Pluralismo e Unicidade Na Busca de Segurança Jurídica

17
Pluralismo e unicidade na busca de segurança jurídica - José Fabio Rodrigues Maciel N. 06 - Janeiro-Junho/2008 PLURALISMO E UNICIDADE NA BUSCA DE SEGURANÇA JURÍDICA E-mail: [email protected] ou [email protected] Resumo: Discutir a influência da unicidade do direito advinda com o surgimento do Estado Moderno, com a conseqüente codificação do direito e a busca da segurança jurídica, comparativamente ao atual estágio jurídico ocidental, em que ganha projeção a idéia de pluralismo jurídico. Na busca da conciliação entre liberdade e segurança, se é que tal diálogo é possível, discutir-se-á o histórico das sociedades em que o pluralismo jurídico teve vigência, assim como o atual quadro de busca pela segurança jurídica. Sumário: 1. Introdução; 2. A questão do “espírito municipal”; 3. Roma e o pluralismo jurídico; 4. A Idade Média e o pluralismo jurídico; 5. O Estado Moderno e a soberania; 6. Modernidade e Pluralismo; 7. Unicidade do direito e segurança jurídica; 8. Ciência jurídica moderna e o ocultamento das diferenças; 9. A igualdade como mediadora da liberdade e da segurança; 10. Referências Bibliográficas. Palavras-chave: Pluralismo jurídico, segurança jurídica,

description

pluralismo

Transcript of Pluralismo e Unicidade Na Busca de Segurança Jurídica

Pluralismo e unicidade na busca de segurana jurdica - Jos Fabio Rodrigues Maciel

N. 06 - Janeiro-Junho/2008PLURALISMO E UNICIDADE NA BUSCA DE SEGURANA JURDICA E-mail: [email protected] Este endereo de e-mail est protegido contra spambots. Voc deve habilitar o JavaScript para visualiz-lo. ou [email protected] Este endereo de e-mail est protegido contra spambots. Voc deve habilitar o JavaScript para visualiz-lo. Resumo: Discutir a influncia da unicidade do direito advinda com o surgimento do Estado Moderno, com a conseqente codificao do direito e a busca da segurana jurdica, comparativamente ao atual estgio jurdico ocidental, em que ganha projeo a idia de pluralismo jurdico. Na busca da conciliao entre liberdade e segurana, se que tal dilogo possvel, discutir-se- o histrico das sociedades em que o pluralismo jurdico teve vigncia, assim como o atual quadro de busca pela segurana jurdica. Sumrio: 1. Introduo; 2. A questo do esprito municipal; 3. Roma e o pluralismo jurdico; 4. A Idade Mdia e o pluralismo jurdico; 5. O Estado Moderno e a soberania; 6. Modernidade e Pluralismo; 7. Unicidade do direito e segurana jurdica; 8. Cincia jurdica moderna e o ocultamento das diferenas; 9. A igualdade como mediadora da liberdade e da segurana; 10. Referncias Bibliogrficas. Palavras-chave: Pluralismo jurdico, segurana jurdica, unicidade, liberdade, igualdade.1. Introduo Este artigo tem por objeto discutir a influncia da unicidade do direito advinda com o surgimento do Estado Moderno e catapultada pela Revoluo Francesa, com a conseqente codificao do direito e a busca da segurana jurdica, comparativamente ao atual estgio jurdico ocidental, em que ganha projeo a idia de pluralismo jurdico. que da trilogia que representa o iderio da Revoluo supra apontada existem dois que efetivamente no foram aplicados (igualdade e fraternidade), sendo ambos substitudos por um quarto item, que faz parte, como salienta Marx, dos direitos humanos da burguesia: a segurana. Marx afirmava que os direitos humanos, expressos na igualdade, liberdade, segurana e propriedade, nada mais eram (ou so) que os direitos da sociedade burguesa, na sua individualidade, sendo todos garantidos formalmente pelo Estado[1]. O que efetivamente se buscou aps a queda da Bastilha foi a liberdade centrada no individualismo burgus, associada segurana, principalmente em relao ao acmulo e manuteno da propriedade. A igualdade foi utilizada no como princpio, mas apenas de forma suficiente para garantir o mnimo de interveno do poder estatal nas relaes privadas, especialmente as econmicas. J a fraternidade, hoje to conhecida como solidariedade, teve fim mais triste. A histria fez perceber que quando ela deixada ao livre convencimento dos humanos a tendncia sua no concretizao, havendo sempre necessidade, com raras excees, de medidas de coao para que a fraternidade seja realizada em sua inteireza.Uma sociedade que busca arduamente liberdade (mesmo que seja a egosta liberdade de consumir) e ao mesmo tempo a segurana, dois itens quase que na totalidade paradoxais, encontrar suas respostas? possvel conciliar itens to dspares? Talvez seja necessrio aliar outros itens busca de liberdade antes de efetivamente obter segurana. Quem sabe a retomada da igualdade como eqidade e tambm da solidariedade, base maior da tolerncia e da aceitao da diversidade, resolvam essa angstia. Para tanto, tambm o direito dever resgatar sua questo totalizante (e no unitria), que nada mais do que aceitar vrias formas de organizao como tambm sendo jurdicas, abrindo mo da unicidade do direito, i.e., de aceitar como jurdico, legtimo e vlido apenas aquilo que advm do poder estatal. nessa busca da conciliao entre liberdade e segurana, se que tal dilogo possvel, que se discutir o histrico das sociedades em que o pluralismo jurdico teve vigncia. De Roma Idade Mdia, desta ao Estado Moderno, da Revoluo Francesa ao direito brasileiro, passando pela questo dos indgenas, dos quilombolas e de Pasrgada, sendo este o codinome dado pelo socilogo Boaventura de Souza Santos ao direito que emanava de uma favela carioca[2].Como admitir a existncia de Direitos, e torn-los legtimos, sem fazer ruir a aura de segurana jurdica surgida com o contrato social na forma proposta por Rousseau, em que o indivduo cede (hipoteticamente) todos os seus direitos naturais a um ente abstrato (o Estado), que imediatamente os devolve sob a chancela de direito positivo? Talvez o direito, em sua acepo mais ampla que ordenamento jurdico, possa apresentar, seno a soluo, ao menos propostas mais convincentes para essa questo.Como o conceito de soberania na atualidade adentra em crise, visto que em um mesmo territrio os Estados nacionais no so mais absolutos no legislar, tendo de respeitar regras de direitos humanos e de direito internacional, por exemplo, entra tambm em crise a prpria idia de unicidade do direito. Surge com vigor, at como soluo para a crise, nova percepo de pluralismo jurdico. Para entend-la fulcral resgatar os momentos em que o pluralismo jurdico vigorou na histria da civilizao humana, levando-se em considerao que o mesmo se caracteriza pelo fato de existir no mesmo espao geopoltico mais de uma ordem jurdica, apesar de nem todas serem reconhecidas oficialmente como tal[3]. 2. A questo do esprito municipalQuando se d ateno especial histria das primeiras cidades que futuramente foram consideradas gloriosas pela civilizao ocidental principalmente as que posteriormente deram origem tradio jurdica adotada no Brasil percebe-se que na sua formao imperava o esprito municipal. Este era resultado do entendimento de que a ptria era, antes de tudo, a terra dos pais, aquela que mantm sepultos os ossos de seus ancestrais e ocupada por suas almas[4]. Portanto, cada cidade tinha seus prprios cultos, uma forma especfica de organizao e no aceitava, em hiptese alguma, o transporte desses costumes para outra cidade, j que se isso ocorresse, no estariam mais em sua ptria, com as almas dos seus. Nesse aspecto o culto, transmitido de gerao em gerao, passa a ser o fundamento de organizao e hierarquia da cidade. Ou seja, aquela famlia que no conseguia dar continuidade ao culto de seus antepassados deixava de ser respeitada e perdia o poder[5], sendo natural que o chefe da famlia acumulasse tambm a chefia das questes religiosas.Como o esprito de pertencimento terra era forte, o mesmo se dava em relao ao culto, ao direito, ao governo e a toda questo religiosa ou poltica. At o casamento fora dos limites da cidade era algo impensado, tanto que os filhos de pais de cidades diferentes normalmente no encontravam cidadania em nenhuma delas. Percebe-se aqui claramente a dificuldade, praticamente impossibilidade, de ocorrer unio que fizesse cidades diferentes viverem sob a gide de um mesmo governo. No isso que acontecer com a cidade de Roma, no sendo mero acaso o fato de ter conquistado vasto imprio. que o esprito municipal dos romanos era diferenciado, tendo relao direta com a formao da cidade. A composio tnica da populao romana foi especialssima, j que teve por origem a mistura de vrios povos: latinos, troianos (graas a Enias), gregos, sabinos e etruscos[6]. Essa mistura de povos fez de Roma grande agregado de famlias com as mais diferentes origens e cultos. 3. Roma e o pluralismo jurdicoFormada por famlias das mais variadas origens, que cultuavam deuses de lugares to dspares, Roma surge como uma cidade cuja religio municipal no a isolava das demais. Ao contrrio, estava ligada vasta regio, da Itlia Grcia, sendo poucas as cidades (e respectivos deuses) que os romanos no admitiam em seu lar[7]. Os romanos passaram a utilizar essa peculiar caracterstica, a multiplicidade tnica de seus cidados, para, paulatinamente, agregar todos os povos da Itlia mediante um nico governo. A lenda do rapto das mulheres sabinas por Rmulo, por exemplo, muito bem relatada por Coulanges[8], explica que o intuito do rapto no era conquistar algumas mulheres, mas sim o direito de casamento com a populao sabina. dessa forma que Roma cresce: conquistando povos, territrios e os cultos das cidades vencidas. Se, pela religio, as outras cidades estavam isoladas, Roma teve a habilidade de us-la para integrar-se e dominar inmeras outras cidades[9]. a diversidade tnica supra apontada que justifica as diferentes origens dos reis romanos (o primeiro foi latino, o segundo Sabino, o quinto filho de grego e o sexto etrusco). Em uma sociedade religiosa era natural que o rei fosse tambm o grande sacerdote, acumulando ainda a funo de grande juiz. Em Roma esse rei era assessorado pelo Senado, um conselho de ancios constitudo pelos chefes das famlias fundadoras da cidade, os patrcios. O Senado, durante a Repblica (509 a.C. 27 a.C.), assumiu o comando de Roma.A cidade no era composta apenas pelos patrcios, mas tambm por outras classes sociais consideradas inferiores, mais precisamente os clientes, plebeus, escravos e peregrinos (estrangeiros). A Histria de Roma est repleta de relatos da luta entre patrcios e plebeus, lutas que existiram tambm nas cidades sabinas, latinas e etruscas, evidenciando a distino e a separao de classes[10] da poca, em que havia o reconhecimento de tal situao. A conseqncia lgica era o tratamento jurdico diferenciado para cada segmento social, uma das facetas do pluralismo jurdico, no a mais nobre, obviamente.Inicialmente o direito romano era constitudo pelo ius civile, aplicado apenas aos cidados (cives), restando para os outros segmentos e para os outros povos aquilo que eles chamavam deius gentium, direito este sem excessos formalistas, pouco embasado nos costumes e de caracterstica mais universal. O direito das gentes destinava-se s relaes dos estrangeiros entre si e em seus contatos com os cives. Dentro da diviso das magistraturas romanas, cabia ao pretor urbano aplicar o ius civile e ao chamado pretor peregrino decidir as questes afetas aos estrangeiros, em conformidade com o ius gentium. Alm de o sistema jurdico aplicado em Roma ter muito mais uma caracterstica personalista, e no territorial, utilizava-se o pluralismo jurdico tambm nas conquistas militares romanas. que, ao dominar determinado povo, os romanos no impunham suas regras jurdicas, deixando que os dominados continuassem a ser regidos pelo seu prprio direito. Isso permitia uma compreenso dos costumes e do direito da civilizao conquistada, o que propiciava, inclusive, que os romanos aperfeioassem sua estrutura jurdica com base na adoo de determinadas condutas jurdicas dos povos dominados[11]. 4. A Idade Mdia e o pluralismo jurdicoCom a queda do Imprio Romano do Ocidente, em 476, adentra-se a histria no perodo denominado Idade Mdia, momento em que a percepo de pluralismo jurdico evidencia-se. Levando-se em conta o ensinamento de Jrme Baschet, de que as datas retidas importam pouco, pois toda periodizao uma conveno artificial, em parte arbitrria, e enganadora se lhe so conferidas mais virtudes do que ela pode oferecer[12], percebe-se a importncia de delimitar determinados perodos em busca de maior uniformidade e contextualizao dos eventos a serem estudados. A par no haver objeo diviso feita por Le Goff, que a partir da percepo de histria de longa durao estende os parmetros que caracterizam a Idade Mdia at o sculo XVIII[13], entender-se-, neste artigo, como o perodo supra citado, aquele compreendido entre a queda dos imprios Romanos do Ocidente em 476 e do Oriente em 1453. Em relao periodizao interna h uma subdiviso denominada Alta Idade Mdia, perodo compreendido entre a queda do Imprio Romano do Ocidente, no sculo V, e o advento da burguesia, entre os sculos XI e XII, poca histrica em que ficou muito evidente a coexistncia de vrios sistemas jurdicos, em autntico pluralismo. que, com o esfacelamento de Roma, assumiram o poder os brbaros, especialmente aqueles de origem germnica. Detentores de um direito consuetudinrio, embasado nos costumes, no conseguiram impor sua forma de organizao social aos romanos, civilizao muito mais evoluda. A soluo foi optar pela aplicao do princpio da personalidade da lei, em que o direito germnico vigorava para os que possuam essa ascendncia e o direito romano era aplicado aos romanos.No entanto, com o passar dos anos, tanto pela miscigenao entre os povos em questo, como pela incorporao mtua de direitos, acabou-se por produzir o que os historiadores denominam de direito brbaro-romano[14], com a mistura de costumes brbaros com o avanado direito romano. Isso propiciou que cada civilizao produzisse seu direito com base nos respectivos costumes, mas todos com um direito temperado pela sapincia romana. Foi o caso dos francos, eslavos, visigodos, ostrogodos etc.No mesmo perodo, aproveitando-se das invases brbaras que colocaram fim milenar autoridade romana, os cristos, mais precisamente a Igreja catlica, herdaram essa autoridade. Pauta-se o cristianismo por ser uma religio de carter universal, que no se regula pela ligao do homem com a cidade, e sim por sua relao direta com Deus. Ao abrir mo da potestas, do poder temporal, podia essa nova religio ser adotada por reinos distintos, mesmo que fossem inimigos entre si. A autoridade colocava-se acima do poder[15] e, com isso, a Igreja conseguiu impor o direito cannico a todos aqueles reinos que se converteram nova religio, e foram praticamente todos no continente europeu poca.No final do sculo VIII a Igreja fez aliana com Carlos Magno, rei dos francos, a principal potncia blica europia da poca, com o intuito de unificar novamente a autoridade com o poder temporal, numa busca pela reedio do Imprio Romano do Ocidente, agora com a perspectiva de uma autoridade mtica do Imprio do Ocidente como Repblica crist (catlica). Essa unio serviu para confirmar a relao de autoridade (auctoritas) exercida pela Igreja face ao poder (potestas) temporal[16]. Ocorre que a luta pela unificao dos vrios reinos existentes poca obrigou Carlos Magno a negociar apoio, e este era recebido em troca de grandes extenses de terras e relativa autonomia dada a inmeros nobres. Acabou por fortalecer a vassalagem, que uma homenagem pessoal, um vnculo entre senhores, e o benefcio da concesso de terras. Com a morte de Carlos Magno e conseqente ruptura do Imprio Carolngio, naturalmente abriu-se caminho para a feudalizao da Europa, movimento que vinha ocorrendo lentamente desde o sculo V, com o retorno das populaes ao campo. Esse fato propiciou a autonomia de diversas foras para produzir o Direito, j que surgiu um vcuo de poder, sem nenhuma fora capaz de preencher o vazio existente. Foi justamente essa impotncia, responsvel pela no utilizao do direito como instrumento de poder que possibilitou relativa autonomia das diversas foras presentes na sociedade, promovendo uma situao plural de Direitos[17], com vrios centros produtores de normas.Pelo anteriormente exposto percebe-se claramente que na sociedade europia da Alta Idade Mdia conviviam diversas ordens jurdicas, mais especificamente (i) o direito comum temporal, embasado nos costumes derivados do antigo direito romano e que permaneceu como caldo cultural nas sociedades daquele perodo; (ii) o direito germnico, tambm embasado no direito consuetudinrio e por muitas vezes influenciado pelo Cdigo Teodosiano, de 438; (iii) o direito cannico, que era o direito comum em matrias espirituais, mas com grande influncia tambm no direito laico; (iv) e os direitos prprios, especficos de cada comunidade, de cada feudo[18]. Importante salientar que tambm o direito cannico se distinguia entre o direito comum, cujas normas eram emanadas de uma jurisdio geral, como aquelas oriundas dos conclios ecumnicos, e os direitos prprios, relativos s ordens das autoridades religiosas locais[19].Como no momento histrico abordado no havia ainda surgido o conceito de soberania, caracterstica marcante do Estado Moderno, que ser objeto de anlise no prximo item, no se tinha a percepo de que o Estado era soberano em relao a determinado territrio, devendo haver neste apenas um nico direito a ser aplicado. Portanto, naquele perodo, oficialmente, vrias ordens jurdicas sobrepunham-se, podendo ser aplicada qualquer uma delas, dependendo das circunstncias e dos interesses em jogo, em clara situao de pluralismo jurdico, em que coexistem no mesmo espao social diferentes complexos normativos, com legitimidades e contedos os mais diversos, bem diferente da atualidade, em que um direito estatal sobrepe-se a qualquer possibilidade de validade de outras ordens jurdicas. 5. O Estado Moderno e a soberaniaO advento do Estado Moderno tem como data especfica o ano de 1648, perodo em que foram elaborados os tratados de paz de Westflia, que colocaram fim Guerra dos Trinta Anos, um conflito religioso com caractersticas de guerra civil que dizimou boa parte da populao da Europa. a partir desse evento que ganhou destaque o conceito de soberania, que passou a ser inerente a qualquer Estado, independentemente do tamanho do seu territrio ou de seu poderio econmico ou militar. O Estado passa a ser caracterizado pela presena de quatro itens especficos, ou seja, para ser considerado como tal precisa ter povo, territrio, soberania e finalidade[20]. Em sendo a soberania considerada como una, indivisvel, inalienvel e imprescritvel, da sua unio com o quesito territrio nasceu a percepo de que em determinado espao territorial deve ter vigncia apenas uma ordem jurdica, sob pena de no se concretizar um Estado.Entre os sculos XVI e XVIII o direito tornou-se cada vez mais escrito, sendo tal fato resultado direto do fortalecimento dos Estados, que passaram a dar redao oficial para a maior parte das regras costumeiras. Em busca da legitimidade para essa nova ordem dois filsofos polticos se destacaram: Montesquieu, com a diviso dos poderes na obra O esprito das leis, e Rousseau, com a soberania do povo na obra Do contrato social. que a nova ordem, para ter legitimidade, necessitava de instituies que garantissem a segurana, e a separao dos poderes foi fundamental para tanto, desvinculando o Judicirio do Executivo, fato que trouxe a aura de neutralidade ao direito. Essa nova perspectiva, to reclamada pelos juristas, foi fundamental para o surgimento de outra forma de saber jurdico, que culminou na cincia do direito do sculo XIX, que trouxe junto com ela a unicidade do direito e a reduo deste norma posta. que aps Rousseau, com a substituio do rei pela nao, conceito mais abstrato e malevel, foi possvel manter o carter uno, indivisvel, inalienvel e imprescritvel da soberania em perfeita sintonia com o princpio da diviso dos poderes[21]. Como resultado direto da neutralizao poltica do Judicirio, ocorreu o deslocamento da feitura de normas para o Legislativo, ganhando a lei lugar destacado como fonte do direito. 6. Modernidade e PluralismoA modernidade acelerou a ruptura com um modelo de sociedade baseado na regulao religiosa, inaugurando novo modus vivendi. A partir de ento a conscincia do sujeito que assume ostatus de definidora de critrios para a definio de valores e regras que orientam a vida. A nfase na afirmao do sujeito abre espao para o reconhecimento de diversas concepes de vida, j que mais aceita a existncia de uma nica fonte de critrios e valores. A vida em sociedade torna-se um espao plural em que os diferentes sujeitos, individuais ou coletivos, tm de conviver entre si, reconhecendo a legitimidade de uns e outros[22].Nesse contexto o pluralismo coloca-se acima da diversidade. Configura-se na existncia de diferentes concepes de vida, alm de exigir o reconhecimento pela sociedade e pelo Estado da legitimidade dessas diversas concepes, reclamando as condies necessrias para garantir que pessoas, grupos e instituies convivam entre si com liberdade e com transigncia[23]. Graas afirmao da autonomia do sujeito, que atinge a dimenso pessoal, e autonomizao, que atinge as diferentes esferas sociais onde esto os grupos e as instituies, ganha fora o pluralismo de concepes de vida. E nesse pluralismo, considerado importante item da democracia atual, que possibilita compreender esta ltima como um cenrio de crise latente em que o conflito uma situao constante nas relaes entre os vrios sujeitos. A democracia, por isso, no s a possibilidade de convivncia das diferentes concepes de vida, mas tambm o espao onde essas diferentes concepes se colocam de forma abertamente conflitiva[24]. Como a idia de democracia como convivncia pacfica no s uma iluso, como no contribui para a democratizao da sociedade[25], para buscar uma sociedade igualitria (e no igual), torna-se necessrio aceitar cada vez mais o diferente e as diferenas. Acontece que a unicidade do direito vai justamente na contramo dessa evidente necessidade.Ademais, diferentemente de todas as pocas histricas anteriores, em que o Direito era considerado como algo estvel perante as mudanas do mundo (fundao para os romanos;revelao para a Idade Mdia; razo na Era Moderna), no sculo XIX foi a mutabilidade do direito que passou a ser usual (lei escrita), e a idia de que o direito no muda passou a ser a exceo[26]. Essa institucionalizao do direito, agora com total enfoque na fonte escrita, foi denominado direito positivo, e a partir de ento ganhou fora a tese de que s existe um direito, o positivo, sendo este o fundamento do chamado positivismo jurdico, corrente dominante a partir do sculo XIX. 7. Unicidade do direito e segurana jurdicaCom o iluminismo no sculo XVIII e a vitria burguesa na Revoluo Francesa buscou-se a segurana em altssimo grau, principalmente para defender a propriedade, e nada mais eficaz para tanto do que um direito feito por quem detm o poder econmico e adaptvel s suas respectivas necessidades. que com a Revoluo Industrial a transformao tcnica era muito rpida, fato que exigia respostas rpidas do direito, e que o direito costumeiro no conseguia atender. J o direito reduzido ao legal (nico e positivado), como basta uma caneta para alter-lo, mais adaptado s questes temporais. Sua validade comea a ser percebida como algo malevel, at manipulvel. Ocorre a supervalorizao da lei que vai crescendo at chegar no legalismo. Com isso foi possvel considerar qualquer comportamento como juridicizvel, ou seja, no era mais necessrio considerar o aspecto consuetudinrio, aquilo que sempre foi. Agora as normas passam a ser escolhidas conforme as necessidades, mas devem fazer parte de um nico sistema, o ditado pela classe dominante, j que a segurana continua sendo primordial, principalmente a patrimonial.Condicionou-se no imaginrio popular, inclusive em relao ao mundo jurdico, de que s o direito pode assegurar a ordem e a segurana necessrias ao progresso. O resultado dessa nova percepo o abandono tanto da descentralizao do poder como do pluralismo de ordenamentos jurdicos, em busca de unificao dos territrios, a fim de permitir a formao de um Estado Nacional soberano e detentor do monoplio de produo das normas jurdicas.Como ainda se adota a forma de organizao estatal oriunda do Estado Moderno, complementada pelas modificaes trazidas pela Revoluo Francesa, no se pode aceitar, dentro do mesmo territrio, mais do que um nico sistema jurdico. A conseqncia direta dessa cincia jurdica moderna ocidental a ocultao da diversidade existente na sociedade. Com isso se aceita uma fico que exerce a funo ideolgica de ocultar as diferenas, alm de impor seus prprios fundamentos como forma de dominao cultural. Exemplo disso o tratamento dado ao ndio (e a seus direitos, inclusive como nao) ao longo da histria do Brasil. No momento da Independncia de Portugal no se deu reconhecimento legal aos indgenas, passando eles a serem tratados como indivduos formalmente iguais aos demais. O resultado, trgico, a famosa e triste frase ndio bom ndio morto: entendeu-se que o ndio devia mesmo ser aculturado, integrado sociedade dominante, em clara predileo pela poltica de aculturao em detrimento da valorizao da diversidade cultural[27].A unicidade do direito no s uma fico como atenta frontalmente com o respeito diversidade cultural. Boaventura de Souza Santos, por exemplo, diz que existe uma situao de pluralismo jurdico sempre que no mesmo espao geopoltico vigoram (oficialmente ou no) mais de uma ordem jurdica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentao econmica, rcica, profissional ou outra; pode corresponder a um perodo de ruptura social como, por exemplo, um perodo de transformaes revolucionrias; ou pode ainda resultar, como no caso de Pasrgada, da conformao especfica do conflito de classes numa rea determinada da reproduo social - neste caso, a habitao[28]. Como o sistema jurdico no reconhece essa pluralidade, somos obrigados a massificar o direito, reduzindo-o ao ordenamento jurdico, e esse ordenamento nico, sendo aquele imposto pelo Estado.Essa percepo de que o Estado no deve concentrar e unificar o direito, desconsiderando a pluralidade e complexidade de nossa civilizao, tambm defendida por Wolkmer, que afirma que o principal ncleo para o qual converge o pluralismo jurdico a negao de que o Estado seja o centro nico do poder poltico e a fonte exclusiva de toda produo do Direito. Na verdade, trata-se de uma perspectiva descentralizadora e antidogmtica que pleiteia a supremacia de fundamentos tico-poltico-sociolgicos sobre critrios tecno-formais positivistas[29]. 8. Cincia jurdica moderna e o ocultamento das diferenasComo visto no item anterior, h clara predileo pela poltica de aculturao em detrimento da valorizao da diversidade, sendo a histria dos ndios brasileiros e americanos em geral exemplo gritante desse fato. que o tecnicismo, do qual a unicidade do direito um dos frutos, serviu para a europeizao do mundo, devendo, portanto, os brbaros, incapazes de desenvolveram uma cincia como a europia, serem todos aculturados. Com isso vendia-se o mal sob a forma de benefcio ofertado pelo explorador aos explorados. A conseqncia que a cincia jurdica moderna ocidental oculta a diversidade existente na sociedade e aceita uma fico que exerce a real funo ideolgica de ocultamento das diferenas e de imposio de seus prprios fundamentos como forma de dominao cultural. Ao se aceitar a existncia de apenas um sistema jurdico, impe-se, com base na univocidade do direito, a concepo jurdica dominante sobre todas as outras formas existentes dentro do territrio nacional.Se o direito moderno, com foco na igualdade-liberdade-individualidade anulou as diferenas tnicas e culturais, significa que no aceita o diferente. Como o sistema jurdico brasileiro atual ainda construdo sobre esse trip, fica patente a insuficincia dos direitos e garantias fundamentais na proteo dos direitos das minorias tnicas. Aceitar a existncia de outros direitos que no o imposto pelo Estado representa no s opor-se a uma nica matriz cultural, mas tambm respeitar e proteger o direito diferena, essencial para o futuro humano.A histria do direito indgena no diferente da nos negros africanos que aqui aportaram e daqueles hoje denominados afrodescendentes. Exemplo categrico refere-se aos quilombolas e sua rdua luta pelo reconhecimento de propriedade da terra que forma o quilombo. Vale ressaltar que quilombo, que na lngua banto significa povoao, foi definido, em 1740, pelo Conselho Ultramarino Portugus, como toda habitao de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que no tenham ranchos levantados e nem se achem piles nele. Por incrvel que parea, foi esta caracterizao que influenciou vrios pensadores, que passaram a admitir a existncia de quilombos como algo pretrito, cuja existncia coincidia com o regime escravocrata e to-somente isso. A viso histrica sobre as comunidades rurais estabelecidas pela comunidade negra ficou reduzida, sendo essa reduo proposital, fruto de uma ideologia que ignora intencionalmente os efeitos da escravido no Brasil e, principalmente, o que aconteceu logo aps a abolio da escravatura: total falta de poltica pblica que buscasse a insero do antigo escravo na sociedade[30]. Exemplo dessa poltica que desconsidera a diversidade e a pluralidade o fato de no ter sido regularizada, at hoje, a posse de terras s comunidades de escravos e descendentes de escravos que legitimamente as detinham poca.No mesmo diapaso podem-se citar vrios outros exemplos. Segue mais um, que foi fruto de excelente pesquisa desenvolvida na favela do Jacarezinho, na cidade do Rio de Janeiro. L, no incio dos anos 1970, Boaventura de Souza Santos fez intensa pesquisa junto aos moradores e Associao de Moradores, avaliando o histrico do direito moradia daquela comunidade. Na favela, normalmente um espao territorial, cuja relativa autonomia decorre, entre outros fatores, da ilegalidade coletiva da habitao luz do direito oficial brasileiro[31], existe um direito no-oficial, que no caso em tela foi chamado por Boaventura de direito de Pasrgada, direito este que vigora em paralelo (ou em conflito) com o direito oficial brasileiro e desta duplicidade jurdica que se alimenta estruturalmente a ordem jurdica de Pasrgada[32].Entre os dois direitos estabelece-se uma relao de pluralismo jurdico extremamente complexa. No se trata de uma relao igualitria, j que o direito da comunidade que habita uma favela sempre e de mltiplas formas um direito dependente em relao ao direito oficial brasileiro. Dois dos mecanismos oficiais de ordenao e controle social, a Polcia e os Tribunais, no ajudam a resolver essa questo. que chamar a polcia intil e perigoso, porque alm de aumentar a visibilidade de Pasrgada como comunidade ilegal, fato que poderia eventualmente criar pretextos para remoo, a Polcia tambm vista pela comunidade como uma fora hostil investida de funes estritamente repressivas. Em relao aos Tribunais a situao no diferente, sendo vistos, tanto advogados como juzes, como demasiado distanciados das classes baixas para poder entender as necessidades e as aspiraes dos pobres[33]. Com isso a comunidade fica ilegal luz do direito oficial, e recorrer aos tribunais para resolver conflitos sobre terras e habitaes no s intil como perigoso. Intil porque os tribunais tm que seguir o cdigo e os direitos previstos nos cdigos nem sempre atendem s necessidades dessas comunidades; perigoso porque trazer a situao ilegal da comunidade ateno dos servios do Estado pode lev-los a perder o que possuem[34]. 9. A igualdade como mediadora da liberdade e da seguranaO Estado Moderno traz no seu bojo os ideais de igualdade e liberdade, mas procura realizar efetivamente a liberdade e a segurana, que devem ser garantidas a partir da positivao do direito. Ocorre que o direito desse mesmo Estado, que se diz democrtico e liberal, vem a ser a suprema realizao do conceito de direito identificado na lei, trazendo como resultado a unicidade do sistema jurdico, ou seja, no h outro direito que no o do Estado, ignorando-se as formas plurais de juridicidade. Como o Estado ligado denotao otimista da ordem, a histria do direito apresenta-se como a histria do bem comum, da democracia, da liberdade e da igualdade, jamais sendo apresentada como a histria da sede de poder, do egosmo, da ganncia, da tirania, da intolerncia, do retrocesso humano.Ao se proclamar como a nica ordem existente, ou pelo menos vlida, a unicidade do direito no passa de uma fico, em que se aniquila a realidade em busca da segurana jurdica, mas que na maioria das vezes no deixa de ser a sobreposio da ideologia dominante aos autnticos interesses do coletivo. No possvel tutelar a diversidade scio-cultural presente em um Estado abrindo mo da pluralidade de direitos existentes no seio de suas inmeras comunidades, mesmo que seja em prol da pretensa segurana de um nico sistema jurdico. Normalmente busca-se no sistema jurdico ofertado pelo Estado a soluo para as injustias existentes. Ocorre que a validade das normas tratada principalmente em seu carter condicional, retrospectivo: basta seguir os parmetros estabelecidos para sua produo que passa ela a ser vlida, fato que reproduz a hegemonia de poder da classe dominante. Est na hora de avanar na prtica da validade finalstica, aquela que permite ajustar a norma para obter um fim que dignifica o ser humano na sua individualidade e a sociedade como um todo. Validade finalstica aquela em que a validade da norma est relacionada aos fins que ela alcana, principalmente em relao base principiolgica presente, no caso do Brasil, na Constituio Federal.Partindo-se da idia de que s possvel obter liberdade e segurana em boa medida quando esto elas acompanhadas da igualdade, nada melhor do que utilizar a validade finalstica para atingir a igualdade, o que propicia certo afastamento da ordem estatal e o respeito a uma ordem plural de direitos. Se a principal finalidade do direito a justia social, e para tanto a igualdade deve ser buscada, melhor ir logo ao seu encalo, porque liberdade e segurana, apesar de prometidas pelo direito nico, so falcias se desvinculadas da busca constante por uma sociedade mais justa, solidria e igualitria.