiu ao projeto de deslocamento. O mais in-teressante é que neste processo de constitui-ção da ampla frente de oposição às liderançastradicionais emergiu uma liderança jovem,membro de uma família de pouca influênciapolítica. Sua atitude aguerrida na situação deconfronto fez que com ele catalizasse em tornode si todas as vozes de insatisfeitos. Assim, oque veio a ser a aldeia Tuxá de Ibotirama é re-sultado de uma composição heterogênea defamílias. Tal composição tem acarretado, ao lon-go dos anos, e lá se vão cerca de dez anos,inúmeros conflitos relativos à representação po-lítica dos Tuxá de Ibotirama, evidenciados nassubdivisões faccionais que marcam hoje a vidada coletividade naquele contexto9.

Poderia introduzir alguns trechos de en-trevistas gravadas com o cacique de Ibotiramae com um Tuxá funcionário da FUNAI e mem-bro da parentela hegemônica, mas tais discur-sos deveriam ser balizados por um nível decontextualização impossível de ser alcançadonos limites deste artigo. Por ora creio que asinformações etnográficas até aqui organizadas,de maneira muito pragmática, volto a lembrar,são suficientes para clarificar a rede deinterdependência criada entre os índios, o ór-gão tutor, os grupos políticos locais e o Estadointerventor, representado pela CHESF. Reto-marei os desdobramentos deste processo polí-tico, que assumiu novos contornos com a lon-ga espera imposta pela CHESF paraimplementar os projetos de reassentamento pro-dutivo dos Tuxá de Ibotirama e Rodelas, procu-

rando inclusive tomar como referência nossaexperiência de acompanhamento por meio daANAÍ- BA, organização não-governamental quetem papel significativo no campo indigenista naBahia e no Nordeste. Agora farei uma rápidaincursão etnográfica aos Tremembé, situandoos grupos internos e sua virtual relação com oórgão tutor.

TREMEMBÉ: tradição, invenção e política

Começo por reiterar que ahomogeneidade de uma coletividade é sempreuma construção política. A primeira imagem dosTremembé como um povo organizado emonolítico começou a se desfazer com a aná-lise de documentos e recortes de jornais, quan-do da elaboração do projeto de pesquisa, envi-ados pela mesma agente missionária que euhavia encontrado em Pernambuco. Naquelaocasião já conseguia distinguir três situaçõesétnicas no município de Itarema, cidade locali-zada cerca de 280 km a noroeste de Fortaleza,estado do Ceará. Em breves linhas procurareitraçar um quadro das áreas que investiguei, bus-cando caracterizar o horizonte político a partirdo qual se delineam os projetos das três coleti-vidades pesquisadas, que podem vir a ser, esão, em certa medida, partes de uma mesmacomunidade étnica.

Os Tremembé ocupavam historicamenteuma longa faixa de litoral que se estendia entreos atuais estados do Ceará e Maranhão, sendoconhecidos por sua beligerância e resistênciaa contatos pacíficos com missionários e outrosagentes coloniais. Somente no século XVIII foifundada uma missão secular, que construiu, em1712, uma igreja sob a invocação de NossaSenhora da Conceição, na localidade denomi-nada Almofala, hoje distrito do município deItarema. A história desta igreja conforma um dosmarcos fundamentais na memória coletiva dosTremembé.

A região é caracterizada geograficamen-te pela presença no litoral de dunas que se mo-vimentam com freqüência por transporte eólico.Este fenômeno foi responsável pelo

Page 114: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

soterramento da igreja no final do século XIX,permanecendo cerca de quarenta anos sob asareias de uma duna. Na década de 1940 a dunacomeçou a se deslocar, o que estimulou os ín-dios a realizar um trabalho de retirada de areiada nave, tarefa feita com instrumentos comocuias e pás. A participação nesta atividade co-letiva de resgate do marco simbólico mais im-portante como referência territorial é tida comolegitimadora da ascendência indígena. Vale re-gistrar que a igreja, como em outras áreas demissão no Nordeste, é o referente a partir doqual se constituem os limites do território10.

Como disse, investiguei três áreas de ocu-pação Tremembé no município de Itarema. A pri-meira delas denominei como área litorânea e écomposta de um conjunto de localidades quetem como referência central o distrito deAlmofala, onde está instalada, como já regis-trei, a igreja de Nossa Senhora da Conceição.Nesta área as atividades produtivas centram-se na pesca, realizada sob diversas modalida-des. Em muitos casos, os pescadores nativos,índios e não-índios, estão engajados em rela-ções de trabalho com os proprietários dos fri-goríficos locais, configurando uma situação desubordinação econômica, com sérias conse-qüências políticas. A área, do ponto de vistafundiário, sofreu um processo de usurpaçãoque teve início desde o advento da Lei de Ter-ras, em 1850, e se acirrou a partir da década de1950, com a plantação extensiva de coqueirais.O entorno de Almofala é repleto de cercas quese estendem em todas as direções. Os índiosvivem ilhados em meio às cercas, espalhadosnas diversas localidades, como Barro Verme-lho, Aningas, Camboa, Praia, entre outras.

A referência étnica das famílias auto-identificadas como Tremembé, dado que a si-tuação de subordinação econômica implica ocamuflamento da identidade étnica, é a práticado Torém10 . Este ritual vem sendo realizadopelos Tremembé e manteve-se mesmo nosperíodos de maior pressão regional para supri-mir qualquer vestígio de presença indígena naárea. Há pelo menos dois trabalhos defolcloristas cearenses sobre o Torém12 . Em

meio às adversidades enfrentadas neste am-biente hostil à presença de índios, o Torém sem-pre funcionou como o demarcador visível dafronteira étnica. As lideranças constituídas nes-ta área sempre tiveram como fundamento desua ação política, nas palavras do cacique deAlmofala, “a guarda da língua”. Assim, assegu-rar a realização do ritual é sustentar uma co-municação eficiente com os vários outros: re-gionais, folcloristas, missionários, os vários ti-pos de pesquisadores e agora a FUNAI.

Até a década de 1980 este seria, em re-sumidas linhas, o quadro da ordem política daetnicidade Tremembé. A partir deste momentoentram em cena outros agentes, transforman-do o panorama político local. Uma empresaagroindustrial, com um projeto financiado pelaSUDENE, adquire algumas fazendas na regiãoe começa a expulsar tradicionais moradores deáreas adjacentes às fazendas. Duas localida-des muito próximas e vinculadas por laços deparentesco são atingidas. A Tapera e a Varjotaestão localizadas na margem direita do rioAracatimirim, que corta praticamente todo o mu-nicípio de Itarema. São comunidades formadaspor duas grandes famílias que emigraram deum município próximo da região, no final doséculo XIX, fugindo da seca e procurando ter-ras mais amplas para a expansão da família.

Durante quase um século imperou aí umesquema de poder baseado nas relações desubordinação impostas por “coronéis”,centralizadores de toda representação política.A transação fundiária entre fazendeiros eagroindustriais, que incluiu as terras da Varjotae da Tapera, evidenciou as ambíguas relaçõesdos poderosos com os seus “protegidos”. Osmoradores da Tapera, enganados por supos-tos benefícios que seriam trazidos pela empre-sa, como escola, postos de saúde e empregofixo, acabaram expulsos e completamente ex-cluídos de qualquer direito.

Os moradores da Varjota, embora tenhamrecebido as mesmas informações sobre bene-fícios oriundos da instalação da empresa porparte de seus “protetores”13 , cotejaram essas“decantadas” vantagens com a experiência con-

Page 115: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

creta dos seus parentes da Tapera. Percebe-ram que necessitavam buscar alternativas deluta ou seriam destruídos como coletividade. Ocaminho encontrado para fazer frente ao avan-ço do invasor foi encontrado em uma celebra-ção comunitária, a partir da qual entraram emcontato com membros da Comissão Pastoralda Terra. Após uma luta árdua, com episódiosde intimidação por parte da empresa, obtiveram,por meio de ação judicial, uma liminar que lhesgarantiu o território, estribada em um inédito en-tendimento de propriedade, classificado pelo juizcomo “usucapião coletivo”.

A Varjota conta com uma área de cercade 400ha., ocupados por cerca de 60 famílias.A luta pela terra deu expressão política a forteslaços internos de solidariedade comunal queacabou por fazer da Varjota uma comunidade-modelo, uma “comunidade eclesial de base”(CEB) com todos os ingredientes positivos parase tornar referência local. Foi o que aconteceu.Os líderes da Varjota passaram a funcionarcomo multiplicadores do modelo de organiza-ção das CEBs na região. Em 1985, com aemancipação do município, foram os líderes daVarjota os principais participantes da fundaçãodo Sindicato de Trabalhadores Rurais e em se-guida do diretório municipal do Partido dos Tra-balhadores.

Em 1986 a FUNAI visita a área pela pri-meira vez, como resultado da movimentaçãopolítica deslanchada com o processo de “emer-gência” étnica dos Tapeba, povo indígena habi-tante do município de Caucaia, região metropo-litana de Fortaleza. Este processo guarda mui-tas relações com o caso Tremembé, mas seriaimpossível estabelecer todas as conexões nestetrabalho, basta entender que a presença daFUNAI é requisitada por meio da mobilizaçãoorganizada por agentes missionários ligados àArquidiocese de Fortaleza14 .

Mas a visita da FUNAI foi rápida e a elaseguiu-se uma efetiva presença de missionári-os indigenistas, que passaram a atuar com re-gularidade. Em princípio, os missionárioscontatam os Tremembé da zona litorânea e,posteriormente, travam conhecimento com a

comunidade da Varjota, aí encontram a realiza-ção do ideal comunitário; encetam então um tra-balho de articulação política, procurando unir atradição ritual de um grupo com a experiênciade organização política do outro. A associaçãoaí tentada é desveladora dos processos de di-ferenciação de perspectivas políticas que orga-niza o campo da etnicidade Tremembé. En-quanto para os Tremembé de Almofala a prote-ção estatal, potencializada na presença daFUNAI, deve ser assegurada o quanto antes,os Tremembé da Varjota orientam-se por umavisão autonomista em relação ao Estado, visãoconstruída na luta política no seio das CEBs lo-cais, cuja experiência com o INCRA forjou amáxima “o Estado é um novo patrão”. Concep-ção esta que deve muito à luta ideológica dosagentes das pastorais rurais contra a orienta-ção individualizante da produção implementadapela política do INCRA15 .

Cabe agora introduzir a terceira áreaTremembé. O São José Capim-Açú é uma áreaocupada no final do século XIX, também porduas famílias extensas que migraram da re-gião de Almofala em direção ao sul do atualmunicípio de Itarema, distando 20 km em linhareta da sede municipal. Até a década de 1940os moradores viveram na área sem serem im-portunados, até a sutil introdução de gado defazendeiros que procuravam fugir da seca.Gradativamente o esquema de poder do fazen-deiro foi-se impondo e de proprietários os nati-vos passaram a moradores. A história das rela-ções políticas nesta localidade tem muitos lan-ces16 violentos e intimidatórios expressivos das“técnicas” de subordinação perpetradas pelo fa-zendeiro. Mas o fato é que a área foi desapro-priada pelo INCRA como parte de um processomais amplo de reforma agrária, tributário da or-ganização comunitária e sindical forjada pelaação das CEBs na região.

A “engenharia social” do Estado17 compôsum arranjo territorial capaz de contemplar víti-mas e algozes. A área desapropriada foi de 2.600ha., o fazendeiro apenas “vendeu” uma partedo suposto terreno que detinha, tendo ainda per-manecido com uma área de 1.300 ha., e o que

Page 116: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

é mais interessante, para se deslocar do SãoJosé ao Capim-Açú deve-se cruzar parte da pro-priedade do fazendeiro, que divide a área do SãoJosé Capim-Açú. A maior evidência, no entan-to, do que é capaz esta “engenharia social” é ofato de terem sido incorporados ao imóvel de-sapropriado os empregados do fazendeiro, res-ponsáveis diretos pelos arbítrios ordenados pelomesmo, como queima de casas de farinha,derrubada de cercas que protegiam cultivos,entre outros.

As lideranças políticas que atuaram no pro-cesso que resultou na desapropriação peloINCRA foram a mais velha moradora do local,D. Rosa Suzano, descendente direta das duasprimeiras famílias que ocuparam a área no finaldo século XIX; um parente seu, cuja errante tra-jetória de vida lhe deu escolarização e capaci-dade de movimentação junto às instituições e aimprensa, conhecido pelo apelido de Patriarcae ainda um representante da família Teixeira, àqual me referi anteriormente. Na primeira fasede andanças em busca dos direitos todas es-sas pessoas estavam juntas e havia por partedo Patriarca e de D. Rosa Suzano uma clarareivindicação de caráter étnico. A desapropria-ção pelo INCRA desembocou na composiçãoheterogênea de moradores e em um esquemade desenvolvimento comunitário, implementadatambém pelo órgão de extensão rural do Cea-rá, que acabou por excluir o Patriarca18, o qualcontinuou mantendo como bandeira a demar-cação da área como terra indígena, ademaisdepois de excluído da rede de poder interna quepassou a controlar os benefícios advindos dosprojetos do INCRA e da EMATERCE.

A posição étnica do Patriarca se chocoufrontalmente com os interesses da comunida-de, que havia chegado à conclusão que deveriase manter como trabalhadores rurais e esque-cer a reivindicação étnica. Em depoimentos quecolhi, vários moradores encaravam a luta pelapresença da FUNAI como uma “traição” aoINCRA. Obviamente que existem muitos outroselementos neste campo. O Patriarca passou auma postura de acusação à CPT e missionári-os indigenistas, que a seu ver protegiamPedroTeixeira19. A própria comunidade da Varjota

esteve presente ao São José em suasandanças militantes de organização comunitá-ria e assumiu uma posição favorável a PedroTeixeira, aliado histórico das CEBs e antigobatalhador pela reforma agrária. Que fez o Pa-triarca? Procurou ajuda em outras organizaçõesde apoio a minorias e começou a ser assesso-rado por um centro de direitos humanos de For-taleza. Os agentes deste centro, sem conheci-mento do mapa político local, incentivaram a cri-ação de uma Associação Indígena para obterfinanciamentos para projetos comunitários. Estaassociação recebeu como membros exatamen-te os inimigos históricos dos antigos morado-res do lugar, os empregados dos fazendeiro que,excluídos da outra rede controlada pelosSuzanos e Teixeiras, aliou-se ao Patriarca e tor-naram-se “índios”.

Desta maneira, quando cheguei a campoencontrei um quadro inusitado: os que eram tra-balhadores rurais transformaram-se em índiose os índios transformaram-se em trabalhado-res rurais. Havia obviamente uma disputa pelomeu convencimento, por perceberem que euteria de alguma forma uma posição estratégicana resolução do problema, isto reforçado pelofato de a Procuradoria da República haver re-querido um laudo antropológico sobre osTremembé, e claro que o antropólogo respon-sável atestou a pertinência dos moradores doSão José à etnia Tremembé. Neste sentido hou-ve inúmeros discursos desconstruindo aetnicidade local e vários outros a afirmando.Havia, portanto, parafraseando ao inverso umtítulo de Eric Hobsbawm e Terence Ranger, uma“invenção da não-tradição”. Em meio a estecipoal de discursos e posições, foi preciso cui-dado redobrado com o sentido político de mi-nha ação como antropólogo, entendido clara-mente como um agente na cena local.

Passo agora à tentativa de alinhavar es-ses fios que tecem em parte a ordem política in-terna dos Tuxá e dos Tremembé e se possívelapontar o que estas realidades tão diversas po-dem ter em comum e em que medida podem serelucidativas do universo de relações políticas noqual está envolvido o órgão tutelar e seusprepostos no contexto do Nordeste brasileiro.

Page 117: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

À guisa de alinhavo final

Acho que o primeiro elemento comparati-vo deve ser exatamente a heterogeneidade in-terna dos grupos. Ambos têm facções internasque disputam a hegemonia do projeto coletivo.Os grupos se constituem por meio de trajetóri-as históricas diferenciadas, no caso Tremembé,mas resultam, também como no caso Tuxá, dasrelações com os agentes que com elesinteragem no campo político local. Com os Tuxádialogam o órgão tutor, as oligarquias locais eoutras instituições estatais. Com os Tremembédialogam oligarquias, pesquisadores, missioná-rios de diversos matizes, instituições estatais eo órgão tutor, virtualmente no período de 1986 a1993 e efetivamente deste ano em diante. Le-vando em consideração tais presenças e dife-renças, é preciso sempre desconfiar dahomogeneidade. Tratar o diverso como se fos-se o mesmo pode ser um erro estratégicoincontornável em movimentos posteriores, masas diferenças podem ser superadas em funçãode interesses comuns, o que é fundamental parase compreender em que ponto se pode forjar aunidade.

Os Tuxá, após dez anos de desgastanteespera pela condições de retomada de suas ati-vidades produtivas, aprenderam o sentido dapressão contínua sobre o Estado e a importân-cia de aliados diferentes, a exemplo da Procu-radoria da República e da ANAÍ. Desta combi-nação foi forjado um novo convênio com aCHESF, que aos trancos e barrancos vem sen-do cumprido com a vigilância fundamental daProcuradoria. A experiência deste processo dereassentamento alterou as perspectivas políti-cas coletivas dos Tuxá, principalmente emRodelas, novos líderes emergiram e os ocupan-tes de cargos ligados ao órgão tutor perderamforça20 .

A nova perspectiva se caracteriza por umapostura crítica e independente em relação aoórgão tutor e mais ainda à CHESF, que nuncalhes inspirou confiança. Embora com uma novaconfiguração de forças internas, que alterou apresença dos Tuxá na câmara municipal e evi-dencia redefinições e rupturas, a coletividade

mantém uma unidade que impressionou os téc-nicos que elaboraram o estudo de pré-viabilida-de econômica para aquisição da área dereassentamento. Trabalho acompanhado deperto pela ANAÍ e no qual alguns de seus mem-bros atuaram como consultores. A situação deRodelas aponta para mudanças estruturais, emcurso desde o advento da barragem, como se-ria óbvio supor, mas que hoje tomam rumosorientados pela própria comunidade em diálogocom seus aliados.

Em Ibotirama a heterogeneidade total dacomposição de famílias torna constante o mo-vimento de divisão política interno. O programade reassentamento definitivo está finalmentepronto, mas flutuações no número de gruposdomésticos a serem contemplados demons-tram a complexidade da composição políticaque originou a coletividade e suas conseqüên-cias para a construção de projetos coletivos.Qualquer tentativa de diálogo passa pelo enten-dimento da heterogeneidade interna, que deveser tomado como componente da coletividadeem sua história e organização.

Os Tremembé, percebidos na sua diver-sidade, colocam para os agentes a mesmaquestão e dilema, ou seja, como se constroemcoletividades unitárias e diversas? O problemaé que os agentes participam do processo detessitura do sentido da ordem coletiva e trazemconsigo suas próprias representações do queseja aquele povo e os princípios de sua unida-de. A FUNAI tem o seu modelo indigenista, su-pondo uma representação política centralizadae de certa forma submissa a sua ação, ou pelomenos compreensiva, senão cúmplice. Os mis-sionários indigenistas, por seu turno, procuramrealizar seus modelos comunitários também,articulam a unidade, pressupondo um conjuntode valores forjado por seu entendimento daindianidade.

Por outro lado os próprios índios estão an-corados em posições diferentes nos esquemaslocais de poder. Em Itarema o Estado é proprie-dade privada. E o fato de serem agricultores oupescadores, prioritariamente, orienta-os paradefinições diferentes dos inimigos poderosos,

Page 118: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

muito embora não se possa distinguir, em mui-tos casos, os proprietários de terra e donos defrigoríficos. De qualquer maneira, a assunçãoda identidade étnica Tremembé forja uma uni-dade que se contrapõe explicitamente aos pro-jetos dos diversos dominantes presentes naarena local, donos de terras e/ou frigoríficos, em-presas agroindustriais e seus representantespolíticos e mesmo pequenos posseiros. Mas osesquemas clientelistas são profundos e a che-gada da FUNAI recoloca em novos termos a pre-sença do Estado no local. Os resultados dessacorrelação de forças é um jogo ainda em pro-cesso, devendo-se atentar para as possibilida-des de reprodução do esquema clientelista noâmbito da administração tutelar.

1 Professor Assistente de Antropologia da Universidade doEstado da Bahia - UNEB; Pesquisador associado do Programade Pesquisa sobre Povos Indígenas no Nordeste - PINEB/UFBA; Membro da ANAÍ-BA.

2 Entendo emergência como um processo de reconstruçãosociopolítica de um grupo étnico tornado “invisível” porintermédio de mecanismos materiais e simbólicos desubordinação crescente produzidos pelo Estado e por agentesantagônicos da sociedade colonial/nacional.

3 Para uma análise mais detalhada dos processos de reduçãomissionária e os conflitos desta ação com as frentes de expansãoeconômica nessa área, consulte-se Sampaio, 1986; Martins eMesseder, 1988 e Carvalho, Dantas e Sampaio, 1994.

4 Devo deixar claro que o quadro de mudanças aqui esboçadonão se processou de maneira tão simples, parece-me ser óbvioque o investimento em educação estivesse no horizonte dacoletividade como parte de projetos sociais mais amplos,resultante inclusive de uma convivência com os moradores dacidade.

5 É bom frisar que ligações clientelistas anteriores a este períodojá deveriam existir, apenas são reforçadas pela necessidadeestrutural que o escasseamento de terrenos disponíveis para aagricultura evidenciou.

6 Devo salientar que, até se concretizar este momento deápice das ambigüidades entre tutor e tutelado, vários anostranscorreram desde o ingresso dos primeiros Tuxá no quadrofuncional do órgão tutor.

7 Eu diria que esta expressão caracteriza a atitude dasoligarquias, os desdobramentos dessa aliança resultaram em

Para finalizar, gostaria de chamar a aten-ção para o fato que o exercício aqui propostotem somente a intenção de colocar em análisecertos elementos destacáveis nas representa-ções e relações mantidas entre os índios e oórgão tutelar. Tal exercício não pretende ser umreceituário de ação para os agentes políticos,como fica evidente na própria exposição. Creioque serve para desmistificar os simplismos quedicotomizam índios como coletividades homo-gêneas e agentes externos claramente defini-dos. O entendimento do que Oliveira Filho (1988)chamou de “campo de ação indigenista” pas-sa, a meu ver, pela percepção de múltiplos ato-res em diálogo, costurando suas visões paraconviver em um espaço político comum.

uma correlação de forças tal que por diversas vezes o caciqueTuxá elegeu-se vereador e exerceu a presidência da câmarade vereadores. Outro fato é que um membro de uma dasparentelas de oposição ao poder instituído na aldeia elegeu-setambém vereador, o que só demonstra a força eleitoral dosTuxá no município. Nas conclusões retomarei a análise destapresença Tuxá na câmara, que tem hoje outro perfil e denotaas mudanças de perspectiva política dos Tuxá.

8 Entidades espirituais que se manifestam nos rituais religiosose que habitam um “reino vivo” entre o nosso mundo e omundo dos mortos. Para maiores informações etnográficas eanalíticas sobre o universo religioso Tuxá, consulte-se ostrabalhos de Nasser, E. , 1975 e Sampaio e Silva, 1983.

9 Os arranjos e conflitos políticos forjados pela composiçãoheterogênea da aldeia Tuxá de Ibotirama merecem uma análisemais detida, a qual não podemos realizar neste espaço, massem dúvida é um caso interessante de ser devidamenteestudado, para se entender processos de organização políticaem situação de reordenamento estrutural e necessidade deconstrução de projeto coletivo em meio à heterogeneidade deposições e trajetórias grupais.

10 Para maiores informações sobre o processo de constituiçãohistórica do território Tremembé, a chamada “Terra da Santa”,consultem-se os trabalhos de Valle (1993) e Messeder (1995).

11 O Torém é um ritual realizado unicamente pelos Tremembé,que tem como período preferencial a safra do cajú, entre osmeses de setembro a dezembro, fruta de cujo suco fermentadose faz o mocororó, bebida fartamente utilizada durante o ritual.Este último pode ser descrito como uma dança imitativa deanimais, acompanhada de cantos que se referem aos frutos e

Page 119: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

animais nativos. Para maiores informações sobre o Torémconsulte-se Valle (1993).

12 O primeiro desses trabalhos é de autoria de Florival Serraine,publicado em 1955, o segundo tem como autor um folcloristaregional, José Silva Novo, que publicou em 1973 uma pequenabrochura intitulada “Almofala dos Tremembé”. Para umadiscussão da influência destes trabalhos na configuração daetnicidade Tremembé, pode-se consultar minha dissertaçãode mestrado, na qual consta um subcapítulo sobre esta questão(Messeder, 1995).

13 Um ano após iniciada a minha pesquisa faleceu um“coronel”de estilo antigo que acumulava a função de párocoda cidade de Itarema; como herdeiro das fazendas envolvidasna transação com a empresa DUCOCO AGRÍCOLA S/A ecomo mediador qualificado pelos moradores da Varjota eTapera participou de reuniões que ele próprio agenciou entreos moradores e a empresa, tentando convencer os membrosdessas comunidades das vantagens de instalação doempreendimento. No trabalho já citado analiso melhor asrelações políticas ensejadas pelo coronelismo local.

14 Os movimentos sociais no Ceará de uma maneira geralparecem ter uma influência significativa das agências católicasde organização popular, o que mereceria por si só um estudoaprofundado e que certamente muito teria a contribuir para oentendimento das mudanças havidas na correlação de forçasentre os grupos sociais no Ceará.

15 Remeto mais uma vez às análises mais detalhadas da minhadissertação de mestrado, que procuram deslindar o diálogopolítico que se estabelece entre agentes missionários, em geral,e as comunidades, das quais são importantes aliados.

16 Há todo um processo de constituição dessa unidade que hoje

denomino São José Capim-Açú. O Capim-Açú não foiapropriado imediatamente pelo fazendeiro, ele reconhecia aposse de um sujeito. Este, por sua vez, vendeu a terra a umafamília que veio se instalar na área por volta do começo da

década de 1960 com o consentimento do fazendeiro. Estafamília extensa tem toda uma saga particular tecida na lutacontra o fazendeiro e de muita influência em toda a tramapolítica local, que resultou na desapropriação pelo INCRA dohoje “imóvel” São José Capim-Açú. Em que pesem asdiferenças, há toda uma unidade anterior entre um conjunto deáreas próximas, como é o caso da localidade denominadaCasa de Telhas, cujos moradores têm relações de parentescocom as pessoas do São José Capim-Açú e com famíliasimportantes do ponto de vista ritual de Almofala. O ancestraldireto das famílias de Casa de Telhas foi um dos últimos pajésdos chamados “tronco antigo” dos Tremembé. Enfim, a teia ébem mais complexa do que posso apresentar aqui.

17 A rede de relações que organiza a ação do Estado na regiãoprecisa ser entendida à luz de esquemas personalizantes eprivativos oriundos do poder oligárquico local. Assim, a reformaagrária se realiza, neste caso, como justiça social e doaçãopara os tradicionais ocupantes e recompensa econômica parao fazendeiro.

18 O conflito tem outros componentes elencados pelas partescomo móveis da disputa. Os inimigos do Patriarca o acusamde autoritarismo, centralização, exploração dos serviços dacomunidade, bebedeira e preguiça. Por outro lado, o Patriarcaacusa os Teixeira de ocuparem uma área sua e diz de outroslíderes que estes desviaram recursos enviados pelo Estadopara a comunidade. Há um conjunto de acusações que analisono quarto capítulo da minha dissertação, sendo que indico comoimportante elemento nesta disputa um conjunto de valoresmorais camponeses que legitimam a família Teixeira, maioresinimigos atuais do Patriarca, e deslegitimam o Patriarca comotrabalhador, pai de família e obviamente como líder político.

19 O irmão mais velho e líder da família após a morte do pai.

20 O desgate da FUNAI como inoperante para solucionar juntoà CHESF a retomada das atividades produtivas repercutiu naimagem das lideranças a ela estreitamente articuladas.

Bibliografia

DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José A. L. &CARVALHO, Maria R. G. de. “Os PovosIndígenas no Nordeste Brasileiro - Um EsboçoHistórico”. História dos Índios no Brasil.Maria Manuela Carneiro da Cunha (org.). SãoPaulo, Companhia das Letras, Secretaria Mu-nicipal de Cultura e FAPESP, 1992.

LIMA, Antonio Carlos de Souza. Um Grande Cer-co de Paz. Poder Tutelar, Indianidade eFormação do Estado no Brasil. Petrópolis,Vozes, 1995.

MARTINS, Marco A. M.. & MESSEDER, MarcosL. L. Relatório Parcial do Projeto de Salva-mento Arqueológico Itaparica do São Fran-cisco. Salvador, Museu de Arqueologia eEtnologia da Universidade Federal da Bahia,1987b.

MESSEDER, Marcos Luciano Lopes. Etnicidade eDiálogo Político: A Emergência dosTremembé. Dissertação de Mestrado. Salva-dor, Mestrado em Sociologia, UniversidadeFederal da Bahia, 1995.

Page 120: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

NASSER, Elizabeth. Sociedade Tuxá. Dissertaçãode Mestrado. Salvador, Mestrado em CiênciasSociais, Universidade Federal da Bahia, 1975.

NOVO, José Silva. Almofala dos Tremembé.Itapipoca, Impressão local, 1976.

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco. O Nosso Go-verno: Os Ticuna e o Regime Tutelar. SãoPaulo, Ed. Marco Zero, Brasília, MCT/CNPq,1988.

SAMPAIO, José Augusto L. De Caboclo a Índio:Etnicidade e Organização Social e Políticaentre os Povos Indígenas Contemporâneosno Nordeste do Brasil: O caso Kapinawá.Projeto de Pesquisa, Campinas, UNICAMP,1986.

SAMPAIO E SILVA, Orlando. O dilúvio na histó-ria-mito e na realidade Tuxá. São Paulo, Es-cola de Sociologia e Política, 1983, (dat.).

SERAINE, Florival. Sobre o Torém (dança de pro-cedência indígena). Revista Trimensal do Ins-tituto do Ceará, v. 69. Fortaleza, Ed. do Institu-to do Ceará, 1955.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo & ANDRADE,Lúcia M. M. de. “Hidrelétricas do Xingu: oEstado Contra as Sociedades Indígenas”.Leinad Ayer O. Santos & Lúcia M. M. deAndrade (orgs.). As Hidrelétricas do Xingu eos Povos Indígenas. São Paulo, ComissãoPró-Índio de São Paulo, 1988.

VALLE, Carlos G. Octaviano.1992.Os Tremembé.Grupo Étnico Indígena do Ceará. Laudo An-tropológico, Rio de Janeiro, PETI/Museu Na-cional, digitado.

Page 121: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

BREVE HISTÓRIA DA PRESENÇA INDÍGENANO EXTREMO SUL BAIANO E A QUESTÃO

DO TERRITÓRIO PATAXÓ DO MONTE PASCOAL

José Augusto Laranjeiras Sampaio

Page 122: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 123: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

BREVE HISTÓRIA DA PRESENÇA INDÍGENA NO EXTREMO SUL BAIANO E A QUESTÃO DO TERRITÓRIO PATAXÓ DO MONTE PASCOAL

José Augusto Laranjeiras Sampaio1

A implantação pela União, em 1961, doParque Nacional de Monte Pascoal, produziu oexemplarmente trágico fato de, já na segundametade do século XX, expropriar-se uma popu-lação indígena em nome da defesa de umpatrimônio ambiental que, até então, ela própriatinha se encarregado de preservar; e, mais queisto, de se o fazer em nome também da preser-vação de um importante sítio histórico nacional– o Monte Pascoal –, signo em relevo de umalardeadamente feliz encontro entre portugue-ses e ameríndios que fundaria esta “pacífica”nação. Este ato, contudo, seria apenas ummomento destacável de uma longa série dedesmandos governamentais sobre a populaçãoindígena do extremo sul baiano, iniciada maisde quatrocentos anos antes e continuada, após1961, em outra seqüência de episódios de des-caso e negligência para com a população Pataxóda aldeia de Barra Velha, e para com a suadiáspora, após aquele ano.

O presente trabalho pretende, por meiode um sucinto relato desta história e dos seusdesdobramentos contemporâneos, estimular areflexão e o empenho pela produção do conhe-cimento histórico e etnológico necessários equalificados a contribuir em processos sociaiscapazes de promover a prevenção ou a revisãodos efeitos das práticas absolutamente injus-tas, autoritárias e deformadas quanto ao reco-nhecimento de direitos territoriais de povos in-dígenas.

1 - Quadro histórico das etnias indígenas e daocupação colonial no sul da Bahia

Os povos indígenas do atual extremo sulbaiano são personagens marcantes já do pri-meiro documento da história do Brasil, a notó-ria carta de Vaz de Caminha (1500). A aguçada

descrição etnográfica aí contida não deixa dúvi-das quanto a serem Tupi estes índios, ou maisprecisamente Tupiniquim, como se tornariamconhecidos em toda a documentação colonialsubsequente para a região, especialmente aque-la produzida por missionários jesuítas que en-tre eles se estabeleceram já nas décadas inici-ais do Período Colonial (por exemplo Nóbrega,1549-70). Por outro lado, se estes Tupi, até en-tão senhores de todo o litoral dos atuais municí-pios de Belmonte, Porto Seguro e Santa CruzCabrália e de muitas outras porções da costa,tornaram-se de pronto não só bem conhecidoscomo subjugados ao colonizador, ficaria tam-bém logo patente que esses não estendiam seusdomínios muito para o interior, território de ou-tras etnias que à época os portugueses identifi-cavam apenas pela designação Tupi genéricade Aymoré e sobre os quais o poder coloniallevaria ainda mais que um par de séculos paraestabelecer o seu domínio.

Sabe-se hoje que os Tupi avançaram, vin-dos do sul, pela costa leste e nordeste do Bra-sil, dela desalojando diversas outras etnias, emgeral dadas como afiliadas ao tronco Macro-Jê(Urban, 1992), apenas no máximo alguns pou-cos séculos antes da intrusão européia (Métraux,1933) e que, apesar de terem consolidado seudomínio sobre o litoral, incursões belicosas dospovos do interior eram ainda freqüentes no limi-ar do século XVI, o que nos ajuda a compreen-der os desdobramentos do processo de coloni-zação nos três séculos seguintes. Antes, po-rém, é necessário caracterizar um pouco me-lhor estes dois grandes conjuntos sociais indí-genas.

Não se trata aqui, evidentemente, de darconta das formas múltiplas e freqüentementecomplexas da sua organização social e econô-mica, mas tão-somente de assinalar alguns as-

Page 124: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

pectos que me parecem importantes para acompreensão do processo colonial. Assim, en-quanto os Tupi tendiam a se concentrar em al-deias estáveis, relativamente grandes, onde po-deriam viver de mil a três mil indivíduos e, emalguns casos, até muito mais, os povos do inte-rior organizavam-se em pequenos bandos deapenas algumas famílias, algo em torno de de-zenas ou, no máximo, não muito mais que umacentena de indivíduos, o que lhes facultava umagrande mobilidade, raramente adotando ummesmo local de moradia permanente por maisque uma estação agrícola e, ainda durante talperíodo, com grande movimentação ao derre-dor.

É evidente que, com tais características,a caça e a coleta tinham, proporcionalmente,mais destaque na economia destes grupos quea agricultura; e que o oposto se dava no casodos Tupi costeiros, mais sedentários e capa-zes de exercer um domínio mais estável sobreum território específico, onde plantavam suasgrandes roças de mandioca e milho, intercala-das por extensões de mata – áreas de caça ecoleta –, além do domínio de importantíssimosecossistemas costeiros, especialmente estuá-rios, restingas e manguezais, ricos em proteí-na animal, além do acesso ao próprio oceano.

É indispensável assinalar ainda que, en-quanto os Tupi constituíam um conjunto cultu-ral e lingüístico bastante homogêneo ao longode toda a costa, ainda que fracionado em mui-tas unidades políticas locais de relativa flexibili-dade, os grupos do interior só podem ser toma-dos como uma unidade por características bemgenéricas, como as supra-referidas, ou pormero contraste ao conjunto Tupi e, ainda as-sim, corre-se o risco de distorções. A grandediversidade cultural e lingüística destes gruposestá ainda por ser devidamente dimensionadaà luz do escasso material etnográfico hoje dis-ponível e as tentativas no sentido de descobrir-se-lhes alguma unidade são profundamenteincipientes (por exemplo Paraíso, 1992). Maisesclarecedora parece ser a hipótese sustenta-da por lingüístas como Urban (op.cit.) de que aregião compreendida hoje pelo sul da Bahia, les-te e nordeste de Minas Gerais e o Espírito San-

to – dominada pelas grandes bacias dos riosDoce, Mucuri, Jequitinhonha, Pardo e de Con-tas – tenha sido a região original de concentra-ção dos grupos do tronco Macro-Jê. Isto expli-caria a sua grande diversidade lingüística, quecompreende as famílias Botocudos, Maxakalí,Puri, Kamakã, possivelmente Pataxó – não su-ficientemente conhecida para uma classifica-ção precisa – e talvez outras, além de línguasisoladas, cujos escassos registros hoje dispo-níveis também não permitem maioresdiscernimentos. De qualquer modo, tais formu-lações me levam a ressaltar a relevância daregião para próximas pesquisas históricas,etnológicas e, sobretudo, arqueológicas, bemcomo da necessidade de preservação dos tes-temunhos ainda existentes, provavelmente ca-pazes de iluminar importantes capítulos da nos-sa Etnologia e Pré-História.

Voltando, porém, à história colonial, creiopoder-se agora compreender como as grandesaldeias dos Tupiniquim se tornaram presas fá-ceis da conquista lusitana, iniciada por méto-dos “pacíficos” e completada militarmente quan-do já não era possível a resistência. Neste pro-cesso, as grandes concentrações indígenas –intensificadas pelo trabalho catequético dos je-suítas – foram amplamente dizimadas pelasepidemias européias, rapidamente alastradas,de modo tal que, ao se encerrar o século XVI,praticamente já não havia Tupiniquins livres naatual costa baiana. Com efeito, das próprias al-deias missionárias que, nas cercanias de Por-to Seguro, chegaram a mais de uma dezenaem meados daquele século, apenas duas so-breviveram, bastante depopuladas (Leite, 1945):as de São João Batista e Patatiba – respecti-vamente a cerca de quatro ou cinco léguas asul e a oeste da sede da capitania – , tornando-se vilas com a expulsão dos jesuítas no séculoXVIII, quando adotaram as denominações deTrancoso e Vila Verde, sobrevivendo aí uma pre-cária sustentação da condição indígena de par-cela dos seus habitantes, o que, pelo menos nosegundo caso – atual Vale Verde – , perduraaté o presente (cf. Mascarenhas, 1998).

Por outro lado, uma vez subjugados – oumais propriamente exterminados – os

Page 125: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Tupiniquim, as incipientes povoações costeirasdos colonos se tornariam, por sua vez, alvosquase indefesos para os imprevisíveis ataquesdos bandos indígenas interioranos. Verdadeirosprecursores da técnica das guerrilhas, os en-tão chamados “Aymoré” eram capazes de sur-gir repentinamente naquelas povoações, pilhan-do e devastando suas moradias e plantações,desaparecendo com a mesma rapidez de voltapara as matas interiores, onde sua mobilidadee dispersão, além de prevenir uma propagaçãorápida das epidemias mortíferas, desencorajavaplenamente as tentativas de reação dos colo-nos. Tal estado de coisas dominou a cena dascapitanias de Ilhéus e Porto Seguro durante osséculos XVII e XVIII, período em que as acanha-das povoações costeiras pouco mais que ve-getaram, situação que ainda perdurava no iní-cio do século XIX (veja-se, por exemplo, Airesdo Casal, 1817), e que, certamente, explica aextinção dessas capitanias.

Nesta época, porém, o combate aos “ban-dos selvagens” da região deixa de ser empresaapenas dos colonos locais e passa a interes-sar ao próprio governo real que, preocupadocom questões geopolíticas transcontinentais ecom o estabelecimento de rotas terrestres en-tre a capital e as minas e o isolado Nordeste,determina estabelecerem-se fortificações –”quartéis” – nos cursos médios de todos osrios principais entre o Doce e o Pardo – ori-gem de atuais cidades como Linhares e Saltoda Divisa – , a partir dos quais se dirigem, des-de então, ataques sistemáticos aos povos indí-genas da região.

Na mesma época, a região passa a serpercorrida com regularidade por prepostos go-vernamentais e, principalmente, por pesquisa-dores estrangeiros, cujos relatos, notadamenteo do príncipe alemão de Wied-Neuwied (1817),permitem-nos hoje um bom conhecimentoetnológico daqueles povos indígenas, em suamaior parte ainda autônomos, e, no que inte-ressa aqui mais diretamente, fornecem umaboa idéia da sua distribuição territorial.

É seguro que, nas vizinhanças do litoral,os Botocudo – localmente autodesignados

Gren – limitavam-se ao sul e mantinham dis-putas com os Pataxó à altura do rio de SantaCruz – João de Tiba – e tinham ao longo doJequitinhonha suas principais concentrações.Limitavam-se ao norte, na altura do Rio Pardo,com outros bandos Pataxó e, mais para o inte-rior, com os Kamakã. Estes últimos, contudo,mantinham, já desde o século anterior, uma po-voação na foz do Jequitinhonha, junto à vila deBelmonte, onde eram conhecidos por Meniã. OsBotocudo, mais uma vez, em diversos bandose sob diversas denominações, voltavam a do-minar as proximidades da costa ao sul do rio deSão Mateus – Cricaré – , mantendo concen-tração ao longo do rio Doce e estabelecendocontato pelo interior com os bandos ao norte,na área do Jequitinhonha. Esta porção mais in-terior, correspondente ao atual nordeste do es-tado de Minas Gerais, era compartida porBotocudos e etnias outras – as quais não men-cionarei aqui – que são, em sua maioria,identificáveis lingüisticamente às famíliasMaxakalí ou Kamakã.

A faixa correspondente, grosso modo, aoatual extremo sul baiano era, pois, dominadapelos Pataxó, como ficou dito, e também porgrupos Maxakalí, que as fontes da época refe-rem lhes serem assemelhados, inclusivelingüisticamente, embora não forneçam bonsregistros disto. Estes Pataxó e Maxakalí pare-cem ter compartilhado o mesmo território, en-tre o João de Tiba e o São Mateus, e é tambémreferido que constituíam alianças temporáriaspara debelar investidas dos Botocudo. Pareceser, porém, possível discernir que os Pataxómantinham maiores concentrações na áreamais próxima à costa, enquanto que os Maxakalíteriam seu pólo de dispersão nas cercanias daserra dos Aimorés – atual divisa entre Bahia eMinas Gerais – , disposição que, de resto, con-servam ambos no presente (Carvalho eSampaio, 1992).

A conquista desses povos indígenas dosul da Bahia é uma longa história, de mais decem anos, que só atingiria seu ápice nas déca-das iniciais do século XX, quando as roupasinfectadas por lepra e varíola que plantadoresde cacau da região entre o Contas e o Pardo

Page 126: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

espalharam pela mata deram cabo dos últimosbandos ainda isolados e vivendo de modo autô-nomo (Ribeiro, 1970). No que diz respeito aoextremo sul, porém, tudo indica que, já em me-ados do século XIX, a maioria da população in-dígena sobrevivente vivia junto às vilas coloni-ais costeiras – de Santa Cruz Cabrália a PortoAlegre, atual Mucuri – , para onde fora trazidana tentativa de ser submetida ao trabalho a ser-viço dos regionais. Em 1861, contudo, preocu-pado com os constantes conflitos entre estes eos índios e, provavelmente, também com a pos-sibilidade legal dos últimos reivindicarem as ter-ras que ocupavam, o Presidente da Provínciada Bahia determinou a concentração compul-sória de toda a população indígena da regiãonuma única aldeia, a ser estabelecida no pontomédio daquela costa, junto à embocadura dorio Corumbau. Esta é, seguramente, a origemda atual aldeia de Barra Velha (Carvalho, 1977).

2 - Os Pataxó: da criação da aldeia de Barra Ve-lha à do Parque Nacional de Monte Pascoal

Pelo exposto acima, parece legítimo de-duzir-se que a aldeia de Barra Velha abrigou,em sua origem, não apenas índios Pataxó, mastambém Maxakalí, com esses há poucos anostrazidos do interior da região e, possivelmente,índios Botocudo das vizinhanças, subjugadosna mesma época, “descendentes” dosTupiniquim de Trancoso e Vila Verde e Kamakãs– Meniã de Belmonte. Sobre esta muito prová-vel diversidade original, o etnônimo Pataxó pre-valeceu provavelmente por ter sido destes omaior contingente, além de estar a aldeia situa-da em território tradicionalmente reconhecidocomo Pataxó.

Fato é que estes Pataxó de Barra Velharomperam o século XX, muito certamente, comoa única comunidade indígena na região e aí vi-veram isolados de qualquer contato mais regu-lar com a população envolvente, além dos dimi-nutos povoados que lhes são vizinhos. Comefeito, entre 1861 e 1951 são escassíssimasas referências existentes sobre esta aldeia per-dida numa das regiões então mais isoladas doestado (Carvalho, 1977).

Tal isolamento seria dramaticamente rom-pido em 1951, em um episódio fartamente noti-ciado pela imprensa de Salvador à época, queprovavelmente tem sua origem alguns anos an-tes, quando, por ocasião da criação do ParqueNacional de Monte Pascoal pelo Decreto 12.729,de 19 de abril de 1943, as primeiras equipestécnicas visitaram a área, estabelecendo con-tato, direto ou indireto, com os Pataxó. A notíciada criação do Parque é o provável motivo quelevou líderes Pataxó a empreenderem uma iné-dita viagem ao Rio de Janeiro, na expectativade obter do Marechal Rondon o direito a suasterras. Retornaram da capital sem êxito apa-rente junto ao então Serviço de Proteção ao Ín-dio (SPI), mas acompanhados por dois indiví-duos de identidade misteriosa – sobre os quaisse conjecturou serem ligados ao Partido Co-munista – que, a pretexto de demarcar os limi-tes das suas terras, estimularam-nos a saque-ar o pequeno comércio do vizinho povoado doCorumbau, o que desencadeou uma violentareação policial a partir das cidades de PortoSeguro e Prado, dando origem a uma série deperseguições aos Pataxó e ao início da sua dis-persão pela região. Os dois forasteiros forammortos na primeira investida policial (Carvalho,ib.).

Este trágico episódio, até hoje muito mar-cado na memória dos Pataxó, é freqüentementepercebido por muitos deles como um “mal-en-tendido” que causaria a perda de suas terras.Nesta versão nativa, o Parque de Monte Pascoalseria originalmente destinado aos índios, paraque estes, com suas terras asseguradas, pu-dessem “viver como antigamente, nus, caçan-do e tirando mel pelas matas”. O “fogo de 1951”teria fornecido o pretexto para que governantesinescrupulosos – após as mortes de Rondone Getúlio Vargas, “protetores dos índios” –distorcessem o objetivo original, entregando oParque para um órgão – o atual IBAMA (Institu-to Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Na-turais Renováveis) – que, a partir dos anossessenta – e após as arbitrariedades policiaissofridas pelos Pataxó nos anos cinqüenta –, as-sumiria a tarefa de “perseguir os índios e tomarsuas terras, como vem fazendo até hoje”.

Page 127: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

De fato, após mais de uma década emque existiu apenas “no papel”, o Parque Nacio-nal de Monte Pascoal foi finalmente implantadoem 1961. Os estudos técnicos que orientaramsua delimitação argumentam com competên-cia pela necessidade – apesar da redução daárea originalmente prevista – de proteção aosítio histórico do Monte Pascoal e da preserva-ção de uma faixa quase intocada da Mata Atlân-tica que se estende desde as bases da famosamontanha até a costa, onde se encontram, igual-mente dignos de preservação, alguns dos maisextensos e ricos manguezais de todo aquelelitoral (apud Carvalho, ib.). Coincidência ou não,porém, a área então delimitada correspondia,quase exatamente, como bem o demonstra ominucioso estudo de Carvalho (ib.), ao territóriotradicionalmente utilizado pelos Pataxó de Bar-ra Velha.

Desconhecidos ou ignorados pelo órgãoindigenista nacional – que vivia então a fasefinal de uma longa crise que levaria à suaextinção em 1967 (Davis, 1977) – e tratadospelo órgão encarregado do “desenvolvimento flo-restal” como simples posseiros, os Pataxó deBarra Velha foram então compungidos a rece-ber indenizações por suas parcas “benfeitorias”e deixar sua aldeia, agora inserida no ParqueNacional. A maioria dos índios resistiu a isto, sen-do porém impedidos de plantar suas roças naárea, situação que perdurou por dez anos, atéque, no início dos anos setenta, o novo órgãoindigenista – FUNAI (Fundação Nacional do Ín-dio) – finalmente implantasse sua assistênciae tutela de direitos sobre esses Pataxó.

Este período, contudo, foi marcado pelogrande surto madeireiro que atingiu a região naesteira da construção da rodovia BR-101 – inau-gurada em 1973 – e pela implantação de umcrescente mercado de turismo que se lhe se-guiu. Neste contexto, inviabilizados na utiliza-ção de suas terras tradicionais, os Pataxó sãolevados a se engajar como mão-de-obra nasnovas atividades econômicas que se implan-tam na região, sendo também estimulados, apartir dos anos setenta – por pesquisadores,funcionários e comerciantes –, a desenvolversua produção de artesanato, o que se revelaria

uma alternativa interessante, capaz de preser-var-lhes, em função do fluxo turístico, algumaautonomia econômica.

Ao implantar sua assistência sobre osPataxó de Barra Velha, a FUNAI estabeleceu umacordo pouco mais que apenas tácito com oentão Instituto Brasileiro de DesenvolvimentoFlorestal (IBDF), que passou a facultar aos ín-dios o direito de plantio nas capoeiras já exis-tentes na área do Parque (Carvalho, ib.) e, em-bora tal não fosse suficiente para atender àsdemandas produtivas dos Pataxó, manteve-se,assim, intocada a crucial questão da legitimida-de de domínio sobre as terras. Àquela altura erajá irreversível o processo de dispersão dosPataxó de Barra Velha, muitos dos quais, apósperambular por locais e atividades diversos naregião, voltariam a se concentrar em novos nú-cleos indígenas, alguns dos quaisincipientemente brotados já antes dos anos ses-senta. Relacionarei aqui, brevemente, as atu-ais comunidades Pataxó no extremo sul baiano,voltando em seguida ao caso do território doMonte Pascoal, com especial atenção à sua si-tuação fundiária e econômico-social.

Barra Velha: considerada por todos os Pataxócontemporâneos no extremo sul como sua “al-deia mãe”,ainda, em 1998, era uma das maio-res delas, com uma população de 965 habitan-tes (ANAI, 1998). Está situada a um quilômetroda praia, a meio caminho das embocaduras dosrios Caraíva e Corumbau e cerca de uma léguade cada um dos povoados homônimos aí situa-dos.

Boca da Mata: foi criada em 1981, após novoacordo entre a FUNAI e o IBDF, que destinouaos Pataxó uma faixa exclusiva no Parque deMonte Pascoal. Situa-se na margem direita docórrego Cemitério, pouco acima de sua conflu-ência com o Caraíva. Contava, em 1998, com556 moradores (ib.).

Meio da Mata: desdobrada da anterior – da qualdista cerca de seis quilômetros, a leste – em1987, situa-se na margem direita do rio Caraíva,pouco abaixo de sua confluência com o Cemi-tério. Meio da Mata tinha, em 1998, uma popula-ção de 162 habitantes (ib.).

Page 128: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Estas três aldeias ocupam um mesmo ter-ritório contínuo designado pela FUNAI “Terra In-dígena Barra Velha”, com 8.627 hectares, situ-ada no extremo sul do município de Porto Se-guro e junto – ou dentro (vide adiante) – doParque de Monte Pascoal.

Imbiriba: pequeno núcleo originado, já nos anosvinte (Furtado, 1986), por uma única família ex-tensa, foi alimentado por novas levas demigrantes de Barra Velha após os episódios de1951 e 1961. Deu origem ao povoado regionalde Itaporanga, que lhe é vizinho. Tinha, em 1998,população de 99 índios (ib.) e está próximo àmargem direita do rio do Frade, a seis quilôme-tros da costa e cerca de cinco léguas ao nortede Barra Velha, município de Porto Seguro.

Aldeia Velha: É o núcleo Pataxó mais recente-mente consolidado. Trata-se de um antigo as-sentamento indígena de onde as famílias resi-dentes foram expulsas nos anos sessenta esetenta. Após algumas tentativas para reocuparo local, já nos anos noventa, que não lograramêxito pela reação de um pretenso proprietário,estas famílias conseguiram, finalmente, no iní-cio de 1998, fixarem-se no local, que passou aaglutinar várias outras famílias Pataxó até en-tão dispersas pelos núcleos urbanos costeirosdo município de Porto Seguro (Arraial d’Ajuda,Trancoso, Caraíva etc.), reunindo, então, 199habitantes (ANAI, ib.). Situa-se à margem es-querda do estuário do rio Buranhém, em frenteà cidade de Porto Seguro e imediatamente àmontante da povoação de Arraial d’Ajuda.

Coroa Vermelha: aldeia surgida em 1972 e, ori-ginalmente, totalmente orientada para acomercialização de artesanato, ainda hoje suaprincipal atividade; é o núcleo Pataxó que maiscresce. Um levantamento feito em 1998 regis-trou uma população de 1546 moradores (Espí-rito Santo, 1998), não incluído o contingente flu-tuante de pataxós de outras aldeias – ou denenhuma – que aí permanecem, temporaria-mente, em especial nos meses de maior fluxoturístico. Está localizada junto ao sítio históricoda Coroa Vermelha, entre a praia e a pista daBR-367, oito quilômetros ao sul da sede do mu-nicípio de Santa Cruz Cabrália e quinze quilô-metros ao norte da sede do município de Porto

Seguro. A Terra Indígena Coroa Vermelha com-preende ainda uma gleba de mata a cerca deseis quilômetros a oeste da aldeia, na qual acomunidade desenvolve, desde 1972, ativida-des de coleta e, desde 1990, alguma agricultu-ra.

Mata Medonha: foi implantada, em 1951, emuma região até então completamente isolada,por uma família de refugiados de Barra Velha.Outros grupos familiares, também oriundos deBarra Velha, viriam a aí se instalar já nos anosoitenta (Furtado, op.cit.), compondo uma popu-lação, em 1998, de 143 indivíduos (ANAI, op.cit.). Situa-se à margem esquerda do baixo cur-so do rio Santo Antônio, pouco mais de umalégua a montante do povoado homônimo e cer-ca de 12km da embocadura do rio, na regiãonorte do município de Santa Cruz Cabrália.

Águas Belas: consolidada, na década de seten-ta, por migrantes de Barra Velha, tinha popula-ção de 100 habitantes (ib.) e está localizada nonorte do município do Prado, a cerca de seisquilômetros do limite sul do Parque de MontePascoal e a cinco léguas da costa.

Corumbauzinho: ocupa a faixa entre a anteriore a margem direita do rio Corumbau, limite suldo Parque. Assistida pela FUNAI apenas a par-tir de 1998, tinha, então, população de 120 indi-víduos (ANAI, op.cit.).

Trevo do Parque: outro núcleo surgido da ne-cessidade de comercializar artesanato, ocupauma estreita faixa doada por um fazendeiro, em1988, junto ao entroncamento das rodovias BR-101 e BR-498, esta última a via de acesso àsede do Parque de Monte Pascoal e ao própriomonte. Conta com razoável população flutuan-te e, em 1998, com 71 residentes em caráterpermanente (ANAI, op.cit.). Está no municípiode Itamaraju, quinze quilômetros ao norte da suasede.

Assim, havia, em 1998, uma populaçãode quase quatro mil pataxós vivendo nas aldei-as do extremo sul baiano, quase toda ela emuma faixa de cerca de trinta quilômetros de lar-gura desde o norte do rio Caí, no município doPrado, e ao longo de todo o litoral dos municípi-os de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália. Es-

Page 129: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

tes dados de população não incluem uma po-pulação dificilmente calculável de pataxós quevivem na região, fora das aldeias, ou mesmofora da região, mas que mantêm contato regu-lar e vínculos diversos com as aldeias e inte-gram uma certa unidade social Pataxó queextrapola os limites dos seus territórios.

3 - O território indígena do Monte Pascoal

3.1 - Processo de regularização ou aformalização do esbulho

Como ficou dito, quando a FUNAI implan-tou sua administração tutelar sobre os Pataxóde Barra Velha, manteve intocada a questão dalegitimidade de domínio sobre as terras entãodo Parque Nacional de Monte Pascoal, ou me-lhor, tratou de ignorá-la, investindo em um pre-cário acordo com o então IBDF, para que osíndios pudessem plantar nas “capoeiras” doParque, o que, evidentemente, não foi suficien-te nem para atender às demandas produtivasdos índios nem para extinguir os já então crôni-cos conflitos entre estes e a guarda do IBDF.Apenas a partir de 1977, quando já vigia umconvênio entre A FUNAI e a Universidade Fede-ral da Bahia para estudo e assessoria aos po-vos indígenas no estado, foi tomada a iniciativa,orientada por professores pesquisadores doDepartamento de Antropologia daquela Univer-sidade, já trabalhando entre os Pataxó, de sedesenvolver estudos para definição e regulari-zação do “território tradicionalmente ocupado”pelos Pataxó, na forma da lei. Resultados preli-minares destes estudos estão contidos nos ex-celentes trabalhos de Agostinho (1980 e 1981)e no, já citado, de Carvalho (1977). Esses, con-tudo, jamais seriam oficialmente assumidos, ousequer tomados em conta, pela direção daFUNAI, o que resultaria, em 1981, na denúnciado convênio pela Universidade.

A direção da FUNAI, à época, optou pornão questionar a legitimidade do Parque Nacio-nal e propor uma “negociação” com o IBDF parapartilha da sua área, alternativa evidentementeinteressante para o órgão florestal. Da parte dosPataxó, contudo, tais estudos e negociações

foram, muito legitimamente, percebidos comoa oportunidade de recuperar o seu tradicionalterritório, isto é, aquele que vinham ocupandopor cem anos, da implantação da aldeia, em1861, à do Parque, em 1961, e que, tanto naconcepção e na memória dos índios quanto noque os estudos estavam a indicar, tinha limitesmuito bem definidos e facilmente reconhecíveis:os cursos dos rios Caraíva e seu afluente, Ce-mitério, ao norte; Corumbau e seu afluente,Jibura, ao sul; a costa, a leste, e o MontePascoal, a oeste.

Vale ressaltar que, no contexto de taisnegociações, evidenciava-se e ganhava relevouma centenária disputa simbólica pela possedo próprio Monte Pascoal. Lembro-me que,acompanhando uma das sessões de discus-são, em 1979, ouvi de um líder Pataxó, quandose lhe expunha o “princípio” da partilha, acorda-do entre os órgãos federais, a afirmação de que“se é para dividir a área do Parque, então quese divida o monte também”, o que estava a de-monstrar também a clareza de percepção doseu tradicional limite ocidental.

Logo ficaria claro que uma realreconstituição do território dos Pataxó que lhespermitisse retomar seus tradicionais processosprodutivos, isto é, aqueles vigentes até 1961,implicaria subtrair ao Parque cerca de 16.000 a18.000 dos seus 22.500 hectares, reduzindo-oapenas às áreas imediatamente em torno e aoeste do Monte Pascoal, possibilidade explici-tamente colocada como inaceitável pelo IBDF,tanto pela redução drástica da área sob sua ad-ministração, quanto pela perda da faixa costei-ra do Parque, valorizada pela presença do queseria o único ecossistema de manguezais as-sociados à Mata Atlântica incluído em uma uni-dade de conservação ambiental no país.

Inviabilizada a “via negociada” – pelo me-nos no que dizia respeito à participação dos in-teressados diretos –, a direção da FUNAI optoupor afastar índios e pesquisadores da questão,chegando, em 1980, a um acordo com o IBDF,pelo qual este “cedia” à administração da FUNAIapenas o correspondente ao que seria a meta-de norte do tradicional território indígena, junto

Page 130: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

ao rio Caraíva, estendendo-se para oeste ape-nas até as proximidades da base do MontePascoal, uma área com a já referida extensãototal de 8.627 hectares. À altura da costa, o IBDFpreservava, assim, o domínio dos ricosmanguezais junto ao estuário do rio Corumbau,deixando livres à exploração indígena apenasos pobres brejos arenosos junto ao estuário doCaraíva.

A perda destes manguezais – até entãosua quase única fonte de proteína animal –, ali-ada à redução do que esperavam ver reconhe-cido como seu território, foi um dos principaispontos de descontentamento da maioria dosPataxó de Barra Velha com relação ao “acor-do”. Apesar disto, a área “cedida” foi rapidamentedemarcada, ainda em 1980, e reconhecida pelaFUNAI como “área indígena”, a da Portaria 1393/E, de 01 de setembro de 1982.

A área assim “identificada” seria, em se-guida, submetida à apreciação do Grupo de Tra-balho Interministerial criado pelo Decreto94.945/87 que, em sua Resolução 02, de 20 dejulho de 1988, resolveu “reconhecer” a área como“de posse imemorial indígena”, recomendandosua regularização com a designação “ColôniaIndígena Barra Velha”. Por fim, a área seria ho-mologada pelo Decreto 396 (24/12/91), da Pre-sidência da República.

Deve-se sublinhar aqui que todos os ins-trumentos administrativos supra-referidos nãose baseiam em nenhum estudo ou parecer téc-nico – e que, via de regra, incluiriam um “laudoantropológico” – que respalde os limitesadotados, conforme determinado em toda a le-gislação referente à matéria, em suas diversasfases, tendo se orientado apenas pelo precário,bem como técnica e legalmente insustentável“Acordo” firmado entre a FUNAI e o IBDF em1980. Tal circunstância ficou, de resto, clara-mente demonstrada em “Informação Técnica”do Ministério da Reforma e DesenvolvimentoAgrários (MIRAD), por Simonian (1986), antro-póloga e assessora deste Ministério. Tal infor-mação, contudo, não seria tomada em conta –nem contestada, diga-se – pelo Grupo de Tra-balho Interministerial – do qual o MIRAD eramembro –, quando da sua supracitada Resolu-

ção. Outro membro discordante do Grupo, o Ins-tituto de Terras da Bahia (INTERBA), recusou-se, na pessoa do seu Presidente, EduardoAlmeida, a firmar a dita Resolução.

Por outro lado, o Decreto de homologa-ção, embora mencione, em sua descrição delimites, o Parque Nacional de Monte Pascoalcomo confrontante da Terra Indígena, não fazqualquer referência a eventuais alterações noslimites originais deste, para deles excluir a ditaTerra. Isto configura, de fato, do ponto de vistalegal, uma situação de superposição de territó-rios da União, já que a área em questão perma-nece, formalmente, integrante do Parque, umavez que o decreto presidencial que o delimitounão pode estar revogado pelo mero “termo deacordo” de 1980 entre IBDF e FUNAI.

Em 1997, atendendo a questionamento doMinistério Público Federal por meio da Procura-doria da República, a FUNAI reconheceu, porfim, em Informação Técnica de seu Departa-mento de Identificação e Delimitação de terras(Santos, 1997), as irregularidades administrati-vas e técnicas havidas no processo de defini-ção e regularização da Terra Indígena BarraVelha, bem como a legitimidade do pleito dosPataxó pelo direito ao seu tradicional território.

Em seguida, a Procuradoria da Repúbli-ca em Ilhéus dirigiu, em junho de 1999, reco-mendação legal para que a FUNAI “promova (...)em regime de urgência, os estudos de identifi-cação e delimitação da Terra Indígena Barra Ve-lha, para fins de revisão dos seus atuais limitese da sua demarcação e regularização confor-me disposto no Artigo 231 da Constituição Fe-deral.” (Leão Jr., 1999).

Enfim, a FUNAI, por meio de sua Portaria685, de 18 de agosto de 1999 (publicada no Di-ário Oficial da União a 20/08), resolveu “Consti-tuir Grupo Técnico para realizar estudos de (...)revisão de limites da Terra Indígena Barra Ve-lha” (Lacerda, 1999).

3.2 - As comunidades Pataxó do Monte Pascoalhoje

Se discorri um tanto longamente sobre a

Page 131: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

história do tradicional território dos Pataxó daaldeia de Barra Velha e da sua expropriação pelaUnião sob a forma do Parque Nacional de Mon-te Pascoal, é que tais dados me parecem im-prescindíveis a uma boa compreensão da suaatual cena socioeconômica, marcada por umaquase total falência dos processos produtivosindígenas tradicionais – o que tem gerado umasituação de miséria e de dependência – e pelapermanência de conflitos com os prepostos re-gionais do IBAMA, aparentemente insolúveis noatual quadro institucional e administrativo.

Após o “acordo” de 1980 e a demarcaçãode 1981, que “transferiram” aos Pataxó de Bar-ra Velha a fatia de 8.627 hectaresdesmembrados do Parque, parte da comuni-dade, sob a liderança do grupo familiar deFirmino e Manuel Santana, decidiu retomar otrabalho numa localidade onde anteriormentemantinham roçados, agora situada no extremooeste da área “cedida”, para aí se deslocando edando origem, à margem direita do córrego Ce-mitério, à nova aldeia de Boca da Mata.

A implantação da nova aldeia propicioutambém o retorno de famílias Pataxó dispersasdesde algumas décadas antes, fazendo comque a nova comunidade logo contasse com umapopulação de algumas centenas de indivíduos.As condições de produção não eram, contudo,de modo algum, semelhantes àquelas vividaspelos Pataxó no passado.

Em primeiro lugar, a “partilha” do Parquedeixou aos índios, no local, apenas os terrenosde encosta entre os contrafortes do MontePascoal e o estreito vale do Cemitério e doCaraíva, subtraindo-lhes os terrenos planos,mais propícios à agricultura tradicional, manti-dos no interior do Parque.

Em segundo lugar, a economia regionalvivia ainda o auge da exploração predatória demadeira que a atingira desde os anos sessentae os Pataxó de Boca da Mata, que implantaramsua nova aldeia sem nenhum apoio governa-mental, necessitavam de capital para tanto epara a retomada de suas atividades produtivas,para o que, evidentemente, lançaram mão domercado madeireiro que, de resto, já os asse-

diava desde a notícia do “acordo” FUNAI-IBDF.

Totalmente retirada a cobertura de matada encosta de Boca da Mata, foi aí implantadauma agricultura em moldes técnicos tradicio-nais mas intensiva, pela própria escassez deterras, e pela presença, antes irrisória, de ummercado consumidor regional. Deste modo,sem assessoria técnica que permitisse aosPataxó uma talvez possível melhor adequaçãoprodutiva às novas condições e inviabilizadosos recursos tradicionais de conservação erevitalização de solos pela rotatividade e pre-sença da mata, os terrenos de encosta da Bocada Mata, tendo ainda que suportar um incremen-to populacional acelerado, muito previsivelmentese exauriram em cerca de cinco anos.

Assim, entre 1986 e 1987, os Pataxó abri-ram uma nova frente de ocupação intensiva,cerca de uma légua a leste da anterior e emcondições em tudo semelhantes àquela. Nestalocalidade, onde se consolidou uma terceira al-deia, a de Meio da Mata, as condições de pro-dução parecem ser análogas às da Boca daMata. Em ambas os índios se queixam de queos terrenos “só dão mandioca e abacaxi” e de-pendem do fornecimento, sempre irregular, porparte de órgãos governamentais, de carosinsumos que possibilitem a tentativa de outroscultivos. Enquanto isto, a população que per-maneceu em Barra Velha manteve o cultivo nosantigos roçados mais próximos à aldeia que,na verdade, apenas no período crítico dos anossessenta deixaram de ser explorados mais re-gularmente (Carvalho, 1977). Os terrenos aí,contudo, mais próximos à praia, são conside-ravelmente mais pobres que os da mata quedomina o alto do tabuleiro que principia a oesteda aldeia e se estende pelo interior do Parqueaté a base do Monte Pascoal.

Logo após o “acordo” de 1980, os confli-tos entre os Pataxó de Barra Velha e prepostosdo IBDF, longe de cessarem, intensificaram-se,tendo por objeto, principalmente, a utilização dosmanguezais ao sul da aldeia que, como ficoudito, foram mantidos fora do território indígena.Em seguida à demarcação de 1980, o IBDFchegou a instalar um posto de vigilância sobre

Page 132: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

o limite estabelecido, entre a aldeia e omanguezal, que teria também a função de con-trolar o acesso de “outros estranhos” pelo ladoda praia. Por diversas vezes, desde então, osPataxó expulsaram daí o encarregado da vigi-lância, terminando por destruir a guarita. Nosúltimos anos, o IBAMA local parece conforma-do à inviabilidade deste posto de vigilância, quepermanece abandonado, e os Pataxó de BarraVelha, como sempre fizeram há pelo menosmais de cem anos, continuam coletando, parasua subsistência, os crustáceos e moluscos domangue, ainda muito importantes em sua die-ta, em geral pobre em proteína animal.

Muito mais preocupante, do ponto de vis-ta ambiental, que a ação indígena sobre omanguezal é a que vem sendo feita a partir dopovoado de Corumbau, imediatamente ao suldo mesmo, onde se tem implantado uma pro-missora infra-estrutura hoteleira, com um cres-cente afluxo de turistas na alta estação. A pre-sença de um voraz mercado consumidor temestimulado a coleta comercial, a qual, esta sim,pode comprometer seriamente a preservaçãoda vida no manguezal do Parque Nacional.

Os problemas mais sérios dos Pataxó doMonte Pascoal com o IBAMA, contudo, envol-vem mais diretamente as comunidades de Bocada Mata e Meio da Mata, alvos de seguidas acu-sações – de resto nunca comprovadas – porparte da administração local do órgão, deintermediarem a retirada de madeira do Parque.

Nos últimos anos, o IBAMA alardeou pelaimprensa regional (“A Tarde”, 12/10/93 e 15/04/94) ter flagrado índios retirando madeira do Par-que. A leitura atenta deste noticiário revela, con-tudo, que a apreensão recolheu, basicamente,peças da matéria-prima que os Pataxó costu-mam utilizar na confecção de artesanato – pe-quenos troncos de arruda – e não as madeirasde interesse das serrarias locais que, como ésabido, também “desaparecem” do Parque.

Da parte dos Pataxó, que evidentementenegam qualquer envolvimento com o roubo demadeira do Parque por empresas madeireiras,a coleta de matéria-prima para artesanato éassumida e justificada por estarem lançando

mão dos recursos naturais do seu tradicionalterritório que, como vimos, consideram usur-pado pelo órgão ambiental.

Nas atuais condições de vida dos Pataxó,a comercialização de artesanato, ainda que de-pendente de consumidores sazonais, aparececomo uma indispensável via de acesso ao mer-cado, mesmo para os índios das comunidadesdo Monte Pascoal que, distantes dos principaispontos de comércio, têm que se submeter aintermediários ou se ausentar dos seus locaisde moradia na alta estação, com prejuízos parao trabalho agrícola.

Neste contexto, o possível esgotamentode suas fontes de matéria-prima naturalmentenão interessa aos Pataxó e, claramente, seriamelhor tratada no âmbito do planejamentoecônomico-social que no das penalidades le-gais.

As disputas entre pataxós e prepostos flo-restais parecem, porém, encontrar suas razõespolíticas e mesmo emocionais mais profundas,no próprio contexto em que se deu a criação doParque de Monte Pascoal e mesmo nas rivali-dades étnicas que opõem aos Pataxó segmen-tos da população regional, na qual, de resto, sãorecrutados aqueles prepostos, para alguns dosquais a demarcação de uma área indígena e aimplantação das aldeias de Boca da Mata e Meioda Mata são vistas como “mutilações” do “seu”Parque.

Por outro lado, sob a ótica dos índios, aimpiedosa campanha difamatória de que sãoalvo se explicaria por serem eles a “arraia miú-da” entre os que se valem indevidamente dosrecursos do Parque, por isto mesmo os únicosque não dão propina aos servidores do IBAMA,tornando-se assim objeto das acusações da-queles que estariam, deste modo, apenasacobertando a própria corrupção.

Apenas em 1993, durante uma reunião delideranças indígenas em Salvador, os Pataxó deMonte Pascoal ousaram, diante da imprensa (“ATarde”, 17/11/93) e de Procuradores da Repú-blica na Bahia, enunciar formalmente tais de-núncias, o que gerou a imediata determinação,por parte do Ministério Público, de instauração

Page 133: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

de inquérito policial. Independentemente, po-rém, da difícil comprovação dos fatos denunci-ados, tal atitude parece demonstrar que, se osPataxó vêm sendo vítimas da imputação deestereótipos negativos disseminados na cons-ciência regional, eles parecem ter percebido queservidores públicos não são nem um poucoimunes à imputação de tal tipo de estereótipo e,mais que isto, que podem contar hoje com séri-as disposições a seu respeito por parte de au-toridades encarregadas da salvaguarda dosseus direitos.

De qualquer modo, o cerne da questão,no que interessa aos índios, reside na busca dealternativas para sua auto-sustentação, clara-mente inviável nas atuais condições. Neste sen-tido, até 1995, organismos diversos se interes-saram, embora apenas tangencialmente, pelaquestão, acenando sempre com a possibilida-de de proposição de “projetos de desenvolvi-mento”, em geral envolvendo a adoção de culti-vos comerciais – seringueira, por exemplo. En-tre tais organismos, o INTERBA, em 1988-89, aFundação Mata Virgem, em 1991, e a própriaFUNAI, em 1992-93. Mais vagamente, em 1994,também as diversas organizaçõesambientalistas preocupadas com a situação doextremo sul baiano, lideradas pelo“Greenpeace”, o metaprivado projeto do “Qua-drilátero do Descobrimento” e a “Petrobras”,empresa que firmou, naquele ano, convêniocom o IBAMA para preservação do Parque deMonte Pascoal. Infelizmente, nenhuma destasdisposições passou de “conversas prelimina-res” ou de “esboços de projetos”. Algumas de-las consideravam claramente a inviabilidadeeconômica dos Pataxó sobre sua atual baseterritorial e propunham, como alternativa, a com-pra, pela União, de novas terras ao norte doParque e da atual terra indígena, ao longo damargem esquerda do Caraíva. Assim se evita-ria, talvez em definitivo, a incômoda questão dalegitimidade de domínio sobre as terras entre oCaraíva e o Corumbau, onde hoje se esprememo Parque Nacional e a Terra Indígena Barra Ve-lha.

Na mesma ocasião em que dirigiram suasdenúncias de corrupção, os Pataxó, que sem-

pre reclamaram solitariamente contra ausurpação do seu tradicional território – à espe-ra de uma improvável maior atenção formal doórgão indigenista pelo caso –, pela primeira vezmanifestaram, informalmente, diante da Procu-radoria da República, o desejo de que a ques-tão seja considerada judiciosamente por quemde direito. É incompreensível para os Pataxó quetodos os seus antigos vizinhos tenham enrique-cido impunemente com a devastação das ma-tas ao redor do Parque Nacional e que apenaseles, privados do devido uso do seu tradicionalterritório, aquele que foi explorado e conserva-do por seus pais e avós até 1961, sejam hojeexecrados como “inimigos da natureza”.

A devastação da Mata Atlântica, em todoo extremo sul, nos últimos trinta anos transfor-mou o inadequado Parque Nacional de MontePascoal num precioso reduto de conservaçãodeste ecossistema na região; contudo, a situa-ção Pataxó e seu próprio inconformismo de-monstram que a questão da sua ilegitimidadenão poderá ser indefinidamente omitida ouescamoteada.

Apenas a partir de 1997, quando um se-minário promovido por organizações não-gover-namentais em Itamaraju colocou, pela primeiravez, frente a frente, para um diálogo formal, re-presentantes Pataxó e a direção do Parque Na-cional, pôde-se identificar alguma disposição daautoridade ambiental do governo federal no sen-tido de tratar, de um outro modo que não o dapura e ineficaz repressão, a relação entre osPataxó e a fatia do tradicional território destesora sob sua administração. Tal disposição temse manifestado sob a forma de propostas quevariam desde a do simples engajamento de al-guns índios no serviço do IBAMA, como “fiscais”do Parque, até proposições, ainda muito poucoelaboradas, que acenam com o apoio do Minis-tério do Meio Ambiente a projetos de “desenvol-vimento sustentável” nas atuais áreas de ocu-pação indígena no entorno do Parque.

Enquanto isso intensifica-se, desde 1997,entre os Pataxó, a mobilização em torno da re-conquista de seu território tradicional, agorafortalecida pela crescente organização social e

Page 134: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

política do grupo, à medida em que se consoli-dam as novas comunidades de após diáspora,e pela também crescente visibilidade, no cená-rio político nacional, dos grandes problemassociais e ambientais na chamada “costa dodescobrimento”. Neste novo contexto, em quea ineficácia do aparelho de Estado na garantiade uma real preservação do patrimônio de mataatlântica no interior do Parque é já plenamentepatente, preocupando ambientalistas e outrossegmentos organizados da sociedade nacional,os Pataxó incorporam ao seu pleito pelo direitoterritorial um discurso conservacionista, tornan-do claro que somente eles poderão efetivamenteproteger a “sua” mata.

Acompanhando-me em uma recente vi-sita à aldeia de Corumbauzinho, um importantelíder Pataxó de Barra Velha teve oportunidadede examinar o flanco sul da faixa sob domíniodo Parque, junto ao rio Corumbau – uma áreaque lhes é pouco acessível a partir das três al-deias no vale do Caraíva –, constatando a visí-vel devastação provocada pela ação ilegal demadeireiros que encontram aí o flanco mais vul-nerável da reserva de mata, comentando:

“Olhe só para isto! Veja o que eles estão fazen-do com a mata! Está tudo brocado! Ou a gente[os Pataxó] toma logo conta disto [da área doParque] ou eles [o IBAMA] vão acabar deixandodestruírem tudo!” (Joel Brás, Corumbauzinho,14/12/98; em Sampaio, 1999).

Na proposição dos líderes Pataxó, a áreaora sob domínio formal do Parque, uma vez de-vidamente regularizada como Terra Indígena,será gerida como um “Parque Indígena”, con-ceito que resgatam do disposto na Lei 6.001,de 1973 – o “Estatuto do Índio” –, e consoanteo já recomendado na supra-referida InformaçãoTécnica de Simonian (1986). Pela alternativa in-dígena, a garantia de seus inquestionáveis di-reitos à posse e usufruto exclusivos do seu ter-ritório de ocupação tradicional se fariam acom-panhar, com apoio de instituições governamen-tais e não-governamentais, de medidas efeti-vas para a garantia da preservação da Mata

Atlântica no Monte Pascoal e para a recupera-ção econômica de suas aldeias, com base nosprojetos de “desenvolvimento sustentável” pro-postos, e que se dispõem a discutir eimplementar.

Em 19 de agosto de 1999, dia seguinteao da assinatura da supra-referida Portaria 685da FUNAI, que possibilita a redefinição dos atu-ais limites da Terra Indígena Barra Velha, inici-ando, formalmente, o processo administrativopara a regularização de todo o território tradici-onalmente ocupado pelos Pataxó no MontePascoal, os índios, em centenas de pessoas,homens, mulheres, velhos e crianças, de todasas suas dez aldeias e de três das aldeias dosPataxó Hãhãhãe no sul do estado, ocuparam asede do IBAMA no Parque Nacional, daí remo-vendo, pacificamente, seus quatro escassosfuncionários e assumindo o controle da área quepassaram a denominar “Terra Pataxó do MontePascoal”.

Em comunicado emitido em seguida, a 27de agosto, pelos seus caciques, os Pataxó for-necem à nação brasileira a indicação precisa,sintetizada em três pontos exemplares, do quan-to cabe a esta compreender e fazer, no caso,em resgate de sua própria dignidade:

1. Os Caciques reafirmam que as terras tradi-cionalmente ocupadas e reivindicadas sãoinegociáveis.

2. Fica também o compromisso de que a terraPataxó do Monte Pascoal é de plena preserva-ção, não tendo nenhuma possibilidade dedesmate ou degradação ambiental de sua flo-resta, ao contrário, devemos iniciar a recupera-ção das nossas aldeias em volta do MontePascoal.

3. Pretendemos envolver todos os órgãos res-ponsáveis, entidades ambientalistas interessa-das em nossas propostas, indigenistas e seto-res do governo verdadeiramente dispostos a nosajudar, na preservação do meio ambiente e naauto-sustentação do povo Pataxó.” (Pataxó etal, 1999).

1 Professor de Antropologia da Universidade do Estado da Bahia(UNEB), Diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI-

Bahia) e Membro da Comissão de Assuntos Indígenas da AssociaçãoBrasileira de Antropologia (ABA).

Page 135: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Referências Bibliográficas e Documentais

AGOSTINHO, Pedro. 1980. Bases para o Estabe-lecimento da Reserva Pataxó. Revista deAntropologia, 23: 19-29. São Paulo.

AGOSTINHO, Pedro. 1988 (1981). “Condiciona-mentos Ecológicos e Interétnicos da Localiza-ção dos Pataxó da Barra Velha, Bahia”. EmAGOSTINHO, Pedro (org.): O Índio naBahia. Cultura; 1(1): 71-77. Salvador: Funda-ção Cultural do Estado da Bahia.

AIRES DO CASAL, Manuel. 1976 [1817].Corografia Brasílica ou Relação Histórico-Geográfica do Reino do Brasil. Belo Hori-zonte e São Paulo: Itatiaia e EDUSP.

ANAI-Bahia (Associação Nacional de AçãoIndigenista). 1998. Diagnóstico da SituaçãoEscolar Indígena Pataxó. Salvador (em pre-paro).

CARVALHO, Maria R. G. de. 1977. Os Pataxó deBarra Velha: seu subsistema econômico.Dissertação de mestrado apresentada à UFBA.Salvador, ms.

CARVALHO, Maria R. G. de & SAMPAIO, JoséA. L. 1992. Parecer sobre o estatuto históri-co e legal dos territórios pataxó no ExtremoSul da Bahia. Salvador, ms.

DAVIS, Shelton. 1977. Vítimas do Milagre: o De-senvolvimento e os Índios do Brasil. Rio deJaneiro: Zahar.

ESPÍRITO SANTO, Marco A. 1998. DiagnósticoSocioeconômico da comunidade pataxó daCoroa Vermelha. FUNAI, Brasília, ms.

FURTADO, Rosane C. 1986. Memorando 006/DID/SAF (Proc. FUNAI/BSB/0673/86). Brasília,ms.

LEÃO JR., José (Procurador da República). 1999.OF./PRM/IOS/BA nº 420, de 14 dejunho.Ilhéus, ms.

LEITE, Serafim. 1941-5. História da Companhiade Jesus no Brasil. 5 vols. Rio de Janeiro: INL.

MASCARENHAS, Márcio. F. M. 1998. OPatrimônio dos Índios: pré-emergência ét-nica entre os caboclos de Vale Verde. UFBA,ms.

MÉTRAUX, Alfred. 1933. Les MigrationsHistoriques des Tupi-Guarani. Journal de laSocieté des Americanistes, N.S. XIX. Paris.

NÓBREGA, Manuel de. 1988 [1570]. Cartas doBrasil: 1549-1570. Belo Horizonte e São Pau-lo: Itatiaia e EDUSP.

PARAÍSO, Maria H. B. 1992. Amixocori, Pataxó,Monoxó, Kumanaxó, Kutaxó, Kutatoi,Maxakalí, Malali e Makoni. Povos indíge-nas diferenciados ou sub-grupos de umamesma nação? Uma proposta de reflexão.ANPOCS. Caxambu, ms.

PATAXÓ, Alfredo S. et al. 1999. Carta do MontePascoal (27/08/99). Porto Seguro, ms.

RIBEIRO, Darcy. 1970. Os Índios e a Civilização.Petrópolis: Vozes.

SAMPAIO, José A. L. 1999. Estudo de ImpactoAmbiental do Projeto “Memorial do Encon-tro” . Coroa Vermelha, Santa Cruz Cabrália,Bahia (Meio Antrópico: Comunidades Indíge-nas), Simbios S. A. Brasília, ms.

SANTOS, Carlos A. B. P. dos 1997. Informação nº15/DID - Ass.: Terra Indígena Barra Velha;FUNAI. Brasília, ms.

SIMONIAN, Lígia. 1986. A proposta de demarca-ção da Terra Indígena Barra Velha ou o quese pode chamar uma proposta indecorosa.

URBAN, Greg. 1992. “A História da Cultura Brasi-leira Segundo as Línguas Nativas”. CUNHA,Manuela Carneiro da (Org). História dos Ín-dios no Brasil. São Paulo: Companhia das Le-tras.

Page 136: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

VAZ DE CAMINHA, Pero. 1974 [1500]. Carta aEl-Rei Dom Manuel sobre o Achamento doBrasil. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa daMoeda.

WIED-NEUWIED, Maximiliano, Príncipe de. 1958[1815-17]. Viagem ao Brasil. São Paulo: Me-lhoramentos.

Page 137: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

A VIDA DOS TUPINIQUIM DO ESPÍRITO SANTOEM MEADOS DO SÉCULO XX

Carlos Augusto da Rocha Freire

Page 138: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 139: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Os índios Tupiniquim habitam hoje trêsterras indígenas no litoral norte do Espírito San-to. Cerca de 1.300 tupiniquins estão distribuí-dos pelo Município de Aracruz, nas Terras Indí-genas Caieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios.

Em 1994 desenvolvemos uma pesquisasobre a história e a ocupação territorial dessegrupo indígena, na qual contamos com a cola-boração do geógrafo João Marçal Moraes. Pormeio da história de vida de muitos anciãos e doestímulo à memória coletiva dos Tupiniquim re-cuperamos as representações indígenas a res-peito do seu modo de vida em meados desteséculo, o domínio e uso de seu território, as re-lações entre famílias, os conflitos com regio-nais e seus direitos usurpados. A recuperaçãode categorias e noções indígenas era nossoobjetivo em campo, pois o objeto de investiga-ção centrava-se nas representações indígenassobre seu território.

Dividido em duas partes, este artigo apre-senta resultados parciais dessa pesquisa. Naprimeira parte, devido à polêmica relativa àinvisibilidade (Porto Alegre,1992) de índios tidoscomo civilizados desde o séc. XIX, apresenta-mos alguns dados recolhidos por viajantes, cro-nistas e pesquisadores, relativos aos contatosefetuados com os Tupiniquim. A preocupaçãonão era de estabelecer uma cronologia da ocu-pação territorial, mas assinalar que osTupiniquim foram identificados em diferentes si-tuações históricas, até seu reconhecimento le-gal a partir de 1975.

Na outra parte do texto, recuperamos avisão indígena a respeito de sua vida – o siste-ma de índio – e as atitudes de adscrição queidentificavam os caboclos Tupiniquim ante osregionais. Como a vida tradicional dosTupiniquim foi alterada nos anos 60 pela implan-tação de um modelo de agroindústria voltado

para a produção de celulose, limitamos os da-dos deste artigo a meados deste século.

Tupinanquins , Índios Mansos e Civilizados e Ca-boclos Tupiniquim: identificações do contatointerétnico

No século XVI, os Tupiniquim ocupavamuma faixa de terra situada entre Camamú e orio São Mateus (ou Cricaré), alcançando a Pro-víncia do Espírito Santo (Métraux, 1948; Souza,1938; Cardim,1980). Outros grupos Tupiniquimtambém eram encontrados ao sul do Rio de Ja-neiro, entre Angra dos Reis e Cananéia.

Os índios Margaiá , assinalados por Jeande Léry como habitantes das proximidades dorio Doce, devem ser considerados como umdos muitos grupos Tupiniquins, segundo PlínioAyrosa e Estevão Pinto (Ayrosa, apud Léry,1961; Pinto apud Reis, 1979). Outros viajantese historiadores afirmaram que os Tupiniquimestavam estabelecidos no litoral da Capitaniado Espírito Santo nos primórdios da coloniza-ção (Penna, 1878; Souza, 1861).

Ainda no séc. XVI, após massacrar osTupiniquim de Ilhéus, o Governador Mem de Sáatacou os gentios do Espírito Santo (Souza,1938; Hemming, 1978). Os contatos dessesíndios com os colonizadores foram marcadospor inúmeros confrontos, que só ficaram “sobcontrole” com a presença dos Jesuítas e a ins-talação de aldeamentos indígenas. No quadroda política indigenista colonial, os Tupiniquimserão reconhecidos como índios livres, aldeadose aliados (Perrone-Moisés,1992), categoriasuniformizadoras resultantes da catequesejesuítica.

Os Tupiniquim se concentravam na regiãodo rio Piraquê-Açú, onde em 1556 foi fundadapelo jesuíta Afonso Brás a Aldeia Nova (Marques,1878; Saint-Adolphe, 1845). Um surto de varío-

A VIDA DOS TUPINIQUIM DO ESPÍRITO SANTOEM MEADOS DO SÉCULO XX

Carlos Augusto da Rocha Freire1

Page 140: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

la e a criação do Aldeamento dos Reis Magos,ao sul da Aldeia Nova, em 1580, explicam a de-cadência desta última, acelerada pelos ataquesde formigas, que destruíam as plantações dosíndios (Rocha, 1980), fenômeno mencionadopor diversos autores até o séc. XIX. Os Jesuí-tas e os grupos indígenas passaram a se con-centrar em Reis Magos, que logo se tornou umaldeamento populoso onde os índios eram qua-se todos Tupinanquins (Leite, 1945, p.160;178).O aldeamento dos Reis Magos dará origem àVila de Nova Almeida, e a Aldeia Nova à Vila deSanta Cruz.

São escassas as informações sobre es-ses índios nos séculos XVII e XVIII, pois aindanão foram realizadas pesquisas em fontes pri-márias que abordariam a vida dos índios do lito-ral norte do Espírito Santo durante o PeríodoColonial.

No início do séc. XIX, alguns viajantes, emsuas memórias, assinalaram as tentativas demilitarização da Capitania do Espírito Santo, cujoobjetivo, entre outros, era conter as sucessivasreações dos índios selvagens à colonização daregião do rio Doce. A militarização garantiria aexpansão e exploração territorial sob controleabsoluto dos portugueses. Dois fatos aqui influ-enciaram a vida indígena: a construção de pos-tos militares nas áreas onde viviam os índiosou mesmo a centralização de várias famíliasnum local, constituindo uma aldeia, transforma-da em destacamento militar, e a conversão dosíndios em soldados e autoridades (Saint-Hilaire,1936,1974; Cunha, 1984). Isso ocorreu no valedo rio Piraquê-Açú, na região ao norte de SantaCruz, onde índios que moravam dispersos nasmargens do rio foram reunidos na aldeia deDestacamento ou “Piriquiassu”, por ordem doCapitão-mór da Província. Mudavam as formasdo contato, mas os índios continuavam sendocompreendidos genericamente como hostis oumansos e civilizados (domesticados).

Em 1815, o Príncipe Maximiliano de WiedNeuwied encontrou a região litoral entre o nortedo Espírito Santo e o sul da Bahia habitada qua-se que exclusivamente por famílias esparsasde índios (Neuwied, 1940, p.151). Ao sul do rio

Doce, nas proximidades do Quartel do Riacho,eram vistas pelos viajantes habitações isoladasde índios, assim como no Campo do Riachohavia uma povoação indígena (D’Alincourt, 1961;Oliveira, 1975). Ainda nessa região, entre o rioDoce e a Vila de Nova Almeida, o Presidente daProvíncia, Francisco Correa (1871), reconhe-cia a presença de índios civilizados espalhadosem pequenos povoados (Museu do Índio/SARQ,microfilme MPB 94, fotograma 574). NovaAlmeida era a grande aldeia desses índios civi-lizados no litoral norte do Espírito Santo, no séc.XIX, pois Santa Cruz permanecera estagnada,com sua pequena população de índios cristãos.Em meados do século (1860), o próprio Impe-rador D. Pedro II, visitando a região, mantevecontato com uma índia Tupiniquim em NovaAlmeida, e com outros índios de Santa Cruz eda foz do rio Sahy, não-identificados no seu diá-rio de viagem (Rocha, 1980).

As anotações de viajantes e escritoressão escassas a respeito da vida dos índios dolitoral norte da Província do Espírito Santo, es-tando limitadas a esboços de suas práticas eco-nômicas de subsistência. O PríncipeMaximiliano de Wied Neuwied, em 1815, e Airesde Casal, em sua Corografia Brasílica, de 1817,falam das atividades agrícolas das aldeias –plantio de milho e mandioca, exportação de ce-râmicas e madeiras, pesca no rio e no mar, e aexploração do grande manguezal do rio Piraquê-Açú, para a obtenção de moluscos (Neuwied,1940; Casal, 1943). O Príncipe Maximiliano tam-bém observou famílias indígenas coletando ovosde tartarugas marinhas em Comboios. O botâ-nico Auguste Saint-Hilaire, em 1818, destacoua utilização que os índios da aldeia de Piraquê-Açú faziam do manguezal, desenvolvendo inú-meras técnicas de pesca e coleta de carangue-jos e ostras, produzindo cal a partir das con-chas desse molusco. Esse viajante também fezobservações sobre os aspectos físico-materi-ais das casas, móveis, utensílios e vestuáriodessa aldeia.

A exceção entre os viajantes é o relato dopintor Auguste François Biard (1862;1945), queretratou o modo de vida dos índios civilizadosnas matas de Santa Cruz em meados do séc.

Page 141: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

XIX. Biard navegou no rio Piraquê-Açú, dosmanguezais litorâneos até suas cabeceiras.Sua descrição do painel humano da ocupaçãoda região que conheceu estava dividida entreos poucos patrões ou fazendeiros que explora-vam madeira para exportação, derrubando asmatas e utilizando o trabalho dos índios, e a pre-sença de famílias indígenas dispersas pela flo-resta, também comercializando madeira e man-tendo roçados de subsistência, principalmentede mandioca.

O pintor acompanhou os índios em suascaçadas, conheceu plantações e sítios indíge-nas abandonados. Os índios que viviam agre-gados ao fazendeiro italiano Pedro Tabachi(Busatto, 1988) – então não-identificado porBiard, trabalhavam na lavoura, coleta de alimen-tos, transporte, comércio e pecuária, além deproduzirem inúmeros utensílios de uso cotidia-no, como gamelas, responsabilizando-se tam-bém pela culinária doméstica.

Da mesma forma vivia a população indí-gena da Vila de Santa Cruz. Biard teve a opor-tunidade de conhecer vários aspectos da cultu-ra indígena, da produção de alimentos ao com-portamento de parentes num velório de índios.Ele próprio estimulou o vício da cachaça entreos índios, bebida oferecida pelo pintor comobarganha para favorecer a elaboração de retra-tos desenhados (Biard, 1862).

Biard também fez esboços de desenhoscom cenas da vida cotidiana dos índios e, entreesses, existia um que mostrava os participan-tes da festa de São Benedito, organizada deforma similar à que ainda hoje ocorre nas Ter-ras Indígenas Tupiniquim. O francês deslocou-se até a povoação de Destacamento para acom-panhar a festa, visitou e conviveu com os índi-os em suas casas e, mesmo agindopreconceituosamente, relatou com alguns de-talhes as práticas e o vestuário do ritual (Biard,1945, p.100-102).

No livro, o pintor assinalou a presença defazendeiros estrangeiros dando início à explo-ração madeireira da região. Apesar do precon-ceito, Biard soube detalhar em vários momen-tos o cotidiano dos índios dispersos pela flores-

ta, em pequenos núcleos familiares. No con-junto, seu relato será premonitório da realidadeque os agentes do Serviço de Proteção aos Ín-dios (SPI) irão encontrar na região, no início doséculo XX.

Logo após sua criação, em 1910, o SPItransformou a região norte do Espírito Santo numde seus pólos de atuação. Alguns postos deatração foram criados para a pacificação dosíndios Botocudo, evitando-se a paralisação daconstrução das estradas de ferro Bahia-Minase Vitória-Minas (Paraíso, 1992; Lima, 1992b).

A ação do SPI nessa fase de instalaçãovariava segundo a disponibilidade orçamentá-ria da União e os interesses econômicos quemoviam a expansão da fronteira agrícola naque-le momento. O órgão se fazia presente no nor-te capixaba, enquanto deixava de dar assistên-cia aos grupos indígenas do Nordeste que es-tavam em regiões de antiga colonização, dis-tantes de novas fronteiras econômicas (Lima,1992a).

Quando a Inspetoria do Espírito Santo ini-ciou seus trabalhos, o Engenheiro-Inspetor An-tonio Estigarríbia conheceu vários agrupamen-tos de índios civilizados, localizados nas mar-gens das lagoas do baixo rio Doce e no litoralpróximo. Estigarríbia apresentou um relatório àDiretoria do SPI em 1912, afirmando que na re-gião existia “grande número de índios mais oumenos civilizados, há muitas dezenas de anospor ali estabelecidos, e cujo estado de civiliza-ção é idêntico, ou pouco diferente, ao do co-mum dos nossos patrícios roceiros, propria-mente trabalhadores nacionais.(...). Não são daorigem Aimoré e sim Tupi, dado alguns termosque ainda conservam da língua primitiva, quemesmo entre eles já caiu em desuso. O seunúmero eleva-se a algumas centenas, já tendoperdido a organização da tribo e o conhecimen-to de chefes os próprios caciques. Vivem dalavoura e tiragem de madeira.” (Estigarríbia,1934, p.35-36).

Em outro relatório encaminhado ao Dire-tor do SPI em 1919, Estigarríbia referiu-se à pre-sença de remanescentes indígenas no litoralnorte do Espírito Santo, sugerindo que fossem

Page 142: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

transferidos e localizados junto aos Botocudo,no Posto Indígena Pancas, “onde teriam o auxí-lio que se dá aos colonos em geral” (SRAV/Mu-seu do Índio, microfilme 190, fotograma 269). Aproteção aos índios civilizados oscilava entãoentre a omissão e o estímulo à formação detrabalhadores nacionais.

No relatório apresentado à Diretoria do SPIem 1924, o então inspetor no Espírito Santo,Samuel Lobo, voltaria a mencionar a existênciade “um grande contingente de silvícolas em es-tado de semi-selvageria e de índios completa-mente civilizados que vivem ao abandono”(SRAV/Museu do Índio, microfilme 190,fotograma 566). Lobo também afirmaria que“entre os índios, encontravam-se ‘silvícolas’Tupiniquim” (idem). Na ocasião, o inspetor tive-ra contato apenas com os índios que habita-vam a zona de ação do SPI, na região do rioDoce, desconhecendo assim aldeias ou outraslocalidades indígenas, além do povoamento dis-perso, interior às matas de Santa Cruz. Nas dé-cadas seguintes, o SPI nada fez por essesTupiniquim.

Na década de 40, encontravam-se osTupiniquim distribuídos por diversas aldeias elocalidades. No mapa do Município de SantaCruz, organizado em observância ao Decreto-Lei Nacional Nº 311, de 02/03/38, estão assina-lados alguns locais que os índios identificamcomo aldeias extintas: Amarelo, Olho D’ Água,Cantagalo, além da atual Pau Brasil. Vivendodispersos pelas matas, não-agrupados, dificil-mente aldeias e locais relembrados pelos índi-os seriam identificados nos mapas oficiais.

Em 1947, o Gal. Rondon, então na presi-dência do Conselho Nacional de Proteção aosÍndios (CNPI), respondeu a uma carta do Pe.Renato Galvão, que dava assistência aos indí-genas do sul da Bahia, inclusive a outrosTupiniquim aí localizados (Rosalba, 1976). Naocasião, Rondon afirmou que o SPI não encon-trou “apoio bastante para estender aos índiospacíficos os cuidados e a proteção a eles pro-metida mesmo quando vivam em promiscuida-de espontânea ou forçada com os civilizados”(SRAV/Museu do Índio, microfilme 359).

Rondon sintetizava assim a omissão doSPI na assistência e proteção aos índios civili-zados da Bahia e do Espírito Santo, durantequatro décadas. Ainda nessa carta, Rondonidentificou os índios civilizados como caboclos,da mesma forma que a população regional ofazia.

Em 1951, o pesquisador Guilherme San-tos Neves, ao presenciar a primeira concentra-ção de Bandas de Congos do Espírito Santo,em Vitória, notou que os figurantes de um dosgrupos participantes tinham feições indígenas.Eram os componentes da Banda de Congosde Caieiras Velhas. Neves acreditava que eramdescendentes dos índios que constituíram aantiga Banda de Congos de Santa Cruz no séc.XIX (Neves, 1980). Em artigos editados em 1958e 1980, o pesquisador publicou fotos dos índiose da Banda de Congo de Caieiras Velhas (Ne-ves, 1958;1980).

Já em 1954, ao estudar os diferentesecossistemas do Espírito Santo, o biólogoAugusto Ruschi se defrontou, em Caieiras Ve-lhas, na margem esquerda do rio Piraquê-Açú,com “um grupo de 80 índios Tupi-Guarani, queviviam numa área de 30.000 hectares de flores-tas virgens, com cerca de 10 hectares de aber-tas” (Ruschi, 1954, p.1). Ruschi tinha uma in-terpretação singular para a origem daqueles ín-dios, que seriam uma “mescla de Tupis eGuaranis”, e ainda se expressavam na línguaindígena – isso na década de 50. O biólogo fezuma detalhada descrição da economia indíge-na, destacando as atividades agrícolas, caça,pesca e coleta de frutos. Mencionou ainda o ar-tesanato próprio aos índios – o fabrico do arcoe flecha – assim como o contato comercial quemantinham com a população de Santa Cruz.

Ruschi preocupou-se em descrever ostraços físicos dos índios, atividade característi-ca da formação antropológica acadêmica de suaépoca de estudos. Fez também observaçõessobre a divisão social do trabalho, por meio dasatividades femininas, notando que, apesar doperfeito equilíbrio da vida nessa floresta, cres-cia a apreensão dos índios diante do “avançoda devastação florestal para a instalação de pas-

Page 143: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

tagens para o desenvolvimento da pecuária”(idem, p. 2).

Em 1955, o sociólogo Renato Pachecofez uma observação sobre a existência de índi-os no Município de Aracruz, mas suas anota-ções foram ignoradas. Pacheco constatou quehavia “povoados cujos habitantes são os índiosvestidos, os índios de calças compridas. Estãoparcialmente aculturados e cuja catequese sedeveu aos jesuítas do período colonial” (Pachecoapud Martins, 1986: 13).

A vida dos caboclos Tupinanquins

Para os informantes Tupiniquim, CaieirasVelhas possuía mais de 300 anos de existên-cia, e Pau Brasil e Comboios existiam desde oséc. XIX. Os índios foram enfáticos ao afirmarao antropólogo que possuíam Sesmaria de Ter-ra, vinculando a existência da comunidade indí-gena a esse documento legal, que teria sidoratificado por D. Pedro II no séc. XIX.

Foi em 1610 que o Superior Jesuíta da al-deia dos Reis Magos, Pe. João Martins, conse-guiu para os índios uma Sesmaria de seis lé-guas em quadra (Leite, 1945, p.159), cuja me-dição só ocorreu em 1760, quando, por meiodo “Termo de Concerto e Composição”, os índi-os de Nova Almeida e os moradores da Fregue-sia da Serra estabeleceram os limites dos do-mínios dos quais mantinham posse, transfor-mados, por “Sentença”, em medição e demar-cação amigável (Processo FUNAI n.º 1632/93,fls. 26-30). Abaixo da Sentença do Ministro queestabeleceu o acordo territorial estava mencio-nado que “não existia foreiro algum dentro dasterras medidas e demarcadas”. Essa Senten-ça diminuía os limites da Sesmaria, sendo con-firmada por Alvará ainda em 1760 (Guimarães,1982). Quando viajou pelo Espírito Santo, Saint-Hilaire detinha a informação de que os índios deNova Almeida possuíam um território inalienável,doado pelo governo português, e que se esten-dia até Comboios, ao norte (Saint-Hilaire, 1974).

A polêmica relativa à ratificação da doa-ção da Sesmaria aos índios pelo Imperador D.

Pedro II, quando de sua passagem por NovaAlmeida e Santa Cruz, em 1860, não impede aconstatação de que atos legais como a Doa-ção da Sesmaria, sua medição e demarca-ção reforçavam o reconhecimento históri-co da ocupação pelos índios de uma dadaregião. Recuperados pelas histórias de vidados Tupiniquim, os locais e o modo de vida dosíndios que aí habitavam foram reconstituídos pormeio dos depoimentos de 32 tupiniquins, a mai-oria com mais de 60 anos. A uniformidade en-contrada, onde os matizes deviam-se às ca-racterísticas do meio ambiente desta ou daquelalocalidade – como as diferenças de atividadesnos mangues do rio Piraquê-Açú para a vege-tação de restinga de Comboios –, demonstroua efetiva antigüidade da ocupação indígena naregião e a tradicionalidade daquela posseterritorial pelos Tupiniquim.

Pelos depoimentos indígenas, foramnominadas e reconhecidas 21 localidades,como aldeias constituídas por 5 ou 6 casas vi-zinhas, lugares com poucas casas e ocupaçãoesparsa – a grande maioria – locais onde haviase instalado apenas uma família. Foram reco-nhecidas pelos índios as seguintes localidades:Caieiras Velhas, Irajá, Pau Brasil, Comboi-os, Amarelo, Olho D’Água, Guaxindiba, Lan-cha (porto), Cantagalo, Araribá, Braço Mor-to, Areal, Sauê ou Tombador, Gimuhúna (ser-tão e litoral do), Macaco, Piranema, Potiri,Sahy Pequeno, Batinga, Santa Joana eCórrego do Morcego.

Toda a região era de mata virgem antesda exploração madeireira, e a comunicaçãoentre as localidades se fazia por trilhas no meioda floresta. Entretanto, em sua maior parte, asfamílias Tupiniquim eram encontradas disper-sas pela mata, plantando nos trechos de capo-eira, com a eventual agregação de parentes eafins, estendendo o grupo doméstico por umadada região. A forma como as famílias ocupa-vam o espaço e as trocas comerciais tornavamduas localidades uma área só, a distância en-tre os núcleos reduzia-se, fortalecendo os la-ços comunitários, que se manifestavam nos ri-tuais religiosos ou na realização de algumas

Page 144: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

formas de cooperação para a plantação(mutirão, adjutório). Eram grupos familiares vol-tados para a produção direta, formando uma uni-dade social. O conhecimento e o domínio deum território funcionavam como fatores de iden-tificação e troca entre as famílias indígenas. As-sim, a base física comum, inalienável, dava sen-tido à relação entre os grupos domésticos. Essaera a vida tradicional desses índios, a base dareprodução de seus usos e costumes.

As aldeias tinham a disposição de umarua ou duas, e em Caieiras Velhas havia umpátio largo, onde uma pequena capela secularfechava a área. As casas eram de pau-a-piquee sapê, cercadas pelo mato ou capoeira, utili-zados na medida da necessidade. Com freqüên-cia os Tupiniquim mudavam de casa e roçado,seja pela realização de um casamento, seja pelabusca de melhores condições de sobrevivên-cia.

As casas e os roçados podiam ser feitosem qualquer lugar, só não se podia medir, dizer“aquilo é meu”. Havia regras de acesso à terra,não se permitia cercá-la ou detê-la exclusiva-mente. Todavia, com os casamentos preferen-ciais e sucessões, os grupos familiares aca-bam identificados aos roçados, como aconte-cia nas aldeias de Cantagalo e Araribá.

Nessa região de colonização antiga, ha-via a posse comunal das terras das aldeias, eos cultivos em extensões podiam “ser utiliza-dos à vontade por cada grupo familiar, sem exi-gência de áreas contíguas ou de ter o conjuntode suas atividades produtivas confinadas numaparcela determinada” (Almeida, 1988, p.44).Existiam também os domínios de carátercomunal – matas, rios, fontes etc. – que permi-tiam a reprodução das famílias Tupiniquim. Emsuma, o sistema de posse comunal de terras eoutros domínios, aliado à apropriação domésti-ca e individual do produto do trabalho, semprepermitiu a sobrevivência dos Tupiniquim. Próxi-mos da tradição camponesa, os Tupiniquim,então, podiam ser compreendidos como umcampesinato indígena (Oliveira Filho, 1979), ins-talado em áreas de colonização antiga, longedas fronteiras econômicas, mantendo poucas

relações com o mercado regional.

A partir dos anos 40, quando a Cia. Ferroe Aço de Vitória (COFAVI) começou a devastaras matas para produzir carvão vegetal, os índi-os chegaram a trabalhar para a empresa, tiran-do a madeira e fazendo carvão. Aproveitandoos novos espaços, fizeram cultivos nocapoeirão resultante da derrubada. Plantavammandioca, feijão, milho e cana, processando amandioca com bolinete e prensa de tipiti noquitungo, casa de farinha artesanal e familiar.Como nas matas da região houvesse caça àvontade, com mundéus – armadilhas de caça –os Tupiniquim capturavam mamíferos de gran-de porte e inúmeras aves.

Na economia doméstica das localidadespróximas ao rio Piraquê-Açú a pesca e a coletanos manguezais tinham um papel relevante.Pescavam de linha ou usavam inúmeras arma-dilhas produzidas artesanalmente, como oquitambu (cercado de espinho) e o jequiá. Pe-gavam também caranguejos, mariscos e mui-tas ostras. Da casca da ostra mantinham umsecular processo de fabricação da cal,comercializada em Santa Cruz junto com ma-riscos, farinha, lenha e artesanato, constituídopor colheres de pau, gamelas, esteiras, remose peneiras, além de cestos, samburás e balaios,produzidos com o cipó imbé. Independente docomércio em Santa Cruz, tinham um sistemade produção econômica em que um caçava,outro pescava e outro ainda fazia farinha, tro-cando os produtos entre si, numa divisão de tra-balho informal. Era o sistema de índio, noçãoque os Tupiniquim utilizam para divulgar enormatizar as práticas indígenas.

Os Tupiniquim mais antigos não se recor-dam de ter conhecido regras matrimoniais ouqualquer outra norma de parentesco diferentedas de hoje. Dos ancestrais, os índios herda-ram o receio em utilizar a língua indígena, total-mente perdida em reminiscências esparsas. Osavós dos atuais Tupiniquim conheciam a língua,mas tinham deixado de empregá-la porque eramameaçados, deixando então de ensiná-la aosmais jovens, desde o início do século. Os índi-os mais velhos ainda se referem ao língua, ín-

Page 145: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

dio que tinha o papel de tradutor, falava bem oportuguês e a língua indígena, recebendo as vi-sitas e conversando com os índios das matasque vinham para Caieiras Velhas ou Pau Brasilparticipar da Dança do Tambor ou Banda deCongo nas festas religiosas.

Os dias de festa eram os dias de São Be-nedito, Santa Catarina, São Sebastião e N. Srª.da Conceição. A festa durava de dois a três dias:os índios tiravam o mastro da mata, e o Capitãodo Tambor, todo ornamentado, usando bastãoe cocar, comandava a Banda, saindo a convo-car os índios para a dança, de casa em casa.Na ocasião, as índias preparavam uma bebidafermentada, a coaba, feita com aipim fermenta-do, enquanto os índios empregavam como ins-trumentos de percussão a cassaca (espécie dereco-reco antropomorfo) e o tambor, feito de ma-deira oca, recoberto de couro.

Esses rituais sempre ocorriam emCaieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios, haven-do sempre intercâmbio entre as duas primei-ras, quando os índios atravessavam as matasatrás das festividades. Para alguns informan-tes, o Capitão do Tambor detinha prestígio e eratambém reconhecido como curandeiro pelos de-mais índios. Os velhos Tupiniquim se declara-vam católicos, pois as igrejas protestantes sóse instalaram na região em meados deste sé-culo.

Naquela época, os Tupiniquim não se pre-ocupavam em documentar as suas posses, em-bora alguns informantes afirmem que o índio LuísElesbão possuía um documento (?) sobre aque-las terras, perdido após sua morte. Dizia-se naregião que as terras eram do Governo, outrosachavam que eram devolutas, mas achavamdifícil ter a posse, pois não sabiam como agir.Desde que a COFAVI começou a devastar ma-tas na região, a partir dos anos 40, os índiospassaram a conviver com alguns posseiros,sem conflitos. Para desmatar, os representan-tes da COFAVI diziam que a terra era do Esta-do, e logo transformaram algumas matas empastos, na região da aldeia de Pau Brasil.

Em Comboios, os Tupiniquim associama história indígena do local ao ato heróico do

caboclo Bernardo. Bernardo José dos Santos,pescador em Comboios no séc. XIX, é tido comoo ancestral que garantiu a presença indígenanaquelas terras.

Em setembro de 1887, o navio-escola “Im-perial Marinheiro” encalhou e começou a afun-dar no pontal do rio Doce, fronteiro a Comboi-os. Numa atitude arrojada, o caboclo Bernardodestacou-se em algumas manobras, arriscan-do a vida para salvar os tripulantes do navio.Diante do feito, a Marinha Brasileira trouxe-o parao Rio de Janeiro, onde lhe foram prestadas sig-nificativas manifestações de reconhecimento,tendo então a Princesa Isabel lhe conferido umamedalha de 1ª classe pelos serviços prestadosà nação (Falcão, 1938).

Todavia, do encontro de Bernardo com aPrincesa Isabel os Tupiniquim têm outra versão.Contam que o caboclo não quis nenhum bene-fício, nenhuma honraria, apenas que a Prince-sa destinasse as terras de Comboios perma-nentemente para todos os caboclos. E assimteria sido feito. Por isso os índios estão em Com-boios há muitos anos. Só que o terreno nuncateve documento. Sinais dos ancestrais indíge-nas não faltavam, pois encontravam cerâmica(bilha), com facilidade, na praia.

O tronco velho Tupiniquim

Uma análise apressada da história dosTupiniquim poderia supor que a identificação ouressurgência étnica desses índios ocorreu re-centemente, a partir das lutas pela sobrevivên-cia desenvolvidas na década de 70. Emborapossam ser associados às questões dedescontinuidade cultural que caracterizam ospovos indígenas do Nordeste (Oliveira Filho,1993), os núcleos Tupiniquim sempre valoriza-ram sua tradição cultural (Ruschi, 1954), semprecisar enfatizar qualquer distintividade social.A ênfase na identificação como caboclos, aolongo do séc. XX, correspondia ao relativo iso-lamento e uma realidade de poucos conflitos.Todavia, sempre souberam-se caboclosTupiniquim, construindo com coerência uma vi-são particular de sua vida.

Page 146: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Para os índios, ser Tupiniquim significava“ser do lugar”, ter “raiz no lugar”, ser reconheci-do como “filho do tronco velho”, que nasceu emqualquer localidade Tupiniquim, naquela região.Tal como ocorre com os índios Xacriabá de Mi-nas Gerais, onde pertencer ao grupo significa,antes de mais nada, pertencer à terra indígena(Santos, 1994:22). Barreto Filho, ao estudar osTapeba do Ceará, assinala os termos “troncovelho” e “raiz de pau” como modalidades regio-nais de expressão no Nordeste do Brasil, todasmetáforas voltadas para expressar “uma certaconcepção do tempo e da organização social”(Barreto Filho, 1994:19).

O principal atributo que definia opertencimento ao grupo indígena (Barth, 1969)era o vínculo com a terra, era ter uma história,ter sido criado em comum e deter a memóriada comunidade, de forma que a história indivi-dual se confundisse com a do grupo. Na valori-zação da ancestralidade, ser “filho do troncovelho” é um vínculo que revela o “sangue indí-gena”, fator importante na identificação étnicafeita pelos índios.

Os Tupiniquim empregam muito a cate-goria “índio legítimo” para classificar seus pa-res, porque algumas famílias se constituíram apartir de casamentos com regionais. Alguns fa-tores eram utilizados para distinguir os índiosem “puros” ou “misturados”. Um índio, cujos paisfossem índios nascidos e criados em CaieirasVelhas, por exemplo, identificaria-se como “ín-dio puro”, mas para a maioria dos Tupiniquimesses seriam os índios “selvagens”, os “bugres”do passado. No séc. XX, os índios são “man-sos”, uma parcela é miscigenada e alguns che-gam a dizer que “é tudo caboclo”, tendo comoreferência e antagonista o índio selvagem. Porisso mesmo as diferenciações internas a esserespeito eram mínimas, sendo respeitado o ca-samento interétnico, e as crianças que nasci-am dessa união eram consideradas Tupiniquim.Entretanto, lembramos que, na políticaindigenista oficial, a ênfase no incentivo àmestiçagem acabava ligado à espoliação daterra indígena (Cunha, 1983).

Ser “do lugar” significa ser um índio quedetém maiores informações sobre as tradições

– os costumes, as crenças tradicionais aíreproduzidas. Só um índio, filho de pais índios,conseguirá legitimidade para conduzir os ritu-ais do grupo – como ser escolhido para Capi-tão do Tambor.

Apenas esse Capitão tinha ascendênciasobre as famílias de uma aldeia, responsabili-zando-se pela reprodução das tradições cultu-rais entre os índios. Podemos considerar as dan-ças do tambor como principais responsáveispelo intercâmbio e integração simbólica dosTupiniquim, ou ainda a cultura “residual” que deusuporte à ressurgência indígena. A Banda deCongo possibilitou aos Tupiniquim estabelecera distintividade cultural que os identificava antea população regional, não como índios selva-gens, uma representação cultural muito difun-dida, mas sim como “caboclos” Tupiniquim. Acontinuidade cultural, promovida pela Banda deCongos, representou a autenticidadeTupiniquim, a manutenção da tradição, dos va-lores indígenas, motivo do orgulho partilhadopelos “caboclos”. Somente o caboclo Bernardo,em Comboios, teria semelhante importância,podendo ser associado a um herói-fundador, ga-nhando ares de mito, pois possibilitou a instau-ração da diferença, ou seja, justificou a posseindígena de um determinado território.

Os indígenas lembraram, nos depoimen-tos, da repressão que sofreram alguns dos an-tigos Tupiniquim que evitavam falar a língua(Tupi) para não serem massacrados; em dife-rentes contextos desfavoráveis, os índiosenfatizavam a identidade de “caboclos”, evitan-do ser identificados como índios (e, por exten-são, selvagens) que eram considerados pes-soas “inferiores” pelos regionais. Todavia,enfatizar a miscigenação não diminuía o pre-conceito, como ocorria entre os índios do Nor-deste (Reesink,1983). Lembramos que, naacepção popular, “caboclos” são os descenden-tes de índios confundidos com a população ru-ral.

Existem outras similaridades entre osTupiniquim e os índios do Nordeste. Tanto quan-to estes, os Tupiniquim têm várias históriasretidas na memória da comunidade, relativasao contato com o Imperador D. Pedro II no séc.

Page 147: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

XIX. Todavia, as narrativas que mais se aproxi-mam, entre os diferentes grupos, são aquelasreferentes às doações Régias (Dantas et alli,1992), que nem sempre foram passíveis de con-firmação. Tal como os índios camponeses doNordeste, os caboclos Tupiniquim sempre en-frentaram forte preconceito regional.

Daí a importância das festas religiosas,com as Bandas de Congos de Caieiras Velhase Pau Brasil, que atualizavam os valores funda-mentais dos Tupiniquim, contribuindo para darsuporte à organização social desses índios.

1 Doutorando em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ ePesquisador – licenciado do Museu do Índio.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Possecomunal e conflito – terras de preto, terrasde santo e terras de índio. Humanidade.Brasília: UnB, v.4, n.15, 1988.

BARRETO FILHO, Henyo Trindade. Tapebas,tapebanos e pernas-de-pau de Caucaia, Ce-ará: da etnogênese como processo social eluta simbólica. Brasília: UnB, 1994.

BARTH, Fredrik. Ethnic groups andboundaries.Introduction. In: BARTH, F., (ed).London: George Allen & Unwin; Oslo:Universitets Forlaget, 1969.

BIARD, Auguste François. Deux années au Brésil.Paris: Librarie de L. Hachette, 1862.

____ Dois anos no Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Na-cional, 1945.

BUSATTO, Luiz. A imigração italiana no EspíritoSanto. Revista do Instituto Histórico e Geo-gráfico do Espírito Santo, Vitória, n. 38, p. 11-42, 1988.

CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente doBrasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:EDUSP, 1980.

CASAL, Aires de. Corografia Brasílica. São Pau-lo: Cultura, 1943. 2 v.

CUNHA, Francisco Manoel da. Informação sobrea Capitania do Espírito Santo em 1811. Re-vista do Instituto Histórico e Geográfico do Es-pírito Santo. Vitória, n. 35, p. 95-102, 1984.

CUNHA, Maria Manuela Carneiro da. “Parecer so-bre os critérios de identidade étnica”. In: CO-MISSÃO PRÓ-ÍNDIO (ed.). O índio e a ci-dadania. São Paulo: Brasiliense, 1983.

D’ALINCOURT, Luiz. Documentos sobre o rioDoce. Revista do Instituto Histórico e Geográ-fico do Espírito Santo. Vitória, n. 21, p. 100-125, 1961.

DANTAS, Beatriz G.; SAMPAIO, José Augusto L.,& CARVALHO, Maria do Rosário G. de. “Ospovos indígenas no Nordeste brasileiro: um es-boço histórico”. In: CUNHA, Manuela Car-neiro da (ed.). História dos índios no Brasil.São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

ESTIGARRÍBIA, Antonio. Trecho de um relatórioapresentado pelo inspetor à Diretoria doServiço de Proteção aos Índios, no ano de1912, relativamente aos índios do rio Doce.

Page 148: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

Revista do Instituto Histórico e Geográfico doEspírito Santo, Vitória, n. 7, p. 20-52, 1934.

FALCÃO, Clodoaldo. O caboclo Bernardo e o nau-frágio do Imperial Marinheiro, em 1887. Re-vista do Instituto Histórico e Geográfico do Es-pírito Santo, Vitória, n. 11, p. 121-154, jul. 1938.

GUIMARÃES, Ewerton M.“Sobre a situação de bensimóveis pertencentes ao patrimônio indígena noEstado do Espírito Santo”. In: SANTOS, SílvioCoelho (org.). O índio perante o direito.Florianópolis: Ed. da UFSC, 1982.

HEMMING, John. Red gold. London: MacMillan,1978.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesusno Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,1945, v. 6.

LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Rio deJaneiro: Bibliex, 1961.

LIMA, Antônio Carlos de Souza.“O governo dos ín-dios sob a gestão do SPI”. In: CUNHA,Manuela Carneiro da (ed.). História dos índi-os no Brasil. São Paulo: Companhia das Le-tras, 1992a.

____ Um cerco de paz: poder tutelar eindianidade no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 1992b, 2 v. Tese deDoutorado.

MARQUES, Cezar Augusto. Diccionario Históri-co, Geographico e Estatístico da Provínciado Espírito Santo. Rio de Janeiro: Nacional,1878.

MARTINS, Maria Terezinha B. M. Tupinikin: osfabricantes de farinha do Pau Brasil. Juizde Fora: UFJF, 1986, ms. Trabalho de conclu-são do bacharelado em Ciências Sociais (An-tropologia).

MÉTRAUX, Alfred. “The Tupinambá”. In:STEWARD, Julian H. (ed.). Handbook ofSouth American Indians. Washington:Smithsonian Institution, 1948, v. 3

NEUWIED, Maximiliano de Wied. Viagem ao Bra-sil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1940.

NEVES, Guilherme Santos. A Casaca: instrumen-to musical indígena. Revista do Instituto His-tórico e Geográfico do Espírito Santo. Vitória,n. 18, p. 103-111, 1958.

____Bandas de Congos. Rio de Janeiro:FUNARTE, 1980 (Cadernos de Folclore, 30).

OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estadodo Espírito Santo. Vitória: Fundação Culturaldo Espírito Santo, 1975.

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. A fronteirae a viabilidade do campesinato indígena.Rio de Janeiro: PPGAS, 1979, ms.

____“A viagem da volta: reelaboração cultural e ho-rizonte político dos povos indígenas no Nordes-te”. In: PETI. Atlas das terras indígenas doNordeste. Rio de Janeiro: PETI/Museu Naci-onal/UFRJ, 1993.

PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. “Os Botocudos esua trajetória histórica”. In: CUNHA, ManuelaCarneiro da (ed.). História dos índios no Bra-sil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PENNA, Misael Ferreira. História da Província doEspírito Santo. Rio de Janeiro, 1978.

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. “Índios livres e índi-os escravos: princípios da legislação indigenistado período colonial (séculos XVI a XVIII)”.In: CUNHA, Manuela Carneiro da (ed.). His-tória dos índios no Brasil. São Paulo: Com-panhia das Letras, 1992.

PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Cultura e Histó-ria: sobre o desaparecimento dos povos in-dígenas. Revista de Ciências Sociais. Fortale-za, vol. 23/24, n.º 1-2:213-225, 1992/1993.

REESINK, Edwin. Índio ou caboclo: notas sobrea identidade étnica dos índios no Nordeste.Universitas, Salvador, n. 32, p. 121-137, jan./abr. 1983.

Page 149: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

REIS, Paulo Pereira dos. O indígena do vale doParaíba. São Paulo: Governo do Estado, 1979.

ROCHA, Levy. Viagem de D. Pedro II ao EspíritoSanto. Rio de Janeiro: Revista Continente.Brasília: INL, 1980.

ROSALBA, Lélia M. F. G. O posto indígena deMirandela. Boletim do Museu do Índio: Do-cumentação. Rio de Janeiro, n. 1, 1976.

RUSCHI, Augusto.Grupos antropológicos indíge-nas do Estado do Espírito Santo. Boletim doMuseu de Biologia - Prof. Mello Leitão: Prote-ção à Natureza, Santa Teresa (ES), n. 18, 16jan. 1954.

SAINT-ADOLPHE, J. C. R. Milliet de. Diccionariogeographico, historico e descriptivo doImperio do Brazil. Paris: J. P. Aillard, 1845.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem aointerior do Brasil: Espírito Santo. São Paulo:Cia. Ed. Nacional, 1936.

____ Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. BeloHorizonte: Itatiaia, 1974.

SANTOS, Ana Flávia Moreira. Xakriabá: identi-dade e história. Relatório de pesquisa.Brasília: Departamento de Antropologia/UnB,1994.

SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descriptivo doBrasil em 1587. São Paulo: Cia. Editora Naci-onal, 1938.

SOUZA, Pero Lopes de. Diário de Pero Lopes1530-1532. Revista Trimensal do Instituto His-tórico Geographico e Etnographico do Brasil.Rio de Janeiro, v. 24, 1861.

Page 150: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros
Page 151: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros

COMPOSTO E IMPRESSO NO SERVIÇO GRÁFICODIVISÃO DE EDITORAÇÃO

DEPARTAMENTO DE DOCUMENTAÇÃODIRETORIA DE ADMINISTRAÇÃO

Page 152: Politica Indigenista Leste e Nordeste Brasileiros