A Construcao Da Politica - Cidadao Comum- Midia e Atitude Politica
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Alessandra Ald
A construo da polticaCidado comum, mdia e atitude poltica
Tese apresentada ao Instituto Universitrio dePesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial
para a obteno do grau de Doutora em CinciasHumanas: Cincia Poltica.
Banca examinadora:
_____________________________Marcus Faria Figueiredo (orientador)
_____________________________Csar Guimares
_____________________________
Ricardo Benzaquem de Arajo
_____________________________Afonso de Albuquerque
_____________________________Antnio Albino Canelas Rubim
Rio de Janeiro2001
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A. O que voc acha da corrupo na poltica? Basta ser poltico pra ser corrupto?Vera. No, no, mas existe. Existe no Brasil e no mundo inteiro, n?
A. E da?V. E a, como que eles falam, hein? A vem aquela exploso, as notcias.
Fraude, dinheiro foi desviado no sei pra onde, o banco suo, o banco alemo, o banco no sei o qu...O dinheiro que era pra um determinado projeto, saiu, foi prali...
E a gente escuta, e a gente, como bom ouvinte, acata isso.E sem nenhuma iniciativa prpria, sem poder fazer nada, a gente escuta como cidado.
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NDICE
INTRODUO > 5
1. CIDADANIA NA DEMOCRACIA DE PBLICO > 10
1.1. Discursividade e a produo de sentido para o mundo pblico > 181.2. Discursividade e enquadramento > 251.3. Atitudes do senso comum e explicaes estruturais para a poltica > 301.4. Alienao poltica > 341.5. O eleitor brasileiro: um debate > 39
2. ATITUDES POLTICAS DO CIDADO BRASILEIRO > 472.1. Atitude poltica: valncia e intensidade > 51
- Atitude forte/positiva > 54- Atitude forte/negativa > 64- Atitude forte/tensa > 76
- Atitude fraca/positiva > 87- Atitude fraca/negativa > 105
2.2. Convergncias: em busca do conhecimento poltico suficiente > 113
3. ATITUDE POLTICA E A MDIA > 1153.1. Ambiente informacional: quadros de referncia para explicar a poltica > 1203.2. Situaes de comunicao: informao poder > 1283.3. Uma tipologia do receptor: o espectador e os meios > 132
- vidos > 134- Assduos > 140- Consumidores de escndalos > 147- Frustrados > 150- Desinformados > 155
3.4. Implicaes para a atitude poltica > 157
4. MECANISMOS DE CONSTRUO DA POLTICA:A TELEVISO COMO REPERTRIO DE EXPLICAES POLTICAS > 1624.1. Os jornalistas e a essncia dos fatos > 1664.2. O estatuto visual da verdade: naturalizao > 1724.3. Personagens da poltica: novelizao > 178
5. CONCLUSO: A DEMANDA DO PBLICOMAIS CANAIS E MAIS SENTIDOS > 1866. APNDICE METODOLGICO: DESCOBRINDO OS PERSONAGENS > 191
6.1. Seleo dos entrevistados: mdia e diversidade sociocultural > 1956.2. As entrevistas: observador como intrprete > 2006.3. Interferncias: expectativas e ambiente > 2046.4. Anexo I: Questionrios de seleo > 2106.5. Anexo II: Cronograma das entrevistas > 2136.6. Anexo III: Roteiros das entrevistas > 214
7. BIBLIOGRAFIA > 223
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RELAO DE FIGURAS
QUADRO 1.Elementos da atitude poltica e expresso da opinio > 38
FIGURA 1. Tendncias da atitude poltica: intensidade e valncia > 44
QUADRO 2.Atitude poltica dos tipos de receptor > 155
QUADRO 3.Intensidade da atitude poltica dos tipos de receptor > 156
QUADRO 4. Valncia da atitude poltica dos tipos de receptor > 156
QUADRO 5. Caractersticas dos entrevistados: alto interesse vs. acesso > 187
QUADRO 6. Caractersticas dos entrevistados: baixo interesse vs. acesso > 188
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INTRODUO
O conhecimento sobre o que pensam as pessoas comuns sempre teve um papel
central na poltica, e portanto na cincia poltica. A indagao sobre a atribuio de
razes pelos homens para suas prprias aes remonta preocupao dos primeiros
tericos polticos com a natureza humana, sua relativa capacidade, habilidade, vontade e
autonomia para a organizao coletiva e a conduo dos negcios comuns. No campo
da poltica concreta, mesmo em regimes autoritrios, em que a participao do povo no
efetiva, ela sempre foi estratgica. J Maquiavel aconselhava ao prncipe que
conhecesse os costumes e opinies do povo; um certo grau de consenso sempre foi
vantajoso para o exerccio do poder. E, muito antes da atual democracia representativa,
vox populi j era vox Dei. Manter favorvel a opinio popular, nas palavras de
Maquiavel, sempre tornou a poltica menos onerosa, tanto em termos financeiros quanto
em termos sociais.
medida que se expandem os direitos polticos e civis, ao longo dos ltimos
dois sculos, a questo das idias que o povo tem sobre a poltica ganha novos
contornos. A necessidade de conquistar e manter o favor popular, a ser periodicamente
confirmado atravs das eleies, torna seu conhecimento cada vez mais importante tanto
em termos estratgicos, para a conduo do Estado e organizao da sociedade, quanto
em termos normativos, na medida em que preciso incorporar este novo ator poltico, o
cidado comum, ao modelo de democracia a ser adotado como legtimo, com as
implicaes decorrentes de suas caractersticas especficas. O papel mais ativo previsto
para o cidado pelos modelos democrticos traz novos problemas, principalmente emrelao ao conhecimento sobre a poltica como pr-requisito para sua participao,
ainda que mnima, em uma esfera pblica definida como racional e tendendo ao bem
comum. A capacidade e disposio das pessoas comuns para buscar e obter
conhecimentos sobre a poltica, bem como os processos e condies envolvidos nesta
busca, passam ao primeiro plano da reflexo sobre a poltica e sociedade
contemporneas.
Estas transformaes sociais e polticas foram acompanhadas por avanoscientficos evidentes, por exemplo no campo da estatstica, que permite a sistematizao
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cada vez mais acurada das informaes sobre opinies e escolhas polticas dos cidados
no agregado. A anlise dos mecanismos individuais relativos ao conhecimento e
discurso poltico do cidado comum, por outro lado, permite determinar algumas
caractersticas bsicas, fundamentais, que, justamente por serem comuns, interessam
quer aos produtores da moderna comunicao de massa, quer aos polticos
contemporneos, interessados em dominar os cdigos de novas exigncias, por parte
dos eleitores, bem como para avaliar e elaborar critrios de legitimidade teis ao debate
democrtico.
A introduo da mdia de massa nesta equao, central para sua compreenso,
tambm vai ganhar espao crescente dentro do interesse cientfico. Hoje,
acompanhamos nos jornais competies eleitorais marcadas pela corrida estatstica, nas
quais o povo, tomado agregadamente pelos institutos de pesquisa, pelas curvas de
inteno de voto ou de popularidade do governo, ou ainda pelos resultados eleitorais,
parece cada vez mais interagir com a poltica atravs da mdia de massa. Outras formas
de comunicao, claro, so relevantes no contexto de cada indivduo, mas podemos
afirmar que os meios de comunicao, e particularmente a televiso, so considerados,
por parte significativa da grande maioria que os consome, fonte importante de
referncias a partir das quais organizam o mundo da poltica.
Foi buscando contribuir para a compreenso da formao das atitudes polticas
do cidado comum, e investigar a influncia relativa da mdia de massa neste processo,
que se definiu o presente trabalho de pesquisa. Para isso, partimos de algumas perguntas
simples: uma pessoa qualquer, em qualquer cidade do pas, que expectativas alimenta
em relao ao Estado? Como justifica sua insero, mesmo que mnima, em um mundo
poltico no qual a sua participao descrita como fundamental? A partir de quais
quadros de referncia o faz, e condicionado por que mecanismos cognitivos? Como
situar os diferentes meios de comunicao nesta realidade poltica e cognitiva?A partir de uma anlise qualitativa, tendo por base entrevistas em profundidade,
procurei levantar estes problemas a partir dos pontos de vista dos prprios indivduos,
para registrar e entender as idias polticas do cidado comum tal como formuladas por
ele mesmo, afim de mapear as explicaes estruturais de que os cidados lanam mo
para organizar de maneira coerente o mundo da poltica, para se situar e agir num
contexto democrtico que, por definio, exige sua participao, ainda que espordica e
pouco motivada.
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A inteno mais abrangente desta pesquisa , portanto, examinar de que forma
as situaes de comunicao em que encontramos os indivduos, em sua relao com a
mdia, influem em suas respectivas atitudes polticas; investigar que condies
propiciam uma vivncia mais democrtica deste sistema poltico por parte do cidado
comum, no especializado, que constitui a grande maioria da populao.
O primeiro captulo, Cidadania na democracia virtual, apresenta as principais
perspectivas analticas a partir das quais foram organizadas as entrevistas. Estamos
diante de um tipo especfico de ordem poltica e social, marcada pela presena ativa dos
meios de comunicao de massa. Trata-se de um sistema que mantm caractersticas
fundamentais de representao pelas quais podemos consider-lo uma democracia, mas
apresenta tambm traos especficos cujas implicaes polticas so objeto, hoje, de
grande interesse cientfico. Este novo cenrio poltico habitado por uma maioria de
pessoas cuja interao com o mundo da poltica predominantemente discursiva. A
partir da constatao de uma democracia de pblico, este captulo descreve a
importncia do processo de construo das atitudes polticas, com nfase no carter
cognitivo: seu contedo so as explicaes estruturais que os indivduos elaboram para
se situar, enquanto cidados, na poltica.
Para melhor estabelecer a perspectiva prpria deste estudo, a explorao das
atitudes polticas inclui a retomada de um conceito clssico da cincia poltica, o da
alienao, cuja incorporao como chavo ao discurso comum para descrever o
desinteresse poltico do homem contemporneo indicativa do espao ocupado por essa
percepo no imaginrio social. Os desdobramentos do conceito de alienao e sua
contrapartida, a idia de integrao, vo iluminar algumas caractersticas centrais das
atitudes polticas, enfatizando sua distncia ou proximidade em relao ao ideal do
cidado informado e integrado polis.
Na indagao acerca da relao entre a atitude poltica dos entrevistados e osmeios de comunicao, o perodo de democracia que vivemos, no Brasil, desde meados
dos anos 80, coloca questes especficas para o entendimento das atitudes polticas de
um cidado carioca comum, tal como os que foram entrevistados. Pareceu importante
apontar, assim, as principais perspectivas a partir das quais tem sido tratado o problema,
no mbito da produo recente da cincia poltica brasileira.
No segundo captulo, Atitudes polticas do cidado brasileiro, apresento uma
alternativa analtica para a categorizao das principais atitudes polticas reveladas napesquisa, redimensionando as questes colocadas pelas diferentes perspectivas
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presentes no captulo anterior. Acredito ser possvel explicar as atitudes polticas do
cidado comum a partir de duas tendncias principais, ao longo das quais parecem se
organizar as diferentes caractersticas percebidas tanto nas teorias da alienao, como na
pesquisa emprica empreendida para este estudo. Trata-se de dois eixos fundamentais: a
intensidade e a valncia das atitudes polticas, na verdade presentes, de uma forma ou de
outra, em todas as conceituaes que envolvem o binmio alienao/integrao. O
primeiro eixo diz respeito relativa centralidade da poltica entre as preocupaes
cotidianas do cidado comum; o segundo ancora-se na constatao de que as atitudes
polticas variam tambm de acordo com a perspectiva individual positiva ou negativa
quanto s possibilidades e condies da poltica. Foi possvel identificar cinco atitudes
tpicas em relao poltica: forte/positiva, forte/negativa, forte/tensa, fraca/positiva e
fraca/negativa.
Para alm das diferenas entre os tipos atitudinais construdos, encontramos nos
depoimentos uma convergncia que aponta para duas caractersticas: a atribuio de um
valor central questo da informao, como indispensvel ao conhecimento poltico; e
um tratamento afetivo e personalista da poltica, marcado pela subjetividade e pela
paixo. Estes focos, importantes como so no discurso dos cidados comuns, sero
desenvolvidos nos captulos seguintes.
O terceiro captulo, Mdia e atitude poltica, trata justamente do ambiente
informacional em que encontramos estes cidados, contracenando com quadros de
referncia que alimentam as explicaes que eles constroem para a poltica. As
condies de acesso so especialmente significantes na diferenciao da recepo, mas
seu efeito modulado pelo interesse por assuntos polticos, ou seja, o grau de atividade
com que cada um busca informar-se sobre a poltica, e pela relativa satisfao que
obtm do que considera informao suficiente. O cidado comum receptor da
comunicao de massa e usurio de um sistema diferenciado de informao econhecimento poltico, a que recorre de forma mais ou menos ativa. Sua insero no
universo da comunicao de massa d origem a uma classificao dos tipos de receptor,
estabelecidos em funo da situao de comunicao em que encontramos os
indivduos; assim, os cidados comuns se distribuem entre vidos, assduos,
consumidores de escndalos, frustrados e desinformados.
Este captulo encerra-se com uma descrio das principais tendncias atitudinais
encontradas em cada grupo de receptores, apontando para as relaes entre as atitudespolticas e os tipos de recepo de comunicao dos indivduos, com implicaes
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importantes para o que se pode dizer acerca das possibilidades e expectativas polticas
deste cidado.
O quarto captulo, Mecanismos de incorporao de explicaes polticas: a
televiso como repertrio de exemplos, tambm ganhou corpo a partir da anlise da
relao dos cidados com a mdia. Aqui, focalizamos a importncia da televiso como
um meio especfico que, alm do consumo qualificado e diversificado de informao
poltica, implica, devido ao seu prprio formato, na utilizao de mecanismos
cognitivos comuns, a que todos os cidados parecem recorrer no momento de construir
explicaes polticas. Neste captulo, apresento os trs principais mecanismos
cognitivos identificados na construo de explicaes polticas pelos cidados-
telespectadores, que elevam a televiso a uma posio singularmente vantajosa na
constituio da opinio pblica, e conseqentemente central para a reflexo acerca de
suas implicaes polticas. Os mecanismos cognitivos de incorporao de explicaes
caracterizam-se pela essncia dos fatos, com especial destaque figura dos jornalistas
e apresentadores de televiso; pelo estatuto visual da verdade; e pela personalizao
prpria do enquadramento telejornalstico e das explicaes populares para a poltica.
Ao focalizar este cenrio e estes personagens, observamos que as pessoas
comuns trafegam por um universo vasto e variado de informaes, por vezes at
excessivas, em sua interao rotineira com diferentes quadros de referncia, disponveis
e elaborados de acordo com o ambiente cognitivo de cada um. Para evitar a paralisia,
buscam marcas, sinais, uma orientao que contextualize, enquadre cada elemento
particular numa moldura maior, dando-lhe sentido. Os meios de comunicao de massa
se oferecem, neste contexto, como uma estrada sinalizada; propem uma organizao
autorizada dos eventos. No pouco. As exploses de notcias que pontuam um
cotidiano dedicado esfera privada, de equilbrio s vezes precrio, orientam e
informam as atitudes polticas do cidado comum.Alm de algumas reflexes finais, e das referncias bibliogrficas de praxe, esta
tese inclui um apndice metodolgico em que se explicitam os protocolos da pesquisa,
descrevendo desde o processo de seleo dos dezenove entrevistados at as implicaes
da metodologia adotada para o andamento do trabalho de campo e para a posterior
anlise dos dados. Vrios aspectos metodolgicos relevantes, inseridos na discusso
atual das cincias sociais, ficam assim reservados aos que se dispuserem a uma leitura
mais paciente e especfica.
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CIDADANIA NA DEMOCRACIA DE PBLICO
O cenrio em que encontramos os cidados da democracia contempornea
caracteriza-se por uma esfera pblica cada vez mais dependente dos meios de
comunicao de massa para a exposio de eventos, idias, programas e lderes polti-
cos. Os partidos parecem ter perdido o monoplio do espao pblico da poltica para os
meios de comunicao, que crescem em importncia, tornando-se os canais de
informao poltica mais importantes e universalmente acessveis. Este canal pblico
tem um lgica perversa: a mdia oferece o mximo de informao sobre o mximo de
assuntos, no mnimo de tempo.
Vrias abordagens tericas, tanto no campo da comunicao quanto no campo
da cincia poltica, tm procurado dar conta desta nova realidade. Termos como
videopoltica, telecracia, democracia midiacentrada, cibersociedade e outros tentam
traduzir a especificidade poltica das relaes de comunicao na sociedade
contempornea. A questo das relaes entre mdia e sociedade e, principalmente, entre
mdia e poder, est presente na reflexo de importantes pensadores sociais e polticos
contemporneos, como Umberto Eco e Pierre Bourdieu; a intelectualidade bem-
pensante parece cada vez mais alarmada, no curso da expanso dos meios e das
inovaes da tecnologia crescentemente com os jornais, o rdio e, finalmente, a
televiso , com os efeitos perniciosos da indstria cultural para a poltica e, mais
especificamente, para a cidadania.
Em uma breve retrospectiva, vemos que a primeira vez em que o mundoacadmico atentou para as possveis conseqncias polticas dos meios de comunicao
de massa remonta ao segundo ps-guerra, quando o profissionalismo e eficcia da
comunicao poltica, cujo exemplo mais gritante era o do nazismo, geraram uma onda
de espanto e pessimismo quanto suposta onipotncia persuasiva e manipuladora dos
meios. O incio do interesse pela recepo da comunicao poltica de massa coincide
com a especulao a respeito dos possveis efeitos da propaganda nazista e com fatos
anedticos, como o pnico causado pela transmisso radiofnica de Orson Welles
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narrando uma invaso marciana. Crescia a sensao de que a mdia era capaz de
manipular sem freios uma audincia passiva.
A partir de ento, tanto estudiosos da comunicao quanto da poltica tm
procurado dar conta das implicaes do fenmeno da comunicao de massa, com seu
desenvolvimento tecnolgico e seus desdobramentos sociais, nas mais diversas frentes
de pesquisa, e com resultados muitas vezes diferentes ou at contraditrios, mas que
iluminam aspectos importantes da relao entre cidadania e mdia na democracia
contempornea. No campo da comunicao, o que se convencionou chamar de estudos
de recepo ou audincia tm se alinhado segundo dois eixos antagnicos, alternando
teorias que contrapem, de um lado, a concepo dos meios de comunicao como
todo-poderosos, que atribui os efeitos da comunicao via mdia exclusivamente ao
do emissor sobre o receptor, relegando este a um papel mais ou menos passivo; do
outro, a nfase na capacidade interpretativa do receptor que, como qualquer leitor pode
modificar o significado das mensagens de acordo com suas prprias contingncias. As
diferentes orientaes encontram explicao em questes histricas e metodolgicas
(Wolf, 1992; Gans, 1993), estruturais (Sampedro, 1999) ou evolutivas (Martins, 1996).
Em relao cincia poltica, embora vrias pesquisas internacionais e
brasileiras apontem para a centralidade crescente da mdia no funcionamento do sistema
poltico nas democracias da sociedade moderna (Matos, 1994; Swanson e Mancini,
1996; Wattemberg, 1991), a presena macia dos meios de comunicao de massa como
novo ator poltico relevante ainda no foi incorporada de maneira satisfatria s teorias
democrticas correntes: Seja porque minimizam o aspecto de construo social das
preferncias, presente na luta poltica, seja porque idealizam o processo comunicativo,
ignorando seus constrangimentos concretos, as teorias da democracia tm dificuldade
para trabalhar com os meios de comunicao (Miguel, 2000, p. 51). Dentro do nosso
prposito, evidente a importncia de esclarecer os motivos e conseqncias destadificuldade terica. Para tanto, organizamos nossas consideraes em torno da reflexo
esquemtica e concisa de Bernard Manin.
Manin (1995) procura entender o que chama de democracia de pblico como
uma transformao no sistema representativo, equivalente que marca a passagem de
um parlamentarismo de notveis (scs. XVII/XIX) democracia de partido tpica dos
sculos XIX e XX. Assim, o que tem sido entendido como crise da democracia e
declnio das relaes de identificao entre representantes e representados seria para
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Manin um novo modelo poltico, porm mantendo constantes as principais
caractersticas democrticas.
O foco nas continuidades deste sistema de governo pode permitir um fio
condutor para pensar normativamente a questo da informao do cidado comum, e
conseqentemente dos fluxos sociais de comunicao. Por trabalhar com tipos ideais,
que na prtica poltica se encontram combinados em graus diferentes, o modelo de
Manin tambm permite analisar especificamente os aspectos relacionados
comunicao e informao que, segundo ele, vo caracterizar o sistema poltico
contemporneo que o autor chama de democracia de pblico como uma mutao
do governo representativo, equivalente revoluo promovida pelo sufrgio universal e
pelos partidos.
Para ele, as caractersticas gerais do governo representativo seriam a eleio dos
representantes, sua independncia parcial, o debate parlamentar e a liberdade de opinio
pblica. Em relao eleio de representantes para a administrao da coisa pblica,
ela implica a atribuio de autoridade, o consentimento com um governo exercido
indiretamente. No se trata de um governo direto do povo, mas sim de seu governo
autorizado. A relao mediada pelos representantes entre cidados e esfera pblica
reforada pela segunda caracterstica do governo representativo: o mandato livre, a
independncia parcial que os representantes conservam.
Os dois outros aspectos sintetizam o pesado pressuposto cognitivo que uma
viso deliberativa da democracia (ver tambm Manin, 1987) impe sobre o cidado
comum, e nos interessam mais de perto, visto o foco deste trabalho na relao entre
mdia e atitude poltica. Para que se considere um sistema poltico como representando
legitimamente os interesses comuns, requisito que a opinio pblica sobre os assuntos
polticos seja livre e plural, e que o cidado comum, para desempenhar seu papel de
eleitor, tenha acesso suficiente informao sobre polticas e decises governamentais.Assim, o amplo acesso, inteligibilidade e variedade da informao poltica so condi-
es importantes para o funcionamento de uma democracia baseada na universalidade
do voto: Para que os governados possam formar opinio sobre assuntos polticos,
necessrio que tenham acesso informao poltica, o que supe tornar pblicas as
decises governamentais e demais processos polticos (Manin, 1995, p. 11), bem como
a liberdade para expressar diferentes opinies polticas.
O quarto e ltimo ponto, relacionado ao anterior, a norma de que as decisespolticas, para serem legtimas, so tomadas aps debate. Democracia, segundo essa
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viso, implica discusso para se chegar verdade, competio entre opinies
estabelecendo um acordo entre interesses nem sempre convergentes.
O governo representativo parlamentar, primeiro tipo ideal de Manin, cujo
exemplo modelar seria a Inglaterra do sculo XVIII, define-se pela eleio como
relao de confiana de carter pessoal, levando escolha de personalidades
proeminentes publicamente, os notveis. A independncia parcial dos representantes,
que nessa poca passa a ser defendida por autores ingleses como Edmund Burke,
aparece como o desvinculamento do deputado em relao a suas bases eleitorais, agindo
de acordo com sua conscincia e julgamento pessoais. Assim, grande o peso das
associaes polticas extra-parlamentares, que exercem ativamente a opinio pblica
como forma de presso e controle sobre os representantes. Este modelo implica, ainda,
que as decises pblicas sejam atingidas por meio do debate, da deliberao, exercida
no mbito do Parlamento. Os deputados no so porta-vozes de vontades preexistentes,
ou de uma vontade geral universalmente conhecida, e podem mudar de opinio atravs
da argumentao persuasiva e livre manifestao de idias.
Trata-se, justamente, do modelo parlamentar que deu origem influente
concepo habermasiana de uma esfera pblica, com sua nfase na discusso livre e
racional das questes de interesse coletivo; sua base de legitimidade consistiria na
possibilidade de reunir um pblico, formado por pessoas privadas que constroem uma
opinio pblica com base na racionalidade do melhor argumento, e fora da influncia do
poder poltico e econmico e da ao estratgica dos grupos de interesse. Mesmo
quando, em obras posteriores, Habermas amplia o conceito de deliberao para alm das
limitaes histricas presentes em sua obra mais importante, Mudana estrutural da
esfera pblica (1996), de 1962, este princpio fundamental do debate racional e
esclarecido permanece como o principal critrio de legitimidade para uma democracia,
dando grande dimenso ao fenmeno da comunicao em geral, sem no entanto admitiralgumas das caractersticas concretas dos sistemas miditicos contemporneos (ver
Habermas, 1995).
Na concepo historicizada de Manin, a representao poltica com predomnio
do parlamento daria lugar, com a extenso gradual do direito ao voto, a uma
democracia de partido, em que a relao entre representantes e representados no
mais pessoal, mas sim mediada pelos partidos. Os sistemas polticos histricos que
inspiram o modelo so as democracias europias dos grandes partidos socialistas. Ocomportamento eleitoral tornava-se mais estvel, reproduzindo as clivagens
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socioeconmicas e o conflito entre as classes; a representao proporcional, neste
sentido, passava a refletir a estrutura de interesses da sociedade.
Neste sistema, a independncia do deputado condicionada disciplina
partidria; o partido que parcialmente independente do programa e dos prprios
eleitores. Em relao liberdade da opinio pblica, as associaes polticas e a
imprensa em geral apresentam-se marcadas por vnculos partidrios. Os eleitores de
cada partido, com o qual se alinham geralmente por identificao socioeconmica, so
pouco expostos a pontos de vista divergentes. A liberdade, aqui, relaciona-se fundamen-
talmente com a livre organizao e manifestao da oposio. O carter deliberativo da
representao estaria presente nos debates internos de cada partido, refletindo posies
estveis em cada campo, definidas previamente. As votaes parlamentares, assim,
conferem carter legal s decises, mas o frum de discusso efetivo transferido para
as convenes e demais instncias partidrias; a negociao no Parlamento se d entre
os partidos e, eventualmente, interesses organizados corporativamente.
Na democracia de pblico, o ltimo modelo proposto por Manin, reconhecemos
nossa democracia de massa contempornea. Manin resume seus traos caractersticos.
No que diz respeito eleio dos representantes, indica a crescente personalizao da
escolha eleitoral, com foco no candidato, em oposio aos critrios partidrios vigentes
no modelo anterior, e a atribui, em primeiro lugar, a mudanas nos canais de comunica-
o poltica, que afetam a natureza da relao de representao. Os candidatos se
comunicam diretamente com seus eleitores atravs do rdio e da televiso, dispensando
a mediao de uma rede de relaes partidrias (Manin, 1995, p. 26, grifo meu); seriam
beneficiados, segundo este modelo, os candidatos que melhor dominam as tcnicas da
mdia, os melhores comunicadores. Os partidos tendem, cada vez mais, a se colocar a
servio de um lder.
Mesmo no momento eleitoral, praticamente a ocasio exclusiva de participaomais ativa deste pblico, o poltico que teria a iniciativa de oferecer alternativas,
propor a cada vez os termos de clivagem para o eleitor, a partir de pesquisas de opinio.
Assim, o resultado eleitoral tende a variar, independentemente da clivagem social;
cresce a importncia do eleitor flutuante. O voto ganha importante dimenso reativa: o
eleitor reagiria aos termos especficos de cada eleio, muito suscetvel s campanhas.
A complexidade social crescente daria origem a categorias de identificao social
mltiplas e superpostas, plurais.
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Numa democracia de pblico, os eleitores passam a ter maior interao com as
especificidades de cada eleio, mais do que expressar suas identidades sociais ou
culturais atravs de um voto segmentado partidria ou ideologicamente em clivagens
duradouras. Embora o voto ainda seja uma expresso do eleitorado, este apresenta-se
desalinhado e atento performance: a escolha decorre principalmente de aes
relativamente independentes dos polticos, permanentemente empenhados em identificar
as questes que melhor dividem o eleitorado, para poder adaptar seu discurso a suas
expectativas e, num clculo downsiano, procurar obter o sucesso eleitoral. Manin (1995)
v a uma convergncia entre os termos da escolha eleitoral e as divises do pblico,
apoiada nas pesquisas de opinio.
Os eleitores mantm o poder de no renovar, na eleio seguinte, o mandato do
candidato que no tiver correspondido a suas expectativas. Tambm neste caso, no
entanto, o papel dos meios de comunicao de massa revela-se importante, uma vez que
estes so fontes nada desprezveis de informao sobre a atuao dos polticos. Como
notado por diversos autores, os prprios partidos, a partir de um certo momento, alteram
profundamente seu comportamento em funo da televiso (Wattemberg, 1991; Gans,
1993; Semetko, 1991), passando a promover eventos de acordo com critrios de noti-
ciabilidade. O programa partidrio perde fora, devido complexidade crescente do
governo, que exige agilidade diante de situaes muitas vezes imprevistas.
A independncia parcial dos representantes manifesta-se, nesta variante de
governo representativo, em vrios nveis. Segundo Manin, a campanha constri
antagonismos de imagem entre os candidatos, em que os compromissos so vagos e a
relao estabelecida com o eleitor de confiana: a credibilidade do poltico substitui a
possibilidade de verificao. Os cidados recebem uma variedade de imagens que
competem entre si; trata-se, no entanto, de representaes polticas muito simplificadas
e esquematizadas. Para Manin, um meio de resolver o problema dos custos dainformao poltica, desproporcionais em relao influncia que o eleitor espera
exercer sobre o resultado das eleies. E acrescenta que, quando a identidade social e a
identificao partidria perdem importncia na determinao do voto, surge a
necessidade de encontrar caminhos alternativos para obter informao poltica (Manin,
1995, p. 30). No caso das modernas democracias de pblico, so os meios de
comunicao de massa, e especialmente a televiso, que se encarregariam portanto de
fornecer atalhos para a obteno da informao poltica funcionalmente necessriapara o cidado comum, cumprindo papel equivalente ao que Downs atribua aos
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partidos polticos, eles prprios atalhos freqentes nas simplificaes cognitivas
operadas pelo cidado comum (Downs, 1957).
tambm nos meios de comunicao de massa que se concretiza, para Manin, a
liberdade de opinio pblica na democracia de pblico. Uma especificidade
politicamente relevante dos modernos meios de comunicao sua declarao de
neutralidade poltica, ou seja, sua no-filiao ideolgica ou partidria. Ao contrrio do
que ocorre na democracia partidria, em que as pessoas escolhem suas fontes de
informao de acordo com suas inclinaes polticas, os partidos polticos no so mais
proprietrios de grandes jornais, e o rdio e a televiso no tm, oficialmente, orientao
partidria. O carter no-partidrio dos institutos de pesquisa tem relevncia ainda
maior, uma vez que as sondagens de opinio do voz ao cidado comum, aptico, e os
polticos tendem a apresentar suas propostas considerando as demandas levantadas junto
a este eleitor mediano, estabelecendo muitas vezes os prprios termos do debate (ver
Champagne, 1998). Trata-se, como se v, de modelo democrtico bem distinto daquele
em que os partidos vocalizam interesses de grupos abrangentes e socialmente definidos.
Neste tipo de sociedade, possvel observar um sistema jornalstico caraterizado
pela crescente homogeneizao da informao poltica: os indivduos recebem informa-
es equivalentes, independentemente de suas preferncias polticas. A escolha de
assistir determinado telejornal, por exemplo, se d de acordo com outros critrios, sejam
de contedo, estticos ou de imitao. Um segmento importante do eleitorado passa a
ser flutuante, ou seja, passa a votar de acordo com a pauta de problemas e questes
levantada a cada eleio, identificada pelos institutos de pesquisa e fartamente
evidenciada pela cobertura jornalstica. Trata-se de uma informao, no entanto,
simplificada, em que problemas complexos so expressos de acordo com o meio,
tornados curtos, simples e espetaculares, para reter a ateno do espectador.
Quanto premissa de que as decises polticas sejam tomadas a partir do debatepblico, quarto princpio do sistema representativo, para Manin seu novo frum so os
meios de comunicao de massa. a que se discutem, a cada eleio, as prioridades e
problemas polticos de maior audincia, levantados pelos institutos de pesquisa; os
eleitores, geralmente flutuantes, ou seja, sem identificaes polticas mais duradouras,
so vistos como pblico, responsvel por receber e avaliar as informaes e produzir
a deciso eleitoral. Podemos imaginar uma pauta de prioridades pblicas estabelecida a
partir das relaes entre os emissores e os diversos atores polticos, todos atentos s
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manifestaes da opinio pblica e s oportunidades de mobiliz-la a seu favor,
poltica de opinio (Gomes, 2000).
Esta viso esquemtica evidencia os problemas efetivos e potenciais do modelo.
Manin no deixa claro, ao que parece, a dimenso condicional que assume a questo da
representao legtima de interesses, especialmente em relao aos dois ltimos pontos,
mais especificamente comunicacionais. Se cotejarmos a realidade poltica com estes
pressupostos, vrias das questes levantadas por um sistema poltico sujeito a grande
influncia dos meios de comunicao de massa ficam diminudas em sua possibilidade
analtica.
A prpria estrutura econmica de propriedade dos meios tem graves
conseqncias polticas. Esta preocupao ganha cores bastante concretas quando se
sabe que, no Brasil, mais da metade das emissoras de rdio e televiso pertencem a
polticos, parentes ou pessoas ligadas a polticos1.
Uma das questes centrais, para uma concepo democrtica dos meios de
comunicao, passvel ainda de muita investigao, a dependncia recproca entre
mdia e poltica: o governo e os polticos so fontes indispensveis para o jornalismo,
que por sua vez, com suas rotinas industriais de produo, exige a incorporao, pelos
polticos e governos, de uma srie de transformaes tcnicas e estratgicas. O crescente
profissionalismo miditico dos polticos, por sua vez, tem implicaes nos critrios de
cobertura da poltica.
H um abismo entre a produo de decises polticas e o mundo da poltica tal
como representado na TV. Mdia e esfera pblica tendem a seguir lgicas diferentes: os
meios de comunicao de massa seguem critrios de captao da ateno.
Especialmente em termos de televiso, muito j se ouviu sobre sua tendncia ao
entretenimento no tratamento da informao jornalstica e espetacularizao da poltica;
o valor da notcia segue a necessidade de captao da ateno, com critrios denoticiabilidade e espetculo. A notcia, industrialmente produzida para estar sempre
fresquinha (e portanto vender mais, como no anncio de biscoitos), depende de
elementos de apelo popular como a novidade, o negativismo, o escndalo, a presena de
1 Cerca de 60% das emissoras de rdio e TV passaram, na dcada de 90, para os beneficirios da generosapoltica de concesses adotada em 1988 pelo ento presidente Jos Sarney, na negociao da prorrogaoem um ano de seu mandato (Ald, 2000). Outros dados mostram que, na eleio de 1998, em 13 estados
havia candidatos ao governo que eram donos de rdios e televises locais, sem considerar jornaisimpressos. No Congresso daquele ano, 96 parlamentares eram detentores de concesses, dentre os maisinfluentes (Godoi, 2001, p. 102).
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atores proeminentes, a personalizao, o conflito, a exceo. A poltica adapta-se a estas
exigncias, mas no sem perda de confiabilidade por parte do grande pblico.
Como fica, nesta nova democracia, o cidado pea-chave para a compreenso
e avaliao do cenrio? Em que medida as expectativas dos modelos democrticos
precisam ser adaptadas, ou revistas? E, mais importante, como pensa o cidado
brasileiro comum sobre a poltica, num ambiente informativo em que predominam os
meios de comunicao de massa? Apesar da centralidade crescente do cidado-receptor,
tanto na cincia poltica quanto na comunicao a maioria das pesquisas relativas
interpretao e atividade das audincias tem presumido, mais do que examinado, as
explicaes do cidado comum sobre o mundo, valendo-se de teorias de fundo
econmico ou ideolgico.
Acredito que, iluminando os caminhos percorridos pelo cidado comum no
processo de construir suas opinies polticas, possvel tentar preencher algumas das
principais brechas ou questes abertas por este novo sistema poltico. Em especial pela
articulao entre os sistemas da comunicao e da poltica, atravs da anlise de um ator
situado em sua interseo, e importante para ambos: ao mesmo tempo cidado e
receptor de mdia de massa. Numa democracia de pblico tal como vimos que a nossa
se afigura, seja qual for a centralidade relativa atribuda aos meios, a coincidncia destes
dois aspectos nos mesmos sujeitos aponta para a importncia crucial do estudo de suas
relaes e influncias recprocas.
Empreenderemos assim, em primeiro lugar, uma reviso da origem e
importncia das atitudes polticas para a formao das opinies e escolhas polticas dos
indivduos; esta preocupao inclui o esclarecimento de seu carter discursivo, ou seja,
a compreenso do raciocnio do senso comum como sendo composto de relatos,
verses, explicaes ou esquemas que se concretizam na elaborao narrativa.
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1.1. DISCURSIVIDADEE A PRODUO DE SENTIDO PARA O MUNDO PBLICO
A presente pesquisa de doutorado orientou-se desde o incio para as verses
oferecidas pelos prprios sujeitos sobre os acontecimentos pblicos. A deciso deprocurar junto aos indivduos suas formulaes acerca do mundo poltico, e a maneira
pela qual articulam seu discurso com os ecos dos meios de comunicao de massa,
colocou uma srie de questes metodolgicas. Como reconstruir a ideologia do
cidado comum e sua interao com a mdia de massa? Como investigar a maneira
pela qual as pessoas conferem sentido ao mundo pblico no qual esto inseridas2?
A opo por uma abordagem qualitativa sustenta-se na idia de que, para melhor
entender os dados agregados quer nas pesquisas de opinio, quer nos resultados eleito-rais, necessariamente organizados de acordo com categorias ou alternativas fechadas,
preciso investigar os discursos das pessoas sobre a poltica. O ponto de partida do
estudo foi justamente este discurso explcito, os relatos elaborados pelos prprios
cidados sobre o mundo pblico, para investigar suas atitudes polticas e as principais
variveis relacionadas sua formao e transformao. a partir da verso deste outro
lado, seu discurso, a expresso da opinio com seus elementos de explicao, que
podemos nos aproximar das atitudes que orientam a ao poltica dos cidados.
Os indivduos procuram justificativas vlidas para se orientar e agir num
contexto poltico do qual, querendo ou no, so obrigados a participar e em relao ao
qual, s vezes contra sua vontade, precisam se posicionar. Para o cidado comum, a
construo destas justificativas se apia em discursos elaborados e recebidos. Discursos
ao mesmo tempo informados e limitados pelos diversos quadros de referncia a que os
cidados recorrem. O prprio processo de construo das atitudes polticas um
processo comunicacional, uma vez que estes quadros de referncia mais ou menos
importantes na elaborao das explicaes com que organiza o mundo da poltica tm
natureza discursiva.
Embora a situao ordinria do cidado comum seja a de no pensar sobre a
poltica, assunto marginal em relao aos seus interesses mais imediatos, as ocasies
que se apresentam para o conhecimento e expresso da opinio poltica so sempre
situaes de comunicao, que condicionam uma elaborao da opinio. A vivncia
poltica em primeira pessoa da maioria dificilmente abarca a gama de informaes
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necessrias para entender todos os aspectos e se posicionar ativamente numa esfera
pblica cuja conduo e processos de tomada de deciso parecem cada vez mais
complexos e distantes da prtica cotidiana de pessoas que, afinal, tm nos interesses
privados seu foco de ateno.
A discusso sobre a poltica pressupe a existncia de uma pluralidade de
opinies evidente no velho e ainda usado ditado segundo o qual falta de cortesia
falar de poltica, religio e futebol, por serem temas que envolvem as paixes, mais
do que a razo. neste momento que o argumento, enquanto ferramenta discursiva para
validar uma posio ou atitude, mostra sua relevncia. Ao mesmo tempo, fica claro que
as explicaes discursivas construdas pelas pessoas para a poltica ou qualquer outro
assunto no se do em bases puramente racionais; a opinio poltica envolve, alm da
razo interesseira dos meios/fins, valores e pressupostos sobre o funcionamento do
mundo, afetos e identificaes no necessariamente cientficos ou filosficos.
Encontramo-nos na iminncia de investigar a controversa mente humana, a parte
da comunicao social que diz respeito cognio, ou seja, aos vrios processos
psicolgicos atravs dos quais as pessoas lidam com a informao sua volta. Nosso
foco ser necessariamente o indivduo embora sem perder de vista os fatores sociais e
estruturais que influenciam o processo global da comunicao poltica. As questes
relativas ao mundo pblico, no entanto, no pertencem ao centro das preocupaes
cotidianas do cidado comum, ao menos desde a ciso moderna entre pblico e privado.
Neste sentido, talvez em relao s atitudes polticas, mais do que a qualquer outro
aspecto psicolgico, faa sentido a investigao discursiva, uma vez que na construo
do discurso, muito mais do que pela ao, que o homem contemporneo pode e quer
participar da poltica.
O esforo no sentido de entender como as pessoas definem, em seus prprios
termos, o mundo da poltica, atribuindo-lhe sentido, deve ser compreendido dentro deum panorama mais global de transformao do pensamento social, que tem
testemunhado a importncia crescente das noes de interpretao e discurso. As
cincias sociais viveram, nas ltimas trs dcadas, um processo de questionamento e
auto-reflexo evidente na filosofia da cincia produzida por diversas reas, e que
recebeu o nome geral de guinada narrativa ou converso lingstica3. Seja na filosofia
2
O aspecto metodolgico que esta questo implica est tratado em maior detalhe no apndicemetodolgico que fecha este trabalho.3 A partir do ingls narrative ou linguistic turn. Ver, especialmente, Habermas (1987).
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da histria, na histria das cincias, na sociologia da vida cotidiana ou na leitura mais
recente da experincia etnogrfica, esta abordagem aponta para o carter discursivo e,
portanto, construdo, de qualquer relato.
Depois do objetivismo, naturalismo e funcionalismo predominantes na
sociologia americana, principal influncia nas cincias sociais de todo o mundo desde o
comeo do sculo at o perodo do ps-guerra, a tradio interpretativa volta nos anos
60 e 70 para o primeiro plano no pensamento social, retomando fundadores clssicos
como Weber, que atentara para a multiplicidade de leituras possveis do mundo social.
O papel central da linguagem e das faculdades cognitivas dos atores humanos encontra
a dimenso interpretativa mesmo na filosofia das cincias naturais, domnio at ento
aparentemente refratrio a qualquer subjetivismo. Essas concepes, influenciadas pela
filosofia da linguagem, apontam para o carter ativo e reflexivo da conduta humana,
enfatizando o agente humano cognitivo. A perspectiva discursiva rejeita a noo de uma
determinao exclusivamente externa para o comportamento humano. Os sujeitos no
so regido por foras sobre as quais no tm controle ou possibilidade cognitiva; ao
contrrio, so produtores de sentido.
Embora sejam muitos os exemplos possveis, a viso de Michel Foucault (1971)
para quem em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuda por um nmero de procedimentos para conjurar
seus poderes e perigos parece emblemtica desta nova perspectiva sobre a cincia
social. A sntese proposta por Anthony Giddens (1989), em sua teoria da estruturao,
tambm aponta para a possibilidade de elaborar concepes acerca da natureza concreta
da atividade social humana, sem pretender no entanto organizar seus mltiplos
significados em um conjunto de leis dedutivas, que no se constituem na nica
aproximao analtica em que a teoria social pode apoiar generalizaes explicativas
perspectiva qual nos alinhamos aqui. Contextual em mais de um sentido, a explicaodepende das prprias indagaes para as quais busca esclarecimento. A descoberta de
generalizaes no , tampouco, a nica nem a mais importante misso da teoria social,
fornecendo-nos tambm os meios conceituais para analisar o que os atores sabem acerca
das razes que os levam a atuar da forma como atuam (Giddens, 1989, Introduo).
Esta viso alterada da interseo entre dizer e fazer, ou seja, entre a produo de
sentido e a ao social, parte do pressuposto de que os atores tm uma capacidade
inerente de entender o que fazem, no ato mesmo de faz-lo. No se trata apenas de umacognoscividade discursiva, mas de uma conscincia prtica, distinta tanto do discurso
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lgico como do inconsciente. Na atividade social cotidiana, a rotinizao de convenes
aparentemente secundrias na verdade organiza o mundo, restringindo fontes potenciais
de tenso. Os atores so capazes de prestar contas, em seus prprios termos e atravs de
aes coerentemente justificveis, de seus motivos para a ao, da ideologia, se
quisermos, a partir da qual constroem sentidos.
Por que este e no aquele candidato? Poltica pblica? Opinio? Quer sejam
usadas para se justificar diante de si mesmos, argumentar com quem pensa diferente,
convencer o outro de algo em que se acredita, sempre na forma de explicaes
comunicativas que as pessoas organizam e expressam suas opinies e atitudes acerca da
poltica. Os caminhos cognitivos para a construo destas explicaes podem ser mais
ou menos sofisticados; podem incluir processos de seleo, deduo, inferncia, inter-
pretao e anlise, e tambm imagens emblemticas, anedotas e parbolas, generaliza-
es moralistas, enfim, marcos e sinais que forneam chaves de leitura para o mundo
social e poltico. Os diferentes processos no so excludentes; o importante lembrar
que o cidado comum geralmente considera ter discernimento suficiente para no agir
de forma aleatria, e busca portanto uma coerncia interna para o conjunto de opinies
que emite sobre o mundo. Quando tem ocasio de faz-lo, o prprio processo de
construir explicaes em forma de comunicao lhes d consistncia cognitiva.
A partir desta perspectiva, a abordagem etnometodolgica mostrou-se um instru-
mento valioso na aproximao atitude do senso comum (Schutz, 1953), segundo a
qual adultos perseguindo objetivos prticos raciocinam normalmente por tipicidade, ou
seja, atravs de expresses indiciais suficientes para orientar a ao. Segundo Schutz,
falhas menores no abalam, para pessoas envolvidas nas presses mltiplas da vida
cotidiana, o sentido geral do mundo. Mais importante do que estabelecer regras fixas e
inquestionveis, ser capaz, atravs de explicaes desta natureza, de conferir
previsibilidade ao mundo social, possibilitando a concretizao dos planos elaborados apartir delas. Cada fenmeno cultural ou social, assim, evidncia de padres mais
abrangentes, que do sentido sempre historicamente produzido s manifestaes
particulares.
Partindo do pressuposto de que as pessoas procuram economizar o esforo
cognitivo envolvido em observar e considerar os eventos cuidadosamente, e priorizam
os assuntos que consideram mais importantes, a etnometodologia focaliza problemas
considerados cotidianos, comuns. Do ponto de vista do ator, trata-se de situaesanalisadas de maneira superficial; a ateno que o homem comum presta ao mundo
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dada de maneira rotineira, habitual. O universo da poltica est inserido nesta
perspectiva cotidiana; apreender as rotinas e hbitos dos indivduos, bem como a verso
que oferecem para os eventos pblicos e o iderio poltico, tarefa central na teorizao
acerca de suas escolhas e aes4.
significativo o uso, por Handel (1982) e outros etnometodlogos, do termo
account, com suas variaes, para dar conta do processo que usam os sujeitos para
justificar suas motivaes. As mltiplas acepes do termo em ingls (dar razes,
causas; avaliar; conferir valor, importncia; considerar, ter em conta, julgar mas
tambm tomar nota, e prestar contas), bem como dos derivados accountability (respon-
sabilidade) e accountable (responsvel; explicvel, justificvel), remetem mesma
idia: a de um relato significativo mas, ao mesmo tempo, construdo maneira de um
esquema que simplifique a tarefa do sujeito de conferir ao mundo compreensibilidade.
A estrutura destes relatos no segue as regras da lgica formal, mas nem por isso
deixa de ser coerente; trata-se do que Handel (1982) chama de raciocnio cotidiano,
outro tipo de sistema para desenvolver argumentos e inferncias orientadores da ao.
As categorias usadas pelas pessoas na vida cotidiana, ao contrrio dos argumentos da
lgica tradicional, so conceitos frouxos, definidos empiricamente a partir de
julgamentos imprecisos, necessrios no entanto para guiar a conduta prtica dos atores5.
A noo de raciocnio do senso comum vem iluminar a idia, importante nesta
tese, de explicao estrutural construes discursivas que fundamentam as atitudes
dos indivduos em relao ao mundo l fora; no nosso caso, o mundo pblico, a
poltica. Os cidados comuns elaboram categorias a partir das quais conseguem explicar
a poltica e situar, mais ou menos confortavelmente, suas aes e tomadas de posio.
Partimos do pressuposto de que a elaborao dos argumentos que usam para justificar
suas opinies coerente e busca validar-se e atualizar-se de acordo com critrios de
validade argumentativa, explcitos ou no. As construes discursivas dos sujeitosfuncionam como chaves de leitura (Goffman, 1974) que lhes permitem dar coerncia
a suas opinies, escolhas e aes.
possvel aproximar estas concepes acerca do conhecimento humano
racionalidade discursiva de Habermas (1987), se levarmos em conta que, mais do que
4 Uma das conseqncias da abordagem etnometodolgica a ateno para a interferncia na anlise norelato cientfico do ponto de vista do prprio pesquisador, com suas rotinas de percepo e seu
envolvimento especfico nos incidentes que baseiam seu relato, contribuindo na construo do sentido.Este ponto encontra-se desenvolvido no apndice metodolgico.
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padres estruturados e formais, abstratos, os discursos que so instados a construir para
justificar suas atitudes polticas, que sempre envolvem escolhas, obedecem a uma lgica
argumentativa, em que as razes e exemplos aceitveis obedecem tambm a critrios
pessoais, afetivos, retricos (ver tambm Magalhes, 2000). Podemos pensar, assim, em
tipos de informao recolhidos por sua pertinncia, ligados aos modos de explicao e
de justificao das aes nas quais estas informaes so usadas. Sua organizao
depende do rendimento cognitivo que tm para cada cidado, o que inclui a valorizao
de determinadas fontes e quadros de referncias, capazes de minimizar o custo
envolvido na elaborao de explicaes aceitveis e reproduzveis discursivamente.
Muitas vezes, questes do cotidiano podem ser resolvidas recorrendo-se a instrumentos
cognitivos de baixo custo, sobre os quais repousam juzos domsticos comuns
(Thvenot, 1992).
A noo de esquema, tomada emprestada psicologia cognitiva, tambm
aproxima-se da concepo de account e de minha idia de explicaes estruturais.
Segundo a abordagem cognitiva, entender o significado de algo no apenas reproduzir
um contedo, perceber sensorialmente um objeto, arquiv-lo e busc-lo quando
necessrio, mas aceitar uma verso sobre como opera, que conseqncias advm dele, o
que o causa e que usos pode ter.
O significado de determinada informao aumenta para o indivduo medida
que este domina o contexto que a delimita. Este contexto pode incluir informao sobre
eventos abstratos, ou seja, estabelecer regularidades das quais vrios objetos especficos
podem fazer parte. Isto permite isolar causas possveis para os eventos, e identificar
hipteses explicativas razoveis. O conhecimento que a pessoa tem de seu ambiente
contextual mais rico do que o conhecimento das caractersticas do objeto isolado; pro-
cura-se incorporar cada nova informao ao esquema preexistente, que flexvel e
reflexivo, dinmico e constantemente atualizado. O processo de compreenso, em suma, basicamente construtivo. Se determinada informao no tem ganchos" que a
relacionem ao contexto preexistente, sua compreenso torna-se mais difcil. Um
fragmento de informao, ao contrrio, pode ter suas lacunas complementadas por
inferncia (Bransford e McCarrell, 1974, p. 207).
A estrutura formal desta razo prtica no um conjunto de regras neutro e
universalmente reconhecvel. Exige, ao contrrio, a aceitao de axiomas e definies
que lhe conferem sentido, ativamente produzido e constantemente refeito emcooperao com outros indivduos. As caractersticas bsicas destes relatos, ou verses,
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so sua reflexividade e sua referencialidade (indexicality) a capacidade de fazer
sentido a partir de indcios, indutivamente. O carter indicial ou referencial das
explicaes remete ao fato de que qualquer objeto traz em si ndices da atividade
humana com a qual se relacionam, quer em relao sua confeco, quer no que diz
respeito ao seu uso. A percepo que se tem deles, porm, os manipula. Podem existir
fora dos nossos relatos, mas no tm significao humana fora das explicaes de que
nos servimos para conferir sentido ao mundo (Handel, 1982). No h verdade final,
apenas verdades relatadas.
A explicao estrutural tem ao reflexiva, ou seja, age sobre si mesma. Cada
relato, na medida em que produz uma definio do realque serve de base para a ao,
produz tambm conseqncias. Trata-se de um acordo socialmente ratificado, em que as
pessoas acreditam e que aceitam como certo, apropriado. A tentativa de entender algo
baseia-se na necessidade de tomar, ou justificar, decises (Handel, 1982, p. 37.) As
explicaes estruturais indicam o que compreensvel, em cada situao. Quando
mudanas de situao tornam insatisfatria a explicao ou verso dos fatos utilizada,
ela atualizada. Se a atualizao no parece necessria, a mesma explicao tende a
subsistir.
1.2. DISCURSIVIDADE E ENQUADRAMENTO
A idia de que as pessoas operam cognitivamente recorrendo a repertrios
relativamente constantes de exemplos ajuda a entender por que a tendncia incorporar
aos esquemas explicativos apenas a concluso ou a moral de uma seqncia de
fatos, descartando os detalhes. Trata-se de um mecanismo que apareceu de modo
freqente nas entrevistas, utilizado s vezes conscientemente pelo cidado comum.Na entrevista de seis de novembro, para explicar por que considera a Rede
Manchete melhor do que a Globo embora, por hbito, assista mais aoJornal Nacional
Leonardo sugere que o compromisso desta ltima com interesses econmicos seria
prejudicial para uma cobertura poltica completa e imparcial. Os telejornais da
Manchete mostram mais as coisas, conclui. Quando se pede para que ele seja mais
especfico, Leonardo recorre autoridade de certas pessoas do seu crculo de relaes
interpessoais para justificar sua convico de que o Roberto Marinho que comanda
nosso pas. As informaes que fundamentam esta opinio, uma vez entendidas,
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incorporadas, no esto mais disponveis para que ele defenda seus argumentos, mas
isso no os torna menos convincentes para a certeza de sua opinio.
Leonardo. Na realidade, essas firmas Por exemplo, minha concunhada
trabalha na Petrobrs, ento a privatizao da Petrobrs, esse negcio todo, essasfirmas que esto comprando isso, aquilo, e tal, voc pode ter certeza que juntocom elas tem um p do Roberto Marinho. Eu tenho certeza disto. Pessoas que euconheo, que so graduadas, de um certo nvel, dessas empresas maiores, queconcorrem ameu cunhado que procura se informar, corre atrs, meu irmo outro e da vai saindo as informaes. De onde tiram essas informaes, nosei. A gente t conversando aqui, vamos supor, voc me explicou aquele negcio,tal, tal, tal, aquilo vai entrar na cabea, agora, se voc vier daqui a trs, quatromeses, conversar comigo, eu j formei opinio daquilo que entrou na minhacabea. O que voc me falou mais ou menos a respeito daquilo, eu no vou melembrar, dificilmente...
O mecanismo de formar opinio descrito por Leonardo ilustra o uso da mem-
ria semntica (Wolf, 1992), que serve para atribuir significados a um mundo complexo,
sem sobrecarregar intelectualmente o indivduo com a necessidade de comprovao,
evidncia e demonstrao do processo de julgamento. Uma vez aceito o argumento,
guarda-se a concluso, capaz de orientar o cidado quanto s suas posies e escolhas.
Desta forma, os fatos, nomes e detalhes modificam-se quase diariamente, mas a estru-
tura na qual se enquadram o sistema simblico mais duradoura (Bird e Dardenne,
1988, p. 265). Tanto nas relaes interpessoais quanto nos meios de comunicao de
massa, um dos elementos centrais na adoo ou no de determinados enquadramentos
pelas pessoas a atribuio de autoridade ao emissor, ao qual se confere a
responsabilidade de organizar cognitivamente uma grande quantidade de informaes
sobre um mundo complexo, auxiliando o cidado a adquirir e demonstrar a competncia
mnima que lhe exige a poltica.
Estas chaves de compreenso do mundo podem vir de vrios quadros de refern-
cia, de acesso e credibilidade variados para cada pessoa. No exemplo de Leonardo, o
quadro de referncia a partir do qual constri a explicao de que Roberto Marinho
uma fora poltica oculta e influente remete autoridade de pessoas do seu crculo,
graduadas, de um certo nvel, que procuram se informar. So os famosos formadores
de opinio, identificados nas teorias de aprendizado indireto, segundo as quais
lideranas reconhecidas no meio social do receptor so fundamentais para pautar os
interesses e prioridades de uma audincia seletiva, parte de um fluxo comunicativo em
duas etapas (two-step flow of communication) (Berelson, Lazarsfeld e McPhee, 1954).Assim, a explicao a que o entrevistado recorre para avaliar a credibilidade relativa dos
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dois meios externa aos prprios meios, provm de sua interao em primeira mo com
estas pessoas6.
Estas explicaes relativamente simples, de preferncia comuns, s quais as
pessoas recorrem para articular suas atitudes polticas, tm sido tratadas por alguns
autores, especialmente os ligados pesquisa das audincias dos meios de comunicao
de massa, como enquadramentos. Para Erving Goffman, um dos primeiros a
sistematizar o conceito, estes so definies da situao construdas de acordo com
princpios de organizao que governam os eventos ao menos os eventos sociais e
nosso envolvimento subjetivo com eles (1974, p. 10).
Estas estruturas cognitivas, que organizam o pensamento, so compostas de
crenas, atitudes, valores e preferncias, bem como de regras a respeito de como ligar
diferentes idias. So esquemas, que dirigem a ateno para a informao relevante,
guiam sua interpretao e avaliao, fornecem inferncias quando a informao falha
ou ambgua, e facilitam sua reteno (Fiske e Kinder, citados por Entman, 1989).
Trata-se, portanto, de construes culturais que se realizam na narrativa, na articulao.
Como o mito, o esteretipo e o arqutipo, as notcias podem atuar na difuso de
valores e explicaes estruturais a respeito da esfera pblica, naturalizando um mundo
distante da experincia direta dos indivduos. Enquadramentos de mdia so padres
persistentes de cognio, interpretao e apresentao, de seleo, nfase e excluso,
atravs dos quais os manipuladores de smbolos organizam rotineiramente o discurso,
seja verbal ou visual (Gitlin, 1980, p. 7).
Isso no quer dizer que a via seja de mo nica; a mdia no opera no vazio, e as
narrativas que produz so resultado de sua interao com os eventos e seus protago-
nistas sua matria-prima , alm de uma srie de expectativas com relao
audincia, cuja fidelidade vital para os meios de comunicao de massa e que convive
com outros enquadramentos, oriundos de outras fontes. No estabelecimento dessasintonia com a audincia, a televiso muitas vezes reproduz e refora elementos
dominantes de cada cultura, num crculo de que difcil determinar o ponto de partida,
e que se retroalimenta de forma dinmica.
Um dos campos privilegiados de produo de enquadramentos, uma vez aceita a
realidade de um mundo em que a poltica e a cultura atuam crescentemente na esfera da
6 diferena da teoria lazarsfeldiana, no entanto, os formadores de opinio que encontramos na pesquisa
so definidos e aceitos socialmente como emissores autorizados de opinio sobre a poltica,
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mdia, portanto o dos meios de comunicao de massa. Todas as ramificaes da
cultura de massa ocupam esse espao, fornecendo explicaes que servem aos cidados
para entender as estruturas e eventos polticos. Um exemplo interessante dado por
Pedro, que, depois de apresentar explicaes conspiratrias para as mortes de Tancredo
Neves e da princesa Diana, segundo ele assassinatos, justifica como um fim provvel
para quem se mete com os poderosos:
Pedro. Isso no d'agora no, isso do tempo de outrora. A gente l esses livrinhos,esse livros que eu falei a voc que lia a uns tempos, do Oeste americano, e aquimesmo j acontecia esses lances. [] Crimes que se transformam em acidente.
Pedro refere-se a uma coleo de livros de bangue-bangue chamada Stefania,
que vendida em bancas de jornal e da qual chegava a ler cinco ou seis livros porsemana, geralmente no nibus, entre a casa e o trabalho. A partir dos esquemas
explicativos oferecidos nas tramas ambientadas no velho Oeste, Pedro generaliza o
enquadramento para o gnero humano; conclui que sempre se maquiaram crimes para
que parecessem acidentes.
De acordo com o enfoque da presente pesquisa, importante chamar a ateno
para a importncia dos meios de comunicao, e especialmente a televiso, como
quadros de referncia dos mais relevantes no fornecimento de explicaes para a pol-
tica. Basta lembrar que a mdia, justamente por seu carter de massa, divulga enquadra-
mentos mais homogneos que outros quadros de referncia, como a experincia
idiossincrtica de cada um, as diferentes igrejas, ambientes familiares e profissionais.
Num sistema informativo como o nosso, em que poucos canais dominam a emisso
regular de comunicao de massa, as explicaes que a se repetem tornam-se
especialmente acessveis e freqentes.
Na pesquisa, constatamos justamente que a importncia dos meios cresce em
sentido inverso variedade e proximidade de outros quadros de referncia. Mesmo fon-
tes interpessoais de idias sobre a poltica, no entanto, tm lugar num ambiente infor-
mativo em que a mdia tem papel preponderante, como sugerem vrios estudos. A situ-
ao receptiva das mensagens televisivas marcada pelo espao familiar. A tev inter-
pela o espectador enquanto indivduo-membro da comunidade familiar, reunida na parte
principalmente, em funo de seu acesso qualificado informao considerada relevante. Este ponto serdesenvolvido adiante.
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da casa onde se concentra a atividade coletiva, fornecendo muitas vezes assunto, ou ao
menos pano de fundo, para a comunicao interpessoal (Sodr, 1984, p. 58).
Alm de sua importncia na comunicao indireta, a televiso assume, em
muitos casos, o papel de repertrio primrio de exemplos, fornecendo explicaes pron-
tas, incorporadas pelas pessoas compreenso que tm do mundo poltico. O Fantsti-
co, programa dominical da Rede Globo, recorrente no discurso de muitos dos
entrevistados como referncia a partir da qual avaliam a poltica, como fica claro no
exemplo de Felipe: para traduzir, retratar a ineficincia burocrtica e o jogo de
influncias do INSS, ele descreve uma matria emblemtica do programa.
Felipe. Voc viu a reportagem doFantstico? Eles traduzem muito bem o que oINSS. Vou resumir: o cara queria a aposentadoria dele e no saa de jeitonenhum. Ele foi diversas vezes em diversos departamentos do INSS, e noresolvia. Ele resolveu, por dica de algum, viver um personagem. Ento ele ligavapros departamentos e dizia: Aqui o Dr. Fulano de Tal, olha, resolve o caso ado meu amigo fulano de tal. Um personagem. Deu no Fantstico. E eleconseguiu se aposentar assim, depois chamou a televiso. Isso um retrato doINSS.
So estas explicaes que constituem uma realidade, para aqueles que esto nela
envolvidos. As explicaes estruturais estabelecem o que pertinente num cenrio; este,
no entanto, construdo pelos prprios relatos. Os processos de produo e aceitao deexplicaes so fundamentais na compreenso do mundo social, e incluem as maneiras
pelas quais os indivduos fazem sentido suficiente do mundo poltico para funcionar
enquanto cidados.
O discurso, como uma espcie de razo prtica, pode ser entendido ento
como justificativa para a ao, uma vez que atravs de narrativas que as pessoas
alimentam suas interpretaes do mundo, e tambm na construo discursiva que as
expressam, procurando apresent-las como plausveis e coerentes, enfim, como
alternativas polticas vlidas. Para que seja possvel apontar limitaes na concepo de
esfera pblica em que participam cidados igual e perfeitamente informados, preciso
entender o fenmeno da opinio poltica como algo essencialmente discursivo,
construdo na expresso, argumentao e defesa.
a partir desta viso acerca do cidado e suas possibilidades de articulao
acerca do mundo da poltica que retomamos a preocupao com sua insero na
democracia de pblico. Na medida em que o tema tem sido recorrente no pensamento
poltico moderno, cabe esclarecer, aqui, o que se entende por atitude poltica em relao
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ao cidado comum da democracia de massa, procurando avaliar o rendimento de
algumas abordagens relevantes da questo, como os conceitos de alienao e integrao
e suas variantes, bem como as anlises recentes sobre as atitudes polticas do cidado
brasileiro. A compreenso do processo atravs do qual as pessoas formam idias
polticas pretende servir, em suma, para falarmos de questes bsicas da democracia,
tais como as qualificaes necessrias noo de um cidado interessado e bem-
informado, a natureza e estrutura das atitudes polticas e, no menos importante, que
papel tm, na construo destas explicaes, os meios de comunicao de massa.
1.3. ATITUDES DO SENSO COMUM
E EXPLICAES ESTRUTURAIS PARA A POLTICA
O processo de formao da atitude tem sido um campo frtil para as investiga-
es da cincia poltica, preocupada em explicar as diferentes orientaes dos cidados,
que se manifestam em suas opinies e comportamentos. Atitudes so geralmente
entendidas como um quadro relativamente estvel de crenas, cuja origem e
flexibilidade relativa so matria de grande controvrsia. Atitudes polticas so centrais
na definio da opinio e da ao polticas. Afinal, a maneira como os cidados encaram
a poltica tem papel fundamental na estrutura e processos dos sistemas polticos desde
Maquiavel, quanto mais em regimes democrticos, crescendo em importncia medida
que aumenta a participao dos cidados, seno na definio das polticas pblicas, ao
menos na escolha dos governantes atravs do sufrgio. O estudo das atitudes polticas
no recente. Depois de viver seu momento ureo nos anos 70, tem sido crescente-
mente recuperado por autores contemporneos (ver, por exemplo, Wolling, 2001).
A partir do estudo das atitudes polticas, entendidas em relao dinmica com o
ambiente informacional em que se inserem, possvel: 1) analisar os campos de
influncia a que esto submetidas e investigar sua origem e construo; 2) avali-las
como preditoras do comportamento poltico dos cidados. O primeiro ponto o que
interessa especificamente nesta pesquisa. Vrios estudos tm investigado os principais
elementos identificados na formao da atitude poltica, que podem ser resumidos no
quadro abaixo.
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QUADRO 1. Elementos da atitude poltica e expresso da opinio
Fatores subjetivos/psicolgicos Fatores de contexto social1. histria familiar 1. renda
2. trajetria pessoal 2. sexo3. predisposio intelectual 3. idade4. grau de instruo5. etnia6. religio
ATITUDE (em relao poltica)
atitude ao mesmo tempo
influencia o ambienteinformacional, pois acesso seletivo,e influenciada por ele, que limitaas possibilidades do discurso
Ambiente informacional (cognitivo)quadros de referncia principais e secundrios:relaes interpessoais, mdia, igreja, famlia,trabalho, partidos, governos etc.
Discursoexpresso da opinio: explicaes, argumentao
As diversas relaes destes elementos na produo da opinio pblica tm sido
objeto de investigao recorrente na cincia poltica. A sociologia, de modo geral, contempornea do crescimento, em termos de poder explicativo, das divises e
identidades sociais dos cidados. O que se convencionou chamar de explicao
sociolgica para o voto, que viveu seu momento mais profcuo com a democracia de
partido tal como descrita por Manin, considera as influncias de caractersticas
estruturais dos cidados tais como sua renda, idade, sexo, religio e etnia. Os primeiros
surveys realizados nos Estados Unidos, como o estudo clssico de Lazarsfeld com o
intuito de medir as mltiplias influncias da opinio do eleitor comum durante o
processo eleitoral de 1948, apontavam justamente para as identificaes sociais de
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longo prazo como os principais indicadores a partir dos quais seria possvel prever o
voto. Embora tenham certamente influncia sobre as atitudes polticas do cidado
comum, dado o enfoque discursivo desta pesquisa, estas variveis no sero
detalhadamente analisadas.
J Lippman (1960) chamava a ateno para o fato de que o conhecimento que o
cidado comum pode obter sobre a poltica indireto, mediado pelas imagens de nossa
mente the symbolic pictures in our heads, esteretipos constantemente comparados,
checados, argumentados e, portanto, dinmicos. Fatores no diretamente estruturais,
como histria familiar, trajetria pessoal e predisposio intelectual, tambm so vistos
por muitos autores, especialmente os que trabalham com paradigmas da psicologia
social, como fundamentais para entender as diferenas de atitude entre os cidados (ver
Smith, Bruner e White, 1967).
De acordo com os tericos da escola de Michigan, de matriz psicolgica, as
atitudes se formam individualmente, a partir da socializao poltica, reflexo de seu
ambiente social imediato, especialmente o familiar. Converse (1962), um dos principais
tericos desta linha de pensamento, situa a explicao para as crenas polticas nos
diferentes nveis de conceituao com que os cidados so capazes de elaborar o
mundo poltico, e que variam de acordo com o nvel de centralidade e o grau de
motivao para a poltica. Um sistema de crenas de massa seria um conjunto de
idias e opinies sobre o mundo social cujos elementos esto interligados por esquemas
cognitivos funcionais, e cuja consistncia exige uma coerncia entre os vrios
elementos, de modo que uma mudana de opinio requereria outras mudanas que
adaptassem todo o sistema, evitando contradies.
Converse acreditava que os indivduos capazes de apresentar um sistema de
crenas reconhecvel utilizavam nveis de conceitualizao mais altos e com dimenso
abstrata para definir suas opinies sobre temas polticos especficos, como o papel doEstado e polticas governamentais. A grande maioria dos eleitores americanos, no
entanto, de acordo com sua pesquisa, mostrou avaliar as questes polticas sem levar
em conta critrios significativos nessse sentido, entre os quais enfatizou a dimenso
liberal/conservador da atitude poltica. Sem o nvel de consistncia ideolgica e
organizao lgica caracterstico de um sistema de crenas, o cidado comum seria
incapaz de desenvolver pontos de vista mais globais sobre a poltica (Converse, 1962,
pp. 245-247). Esse modelo sobre a estrutura ou, no caso, a falta de das atitudespolticas do cidado comum bastante influente no campo de estudos, mas pesquisas
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empricas posteriores revelaram que as medidas de sofisticao poltica usadas por
Converse no so muito precisas, e que no existe diferena significativa entre os
sistemas de crenas dos lderes e aqueles dos cidados. Os pressupostos e resultados do
modelo dos sistemas de crenas tm sido, portanto, submetidos a crticas severas, como
revela o prprio Converse em anlise mais recente (1980, citado por Porto, 1999).
A investigao do que ele chamava de mente poltica do cidado comum foi o
maior objetivo de Robert Lane, explcito em suas obras fundamentais Political Life e
Political Ideology, cuja leitura foi de extrema importncia para esta tese, desde a inspi-
rao metodolgica at alguns pressupostos sobre a insero do cidado comum no
mundo da poltica. Lane procura entender a ideologia latente do homem urbano comum
a partir de entrevistas com quinze cidados, escolhidos entre os trabalhadores de uma
pequena cidade americana. Vai ento buscar as fontes do sistema de crenas na cultura e
experincia de vida destas pessoas, atribuindo a esta ideologia do senso comum o papel
central de justificar e definir as relaes dos indivduos com a esfera pblica. A
contrrio de Converse, Lane v no discurso do homem comum sobre a poltica uma
coerncia prpria, embora no necessariamente convergente com os pontos de
referncia dos pesquisadores, ou das teorias clssicas. Mas atribui importncia
capacidade varivel dos indivduos de contextualizar as informaes polticas para lhes
dar sentido.
Mais recentemente, tambm Boudon (1997) chama a ateno para a capacidade
dos atores, mesmo sem as ferramentas do raciocnio lgico clssico, de atribuir sentido
a seus prprios atos, longe de agir irracionalmente. Trata-se de uma concepo
cognitivista e discursiva da elaborao das atitudes polticas, importante na medida em
que contribui para a definio e explicao das crenas coletivas. Para Boudon, os
processos de formao das crenas so largamente independentes da natureza e do
contedo destas crenas. Crenas cientficas e crenas ordinrias, crenas polticas ecrenas privadas se instalam da mesma forma: elas pegam se, e somente se, so
percebidas para o sujeito implicado (de maneira mais ou menos confusa) como fazendo
sentido para ele, ou seja, como fundadas em razes slidas (p. 21). Boudon as chama
de razes transubjetivas: para terem credibilidade, estas razes devem ser vistas pelo
sujeito, seno como demonstrveis, ao menos como convicentes.
As atitudes dos cidados comuns em relao poltica caracterizam-se por uma
estrutura esquemtica que, embora complexa em graus variados, sempre simplifica omundo poltico percebido, transformando o excesso de informao, que poderia gerar
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confuso e paralisia, em quadros norteadores suficientes para a avaliao do mundo
pblico e definio da insero de cada sujeito. No esforo para evitar o sentimento de
aleatoriedade, profundamente incmodo, os indivduos elaboram atitudes do que vem
como senso comum, e as utilizam para enquadrar o mundo o suficiente para orientar, ou
ao menos justificar, qualquer ao, inclusive poltica.
A informao disponvel para que o cidado comum tome decises sempre
incompleta e nunca perfeitamente clara, tendo em vista que cada pessoa deixa passar
falhas e incongruncias que no prejudicam o sentido. Pode, no entanto, ser satisfatria,
ou seja, permitir ao indivduo agir sem se dar ao luxo de procurar informao adicional
(Handel, 1982). Os indivduos, instados de uma forma ou de outra em uma conversa
no trem ou mesa, no momento eleitoral ou respondendo a uma pesquisadora insistente
manifestam suas atitudes polticas recorrendo a explicaes simplificadas e
conclusivas a respeito do mundo da poltica. Os processos de construo e legitimao
destas explicaes e atitudes passam, assim, para o primeiro plano de uma reflexo
sobre a democracia contempornea.
Em relao s tendncias das atitudes, diferentes abordagens na cincia poltica
procuram descrever e explicar as variaes no interesse e participao dos cidados na
esfera pblica e na adeso ao governo ou ao sistema poltico. Uma das mais importantes
a que identifica nos cidados da democracia de massa a tendncia para a alienao
poltica, com suas variantes e conceitos complementares.
1.4. ALIENAO POLTICA
Alienao um conceito clssico da filosofia poltica, que designa um processo
de perda da prpria identidade individual ou coletiva, relacionada com uma situaonegativa de dependncia e falta de autonomia. possvel entender o conceito de
alienao por uma perspectiva sociolgica, como em Marx, que descreve o modo de
produo capitalista em oposio a uma unidade ideal entre indivduo e comunidade
rompida pela alienao concepo mais tarde enriquecida pelas idias de reificao e
fetichismo. Estranhamento da prpria essncia humana, sua superao s pode se dar
atravs da abolio da propriedade privada e do trabalho alienado. Transpondo a noo
marxista de alienao para a poltica, podemos dizer que esta experimentada como
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externa; pode at ser o meio para alcanar algum objetivo, mas no um fim em si
mesma. O homem deixa de se realizar nesta esfera, e passa a negar sua natureza.
A idia de alienao tem no conceito durkheimiano de anomia uma de suas
variantes mais importantes. Denota uma situao em que as normas sociais que regulam
o comportamento individual no so mais reconhecidas como vlidas; a ausncia
mesmo de um sistema tico, especialmente na esfera econmica da sociedade. Assim
como em Marx, esta uma concepo de alienao sociologicamente orientada, ou seja,
relativa s condies objetivas da sociedade. A condio de anomia causa, e no
conseqncia, dos conflitos sociais: um estado que impede o bom funcionamento da
sociedade, sua coeso e ordem (Israel, 1971, p. 138).
Ainda na vertente sociolgica, Merton (195..) desenvolve alguns tipos de
adaptaes atitudinais por parte dos indivduos, da conformidade ao desvio, que
podem ser percebidos em situaes de anomia, em que objetivos culturalmente
prescritos (como, por, exemplo, o sucesso na sociedade americana) no so congruentes
com os meios disponveis para atingi-los.
Os anos 50 trazem um momento de extremo florescimento do conceito de
alienao nas cincias sociais americanas, embora com uma inflexo substantiva em
relao ao tratamento sociolgico predominante at ento. Seguindo uma matriz psico-
lgica, vrios autores passaram a apontar para a importncia de variveis subjetivas
relacionadas, por exemplo, personalidade, ou capacidade cognitiva e afetiva dos
indivduos. Robert Lane (1962), um dos pioneiros desta linha de investigao,
pesquisou a ideologia do cidado comum nos Estados Unidos dos anos 50 e concluiu
que a alienao poltica reflete sentimentos de afastamento em relao ao mundo
pblico. Segundo este autor, o indivduo alienado sente-se objeto, e no sujeito da
poltica, e acredita que o governo no se preocupa com seus interesses. No concorda
com as decises ou regras; no v benefcios pblicos, s deveres, como impostos eobrigaes.
Tal concepo psicolgica aproxima o conceito de alienao dos termos desta
pesquisa, cujo objetivo analisar as atitudes polticas individuais. Embora cada pessoa
esteja inserida em um contexto social mais amplo que modula sua abordagem da pol-
tica, consideramos sua atitude em seus fundamentos psicolgicos, individuais. Neste
sentido, os diferentes aspectos da alienao poltica, bem como as expectativas destas
teorias quanto s possibilidades e condies para a integrao ou engajamento do
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cidado, contribuem para uma compreenso mais abrangente e poltica do papel desem-
penhado pelas atitudes polticas na ideologia e comportamento do cidado comum.
Em 1959, Melvin Seeman sistematizou os principais sentidos adquiridos pelo
termo alienao ao longo de sua trajetria no pensamento poltico e social. So cinco
variaes sobre o tema, que Seeman, a partir da perspectiva psicolgica de alienao
poltica, descreve com base nos conceitos de expectativa e remunerao, ou valor,
termos oriundos da psicologia cognitiva.
Em termos psicolgicos, a alienao pode ser entendida genericamente como
uma discrepncia entre as expectativas do indivduo e a maneira como o sistema social
efetivamente funciona, que impede a concretizao dos objetivos de tais expectativas. O