Pneumonia brucélica, um caso clínico. MIM... · O atingimento pulmonar na brucelose é raro....

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Abril 2013 FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA Trabalho final do Mestrado Integrado em Medicina Pneumonia brucélica, um caso clínico. Discente: Marina Alexandra Martinho de Lima Orientador: Drº Robert Badura Departamento: Clínica Universitária de Doenças Infecciosas e Parasitárias Serviço de Doenças Infecciosas Director do Serviço: Professor Doutor Francisco Antunes

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Resumo

Abril 2013

FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

Trabalho final do Mestrado Integrado em Medicina

Pneumonia brucélica,

um caso clínico.

Discente: Marina Alexandra Martinho de Lima

Orientador: Drº Robert Badura

Departamento: Clínica Universitária de Doenças Infecciosas e Parasitárias

Serviço de Doenças Infecciosas

Director do Serviço: Professor Doutor Francisco Antunes

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Resumo

O atingimento pulmonar na brucelose é raro. Neste âmbito apresenta-se um caso

clínico que pelas suas particularidades origina uma discussão dos mecanismos

subjacentes.

Trata-se de um doente do sexo masculino, 42 anos de idade, criador de gado,

sem antecedentes relevantes, que apresentava dispneia e tosse produtiva. À auscultação

encontravam-se fervores e sibilos. Radiologicamente evidenciava pneumonia intersticial

bilateral, sem resposta à antibioterapia empírica. Destacava-se insuficiência respiratória

global na gasimetria e alteração ventilatória obstrutiva grave na espirometria. Os testes

serológicos para Brucella spp. foram positivos. Sob terapêutica dirigida ocorreu

melhoria clínica progressiva, que após um ano ainda obrigava a oxigenoterapia

domiciliária. Mantinha-se evidência imagiológica de sequelas pulmonares, existindo

porém diminuição do título de anticorpos específicos.

A literatura confirma a invulgaridade do caso: o padrão intersticial encontra-se

descrito em apenas dois casos clínicos e menos de 1% das casuísticas; relata-se apenas

um outro caso com necessidade de ventilação; a recuperação é rápida após a instituição

de terapêutica, o que aqui não sucedeu; e a existência de sequelas pulmonares

aparentemente relacionadas com cicatrizes de infecção é ímpar.

Não é possível excluir o tabagismo como co-factor crucial ou se a evolução

observada resulta da forma crónica e progressiva de exposição.

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Abstract

Pulmonary affection in brucellosis is uncommon. In this scope we present a

case-report that by its singularities may originate a debate about the underlying

mechanisms.

A 42 year old man, stockgrower, without relevant clinical history, presented

with dyspnea and productive cough. He presented bilateral crepitations and wheezes.

There was radiological evidence of a bilateral interstitial pneumonia, without any

response to empiric antibiotherapy. Arterial blood gas revealed respiratory failure and

spirometry confirmed severe ventilatory obstructive defect. Serological tests for

Brucella spp. were positive. Under proper therapy there was a progressive clinical

improvement, although he still needed suplementary oxygen a year after. He

maintained imagiologic evidence of pulmonary sequelae, nevertheless the specific

antibody titres were decreasing.

Available literature confirms the uniqueness of this case: there are only two case-

reports with an interstitial pattern and overall reviews present a frequency of less than

1% of such cases; in only one other case mechanical ventilation was required; recovery

is usually swift after initiating therapy, which didn’t happened here; and the presence of

pulmonary sequelae related to scarring of the lung is unique.

It’s not possible in this case to exclude smoking as crucial co-factor or if this

evolution might be the result of a chronic and progressive way of exposure.

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Lista de abreviaturas

AMA – Anticorpo anti-mitocondrial

ANA – Anticorpo anti-nuclear

BPM – Batimentos por minuto

c-ANCA – Anticorpo anti-citoplasma neutrofílico

CPM – Ciclos por minuto

DDO – Doença(s) de declaração obrigatória

DPOC – Doença pulmonar obstrutiva crónica

ECA – Enzima conversora da angiotensina

ELISA- Enzyme-linked immunosorbent assay

Ex. – Exemplo

FC – Frequência cardíaca

FR – Frequência respiratória

γGT – Gama glutamil transferase

Gr - Grama

IECA – Inibidor da enzima conversora da angiotensina

IgA – Imunoglobulina A

IgG – Imunoglobulina G

IgM- Imunoglobulina M

IGRA - Interferon-gamma release assay

L - Litro

LDH – Lactato desidrogenase

MDP- Metildifosfonato

Min - Minuto

Mg- Miligrama

MPO – Anticorpo anti-mieloperoxidase

N – Nº total

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OLD – Oxigenoterapia de longa duração

OMS – Organização Mundial de Saúde

PCR- Proteína C reactiva

TAS – Testes de aglutinação sérica

TC – Tomografia computorizada

UMA – Unidades maço x ano

VIH – Vírus da imunodeficiência humana

VS – Velocidade de sedimentação

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Introdução

A brucelose é uma zoonose causada por bactérias Gram-negativas do género

Brucella spp., não esporuladas, intracelulares facultativas [1]. Actualmente estão

identificadas 10 espécies: B. melitensis, B. suis, B. abortus, B. canis, B. ovis, B.

neotomae, B. ceti, B. microti, B. pinnipedialis e B. inopinata, sendo esta última a mais

recentemente identificada [2]. A brucelose apresenta-se como uma importante causa de

doença em humanos e animais domesticados (gado bovino, ovino e caprino, cães,

suínos e mamíferos aquáticos), que são os seus reservatórios [1,2]. A infecção por

Brucella spp. é responsável por uma doença aguda ou crónica e/ou insidiosa nos

humanos e pode provocar aborto ou infertilidade nos animais. Nos humanos a B.

melitensis é a fonte mais importante de doença [1].

A brucelose tem distribuição mundial e embora se encontre bem controlada na

maioria dos países desenvolvidos continua a ser endémica no Médio Oriente, Ásia

Ocidental, Norte de África, América Central e do Sul, Bacia do Mediterrâneo e Caraíbas

[3,4]. De acordo com Pappas et al (dados de 2006) existem mais de 500 mil novos

casos/ano a nível mundial [5].

Em Portugal a brucelose é endémica e é uma doença de declaração obrigatória,

com um considerável impacto na saúde pública e importância sócio-económica. No

entanto, nos últimos anos verificou-se uma tendência decrescente no nosso país [6].

Segundo estatísticas da Direcção Geral de Saúde para as DDO, em 2003 foram

declarados 140 novos casos, enquanto em 2008 foram declarados em Portugal 56 casos

de brucelose: 16 no Norte, 13 no Centro, 15 em Lisboa e Vale do Tejo, 11 no Alentejo,

1 no Algarve e 0 nas regiões autónomas dos Açores e Madeira [7,8].

A transmissão (hospedeiro-hospedeiro) ocorre por contacto directo com animais

ou fetos contaminados, ingestão de lacticínios não pasteurizados, ingestão de carne

infectada ou por inalação de partículas aerossolizadas [1,9,10]. A Brucella spp. tem

potencial para ser utilizada em bioterrorismo, sendo a infecção bacteriana mais

frequentemente contraída em laboratório [9,10,11]. Em casos raros foi descrita a

transmissão por transplante, aleitamento materno ou por meio de relações sexuais [1].

Após a inoculação as bactérias atingem o sistema ganglionar regional onde se

multiplicam formando-se um foco primário, a partir do qual se podem disseminar via

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hematógenea, causando septicémia. As bactérias são recapturadas pelo sistema

reticuloendotelial (por exemplo medula óssea, baço, fígado ou gânglios linfáticos) onde

se vão multiplicar intracelularmente, desencadeando uma resposta imunitária com

formação de granulomas que irão eventualmente conter a infecção ou constituir focos

secundários.

A brucelose geralmente apresenta-se com febre, que pode ser ondulante,

acompanhada de sintomas constitucionais, como fadiga, astenia, mal-estar generalizado,

dor, anorexia, perda ponderal e síndrome depressivo [6,12]. Outros sintomas frequentes

são calafrios, hipersudorese, artralgias, mialgias, sintomas gastrointestinais, dor

testicular, cefaleias e alterações do sono. O espectro clínico da brucelose é amplo

podendo afectar qualquer órgão, incluindo o pulmão, causando sintomas respiratórios

variáveis.

Os locais mais frequentemente envolvidos numa infecção focalizada ou

surgimento de complicações são: os sistemas músculo-esquelético (espondilite, artrite,

sacroiliíte), genito-urinário (nefrite, epididimite, orquite) e nervoso (radiculite,

meningoencefalite, mielite). Outros locais afectados com frequência variável são o

sistema cardiovascular (endocardite, pericardite, vasculite), o fígado, o baço e a pele

[1,4,9,10]. A endocardite é a principal causa de mortalidade relacionada com a infecção

a Brucella spp. [3,13].

O exame objectivo tende a ser inespecífico no caso das apresentações sem

focalização, embora esplenomegália, hepatomegália e linfadenopatias sejam achados

comuns. Nos quadros com focalização os sinais presentes são dependentes da

localização (ex.: sopro cardíaco, icterícia, lombalgias, sinais neurológicos focais, entre

outros) [4,14].

O diagnóstico etiológico não é fácil e requer um elevado grau de suspeição

baseado numa história minuciosa, incluindo a ocupação, o contacto com animais,

deslocações a áreas endémicas e ingestão de alimentos de risco [14]. O diagnóstico

definitivo de brucelose baseia-se habitualmente no isolamento da bactéria em

mielocultura ou nas biópsias da afecção focal. No entanto, por se tratar de um método

difícil, que exige um meio de cultura especial e tempo (pelo menos quatro semanas), na

maioria dos casos o diagnóstico é estabelecido pelo resultado dos exames serológicos

(Quadro 1) [6]. O teste mais frequentemente utilizado é o de Huddleson, um teste de

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aglutinação sérica, sendo que o diagnóstico se baseia na detecção de títulos de

anticorpos superiores a 1:160 ou 1:320 em áreas endémicas, que geralmente surgem

após a segunda ou terceira semana de doença. Este teste é sempre positivo na brucelose

aguda, já que coloca em evidência a IgM, que é muito mais eficaz do que a IgG a

provocar a aglutinação. A avaliação deve repetir-se após duas a quatro semanas, uma

vez que a subida do título é a forma mais segura de diagnóstico. À medida que a doença

evolui para a cura diminui a sua positividade, sendo por vezes negativa nas formas

subaguda e quase sempre negativa na infecção crónica. Os resultados falsos negativos

são raros; os falsos positivos podem ocorrer perante tularémia, cólera, vacinação contra

a cólera ou teste cutâneo com brucelina [3, 14].

Outros testes passíveis de utilização são: teste de Rosa Bengala, teste de

Coombs anti-brucella, imunofluorescência indirecta, teste de fixação pelo complemento

e testes tipo ELISA [14]. O teste de Rosa Bengala é uma prova de aglutinação que

utiliza um antigénio brucélico corado de Rosa de Bengala e tamponado a pH 3,65. Esta

prova não fornece resultados quantitativos e apenas coloca em evidência a IgG, pelo que

permanece positiva ao longo do tempo. Trata-se de um método de rastreio rápido, com

utilização predominantemente em estudos epidemiológicos e cujos resultados positivos

devem sempre ser confirmados com recurso a outros testes [14].

O teste de Coombs anti-brucella detecta anticorpos do tipo bloqueante

(sobretudo IgA e IgG) e pode ser utilizado como complemento aos TAS, diminuindo os

falsos negativos por diminuição do efeito pró-zona. Podem ocorrer falsos positivos

neste teste por reacção cruzada com infecções por Yersinia enterocolitica,

Campylobacter spp., Vibrio cholerae ou Francisella tularensis [14].

A imunofluorescência indirecta tem particular interesse no diagnóstico

serológico da brucelose. A sua positividade inicia-se pouco depois dos TAS e mantém-

se quando as outras reacções serológicas já são negativas. Não se dirige a uma

determinada imunoglobulina, pelo que o resultado não está dependente do momento em

que se utiliza o teste. Trata-se do teste mais frequentemente positivo na brucelose

crónica [14].

O teste de fixação pelo complemento identifica a presença de IgG, positivando

três a quatro semanas após o início clínico da doença. Tem como vantagem em relação

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aos TAS o facto de se manter positivo durante mais tempo e a positividade em 60% das

infecções crónicas [14].

Por último, o teste imuno-enzimático (tipo ELISA) apresenta uma maior

sensibilidade, uma maior especificidade e demonsta declínio mais acentuado dos

anticorpos com o tratamento bem sucedido. Este é actualmente considerado como um

dos melhores testes de diagnóstico na neuro-brucelose, brucelose crónica e seguimento

da doença aguda sob tratamento [14].

No caso particular do envolvimento pulmonar os sintomas mais frequentes são

tosse, expectoração mucopurulenta e sintomas que se podem assemelhar a gripe.

Contudo, a verdadeira afecção pulmonar é uma manifestação rara da doença (segundo

Lubani et al ocorre apenas em 0,5-5% das infecções por Brucella spp.) [2,4,12,15-17].

Na literatura encontram-se descritos casos de pneumonia, abcessos pulmonares,

empiema, derrame pleural, hemoptises, adenopatias hilares e mediastínicas,

mediastinite, pneumotórax e nódulos pulmonares solitários ou múltiplos [9,16]. Assim,

o envolvimento pulmonar na brucelose pode surgir como parte da doença sistémica,

como sintoma de apresentação ou mesmo como achado isolado na radiografia de tórax

[18]. No atingimento pulmonar o mecanismo envolvido com maior frequência parece

ser a afecção por contiguidade a partir das estruturas ósseas da coluna

(espondilodiscite). Contudo, também pode ocorrer transmissão da bactéria por inalação

de aerossóis contaminados, sobretudo em indivíduos com exposição ocupacional [18].

Eventualmente pode ainda considerar-se a dispersão pulmonar por bacteriémia [17].

Neste contexto torna-se pertinente apresentar o caso clínico de um homem com

sintomas respiratórios, sem febre, que se demonstrou tratar-se de uma apresentação

atípica de pneumonia brucélica, cursando com compromisso prolongado da função

ventilatória, sem atingimento de outros órgãos.

Caso clínico

Doente do sexo masculino, de 42 anos de idade, foi admitido no Serviço de

Urgência do Hospital de Santa Maria por dispneia, tosse produtiva, astenia e

emagrecimento não quantificado desde há um mês. O doente negava febre, artralgias,

lombalgia, toracalgia, sintomas gastrointestinais, sintomas urinários, hipersudorese,

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cefaleias ou quaisquer outros sintomas. Apresentava antecedentes de hipertensão arterial

essencial controlada farmacologicamente (IECA) e teve uma pneumonia adquirida na

comunidade oito anos antes que aparentemente foi curada sem sequelas. Tinha história

de hábitos tabágicos de 45 UMA, sem diagnóstico de doença pulmonar obstrutiva

crónica ou sintomas pulmonares habituais (tosse matinal, expectoração, dispneia,

ortopneia, hemoptises). Não existia história de viagens para fora de Portugal. Do ponto

de vista epidemiológico de referir contacto diário com gado em actividades de ordenha

e assistência em partos, assim como consumo de produtos derivados do leite de

produção própria desde a adolescência. O doente negava ainda infecções passadas

conhecidas, nomeadamente brucelose, febre Q ou tuberculose e negava contacto com

pessoas com sintomas semelhantes.

Ao exame objectivo inicial apresentava-se apirético, corado, polipneico com

saturação periférica de O2 de 76% em ar ambiente e taquicárdico (FC de 140 bpm). O

exame do tórax revelava semiologia compatível com pneumonia: diminuição global do

murmúrio vesicular, fervores crepitantes dispersos bilaterais, aumento do tempo

expiratório e sibilos predominantemente à direita. Os restantes achados do exame

objectivo eram normais, nomeadamente sem adenopatias ou organomegálias e sem dor

à palpação das apófises dorsais ou do sistema esquelético em geral.

Foi assumido diagnóstico de pneumonia adquirida na comunidade, o doente foi

medicado empiricamente com amoxicilina/ácido clavulânico e azitromicina e teve alta.

Após seis dias de medicação sem melhoria dos sintomas e com agravamento da

dispneia, o doente regressou ao Serviço de Urgência onde se verificou a manutenção

dos achados clínicos. Analiticamente apresentava PCR 2,5 mg/dL, γGT 135 UI/L, LDH

458 UI/L e VS 23 mm/h. O hemograma, a avaliação da função renal e os restantes

parâmetros da função hepática eram normais. A gasimetria apontava para insuficiência

respiratória global sem acidose.

Realizou radiografia de tórax (Figura 1) na qual se visualizava infiltrado

intersticial bilateral. O ecocardiograma transtorácico demonstrou ligeira dilatação do

ventrículo esquerdo e disfunção sistólica, sem qualquer compromisso valvular. Na

tomografia computorizada torácica (Figura 2a e 2b) observou-se acentuação do retículo

pulmonar com padrão retículo-micronodular sobretudo nos lobos superiores, assim

como áreas do parênquima em aspecto de vidro despolido no lobo inferior direito e

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gânglios calcificados no mediastino e hilos pulmonares. Estes achados eram sugestivos

de pneumonia com compromisso do interstício pulmonar.

O doente foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos Respiratórios

por hipoxémia grave com o diagnóstico de pneumonia e iniciou terapêutica antibiótica

com amoxicilina/ácido clavulânico e levofloxacina, corticoterapia sistémica e ventilação

não invasiva.

Realizaram-se hemoculturas seriadas com isolamento de Staphylococcus

epidermidis em uma delas, tendo este resultado sido interpretado como contaminação. O

exame directo da expectoração com coloração Gram e Ziehl-Neelsen, exame

bacteriológico da expectoração, pesquisa de antigénio urinário para Streptococcus

pneumoniae e Legionella spp. e pesquisa de anticorpos séricos para agentes atípicos

(Chlamydophila spp., Mycoplasma pneumoniae, Coxiella burnetti) foram negativos. Por

se colocar como diagnóstico diferencial sarcoidose foi pedido o doseamento da ECA

que se encontrava dentro dos limites normais. Foram ainda solicitados marcadores

virais para VIH 1 e 2 e hepatites e testes de autoimunidade (ANA, AMA, c-ANCA,

MPO) com resultados negativos.

Existindo melhoria dos parâmetros respiratórios o doente foi transferido para a

unidade de internamento de Pneumologia ao 12º dia de internamento.

Atentando aos factores epidemiológicos predisponentes foram solicitados testes

serológicos para brucelose, com Teste de Huddleson positivo (>1:320), Rosa Bengala

positivo, ELISA IgG e IgM positivos.

Com o diagnóstico provisório de infecção por Brucella spp. iniciou-se esquema

empírico de antibioterapia com doxiciclina (200 mg/dia) e estreptomicina (1g/dia) ao

23º dia de internamento.

Numa tentativa de obter confirmação da etiologia foi requisitada broncoscopia

com biópsia brônquica na qual se constatou processo inflamatório crónico a nível

brônquico e reacção granulamatosa epitelióide com necrose focal central a nível

pulmonar. Os exames bacteriológicos directos Gram e Ziehl-Neelsen e a cultura das

secreções broncoalveolares (incluindo meio Loewenstein-Jensen) foram negativos,

assim como o exame micológico.

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Devido à persistência de insuficiência respiratória global no doente requisitaram-

se provas de função respiratória que demonstraram existência de uma alteração

ventilatória do tipo obstrutivo muito grave, com fenómeno de air trapping, resposta

negativa ao broncodilatador inalado e compromisso quantitativo moderado das trocas

gasosas ao nível alveolo-capilar, condicionando insuficiência respiratória global.

O doente foi transferido ao 41º dia de internamento para a unidade de

internamento do Serviço de Doenças Infecciosas.

Nesta altura, ao 18º dia de terapêutica dirigida para a brucelose, destacava-se que

o doente estava clinicamente melhorado, já sem necessidade de ventilação mecânica

invasiva, embora mantendo polipneia (FR = 44 cpm) e necessidade de suporte constante

com oxigénio (6 L/min para uma saturação periférica de 96%). O doente apresentava-se

apirético, corado, sem cianose periférica, normotenso (122/91 mmHg), obeso, sem

adenomegálias periféricas detectáveis, sem lesões focais na cavidade oral e com

algumas cáries nos molares. A auscultação cardíaca revelava sons cardíacos rítmicos,

sem sopros ou extrassons, com FC de 104 bpm. A auscultação pulmonar evidenciava

manutenção da diminuição global do murmúrio vesicular e fervores crepitantes e sibilos

dispersos bilaterais, com tempo expiratório prolongado. A palpação abdominal era

inocente e não revelava organomegálias.

Analiticamente salientava-se linfopenia sem leucopenia (0.54% Linfócitos),

Glucose 119 mg/dL, ALT 52 U/L e γGT 117 U/L. O restante hemograma, avaliação da

função renal e os restantes parâmetros da função hepática não apresentavam alterações.

Gasimetricamente sob oxigenoterapia com O2 a 6L/min: pH 7,375; pCO2 52,8 mmHg;

pO2 68,8 mmHg; HCO3- 28,0 mmol/L e saturação O2 94%.

Para excluir uma eventual focalização hepática ou outro processo específico foi

realizada ecografia abdominal que revelou fígado com ligeira hiperecogenecidade, sem

outras alterações. Foi ainda efectuada biópsia hepática com exames bacteriológico

directo e cultural para Mycobacterium spp. negativos. No exame anatomopatológico

apenas foram detectadas alterações inespecíficas, respeitantes a fibrose portal, esteatose

focal e esclerose vascular, sem qualquer granuloma presente. As mieloculturas

realizadas nesta altura não revelaram alterações dignas de relato. Pela frequência do

atingimento ósseo, neste contexto, solicitou-se uma cintigrafia óssea com MDP-Tc99m,

que não detectou quaisquer lesões focais sugestivas de infecção.

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Por último, realizou-se IGRA que demonstrou ser borderline-positivo. A

repetição após duas semanas teve resultado negativo.

Assim, tendo em conta os resultados negativos da investigação completa para

outras focalizações ou infecções concomitantes, assumiu-se como diagnóstico definitivo

pneumonia a Brucella spp. no contexto de exposição ocupacional.

O doente completou três semanas de terapêutica com estreptomicina pelo que foi

decidida a substituição desta por rifampicina, mantendo-se a doxiciclina.

Ao 51º dia de internamento, cerca de três meses após o início do quadro clínico,

foi realizada TC torácica para avaliação evolutiva (Figura 3) com demonstração de

alguma melhoria imagiológica em relação à TC prévia. Contudo, mantinham-se lesões

bronco-pulmonares predominantemente das pequenas vias aéreas, existindo áreas

sugestivas de bronquiolite constritiva residual.

Apesar da melhoria imagiológica descrita, que era concordante com a avaliação

auscultatória, o doente mantinha dispneia grave com necessidade permanente de

oxigenoterapia com O2 a 4 L/min para obtenção de uma saturação periférica de O2 de

95%. A gasimetria arterial efectuada demonstrava pH 7,415; pCO2 48,6 mmHg; pO2

64,7 mmHg; HCO3-

29 mmol/L; persistindo a insuficiência respiratória global em

resultado do quadro obstrutivo broncoalveolar.

O doente teve alta ao 60º dia de internamento (37º dia de terapêutica

antibrucélica) com necessidade de prescrição de oxigenoterapia domiciliária com O2 a 4

L/min, teofilina e indicação para manter esquema terapêutico de doxiciclina e

rifampicina, prosseguindo acompanhamento em consulta de infecciologia e

pneumologia.

Cerca de dois meses após a alta realizou nova TC torácica (Figura 4) que se

mantinha sobreponível à anterior, ainda com evidência de sequelas pulmonares.

Clinicamente verificava-se uma melhoria lenta mas progressiva, sobretudo a nível da

função respiratória, possibilitando a diminuição gradual do suporte com oxigénio no

domicílio.

Um ano após a alta hospitalar o doente mantinha necessidade de OLD a 1 L/min

no contexto de actividade física e apresentava uma significativa melhoria clínica e

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imagiológica, assim como diminuição do título do teste de Huddleson para 1:60 e seis

meses depois para 1:20.

Em suma, trata-se de um indivíduo do sexo masculino, com hábitos tabágicos,

obeso, com actividade relacionada com a ordenha desde a adolescência, sem

antecedentes relevantes, que é internado por um quadro clínico caracterizado por

dispneia progressiva, evidência imagiológica de infiltrado intersticial, histologia do tipo

granulomatoso, cursando a sua evolução com compromisso respiratório grave. O doente

não respondeu à terapêutica empírica inicial e a investigação apontava para uma

provável infecção por Brucella spp.. Após iniciar terapêutica dirigida ocorreu uma

melhoria progressiva e arrastada no tempo, com diminuição da VS e dos títulos de

anticorpos até atingir 1:20, mantendo ainda assim necessidade de suplementação com

oxigénio para a actividade física (Gráfico 1).

Discussão

A brucelose é uma zoonose que constitui um desafio de diagnóstico devido às

suas apresentações frequentemente inespecíficas e atípicas. Esta é, sobretudo, uma

doença ocupacional que atinge em particular o sexo masculino (na razão de 2:1), com

moda na faixa etária dos 55 aos 64 anos de idade [14]. O doente deste caso clínico não

pertence à faixa etária mais afectada, embora pertença à população em risco em termos

ocupacionais.

O contexto profissional do doente proporcionou várias vias de entrada para a

Brucella spp., incluindo ingestão de leite contaminado ou contacto com tecidos e

fluídos de animais portadores. O papel da aerossolização na transmissão da doença não

é claro, uma vez que a maioria dos doentes também apresenta outras formas possíveis

de contaminação [12]. Contudo, dada a focalização exclusivamente pulmonar exibida

pelo doente, sem afecção detectável dos órgãos reticuloendoteliais extra-pulmonares,

pode ser colocada como primeira hipótese a contaminação por inalação continuada de

pó e aerossóis. É, porém, impossível excluir por completo outras hipóteses, como a

bacteriémia [18].

Embora a brucelose seja considerada uma doença sistémica, com potencial

granulomatoso, o aparelho respiratório raramente se encontra envolvido, mesmo nos

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casos em que as vias aéreas parecem ter sido a porta de entrada da infecção [9]. Embora

incomum, a pneumonia pode ser a única forma de apresentação da brucelose [18].

Perante este caso colocam-se múltiplas questões, nomeadamente no que diz

respeito ao diagnóstico final. O doente é um fumador de 45 UMA aparentemente sem

sintomatologia habitual característica de DPOC e sem história conhecida de infecção

por Mycobacterium tuberculosis ou outras com tropismo pulmonar. Outros diagnósticos

diferenciais que poderiam ser ponderados seriam fibrose quística, febre Q, doenças

granulomatosas, fibrose pulmonar idiopática, entre outros. Por um lado, o doente não

apresenta história clínica ou exames complementares de diagnóstico que apoiem

fortemente estas hipóteses; por outro lado, caso existisse de facto uma fibrose pulmonar

de base esta não reverteria com o tratamento, sendo que tendencialmente apenas não

sofreria agravamento. Contudo, não é possível excluir o papel do tabagismo/ DPOC

como co-factor para a evolução incomum do quadro. A brucelose tem ainda a

capacidade de provocar exacerbações de patologias subjacentes em alguns órgãos-alvo

– pode, por exemplo, despoletar crises na DPOC, bronquiectasias ou neoplasia

pulmonar [9].

No que respeita à tuberculose pode ser difícil diferenciá-la de brucelose

respiratória, inclusivamente porque as suas distribuições geográficas são relativamente

coincidentes [12]. Por outro lado, embora não existam casos descritos na literatura de

tuberculose pulmonar e brucelose pulmonar simultâneas esta situação não é uma

impossibilidade, pelo que deve ser tida em conta. Neste sentido a broncoscopia à qual o

doente foi submetido assume relevância, uma vez que permitiu a realização de exames

bacteriológicos (Ziehl-Neelsen, meio Loewenstein-Jensen) para a exclusão deste

diagóstico. A brucelose pode ainda ser confundida com sarcoidose, recomendando-se

por isso a avaliação da ECA [9, 12]. Deve ainda ser efectuada uma avaliação de outras

doenças infecciosas que possam cursar com sintomas semelhantes ou co-infecções.

Outro aspecto que poderia gerar controvérsia é a ausência de alterações analíticas

neste doente, além de um aumento da VS. Na afecção por Brucella spp. o hemograma

pode evidenciar anemia, contagem de leucócitos normal ou leucopenia, linfocitose

relativa e trombocitopenia [14]. Estes aspectos não estavam presentes neste doente. A

PCR pode estar ligeiramente aumentada e a VS variável sendo, no entanto, pouco

significativa para o diagnóstico [14]. Contudo, é necessário salvaguardar que a

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inexistência destas alterações no doente não exclui o diagnóstico uma vez que a

brucelose pode apresentar-se como doença crónica e destrutiva sem aumento

significativo dos parâmetros inflamatórios [3].

As hemoculturas são positivas em 15 a 70% dos casos, sendo que a mielocultura

tem uma taxa de isolamento superior [23]. Porém, a negatividade das culturas

encontrada no doente é concordante com aspectos da revisão de Gatuzzo et al na qual se

afirma que a eficácia das hemoculturas diminui de forma importante nas formas sub-

agudas e crónicas da infecção; e da mielocultura nas formas crónicas. Por outro lado, a

positividade das culturas também é comprometida pelo uso prévio de antibioterapia

[24]. O doente esteve sob terapêutica com amoxicilina/ ácido clavulânico, azitromicina

e levofloxacina, que embora não sejam agentes de 1ª linha anti-Brucella spp. podem

eventualmente ter algum efeito sobre o seu crescimento.

O padrão intersticial pulmonar presente pode causar dúvida diagnóstica, uma vez

que se encontra pouco descrito na literatura. A ocorrência deste padrão neste doente em

particular pode eventualmente ser explicada pela forma de transmissão, nomeadamente

por uma exposição crónica e prolongada a partículas aerossolizadas por via inalatória.

Esta hipótese pode também contribuir para clarificar o motivo pelo qual não existem

outras focalizações da doença e a sua evolução indolente. O facto da doença sintomática

não ter surgido mais cedo poderá ser explicado por uma exposição intermitente e

eventualmente por um inóculo bacteriano insuficiente.

Uma outra hipótese para explicar esta apresentação invulgar relaciona-se com a

própria bactéria, nomeadamente com a sua virulência. Como não existiu um isolamento

e posterior estudo bacteriano, não é possível afirmar ou excluir a hipótese de se tratar de

uma estirpe particularmente virulenta ou com características novas.

De referir ainda que este caso contraria a literatura no que concerne ao tempo de

recuperação após o início da terapêutica. Na maioria dos casos ocorre cura completa em

poucos meses de tratamento, enquanto este doente ultrapassa mais de um ano sem que

esta ocorra. Considera-se que estamos perante brucelose crónica quando a infecção

persiste por um período superior a dois meses, estando normalmente associada a formas

localizadas [14]. Tendo em conta que o doente teve alta ao 60º dia de internamento e

ainda apresentava alterações ventilatórias é provável que estejamos perante um caso de

brucelose com evolução para a cronicidade. A demora na recuperação é também um

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17

dado que pode favorecer a existência de uma patologia de base desconhecida que

dificulte a resolução do quadro.

Contudo, também existem aspectos que corroboram a hipótese de brucelose.

Primeiramente o doente tem um contexto epidemiológico clássico.

Também o quadro clínico, embora não sendo o mais comum, se enquadra nesta

doença. Salienta-se que a febre é um sintoma do quadro clínico nesta doença em 91%

dos casos, contudo neste doente nunca esteve presente [3]. A apirexia tornou a

apresentação, geralmente já inespecífica, ainda mais atípica, factor que foi relevante no

atraso da suspeição.

Os testes serológicos da reacção de Huddleson, Rosa de Bengala e ELISA foram

positivos. Uma resposta adequada à terapêutica implica uma descida do título de

anticorpos e desaparecimento das IgM. A não descida das IgG com a terapêutica tem

valor prognóstico, indicando potencial para infecção crónica ou recidiva [14]. O título

de anticorpos no doente descrito diminuiu de 1:320 para 1:20 em cerca de um ano e

meio, demonstrando resposta à terapêutica e evolução para a cura. Assim, pode

considerar-se a resposta à terapêutica dirigida, ainda que lenta, como mais um dado a

favor do diagnóstico.

A antibioterapia na infecção por Brucella spp. conduz a alívio dos sintomas,

reduz a duração da doença e diminui a ocorrência de complicações. A terapêutica deve

ser prolongada, cerca de seis semanas para as formas não complicadas, e deve recorrer-

se a uma combinação de fármacos. Nas formas complicadas e crónicas a duração do

tratamento deve ser decidida pela evolução clínica e radiológica, indo de três a seis

meses. Os antibióticos mais utilizados são as tetraciclinas, os aminoglicosídeos, a

rifampicina, o cotrimoxazol, as quinolonas e as cefalosporinas de terceira geração.

Embora existam várias alternativas terapêuticas a associação de doxiciclina (200

mg/dia) com estreptomicina (1 g/dia) parece ser a mais eficaz e com menor taxa de

recidiva [14], embora a OMS também sugira um esquema de rifampicina (600 mg/dia) e

doxiciclina (200 mg/dia) por um mínimo de seis semanas [1]. Portanto, o esquema

terapêutico adoptado para o doente é concordante com as recomendações globalmente

encontradas na literatura.

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O doente teve indicação para manter vigilância em consulta após alta do

internamento, o que está de acordo com a literatura na qual se encontra recomendado o

seguimento clínico e serológico dos doentes tratados, de três em três ou de seis em seis

meses até um mínimo de dois anos, pelo risco de localizações tardias da doença [14].

Para enquadrar o actual caso reviu-se a bibliografia utilizando a base de dados do

PubMed (palavras-chave combinadas: “brucelose” e “pulmonar”; “pneumonia” e

“Brucella”) com um total de 183 e 44 resultados, tendo sido seleccionadas as análises

retrospectivas (N= 6) e casos clínicos (N= 4) considerados pertinentes (Quadros 2 e 3).

A metanálise das casuísticas destaca um total de 840 casos de brucelose, destes

existiam 67 casos (8%) com envolvimento pulmonar e apenas cerca de 15 casos (1%)

diziam respeito a pneumonias intersticiais. Dos casos com envolvimento pulmonar

apenas há um relato de necessidade de suporte ventilatório (Pappas et al descreve um

doente que necessitou de ventilação, contudo teve uma recuperação completa em

algumas semanas, não existindo deterioração importante da função pulmonar). Em

todos os casos descritos há recuperação completa em menos de seis meses, excepto em

doentes com DPOC (Quadro 3). Análises mais aprofundadas dos estudos retrospectivos

são dificultadas pela heterogeneidade das amostras e pelas características analisadas

pelos diferentes autores.

Quanto a casos clínicos, El Ghoussein et al descreveram um doente com

pneumonia associada a hipotermia por Brucella melitensis com hemocultura e serologia

positivas. O doente apresentava-se com febre, tosse seca, astenia, vómitos e alteração do

nível de consciência. Radiologicamente existia um padrão de broncopneumonia

bilateral. Neste caso existiu recuperação clínica e imagiológica completa com seis

semanas de terapêutica anti-brucélica [4].

No case-report elaborado por Singh et al é abordado o caso de uma criança de 8

anos de idade com brucelose de apresentação predominantemente pulmonar, sob a

forma de pneumonia intersticial, apresentando-se com febre, tosse, dor torácica,

mialgias e astenia. Todos os testes diagnósticos realizados foram negativos excepto os

testes serológicos para Brucella spp.[19].

Theegarten et al reportaram o caso de uma adolescente com brucelose de

envolvimento pulmonar por contiguidade com foco de espondilite [10]. Sevilla López et

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19

al descreveram um quadro clínico num pastor cuja apresentação foi dor torácica sem

febre ou sintomas respiratórios, que imagiologicamente apresentava nódulos

pulmonares bilaterais, existindo isolamento de Brucella melitensis por toracoscopia

[16].

Assim, no respeitante a casos clínicos, apenas dois descrevem pneumonias

intersticiais; no entanto, não há registo de necessidade de suporte ventilatório em

nenhum deles e a recuperação ocorreu em poucos meses, sem sequelas imagiológicas ou

funcionais (Quadro 2).

O caso clínico aqui apresentado é importante pela sua invulgaridade. Por um

lado, a apresentação clínica prima pela ausência de alguns dos sintomas mais comuns. A

inexistência de uma focalização extra-pulmonar é também de realçar. O próprio padrão

de pneumonia intersticial não é a apresentação pulmonar mais frequentemente

encontrada. Por outro lado, o doente apresenta uma resposta muito lenta ainda que

positiva a uma terapêutica apropriada. Mas, sobretudo, o compromisso persistente da

função ventilatória com necessidade de ventilação mecânica e posteriormente de

oxigenoterapia no domicílio e a presença de sequelas pulmonares fibróticas extensas

vários meses após o diagnóstico são as características verdadeiramente distintivas deste

caso e que o tornam único na literatura. Tal pode ter como base a forma de exposição

(aerossóis, de forma recorrente e prolongada) e/ou uma contribuição do tabagismo,

DPOC ou outra predisposição de base desconhecida.

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20

Agradecimentos

Este trabalho final de mestrado não teria sido possível sem o apoio da Clínica

Universitária de Doenças Infecciosas e Serviço de Doenças Infecciosas, que

colaboraram e acompanharam o seu processo de realização.

À família e amigos pelo apoio incondicional.

Um especial agradecimento ao meu orientador, Dr. Robert Badura, pela

disponibilidade, constante entusiasmo, inesquecível apoio e infalível bom-humor.

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21

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Quadros e Figuras

Quadro 1- Alguns métodos de diagnóstico de brucelose, o momento em que

positivam e a sua sensibilidade em função da evolução da doença.

Figura 1 – Radiografia de tórax PA à entrada apresentando infiltrado intersticial

bilateral extenso com algum padrão nodular, com áreas confluentes e aumento do

conglomerado peri-hilar. Existe ainda evidência de broncograma aéreo.

Figura 2a – TC torácica em corte coronal à entrada evidenciando padrão

retículo-nodular e adenopatias milimétricas mediastínicas. Observam-se também

pequenas áreas de densificação do parênquima em vidro despolido.

Figura 2b – TC torácica em corte axial à entrada evidenciando padrão retículo-

nodular e adenopatias milimétricas mediastínicas. Observam-se também pequenas áreas

de densificação do parênquima em vidro despolido.

Figura 3 – TC torácica em corte axial para avaliação evolutiva que demonstra

melhoria radiológica mas manutenção de lesões bronco-pulmonares predominantemente

das pequenas vias com áreas sugestivas de bronquiolite constritiva.

Figura 4 – TC de seguimento que mantém evidência de micronódulos e

adenopatias calcificadas, com áreas de hiperinsuflação pulmonar.

Gráfico 1 – Gráfico mostrando a evolução clínica, do valor da VS e dos títulos

de TAS (Huddleson) ao longo de 18 meses. Indica-se ainda a janela de tempo em que

foi cumprida a terapêutica e a evolução das necessidades de oxigénio suplementar do

doente ao longo do mesmo período.

Quadro 2 – Quadro sintetizando os case-reports pertinentes para a discussão

deste caso clínico; descreve-se o tipo de atingimento pulmonar, a existência de outras

focalizações, a sintomatologia, os métodos utilizados para diagnóstico e a evolução.

Quadro 3 – Quadro sintetizando os estudos retrospectivos pertinentes para a

discussão deste caso clínico; explicita-se o número total de casos analisados, a

proporção de casos com envolvimento pulmonar, as focalizações extra-pulmonares, a

sintomatologia, os meios envolvidos no diagnóstico e a evolução.

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Quadro 1

Brucelose

aguda

Brucelose

localizada

Brucelose

crónica

Hemoculturas/mielocultura +++ +- +-

TAS +++ (2ª

semana)

+- -

Teste Rosa de Bengala + (2ª

semana)

+ +-

Fixação do complement ++ (3ª-4ª

semana)

++ +-

Imunofluorescência indirecta ++ (2ª-3ª

semana)

++ +

ELISA + (1ª-2ª

semana)

+ +

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Figura 1

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26

Figura 2a

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27

Figura 2b

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Figura 3

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29

Figura 4

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30

Gráfico 1

0

50

100

150

200

250

300

350

400

0

5

10

15

20

25

30

0 6 12 18

Tempo (meses)

Evolução da VS e títulos de TAS

VS (mm)

TAS (1:Y)

VS (mm) TAS (1:Y)

Alta

OLD 4L/min (24

horas)

6L/min para

actividade física

6 meses

OLD 1L/min (12

horas)

2L/min para

actividade física

Tratamento anti-brucélico

9 meses

OLD 0,5L/min (12

horas)

2L/min para

actividade física

12 meses

--------

1L/min para

actividade física

4 meses

OLD 2L/min (12

horas)

2L/min para

actividade física

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Quadro 2

Caso

clínico

total

casos

Casos com

envolvimento

pulmonar

Focalizações

extra-

pulmonares

Sintomas Diagnóstico Evolução

El

Ghousse

in [4]

1

1 caso

broncopneumonia

Sem outras

focalizações

Febre,

Tosse seca,

astenia,

vómitos,

alt.

consciência

Hemocultura

Serologia

Recuperação completa 6

semanas

Singh

[19]

1

1 caso pneumonia

intersticial

Sem outras

focalizações

Febre,

tosse, dor

torácica,

mialgias,

astenia

Serologia Recuperação completa

Theegar

ten

[10]

1

1 caso

pneumonia

intersticial

Espondilite

Episclerite

Dor

lombar,

sudorese,

febre

ondulante

PCR para

Brucella

melitensis

Recuperação completa em

3 meses

López

[16]

1 1caso

nódulos

pulmonares

Sem outras

focalizações

Dor

torácica

Cultura de

material

obtido por

toracoscopia

Recuperação completa em

6 semanas

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Quadro 3

Revisão Nº

total

casos

Casos com

envolvimento

pulmonar

Focalizações

extra-

pulmonares

Sintomas Diagnóstico Evolução

Fallatah

[20]

159

1,3% casos

------------------

Febre 94.5%

Tosse 67.6%

Dispneia

21.6%

---------------

100%

Recuperação

completa

Pappas

[9]

450 31 casos (6,8%)

32.4% pneumonia

lobar

40.5% padrão

intersticial

10.8% padrão

favo-de-mel

75.6% outras

focalizações

(espondilite,

endocardite,

meningite,

hepatite, artrite,

orquite)

Febre, tosse,

dispneia,

expectoração

Serologia

Hemocultura

Cultura de

líquido pleural

1 (2.7%)

necessitou

suporte

respiratório

100%

Recuperação

completa em 6

semanas

Al

Dahouk

[21]

30

9 casos (30%)

Broncopneumonia

Espondilite,

endocardite,

meningoencefali

te

Febre,

sudorese,

mialgias,

artralgia

---------------

100%

Recuperação

completa

Simsek

[12]

82 6 casos (7%)

------------------

Febre, tosse,

outros

3 Cultura

82 Serologia

100%

Recuperação

completa em 6

semanas

Hatipoglu

[18]

110 11 casos (10%)

nódulos,

pneumonia lobar,

linfadenopatias

paratraqueais ou

derrame pleural

4 DPOC

concomitante

3 (sacroileite,

uveíte)

20.9% tosse,

10.9%

expectoração,

9% dispneia,

6.3%

toracalgia

63 (57%)

Cultura

8 Mielocultura

24

Hemocultura

31

Hemocultura e

mielocultura

Recuperação

completa em 6

semanas

excepto

naqueles com

DPOC

Lubani

[17]

9 9 casos

Consolidação,

derrame pleural,

pneumonia

intersticial,

granuloma

------------------

Febre, tosse,

expectoração

mucopurulenta

9 Serologia

6

Hemoculturas

2 Cultura de

líquido pleural

100%

Recuperação

completa