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Eid Badr | Mauro Augusto Ponce de Leão Braga Hermenêutica Constitucional HERMENÊUTICA Eid Badr | Mauro Augusto Ponce de Leão Braga Organizadores Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da UEA Mestrado em Direito Ambiental – 2016 Os trabalhos, ora publicados, são resultado das pesquisas rea- lizadas na disciplina Hermenêutica Constitucional, recente- mente introduzida no Projeto Pedagógico do curso de Mestra- do em Direito Ambiental da UEA, em total sintonia com as suas linhas de pesquisa, cujo resultado demonstra uma reflexão crítica desenvolvida que enfrenta os problemas mais atuais do Direito com base em ricas e bem sedimentadas construções teóricas, contribuindo para o desenvolvimento científico da área do Direito. CONSTITUCIONAL Adriana Carla Souza Cromwell | Antonio de Azevedo Maia Armando Gurgel Maia | Eid Badr | Dandara Viégas Dantas Hilderley Rêgo Barbosa | Marcela da Silva Paulo Marcello Phillipe Aguiar Martins | Natasha Yasmine Castelo Branco Donadon | Robson Parente Ribeiro Tibério Celso Gomes dos Santos Autores Capa Herm. Const._ COR ALTERADA.indd 1 26/01/17 12:26

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Eid Badr | Mauro Augusto Ponce de Leão Braga • H

ermenêutica Constitucional

HERMENÊUTICA

Eid Badr | Mauro Augusto Ponce de Leão BragaOrganizadores

Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da UEAMestrado em Direito Ambiental – 2016

Os trabalhos, ora publicados, são resultado das pesquisas rea-lizadas na disciplina Hermenêutica Constitucional, recente-mente introduzida no Projeto Pedagógico do curso de Mestra-do em Direito Ambiental da UEA, em total sintonia com as suas linhas de pesquisa, cujo resultado demonstra uma reflexão crítica desenvolvida que enfrenta os problemas mais atuais do Direito com base em ricas e bem sedimentadas construções teóricas, contribuindo para o desenvolvimento científico da área do Direito.

CONSTITUCIONAL

Adriana Carla Souza Cromwell | Antonio de Azevedo Maia Armando Gurgel Maia | Eid Badr | Dandara Viégas DantasHilderley Rêgo Barbosa | Marcela da Silva PauloMarcello Phillipe Aguiar Martins | Natasha Yasmine Castelo Branco Donadon | Robson Parente RibeiroTibério Celso Gomes dos Santos

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Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da UEAMestrado em Direito Ambiental – 2016

CONSTITUCIONAL

Adriana Carla Souza Cromwell | Antonio de Azevedo Maia Armando Gurgel Maia | Eid Badr | Dandara Viégas DantasHilderley Rêgo Barbosa | Marcela da Silva PauloMarcello Phillipe Aguiar Martins | Natasha Yasmine Castelo Branco Donadon | Robson Parente RibeiroTibério Celso Gomes dos Santos

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Copyright © Eid Badr, 2016.

Editor Isaac Maciel

Coordenação editorial Tenório Telles • Neiza Teixeira

Capa e Projeto Gráfico Maysa Leite

Revisão Núcleo de editoração Valer

Área das Ciências Sociais AplicadasUNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONASCoordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental Eid Badr

Conselho Editorial da Editora Valer para Área do Direito Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais • Prof. Dr. Adriano Fernandes Ferreira • Prof.ª Dr.ª Dinara de Arruda Oliveira

Normalização Ycaro Verçosa

B00h Badr, Eid

Hermenêutica Constitucional: programa de pós-graduação em Direito Ambiental da UEA: mestrado em Direito Ambiental / Orgs. Eid Badr, Mauro Augusto Ponce de Leão Braga. – Manaus: Editora Valer, 2016.

238p. 14x21cm

ISBN 978-85-7512-836-7

1. Direito 2. Hermenêutica Constitucional I. Badr, Eid, org II Braga, Mauro Augusto de Leão, org. II. Título

CDD 86922 ed.

Obra de acesso livro no Portal http://www.pos.uea.edu.br/direitoambiental/

2016Editora ValerAv. Rio Mar, 63, Conj. Vieiralves – Nossa Senhora das Graças69053-180, Manaus – AMFone: (92) 3184-4568www.editoravaler.com.br

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Sumário

Apresentação 7

Limites do criacionismo judicial à luz da 9ponderação de Princípios segundo Robert AlexyAdriana Carla Souza Cromwell

O sentido sociológico de Ferdinand Lassalle e a 39 soma dos fatores reais de poder na Constituiçãode 1988Antonio de Azevedo Maia

Um passeio com aletheia: normatividade, política, 53capacidades institucionais e sinceridade constitucionalArmando Gurgel Maia

Os desafios do Ensino Jurídico frente à 77Hermenêutica Constitucional atualEid Badr

A territorialidade indígena frente ao direito à 91 propriedade privada de não indígenas: Uma abordagem hermenêutica da jurisprudência da corte interamericana de direitos humanos Dandara Viégas Dantas

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O papel da Jurisdição Constitucional na realização 113do Estado Social Pós-Constituição Federal de 1988Hilderley Rêgo Barbosa

A inflação Legislativa nas Constituições: um prisma 137sobre as Emendas Constitucionais no BrasilMarcela da Silva Paulo

Sociologia Jurídica e Pluralismo Jurídico: 151caminhos para uma sociedade aberta dos intérpretes da ConstituiçãoMarcello Phillipe Aguiar Martins

O Transconstitucionalismo no Brasil: a inclusão 171da concepção internacional de Direitos Humanos no Supremo Tribunal FederalNatasha Yasmine Castelo Branco Donadon

A Força Normativa da Constituição: uma análise 193das relações de poder tangentes à Constituição de 1988 e a práxis ConstitucionalRobson Parente Ribeiro

A pseudo independência e harmonia entre os 215poderes no Brasil por meio da deturpação do sistema de “freios e contrapesos”: uma análise da crise de legitimidade dos poderes políticos e o fenômeno da judicialização da políticaTibério Celso Gomes dos Santos

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Apresentação

Com a edição desta obra do Programa de Pós-Gradu-ção em Direito Ambiental da Universidade do Estado

do Amazonas (PPGDA-UEA), de 2016, demarca-se mais um momento de sucesso do curso de Mestrado em Direi-to Ambiental, reconhecido pela Capes em 2004, e que se constitue um dos quatro únicos programas de Pós-Gra-duação “Stricto Sensu” da Região Norte do País, sendo que três destes situados no vizinho Estado do Pará.

Os trabalhos, ora publicados, são resultado das pes-quisas realizadas na disciplina Hermenêutica Constitu-cional, recentemente introduzida no Projeto Pedagógico do curso de Mestrado em Direito Ambiental, em total sintonia com as suas linhas de pesquisa, cujo resultado demonstra uma reflexão crítica desenvolvida que enfren-ta os problemas mais atuais do Direito com base em ricas e bem sedimentadas construções teóricas, contribuindo para o desenvolvimento científico da área do Direito.

A presente obra e a atualização e aperfeiçoamento do projeto pedagógico do Curso de Mestrado em Direi-to Ambiental da UEA ocorrem em momento de grandes avanços, desde o último cilco avaliativo realizado pela Capes, pois o Programa conta com nova e moderna in-

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fra-estrutura, quadro docente renovado a partir de iné-ditos concursos públicos realizados nos últimos dois anos, consolidando o seu quadro docente permanente com oito docentes com vínculo efetivo dos atuais doze integrantes, firmando definitivamente o Programa como um centro de excelência e de formação de quadros pro-fissionais de elevado nível, especialmente, para a carreira acadêmica, para o Estado do Amazonas, toda a Região Norte, bem como para a Região Nordeste e Centro-Oes-te do País, na medida em que se tornou um grande pólo regional de atração de alunos, conforme revela a diversi-dade de origens de seu quadro discente.

Todo o esforço de investimento, renovação e apri-moramento do PPGDA-UEA, é revelado, em parte, pela obra que ora vai à lume, e que estará disponível, sem ônus, a todos que dela quiserem fazer uso no Portal do Mestrado em Direito Ambiental da UEA, na rede mun-dial de computadores, Internet.

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Limites do criacionismo judicial à luz da ponderação de Princípios segundo Robert AlexyAdriana Carla Souza Cromwell1

Introdução

A atividade judicial tem sido objeto de profundos debates na seara filosófica e hermenêutica, fazendo do intérprete objeto de estudo, na tentativa de compreender e, por vezes, justificar o criacionismo que decorre da in-terpretação de normas pelo judiciário.

Tal investigação se deve a inúmeras preocupações que essa atividade provoca em relação a segurança jurí-dica e na conformação de um estado democrático, haja vista a delicada missão que tem o intérprete na aplicação do texto normativo à realidade concreta, e das circuns-tâncias fáticas que lhes são apresentadas num dado caso submetido a julgamento, o que acaba por permitir uma certa atividade criadora do direito.

Nessa senda, ao passo que o julgador não pode se afastar dos limites constitucionais impostos para o exer-cício da atividade de interpretar e aplicar o direito posto, igualmente não deve se colocar alheio ou equidistante da realidade social, notadamente quando está diante de direitos fundamentais que eventualmente estejam coli-dentes.

Nesse sentido, o presente trabalho abordará os limi-tes a que se deve se submeter a atividade criadora do di-

1 Mestranda em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Procuradora do Município de Manaus.

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reito pelo julgador, bem como apresentar solução viável e adequada para a resolução de problemas, quando se en-contrarem em colisão direitos fundamentais submetidos a julgamento.

Dessa forma, será apresentada fórmula de sopesa-mento de princípios, conforme anteriormente proposto, quando colidentes no caso em concreto, utilizando-se o postulado da proporcionalidade, por meio da pondera-ção, para averiguar a possibilidade de restrição de um di-reito fundamental em benefício de outro direito também tido como fundamental.

Para isto, serão abordados e analisados de forma por-menorizada, a adequação, a necessidade e a proporcio-nalidade em sentido estrito, na ponderação de princípios eventualmente em colisão, como alternativa para conter o criacionismo judicial.

Interpretação: norma e realidade social e a pré-com-preensão do julgador na formulação de decisões

O sistema jurídico brasileiro tem suas raízes basea-das no direito romano, fortemente inspirado pelo posi-tivismo de Hans Kelsen, apresentando a norma jurídica positivada como pilar desse sistema, constituindo a sub-sunção da norma ao fato o ideal.

Para Kelsen, o direito consistiria numa moldura, dentro da qual existiriam variadas hipóteses de aplicação, do que resulta atribuir variados sentidos a norma. Nes-se sentido, para ele “esta moldura pode ser mais larga ou mais estreita. Ela é o mais larga possível quando a norma jurídica geral positiva apenas contém a atribuição de po-

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der ou competência para a produção da norma jurídica individual, sem preestabelecer o seu conteúdo”2. Dessa forma, a interpretação de uma lei não conduziria obri-gatoriamente a uma solução única, mas provavelmente a diversos resultados de igual valor.

Assim, a norma escrita sempre foi considerada fon-te basilar do direito, constituindo como ideal jurídico o alcance da plena correspondência entre direito e norma.

Ocorre que a tarefa de interpretar as normas e apli-cá-las ao caso concreto não tem sido fácil, ante a possi-bilidade de verificação da existência de uma lacuna ou, ainda, de contradições normativas a que se depara o jul-gador, mormente numa sociedade moderna, cujas trans-formações são dinamicamente observadas no mundo contemporâneo.

Com efeito, a permissão quanto a flexibilidade inter-pretativa das normas, não constitui uma atividade solitá-ria e desvinculada do sistema normativo brasileiro, uma vez que tal exercício se encontra autorizado pela Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Redação dada Lei nº 12.376/2010), que em seu artigo 5º, dispõe que “na apli-cação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”3.

Nesse passo, é sintomático que o próprio sistema jurídico brasileiro permite a adequação das normas no momento de sua aplicação, propiciando uma certa atua-

2 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito / Hans Kelsen: Tradução João Baptista Ma-chado. 6ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 171.

3 BRASIL, Decreto-Lei Nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Dispõe sobre a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010). Presidência da República: 1942.

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lização do sentido da norma conforme o contexto social em que está sendo aplicada, mantendo-na num universo de validade coerente.

Nessa ordem de ideias, se apresenta natural a busca pela solução de conflitos posto ao exame do judiciário, mesmo que pelo processo de subsunção o desfecho da lide não encontre uma saída imediata. Esta é uma tarefa afeta ao Poder Judiciário que, segundo Karl Larenz4:

É missão dos tribunais decidir de modo ‘justo’ os conflitos trazidos perante si e, se a ‘aplicação’ das leis, por via do procedimento de subsunção, não oferecer garantias de uma tal decisão, é natural que se busque um processo que permita a solução de problemas ju-rídicos a partir dos ‘dados materiais’ desses mesmos problemas, mesmo sem apoio numa norma legal. Esse processo apresentar-se-á como um ‘tratamento circular’, que aborde o problema a partir dos mais di-versos ângulos e que traga à colação todos os pontos de vista – tanto os obtidos a partir da lei como os de natureza extrajurídica – que possam ter algum relevo para a solução ordenada à justiça, com o objectivo de estabelecer um consenso entre os intervenientes.

Dessa forma, no processo de interpretação, necessá-rio se faz justapor o desígnio da norma à realidade so-cial, pois essa prática interpretativa não deve se ater a um procedimento meramente dialético, num mundo de pu-ras abstrações, mas deve, sobretudo, perscrutar a vida e a realidade social.

4 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego, 3ª edi-ção. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 201.

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Insta notar que a adaptação das normas a realida-de social reflete o poder normativo que emana do texto constitucional, tendo em vista que este espelha os an-seios políticos e sociais de um povo. Nesse prisma, Kon-rad Hesse5 indica que:

A constituição não configura, portanto, apenas ex-pressão de um ser, mas também um dever ser, ela significa mais do que simples reflexões das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças a pretensão de eficácia, a constituição procura imprimir ordem e conforma-ção a uma realidade política e social.

Isto revela que a atividade interpretativa do julgador não deve deixar de olhar para o fim social, nisto com-preendendo o contexto histórico em que o caso sob aná-lise se insere.

Todavia, a criação do direito por meio de decisões judiciais, em regra, vem carregada de subjetivismo, in-fluenciada pelas pré-compreensões que carrega consigo o julgador, ou seja, diversos fatores internos e externos inci-dem no comportamento cognitivo do prolator da decisão.

Cláudio Pereira de Souza Neto elucida que o intér-prete, ao se deparar com determinado problema jurídico “antes até de consultar normas pertinentes, já tende a an-tecipar uma solução, com base na sua pré-compreensão6”. Acrescenta Souza Neto, ainda que, “a pré-compreensão

5 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Ed. Sergio Antônio. Porto ale-gre: Fabris 1991, p. 15.

6 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teo-ria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. 1 reimpr. Belo Horizonte: 2016, p. 421.

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envolve não apenas a concepção particular de mundo do intérprete, mas, sobretudo, os valores, tradições e pre-conceitos da comunidade em que está inserido7”. Nessa linha, compreende-se que a captação de sentido da nor-ma parte da extração que o julgador faz de seus próprios valores existenciais.

Conforme anotam Morais da Rosa e Tobler (apoia-dos no pensamento de Streck), “o juiz, ainda que ciente de sua racionalidade, sempre estará envolto por intui-ções, pré-compreensões, pré-interpretações e ideologias, específicas de perspectivas e experiências vivenciadas”8. Embora para Streck, isso repercutiria na tomada de deci-sões inautênticas, não é sobre a autenticidade ou não des-sas decisões que o presente trabalho pretende se debruçar.

Avaliando o pensamento difundido por Gadamer, bem anota Alexandre Araújo Costa9, para quem “toda atribuição de sentido tem como base as percepções valo-rativas dos indivíduos, e essas percepções são uma mis-tura de algumas crenças individuais com muitas cren-ças socialmente compartilhadas, que formam o pano de fundo de toda compreensão”. Isso decorre do fato de que o indivíduo avalia determinado dado com base em suas pré-compreensões e percepções valorativas que repre-sentam uma miscelânea de crenças individuais e também daquelas socialmente compartilhadas.

7 Ibidem, p. 421.

8 ROSA, Alexandre Morais da; TOBLER, Giseli Caroline. Será que Juiz com fome julga diferente? Disponível em: http://emporiododireito.com.br/tag/giseli-caroline-to-bler/. Acesso em 16/11/2016.

9 COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método: diálogos entre a hermenêutica filosó-fica e a hermenêutica jurídica. Tese de Doutoramento pela Universidade de Bra-sília, 2008, p. 139. Disponível em: http://dominiopublico.mec.gov.br/download/teste/arqs/cp149009.pdf. Acesso em 16/11/2016.

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Nesse sentido revela o ensinamento de Gadamer:

Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete projeta um sentido para o tex-to como um todo. O sentido inicial só se manifesta porque ele está lendo o texto com certas expectativas em relação ao seu sentido. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente no desen-volvimento dessa projeção, a qual tem que ir sendo constantemente revisada, com base nos sentidos que emergem à medida que se vai penetrando no signifi-cado do texto10.

O intérprete da norma, no exercício de julgar, incur-siona pela esfera de compreensão de si mesmo, para en-tão compreender os aspectos externos postos à análise, formando a tela de fundo de sua interpretação. Conforme revela Ernildo Stein, “não podemos compreender nada sem compreender a totalidade. Enquanto compreende-mos a totalidade, nos compreendemos. Nós temos o sen-tido da própria existência”11.

E completa Stein:

Por isso diz Heidegger que o homem se compreende quando compreende o ser. Compreende o ser quan-do se compreende a si mesmo. Há uma circularida-de. Quer dizer, o compreender-se a si mesmo seria o universo apofânico. E o compreender do ser seria o

10 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 12 ed. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 356.

11 STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Coleção Filosofia 40, 2ª Edi-ção, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 61-62.

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universo hermenêutico. Eu não compreendo a mim no discurso lógico-semântico se eu não tiver a com-preensão do ser no universo hermenêutico. Mas, por outro lado, este universo hermenêutico enquanto compreensão da totalidade é compreensão de mim mesmo12.

Quanto a isto, pode-se afirmar que o processo de interpretação e elaboração do ato decisório é carregado de subjetivismo do magistrado, e isto parece inevitável. Segundo Humberto Machado de Oliveira, ao abordar so-bre “a existência dessa fase subjetiva (“pré-decisória, de “antecipação” mental da decisão) do julgador, aponta que “muitos não acreditam que tal atitude seja legítima”13, in-dicando ser difícil imaginar o raciocínio humano funcio-nar de outra forma (ou seja, desvinculada de suas percep-ções pessoais).

Assim, é de se notar ser no mínimo difícil considerar que no momento da avaliação de determinado conflito o julgador não se identifique (em virtude de suas ideias pré-concebidas), com alguma das teses discutidas na lide submetida a julgamento. Todavia, nesse percurso o magistrado recebe inúmeras informações dos partícipes ou auxiliares do processo, de modo que essa tarefa não é exercida pelo juiz de maneira absolutamente isolada. Para Machado de Oliveira, “pode parecer que o caminho que o juiz segue até a sentença é um caminho solitário em que só consulta sua mente e os livros (hoje a internet), mas não é bem assim. Na verdade, esse processo segue

12 Idem, p. 62.

13 OLIVEIRA, Umberto Machado de; DOS ANJOS, Leonardo Fernandes. Ativismo judi-cial. Curitiba: Juruá, 2010, p. 54.

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(ou pelo menos deveria seguir), todas as diretrizes da teo-ria do discurso”14.

Isto revela que o ato decisório, apesar dessa nítida carga subjetivista do julgador, aponta para um processo comunicativo em que os fundamentos da decisão é, de certa forma, construído juntamente com as partes inte-grantes do processo.

Dessa forma, depreende-se que o julgador, ao se deparar com determinado caso concreto, cuja solução, por vezes, devido a sua complexidade, vai muito além da mera subsunção do fato à norma, acabará por avaliar o dado tido como novo a partir de suas preconcepções, ou seja, das ideias preconcebidas que fazem parte do seu ser, ainda que no seu significativo mister, tenha plena cons-ciência da racionalidade e imparcialidade que deve depo-sitar no ato judicial a ser proferido.

A separação dos poderes como limite constitucional da atividade judicial e preservação do estado democrático

A dinamicidade da sociedade contemporânea tem levado à apreciação do judiciário diversas contendas, as quais reclamam soluções urgentes, exigindo do julgador o pronunciamento sobre os mais variados temas, fazendo incursionar na seara das políticas públicas e na aplicação de direitos, por vezes, pendentes de regulamentação in-fraconstitucional pelo Poder Legislativo.

Em que pese a leitura favorável que alguns defenso-res fazem quanto a positividade dessa conduta proativa

14 Ibidem, p. 54-55.

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do judiciário (por entenderem necessária à efetivação de direitos fundamentais), muitos são críticos acerca desse criacionismo judicial, denominado ativismo, o qual seria incoerente com as suas funções estatais, colocando em cheque a harmônica separação dos poderes.

Dispõe o artigo primeiro da Constituição Federal de 1988, ser a República Brasileira um Estado Democrático de Direito. Isto porque, conforme Ruaro e Limberger, ao adotar o princípio democrático ao invés do liberal, impôs a discussão como componente jurídico prévio à tomada de decisões que afetam a coletividade e caracteriza-se im-prescindível para a sua legitimação15.

A Constituição Federal, estabeleceu em seu art. 2º, como Poderes da União, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, todos independentes e harmônicos entre si. A separação dos poderes, teorizada por Montesquieu em sua obra “O espírito das leis”, concebe a tripartição de po-deres, pela distribuição das atribuições típicas de Estado, exercidas autonomamente por cada uma das entidades estatais. Todavia, modernamente, a separação dos pode-res vem apresentando resultados diversos da teoria Mon-tesquiana, haja vista a complexa relação existente entre os poderes, cada um desempenhando funções típicas e atípicas, revelando que essa separação não se mostra mais com a higidez idealizada. Nesse sentido leciona Zauli:

Deve-se notar, entretanto, que a evolução da dou-trina da separação de poderes do Estado terminou

15 RUARO, Regina Linden. LIMBERGER, Têmis. Administração pública e novas tecno-logias: o embate entre o público e o privado – análise da resolução 121/2010 do CNJ. Revista Novos Estudos Jurídicos [Recurso Eletrônico]. Vol. 16, n. 2, mai/ago 2011, p. 121-134. Itajaí: Editoria da Universidade do Vale do Itajaí, 2011.

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por produzir um resultado significativamente di-verso daquele proposto por Montesquieu. Diante da necessidade da criação e manutenção de um certo equilíbrio entre os três poderes, em vez de um equi-líbrio natural decorrente de uma rígida e excludente separação de poderes, a resultante foi uma complexa interação entre os órgãos integrantes de cada um dos três poderes na qual cada um dos poderes é chamado a desempenhar funções típicas e atípicas, ocorrendo, portanto, uma interseção entre os três poderes, em vez de uma completa separação de funções exclu-dentes entre os diferentes ramos do Estado16.

Pela lógica da clássica tripartição de poderes, ao Po-der Executivo caberia, por exemplo, implementar as po-líticas públicas viabilizadoras dos direitos assegurados no texto constitucional, enquanto que a criação de normas que regulamentem tais direitos seria da competência do Legislativo. Assim, se o Executivo não concretiza aquelas políticas públicas ou o Legislativo não produz a norma que regule o exercício desses direitos, o Judiciário acaba sendo invocado para equacionar a efetivação de dado di-reito fundamental tido como violado. E é nesse cenário que ocorre a criação do direito pelo ativismo.

Lenio Streck, um dos maiores críticos ao ativismo praticado no direito brasileiro, defende que hodierna-mente existe uma “perigosa tendência” da comunidade jurídica em acudir-se dos tribunais para suprir eventuais omissões do legislador, oportunidade em que assevera:

16 ZAULI, Eduardo Meira. Judicialização da política, poder judiciário e comissões parlamentares de inquérito no Brasil. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 19, n. 40, p. 195-209, Out. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782011000300014>. Acesso em 21/11/2016. 

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Nos últimos anos, uma persistente crise de represen-tatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judi-ciário nessa direção, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem omissões e, por vezes, inovam na ordem jurídica, com caráter nor-mativo geral. O risco que exsurge desse tipo de ação é que uma intervenção desta monta do Poder Judiciá-rio no seio da sociedade produz graves efeitos colate-rais. Quer dizer: há problemas que simplesmente não podem ser resolvidos pela via de uma ideia errônea de ativismo judicial. O Judiciário não pode substituir o legislador (não esqueçamos, aqui, a diferença entre ativismo e judicialização: o primeiro, fragilizador da autonomia do direito; o segundo, contingencial)17.

Inúmeras são as críticas ao ativismo judicial, sendo observadas com maior ênfase no que toca a decisões tidas como usurpadoras das funções do poder legislativo (por ofensa a separação dos poderes), especialmente quando chegam a criar normas abstratas. Nesse sentido Elival Ra-mos, concorda, registrando que:

O fenômeno golpeia mais fortemente o Poder Legis-lativo, o qual tanto pode ter o produto da legiferação irregularmente invalidado por decisão ativista (em sede de controle de constitucionalidade), quanto o

17 STRECK, Lenio Luiz; BARRETTO, Vicente de Paulo; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Ulisses e o canto das sereias. Sobre ativismos judiciais e os perigos da instauração de um terceiro turno da constituinte. Revista de Estudos Constitucionais, Herme-nêutica e Teoria do Direito (RECHTD). Porto Alegre: UNISINOS, 2009, p. 79. Dis-ponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/47/2401. Acesso em: 15/11/2016.

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seu espaço de conformação normativo invadido por decisões excessivamente criativas18.

Mas o que seria esse “ativismo”? Conforme Luís Ro-berto Barroso, a ideia de ativismo “está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na con-cretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Po-deres. Em muitas situações sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios”19. Paulo Gustavo Go-net Branco, acena que “costuma-se usar o termo ativismo em contextos destinados a apontar, para fins de censura ou para o aplauso, um exercício arrojado da jurisdição, fora do usual, em especial no que tange a opções morais e políticas”20.

Insta registar que o exercício da função jurisdicio-nal, traduzido nas últimas décadas como exorbitante dos limites fixados pelo próprio ordenamento jurídico, tem recebido apoio de adeptos desse ativismo, escorado em justificativas que permeiam tanto a necessidade de pro-teção e efetivação de direitos fundamentais, quanto das constantes omissões perpetradas pelo legislativo.

Com efeito, o escalado crescimento da atividade cria-cionista judicial, para além de suas funções tipicamente jurisdicionais, em substituição a outros poderes da repú-blica é notado. Conforme destaca Luís Roberto Barroso,

18 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial – Parâmetros dogmáticos. São Paulo, Sa-raiva, 2010, p. 129.

19 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo e Legitimação Democrática. Revista OAB: p. 6. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf. Acesso: 17/11/2016.

20 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Em busca de um conceito fugidio – O ativismo ju-dicial, in FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de, e NOVELINO, Mar-celo. As novas faces do ativismo judicial, São Paulo: Jus Podivm, 2011, p. 392/393.

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ao comentar sobre um judiciário claramente ativista no Brasil recente, aponta que um certo declínio nas funções do legislativo, cederam espaço para uma maior atuação do judiciário, quando observa que:

Nos últimos anos, uma persistente crise de represen-tatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judi-ciário nessa direção, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem omissões e, por vezes, inovam na ordem jurídica, com caráter nor-mativo geral21.

Assim, nota-se que um dos maiores argumentos fa-voráveis ao ativismo judicial seria essa necessidade de atuação para suprir omissões legislativas (ou para efetiva-ção de direitos, no caso do Executivo), o que emprestaria ‘legitimidade’ ao judiciário, que tem papel de bem e fiel-mente zelar e fazer cumprir a Constituição.

O Supremo Tribunal Federal tem atuado constante-mente nessa linha criacionista do direito por meio de de-cisões judiciais, sob a justificativa de mero cumprimento de seu papel, com a utilização dos mecanismos disponi-bilizados pela própria Constituição para neutralizar o ca-ráter lesivo das omissões do Legislativo ou do Executivo.

Destaca-se trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, no julga-mento da ADI 4772/DF, cujo julgamento final demonstra que ter a Suprema Corte atuado como verdadeiro legis-

21 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo e Legitimação Democrática. Revista OAB: p. 9. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf. Acesso: 17/11/2016.

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lador positivo, ao conferir às relações homoafetivas, di-reito positivado exclusivamente para uniões estáveis he-teroafetivas. No referido voto, é destacada a necessidade de atuação do STF para primazia da Constituição da Re-pública, quando se quedam inertes (omissos) os demais poderes públicos:

Nem se alegue, finalmente, no caso ora em exame, a ocorrência de eventual  ativismo judicial  exercido pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente por-que, dentre as inúmeras causas que justificam esse comportamento afirmativo do Poder Judiciário, de  que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito, inclui-se a necessidade de fazer prevale-cer a primazia da Constituição da República, muitas vezes transgredida e desrespeitada, como na espécie, por pura e simples omissão dos poderes públicos. Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constitui-ção violada pela inércia dos poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão constitucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondi-cional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República. Práticas de  ativismo judicial,  embora moderadamente desempenhadas pela Corte Supre-ma em momentos excepcionais, tornam-se uma ne-cessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos, ain-da mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à

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Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade. A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a impo-sição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, tam-bém ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos pos-tulados e princípios da Lei Fundamental, tal como tem advertido o Supremo Tribunal Federal. (grifos do original)22.

Dessarte, sustenta o Supremo Tribunal Federal que, nesses casos, inexiste interferência indevida da Corte, uma vez que, assim agindo, apenas está cumprindo sua função constitucional.

O que parece ser preocupação comum dos estudio-sos que se debruçam sobre o tema, é manter essa ativi-dade judicial criacionista sob controles bem definidos, exatamente para não gerar insegurança jurídica muito menos ameaçar o estado democrático de direito consa-grado pelo texto constitucional.

Percebe-se, portanto, que as discussões acerca da le-gitimidade ou não da criação do direito por meio de de-cisões do Poder Judiciário percorrem sobre a avaliação do papel constitucional do judiciário para concretização dos valores e fins almejados no texto da Constituição da Re-pública, sendo de grande importância perquirir sobre as fórmulas que podem se mostrar adequadas para o exercí-

22 STF. ADI 4.277 / DF. Voto do Ministro Celso De Mello. 2011. p. 867/868.

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cio dessa atividade, notadamente quando o julgador esti-ver diante da tarefa de julgar casos em que se encontrem conflitantes direitos fundamentais.

Ponderação, postulado da proporcionalidade e a coli-são de princípios constitucionais

O modo racional para solucionar judicialmente os conflitos, vem sendo objeto de atenção por estudiosos. Assim, a ponderação, teorizada por Robert Alexy, em sua obra teoria dos direitos fundamentais, surge como um método lógico-interpretativo, com o objetivo de racio-nalizar decisões judiciais a partir de um procedimento argumentativo.

“Princípios são parâmetros normativos que obrigam o Estado a cumpri-los o máximo possível, levando-se em consideração o contexto fático e jurídico. Dessa forma, são deveres cujo conteúdo definitivo somente é fixado após o sopesamento dos princípios colidentes, uma vez que representam “mandamentos de otimização”23.

Na colisão de princípios, segundo Robert Alexy:

um dos princípios terá que ceder. Isto não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser de-clarado inválido, nem que nele deverá ser introduzi-da uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocor-re é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvi-

23 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 90.

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da de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quan-do se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência24.

Dessa forma, havendo eventualmente colisão entre princípios, este não será resolvido com a invalidação de um em favor do outro, mas sim o sopesamento entre os interesses colidentes. Pelo sopesamento se objetiva re-solver qual dos interesses que, malgrado se situem abs-tratamente no mesmo nível, possui maior peso no caso concreto.

Nesse sentido, para que se possa analisar a propor-cionalidade de certa medida que restrinja determinado direito, adotam-se as etapas que Humberto Ávila indica, quais sejam: a preparação da ponderação, a realização da ponderação e a reconstrução da ponderação25.

Desse modo, a preparação, constitui-se em análi-se de todos os elementos e argumentos. Passa-se a rea-lização da ponderação que, conforme Ávila, “no caso de ponderação de princípios, essa deve indicar a relação de primazia entre um e outro”26, tudo isto sem aniquilar quaisquer destes princípios, pois, no dizer de Luís Rober-to Barroso, “a ponderação é uma pintura moderna, com inúmeras cores sobrepostas, algumas se destacando mais que as outras, mas formando uma unidade estética”27.

24 Ibidem, p. 93.

25 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 144.

26 Ibidem, p. 187.

27 BARROSO, Luís Roberto. Direito constitucional contemporâneo: os conceitos fun-damentais e a construção do novo modelo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 361.

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Para se chegar à conclusão de que é necessária uma ponderação destes princípios e consequente análise de proporcionalidade, há que se reafirmar o que diz Virgílio Afonso da Silva, no que tange à hierarquia entre normas constitucionais, o qual ensina que:

para aqueles que sustentam não poder haver hierar-quia material entre as normas constitucionais parece haver somente uma saída: a rejeição do sopesamento como método de interpretação e aplicação do direito e a consequente rejeição da possibilidade de um di-reito prevalecer sobre outro em alguns casos28.

Completa ainda que “se uma norma prevalece sobre a outra, só pode ser porque ela tenha sido considera-da mais importante, ainda que somente para aquele caso concreto” (itálico do autor), sem que alguma seja conside-rada absoluta, porque não existe em nossa ordem consti-tucional direito nem liberdade irrestritos, estando o jul-gador, frente à ponderação, com um ônus argumentativo máximo.

Para o exercício da ponderação, são necessárias três etapas, segundo Barroso29, ou três máximas, como no-meia Alexy30: a adequação de meios (exigibilidade), neces-sidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

28 SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodoló-gico. In SILVA, V. (org). Interpretação constitucional. 1ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 125.

29 BARROSO, Luís Roberto. Direito constitucional contemporâneo: os conceitos fun-damentais e a construção do novo modelo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 360-365.

30 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 116-117.

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Assim, quanto às possibilidades fáticas de aplicação de um princípio em maior escala que outro, o princípio se desdobra no exame da necessidade e da adequabilidade, de maneira a se poder justificar a otimização de um (maior aplicabilidade ou aplicação em maior grau), segundo mais consistente seja a justificativa de sua necessidade (da aplicação) e da adequação (de meio a fim) ao caso con-creto. E quanto a sua possibilidade jurídica, o exame se dá pela constatação da existência de confronto das normas no caso concreto, daí se falar em proporcionalidade em sentido estrito.

Nesse diapasão, passa-se ao estudo dessas três máxi-mas propostas por Robert Alexy, conforme será explicitado.

Adequação

A situação averiguada envolve uma relação de cau-salidade entre um meio e um fim concreto, podendo-se aplicar o postulado da proporcionalidade e consequente análise da adequação, já que, conforme ensina Ávila, “um meio é adequado se promove o fim”31.

Em primeiro lugar, indaga-se se medida é adequa-da e se há conflitos entre normas constitucionais. Para Alexy, meio idôneo ou adequado é aquele capaz de con-cretizar o direito fundamental. Por conseguinte, caso o meio utilizado não concretize, efetivamente, o direito fundamental, será inidôneo. Constitui-se uma análise da possibilidade fática32.

31 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 202.

32 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da

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A pergunta que configura o cerne desta etapa de sondagem é: há justificativa para a tomada de tal medida? Trata-se aqui da justificativa para tal medida imposta (no caso concreto), ou seja, qual o âmbito de proteção que a norma pretende dar ao direito fundamental violado.

Diante disso, outro aspecto levado em consideração para análise da adequação é o aspecto quantitativo e qua-litativo e probabilístico. No que concerne ao quantitati-vo, avalia-se se a norma promove mais o fim almejado, isto é, se promove melhor o fim desejado e com mais cer-teza e eficácia. Posteriormente, se há excesso na medida restritiva do direito fundamental.

Portanto, nesta etapa avalia-se a adequação da me-dida restritiva, julgando-a mediante a consideração das circunstâncias existentes no caso concreto.

Necessidade

Noutro ponto, sequencialmente às etapas outrora mencionadas, deve-se seguir à análise de necessidade da medida. Dessa forma, a questão que se quer resolver é se há outros meios alternativos que não sejam tão restriti-vos para assegurar o direito posto em colisão e que pos-sam promover igualmente os direitos fundamentais con-trapostos (exemplo: direito à intimidade e vida privada x direito à informação).

Nessa etapa deve haver sondagem se a medida ado-tada é demasiadamente restritiva. Isto porque, segundo Humberto Ávila, “a verificação do meio menos restritivo

Silva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 118.

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deve indicar o meio mais suave, em geral e nos casos evi-dentes”33. Deste modo, na análise que se faz da propor-cionalidade de determinada medida traz a possibilidade do julgador avaliar o quão necessário é a restrição de um direito em benefício de outro (pois como antes defendi-do, um direito cede em favor de outro, mas não há seu esvaziamento).

Assim, determinada medida pode promover bastan-te o fim almejado na proteção de um direito, mas, em compensação, poderá causar muita restrição ao direito fundamental contraposto. Desse modo, ainda que seja possível a alegação de necessidade da medida, ainda ha-veria que superar o teste de proporcionalidade, quando o enfoque for a proporcionalidade em sentido estrito.

Proporcionalidade em sentido estrito

O exame da proporcionalidade em sentido estrito exige a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição ao direito fundamental. Assim, segundo Ávila, “a pergunta que deve ser formulada é a seguinte: o grau de importância da promoção do fim justifica o grau de restrição causada aos direitos funda-mentais? Ou, de outro modo: As vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens cau-sadas pela adoção do meio? A valia da promoção do fim corresponde a desvalia da restrição causada?”34.

33 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 215.

34 Ibidem, p. 216.

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Para todos os questionamentos, deve ser positiva as respostas, caso contrário, se negativas, estar-se-á dian-te de uma restrição desproporcional que redundaria na anulação de um direito fundamental, arranhando seu núcleo essencial.

Importa dizer que a restrição não se deve mostrar desproporcional. Trazendo uma exemplificação no plano hipotético, imagine uma pessoa pública que é fotografa-da em ambiente público. Neste caso, em eventual colisão entre o direito a intimidade e privacidade da pessoa pú-blica em contraposição ao direito a informação da socie-dade e da liberdade de imprensa em divulgar essa ima-gem, atenderia a proporcionalidade impedir a divulgação em favor desse direito à privacidade da pessoa pública? Entende-se que não! Exatamente porque nessa hipótese o direito desta pessoa sofreria menor restrição, haja vista sua condição de vida que já ocorre em grau de exposição maior que os indivíduos ‘comuns’.

Contrariamente, se a captação dessas imagens se desse de forma furtiva e clandestina, num momento de intimidade (por exemplo dentro de um cômodo da casa dessa pessoa pública), aí estariam invertidos os papéis, e a restrição do direito à informação e liberdade de imprensa são seriam desproporcionais se contrapostos com o direi-to à intimidade do indivíduo.

Isto denota que apenas avaliadas as circunstâncias do caso concreto é que se poderá decidir sobre a restri-ção de um direito fundamental em favor de outro direito igualmente fundamental, pois, conforme leciona Robert Alexy, a precedência de um princípio sobre um outro princípio se dá sob determinadas condições. Porém, sob

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outras condições a questão da precedência pode se resol-ver exatamente de maneira oposta.

Desse modo, nesses casos, o juiz, em análise detida de proporcionalidade, poderá ordenar determinada me-dida restritiva em detrimento de um outro direito funda-mental, observando sempre que a valia da promoção do fim não deve corresponder à desvalia da restrição (sem-pre analisada com caso concreto).

Conclusão

Dessa forma, conclui-se que o ativismo judicial é um fenômeno crescente, constituindo prática recorrente no Supremo Tribunal Federal, cuja Corte tem protagoniza-do papel concretizador de políticas públicas e direitos fundamentais em virtude dos atos e omissões dos Pode-res Legislativo e Executivo, agindo para além das frontei-ras da clássica posição de intérprete da Constituição. Tal prática não pode ser vista para o ‘bem’ nem para o ‘mal’. Todavia, o ativismo na justiça brasileira é uma realidade, da qual não se pode ignorar.

Verificou-se haver inúmeros argumentos entre os de-fensores e opositores do ativismo judicial, de modo que, tanto as alegações dos apoiadores quanto dos críticos do fenômeno, podem ser levados em consideração, como as decisões ativistas que interferem nas políticas públicas (podendo ocasionar, inclusive, problemas orçamentários) ou, de outra banda, consideráveis decisões judiciais, que têm sido significativamente substanciais para assegurar a concretização de direitos fundamentais, os quais muitas

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vezes tem seu exercício impedido em razão de omissões do Poder Legislativo ou do Executivo.

Ressalte-se ser relevante o argumento do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que eventual decisão ativista da Corte ocorre para suprir omissões inconstitu-cionais dos demais poderes estatais, e que, por isso, visa restaurar a Constituição vilipendiada pela inaceitável inércia dos poderes da República, de modo que não faz nada além cumprir a sua missão constitucional, privile-giando o respeito incondicional pela autoridade da Lei Fundamental da República. Por essa razão compreende o Supremo não violar a separação dos poderes.

De fato, para o cumprimento dos preceitos cons-titucionais e para preservação e efetivação dos direitos fundamentais poderia ser tolerada essa ‘invasão’ do judi-ciário na esfera de atuação dos outros Poderes, notada-mente quando estes se omitem. Porém isso deve se dar de maneira controlada e adequada.

Nesse prisma, demonstrou-se que, para efetivação de direitos, o julgador pode se valer da ponderação, so-pesando todos os princípios constitucionais colidentes (avaliando a adequabilidade, necessidade e proporciona-lidade em sentido estrito da medida restritiva), colhen-do-se, ao final, a medida que seja menos desproporcional, isto é, de forma a restringir ao mínimo possível o direito cedente em relação aquele direito fundamental que no caso concreto se apresentar com maior peso e relevância. A técnica tem o objetivo de salvaguardar o núcleo essen-cial dos direitos colidentes e balizar melhor as decisões judiciais.

Assim, a fórmula proposta por Alexy se mostra como uma das formas de limitar (conter) o criacionismo exacer-

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bado do direito pelas decisões judiciais, quando coliden-tes direitos fundamentais, buscando preservar o núcleo essencial de tais direitos e garantir segurança jurídica.

Referências

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.

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O sentido sociológico de Ferdinand Lassalle e a soma dos fatores reais de poder na Constituição de 1988Antonio de Azevedo Maia35

Introdução

Ao analisarmos a Constituição de um Estado não po-demos nos limitar a uma única e exclusiva concepção, e sim pela junção de cada um dos sentidos apresentados a seguir como o sentido político de Constituição de Carl Schmitt distinguindo Constituição de leis constitucio-nais, temos Hans Kelsen com o sentido jurídico de Cons-tituição tratando sobre a teoria pura do direito, e a partir desse ponto de partida devemos refletir sobre a melhor concepção que compreende o conceito de Constituição.

Deste modo, o sentido sociológico de constituição trazido pelo filósofo Ferdinand Lassalle na sua obra a es-sência da Constituição, Lassalle vem apresentar de forma simples para intelectuais e operários em uma conferencia em Berlim no ano de 1862, o verdadeiro sentido da cons-tituição buscando abordar aspectos não formais da cons-tituição e sim mostrar aspectos sociais que realmente tra-duzem o sentido sociológico de constituição, mostrando assim a sua verdadeira essência onde uma Constituição traduz a história e as peculiaridades de cada povo, sendo a sua verdadeira identidade apenas transcritas em uma folha de papel.

35 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (bolsis-ta pela CAPES). Professor voluntário no Grupo de Estudos do Sistema Interameri-cano de Direitos Humanos. Advogado.

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Nesse contexto, trataremos de ideias conflitantes com a de Lassalle, como a da força normativa da Cons-tituição abordada por Konrad Hesse, indo de encontro com o seu pensamento de que a constituição nada mais é do que a soma dos fatores reais de poder, ou seja, anseios de diversas classes da sociedade trazida para o texto cons-titucional, trazendo assim uma distinção entre constitui-ção real e constituição escrita

E por fim, será mostrado que com o passar do tem-po ainda podemos trazer os fundamentos de Ferdinand Lassale para os dias atuais usando como exemplo a Cons-tituição Federal de 1988, mostrando a soma dos fatores reais de poder no momento de sua elaboração.

Ferdinand Lassale e a soma dos fatores reais de poder

Ferdinand Lassale é o grande responsável pela Cons-tituição no seu sentido sociológico. Nascido em 11 de abril de 1825 em Breslau na Polônia, foi um advogado e político socialista alemão sendo um nome muito impor-tante quando se trata da social democracia alemã. Um movimento operário baseado nas ideias de Karl Marx, com quem esteve junto em muitos momentos históricos, especialmente durante a Revolução Prussiana em 1848 onde se buscava a independência da classe trabalhadora das demais classes sociais.

Apesar de Lassalle ter sido Condenado, foi Marx quem deu continuidade e aprofundou os estudos sobre o capitalismo e seus efeitos sobre a classe operária. Entre-tanto apesar desse grande destaque de Karl Marx quan-do se trata de evolução economicista e sociologista, Fer-

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dinand Lassalle também conseguiu se destacar como o grande precursor de uma teoria crítica a ordem jurídica36.

Lassalle pensava que a humanidade estava regida por oportunidades fora do controle do individuo, pelo qual tornava necessário que o Estado se responsabilizasse pelo aumento da produção e distribuição a favor do bem estar social e para conseguir que os trabalhadores se benefi-ciassem pelo aumento da produtividade. Na sua obra “A essência da Constituição” o autor vem estudar os funda-mentos não formais, mas sim essências, observando as-pectos políticos e sociais existentes dentro de uma Consti-tuição, Lassale pergunta se existe alguma diferença entre a Lei e a Constituição, e logo em seguida afirma que ambas possuem a mesma essência. Partindo do pressuposto que a Constituição antes de tudo precisa ser uma Lei, neste caso uma Lei básica que se torna um verdadeiro fundamento para as demais leis que existam ou que vão existir.

Como foram tratadas acima, as ideias marxistas sempre estiveram presentes nas obras de Lassalle, como a ideia de que as constituições burguesas, ou seja, aquelas que trazem em seu bojo os interesses da sociedade são meramente formas de atrair capital, sendo esse o seu úni-co objetivo. Ferdinand Lassalle afirma taxativamente que a Constituição de um Estado é formada pela soma dos fatores reais de poder daquela sociedade transcrita para uma folha de papel. Se a Constituição de um Estado não trouxer consigo esses interesses pertencentes à socieda-de, ela não vai possuir qualquer relevância, não passando apenas de uma mera folha de papel, onde a normativida-

36 MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Schwarcs, 2016, p.9.

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de se submeteria simplesmente à realidade fática, ou seja, o contexto daquela sociedade no presente momento37.

Fatores reais de poder naquela época representada pela Monarquia que possuía o exército, a aristocracia, os grandes industriais, os banqueiros e também a pequena burguesia e a classe operária, ou seja, o povo38.

Neste sentido sociológico a Constituição deve ser compreendida como um fato social e não simplesmente como uma norma. O texto presente na Constituição seria o reflexo da realidade social daquele país, como Lassalle trás no seu livro, é a junção das forças sociais do país, ca-bendo a Constituição apenas reunir e sistematizar esses valores em um documento formal, passando assim a dei-xar de serem apenas fatores reais de poder e se tornando um verdadeiro direito, ou seja, passam a serem institui-ções ou fatores jurídicos. Documento esse que só se tor-naria eficaz se correspondesse de fato os valores daquela determinada sociedade39.

Para explicar sua visão sociológica, Lassale40 expu-nha, entre outras, a seguinte passagem:

Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar seu tronco um papel que diga: ‘Esta árvore é uma figueira’ Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, natu-ralmente. E embora conseguissem seus criados, vizi-

37 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição. São Paulo: Pillares, 2015.p.37.

38 CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 21. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2014.p.60.

39 ALEXANDRINO, Vicente Paulo Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.p.3.

40 Ibidem. p.6.

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nhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, cofirmassem a inscrição existente na árvore, a plan-ta continuaria sendo o que realmente é. O mesmo ocorre com a Constituição. De nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justificar pe-los fatores reais e efetivos de poder.

Para Ferdinand Lassalle convive em um país duas Constituições, uma chamada de Constituição real ou efe-tiva que corresponde à soma dos fatores reais de poder que representam aquela sociedade, e uma Constituição escrita, que apenas formaliza unindo esses fatores reais de poder e um único documento.

Assim para finalizar devemos destacar a concepção sociológica de Karl Marx que se aproxima com o pensa-mento sociológico de Ferdinand Lassale, que no qual a Constituição não passaria de um produto das relações de produção e que tem o intuito garantir os interesses da classe dominante41.

Konrad Hesse e a força normativa da Constituição

Konrad Hesse trás em sua obra “A força normativa da Constituição” uma nova problemática acerca da teoria adotada por Ferdinand Lassalle. Trazendo a ideia de um efeito determinante da constituição real não significa ou-tra coisa se não a própria negação jurídica.

Segundo Hesse a constituição reais que representa os valores da sociedade e a constituição jurídica cami-

41 NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. Manual de Teoria do Direito Constitucional. São Pau-lo: Atlas, 2012.p.5.

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nham de forma paralela e independente, não sofrendo qualquer interferência uma da outra.

A Constituição adquire a forca normativa a partir do momento em que realiza uma pretensão de eficácia, pro-curando impor ordem de acordo com a realidade política e social, mas também é determinante em relação a ela. Desse modo, a força condicionante da realidade e a nor-matividade da Constituição podem até ser diferenciadas, mas não definitivamente separadas ou confundidas.

A verdadeira força vital e a eficácia da Constituição estão ligadas a sua força espontânea e as tendências do-minantes do seu tempo, que possibilita o seu desenvolvi-mento e a sua ordenação objetiva42.

Vale ressaltar que a Constituição jurídica consegue converter-se ela mesma em força ativa se fizerem pre-sentes não só a vontade do poder, mas sim a vontade da Constituição, mesmo de forma limitada a Constituição contem uma força normativa típica capaz de ordenar e motivar a estrutura do estado e da própria sociedade por-que por si só reproduz os interesses políticos, econômi-cos e culturais de certa sociedade mostrando a verdadeira forma de ser do Estado durante a sua época. Essa supre-macia Constitucional, confere uma força própria que in-terfere na vida de cada individuo, possuindo aspectos na concepção jurídica formal e material fazendo a manuten-ção do estado e da ordem publica interna.43

A Constituição é o corpo de normas de um Estado, indicando seus valores, reunindo os elementos essenciais estabelecendo a verdadeira estrutura do Estado. A su-

42 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre, 1991.p.12.

43 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre, 1991.p.42.

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premacia normativa da Constituição, ao lado de outros elementos, confere-lhe força ativa para que sua função e tarefas próprias sejam realizadas na vida histórico-con-creta do povo. Pressupõe aspectos da concepção jurídica da Constituição no sentido formal e material ennvolven-do a manutenção do Estado e da ordem jurídica interna44.

Conforme o pensamento de Konrad Hesse, a consti-tuição jurídica não pode ser limitada a um retrato social, deve antes de tudo obedecer e acompanhar a permanen-te evolução social, permanecendo sempre a maior justiça social.

Deste modo a Constituição acompanhando essa constante evolução social, pode sofrer uma mutação na sua interpretação. Vale destacar o importante papel da jurisprudência como fator de readaptação dos textos constitucionais sem a necessidade de mudança na sua li-teralidade, visando sempre às transformações ocorridas na sociedade.

Entretanto a Constituição se converterá em uma real força ativa, quando se fizer presente na consciência dos principais responsáveis pela ordem social, não a vontade do poder, mas a real vontade da Constituição.

Fatores reais de poder e a Constituição de 1988

O sentido sociológico de Ferdinand Lassalle acerca dos fatores reais do poder em um país continua perfeita-mente aplicável. Na Constituição Federal de 1988, guar-

44 Ibidem.p.46.

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dada a devida diferença entre o Brasil atual e a Prússia de Lassalle pode-se observar esse fenômeno.

Antes de tudo devemos analisar o pensamento da so-ciedade como o resultado de um longo processo que teve como suporte as condições sociais e históricas do Capi-talismo na Europa. Já na América Latina, e em particular no Brasil, o processo de formação, organização e sistema-tização do pensamento sociológico obedeceu também às condições do desenvolvimento do capitalismo e a dinâ-mica própria da inserção do país nessa ordem capitalista mundial. Reflete, portanto a situação colonial, a herança cultural Jusuística e o lento processo de formação do Es-tado Nacional45.

Contudo vamos tratar do período histórico a partir dos anos de 1940 onde as ciências sociais foram de ma-neira geral responsável pela elaboração de teorias que denunciavam as desigualdades sociais, as relações de do-mínio e opressão, à exploração existente entre regiões, classes e países. Foram responsáveis também pelo desen-volvimento do pensamento crítico e revelador dos confli-tos sociais.

Em razão de tudo isso o golpe militar de 1964, im-plantando nova ditadura no Brasil, teve duras repercus-sões junto ao desenvolvimento das ciências sociais. O confronto entre a universidade, os estudantes e o regi-me militar chegou ao extremo em 1968, com passeatas, embates físicos, manifestações, ocupações de prédios, es-pancamento, prisões e mortes46.

45 COSTA, Cristina. Introdução a Ciência da Sociedade. São Paulo, Moderna, 2009.p.300.

46 NAPOLITANO, Marcos. História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo, Contexto, 2014.21.

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Com a decretação do Ato Institucional nº 5 em de-zembro de 1968, que implantou legalmente a ditadura no país os principais nomes da sociologia no país foram su-mariamente aposentados e impedidos de lecionar. Mui-tos foram exilados, outros se exilaram, passando a publi-car seus trabalhos no exterior.

Nos anos 1980, com a abertura política, surgem no-vos partidos e a vida política participativa recomeça a tomar fôlego. Muitos cientistas sociais decidem deixar a cátedra para ingressar na política propriamente dita. O partido dos trabalhadores foi o que mais se beneficiou com essa atuação direta dos cientistas. Florestan Ferna-des, Antonio Candido de Mello foram alguns nomes que engrossaram as fileiras políticas do PT. O Antropólogo Darcy Ribeiro seguiu o mesmo caminho filiado ao Partido Democrático Trabalhista, legenda que reivindicava o na-cionalismo e o populismo do antigo líder Getúlio Vargas.

Já o Partido do movimento Democrático por sua vez, originou-se do antigo MDB, partido esse que se opunha ao regime militar, ainda no período de sai ditadura e das eleições indiretas. Nessa época, o governo era representa-do pela Arena, num fechado esquema bipartidário. Ain-da nos anos 80 esse engajamento dos cientistas sociais na política formal e institucional houve uma abertura no campo de estudo fazendo surgir uma análise mais apro-fundada da condição humana feminina, do menor, das fa-velas, das artes, da violência urbana e rural, entre outras47.

A Constituição de 1988 ao ser elaborada observou os inúmeros anseios da sociedade no decorrer dos anos, lutas de diversas classes sociais como a luta da classe

47 NAPOLITANO, Marcos. História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo, Contexto, 2014.

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operária em 1987, que tiveram grande relevância contra o regime militar através de suas greves. A partir daquele momento a ditadura sofre o inicio de uma pressão que acarretaria logo em seguida a queda do regime48.

Em 1982 um fato importante deve ser destacado, como o a grande derrota do partido do Governo, o Bra-sil naquele momento completava 18 anos sob o coman-do dos militares, período qual a população só votou em cargos legislativos, mostrando a partir daquele momento uma grande fraqueza no regime tendo como sua única alternativa impedir as eleições diretas. Vale ressaltar que desde 1979 o País caminhava para o fim do regime ditato-rial com a Lei de Anistia e o fim do bipartidarismo, medi-das que fortaleceram a oposição.

Vale destacar também o crescimento da oposição de esquerda com conotações mais radicais lideradas pelo Partido dos Trabalhadores e pela Central única dos traba-lhadores com grande apoio de Comunidades Eclesiastes de base.

Em 1985 o Presidente Tancredo neves é eleito de forma indireta com apoio de políticos que meses antes davam sustentação ao governo militar de forma contra-ditória. A transição da ditadura para a democracia pre-conizava antes de tudo uma nova ordem constitucional. Devido à morte prematura de Tancredo neves que não conseguiu assumir o cargo de presidente da república passando naquele momento para seu vice-presidente José Sarney49.

48 REZENDE, Maria José de. A ditadura militar no Brasil. Londrina, Eduel, 2013.

49 REZENDE, Maria José de. A ditadura militar no Brasil. Londrina, Eduel, 2013.p.298.

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Devido a esse fato houve grandes divisões no seio da classe dominante naquele momento no país, tornando a nova Constituição uma ameaça aos grandes empresários, chamados por Ferdinand Lassale de burguesia.

Apesar da maioria conservadora, a Constituição foi marcada por uma profunda polarização social onde toda a energia acumulada nas lutas contra a ditadura será re-fletida com a bancada de esquerda.

Dentre grandes conquistas acerca da Constituição de 1988 podemos destacar a Dignidade da Pessoa huma-na como um valor fundamental constitucional. Devido a essa constante luta social refletida na sua elaboração aca-bou sendo batizada como “Constituição Cidadã”. Devido a essas inúmeras pressões da sociedade sob o Congres-so Constituinte surtiram seus efeitos na sua elaboração e nas conquistas sociais que foram positivadas no texto constitucional, onde regras do processo democrático passaram a ser reconhecidos na Constituição de 198850.

Dessa forma, nota-se que, embora os fatores reais do poder mudem de acordo com as mudanças ocorridas na sociedade, eles sempre existirão e sempre influenciarão o sistema normativo de um país.

Conclusão

Como pudemos observar de forma bastante sucinta, Lassalle palestrando para operários da Berlim Prussiana, seu entendimento é de que a Constituição real de um país é aquela resultante da soma dos fatores reais que condu-

50 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos 3. ed. São Paulo, Méto-do, 2016.p.165.

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zem aquele país. Esses fatores reais de poder como vimos é o interesse de cada classe social que compõe aquele Es-tado e por consequência possuem os seus direitos posi-tivados na Constituição através da Constituição escrita.

Por outro lado Konrad Hesse, diz que a Constituição é totalmente condicionada pela sua trajetória histórica e terá sua pretensão de eficácia somente se levar em conta esse fator estando totalmente ligada a correlação entre o ser e o dever ser.

A Constituição sempre estará revestida da sua força normativa quando conseguir obstar que as normas cons-titucionais se tornem questões de poder. A força norma-tiva segundo Hesse está estritamente ligada a possibilida-de de realização de conteúdos da Constituição. Quanto mais extensa for à ligação de seus preceitos normativos com os fatos históricos e refletir a sociedade, tendo como propósito conservar e desenvolver a construção jurídica e social presente, maior serão as chances de esses preceitos alcançarem a sua força normativa.

Entretanto, quando a Constituição ignora esses ele-mentos que representar a sociedade, como seus interes-ses políticos, econômicos e sociais do seu tempo, se vê incapaz de atingir a sua finalidade.

Portanto, a Constituição é a soma dos fatores reais de poder de uma sociedade segundo Lassale, e podendo sim, conforme apresentado acima, dependendo da força política dos grupos com menos expressão, planejar o seu ‘’dever ser’’ programaticamente como defende Konrad Hesse, e ter o seu caráter normativo.

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Um passeio com aletheia: normatividade, política, ca-pacidades institucionais e sinceridade constitucionalArmando Gurgel Maia51

Introdução

O Direito, como ciência humana e como cultura, tem seu habitat na sociedade, estando, portanto, sujei-to a reflexos do dinamismo e estrutura desta. Este fator é deveras crucial na compreensão do fenômeno jurídi-co, tanto sob o viés de conformação do próprio Direito, quanto à compreensão dos influxos de suas emanações normativas. A percepção destes aspectos ganha especial destaque na vivência hodierna da chamada sociedade de risco: globalizada, de eventos massificados, velozes ou instantâneos. De fato, esse dinamismo se reflete no Di-reito, que por sua vez responde ao fato social como variá-vel que também contribui com a equação de conforma-ção da sociedade.

A Teoria Pura do Direito de Kelsen desde há mui-to tempo destacou, no topo do ordenamento positivo, a Constituição. Mas nem por isso deixamos de vivenciar, até um passado próximo, verdadeira crise ou falência de normatividade constitucional. Com efeito, a Carta Polí-tica, era vista e sentida como nada muito além de uma bela exortação inaugural do ordenamento jurídico, uma utopia despida de eficácia jurídica e, quando muito, mero vetor interpretativo de intenções extremamente exage-

51 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Pro-motor de Justiça do Ministério Público do Estado do Amazonas.

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radas para a realidade vigente, pelo que deveria ser vista com cautelas mesmo para estes fins, no máximo dirigin-do a atividade do operador do Direito, não apenas com granus salis, mas com todos os temperos possíveis.

Nessa ambiência, exsurge o chamado constituciona-lismo da efetividade que, em apertada síntese, reconhe-cendo os avanços do que foi positivado no corpo de nossa Carta Magna de 1988, observa que o passo evolutivo, en-tão, passou a ser a necessidade de efetivação do Direito Constitucional, de reconhecimento verdadeiro de sua posição de cume, conferindo-lhe a normatividade dese-jada. A doutrina da efetividade, considerando o elemento fundante, de fundamentalidade do texto constitucional, reclama sua efetiva superioridade normativa, trilhando necessárias escalas de consideração sobre os entraves presentes neste caminho para a apoteose constitucional.

Torna-se presente, assim, a discussão acerca da in-sinceridade normativa ou falaciosidade da Constituição, dados seus arrojados projetos de transformação, com as mais profundas promessas da modernidade e o acolhi-mento de diversas demandas, em uma Carta analítica, di-rigente, compromissória e pluralista. Um enorme desafio constitucional estabeleceu-se em seu próprio corpo.

É inegável que o cenário doutrinário e a postura pretoriana do momento atual não discutem, mas antes reafirmam, a cada instante, a necessária normatividade e posição de destaque efetivo da Constituição. Seria gra-ve heresia jurídica, hoje, qualquer afirmativa que negue essa força normativa, sob viés jurídico. Persiste, contu-do, o debate acerca da efetividade social, da verdadeira concretização da Constituição, enfim, sobre as reais pos-sibilidades de cumprimento de seus anseios e promes-

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sas civilizatórias, em meio, ainda, a demandas globais ou transconstitucionais, com preocupações e exigências que não constam apenas do corpo da Lei Máxima, mas de pautas internacionais, como, por exemplo, os standards de Proteção Internacional dos Direitos Humanos, de uma forma geral, ou ainda questões ambientais.

Partindo dessas premissas, esta empreitada tem o escopo de discutir exatamente a sinceridade ou insin-ceridade do texto constitucional, refletindo sobre a real efetividade de suas normas tendo por base algumas con-siderações doutrinárias de desembarque mais recente no cenário jurídico brasileiro. A proposta, portanto, situa e traduz o epíteto, vindo a lume o convite ao leitor para um breve passeio, ao lado de Aletheia, a Deusa Grega da verdade ou descobrimento, como referência ao colóquio aqui proposto, acerca da sinceridade constitucional, sob os ares desta aurora irrompida com o constitucionalismo da efetividade. Espera-se que a caminhada seja agradável.

A feição da Constituição Federal de 1988

A obra provavelmente de maior fôlego sobre o cons-titucionalismo da efetividade é a tese de livre docência do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Roberto Barroso52, sob o título: O Direito Constitucional e a efeti-vidade de suas normas: limites e possibilidades da Cons-tituição brasileira (com primeira publicação em 1990).

Naquela oportunidade, o Ministro Barroso, em tó-pico específico sobre “sinceridade normativa”, inaugura

52 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira, 9. ed.

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suas considerações reverberando a célebre expressão que inicia a Constituição Norte Americana, “We the people”, para sacar, imediatamente, a verdade histórica: a Consti-tuição dos Estados Unidos da América não teve partici-pação popular em sua formulação, mas foi feita a portas fechadas, por pessoas de posse, heróis militares e advo-gados de renome, mantendo em seu cerne a escravidão e não admitindo o voto feminino, conquistas ulteriores na história constitucional daquela nação53.

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, é alvo de algumas críticas nesse sentido. Não são novidades depre-ciações relativas ao fato de que nossa Carta Magna nasceu de proposta de Emenda Constitucional à então vigente Constituição de 1969 (que, por sua vez, veio ao mundo jurídico sob o nome de Emenda Constitucional n° 01, à Constituição de 1967). Com efeito, a proposta de Emenda Constitucional n° 43, à Carta 1969, de feições ditatoriais, culminou na aprovação da Emenda Constitucional n° 26, de 27 de novembro de 1985, transformando o Congresso então eleito em Assembleia Constituinte.

Houve quem, por isso, chegasse a afirmar que esta-ríamos diante de verdadeiro poder constituinte derivado, o que consiste em evidente equívoco, por confundir me-canismos formais de manifestação do poder constituinte originário com suas características identificadoras. Com efeito, a Assembleia Nacional Constituinte, por meio da Emenda apontada, foi investida com verdadeiros pode-res constituintes originários, para fundação de uma nova ordem constitucional, em rompimento com a anterior, evidenciando seu caráter fundante, e não derivado.

53 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira, 9. ed., p. 59-60.

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Ainda que não tenha sido reflexo de uma assembleia eleita pelo povo tão somente para tal mister, a Consti-tuinte teve ampla legitimação popular, por refletir os an-seios da sociedade brasileira, conforme a história serve de testemunho, que nos conta a respeito da vontade de rompimento com o regime autoritário e de instauração de um regime democrático.

Por evidente, a crítica não é vazia, e não se olvida que o paradigma ideal seria a não confusão das funções le-gislativas ordinárias com as constituintes, uma vez que a Assembleia em questão cumulou funções legislativas or-dinárias com o extraordinário poder constituinte originá-rio. Porém, a crítica não é de todo procedente, na medida em que a Emenda n° 26, de convocação da constituinte, é de 27/11/1965, enquanto os deputados eleitos para o mis-ter o foram em 1986, com trabalhos que se iniciaram em 1o de fevereiro de 1987. De outra banda, de plano vieram críticas e discussões no bojo da própria constituinte acer-ca dos senadores eleitos ainda em 1982, portanto sem ter em vista a atividade constituinte. A questão, de todo jei-to, não merece maiores repercussões, na medida em que a própria Constituinte, em deliberação interna, decidiu pela participação de 23 senadores nestas condições.

Neste ponto, é importante destacar que nossa Cons-tituição foi extremamente aberta ao debate, sendo indis-cutível sua legitimação popular54. Foram apresentadas

54 Conforme expõem Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento:. “No que tange ao procedimento, o quadro político então delineado não comportava nem que se partisse de um anteprojeto elaborado fora da Assembleia Constitucional – como fora o da Comissão de Notáveis presidida por Afonso Arinos – nem que se atribuísse a um grupo parlamentar a função de redação de um projeto, para ulterior submissão ao plenário, como ocorrera na Constituinte de 1946. Quanto à primeira possibilidade, essa era vista como uma indevida usurpação da soberania da Constituinte para conduzir os seus trabalhos. Quanto à segunda, ela não era

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122 emendas populares, reunindo 12.277.323 assinaturas, das quais 83 foram aceitas ao trâmite por atenderem aos requisitos regimentais55. Ademais, as forças eram diluídas e os debates para a aprovação da atual constituição reve-laram as tensões políticas e a necessidade justamente de opções conciliatórias entre as vozes que se erguiam.

Não se olvida, ainda, a revelação de que algumas al-terações mais robustas ocorreram à margem da delibera-ção democrática, pela Comissão de Redação, depois da aprovação do projeto. Contudo, o texto constitucional foi novamente submetido ao plenário, sendo aprovado em 22 de setembro de 1988, bem como promulgado em 5

aceita, porque reduziria a participação daqueles que não integrassem a comissão eventualmente escolhida, desigualando o papel dos constituintes. […] Naquele quadro, a solução engendrada buscava integrar todos os constituintes na tare-fa de elaboração do novo texto magno. Previu-se a criação de 24 subcomissões temáticas, que elaborariam textos sobre os temas de sua competência e os en-tregariam a 8 comissões temáticas, cada uma congregando 3 subcomissões. As comissões redigiriam projetos sobre as suas áreas, os quais seriam, por sua vez, enviados a uma Comissão de Sistematização. Essa última elaboraria novo proje-to, a partir dos trabalhos das comissões temáticas, que seria submetido ao Plená-rio da constituinte, em dois turnos de votação. […] A composição das comissões e subcomissões decorria de indicações partidárias, devendo corresponder, na me-dida do possível, ao critério de proporcionalidade dos partidos. Uma das conse-quências decorrentes da fórmula adotada foi o caráter analítico da Constituição, já que, ao se criar uma subcomissão dedicada a tratar de determinado assunto, esse, naturalmente, se tornava objeto de disciplina constitucional. Ademais, a es-colha dos temas das subcomissões já importava na definição das questões que ingressariam na nova ordem constitucionalidade. […] Em seguida, iniciou-se o processo nas comissões temáticas, que se estendeu até 15 de junho de 1987. Foi mais uma fase de grandes disputas, com intensa participação social e atuação marcante na Constituinte dos mais variados lobbies. No total, foram recebidas naquela fase nada menos que 14.911 propostas de emenda. Os textos aprovados incorporavam muitos avanços na área dos direitos humanos e da organização es-tatal” (SOUZA NETO, Cláudio Pereira Souza de; SARMENTO, Daniel. Direito consti-tucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed., 1. reimpr. p. 162-164).

55 SOUZA NETO, Cláudio Pereira Souza de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucio-nal: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed., 1. reimpr. p. 165.

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de outubro de 1988, após mais de 20 meses de Assembleia Constituinte56.

É inegável, assim, que a nossa Constituição teve nascedouro legitimado em procedimento democrático, pautado em ampla deliberação democrática, refletida em teor compromissório, democrático, pluralista. Não se ad-voga seja perfeita. Mas que é resultado de Constituinte legítima, bem como que possui grandes avanços, regis-trando os anseios da sociedade nacional. Seu teor com-promissória encerra as tensões, como ao acolher o regi-me capitalista de produção e, paralelamente, abraçar os valores sociais do trabalho, a dignidade humana, a defesa do consumidor e o desenvolvimento sustentável, ou ain-da ao objetivar a construção de uma sociedade livra, justa e solidária. Isto para ficar apenas em singelos exemplos, mas de ecos em diversas direções. Pouparemos o leitor, ainda, dos exemplos que informam a natureza analítica de nossa Carta, deixando o registro apenas de que tal concepção é importante para as linhas que se seguem.

Enfim, à guisa de conclusão parcial, fica o reforço de que a Carta de 1988 converge diversas posições e direitos, muitas vezes em zonas de tensão, com normas de teor principiológico e programáticas, registrando verdadeiras promessas e sonhos a serem alcançados, tendo por ori-gem os anseios sociais, ainda que se possa observar even-tuais direitos das elites então dominantes também res-guardados, na medida em que também fizeram parte do jogo político constituinte.

56 SOUZA NETO, Cláudio Pereira Souza de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucio-nal: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed., 1. reimpr. p. 169.

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Frustrações Constitucionais? Realidade, normatividade e constituição dirigente

Tendo em mente as conclusões acerca da feição de-mocrática de nossa Constituição, é necessário discutir sua efetividade. Mas, é preciso que se diga, a trincheira feita pela doutrina da efetividade teve o papel de eliminar a discussão acerca da eficácia jurídica da Carta, de tal for-ma que, sem maiores conjecturações, é possível admitir a aclamada força normativa da Constituição.

De outra banda, resta a indagação acerca das razões de a mesma Constituição, com normatividade reconhe-cida como Direito, bem como de ampla legitimação de-mocrática, persistir com deficiências de efetividade. Se as causas são sociais, isto não anula o interesse jurídico da questão, principalmente no campo constitucional, haja vista a natureza deste ramo do Direito, pois, mais do que qualquer outro, tem imensa zona de intersecção e trocas com o campo metajurídico, por ser o tronco central da árvore jurídica. A assertiva ganha vigor quando temos em mente uma Constituição analítica, como brasileira.

Nessa linha, é evidente, ainda, que o Direito é ciência deontológica e que, portanto, mira modificar a ontologia, fazendo o dever ser constituir-se o ser. O caráter tridi-mensional do Direito resume bem o que agora se leva em consideração. Os fatos, ao mesmo tempo em que, mate-rialmente, são fonte do Direito, são objeto da moldagem pela normatividade, num processo contínuo.

Aliás, é essa normatividade da Constituição, vitória da doutrina da efetividade, uma das consideradas causas da inflação de emendas. A crença na força da Constitui-ção tem vitimado seu próprio corpo com uma série de re-

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mendos. É como se o Direito, com uma simples emenda constitucional, por sua importância, pudesse tudo re-solver, como num passe de mágica. Do mesmo mal so-fre o Direito Penal, como sabemos, com um simbolismo inadequado.

O que não se pode perder de vista é que o Direito tem origem na sociedade e é feito para atuar na mesma sociedade. Não pode, portanto, perder o foco da reali-dade. A Teoria da Constituição Dirigente, de Canotilho, sofreu abalos na própria concepção do eminente doutri-nador, ao consignar justamente que fatores da realidade e da filosofia constitucional influenciam no dirigismo, pelo que a Constituição dirigente deve ter por base pretensões mais condizentes com os limites materiais e jurídicos que a experiência demonstra influírem na efetivação das nor-mas constitucionais programáticas.

A grande constatação de que aqui se parte, simplifi-cando, com o uso da metáfora, é a de que a vida não deixa de ser algo bom pelo só fato de a morte existir e, ao fim e ao cabo, prevalecer sobre cada ser vivo. A morte não sig-nifica que querer ficar vivo é inútil, errado ou um desva-lor. A percepção, simplória, serve à didática. Com efeito, a não efetivação de diversas proposições constitucionais não significa que essas normas não possuem qualquer eficácia e ou que não merecem respaldo jurídico. Nem mesmo a alta síndrome de inefetividade dessas normas podem servir de argumento para o sustento de falta de sinceridade normativa do constituinte.

Para efeitos de raciocínio comparativo, o tipo de homicídio contínua sendo levado a sério, mesmo com o Brasil tendo níveis de assassinatos que superam as mortes de localidades em guerra. O mesmo se diga das mortes no

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trânsito. Ainda que, no exemplo, exista reafirmação do ordenamento pela aplicação da pena, não é irrelevante o fato da criminalidade renitente, ainda que perante a san-ção aplicada e das prevenções geral e específica da pena, que também não alcança todos os homicídios. De igual maneira, o Direito Internacional vigora, mesmo com o descumprimento de suas normas e, ainda, com a ausên-cia de um organismo superior capaz de fazer a normativi-dade pela via da coação de qualquer sanção. O caráter ho-rizontal e de cooperação deste ramo do Direito não afasta a conclusão de que o descumprimento da norma não sig-nifica sua irrelevância ou sua inidoneidade jurídica.

Aliás, esse descumprimento do Direito nem mesmo significa automaticamente restar desimportante o bem jurídico tutelado, sua indignidade para a mesma tutela.

Nessa antiga antítese entre realidade ou fatores reais de poder e normatividade envolvida nas doutrinas de Konrad Hesse e Ferdinand Lassalle encontramos, em verdade, um ambiente de tensão, onde é inegável que o Direito possui aptidão para moldar a realidade, mas também tem a amplitude desta faculdade limitada pela própria realidade. Assim, em ambientes de constituições semânticas, conforme classificação ontológica de Lo-wenstein, podemos encontrar ambiente propício à não percepção do Direito como realidade social e, assim, sua negativa como ente existente. Porém, em situações de constituições normativas ou mesmo nominais, encon-tramos a percepção do Direito.

Aliás, talvez o contexto de constituições nominais seja mais propício à percepção do Direito em sua verda-deira magnitude, na medida em que não reflete perfeita adesão à realidade social, como um continuum indesta-

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cável, porém como fenômeno da não aderência perfeita entre o ser e o dever ser, em fluxos e influxos de inter-ferência, tornando mais perceptível a fenomenologia do Direito. Nesta senda, verifica-se que a Constituição, seu dirigismo e normatividade somente estão em verdadei-ro xeque, realmente negativados, quando em situação de mera semântica.

A vontade de Constituição em nossa história é iden-tificada especialmente na suplantação do regime ditato-rial, com a instauração de uma democracia e proteção de direitos fundamentais em largo espectro. Essa vontade de Constituição, por sua vez, no que diz respeito à consecu-ção dos direitos fundamentais, especialmente os de ín-dole social, enfrenta, não há dúvidas, objeções de setores do capital que se sentem afetados, mas também não dei-xam de encontrar outras limitações de natureza material decorrentes da natureza das coisas e da natural evolução histórica.

A partir das lições de Virgílio Afonso da Silva, é possí-vel perceber que a questão não diz respeito centralmente à disputa ou fatores reais de poder. Com efeito, o Profes-sor do Largo do São Francisco57 expõe que boa parte dos requisitos materiais e jurídicos, sejam sociais, institucio-nais e legais, para a efetivação das liberdades públicas ou direitos civis e políticos já se encontram implementados, enquanto a assertiva não é verdadeira para os direitos sociais. Aliás, o eminente professor simplifica: “a criação das condições de exercício dos direitos sociais é, pura e simplesmente, mais cara”.

57 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed., 3. tir. p. 241.

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Com efeito, além do aparato já pertinente às liberda-des públicas, os direitos sociais demandam outras estru-turas, muitas vezes específicas para cada direito social, de forma que o investimento em liberdades públicas é nor-malmente aproveitável estruturalmente para a efetiva-ção de direitos sociais (polícia, administração da Justiça, procedimentos, etc), mas a recíproca não é verdadeira e, na verdade, responde a uma lógica pontual, com investi-mentos específicos e de menor intercâmbio, como entre saúde e educação.

O caráter normalmente coletivo dos direitos so-ciais é outro ponto a refletir na sua justiciabilidade. Ou melhor: a percepção de que a realização destes direitos é algo essencialmente coletivo, reflete até mesmo na sua concessão individual, como percebemos nas discussões sobre dispensação de medicamentos excepcionais58. Exis-tem direitos que, ainda que possuam faceta individual, são tratados adequadamente apenas de forma coletiva, quando se tem em mente ideais de justiça social e equi-dade nesta distribuição59.

58 A matéria encontra-se sob amplo debate no STF nos Recursos Especiais 566471 e 657718, ambos de relatoria do Ministro Marco Aurélio. O argumento diz respeito ao fato de que as políticas públicas devem, por sua vez, ter omo diretrizes a redu-ção das desigualdades econômicas e sociais. Porém, quando o Judiciário assume o papel e protagonista dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, por conhecerem seus direitos ou poderem arcar com os custos do processo judicial, o que mais serviria à classe média que aos obres. De toda forma, não traria reais critérios comparativos com os demais usuários para a solução equitativa do problema. Acesso aos processos, para acompanhamento dos resultados, pode ser feito pelo sítio na internet do Supremo Tribunal Federal.

59 Na lição de Daniel Sarmento: “A questão, contudo, é mais complexa em relação ao componente fático da reserva do possível, pois aqui o obstáculo não é jurídi-co ou ético, mas decorre da realidade econômica. Assinale-se, em primeiro lugar, que a reserva do possível fática não pode ser vista tomando em conta apenas a pretensão individual demandada em juízo. Fosse este o caso, o conceito seria pra-ticamente irrelevante, pois é altamente implausível que o atendimento de uma

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Existem direitos civis que, a depender da deman-da, também refletem a necessidade de ações positivas, a convergirem para o contexto estrutural necessário para a realização. É, como também aponta Virgílio Afonso da Silva, o caso de demandas que exijam maior presen-ça do Estado para garantir uma imprensa mais plural e independente, para tutelar o direito de informação e a liberdade de expressão. Ou, ainda, o pleito de constru-ção de novas delegacias, com os respectivos materiais de escritório e expediente, bem como contratação de novos policiais para nelas atuarem, como forma de garantir o direito de propriedade da vizinhança desassistida60.

Em ambos exemplos temos direitos civis, com neces-sária atuação positiva estatal, como comezinho na conse-cução de direitos sociais. Ainda que no primeiro exemplo os dispêndios possam ser bem reduzidos, no segundo ob-servamos medidas e dispêndios semelhantes aos demais direitos sociais, o que envolve, portanto, as mesmas di-ficuldades de implementação desta tipologia de direitos, especialmente pelo Poder Judiciário, relativamente à ges-tão e interferência na aplicação do orçamento público, com interferência em ambiente que é eminentemente de deliberação democrática.

única pessoa tenha algum impacto significativo no universo dos recursos dispo-níveis de um ente público. É uma exigência inexorável do princípio da igualdade que o Estado só conceda a uma pessoa aquilo que tenha condições de dar às ou-tras que estiverem em idêntica situação. Por isso, a reserva do possível fática deve ser compreendida como capacidade financeira do Estado de arcar com a univer-salização da prestação material postulada para todas as pessoas que estiverem nas mesmas condições daquele que a requereu” (SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 231).

60 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed., 3. tir. p. 242-244.

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Percebe-se, assim, que a normatividade do direito independe do descumprimento de suas normas, e que a consecução de direitos é mais dependente da realidade que se quer transformar do que propriamente de inter-ferências em termos de poder ou dos fatores reais de po-der, no dizer de Lassale. Pelo menos em nossa realidade a questão pode ser assim equacionada, caso, logicamente, dispensemos da equação o deficit de representatividade política e correlata corrupção. O protagonismo do po-der por determinados segmentos é um fator importante, não resta dúvida, ainda mais em uma democracia como a nossa, justamente por essa deturpação no e do resultado das urnas.

Contudo, ainda vivemos uma democracia jovem, em aperfeiçoamento evidente, onde a Constituição tem se mostrado com vocação normativa. Aliás, as transfor-mações culturais da sociedade estão em andamento, pela evidente atuação do Direito. A cultura do “jeitinho”, da corrupção irrestrita e disseminada vem tomando duros golpes e começando, cada vez mais, a ser alvo de into-lerância, transmudando inclusive este aspecto da repre-sentatividade deficitária, conforme temos observado na reação das próprias instituições constituídas à corrupção nos poderes públicos, como ultimamente notícia a mídia. Neste campo, o Judiciário e o Ministério Público têm de-monstrado sua vocação ao funcionamento das institui-ções democráticas.

Porém, é preciso, para encerramos este nosso pas-seio, uma breve lembrança sobre, justamente, as voca-ções institucionais envolvidas na realização das promes-sas constitucionais.

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Justiciabialidade e capacidades institucionais

A política possui campo próprio. Se é verdade que o Direito Constitucional tem por objeto o tratamento da política, também é óbvio que não cabe ao Direito em si, nem a seus operadores, determinarem os resultados a que se presta exatamente a política, porque política e Direito Constitucional não são sinônimos.

Este é um ponto crucial para uma atuação do Poder Judiciário para que não ocorra a subversão do esquema de separação de poderes. Esta concepção deve servir de baliza ao chamado ativismo judicial, que tem lugar espe-cial e é legitimado na democracia sempre e desde que ser-viente ao ideário que permeia a própria democracia, que é a igualdade substancial e multifacetária. A atividade judiciária em termos de implantação de políticas públi-cas não deve, portanto, substituir-se à ordinária atividade deliberativa onde cada um tem igual espaço para influir no destino comum. Excepcionalmente, quando a própria deliberação prévia é exigência normada e sobre a qual há mora injustificada, o Judiciário terá institucionalmente o dever de, após devidamente provocado, declarar a ilega-lidade da mora e, ainda, a possibilidade de sanear o des-compasso institucional.

Nesse trilhar, são salutares medidas mandamentais que, conscientes das capacidades institucionais próprias, colmatem os espaços de ilegalidade, instigando os po-deres a cumprirem com as expectativas sobre suas atua-ções, inclusive com a indicação, ao máximo possível, de medidas concretas que cada um deve a respeito de suas próprias capacidades, de maneira flexível, mas com pa-râmetros de supervisão de cumprimento da ordem jurí-

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dica. Dessa forma, o Judiciário terá lugar no quadro de uma democracia constitucional, atuando no arcabouço de freios, contrapesos dos três poderes.

É dizer, sempre que tivermos decisões políticas fun-damentais consignadas na Constituição, mas os poderes Executivo e Legislativo não se desincumbirem de seus papéis, abre-se eventual espaço de atuação do Poder Ju-diciário, mas ainda dentro de suas capacidades institu-cionais, para dar efetividade às normas e por cobro às funções institucionais deficientemente desempenhadas pelos outros poderes. Com efeito, cada Poder tem capa-cidades institucionais próprias. O Judiciário não possui formação interdisciplinar em seu corpo, sendo afeto emi-nentemente a questões jurídicas. Os demais poderes, por sua vez, afora a legitimação democrática e, portanto, vo-cação para a solução de questões onde a política é o cam-po próprio, possuem perfis que os legitimam ou tornam mais apropriados a questões diversas.

O esquema de separação de poderes, com o passar dos tempos, tem a necessidade de atender às demandas de sua época. O princípio da legalidade, por exemplo, não se reduz mais às feições do paradigma liberal clás-sico, onde a lei formal advinda do legislativo era o único meio de normação apto a especificar os comandos para harmonização da vida em sociedade. Este é o teor da lição do professor Alexandre Santos de Aragão ao defender que a legalidade consiste em um “mínimo de densidade nor-mativa que as leis devem possuir”61, não havendo ofensa a este princípio quando a norma oriunda do legislativo dei-xar espaços consistentes em “habilitações normativas cal-

61 ARAGÃO, Alexandre Santos de. A concepção pós-positivista do princípio da legali-dade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 236, p. 62.

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cadas em princípios e valores”62, como baliza de atuação para o Executivo. Com isso, o professor revela não apenas o nome do princípio da legalidade, mas seu sobrenome completo, ao vaticinar que denomina essa percepção de:

[...] legalidade formal axiológica, legalidade material leve ou, o que preferimos, simplesmente legalidade principiológica, no sentido de que as atribuições de poderes pela lei devem, por sucintas que sejam, ser pelo menos conexas com princípios que possibilitem o seu controle; princípios aqui considerados em seu sentido amplo, abrangendo finalidades, políticas pú-blicas, standards etc. Trata-se, portanto, de uma visão neo-positivista do Princípio da Legalidade resultado de um sistema constitucional tendencialmente prin-cipialista.

Percebe-se, com isso, que essa percepção do princí-pio da legalidade marca o campo de atuação dos poderes Executivo e Legislativo, não havendo que se falar em crise de legalidade na atuação das chamadas agências regula-doras, exatamente quando agem dentro dessas habilita-ções normativas, calcadas em princípios eleitos pelo le-gislador na esfera deliberativa própria.

De fato, é preciso reconhecer que o processo legis-lativo, pela sua própria natureza de necessária garantia da deliberação pertinente, demanda rito de certa duração e cuidados incompatíveis com um nível maior de celeri-dade. Além do mais, a atribuição a este Poder de cenário próprio ao debate e deliberação política ocorre na medida

62 Ibidem, loc. cit.

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necessária e para questões que devem estar submetidas eminentemente à legitimidade democrática. Não é por menos que existem institutos ou temperos à legalidade estrita já no próprio arcabouço constitucional, como as medidas provisórias para atendimento de questões rele-vantes e urgentes, com solução posteriormente submeti-da ao escrutínio do Legislativo. Ou ainda a possibilidade de redução e restabelecimento de alíquotas de tributos de feição parafiscal.

Por sua vez, os recursos humanos e a estruturação do Executivo para a aplicação da lei ao caso concreto, pro-vendo serviços públicos para o atendimento do interesse comunitário, revelam como mais atinente à capacida-de institucional deste Poder questões substancialmente técnicas ou de pronta resposta, infensas à deliberação de cada filigrana na esfera legislativa, sob pena de colapso dessa atividade.

O caminhar do processo administrativo é o campo adequado à solução de questões mais técnicas e instan-tâneas, dentro do quadro de valores e princípios eleitos pelo Legislativo. O Executivo é naturalmente disposto para soluções mais rápidas ou que estejam sujeitas a cons-tantes guinadas. É de sua índole a eleição de um homem como centro de competência justamente para, diferen-temente do corpo deliberativo e reflexivo do Legislativo, ter aptidão para, nas vicissitudes da concreção da norma, ter a legitimidade de atuar no interesse comunitário.

Da mesma forma, o Poder Judiciário não é cenário adequado para a solução de muitas questões por aspectos semelhantes, ou ainda porque essas mesmas questões se-riam mais adequadamente solucionadas com a legitima-ção democrática que lhe falta. Mas esta ausência justifica-

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-se na medida em que necessária à disposição das coisas para proteção do próprio sistema separação e de freios e contrapesos entre os poderes.

De fato, do Judiciário, por sua constituição, espe-ra-se maior alheamento a questões ou motivações polí-ticas, o que reflete não apenas seu deficit democrático, mas revela também o aspecto positivo deste na vocação para atuar de maneira contramajoritária, sempre que for necessário para produzir os acertos que o constituciona-lismo deve produzir na democracia, garantindo direitos fundamentais.

A referida representatividade subvertida no Legis-lativo e no Executivo geram uma série de omissões na realização de direitos fundamentais, levando à perene discussão sobre a justiciabilidade de políticas públicas, mormente quanto à desejável deliberação política a res-peito das chamadas escolhas trágicas, que versam sobre decisões acerca de alocação de recursos insuficientes ao trato do mínimo existencial.

Enfim, é preciso o equacionamento, na atenção aos direitos fundamentais, do respeito ao princípio democrá-tico e às capacidades institucionais, sob pena de naufrá-gio das melhores intenções e de troca de uma ilegalidade pela outra.

Nesta batida, temos emblemático exemplo de atua-ção que procura equacionar estas variáveis no enfrenta-mento pelo Supremo Tribunal Federal do problema do falido sistema carcerário nacional, sobre o qual já recaiu, inclusive, a pecha do chamado “estado inconstitucional

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de coisas”, expressão emprestada da jurisprudência e da doutrina colombianas63 64.

Em casos de evidente litígio estrutural, onde há massificada violação de direitos humanos, omissão ins-titucional complexa e necessidade de soluções de mesma latitude, envolvendo atuação de vários órgãos até então omitida, com possibilidade de multiplicação de deman-das individuais míopes para a indispensável solução es-trutural do problema, verifica-se o estado inconstitucio-nal de coisas e torna-se possível a atuação judiciária de maior protagonismo, porém sem arrogância institucio-nal ou sem assunção de qualquer supremacia institucio-nal, mas com comandos flexíveis, sob supervisão judicial quanto ao alcance de parâmetros e do desincumbimento de competências necessárias e adequadas a cada capaci-dade institucional, em solução ordeira e dentro dos limi-tes e atribuições constitucionalmente impostos65.

No Recurso Extraordinário 641320-RS, o Supremo Tribunal Federal proferiu sentença manipulativa, ao determinar a progressão ou substituição do regime de cumprimento de pena, especialmente o aberto, por pe-nas restritivas de direito, caso não seja possível a moni-toração eletrônica com recolhimento domiciliar durante folgas do trabalho, ou ainda o cumprimento do restante

63 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental-ADPF 347 MC-DF, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELE-TRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.

64 Recurso Extraordinário-RE 641320-RS, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 11/05/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-159 DIVULG 29-07-2016 PUBLIC 01-08-2016.

65 Conforme: CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. O estado de coisas inconsti-tucional e o litígio estrutural. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. [S.L]: 01 set 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-esta-do-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural#author.

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da pena com o estudo, bem como a saída antecipada dos que já se encontram na ponta de saída do sistema aberto. Tudo como forma de abrir vagas para novos ingressos no sistema, por meio da evolução contínuo dos reeducan-dos pelo sistema progressivo do cumprimento de penas, numa ciranda de abertura de vagas sucessivas entre os regimes. Dessa forma, o Judiciário, dentro de suas capa-cidades institucionais, promoveu certo alívio no sistema carcerário.

Paralelamente, o Judiciário determinou a realização de estudos pelo CNJ e criação de cadastro com os ree-ducandos, possibilitando a aplicação justa dos critérios acima dispostos. Além disso, houve a determinação para que o CNJ realizasse estudos acerca da implantação de outros programas para reeducandos na ponta de saída do sistema, bem como relativos à criação de vagas nos regi-mes semiaberto e aberto, com respectivos projetos. Ain-da, concomitantemente, foi realizado apelo ao legislador, para que efetivasse novo plano legislativo para a execução penal, levando em conta a realidade concreta e o respeito aos direitos fundamentais, apontando diversos parâme-tros a serem considerados.

Verifica-se, assim, que o Judiciário deixou aos legis-ladores (Executivo e Legislativo), a tarefa de enfrentar o estado inconstitucional de coisas, ao mesmo tempo em que se mune de estudos e relatórios para a supervisão da decisão flexível e, ainda, dentro de sua própria capacida-de institucional, proferiu decisão manipulativa para ali-viar a pressão do sistema carcerário.

Além do mais, como citado já ao norte, no caso da dispensação de medicamentos, nos recursos extraordi-nários citados, ainda em julgamento, os ministros que já

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votaram têm se manifestado pela necessidade de consi-deração das capacidades institucionais na solução estru-tural da questão.

Conclusão

Chegando ao fim deste passeio, percebe-se que, na verdade, o constituinte não foi insincero. Com a Consti-tuição de 1988, temos a certidão de nascimento de uma nova democracia. Como todo jovem, o caminhar de nosso ainda recém nascido Estado Democrático de Direito pre-cisou e precisa de amadurecimento de suas instituições e de experiência no enfrentamento dos problemas que surgem no cumprimento de suas normas programáticas.

Natural, portanto, que mesmo com as instituições em funcionamento, sejam encontradas dificuldades na prática da implantação dos direitos fundamentais e obje-tivos traçados. Atualmente, contudo, urge compreender a realidade e os influxos recíprocos entre esta e o Direi-to, a partir dos problemas que se põem e das capacidades institucionais dos operadores do Direito envolvidos, seja para o respeito das disposições presentes no ordenamen-to jurídico na transposição destes obstáculos, seja para que a democracia não seja burlada e, ainda, para que as possibilidades de êxito sejam multiplicadas pelo simples respeito da racionalidade das coisas.

Enfim, Aletheia se despede nos alentando com o desvelamento de que as propostas do constituinte eram sinceras, mas que a verdade é que, para o alcance deses aportes civilizatórios, não podemos cobrir a verdade so-bre a qual deve o Direito atuar, que é a realidade do mun-

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do dos fatos. Conforme conhecida lição do jurista francês Georges Ripert, “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”.

Referências

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraor-dinário-RE 641320/RS – Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Tribunal Pleno, julgado em 11/05/2016, Dje-159, divulgado em 29-07-2016, publica-do em 01-08-2016. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp >. Acesso em: 19 nov. 2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumpri-mento de Preceito Fundamental-ADPF 347 MC-DF – Dis-trito Federal. Relator(a): Min. Marco Aurélio. Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, Processo Eletrônico DJe-031 Divulgado 18-02-2016 Publicado 19-02-2016. Dispo-nível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp >. Acesso em: 19 nov. 2016.BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da

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Constituição brasileira. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: con-teúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 231

SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: con-teúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. 3. tir. São Pau-lo: Malheiros Editores, 2014.

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de tra-balho. 2. ed., 1. reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

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Os desafios do Ensino Jurídico frente à Hermenêutica Constitucional atualEid Badr66

Introdução

As constantes mudanças de rumo da jurisprudência e a politização das decisões do SupremoTribunal Federal, a ação expansionista claramente verificada do Poder Ju-ciário, nas suas diversas instâncias, levando a constantes conflitos entre os Poderes da República, são alguns ele-mentos da realidade que presentam um verdadeiro de-safio ao ensino jurídico no estudo e desenvolvimento da hermenêutica constitucional, tanto na graduação como na pós-graduação, a exigir da Ciência do Direito e dos do-centes um grande esforço para a análise dessa realidade atual dentro de parâmetros científicos.

Definição de Hermenêutica Constitucional

A hermenêutica não é uma disciplina acessória que auxilia o jurista na interpretação de textos de leis, dou-trinas ou jurisprudências. A hermenêutica é disciplina estruturante. Na verdade, o elemento compreensivo-in-terpretativo é fundamental em toda experiência jurídica.

66 Coordenador do Programa de Pós-Graduação “Stricto Sensu” em Direito Ambien-tal da Universidade do Estado do Amazonas. Titular da disciplina Hermenêutica Constitucional do Curso de Mestrado em Direito Ambiental da referida Universi-dade. Advogado.

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Não existe nenhuma dimensão do Direito que prescinda da interpretação. Toda interpretação, por sua vez, é con-dicionada pelo mergulho que o próprio intérprete faz em sua autocompreensão.

Ela apresenta uma tendência universalizante, por-tanto, a qualificadora “constitucional” empregada aqui tem finalidade meramente pedagógica, objetivando si-tuar claramente o seu objeto de estudo, qual seja a norma constitucional.

Definição das diretrizes constitucionais

Quando tartamos de ensino ou da liberdade pedagógi-ca, temos que nos reportar a dois parâmetros normativos:

a) para a graduação e pós-graduação o artigo 207 da Cons-tituição Federal;

b) a Portaria nº 9, de 29 de setembro de 2004, do Conse-lho Nacional de Educação que institui as diretrizes curri-culares nacionais do curso de graduação em direito, cuja competência para tal decorre do parágrafo 1º do artigo 9º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), a qual completa 20 anos de existência no dia 20 de dezembro de 2016, lei, esta, que decorre da com-petência legislativa da União estabelecida pelo artigo 22, XXIV, da Constituição Federal.

Nesse sentido, cumpre registrar o que estabelece o artigo 207 da Constituição:

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Art. 207. As universidades gozam de autonomia di-dático-científica, administrativa e de gestão financei-ra e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indis-sociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

Portanto, entre diversas liberdades, assegura a Cons-tituição a liberdade didático-pedagógica às Universida-des, razão pela qual é livre a possibilidade de construção dos projetos pedagógicos de seus cursos e a forma de ensinar, respeitados os valores constitucionais, especial-mente, os princípios gerais do ensino elencados no art. 206 do texto político fundamental.

Enganam-se aqueles que pregam que a liberdade pedagógica fica restrita às universidades. Entendo, que essa liberdade se aplica aos demais estabelecimentos de ensino, nos quatro modelos de organização acadêmica admitidos: faculdade, centro universitário, universidade e institutos de pesquisa. Não existe justificativa jurídica para que não seja assim.

Dessa compreensão, como avaliador do MEC/INEp e da OAB há 16 anos, entendo que possibilidade de in-terferência do avaliador nessa seara é mínima, desde que observadas as diretrizes curriculares nacionais e os princípios constitucionais do ensino, não pode o avalia-dor substituir a opção didático-pedagógica adotada pela IES por sua compreensão ou visão pessoal a respeito. O mesmo vale para a CAPES no seu papel de controle dos cursos de pós-graduação “stricto sensu”, ressalvadas as recomendações – não imposições – decorrentes das ex-periênciais pedagógicas dos avaliadores e das conclusões dos diversos fóruns da referida autarquia federal.

No que tange às diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em direito, os conteúdos obrigatórios

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nos três eixos de formação não fazem qualquer menção à hermenêutica. Nos projetos pedagógicos dos cursos de direito, quando presente, normalmente surge, com maior ou menor espaço, como integrante do conteúdo de direito constitucional, raros são os casos em que lhe é reservado maior espaço, por vezes, como disciplina pró-pria ou como objeto de atenção no estágio curricular, no âmbito do Núcleo de Prática Jurídica.

As diretrizes curriculares, apesar de não fazerem menção expressa à hermenêutica, exigem, em seu artigo 3º, que o graduando possua adequada argumentação, in-terpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais aliada a uma “postura crítica e reflexiva” sobre a Ciência do Direito. O que a meu ver é um perfil difícil, para não dizer impossível, de se alcançar sem uma atenção especial à hermenêutica jurídica. Conteúdo, este, que deve exigir atenção especial dos formuladores dos projetos pedagó-gicos dos cursos jurídicos, e daqueles responsáveis pela sua implementação, notadamente, os integrantes do Nú-cleo Docente Estruturante - NDE, de existência obrigató-ria em todos os cursos.

A ausência ou presença precária da hermenêutica, em especial, a constitucional, é uma realidade infeliz-mente ainda dos cursos de graduação em direito, redun-dando em bacharéis em Direito e futuros profissionais das diversas carreiras jurídicas (advogados, magistrados, membros do Ministério Público, etc.), bem como docen-tes de graduação e pós-graduação e alunos desse elevado nível de ensino sem as características reclamadas pelas diretrizes curriculares nacionais, dentre elas, uma postu-ra crítica e reflexiva sobre a Ciência do Direito.

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Nos anos de 2013 a 2015, o Conselho Federal da OAB, por meio de sua Comissão Nacional de Educação Jurídi-ca, a qual tive a honra de presidir, contando com a ajuda do Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais, Prof. Dr. José Ge-raldo de Souza Junior e Prof. Dr. João Maurício Adeodato e diversos outros estudiosos do ensino jurídico, provo-cou o Ministério da Educação para o debate com vistas ao aprimoramento do marco regulatório do ensino jurídico. Firmado um acordo de cooperação técnica entre a OAB e o MEC e contando com o reforço de outras institui-ções como a ABEDI, Ministério da Justiça, Associação das Mantenedoras das Instituições Privadas de Ensino Supe-rior, etc, cuja tarefa deveria se esgotar no prazo de três meses, conforme cronograma inicial estabelecido unila-teralmente pelo MEC.

A Comissão Nacional de Educação Jurídica da OAB entendeu que o referido cronograma era demasiadamen-te restrito para uma ampla discussão sobre o ensino jurí-dico e o seu marco regulatório. No âmbito do MEC pro-pôs a realização de audiências públicas como forma de democratizar o debate, a proposta foi rejeitada pelos par-ceiros de debate. Assim, com o amplo apoio do Conselho Federal e as Seccionais da OAB, a Comissão Nacional de Educação Jurídica assumiu a responsabilidade de realizar audiências públicas em todas as unidades da Federação, para discussão do aprimoramento do marco regulatório do ensino jurídico.

A OAB, de junho a setembro de 2013, realizou, ao todo, 32 audiências públicas, com ampla participação de integrantes de todas as carreiras jurídicas, IES, Associa-ções de docentes, discentes, alunos e professores, com mais de 4 mil presentes.

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Não parecia ser razoável discutir o essencial da vida dos cursos jurídicos brasileiros entre quatro paredes no MEC e no curtíssimo período de três meses.

O resultado das audiências públicas contribuiu para elaboração da proposta de aperfeiçoamento do marco regulatório do ensino jurídico da Comissão Nacional de Educação Jurídica, que após discussão e aprovação quase na sua totalidade no âmbito do MEC, somada às propos-tas das outras instituições e do próprio MEC, foi remeti-da para deliberação do Conselho Nacional de Educação.

Espera-se que, caso aprovada no CNE, que a mesma venha contribuir para aprimoramento do perfil deseja-do do egresso dos cursos de graduação em direito, sendo este mais atualizado com as demandas sociais e no uso de instrumentais da tecnologia e com uma postura crítica e reflexiva sobre a Ciência do Direito, ainda que sua con-clusão tenha sido um tanto precipitada pela constante pressão do MEC pela sua finalização.

Não há nada nos dias de hoje que possa justificar a pouca atenção que a hermenêutica constitucional possa ter nos cursos jurídicos de graduação e pós-graduação. Afinal, faz 17 anos que Lênio Streck lançou a sua obra Her-menêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêuti-ca da construção do Direito, onde reclamava atenção dos estudiosos do Direito ao amesquinhado papel conferido à hermenêutica jurídica como instrumental ou assessó-rio na atividade cotidiana do Direito, competindo-lhe a tarefa de subsidiar o jurista na atividade de interpretação dos textos jurídicos na perspectiva de atingir o significa-do correto segundo uma determinada finalidade que po-deria ser ora a vontade da lei ora a vontade do legislador.

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Streck, na citada obra, alerta sobre a indiferença do Direito brasileiro às duas grandes reviravoltas que atin-giram a filosofia durante o século XX: a) a virada linguís-tica, segundo a qual não há acesso direto aos objetos. O conhecimento das coisas do mundo depende, necessaria-mente, da mediação linguística; b) E a reviravolta onto-lógica operada por Heidegger e que questiona as bases da relação sujeito-objeto a partir da descoberta do cará-ter prévio da compreensão, ao demonstrar que a herme-nêutica representa um existencial do ser humano que é condenado, em sua atividade cotidiana, a interpretar o sentido do mundo que o circunda e, ao mesmo tempo, o sentido de seu próprio ser67.

Problema das Decisões Judiciais

Se algo realmente mudou desde 1999, foi que a fragi-lidade denunciada por Streck, em sua citada obra, do Po-der Judiciário frente aos Poderes Executivo e Legislativo, já não é mais a realidade no cenário nacional, pelo menos do ponto de vista político.

A ascensão do Poder Judiciário, na visão de Luis Ro-berto Barroso, ocorre:

Em primeiro lugar, pela redescoberta da cidadania e pela conscientização das pessoas em relação aos pró-prios direitos. Em seguida, pela circunstância de ha-ver o texto constitucional criado novos direitos, in-troduzido novas ações e ampliado a legitimação ativa

67 Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1999, p. 47 e 48.

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para tutela de interesses, mediante representação ou substituição processual. Nesse ambiente, juízes e tri-bunais passaram a desempenhar um papel simbólico importante no imaginário coletivo. Isso conduz a um último desenvolvimento de natureza política, que é considerado no parágrafo abaixo.Uma das instigantes novidades do Brasil dos últimos anos foi a virtuosa ascensão institucional do Poder Judiciário. Recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixa-ram de ser um departamento técnico especializado e passaram a desempenhar um papel político, dividin-do espaço com o Legislativo e o Executivo. Tal cir-cunstância acarretou uma modificação substantiva na relação da sociedade com as instituições judiciais, impondo reformas estruturais e suscitando questões complexas acerca da extensão de seus poderes68.

No nosso sentir, o fortalecimento político do Poder Judiciário decorre especialmente por outras razões:

a) primeira, pelo descompasso entre as promessas consti-tucionais e a sua possobilidade de realização, como apon-tou Jose Luis Bolzan de Morais69, o que acaba por gerar frustrações ao processo de judicialização da política, pois na medida em que não são cumpridas as promessas cons-titucionais, estas são levadas ao Judiciário para que este

68 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administra-tivo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 36, jan. 2015. Disponível em: <http://bibliotecadigi-tal.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618/44695>. Acesso em: 09 Dez. 2016.

69 O direito à saúde e os “limites” do estado social: medicamentos, políticas públi-cas e judicialização, p. 257.

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diga acerca de seu conteúdo e, mais, na medida do possí-vel, viabilize a sua realização;

b) segunda, o fortalecimento do Poder Judiciário se dá mais pelo distanciamento entre a classe política, enten-da-se os Poderes Executivo e Legislativo, e a população, evidenciando a crise do sistema representativo, com evi-dente descrédito da classe política no Brasil.

Os fatos mais recentes revelam as duas razões apon-tadas de forma inquestionável, como por exemplo, a cres-cente judicialização das políticas públicas e interferências do Poder Judiciário nas esferas dos demais Poderes, em clara mudança de postura, bem como os sinais de crise do sistema representativo a partir das manifestações públi-cas contra a corrupção, do processo de impedimento da presidente da República, do elevado nível de abstenção nas últimas eleições municipais e das pesquisas de opi-nião pública sobre a classe política. Neste cenário, em que a classe política deixa de atender os legítimos interesses da cidadania, abrem-se as portas para o Poder Judiciário atuar de forma expansionista.

No atual horizonte jurídico-político, aumenta a importância da hermenêutica constitucional, pois com atuação expansiva do Poder Judiciário distorções acabam por ocorrer, a ponto de ser anunciada formalmente no julgamento do AgReg em ERESP nº 279.889-AL, o STJ, por um Ministro, a menor importância da doutrina jurí-dica em prol da vontade do juiz, ao utilizar pérolas como Não me importa o que pensam os doutrinadores, ou decido, porém, conforme minha consciência, ou ainda os senhores Ministros decidem assim, porque pensam assim, e por fim e o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa

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como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribu-nal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele.

Lênio Streck não deixou passar em albis tal julgado, dedicando-lhe um artigo publicado no CONJUR em 5 de janeiro 2006, sob o título “crise de paradigmas. devemos nos importar sim, com o que diz a doutrina”70, no qual frisa:

Na verdade, o ato interpretativo não é produto nem da objetividade plenipotenciária do texto e tampou-co de uma atitude solipsista do intérprete: o paradig-ma do Estado Democrático de Direito está assentado na intersubjetividade.Repetindo: o Direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja (...). A doutrina deve doutrinar, sim. Esse é o seu papel. Aliás, não fosse assim, o que fa-ríamos com as quase mil faculdades de Direito, os milhares de professores e os milhares de livros pro-duzidos anualmente? E mais: não fosse assim, o que faríamos com o parlamento, que aprova as leis? Se os juízes (do STJ) podem (...) ‘dizer o que querem’ sobre o sentido das leis, para que necessitamos de leis? Para que a intermediação da lei?

É necessária cautela, uma vez que, cada vez mais, vem-se observando a discricionariedade alcançando o status de princípio nos Tribunais, o que, por si só, con-figura um risco ao Estado Democrático de Direito. Em face deste quadro, perde-se a clareza acerca de onde e como se aplicam a tradição, a coerência e a integridade

70 Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2006-jan-05/devemos_importar_sim_doutrina>.

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do direito, Lênio Streck utiliza a expressão “solipsismo judicial”71, pela qual é apontado o protagonismo judicial tendo como consequência a prática de discricionarieda-des, o que acaba de resultar em arbitrariedades por parte do Poder Judiciário, da decisão “conforme a consciência”.

Lembra Streck que:

na hermenêutica de corte gadameriano, afirma-se na interpretação um caráter criativo/produtivo. Mas, atenção: essa afirmação de Gadamer não pode ser lida como uma supervalorização do papel da sub-jetividade do intérprete ou como qualquer espécie de relativismo. Aliás, essa é uma leitura comumen-te feita – equivocadamente – da obra de Gadamer. A hermenêutica – como já repetido ad nauseam - é antirrelativista!72.

O Brasil em período recente experimentou uma dita-dura do Poder Executivo, a qual inicialmente contou com expressivo apoio da sociedade e de diversas instituições, por atender, dentre outras, a demandas pelo fim da cor-rupção e do perigo do comunismo, espera-se que o Poder Judiciário, em clara ação expansionista, verificada nos úl-timos anos, não venha ganhar uma feição ditatorial em sua atuação, a partir de exacerbadas posições no ato de decidir “conforme sua consciência” e discricionariamen-te, em flagrante burla ao Estado Democrático de Direito, face ao possível déficit de legitimidade das suas decisões.

71 O que é isto: decido conforme a consciência? Porto Alegre. Ed. Livraria do Advoga-do. 2013, p. 27.

72 Lições de crítica hermenêutica do direito. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2014, p. 329.

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Conclusão

São temas recorrentes hoje de interesse da herme-nêutica: a atuação do STF com um papel político no sen-tido ideológico e moral, com possível rompimento da di-ferenciação entre direito, política e moral; judicialização da atividade política; o papel da ideologia na tarefa inte-gradora das normas jurídicas; limites do ato de decisão judicial na complementação das lacunas e a função cria-dora do magistrado; a relativização de garantias constitu-cionais processuais, etc.

No senário que se apresenta, cresce extraordinaria-mente em importância o papel da hermenêutica cons-titucional e da doutrina jurídica pátria, o qual deve ser sensível no ensino jurídico, tanto na graduação como na pós-graduação em Direito, como forma de evitar a for-mação de futuras gerações de bacharéis, mestres, douto-res e doutrinadores reduzidos ao papel de meros colecio-nadores de jurisprudências, formadas a partir da vontade discricionária dos julgadores.

Referências

BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e cons-titucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil).  Revista de Direito Adminis-trativo, Rio de Janeiro, v. 240, jan. 2015. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/arti-cle/view/43618/44695>. Acesso em: 09 Dez. 2016.

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BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis; NASCIMENTO, Valé-ria Ribas do. O direito à saúde e os “limites” do estado social: medicamentos, políticas públicas e judicialização, p. 257. Disponível em: <http://siaiap32.univali.br/seer/in-dex.php/nej/article/view/467/409>. Acesso em: 09 Dez. 2016.

STRECK, Lênio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Por-to Alegre: Livraria do advogado, 1999.

_____, Devemos nos importar, sim, com o que a dou-trina diz. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2006-jan-05/devemos_importar_sim_doutrina>. Acesso em: 09, Dez. 2016.

_____, Lições de crítica hermenêutica do direito. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2014.

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A territorialidade indígena frente ao direito à pro-priedade privada de não indígenas: uma abordagem hermenêutica da jurisprudência da corte interamerica-na de Direitos HumanosDandara Viégas Dantas73

Introdução

Apesar do novo paradigma constitucional brasileiro concedido aos territórios indígenas, paira ainda certa in-compreensão sobre o tema da natureza desse território e suas repercussões jurídicas adjacentes.

A proteção ao direito de propriedade dos povos in-dígenas sobre seus territórios ancestrais goza de especial importância no bojo da Convenção Americana de Direi-tos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e na Con-venção n.º 169, da Organização Internacional do Traba-lho, tendo ambas entrado em vigor no Brasil em 25 de setembro de 1992 e 25 de julho de 2003, respectivamente.

A temática da territorialidade indígena também é foco de diversos embates na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CTIDH), órgão este que o Brasil re-conheceu a jurisdição desde 10 de dezembro de 1998, quando do depósito da Declaração de aceitação da com-petência obrigatória da CTIDH junto à Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos.

Além disso, constitui-se como o cerne de várias questões, porque a territorialidade indígena vai além do

73 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Procu-radora Federal.

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mero conceito de propriedade clássica e individualista se-dimentado no âmago da sociedade ocidental, isso porque o gozo daquela primeira implica não somente uma pro-teção a uma unidade econômica, mas também a proteção dos direitos humanos de uma coletividade que pauta seu desenvolvimento econômico, social e cultural em relação com a terra.

Para os indígenas a terra constitui uma condição de segurança individual e união do grupo, pois promove a igualdade entre seus membros, não sendo uma mera re-lação de posse e produção, mas sim um elemento mate-rial e espiritual de que devem gozar plenamente, inclusi-ve para preservar seu legado cultural e transmiti-lo para as gerações futuras.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 consagrou o entendimento de que o direito dos povos indígenas às suas terras tradicionalmente ocupadas seria originário, ou seja, a matriz constitucional não concede, muito me-nos outorga esses direitos. Por outro lado, ela reconhece a validade de um direito anterior até mesmo à criação do Estado.

O país tem vivenciado um conflito de interesses no que concerne a questões territoriais entre indígenas e não indígenas, no tocante ao reconhecimento e demarcação dessas terras, a exemplo do emblemático julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do caso Raposa Serra do Sol, e da atual lide que se encontra na Corte Interamericana de Direitos Humanos envolvendo a Tribo Xucuru de Pes-queira, em Pernambuco, e o Estado Brasileiro.

Sendo assim, o questionamento que o presente estu-do visa abordar é se há prevalência entre o direito à ter-ritorialidade indígena sobre o direito de propriedade de

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não indígenas na ótica da Corte Interamericana de Direi-tos Humanos?

No âmbito da Constituição Federal de 1988, o direi-to à territorialidade dos indígenas foi cristalizado no Art. 231, que reconhece aos índios sua organização social, cos-tumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos origi-nários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, compe-tindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Além disso, no Art. 5º, caput e XXIII, também restou garantido o direito de propriedade.

Como se vê, vislumbra-se um conflito entre direitos fundamentais, titularizados tanto pelos indígenas, de um lado, como pelos particulares, de outro, ambos de enver-gadura constitucional.

Diante do latente caráter axiológico das normas de direitos fundamentais, somado à sua posição hierárqui-ca no ordenamento jurídico, essa gama de direitos geral-mente é interpretada enquanto princípio, e mais especifi-camente no caso dos conflitos territoriais entre indígenas e não indígenas, está-se diante da colisão entre a conser-vação da diversidade cultural dos ameríndios e a proteção da propriedade dos particulares.

No intento de responder à indagação proposta, bus-car-se-á analisar a resposta fornecida pela Corte Inte-ramericana de Direitos Humanos, sob uma perspectiva hermenêutica, no tocante à tensão entre direitos funda-mentiais.

Para tanto, serão abordados adiante os temas rela-tivos à diversidade cultural, envolvendo o direito à ter-ritorialidade indígena, frente ao direito de propriedade privada, a fim de entender os direitos fundamentais que se encontram tensionados.

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Em seguida, será abordada a questão hermenêutica, na perspectiva de Robert Alexy, na tentativa de solucio-nar o problema posto e, por fim, ver-se-á qual a resposta conferida pela Corte Interamericana de Direitos Huma-nos para a problemática em questão.

Dos Direitos Fundamentais em conflito

Nessa parte do estudo, serão analisados os direitos fundamentais em tensão, antes de adentrar-se na abor-dagem hermenêutica.

Direito à Diversidade Cultural com enfoque na vertente da territorialidade

Segundo Henrique Rattner74, o elemento de distin-ção dos seres humanos para os outros animais baseia-se no fato de que o homem é o único ser capaz de construir culturas. Por sua vez, prossegue o referido autor concei-tando cultura como sendo a parte do ambiente produzida pelos homens e por eles aprendida e utilizada no proces-so da adaptação e transformação contínua da sociedade e dos indivíduos.

A Constituição Federal de 1988, no seu Art. 216 dis-põe o seguinte:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados in-

74 RATTNER, Henrique. Cultura, Personalidade e Identidade. Disponível em: <https://www.lead.org.br>. Acesso em 12 de novembro de 2016. p.1.

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dividualmente ou em conjunto, portadores de refe-rência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:I – as formas de expressão;II – os modos de criar, fazer e viver;III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;IV – as obras, objetos, documentos, edificações e de-mais espaços destinados às manifestações artístico--culturais;V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comuni-dade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilân-cia, tombamento e desapropriação, e de outras for-mas de acautelamento e preservação.§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as provi-dências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural se-rão punidos, na forma da lei.§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.§6º (...)

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Conforme Kretzmann75, é possível perceber que o dispositivo confere ênfase à pluralidade cultural, latente na formação do povo brasileiro, englobando tanto bens materiais, no tocante a obras, objetos, edificações, con-juntos urbanos, além de bens imateriais, como é o caso das formas de expressão, criações, modos de vida, perti-nentes à identidade, ação e memória dos grupos forma-dores da sociedade brasileira.

Não só bens materiais são importantes para a memó-ria e cultura de um povo76. Mas também o modo de agir, de ser e viver é o que define as nuances da sua história, conferindo sentido à vida desse povo. A riqueza cultural é materializada na diversidade cultural e em suas manifes-tações, em todas as suas formas, sendo irrelevante a sua origem.

E essa diversidade cultural se reflete nas relações fundiárias, sendo um dos núcleos mais importantes dessa realidade o fato da multiplicidade das sociedades indíge-nas possuírem suas próprias formas de relacionamento com a terra.

Conforme Paul Little77, a territorialidade pode ser conceituada como o esforço coletivo de um grupo social, para ocupar, usar, controlar e identificar-se com um dada parcela do seu ambiente biofísico, convertendo-a no seu território.

75 Kretzmann, Carolina Giordani. Multiculturalismo e diversidade cultural: comuni-dades tradicionais e a proteção do patrimônio comum da humanidade. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 2007. p. 98-99.

76 idem, p. 100.

77 LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropo-logia da territorialidade. Brasília: Série Antropologia, 322 , 2002, p. 3.

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Um elemento de destaque dos territórios sociais é a inter-relação entre os símbolos e rituais que essas comu-nidades indígenas e tradicionais fixam com seus territó-rios. Segundo Little78:

Os territórios dos povos tradicionais se fundamen-tam em décadas, em alguns casos, séculos de ocupa-ção efetiva. A longa duração fornece um peso histó-rico às suas reivindicações territoriais. O fato de que seus territórios ficaram fora do regime formal de propriedade da Colônia, do Império e, até recente-mente, da República, não deslegitima suas reivindi-cações, simplesmente as situa dentro de uma razão histórica e não instrumental, ao mesmo tempo em que mostra sua força histórica e sua persistência cul-tural. A expressão dessa territorialidade, então, não reside na figura de leis ou títulos, mas se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que incor-pora dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua área, o que dá profundidade e con-sistência temporal ao território.

Importante mencionar que no âmbito internacional foi firmada a Convenção n.º 169, da Organização Interna-cional do Trabalho (OIT), reconhecendo formalmente os povos indígenas e tribais, pelo critério da autoidentifica-ção, além de reforçar a redefinição quanto à política agrá-ria, favorecendo a política ambiental e as políticas étnicas em favor dessas populações.

78 idem, p.11

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A essas comunidades tradicionais, são-lhes aplicá-veis as disposições da Convenção da OIT, uma vez que o traço essencial de sua caracterização é a preservação de uma cultura distinta da majoritária, mantendo uma relação com a terra que é mais do que posse ou propriedade, é uma rela-ção de identidade79.

No que atine ao direito à terra, os artigos 13 e 14 da Convenção dispõem o seguinte:

Artigo 131.  Ao aplicarem as disposições desta parte da Con-venção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, parti-cularmente, os aspectos coletivos dessa relação.2. A utilização do termo “terras” nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que abran-ge a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.

Artigo 141. Os direitos de propriedade e posse de terras tradi-cionalmente ocupadas pelos povos interessados de-verão ser reconhecidos. Além disso, quando justifica-do, medidas deverão ser tomadas para salvaguardar o direito dos povos interessados de usar terras não exclusivamente ocupadas por eles às quais tenham

79 VITORELLI, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 246-247.

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tido acesso tradicionalmente para desenvolver ativi-dades tradicionais e de subsistência. Nesse contexto, a situação de povos nômades e agricultores itineran-tes deverá ser objeto de uma atenção particular. 2. Os governos tomarão as medidas necessárias para identificar terras tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados e garantir a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e posse. 3. Procedimentos adequados deverão ser estabeleci-dos no âmbito do sistema jurídico nacional para so-lucionar controvérsias decorrentes de reivindicações por terras apresentadas pelos povos interessados.

Assim, a conclusão que se extrai da leitura dos men-cionados dispositivos, é de que as terras ocupadas pelos povos indígenas ou tribais, devem compreender a dimen-são necessária para sua reprodução física, cultural, eco-nômica e social, levando em conta critérios de territoria-lidade apontados pela própria comunidade.

Por sua vez, o direito à territorialidade está previsto também na Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu Art. 21, determinando que toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social.

A Convenção Americana de Direitos Humanos en-trou em vigor para o Brasil, em 25 de setembro de 1992, e em 2002, o país ratificou a Convenção n.º 169, datada de 1989, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por intermédio do Decreto Legislativo n.º 143. Diante da obrigação internacional firmada pelo Brasil enquan-to signatário da Convenção n.º 169 da OIT, tem-se que é dever do Estado Brasileiro e dos demais que ratificaram o citado Diploma internacional, garantir e efetivar o direi-

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to à propriedade e posse de terras tradicionalmente ocu-padas pelos povos indígenas e tribais.

Direito à propriedade privada

Tecidas as considerações iniciais sobre o direito à territorialidade, corolário do direito à diversidade cultu-ral, debruçar-se-á sobre o direito à propriedade.

O direito em foco possui previsão constitucional no Art. 5º, caput e inciso XXII, e art. 170, II, da Carta de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à seguran-ça e à propriedade, nos termos seguintes:XXII - é garantido o direito de propriedade;Art. 170. A ordem econômica, fundada na valoriza-ção do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:I – soberania nacional;II – propriedade privada;III – função social da propriedade;

Segundo José Afonso da Silva80, a figura da proprie-dade desperta mais elementos de ordem política, que ne-cessariamente jurídica, tendo sido considerada, por um

80 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, p. 272

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período, como um dos mais relevantes direitos naturais, tendo lugar cativo nas declarações de direitos no nasce-douro do constitucionalismo.

Bernardo Gonçalves Fernandes81 entende que com as tendências socializantes, observou-se o surgimento de novas feições no instituto da propriedade privada, de que este seria um direito provisório, diluindo-se à coletiviza-ção das massas. E prossegue o referido autor:

Compreendemos a propriedade, agora, como socia-lizada, o que não significa a negação ou abolição de tal direito, mas antes a afirmação do mesmo como algo maior que a esfera privada do seu sujeito titular. A propriedade deve oferecer uma maior utilidade à coletividade82.

A grande maioria dos conflitos entre indígenas e par-ticulares gravita em torno da disputa de terras, onde de um lado a Constituição Federal alberga no seu Art. 231, o reconhecimento aos índios da sua organização social, cos-tumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União sua demarcação, proteção e a incumbência de fa-zer respeitar todos os seus bens.

Por outro lado, o direito aos particulares à proprie-dade privada também tem guarida constitucional, nos já citados Art. 5º, caput e inciso XXII, e Art. 170, II, da Carta de 1988.

81 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constituticional. 7ª ed. Salva-dor: Jus Podium, 2015, p. 413.

82 idem, p. 414

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Sendo assim, antes de analisar a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão ao qual o Brasil está submetido a sua jurisdição obrigatória, buscar-se-á enfrentar a colisão entre os aludidos direitos fundamentais, sob a ótica da hermenêutica, a fim de es-tabelecer as premissas básicas para responder à questão proposta neste estudo.

Tensão entre Direitos Fundamentais

Inicialmente, é necessário esclarecer que as normas de direitos fundamentais detêm uma estrutura comple-xa e flexível. Por sua vez, sua classificação como regra ou princípio é uma questão de interpretação.

Segundo Vale83, “o forte conteúdo axiológico das nor-mas de direitos fundamentais e sua elevada posição hierár-quica no ordenamento jurídico fazem com que, na maio-ria das vezes, elas sejam interpretadas como princípios”.

Para se obter maior clareza na compreensão dos princípios constitucionais fundamentais, imprescindível estudar as concepções de Ronald Dworkin e Robert Ale-xy, que foram pioneiros na abordagem dos princípios.

No que atine a Dworkin84, na sua obra Levando os direitos a sério, o referido autor lecionou que a norma - em sentido lato -, alberga tanto as regras como os prin-cípios. Porém, as regras seguem o esquema do tudo ou nada. Desse modo, sua incidência ou não num dado caso

83 VALE, André Rufino do. Estrutura das normas de direitos fundamentais: repensan-do a distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 129.

84 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3 ed. Martins Fontes: São Paulo, 2010.

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concreto, liga-se puramente a uma questão de vigência. A incidência de uma dada regra ao caso concreto, por si só, exclui a de outras, que não se amoldam perfeitamente a uma dada situação.

Com os princípios, que também são normas, na acepção de Dworkin, a dimensão é de valor, de peso, onde a incidência de um deles não necessariamente afasta a incidência de outro. Conclui-se, portanto, que as regras se auto-excluem, enquanto que os princípios coexistem. No modelo estrito das regras há relação de exclusão total de uma, em face da incidência de uma outra, já com os princípios há uma harmonização entre eles, um juízo de ponderação85.

Já nas lições de Robert Alexy86, abordada em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, ele corroborou a ideia de Dworkin, recrudescendo o aspecto deontológico dos princípios, contribuindo para a diferenciação deles, em relação aos valores. Para Alexy, o conflito entre regras deve ser resolvido por uma cláusula de exceção (critério da especialidade, temporalidade e superioridade da nor-ma). Já no que tange à colisão dos princípios, essa tensão é resolvida por um critério de precedência condiciona-da, que depende exclusivamente do peso, da importância maior ou menor de cada um desses princípios.

Quanto ao conflito entre princípios, Alexy entende que se atinge a adequada aplicação da norma através de critérios de proporcionalidade e ponderação entre um e outro. Na distinção entre princípios e valores, Alexy faz

85 PIOVESAN, Flávia. Teoria dos Direitos Fundamentais. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

86 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

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as seguintes considerações: os princípios possuem carga deontológica, no sentido de proibição, facultatividade ou permissão de condutas, os valores expressam somente um critério axiológico, donde são os últimos passíveis de aná-lise como algo métrico, o que não se dá com os princípios.

Conforme dito anteriormente, o forte conteúdo axiológico das normas de direitos fundamentais, somada à posição hierárquica no cume do ordenamento jurídi-co, fazem com que elas sejam normas dotadas de caráter principiológico.

Firmada essa premissa, deparando-se diante de dois direitos fundamentais de viés principiológico, qual deles deve prevalecer?

Sobre o assunto, Robert Alexy87 defende o seguinte:

Se dois princípios colidem - o que ocorre, por exem-plo, quando algo é proibido de acordo com um prin-cípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contu-do, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos di-ferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na di-mensão da validade, enquanto que as colisões entre

87 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 93.

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princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na di-mensão do peso.

Segundo Alexy88, a solução para a colisão dá-se no estabelecimento de uma relação de precedência condi-cionada entre os princípios, com lastro nas circunstân-cias do caso concreto, ou seja, levando-se em conta o caso concreto, o estabelecimento de relações de precedências condicionadas consiste na fixação de condições sob as quais um princípio tem precedência em relação a outro.

Assim, o conceito de relação condicionada de prece-dência significa que em um dado caso concreto, um de-terminado princípio tem um peso maior que o princípio colidente, se houver razões suficientes para que aquele princípio prevaleça sobre este último, sob certas condi-ções presentes no caso.

Feitas essas considerações, passa-se a analisar a ju-risprudência da Corte Interamericana de Direitos Huma-nos no que concerne ao direito à territorialidade indíge-na frente ao direito de propriedade de terceiros.

A Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

A proposta do presente estudo foi analisar se há pre-valência entre o direito à territorialidade indígena so-bre o direito de propriedade de não indígenas na ótica da Corte Interamericana de Direitos Humanos? Desse

88 idem, p. 96.

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modo, cumpre trazer ao debate a jurisprudência da refe-rida Corte sobre a temática em apreço.

Quando se fala em povos indígenas e tribais, a pos-se tradicional de suas terras e os padrões culturais que surgem dessa estreita relação integram parte de sua identidade, alcançando um conteúdo particular devido à percepção coletiva de tal grupo, de suas cosmovisões, imaginários coletivos e da relação com a terra onde de-senvolvem sua vida.

A CTIDH, ao apreciar o caso do Povo Indígena Kich-wa de Sarayaku Vs. Equador, entendeu que a garantia ao direito da propriedade coletiva dos povos indígenas, deve levar em conta que a terra está estreitamente relacionada com suas tradições e expressões orais, seus costumes e línguas, artes e rituais, seus conhecimentos e usos rela-cionados com a natureza, artes culinárias, direito consue-tudinário, vestimenta, filosofia e valores.

Em razão disso, a integração dos indígenas com a natureza e sua história, os membros das comunidades indígenas transmitem de geração em geração este patri-mônio cultural imaterial que é recriado constantemente pelos membros das comunidades.

No caso da Comunidade Xákmok Kásek Vs. Paraguai, entendeu a Corte que as características culturais como as línguas próprias, os ritos de xamanismo e de iniciação masculina e feminina, os saberes ancestrais xamânicos, a forma de lembrar os mortos e a relação com o territó-rio são essenciais para sua cosmovisão e forma particular de existir. Assim, todas essas características culturais dos membros da Comunidade foram afetados pela falta de suas terras tradicionais.

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Quando a Corte Interamericana de Direitos Huma-nos apreciou o caso da Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay, cuja sentença foi prolatada em 17 de junho de 2005, restou decidido que os Estados devem valorar caso a caso as restrições que resultariam do reconheci-mento de um direito sobre o outro. Assim, por exemplo, os Estados devem ter em conta que os direitos territoriais indígenas abarcam um conceito mais amplo e diferente que está relacionado com o direito coletivo à sobrevivên-cia como povo organizado, com o controle do seu habi-tat, enquanto condição necessária para a reprodução de sua cultura, para seu próprio desenvolvimento e a fim de levar a cabo seus planos de vida.

Essa valoração a que se refere a Corte está direta-mente relacionada à ponderação e a relação de precedên-cia condicionada, analisadas no capítulo anterior deste estudo.

A propriedade sobre a terra garante que os membros das comunidades indígenas conservem seu patrimônio cultural, devendo os Estados aplicar esses standards aos conflitos que se desenvolvem entre a propriedade privada e a reinvidicação da propriedade ancestral dos membros de comunidades indígenas.

A Comissão Americana de Direitos Humanos, ao emitir o Relatório de Mérito do Caso da Tribo Xucuru Vs Brasil, em 28 de julho de 2015, a fim de submetê-lo à Corte Interamericana de Direitos Humanos89, relembrou o seguinte:

89 Comissão Americana de Direitos Humanos, Caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs. Brasil. Relatório n. 44/15. Caso 12.728. Mérito. 28 jul 2015.

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Ainda que se possa entender que há um conflito de direitos e/ou interesses entre o povo indígena Xu-curu e ocupantes não indígenas, a Comissão desta-ca que a jurisprudência do sistema interamericano apoia o caráter preferencial outorgado ao direito de propriedade indígena, pois o mesmo não é suscetível de ser indenizado, diferentemente da propriedade individual.Especificamente sobre esse ponto, no Caso da Co-munidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai90, a Corte Interamericana indicou que existe um dever estatal de priorizar os direitos dos povos indígenas em caso de conflito com terceiros, na medida em que os primeiros estão intrinsicamente vinculados à so-brevivência cultural e material desses povos. Nesse sentido, diante deste tipo de conflito, cabe aos Esta-dos garantir que, na prática, os povos indígenas pos-sam ocupar e usar pacificamente as terras e territó-rios ancestrais no quais existe presença de terceiros não indígenas mediante mecanismos adequados de indenização a favor destes, pois diferentemente da propriedade comunal indígena, a propriedade priva-da é primordialmente indenizável.

Dito isso, firmando-se a relação condicionada de precedência na jurisprudênica da Corte Interamericana de Direitos Humanos, significa que diante de um conflito territorial entre indígenas e não indígenas, o direito à di-versidade cultural, onde um de seus corolários é o direito à territoralidade, prevalece sobre o direito à propriedade

90 Sentença de 29 de março de 2006.

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privada de terceiros, tendo em vista o caráter indenizável desta última.

Situação esta distinta da que decorre da relação dos indígenas com o seu território, em razão do caráter es-sencial deste para sua cosmovisão e forma particular de existir.

Conclusões

Ao longo do presente estudo, abordou-se a questão da territoralidade indígena frente ao direito à proprieda-de de terceiros não indígneas, sob a ótica da Corte Intera-mericana de Direitos Humanos.

Analisou-se a proteção conferida à relação dos indí-genas com o seu território pela Convenção Americana de Direitos Humanos e pela Convenção n.º 169 da Organi-zação Internacional do Trabalho. Viu-se também o direito à propriedade privada, e a sua tendência socializante, ob-servando-se o surgimento de novas feições desse instituto.

Em seguida, abordou-se a colisão de direitos funda-mentais sob o viés hermenêutico de Robert Alexy, para quem a solução da tensão entre os direitos fundamen-tais de caráter principiológico, dá-se através do estabe-lecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios envolvidos.

Por fim, foi analisada a jurisprudência da Corte In-teramericana de Direitos Humanos a fim de responder à problemática proposta, concluindo que diante de um conflito territorial entre indígenas e não indígenas, pre-valece o direito à diversidade cultural, onde um de seus corolários é o direito à territoralidade, sobre o direito à

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propriedade privada de não-indígena, tendo em vista o caráter indenizável desta última, somada ao núcleo es-sencial do território para a cosmovisão dos povos ame-ríndios e sua forma particular de existir.

Referências

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O papel da Jurisdição Constitucional na realização do Estado Social Pós-Constituição Federal de 1988Hilderley Rêgo Barbosa91

Introdução

O processo de redemocratização entabulado pela Constituição brasileira de 1988, efetivamente o que lhe rendeu o apelido de Constituição Cidadã, ampliou sig-nificativamente os direitos fundamentais do cidadão, e já no Art. 1º, considera a cidadania como um dos funda-mentos do Estado Democrático de Direito, a qual tem como diferença primordial entre as primeiras Constitui-ções o avanço consagrado aos direitos sociais.

Com a promulgação da Carta de 88, os direitos do cidadão representaram, talvez, a mais importante aqui-sição da sociedade nas últimas três décadas, atribuindo grande relevo ao Poder Judiciário, já que este é um dos três Poderes da República, o qual tem a responsabilidade direta pela guarda da Constituição. Mais que isso, quan-do o artigo 5º, XXXV da Constituição Federal prescreve que nenhuma lei pode excluir da apreciação do Poder Judi-ciário a lesão ou ameaça de direito, o texto constitucional comprometeu os juízes em efetivarem a Constituição.

Nesses novos contornos, o Estado Constitucional surge como uma nova visão de função jurisdicional e, por conseguinte, de todos os institutos que são dela deriva-dos ou que com esta guardem relação, e com os princí-

91 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.

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pios que lhe são correlatos. Imprime-se neste tempo um fenômeno que ganha dimensão exponencial na solução dos direitos consagrados constitucionalmente: a justiça constitucional.

Diante da velocidade da vida e de respostas que qua-se nunca chegam a jurisdição passou a ter como principal função a de apaziguar os conflitos individuais e a de es-tabelecer a paz social. O objetivo magno da jurisdição é a pacificação e, por consequência, assumir um novo papel que possa responder às pretensões sociais, muitas vezes, ignoradas pelos poderes Legislativo e Executivo.

De outro modo, esse papel que a jurisdição consti-tucional atrai para si traz consigo diversas divergências doutrinárias e jurisprudências, inclusive no tocante à se-paração dos poderes, a relevância e os limites do Poder Judiciário no ato de promover a plena realização dos va-lores humanos e buscar o meio efetivo para realização da justiça.

Desta forma, entender as garantias e a efetividade do Estado Social perante a Constituição vigente, se faz relevante, conveniente e oportuno, diante da importân-cia que a função jurisdicional ganhou a partir da Carta Cidadã. E talvez o grande desafio a superar é exacerbado pelos limites que se impõem à efetividade dos preceitos sociais, especialmente num país como o Brasil, marcado pela grande desigualdade econômica, com grandes difi-culdades estruturais e de planejamento, tradicionalmen-te comandado por grupos políticos despreparados e não, no todo, preocupados com os anseios nacionais.

Diante de tal situação, cabe aqui discorrer que após a proclamação dos direitos sociais pela positivação cons-titucional e infraconstitucional, e em face do não cum-

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primento apto das garantias constitucionalmente previs-tas, a sociedade busca, agora, a efetivação desses direitos, recorrendo ao Poder Judiciário e exigindo-lhe respostas aos problemas que parecem sem solução. Pois a simples previsão legal parece não dar conta das garantias trazidas com o Estado Social, pois aponta contradição ofensiva en-tre o que está escrito e o que verdadeiramente é concreto.

O Estado Social na Constituição de 1988

Diante do discurso da história constitucional brasi-leira mostra-se que gradativamente, os resultados foram ocorrendo, dando formas nos textos as reivindicações dos mais diversos segmentos da sociedade no que tange à proclamação dos direitos sociais, que, de fato, consa-graram-se positivamente com a promulgação da Cons-tituição Federal de 1988, a qual ampliou inegavelmente, garantias e princípios inerentes aos anseios sociais.

Decerto que a previsão constitucional, nos termos em que restou consignada na Carta de 1988, revela o tra-ço presente à indisponibilidade dos direitos sociais, assim como a marca da auto aplicabilidade da regra consubs-tanciada no Art. 6º, segundo a qual são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segu-rança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados, onde a mesma também definiu a sua natureza como sendo a categoria dos direitos fundamentais. Logo, definindo-os, está preor-

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denando situações jurídicas objetivas com vistas à aplicação desses direitos92.

Conceitualmente, pode-se assim dizer que:

Os direitos sociais são prestações positivas propor-cionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enun-ciadas em normas constitucionais, que possibilitem melhores condições de vida aos mais fracos; direitos que tendem realizar a igualização de situações so-ciais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam com o direito de igualdade. Valem como pressupos-tos do gozo dos direitos individuais, na medida em que criam condições materiais mais propícias ao au-ferimento da igualdade real – o que, por sua vez, pro-porciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade93.

Neste sentido, tais direitos contemplados constitu-cionalmente fazem surgir duas faces da mesma moeda, pois

O reconhecimento dos direitos sociais suscita, além da proliferação dos direitos do homem, problemas bem mais difíceis de resolver (...) é que a proteção destes últimos requer uma intervenção ativa do Es-tado, que não é requerida pelos direitos de liberdade, produzindo aquela organização de serviços públicos de onde nasceu até mesmo uma nova forma de Esta-

92 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 2005. p.184.

93 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 2005. p.183.

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do, o Estado Social. Os direitos exigem para a sua rea-lização prática a ampliação dos poderes do Estado94.

De outro modo, o mesmo Estado que proclama ci-dadania à sociedade, através de direitos previstos cons-titucionalmente, encontra o óbice nos fracassos ou nas dificuldades de sua efetivação ante suas promessas, tanto pelo crescimento vertiginoso na quantidade de deman-das seja pelo aumento no número dos consumidores de justiça, seja pela insatisfação ampliada da cidadania, o que gera nova conflituosidade entre o que se pretende e o que se realiza. Assim,

Ora, se os sucessos do Estado Social fossem incon-testáveis e não contrastáveis, não se enfrentaria o dilema de sua realização nos tempos postos pelo constitucionalismo contemporâneo. Se das garantis constitucionais – ou das promessas constitucionais – emergisse a satisfação inexorável das pretensões so-ciais, este debate não se colocaria, e tudo se resolve-ria por políticas públicas prestacionais e pela satisfação profunda de seus destinatários. Não haveria dificul-dades em se atender e atingir ótimos padrões e todas as expectativas relativas à satisfação das necessidades sociais da população95.

Com isso, surge a enorme lacuna que separa o tex-to da realidade social e a relutância do Estado em tornar letras mortas tais dispositivos promissores, contudo, re-velam a inocuidade de uma mera declaração de direitos,

94 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro. Campus. 1992. p. 72.

95 MORAIS, José Luís Bolzan de. A jurisprudencialização da Constituição. A constru-ção jurisdicional do Estado Democrático de Direito. 2008. p.44.

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por mais extensa e explícita que seja, quando inexistem meios políticos, culturais e operacionais para materializá--la. Parte a relevância de compreender a grande diferença entre o que realmente está para a sociedade no plano fáti-co daquilo destituído de efetivação, de inteiro corpo, mas sem a inexorável essência, despontando a necessidade de abordar a discussão da concretização dos direitos sociais sob a perspectiva da ótica cidadã, ainda bem distante da realidade de grande parte dos brasileiros.

Talvez, pode-se até reconhecer que os direitos so-ciais, intitulados direitos de segunda dimensão ou gera-ção, geralmente exigindo para sua realização uma atuação positiva do Estado, são os que mais suscitam discussão da efetividade, porquanto, em quase sua totalidade, geram maiores dificuldades para sua afirmação do que os direi-tos ditos de primeira dimensão ou geração, quais sejam os direitos civis e os direitos políticos.

Contudo, enquanto os direitos de defesa não cos-tumam ter sua plena eficácia questionada, é nos direitos sociais que a discussão atinge os mais diversos posiciona-mentos, o que permitiu a boa parte da doutrina do século XX negar a possibilidade de tutela judicial dos direitos so-ciais e econômicos consagrados nas Constituições, rotulando as normas que as positivavam como de caráter meramente programático96.

Um ponto que há de se considerar é a imensa re-sistência ideológica, que segue a inclinação dos direitos sociais para uma transformação do estado original que mobiliza contestações dos segmentos privilegiados da sociedade, certamente não desejosos de mudanças. Além

96 SARMENTO, p. 391.

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disso, há ainda, graves barreiras operacionais, devido à natureza eminentemente prestacional desses direitos, onde o discurso do Estado em arcar com os custos ma-teriais para a efetivação do direito social se choca com os obstáculos fáticos que não se podem esconder. Diante disso, afirma-se que os direitos sociais estão condiciona-dos à reserva do possível.

Pode-se assim dizer, que os direitos sociais estariam, portanto, em poder de opções de política econômica do aparato estatal, já que a reserva do possível traduz-se em um processo orçamentário, do qual, o magistrado se tor-na impossibilitado de, no exercício da função jurisdicio-nal, ou, até mesmo, do próprio Poder Público, de efetivar ou desenvolver direitos, sem que existam meios materiais para tanto, o que consequentemente resultaria despesa orçamentária oficial. Já que A aferição desta disponibilida-de é feita em função do orçamento. Justifica-se que a con-cessão de determinadas prestações, ou seja, a realização de determinados direitos, pode implicar a inviabilização da consecução de outros97.

Dessa forma, percebe-se que todos os direitos pres-supõem, não da mesma forma, intervenção do Estado, o qual poderá atuar de maneira positiva e negativa, seja exigindo regulamentação, cumprimento de obrigações e realização de serviços, seja impondo restrições à faculda-de de determinadas pessoas e à própria atuação do poder público.

Para tanto, urge afastar, a principal oposição con-cernente ao cumprimento dos direitos sociais, a qual se justifica pelo conhecimento enganoso de que a satisfa-

97 GUERRA, Gustavo Rabay. Disponível em http://jus.com.br/artigos/8355. Acesso em 12/11/2016.

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ção se dá unicamente pela disponibilidade de recursos, de forma que essa seria a única maneira capaz de consolidar os direitos do cidadão, o que não soa como verdade, pois

Os impedimentos para a implementação dos direitos econômicos e sociais, entretanto, são mais políticos que físicos. Por exemplo, há mais que suficiente ali-mento no mundo para alimentar todas as pessoas; a fome e a má nutrição generalizada existem não em ra-zão de uma insuficiência física de alimentos, mas em virtude de decisões políticas sobre sua distribuição98.

Desse modo, faz-se necessário compreender, que o cerne dos direitos sociais, os quais se fundamentam pela efetividade da cidadania como forma de proporcionar à todos dignidade e bem-estar, quase sempre, num país in-justo e desigual, o qual conferiu sete Constituições que não se alcançaram, não pode ser relegado a mera ficção ou simbologia, como insistem em proclamar aqueles que não admitem tais direitos como fundamentais, imediatos e exigíveis, negando-lhes, por conseguinte, juridicidade normativa plena.

Assim, outro ponto há de ser observado, no que tan-ge ao nível de desenvolvimento da sociedade brasileira, o qual se torna indispensável para se garantir a tão almeja-da justiça social, já que a proteção da maioria dos sociais está diretamente relacionada ao grau de desenvolvimento social cuja solução desafia até mesmo a Constituição mais

98 PIOVESAN, 2002. p. 185.

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evoluída e põe em crise até mesmo o mais perfeito mecanis-mo de garantia jurídica99.

Na verdade, a grande questão da aplicabilidade dos direitos sociais pode ser equacionada através de uma ponderação em que de um lado coloca-se o direito so-cial e do outro lado a justiça e a democracia. No lugar do direito social pode-se colocar a dignidade humana. Para a realização da dignidade da pessoa humana é essencial a efetivação dos direitos sociais, resguardando o mínimo indispensável à sobrevivência da sociedade.

Assim, assegurar o mínimo necessário à dignidade humana significa atender às demandas geradas pelos di-reitos fundamentais das populações, especialmente as mais pobres, e que se constituem nas principais destina-tárias das políticas públicas para suprir necessidades vi-tais de sobrevivência minimamente digna.

O papel do Poder Judiciário na realização do Estado Social

Diante da existência de nova concepção de Estado, sugeriu-se que, se no século XIX, da ordem liberal, houvera preponderância do Legislativo, e no século XX, sob a égide da Providência, foi a vez do Executivo, o século XXI caminha para ser a supremacia do Judiciário100.

O sistema judicial, desde a promulgação da Cons-tituição Federal de 1988, vem presenciando a expansão tanto do escopo dos direitos sociais quanto de um padrão

99 BOBBIO, Norberto. 1992, p. 45

100 GARAPON, Antoine. 1999. p. 227.

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descentralizado de intervenção pública na área social, en-volvendo, inclusive, significativas mudanças na estrutura tributária e nas atribuições do Estado. Tais alterações, no entanto, por vezes não conseguem ser implementadas por falta de leis complementares e/ou por uma forma ex-tremamente formal de administração da justiça, a ponto de não se preocupar com a solução dos litígios de modo a um só tempo legal, eficaz e legítimo101.

Assim, a efetivação dos direitos sociais, tarefa precí-pua do Estado, mesmo estando contida no texto consti-tucional, enfrenta sérios problemas estruturais não tão fáceis de serem resolvidos, nem mesmo pelo Poder Judi-ciário em qualquer de suas instâncias,

Eis aí, de modo esquemático, o dilema hoje en-frentado pelo Judiciário brasileiro, ao menos em suas instâncias inferiores: cobrir o fosso entre esse sistema jurídico-positivo e as condições de vida de uma sociedade com 40% de seus habitantes vivendo abaixo da linha da pobreza, em condições subuma-nas, na consciência de que a atividade judicial extra-vasa os estreitos limites do universo legal, afetando o sistema social, político e econômico na sua tota-lidade. Com a expansão dos direitos humanos, que nas últimas décadas perderam seu sentido “liberal” originário e ganharam uma dimensão “social”, ficou evidente que pertencer a uma dada ordem político--jurídica é, também, desfrutar do reconhecimento da “condição humana102”.

101 FARIA, 1994a. p.48.

102 FARIA, 1994b. p.48.

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Diante deste novo momento, sem nenhuma pacificação,

Parece existir, por enquanto, uma via de mão dupla na relação entre o Poder Judiciário e o cidadão. O ci-dadão deposita no Judiciário a confiança que perdeu nos outros Poderes. E os Magistrados dão guarida às pretensões dos que buscam os tribunais103.

Contrários à atuação do Poder Judiciário, setores conservadores e mantenedores do status quo, contudo, continuam não admitindo a tarefa do Judiciário na re-solução dos reclamos sociais, impondo uma resistência claramente intencionada a extirpar desse Poder a função estatal de efetivação dos direitos sociais, como se ele so-mente se vinculasse a seu papel de legislador negativo, esperando que lhe seja submetida à análise uma norma po-sitivada a fim de decidir sobre sua constitucionalidade, ou seja, traduz um modelo centrado na lei e não na defesa de direitos104.

Além disso, a elasticidade do Judiciário, por vezes, não põe fim aos anseios sociais, como guardião da Consti-tuição da República e garantia do povo brasileiro, passan-do a atuar mais como defensor do governo105, o que o torna ainda mais repelido pelas correntes conservacionistas.

Outro norte deve ser buscado, a conceber a justiça mais como meio de direção e promoção social, de corre-ção de desigualdades e consecução de equilíbrio nas rela-ções socioeconômicas que como instrumento tecnicista

103 CAMPILONGO, 1994, p. 121

104 ESTEVES, 2007, p.69.

105 COUTINHO, 2003. p. 50.

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de garantia de certeza e segurança de direitos já tão his-toricamente assegurados nos ordenamentos existentes,

[...] a transformação do juiz um legislador ativo e criativo, consciente de que a  justiça não pode ser reduzida a uma dimensão exclusivamente técnica, devendo ser concebida como instrumento para a construção de uma sociedade verdadeiramente jus-ta. [...] capaz de identificar e esclarecer o significado político das profissões jurídicas, possibilitando-lhes assim um distanciamento crítico e uma clara cons-ciência das inúmeras implicações de suas funções em sociedades fortemente marcadas pelo crescente descompasso entre a igualdade jurídico-formal e as desigualdades socioeconômicas106.

No que se refere ao dogma da separação de poderes, sempre invocado com o condão de impedir a possibili-dade do papel construtor e ativo do Judiciário, é impor-tante absorver que o esquema da distribuição de funções estatais, tal como concebida por Montesquieu, na práti-ca, jamais subsistiu. Com efeito, percebe-se a penetração entre as funções das três esferas de poder, as quais, como se sabe, exercem, cada uma, tarefas preponderantes, mas não exclusivas, cometendo, todas, funções legislativas, administrativas e judiciárias.

Nesta mesma esteira,

Ao contemporâneo Estado Social de Direito não mais contenta uma singela divisão em Poderes (pa-

106 FARIA, 1989, p. 96-97.

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lavra que denota um ranço autoritário, ligado a uma concepção arcaica e estática da Autoridade Pública), mas, antes e superiormente, cabe falar numa divisão em Funções, visão mais afinada com a ideia de um Estado retributivo e prestador, engajado socialmente – o ideário do Welfare State – e comprometido com a consecução de metas e programas adrede estabe-lecidos, no ambiente de uma desejável telocracia107.

Isso demonstra que todos os órgãos estatais exercem função política, não se podendo admitir os argumentos de que ao Judiciário compete uma função meramente jurisdicional. Inexiste, portanto, separação de poderes estanque que possa suscitar o discurso defensor da ma-nutenção de um modelo organizacional de Estado que não se compatibiliza com as necessidades enfrentadas hoje pelos magistrados, que, vertiginosamente, têm rece-bido apelos a substancializar, no plano fático, os direitos fundamentais constitucionais. O que se pretende verda-deiramente com essa nova atuação do Poder Judiciário é resolver os problemas que parecem não ter respostas perante os outros poderes, é simplesmente avivar o pleno sentido de cidadania, independentemente das barreiras constituídas pela longínqua e ultrapassada separação dos poderes.

Com a mesma compreensão, para quem a separa-ção de poderes move-se, hoje, no campo dos direitos fundamentais:

O problema não está no modelo de controle de constitucionalidade adotado, mas sim no modelo

107 Rodolfo de Camargo Mancuso. 2014, p. 328.

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de Corte Constitucional e na forma de escolha de seus ministros que são nomeados pelo presidente da República, após aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal de acordo com o artigo 101, parágrafo único, da Constituição brasileira de 1988108.

Sendo assim, esse modelo de composição da Corte Constitucional brasileira não parece atrair uma unanimi-dade de seguidores, a saber que

O Senado jamais exerceu tal competência com aplicação e interesse, limitando-se a chancelar cri-ticamente, o ungido do Presidente. Convertida a nomeação de fato, em uma competência discricio-nária unipessoal, a maior ou menor qualidade dos integrantes da Suprema Corte passa a ser tributária da sorte ou visão de estadista do Presidente da Repú-blica. Que, como se sabe, nem sempre existe, ou ao menos, sucumbe eventualmente a circunstâncias da política, da amizade e de outras vicissitudes do crôni-co patrimonialismo da formação nacional109.

Por conseguinte, assevera-se que:

A crônica desatenção com a composição do Supremo Tribunal Federal na experiência constitucional bra-sileira tem reduzido a importância de seu papel em momentos graves. Sua falta de lastro representativo, de deferência institucional e de autoridade política

108 Paulo Bonavides. 2007, p. 587.

109 BARROSO, Luis Roberto. Temas de Direito Constitucional. p. 26. 2009a.

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efetiva tem impedido que a Corte, pela concretização afirmativa dos grandes princípios constitucionais, seja o árbitro das crises políticas110.

A Corte Constitucional, na esfera dos direitos funda-mentais, acabou por minimizar o instituto, tratando-o com desconfiança e má-vontade111.

Na verdade, o entendimento que prevaleceu o de que o objeto do mandado de injunção é o de dar mera ciência ao órgão omisso da existência da omissão – isto é, o mesmo da ação direta da inconstitucionali-dade -, e não como prega toda a doutrina, a atribui-ção de competência ao Judiciário para formular, nos limites do caso concreto submetido à sua apreciação a regra faltante112.

Com isso, pode-se assim dizer que o pensamento neoliberal, em que vive o princípio da eficiência, é que rege o domínio econômico no Brasil e é com base nesse pensamento e nesse princípio que o Supremo Tribunal Federal tem decidido, ou seja, tem decidido em função da ação eficiente, o que não atende à efetivação dos direitos e garantias fundamentais, especialmente dos direitos so-ciais, assegurados pela Constituição da República.

Então, há de se compreender que a questão da mani-pulação discursiva existente no pensamento neoliberal é muito séria e é preciso despertar para que se possa fazer, realmente, um Estado Social, para que se possa continuar

110 BARROSO, Luis Roberto. Temas de Direito Constitucional. p. 26. 2009b.

111 BARROSO, Luis Roberto. Temas de Direito Constitucional. P. 34. 2009a.

112 BARROSO, Luis Roberto. Temas de Direito Constitucional. P. 34. 2009b.

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lutando pela concretização e condução do país a uma si-tuação realmente democrática.

Acrescenta-se ainda que é preciso, enfim, lutar pela Constituição; e confiar que ela é a outra face da liberdade e da justiça113.

Portanto, pode-se assim dizer que o cumprimento do Estado Social deverá ser efetivado, como medida de um Estado Democrático de Direito, que já se garante na nor-ma constitucional vigente, mesmo que por intervenção do Poder Judiciário, quando o Poder Executivo e Poder Legis-lativo não se mostrarem eficientes, com a ressalva de que:

Uma ordem Constitucional, como a brasileira de 1988, que cobra reflexividade, nos termos do para-digma do Estado Democrático de Direito, exige, por-tanto, dos operadores jurídicos, maior “consciência hermenêutica” e responsabilidade ética e política para sua implementação – algo que, infelizmente, e muitas vezes, falta a doutrinadores e tribunais do país114.

Assim, a concretização do Estado Social passa, ne-cessariamente, pelo exercício da jurisdição constitucio-nal, de forma ideal, através de uma Corte Constitucional que efetivamente faça o controle da constitucionalidade atendendo aos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil estabelecidos nos artigos 1º e 3º da Constituição brasileira de 1988.

113 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel da Jurisdição Constitucional na realização do Estado Social. p. 60.

114 CATTONI, Marcelo. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte: Mandamen-tos, 2001. p. 160.

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Diante disso, se por um lado as correntes conserva-doras e oponentes, tentam alastrar a ideia de que o po-der Judiciário não é competente para atuar em prol dos direitos sociais, por outro lado, ele entra em cena, ganha consistência, e a necessidade de conformar o clássico modelo da separação dos poderes à realidade vigente, já não se trata, primordialmente. Porém, com a ressalva de limitar poderes ou frear abusos, mas, sim, de realizar as tarefas almejadas pela Constituição Federal, que impõe a força vinculante de seus preceitos e a superioridade de seus princípios.

Ademais, inadmissível, portanto, o argumento da falta de legitimação democrática quando, com efeito, a própria Lei Maior, conhecedora das vicissitudes dos de-mais poderes da República, deposita no Poder Judiciário as esperanças de sua própria efetivação, buscando vis-lumbrá-lo como o arquiteto social da força viva brasileira e o guardião da fundamentalidade dos enunciados cons-titucionalmente criados.

Conclusão

A Carta da República de 88, mais do que qualquer uma das que a antecederam, ergueu os direitos sociais a um nível de elevada amplitude. Nela se materializou con-quistas inéditas apregoadas pela separação dos títulos da ordem econômica e da ordem social, o acolhimento dos direitos fundamentais sociais expressamente no título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), a estimada ên-fase do rol desses direitos inseridos no texto constitucio-nal e o engajamento em um compromisso de realização

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social, consubstanciado seja nos fundamentos da Repú-blica através da cidadania e da dignidade da pessoa hu-mana, seja nos objetivos fundamentais desta, buscaram, desde então, a consolidação dos ditames da justiça social.

Porém, mesmo bonito de se ver e orgulho de se ter, sob a ótica de todos esses aspectos positivos, tais direitos expressamente disponíveis na Carta Política vigente não conseguem cobrir a certeza de que a implementação da democracia social poderá ser efetivamente garantida. As determinações da Lei Maior, com efeito, ainda não foram e estão longe de ser plenamente satisfeitas, não adquirin-do, nesse passo, existência real para enorme parte dos bra-sileiros, o que permite assinalar, em absoluto, que a previ-são e a positivação de direitos são incapazes, por si sós, de fornecer o maquinário suficiente para sua efetivação.

Então, o texto constitucional em vigor, procurou dar especial ênfase à possibilidade de concretização de um Estado Social, através de uma efetiva jurisdição constitu-cional que deve ser exercida através de uma Corte Consti-tucional de verdade, que não esteja abarrotada em traba-lho devido excesso de competências, mas uma Corte que atue efetivamente no controle da constitucionalidade na guarda da Constituição, o que se mostra imprescindível para a real concretização do Estado Social.

Diante disso, muito se tem a percorrer e a vencer quanto aos limites trazidos pelo próprio sistema, o qual traz consigo uma herança de debilidade política, econô-mica, social e cultural, que se espraia ainda neste tempo. Decerto que o Estado Social é uma realidade presente, mas que sua implementação só poderá ser efetivada por um poder político forte, e que utilize a unicidade dos Po-

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deres (Executivo, Legislativo e Judiciário) como mecanis-mo em busca da justiça social.

Talvez, seria importante uma mudança na forma de composição e escolha dos ministros do Supremo Tribu-nal Federal bem como a limitação de sua competência ao controle de constitucionalidade, para que pudesse cum-prir realmente a função de guardião da Constituição da República, mantendo-se o sistema de controle de cons-titucionalidade já adotado, primando pela concretização do Estado Social almejado.

Desta forma, é preciso reconhecer as potencialida-des do poder Judiciário para a realização do Estado social, afastando-se a concepção liberal-individualista obstina-da em compreendê-lo tão somente como instrumento de controle social, de pacificação de conflitos, de obediência aos ditames da lei e de mera garantia dos direitos adqui-ridos, o que contribui para a manutenção da ordem jurí-dico-social estabelecida, mas que não atende aos clamo-res de uma sociedade que se encontra sob a égide de um Estado Democrático de Direito, cuja função prospectiva, antes de se limitar a estabilizar as relações sociais e polí-ticas vigentes, almeja transformações e progresso, tudo isso consubstanciado na dignidade da pessoa humana, fim e fundamento da Carta da República.

Isso demonstra que a unicidade dos Poderes em for-mar um único e forte Poder em busca da satisfação social é o mecanismo mais adequado nos tempos atuais, não mais se admitindo os argumentos de que ao Judiciário compete uma função meramente jurisdicional. Inexiste, portanto, separação de poderes estanque que possa sus-citar o discurso defensor da manutenção de um modelo organizacional de Estado que não se compatibiliza com

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as necessidades enfrentadas hoje pelos magistrados, que, vertiginosamente, têm recebido apelos a substancializar, no plano fático, os direitos fundamentais constitucionais.

Por fim, busca-se refletir a importância que tal Poder adquiriu nas últimas décadas, centrando a necessidade de uma figura ativa e confiável na proteção e expectativas por igualdade, norteando sua função mais para a trans-formação social, no sentido de viabilizar o cumprimento das metas enunciadas e perseguidas pela Lei Maior, por-quanto, em uma sociedade de interesses cada vez mais complexos e conflitantes, onde a essência das diferentes reivindicações já não se esgota, de todo, nos textos da lei, qualifica-se como imprescindível a figura de um rearran-jador a proferir a decisão final, a qual possa ser justa ao máximo possível na tarefa de promover o equilíbrio ne-cessário que a desigualdade das relações socioeconômi-cas do país exige.

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A inflação Legislativa nas Constituições: um prisma sobre as Emendas Constitucionais no BrasilMarcela da Silva Paulo 115

Introdução

Regular a vida social pressupõe o objetivo primeiro da aplicação das leis. É preciso, portanto, que atinjam a sua finalidade, observadas conscientemente por seus destinatários. Aos legisladores brasileiros cabe a respon-sabilidade de formatar leis tecnicamente bem elaboradas, procurando satisfazer a necessidade de melhoria das con-dições sociais e estabelecendo mecanismos de ampla di-vulgação a fim de que o exercício de cidadania seja mais facilmente praticado pela população a partir do conheci-mento dos seus direitos e deveres.

Segundo Neves (1994), “o legislador passa a elaborar cada vez mais diplomas legais com o objetivo de satisfa-zer as expectativas dos cidadãos, prevalecendo os anseios políticos em detrimento das exigências e limitações jurí-dicas. Destarte, em muitos casos, tais leis são elaboradas sem possuírem a mínima condição de efetividade, o que leva à necessidade de serem editados outros diplomas le-gais. A consequência óbvia disso é a aceleração da infla-ção legislativa”.

Todo arcabouço legal vigente visa a pacificação dos anseios sociais, sendo instrumento para garantia de igualdade e justiça social. A estabilidade constitucional

115 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.

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pressupõe um equilíbrio entre os opostos, cujo o dese-quilíbrio leva a ruptura do modelo vigente, em substi-tuição a preceitos que modifiquem o esquema normati-vo em vigor. As Emendas Constitucionais surgem como mecanismo para atualização da norma frente à realidade social, sendo estas o objeto de estudo desta pesquisa.

Emendas Constitucionais (E.C.) no Brasil

No ordenamento jurídico brasileiro, a aprovação de uma Emenda Constitucional está a cargo da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. A emenda depende de três quintos dos votos em dois turnos de votação em cada uma das casas legislativas (equivalente a 308 votos na Câ-mara e 49 no Senado). Sua previsão legal está arraigada no artigo 59 da Constituição Federal de 1988:

Art. 59. O processo legislativo compreende a elabo-ração de: I – emendas à Constituição; II – leis com-plementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decretos legislativos; VII – resoluções. (grifo nosso)

Depreende-se, portanto, que o poder de emendar não tem natureza distinta do de legislar. E reforça esta vi-são, o fato de que a elaboração da emenda se dá no campo do Congresso Nacional, como a da lei, não sendo neces-sário, por exemplo, o referendo popular. Neste quadro, a emenda não passaria de ato normativo que difere dos demais por um procedimento especial, agravado, como ocorre com a lei complementar em comparação com a

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lei ordinária. Emenda aliás, devendo ser entendida clara-mente como alteração simplificada do texto constitucio-nal outrora consagrado.

O processo começa com a apresentação de uma PEC (Projeto de Emenda Constitucional), de autoria de um ou um grupo de parlamentares. Quando a PEC chega (ou é ali criada) à Câmara dos Deputados, ela é enviada, antes de tudo, para a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação (CCJ). Não sendo identificadas não conformida-des ou irregularidades no projeto, a emenda é novamen-te analisada por uma Comissão Especial, de caráter mais técnico.

Uma vez aprovada pelas duas comissões, a Emenda é votada pelos Deputados, e depois, o mesmo processo se repete no Senado, desta vez, com a análise por ape-nas uma comissão, a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ), ocorrendo a subsequente votação.  Em caso de aprovação, o projeto se torna lei e passa a vigorar como parte integrante do texto constitucional, com efei-to erga omnes. Outro ponto interessante é que, diferente das leis ordinárias, a emenda à Constituição não precisa de veto presidencial. Sendo aprovada, atentando-se todo o processo mencionado, será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, sem a inter-ferência do Presidente.

Segundo a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalida-de) nº 2.031, cuja relatora fora a Ministra Ellen Gracie, “O início da tramitação da proposta de emenda no Senado Federal está em harmonia com o disposto no Art. 60, I, da CF, que confere poder de iniciativa a ambas as Casas Legislativas. (j. 3-10-2002, P, DJ de 17-10-2003).

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Como visto, o caminho é relativamente longo até a aprovação da Emenda Constitucional. A proposta exige tempo para estudo de viabilidade, elaboração e votação, uma vez que modificará consubstancialmente a Cons-tituição Federal. Caso aprovada, será promulgada pelas mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Em sendo rejeitada, ela será arquivada e a matéria conti-da nela não poderá ser objeto de nova emenda na mesma sessão legislativa.

Sob o aspecto de mutação constitucional, as Cons-tituições podem ser classificadas de acordo com vários aspectos. Quanto à alterabilidade ou estabilidade, como preferem alguns autores, a Constituição de 1988 é tida como rígida. Essa rigidez significa dizer que só se pode al-terar ou modificar a Constituição mediante um processo legislativo diferenciado, solene. Esse processo é mais difí-cil do que o de alteração ou elaboração das leis ordinárias (comuns).

Os três incisos do Art. 60 respondem de forma clara-mente quais são os legitimados a propor Emendas Cons-titucionais: I – um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II – Presi-dente da república; III – mais da metade das Assembleias Legislativas das Unidades da Federação, manifestando--se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus mem-bros. Cabe aqui ressaltar que atualmente contamos com 513 Deputados Federais e 81 Senadores da República e, numericamente, são necessários 171 Deputados Federais e 27 Senadores para propor uma Emenda Constitucional. Apenas o Presidente da República pode propor sozinho uma emenda.

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O texto constitucional não passou por um processo de reavaliação, e sim, pela adoção de um método simpli-ficado para modificação da Constituição, fugindo do seu propósito inicial. Esse limite é imposto pelo art. 60 da Carta Magna, § 4º:

Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa do Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais.

Na ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 1.946, cuja relatora fora o Ministro Sydney Sanches, o STF (Supremo Tribunal Federal) já assentou o entendimento de que é admissível a ação direta de inconstitucionalida-de de emenda constitucional, quando se alega, na inicial, que esta contraria princípios imutáveis ou as chamadas cláusulas pétreas da Constituição originária (Art. 60, § 4º, da CF). Não há, portanto, limitações que possam ser vis-tas como imutáveis. As cláusulas pétreas são apenas um caso de rigidez acentuada, podem ser suprimidas, embo-ra não possam ser contraditadas, enquanto vigorem.

Observa-se a preocupação na manutenção de prin-cípios basilares de nossa Constituição, onde são assegu-rados a imutabilidade dos pilares que sustentam a De-mocracia, na tentativa de fazer uma reserva legal para o núcleo da estrutura estatal vigente, preservando alguns princípios. Exemplo típico de liberdade de emendar sem afetar a essência do Estado Democrático de Direito, pro-tegendo o Poder Estatal, sua harmonia e garantias funda-mentais, em sua essência mor.

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As cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitu-cionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao poder constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo poder constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio poder constituin-te originário com relação as outras que não sejam consi-deradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas. (ADI 815, rel. min. Moreira Alves, j. 28-3-1996, P, DJ de 10-5-1996.)

Controle de Constitucionalidade das Emendas Constitucionais

O poder constituinte derivado não é ilimitado, visto que se submete ao processo consignado no Art. 60, § 2º e § 3º, da CF, bem assim aos limites materiais, circuns-tanciais e temporais dos parágrafos 1º, 4º e 5º do aludido artigo.

Ainda Parra Filho (2001), o Poder de revisão, é este um Poder constituído, portanto, subordinado à Consti-tuição e condicionado por ela. Se não passa a alteração de um procedimento legislativo agravado, com mais razão ainda cabe o controle. Por isto, é unânime a doutrina a admitir esse controle de constitucionalidade sobre alte-rações, emendas à Lei Magna.

Admitido caber o controle de constitucionalidade sobre Emendas, nenhuma razão há para que este não se possa dar pelo caminho do controle incidental. Mas des-

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de que a norma editada pela Emenda seja auto-aplicável. Realmente, no caso das normas que não reclamam com-plementação ou regulamentação, direito individual pode ser afetado por regra editada em Emenda, ou ser posta afirmado ou negado, hipóteses em que a solução de even-tual litígio passa pela determinação da constitucionalida-de ou inconstitucionalidade.

Qualquer juiz ode declarar a inconstitucionalidade, formal ou material, de regra editada por Emenda, deven-do, todavia, a questão subir, pelo jogo dos recursos e em última análise por força do extraordinário, até o Supre-mo Tribunal Federal. As alterações da Constituição têm como condição de validade a constitucionalidade, como qualquer ato de quaisquer dos Poderes. Esta condição ad-vém da supremacia da Constituição.

Segundo a ADI 2.356 MC e ADI 2.362 MC, cujo re-lator foi o Ministro Ayres Britto, j. 25-11-2010, P, DJE de 19-5-2011, “A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de “ori-ginário”) não está sujeita a nenhuma limitação normati-va, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou suprapositivo. Já as nor-mas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua va-lidez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas.”

A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de “originário”) não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou suprapositivo. Já as normas pro-duzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e

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eficácia condicionadas à legitimação que recebam da or-dem constitucional.

Inflação legislativa

A efetividade da Constituição materializa-se na mu-dança na vida social, sem que isso venha abalar a mecâ-nica do processo político. É evidente que as leis devem adequar-se às contingências sociais, a fim de tutelar os interesses dos envolvidos. Entretanto, a inflação legisla-tiva em hipótese alguma assegura a efetividade dos ser-viços estatais, surgindo aí uma lacuna entre o fatalismo e o idealismo.

O fatalismo reside no fato de que o excesso de leis podem gerar expectativas que vão além da capacidade es-tatual de atendimento das demandas, o que potencializa o estado de coisa, sentimento de insatisfação e frustra-ção social. Por outro lado, o idealismo almeja um cenário ideal de estabilidade constitucional, onde o Estado-juiz atende às lides de forma a pacificá-las sistematicamente, de maneira previsível, assegurando a efetividade da tutela jurisdicional, equilíbrio político, social e jurídico.

Para Ferreira Filho (2001), estabelecida a Constitui-ção pode ser conveniente alterá-la. Com a obra humana é sempre imperfeita, como o mundo evolui, A Lei suprema não pode ser editada de uma vez para todo o futuro. Põe--se então a questão de sua alteração, seja por supressão de disposições, seja por modificações no texto, seja por adi-ções a este. É esta, em particular, a sina das constituições enxundiosas, ditas analíticas, como a Brasileira em vigor,

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que, detalhando soluções, logo se tomam inadequadas em face de novos tempos ou de novas políticas.

Nesse sentido, para Jean Cruet, em sua obra A vida do Direito e a Inutilidade das Leis, temos:

Sem dúvida o legislador tem o firme propósito de inovar, e, em cada uma das suas leis, julga as mais das vezes fazer de criador. Olhando, porém, de mais per-to, percebe-se que a máquina de fabricar leis gira no vácuo e não produz nada, quando não tem para moer o bom grão das ideias feitas e dos usos recebidos, quando não tem ao menos para amassar a matéria prima de uma concepção vigorosamente enraizada no espirito público ou de uma instituição largamente esboçada na prática (CRUET, 1908, p. 165).

Alterar a letra de lei não é a garantia satisfaciente do direito preconizado por esta, cabendo ao Estado juiz a apli-cação da abstração positivista face a um caso em concreto.

Corroborando com este pensamento, é de se reco-nhecer que o Direito tem limites que lhe são próprios e que por isso não pode, ou melhor, não deve normatizar o inalcançável (BARROSO, 201, p. 55).

O objeto da legislação simbólica pode ser também fortificar “a confiança do cidadão no respectivo governo, ou, de um modo geral, ao Estado”. [...] O legislador, mui-tas vezes sob pressão direta, elabora diplomas normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com isso haja o mínimo de condição de efetivação das respec-tivas normas (NEVES, 1994, p. 37).

Essa possibilidade de revisão de lei já observara-se mesmo na fase incipiente da Carta Magna, quando da

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previsão legal do Art. 3° do Ato das Disposições Consti-tucionais Transitórias (ADCT). Aliás, uma revisão pre-vista para 5 (cinco) anos depois da entrada em vigor da Lei Maior, que já se realizou, no ano de 1994, conforme o quadro abaixo diagramado:

Quadro 1 – Emendas Constitucionais de revisão na Constituição de 1988

e.c.r. assunto

Nº 01 Acrescenta o § 4º ao art. 55 da Constituição Federal.

Nº 02 Altera o art. 82 da Constituição Federal.

Nº 03 Altera o § 9º do art. 14 da Constituição Federal.

Nº 04 Altera a alínea “c” do inciso I, a alínea “b” do inciso II, o § 1º e o inciso II do § 4º do art. 12 da Constituição Federal.

Nº 05 Altera o caput do art. 50 e seu § 2º, da Constituição Federal.

Nº 06 Acrescenta os arts. 71, 72 e 73 ao ADCT.

Fonte: Elaboração própria, 2016.

As Emendas Constitucionais de Revisão, já ditam o ritmo das frenéticas alterações a que a Constituição de 1988 seria submetida, em média, 3,53 por ano, conforme depreende-se do quadro abaixo disposto:

Quadro 2 – Número de Emendas por Constituição

constituição término duração (anos)

nº de emendas taxa de emendamento

1891 1930 40 1 0,025

1934 1937 3 1 0,33

1937 1945 8 21 2,62

1946 1967 21 27 1,28

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1967 1969 2 0 1,36

1988 - - 93* + 6** 3,53

* Até setembro de 2016** ECRFonte: Elaboração própria, 2016.

O excesso de emendas descola o sentimento de du-rabilidade para o de instabilidade democrática, onde a segurança jurídica é abalada face ao sentimento de mu-tabilidade constitucional, coloca em xeque o caráter du-radouro dos preceitos fundamentais da Nação, contidas em sua suprema lex. Seria o receituário legislativo remé-dio para todos os males nacionais? Ou apenas formalida-de que fomentam um estado de expectativas de direitos inalcançáveis? Pareadas as modificações, necessário se faz elaborar mecanismos de consecução do Estado de bem estar social, utilizando-se da lei apenas como instrumento meio para o alcance do fim, a prestação de serviços esta-tais de qualidade, que atendam às demandas dos cidadãos.

Afirma Silva (1967) que “Ainda que a chamada infla-ção legislativa seja essencialmente um fenômeno moder-no, os artigos não deixaram de notar a analogia existente entre a deterioração da coisa pública e o aumento do vo-lume das leis (...) e em via de regra é assim: quanto pior vai o Estado, maior o número de leis, quanto melhor ca-minha, menor é a quantidade delas”.

O sentimento de prestação estatal se concretiza com a percepção de que as leis são suficientemente efetivas para que a quantidade e pormenorização destas sejam in-significantes frente ao sentimento de efeito-solução que estas surtam no seio social.

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Conclusão

A Constituição de um país deve refletir as condições históricas políticas e sociais de um povo. Atualizá-la é ne-cessário a fim de que o Estado acompanhe o estado de necessidade de seus cidadãos, atendendo seus anseios sociais. Entretanto, o excesso de leis (inflação) não e a panaceia para todos os males. Serve apenas como instru-mento da efetivação dos direitos assegurados pelo Esta-do-Nação.

A Constituição Brasileira de 1988 é fruto de anseio político e social pós ditadura militar onde nota-se uma exacerbação de direitos garantidos exclusivamente por força normativa, sem a preocupação efetiva da conse-cução destes no cotidiano dos cidadãos, causando uma sensação de estado-de coisa, choque entre fatalismos e idealismo.

Há de se reconhecer que o Direito tem limites que lhe são próprios e que por isso não pode, ou melhor, não deve, normatizar o inalcançável sob pena de frustração coletiva e descredito institucional.

As Emendas Constitucionais previstas no arcabouço legal devem retratar mudanças necessárias à estabilidade social, atendendo anseios concretos e não somente ex-pectativas de direito.

Referências

BARROSO, Luís Barroso. O Direito Constitucional e a efetividade das normas: limites e possibilidades da Cons-tituição Brasileira. Renovar, 9. ed, São Paulo: 2010.

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CRUET, Jean. A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis. Livraria editora, Lisboa: 1908.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Reforma, Revisão e Emenda Constitucional no Direito Brasileiro. Revista de Direito Administrativo, vol. 223, jan/mar, p. 53-74, Rio de Janeiro: 2001.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994.

SILVA, JUARY C. Considerações em torno da inflação le-gislativa. Conferência no Instituto dos Advogados Brasi-leiros, 1967.

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Sociologia Jurídica e Pluralismo Jurídico: caminhos para uma sociedade aberta dos intérpretes da ConstituiçãoMarcello Phillipe Aguiar Martins116

Introdução

O presente projeto foi pensado na disciplina de Her-menêutica Jurídica do Mestrado em Direito Ambiental do Programa de Pós Graduação em Direito Ambiental – PPGDA em que foram abordados diversos temas a res-peito da Interpretação das Normas Jurídicas, entre eles o papel da sociologia jurídica e sua contribuição para um conceito material de Constituição, pois existe uma “Constituição Viva”, em que as forças sociais exercem uma enorme influência, diferente da Constituição for-mal em que muitas vezes não retratam a realidade de um povo. Nesse sentido, é fundamental a contribuição de Eugen Ehrlich para a construção a idéia de um plura-lismo jurídico e sua aplicação na interpretação constitu-cional, principalmente na construção de uma sociedade aberta de interpretes da Constituição.

Dessa forma, com este trabalho pretende-se repen-sar a figura do Estado como fonte exclusiva do Direito e a conseqüente crise de legitimidade por ele enfrentada enquanto legado da modernidade, o que chamaremos de “paradoxo do Estado Garantista”, pois ao mesmo tempo em que o Estado afirma direitos fundamentais, nem sem-

116 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.

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pre consegue cumprir a efetividade desses direitos. Em igual medida, objetiva-se compreender a Constituição na perspectiva do Pluralismo Jurídico a fim de superar a pressuposta exclusividade do Estado como sendo a única fonte de produção do Direito. Finalmente, será analisada a importância do pluralismo em uma interpretação cons-titucional aberta, em que se dá maior legitimidade de-mocrática na interpretação da Constituição, com o povo exercendo um papel ativo nesse processo.

A fim de cumprir os objetivos estabelecidos, proce-der-se-á uma revisão bibliográfica e documental, na qual será revisitado a contribuição da sociologia jurídica na construção do conceito do pluralismo jurídico à partir de Eugen Ehrlich e Boaventura de Souza Santos.

Aspectos gerais da Sociologia Jurídica

A Sociologia Jurídica teve início em meados do sécu-lo XIX quando os teóricos sociais voltaram-se ao direito, tentando explicá-lo através de suas teorias, a exemplo de Durkeim, Karl Marx e Max Webber.

Esses teóricos contribuíram pra perceber que o ju-rista deve entender o direito aliado as relações sociais, pois o ordenamento jurídico vive em reciprocidade com a vida em sociedade, ou seja, o direito é um fenômeno condicionado e condicionante da sociedade (repartição de riquezas, grau de liberdade de seus membros, à difu-são de oportunidades entre eles, às suas crenças morais e religiosas, ou aos antagonismos entre os grupos sociais), ora influenciando ora sendo influenciado.

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Alguns autores foram além, não apenas entendendo a importância do jurista estar antenado aos problemas sociais para a aplicação jurídica, mas também explicando a sociologia como uma verdadeira teoria do Direito.

Nesse contexto, o direito e a norma jurídica podem ser submetidas a três valorações distintas, e que essas va-lorações são independentes uma das outras: Justiça, Vali-dade e Eficácia.

O primeiro, o problema deontológico do direito, significa que a norma jurídica tem que representar os valores últimos ou finais que inspiram um determinado ordenamento jurídico, está intrinsecamente ligado ao Jusnaturalismo.

O problema da validade nos diz que independente se uma norma é justa ela pode ser válida dentro de um sis-tema, ou seja, a validade jurídica de uma norma equivale à existência desta norma como regra jurídica. Assim, para ser válida a norma deve ser: emanada por uma autoridade legítima para tal; averiguar se não foi ab-rogada, averiguar se a norma não é incompatível com outras normas do sis-tema, principalmente se for hierarquicamente superior. (BOBBIO, 2001, p. 46). Está ligada a corrente positivista.

Por último, o problema fenomenológico, relaciona-do a sociologia, é o problema da norma ser ou não segui-das pelas pessoas a quem é dirigida. Bobbio explica que não cabe ao jurista explicar o porquê de a norma ser ou não eficaz “ a investigação para averiguar a eficácia ou não de uma norma é de caráter histórico-sociológico, se volta para o estudo do comportamentos dos membros de um determinado grupo social” “(BOBBIO, 2001, p. 48).

Portanto, partindo-se do problema fenomenológico do direito percebemos cada vez mais a importância da so-

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ciologia jurídica na interpretação constitucional, de uma constituição viva que não está no papel, pois caso essa Constituição não reflita a realidade social será mera “fo-lha de papel”.

Imaginemos que o Poder Constituinte Originário fosse emanar uma nova Constituição no Estado brasilei-ro, em que teríamos no seu texto a extinção de direitos fundamentais, escravidão, sociedade de castas, penas de morte, cruéis, degradantes e etc. Assim indagamos será que essa nova Constituição seria aceita ou mesmo refleti-ria a realidade social do povo brasileiro?

Pensamos que apesar de o Poder Constituinte Ori-ginário não possuir limites jurídicos, existem forças so-ciais que impedem que ocorra o fato narrado, pois o texto constitucional tem que está coadunado com a realidade social de um povo, tanto na elaboração da norma jurídi-ca, como na sua aplicação, ou seja, na efetividade e con-cretização de direitos nela previstos.

Assim, como bem adverte Sarlet, 2013, p. 196:

Uma sociedade fragilizada, com a economia depen-dente e em crise, dificilmente assegura os pressu-postos para que os direitos sociais previstos no texto constitucional tenham eficácia e efetividade em ter-mos sequer próximos dos ideais. Estruturas sociais conservadoras podem obstacularizar a concretização de imposições constitucionais e mesmo de direitos fundamentais. Da mesma forma, atores sociais e po-líticos (incluindo aqui os agentes do Poder Judiciário como agentes políticos) comprometidos e capaci-tados para transformar a vontade em realidade são indispensáveis.

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No mesmo sentido, Albuquerque apoiado nas idéias de Ehrlich explica como o comportamento da socieda-de influencia no modo como concebemos o Direito não como uma letra morta, mas sim como um direito vivo.

É a forma como as pessoas efetivamente se compor-tam num agrupamento social que define o direito dessa sociedade. Quem quer conhecer o direito de uma sociedade não deve buscar códigos, textos ou monumentos, deve, sim, observar o comportamento de seus membros. O direito existe como experiên-cia vivida na realidade social e não como letra morta num texto sacramentado (EHRLICH, 1986, p 10.).

A partir de Ehrlich a sociologia a aproxima o Direito a vida, às realidades sociais concretas, às classes sociais mais profundas, as relações comunicantes dos ordenamentos sociais que tornam as instituições jurídicas dinâmicas.

O autor, em sua obra, apresenta uma parábola, se-gundo a qual querer aprisionar o direito de uma época ou de um povo nos parágrafos de um código corresponde mais ou menos ao mesmo que querer represar um grande rio num açude: o que entra não é mais correnteza viva, mas água morta e muita coisa simplesmente não entra (EHRLICH, 1986).

Nessa destra, elucida que não se pode reduzir todo o ordenamento ao direito estatal, uma vez que o Estado é apenas um dos grupos sociais existentes na realidade, que possui direito próprio, com conteúdo organizatório, as-sim como o de qualquer outra associação humana. Logo, o Estado cobre apenas parcela da realidade humana e se nos limitarmos unicamente a ele, estaremos bloquean-

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do o direito vivo, enaltecendo o direito “morto” submis-so aos termos da lei. No mais, podemos notar que Ehr-lich defende implicitamente  o Pluralismo Jurídico sem ao menos defini-lo, sendo seu pensamento consagrado como a gênese das construções atuais.

Por muito tempo, a concepção de direito e de lei era eminentemente baseada no monopólio esta-tal da força física. Concebia-se o direito legal como a única fonte de legitimidade para a regulação dos comportamentos individuais. Muitas vezes os pes-quisadores, percebiam que havia um distanciamento esse que não só imprimia a necessidade de reforma, como também tornava problemático o ensino jurídi-co. Nossa tradição de ensino jurídico estava baseada em concepções solidificadas do Direito – conhecido como monismo do direito – e de justiça – a justiça do Estado (EHRLICH, 1986, p. 17).

Portanto, o Direito era visto como sendo único, apli-cado e elaborado apenas pelo poder do Estado. Essa dog-mática, passada de geração para geração, não admitia a crítica aos fundamentos do Direito que tem como marco de aplicação dessa dogmática jurídica a modernidade.

Assim, passaremos a estudar como seu deu o proces-so de construção da idéia monista de um Estado como única fonte de produção jurídica, o que nem sempre foi assim, pois na Idade Média já existiam sociedades plurais que com a modernidade foram absorvidas e que hoje, no-vamente entram em debate, com a crise da modernida-de evidenciando a necessidade de uma democracia mais participativa.

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Pluralismo Jurídico

Antes de adentrarmos no tema do Pluralismo Jurídi-co se faz necessário algumas considerações como se deu a formação da cultura jurídica na modernidade ocidental de tradição europeia.

Aspectos históricos

No início da Idade Média vivíamos em uma socieda-de feudal em que era extremamente descentralizada, pois o poder estava presente em vários locais e isso vai refletir na ordem jurídica, no sistema normativo, nas formas de controle social, pois se o poder e as instituições eram des-centralizados o direito dominante na idade média era um direito descentralizando em que conseguiam conviver em harmonia e outras vezes em conflito (direito canôni-co, direito romano, direito dos senhores feudais, direito dos mercadores). Podemos perceber então, o Pluralismo Jurídico na idade média.

O pluralismo político medieval se dá mediante in-finita multiplicidade de centros internos de poder político, distribuídos a nobres, bispos, universida-des, reinos, entidades intermediárias, estamentos, organizações e corporações de ofício (WOLKMER, 1994, p.27).

Assim o pensamento ideológico medieval era basea-do na concepção “corporativa” da vida social, valorizan-do os fenômenos coletivos e os múltiplos corpos sociais,

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cada qual com sua autonomia interna para as funções políticas e jurídicas, mas dispostos a colaborar como o conjunto e dele participar solidariamente.

Bobbio explicando o funcionamento da sociedade medieval nos diz que:

Esta sociedade era pluralista, isto é, formada por vá-rios ordenamentos jurídicos, que se opunham ou se integravam: havia ordenamentos jurídicos univer-sais, acima daqueles que hoje são os Estados nacio-nais, como a igreja e o império, e havia ordenamen-tos particulares abaixo da sociedade nacional, como os feudos, as corporações, e as comunas. Também a família, considerada pela tradição do pensamento cristão como uma societas naturalis, era em si mes-ma um ordenamento (BOBBIO, 2001, p. 31).

Porém, a partir da Alta idade média, a burguesia co-meça a ganhar força e inicia-se a formação dos Estados Modernos, pois era mais interessante para essa classe colocar um único centro de poder para atender aos seus interesses (COTRIM, 1996).

Nesse contexto, o mercantilismo foi responsável pelo enriquecimento europeu, pela consolidação das monar-quias absolutistas, mas foi, igualmente, responsável pela ascensão da burguesia, a qual, a partir dos lucros gerados pela riqueza mercantil, foi-se tornando cada vez mais rica e independente da prática do Estado.

Assim, configurou-se a natureza contraditória do Es-tado absolutista. As mesmas práticas que levaram ao seu fortalecimento levaram também à ascensão da camada que acabou por destruí-lo.

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O século XVIII representa, na Europa, o clímax dessa contradição. Existem monarquias poderosas, nas quais o poder do rei confunde-se com a própria essência do Es-tado, tendo ao lado uma nobreza decadente e cada vez mais parasitária em relação às regalias que o Estado lhe concede. E há, ao mesmo tempo, uma burguesia rica, já liberta da necessidade de um Estado para implementar as condições para o seu crescimento.

Essa burguesia ascendente já não aceita mais o abso-lutismo e a intervenção do Estado na economia, consubs-tanciada nos princípios mercantilistas, nem os privilégios cada vez mais onerosos da nobreza, pagos com o dinheiro gerado pela ação econômica burguesa.

É essa realidade que deu ensejo a um novo movimen-to cultural, ao qual se deu o nome de Ilustração ou Ilumi-nismo. Trata-se de um amplo movimento artístico, filosó-fico, literário e científico que, historicamente, sintetiza a expressão teórica de um momento no qual a burguesia já não aceita mais as características que marcam a vida eu-ropéia, às quais o próprio Iluminismo deu o nome de An-tigo Regime, e coloca-se como uma alternativa de poder.

Portanto há um quebra de paradigmas que dá início a modernidade, agora emana uma sociedade centrada no interesse do espaço privado e na ética da racionalidade liberal-individualista, antropocêntrica, humanista e no sistema capitalista mercantil.

Lembremos mais uma vez que o Estado Moderno cria as condições para a viabilidade e expansão capitalis-ta. Sem Estado Moderno não haveria capitalismo. O Estado Moderno trouxe instituições fundamentais para o sistema econômico moderno capitalista que

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nos acompanham até hoje: o povo nacional, doma-do, uniformizado, normalizado; os bancos nacio-nais; as moedas nacionais; a burocracia estatal e a administração do sistema tributário; o controle da população, dos rebanhos, da produção agrícola e in-dustrial (os censos); a polícia nacional (para conter os excluídos); os presídios e manicômios para esto-car o excedente não absorvido pela economia para a finalidade de exploração de mão de obra e guardar os não adaptados; e os exércitos nacionais, respon-sáveis pela invasão do mundo pelas novas potencias, garantindo com isto os suprimento de recursos na-turais e mão de obra escrava e depois barata, para as economias capitalistas hegemônicas (MAGALHÃES, 2008, p. 7).

Assim há uma imposição eurocêntrica de tradição e herança românico germânica em que o Pluralismo perde espaço, agora a lei é a expressão da vontade popular ca-racterizada por uma Cultura centralizada monista: Justi-ça perde espaço para a segurança, previsibilidade, violên-cia legitimada por parte do estado, criando funcionários, burocracia vinculada ao estado.

Essa nova sociedade é capitalista, no seu sistema pro-dutivo. Isso vai afetar a construção do Direito para uma cultura monista (estatalista). Nesse diapasão destacam-se a as teorias contratualistas, de Hobbes, Locke e Rousseau.

A teoria estatalista do direito é produto histórico da formação dos grandes Estados modernos, erigidos sobre a dissolução da sociedade medieval. [...]O Estado moderno foi formado através da elimina-ção ou absorção dos ordenamentos jurídicos supe-

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riores e inferiores pela sociedade nacional, por meio de um processo que se poderia chamar de monopo-lização da produção jurídica (BOBBIO, 2001, p. 31).

E até os dia de hoje, vivemos nessa modernidade em que o Direito continua como sendo a única fonte de pro-dução jurídica, evoluindo para as teorias Pura do direito de Hans Kelsen e mais atual da força normativa da Cons-tituição de Konrad Hesse.

Segundo Boaventura de Sousa Santos, 2007, p. 165:

Enquanto domínio social funcionalmente diferen-ciado, o direito desenvolveu um autoconhecimento especializado e profissionalizado, que se define como científico (ciência jurídica), dando assim origem à ideologia disciplinar a que chamo cientificismo jurí-dico.[...], cientificismo jurídico e o estatismo jurídi-co evoluíram pari passu. O positivismo jurídico é a co-evolução ideológica.[...]. O saber jurídico tornou--se científico para maximizar a operacionalidade do direito enquanto instrumento não científico de con-trolo social e de transformação social.

Porém, percebemos no final do século XIX e meados do século XX, que se constata uma forte reação de dou-trinas pluralistas, diante das manifestações de uma socie-dade burguesa em seu apogeu, da clara expressão do capi-talismo industrial e do amplo domínio do individualismo filosófico, do liberalismo político-econômico e do dogma do positivismo jurídico estatal.

Portanto, destacam-se as teorias sociológicas em que Eugen EHRLICH, 1986, p. 25 aduz que “a função primor-dial do direito em todos os lugares não é a resolução dos

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conflitos, mas sim a instituição de uma ordem pacifica interna das relações sociais de qualquer associação hu-mana” (O autor ainda afirma que o direito não pode ser unicamente aquele proveniente do Estado, positivado. Este direito estatal é fechado e não consegue abranger a sociedade como um todo, mas sim composta por or-ganizações diversificadas ou associações humanas que se interrelacionam, concluindo que cada associação cria seu próprio ordenamento jurídico, autônomo do Estado e à qualquer outra forma de organização. No pluralismo é fundamental a participação da sociedade nas relações que as envolvem, a fim de incessantemente buscarem a ordem mais satisfatória do bem-estar e pacificação. Seja em qualquer sociedade o direito está intrinsecamente in-serido para promover a solução dos conflitos.

Pluralismo Jurídico

No final do século XX percebemos uma modernidade em crise, em que está havendo uma crise de legitimidade do Direito, pois a falta de eficácia e efetividade frente ao mundo globalizado nos fazem pensar no “Paradoxo do Estado Garantista”, pois ao mesmo tempo que o Estado afirma cada vez mais direitos no seu texto constitucional nem sempre consegue concretizá-los.

Assim, a crise nos leva a pensar em modelos alter-nativos, em superação de paradigmas para responder a novas demandas sociais, o que é difícil de aceitar, pois a noção de Estado que temos hoje é fruto das idéias da mo-dernidade no Estado com única fonte do Direito.

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Nesse contexto, estamos num momento de contra-dição, isto é, quando os princípios de organização políti-cos e econômicos são questionados, os sistemas jurídicos enfrentam incessante dificuldade não só para solucionar, em termos práticos, os conflitos sociais, mas também para sustenta a sua validade teórica como único instru-mento da ciência para controle social, ou seja, está ha-vendo uma crise em que o direito positivo na qualidade de estrutura fundamental do sistema é posto a berlinda tanto ao nível de prática judicial quanto da teoria do Di-reito (CAPILONGO, 1986).

Em contextos sociais tensos e fragmentados como o brasileiro, a rigidez do modelo positivista de Cons-tituição conduz a oscilação entre duas alternativas: ou a perda da eficácia da ordem constitucional ou o alargamento de suas bases pelo recurso a formas mais flexíveis e abertas. Qualquer que seja a tendên-cia, o conceito de sistema jurídico como um todo fe-chado, harmônico e completo torna-se inadequado (CAMPILONGO, 1986, p. 94).

Portanto, considerando essa crise de modernidade Boaventura dos Santos afirma que devemos superar esse modelo monista, pois o direito estatal não está dando respostas aos problemas sociais em virtude da crise de legitimidade, abrindo espaço e ganhando força o plura-lismo (SANTOS, 1988).

Assim, SANTOS 1988, p. 7-9 explicita que: “o plura-lismo jurídico surge para preencher a lacuna promovida pela ausência do Estado em determinadas localidades”.

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Neste sentido, Antonio Carlos WOLKMER designa pluralismo jurídico: “como a multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais e culturais”. Os conceitos de pluralismo jurí-dico são amplos e não definem essencialmente o sistema em si, mas deixam claro que o modelo refere-se a múl-tiplos ordenamentos para satisfação das necessidades de associações de indivíduos, em contrariedade a unicidade do direito positivista, para o qual o direito é único e ex-clusivo e advém do Estado.

Assim, a sociedade é formada através da soma das vontades individuais e coletivas, e destas surgem deman-das que precisam ser resolvidas. Quando impossível a re-solução desses conflitos através do ordenamento jurídico formal, os indivíduos por si só buscam alternativas para verem seus anseios atendidos.

Sociedade aberta dos intérpretes

Percebemos que o pluralismo parte da idéia que o Estado não é o centro único do poder político e nem fon-te exclusiva de toda a produção jurídica, pois trata-se de uma perspectiva descentralizadora e antidogmática em que há uma supremacia dos ideais ético-político-socioló-gicos sobre critérios tecno-formais positivistas (WOLK-MER, 1994, p. 7).

Nesse contexto, destaca-se a teoria de Peter Harbele em sua obra “A sociedade aberta dos intérpretes da cons-tituição: contribuição para a interpretação pluralista e

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procedimental da constituição” em que o referido autor considera que uma teoria da interpretação constitucional deve encarar seriamente o tema “Constituição e realida-de constitucional” – aqui se pensa na exigência de incor-poração das ciências sociais (HARBELE, 1997, p.12), pois o modelo de interpretação constitucional sempre esteve vinculada a um modelo de interpretação de uma socieda-de fechada, em que preocupa-se apenas com a interpreta-ção do juízes e procedimentos formalistas.

Portanto, partindo da superação de uma sociedade fechada de intérpretes para uma sociedade aberta e plu-ralista Harbele explica que:

no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e gru-pos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpre-tes da Constituição (HARBELE, 1997, p. 13).

Podemos perceber assim, que a teoria da interpreta-ção deve ser garantida sob a influência da teoria demo-crática e pluralista:

cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública (...) representam forças produti-vas de interpretação (interpretatorische Produktivkräf-te); eles são intérpretes constitucionais em sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como préin-térpretes (Vorinterpreten). Subsiste sempre a respon-sabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação (com

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a ressalva da força normatizadora do voto minoritá-rio). Se se quiser, tem-se aqui uma democratização da interpretação constitucional (HARBELE, 1997, p. 14).

Pontanto, uma Constituição que estrutura não ape-nas o Estado em sentido estrito, mas também a própria esfera pública, dispondo sobre organização da própria sociedade e, diretamente, sobre setores da vida privada, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos. Ela deve integrá-las ativamente enquanto sujei-tos (…). Limitar a hermenêutica constitucional aos intér-pretes ‘corporativos’ ou autorizados jurídica ou funcio-nalmente pelo Estado significaria um empobrecimento ou um autoengodo (HARBELE, 1997, p. 33).

Conclusão

Com a crise do paradigma da modernidade, descor-tina-se o espaço para a retomada da tensão entre regu-lação e emancipação social. No campo jurídico, a crise desse paradigma representou o esgotamento de seu prin-cipal pilar de sustentação: o monismo jurídico, segundo o qual o Estado é a única fonte produtora de normativi-dade jurídica. Como contraponto à referida doutrina, re--surge o pluralismo jurídico que, apesar de apresentar-se de múltiplas formas, e, por isso, não poder ser categoriza-do em apenas uma instância de análise, tem como ponto de convergência a tese segundo a qual existem diversos sistemas normativos operando ao mesmo tempo e no mesmo espaço geo-político. Como o direito é fruto das relações sociais, a sua produção não é, e nem poderia ser, monópolio do Estado.

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Dessa forma, privilegiando-se o pluralismo contra--hegemônico, porque indultor de mudanças entruturais no Estado e na sociabilidade, procurou-se, através de um diálogo entre os pensamentos Boaventura de Sousa San-tos e de Antônio Carlos Wolkmer, buscar-lhe os funda-mentos e a legitimidade enquanto projeto jurídico.

Percebeu-se que, para a construção desse novo para-digma, é necessário, primeiramente des-pensar o direito moderno, concebido como um conjunto de leis, gerais e abstratas, emanadas pelo Estado, de forma a compreen-dê-lo como fruto das relações sociais e, por isso, concebi-do a todo instante, pelos mais variados grupos sociais. Os fundamentos desse projeto jurídico não são encontrados em um sistema ordenado de leis emanadas do Estado, e a sua legitimidade não está adstrita ao fato de ter sido produzido a partir de um conjunto de regras processuais racionalmente estabelecidas, mas sim nas práticas sociais dos novos sujeitos coletivos de direito que articulam a sua luta em torno de um projeto que promova a satisfação das necessidades humanas fundamentais dos segmentos sociais excluídos, dentro da perspectiva da construção política e jurídica participativa e descentralizada.

Assim, nesse contexto de pluralismo, procurou-se demonstrar a importância da teoria de uma sociedade aberta de intérpretes de Peter Häberle que diante da crise do processo democrático dos anos 70 na Alemanha, a par-tir da análise concretista dos problemas constitucionais, apresentou uma proposta na qual não apenas os intérpre-tes “clássicos”, por assim dizer, participariam da análise da Constituição. Ofereceu, para tanto, a proposta de uma dinâmica mais vasta de intérpretes da constituição, sig-nificativamente ampliada. Para este autor a perspectiva

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segundo a qual as normas constitucionais são entendidas pelos destinatários não é deixada em patamar inferior à perspectiva dos intérpretes “oficiais” da Constituição elencados pela teoria clássica.

Referências

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COTRIM, Gilberto. História & consiência do mundo: da Pré-Hisória à Idade Média. Saraiva, 1996.

EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direi-to. Brasília: UnB, 1986.

HABERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A socie-dade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da cons-tituição. Trad. De Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: SAFE, 1997.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Plurinacionalidade e cosmopolitismo: a diversidade cultural das cidades e di-versidade comportamental nas metrópoles, 2008.

SANTOS, Boaventura Sousa. O discurso e o poder. En-saios sobre a sociologia retórica jurídica. Porto Alegre: SAFE, 1988.

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______A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdí-cio da experiência. São Paulo: Cortez, 2007

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 2013.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: funda-mentos de uma nova cultura no direito. 3.ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001.

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O Transconstitucionalismo no Brasil: a inclusão da concepção internacional de Direitos Humanos no Su-premo Tribunal FederalNatasha Yasmine Castelo Branco Donadon117

Introdução

Diante da emergência de casos jurídicos concretos transterritorializados relevantes para diversas ordens jurídicas envolvendo, inclusive, direitos humanos, invo-ca-se o conceito de transcontitucionalismo. Neste dia-pasão, nota-se a importância de um estudo aprofundado da matéria, tendo em vista, principalmente, o inevitável surgimento de colisões nessas relações.

O Constitucionalismo foi o movimento que surgiu quando as constituições estatais deixaram seu papel se-cundário e vieram a ocupar o papel principal, ou seja, centro dos ordenamentos jurídicos dos Estados, tornan-do-se indispensável para a limitação, a organização do poder e trazendo a positivação dos direitos fundamen-tais. Porém, o Constitucionalismo não consegue ir além dos problemas internos de cada Estado, as questões de ordem mundial não são tratadas, principalmente a ques-tão da eficácia de direitos fundamentais que deixou de ser, em muitos casos, um problema que se remete a um único Estado.

O conceito clássico de Constitucionalismo ense-ja uma visão de determinar os direitos e garantias fun-

117 Mestranda em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Advogada.

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damentais dos indivíduos em um território delimitado. Como tempo, o incremento das relações transterritoriais com implicações normativas fundamentais levou à ne-cessidade de abertura do constitucionalismo para além do Estado e daí surge o transconstitucionalismo.

O presente capítulo tem como pretensão principal a abordagem do transconstitucionalismo e seus efeitos nas decisões nacionais, envolvendo o cenário da globalização e a iminente necessidade de se adotar novos mecanismos que busquem solucionar, facilitar e evoluir positivamen-te os diálogos transconstitucionais sobre os direitos hu-manos na sociedade jurídica internacional.

Ademais, busca-se identificar a contribuição dos fenômenos da Transconstitucionalidade para o Consti-tucionalismo brasileiro, nos últimos anos, como sendo um processo de integração e interconexão dos Estados globalizados. Para tanto, busca-se compreender os direi-tos humanos na sociedade atual, entender como se dá o transconstitucionalismo entre diversas ordens jurídicas, e sua aplicação prática no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Este capítulo visa a demonstrar a necessidade de uma política de diálogo e cooperação mútua entre os Es-tados, a partir de um desprendimento de vaidades e po-der, e sentimento de solidariedade na sociedade jurídica global. Desse modo, concluir-se-á que o transconstitu-cionalismo é o direito constitucional do futuro.

A transformação do Estado Soberano

O relacionamento entre Direito Constitucional e Di-reito Internacional é cada vez mais intenso e complexo.

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Com frequência, ambos atuam em cooperação na busca da promoção dos direitos humanos e fundamentais, que tanto estão previstos nas constituições democráticas in-ternas como no plano internacional. Mas, outras vezes, podem haver conflitos entre eles, principalmente pela pretensão de supremacia manifestada por ambos.

Muito se sabe e conhece sobre a soberania estatal, mas, se faz oportuno tecer alguns comentários relaciona-dos a seu conceito. Para Anthony Giddens118:

Soberano é o Estado cuja organização política tem a potencialidade, dentro de um território ou terri-tórios delimitados, de produzir leis e efetivamente sancionar a sua manutenção; exercer um monopólio sobre o controle dos meios de violência; controlar políticas básicas relacionadas às questões internas ou à forma administrativa de governo; e o acesso aos frutos de uma economia nacional que sejam a base de sua receita.

Ainda no entendimento do autor, em um estado so-berano, de caráter democrático, a autoridade estatal é a mediação suprema legisladora e executora da lei, estas sendo unificadas. Os governos representam essa autori-dade soberana como “delegados”, e isso é uma fonte das tendências em direção à poliarquia nos estados modernos.

No entendimento de Eduardo Garcia Maynez119:

118 GIDDENS, Anthony. O Estado-nação e a violência. São Paulo: EDUSP, 2001. p. 296.

119 MAYNEZ, Eduardo Garcia. Introdución al estúdio del derecho. México: Porrua, 1974. p. 101.

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A soberania é um atributo essencial do poder políti-co. Pode ser vislumbrado tanto positiva quanto ne-gativamente. Sob o foco negativo, é a prerrogativa de que nenhum poder é maior que o estatal. Na via po-sitiva, é a compreensão de que é a sua independência em relação a outras potências.

Destarte, entende-se que a soberania no plano in-ternacional significa independência, pois os Estados são unidades políticas soberanas, iguais e politicamente in-dependentes. De fato, a soberania se mostra um elemen-to importante para o Estado Moderno e também para a formação da sociedade internacional. A teoria da sobera-nia absoluta é viável ao Estado que não tenha pretensão de reduzir sua política às regras do Direito Internacional, porém, a primazia da soberania até o momento não legi-tima o abuso deste poder.

Apesar de a soberania ter sido o fundamento do Di-reito Internacional na sua origem (para fomentar a paz entre os Estados), é cediço que a soberania nunca foi ab-soluta, conforme se observa teoricamente.

Assim, o conceito de soberania advindo da doutrina francesa entra em contraponto com a doutrina contem-porânea do direito internacional público. Constata-se que o conceito de soberania é relativo, não sendo um ele-mento essencial ao Estado. Desta forma, não se poderia elencar os Estados que se submetessem às normas de Di-reito Internacional como entidades soberanas, visto que a soberania significa autoridade suprema.

Aqui deve haver uma observação no que tange a De-claração da Carta das Nações Unidas em 1945 e a Declara-ção dos Direitos do Homem em 1948, ambos transferem para o plano âmbito internacional os limites à soberania

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até então exclusivos ao plano interno estatal. Acontece um processo de globalização e internacionalização da proteção dos direitos fundamentais, se exigindo aos Es-tados práticas concretas para seus interesses internos e para os interesses comuns da humanidade.

Não obstante estes fatos, a noção de soberania con-tinua por ser utilizada nas relações internacionais, assim, a própria ONU mostra sua vinculação a tal princípio ao exigir que a Organização e seus Membros devem agir conforme ao princípio da igualdade soberana de todos os seus membros. Ainda, há proibição de ingerência da Or-ganização120 nas pautas de ordem interna dos Estados em seu artigo 2º, inciso 7:

Artigo 2. A Organização e seus Membros, para a rea-lização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agi-rão de acordo com os seguintes Princípios:(...)7. Nenhum dispositivo da presente Carta autoriza-rá as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Car-ta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII.

A partir dessas considerações, verifica-se a impor-tância de se compreender as mutações que o reconheci-mento dos direitos fundamentais trouxe para o Direito

120 BRASIL, Decreto Nº 19.841, de 22 de outubro de 1945. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D19841.htm>. Acesso em 17.11.2016.

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Internacional. A rede de proteção dos direitos fundamen-tais indicou o que é matéria de competência exclusiva de cada Estado e incentivou a necessidade de um sistema de garantias jurisdicionais aplicáveis contra os Estados. Isto porque, segundo Luigi Ferrajoli121:

A soberania, sob a ótica do direito, revelou-se uma categoria antijurídica, porque ela é uma negação do direito, da mesma forma que este é a sua negação. Ou seja, há uma antinomia entre direito e soberania, justamente pelo fato de que o poder soberano dos Estados é desprovido de regras e limites.

Principalmente, deve-se considerar que idealizar a soberania como o poder máximo do Estado, prejudica a compreensão da sua dimensão externa internacional, onde se faz necessário coabitar uma gama diversificada de vontades soberanas. Os aspectos jurídicos, históricos e políticos do conceito de soberania são indissociáveis, tanto que o seu conceito político serve para justificar a noção jurídica do poder estatal.

Portanto, verifica-se que sempre haverá dicotomia frente à proteção dos direitos fundamentais, criando cer-tos conflitos entre a soberania estatal e o direito inter-nacional. Diante de um cenário jurídico longe de ser o ideal e mais eficaz, juristas por todo mundo buscam solu-ções para os problemas constitucionais que ultrapassam fronteiras territoriais e se explanam no âmbito interna-cional. Assim, o processo de globalização jurídica tornou--se inevitável. Apesar de existir uma Constituição uma,

121 FERRAJOLI, L. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 45.

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verifica-se a necessidade da implementação de um novo constitucionalismo, principalmente no que diz respeito à proteção jurisdicional dos direitos fundamentais.

Contando com uma nova visão na busca da proteção e efetivação dos direitos fundamentais e consequente-mente com uma maior integração da sociedade mundial, os problemas inerentes ao tema tornaram-se impossibili-tados de serem tratados por um único Estado. É cada vez mais frequente a ocorrência de problemas de direitos hu-manos tornando-se relevantes para mais de uma ordem jurídica, simultaneamente.

Segundo Marcelo Neves122:

O direito constitucional, embora tenha sua base ori-ginária no Estado, começa a se emancipar dele, não pelo surgimento de outras Constituições, mas ten-do em vista que outras e diversas ordens jurídicas estão envolvidas diretamente na solução de proble-mas constitucionais, prevalecendo, em muitos casos, contra a orientação das respectivas ordens estatais.

Destarte, consigna-se que não se pode substituir a dignidade, a liberdade, a igualdade garantida pelos di-reitos humanos fundamentais por noções defasadas dos termos “Constituição”, “soberania”, “Estado” ou “supre-macia”, vez que são aqueles princípios basilares da cons-trução de qualquer sociedade efetivamente justa, plural e democrática.

122 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

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Acerca desse paradoxo, o sociólogo humanístico po-lonês Zygmunt Bauman123, salienta que é utópico pen-sar em soluções uníssonas e incontestáveis para dilemas morais, uma vez que estes, por sua própria natureza, são ambíguos. Dessa maneira, a solução não estaria na posi-tivação genérica e vaga dos direitos humanos na esfera internacional, mas na constituição de um diálogo inter-cultural que permita uma real construção de valores uni-versais. Nesse sentido, a própria natureza desses direitos mostra-se facilitadora desse debate, pois tem como pre-missa justamente a aceitação das diferenças e a não dis-criminação de qualquer natureza.

Transconstitucionalismo

Com o advento da Globalização, ao fomentar a mi-tigação das barreiras econômicas e proporcionar modifi-cações de ordem social, tecnológica e cultural, promoveu também uma interdependência entre os Estados, o que significa na diminuição de suas respectivas autonomias.

Daí, surgiu a necessidade de um diálogo que per-mitisse aos Estados, utilizando-se de princípios básicos, aprofundarem-se no processo de integração em busca de soluções que respondam aos interesses de partes ambi-valentes que estejam submetidas a textos constitucionais distintos.

Portanto, existe uma interconexão que liga as Cons-tituições nacionais a uma órbita maior, internacional.

123 BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997.

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Assim, de acordo com Peter Häberle124, alertando que o Estado Constitucional e o Direito Internacional trans-formam-se em conjunto, o Direito Constitucional não começa onde cessa o Direito Internacional. De sorte que também o Direito Internacional não termina onde come-ça o Direito Constitucional.

Na visão do ilustre constitucionalista alemão, os ordenamentos jurídicos internos necessitam, cada vez mais, da conexão com os ordenamentos jurídicos exter-nos para que sejam garantidos os próprios direitos consa-grados nas suas constituições.

Em sua obra, o dileto constitucionalista Marcelo Neves125, propõe uma solução: o diálogo construtivo. Re-ferido fenômeno é intitulado “transconstitucionalismo”. Sua proposta central é a busca por uma convivência coo-perativa, e não destrutiva, entre as perspectivas jurídicas apresentadas pelas decisões emanadas dos tribunais na-cionais e internacionais.

A partir daí, destacando-se um ideal de aceitação e pluralidade, e abdicando-se das disputas de poder, seria possível promover um diálogo jurídico cultural entre vá-rias instâncias decisórias, de maneira que casos comuns possam ser enfrentados conjuntamente. Em suas palavras:

O caminho mais adequado em matéria de direitos humanos parece ser o ‘modelo de articulação’, ou melhor, de entrelaçamento transversal entre ordens jurídicas, de tal maneira que todas se apresentem capazes de reconstruírem-se permanentemente me-

124 HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

125 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 264.

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diante o aprendizado com as experiências de ordens jurídicas interessadas concomitantemente na solu-ção dos mesmos problemas jurídicos constitucionais de direitos fundamentais ou direitos humanos.

Assim, evidencia-se a necessidade de um maior diá-logo e aproximação entre ordens constitucionais, partin-do da premissa de que os direitos ultrapassam o limite interno dos Estados. Não se pretende a implementação de uma Constituição universal, ao contrário, o objetivo é a inclusão de mecanismos eficazes de interação entre as ordens constitucionais e a evolução e eficiência nas deci-sões que sejam emanadas por diferentes sistemas jurídi-cos que estão em constante interação.

De tal sorte, problemas que digam respeito a direi-tos fundamentais, dentre outros, poderão dialogar com outras ordens constitucionais de maneira semelhante da qual se tem decidido questões de mesmo interesse no cenário mundial. Dessa forma, o propósito do constitu-cionalismo irá ser cumprido, onde diálogos construtivos garantirão aprendizados e reconstrução do que anterior-mente se entendia sobre determinado direito fundamen-tal concretamente questionado.

Marcelo Neves126, acrescenta que:

As diversas ordens jurídicas, entrelaçadas na solu-ção de uma circunstância constitucional que lhes seja concomitantemente relevante, devem buscar meios transversais de articulação para a resolução do conflito, de modo que haja reconhecimento recí-proco entre os ordenamentos, para compreender os

126 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 298.

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seus próprios limites e possibilidades de solução das controvérsias. Sua identidade é reconstruída, dessa maneira, enquanto leva a sério a alteridade, a obser-vação do outro.

Ademais, afirma o mencionado autor, que o trans-constitucionalismo não pretende comprometer ou ex-cluir a autonomia dos Estados no ordenamento jurídico, mas objetiva uma integração antes de uma submissão. Entretanto, pretende afastar a ideia de um constitucio-nalismo provinciano, autossuficiente, tendo em vista sua incompatibilidade com a atual situação da sociedade mundial: dinâmica, complexa e multicêntrica.

Buscando explanar sua tese de forma mais didática, Marcelo Neves utiliza a expressão “ponto cego”:

Ainda que nós não sejamos capazes de enxergar o “ponto cego” de determinada coisa ou situação, é possível que outro o faça. Desse modo, o nosso cam-po de visão se amplia consideravelmente a partir do momento em que nos colocamos à disposição para ouvir o que o outro tem a dizer, sem utilizar a força e a arrogância para sobrepor nosso posicionamento

Entende-se, portanto, que para Neves não há uma pessoa física ou grupo social que possua uma perspecti-va tão abrangente e privilegiada sobre uma determinada problemática a ponto de apropriar-se no direito de impor sua solução própria aos outros sem considerar também suas perspectivas. Assim, utilizando-se da teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas, a melhor solução se-ria permitir que diversos sistemas jurídicos possam ser

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organizados a fim de que contribuam positivamente para seu desenvolvimento mútuo.

Posto isto, se pode afirmar que, em suma, o trans-constitucionalismo propõe que se busque uma forma de possibilitar a convivência não destrutiva – mas coopera-tiva - de diversas perspectivas, a partir de um espírito de pluralidade e aceitação das diferenças que caracterizam a sociedade contemporânea multicêntrica. Para o direito, significa a aceitação da atuação concomitante de diversas ordens jurídicas sem que nenhuma delas possa se impor sobre as demais. Desse modo, o ponto crucial não con-siste em descobrir a quem pertence a última ratio acerca de determinado conflito, mas estimular uma conversação entre as várias instâncias decisórias a fim de que os casos comuns possam ser enfrentados conjuntamente.

Os reflexos do Transconstitucionalismo no Supremo Tribunal Federal

Compreendido o transconstitucionalismo, entende--se que na prática, os juízes nacionais, no julgamento de casos, devem considerar o material informativo desen-volvido por outras ordens jurídicas pelo mundo afora, quando em discussão de tema semelhante. Incontesta-velmente, a simples adoção desse hábito, possibilita ao mundo jurídico determinar com mais consistência o con-teúdo dos direitos fundamentais, permitindo que os juí-zes examinem a compreensão de suas próprias tradições jurídicas, comparando-as com outros posicionamentos, ampliando seu repertório de conhecimento e, assim, pro-duzindo decisões mais ricas.

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No Brasil, a Constituição Federal de 1988, dotada de alta carga axiológica, de abertura constitucional e de preocupação com a ordem internacional, habilitou o Bra-sil a ingressar no diálogo da “comunidade internacional”. Destaquem-se os princípios da “prevalência dos direitos humanos” e da “cooperação entre os povos para o progres-so da humanidade”, que regem as relações internacionais.

Não obstante, também são dignos de evidência os parágrafos 2º, 3º – introduzido pela Emenda Constitu-cional n. 45/2004 – e 4º do Art. 5º da Carta Magna, além do Art. 4º, II e IX127 do mesmo diploma legal, os quais, in-dubitavelmente, contribuíram para uma maior inclusão das perspectivas internacionais dos direitos humanos no cenário jurídico brasileiro, in verbis:

Art. 4º – A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princí-pios: II – prevalência dos direitos humanos; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; Parágrafo único – A República Federativa do Bra-sil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade

127 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br/civil_03/constituicao/ConstituicaoCom pilado.htm. Acesso em: 18 de novembro de 2016.

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do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à seguran-ça e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Cons-tituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados in-ternacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, se-rão equivalentes às emendas constitucionais. § 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Pe-nal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão (BRASIL, 2012, p. 1).

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, pode-se observar, mesmo que tímida, uma disposição dos minis-tros no sentindo de reconhecer a necessidade de comu-nicação entre posicionamentos firmados por diferentes ordens jurídicas. A exemplo, temos o comércio de pneus usados, que envolve questões ambientais e de liberdade econômica, discutida simultaneamente pela Organização Mundial do Comércio, pelo MERCOSUL e pelo Supremo Tribunal Federal. O fato de a mesma questão de natureza constitucional ser enfrentada por diversas ordens, leva ao fenômeno que Neves chamou de transconstitucionalismo.

De igual forma, houve a discussão sobre a constitu-cionalidade da Lei da Anistia128, tanto pela Corte Intera-

128 BRASIL. Superior Tribunal Federal. Constitucional. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Lei da Anistia. Arguição de Descumprimento de Precei-to Fundamental n. 153/DF. Jus Brasil, 18 de novembro de 2016.

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mericana dos Direitos Humanos, quanto pelo Supremo Tribunal Federal. Os resultados decorrentes desses dis-sensos entre os ordenamentos jurídicos diversos podem repercutir duvidosamente no presente e no futuro das civilizações. Referidas situações emblemáticas se apre-sentam como terreno convidativo e proveitoso para as contribuições do transconstitucionalismo.

A outro exemplo, após o Brasil tornar-se signatário do Pacto de São José da Costa Rica, no qual ficou estabele-cido a proibição da prisão do depositário infiel por dívidas, que era legalizada pela Constituição brasileira, o Supre-mo Tribunal Federal (STF) publicou decisão no acórdão de nº HC 87.585/TO79, no qual declarou que tratados que versem sobre direitos humanos possuem hierarquia supralegal, ou seja, que tais Tratados estariam acima das normas ordinárias que dispusessem o contrário. Portan-to, evitou-se a colisão da norma constitucional brasileira com o Tratado que fora assinado pelo país promovendo uma ponte de transição com o diálogo entre os mesmos.

Mais um interessantíssimo caso é o HABEAS COR-PUS N. 82.424 – “Caso Ellwanger”. No bojo do julgamen-to desse caso, o Pleno do STF confirmou, em setembro de 2003, por 8 votos a 3, a condenação, pelo crime da prática de racismo, de Siegfried Ellwanger. Este vinha, no correr dos anos, dedicando-se de maneira sistemática e delibe-rada a publicar livros notoriamente antissemitas, como os “Protocolos dos Sábios de Sião”, e a denegar o fato his-tórico do holocausto, como autor do livro “Holocausto - judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século”.

O caso Ellwanger é um grande marco na jurispru-dência dos direitos humanos, um dos identificadores da prevalência do Estado Democrático de Direito na Cons-

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tituição Federal de 1988. Em seu preâmbulo, a Cons-tituição sustenta os valores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos e contempla, entre os ob-jetivos da República, o de promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No capítulo dos direitos, a Constituição brasileira consagra o princípio genérico da igualdade e da não-discriminação. Especifica também que a prática do racismo é crime inafiançável e imprescri-tível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei.

Nessa decisão, além da referência extensa a instru-mentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a jurisprudência estrangeira foi lar-gamente citada. Dentre as várias decisões mencionadas, foram citados: o caso “Jersild versus Dinamarca”, julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos em setembro de 1994, bem como o “Caso Publicação cômica contra o povo judeu”, do Tribunal Constitucional Espanhol (Sen-tença 176/1995, julgado em 11.12.1995); bem como o Caso “Schenck versus United States”, voto do Juiz Oliver Wen-dell Holmes Jr. proferido em 1919 (249 U.S. 47, 52) e o “Caso Virginia versus Black et Al.”, da Suprema Corte dos Estados Unidos da América.

Nesse caso, observa-se ampla disposição do Supre-mo Tribunal Federal para integrar-se em um diálogo transconstitucional no sistema de níveis múltiplos, no qual diversas ordens jurídicas são articuladas concomi-tantemente para a solução de um grande problema cons-titucional de direitos humanos que assola, não somente o

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Brasil, bem como toda a sociedade global. Nesse sentido, ressalta Marcelo Neves129 que nesse caso:

Não se trata da adoção de um simples “modelo de convergência” com base no art. 5º, 2º da Constitui-ção Federal e, posteriormente, com fundamento nos §§ 3º e 4º do mesmo dispositivo, introduzidos pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Muito menos, cabe regresso a um “modelo de resistência” a partir de uma interpretação paroquial desses dispositivos constitucionais. O caminho mais adequado em ma-téria de direitos humanos parece ser o “modelo de articulação”, ou melhor, de entrelaçamento trans-versal entre ordens jurídicas, de tal maneira que todas se apresentem capazes de reconstruírem-se permanentemente mediante o aprendizado com as experiências de ordens jurídicas interessadas con-comitantemente nos mesmos problemas jurídicos constitucionais dos direitos humanos.

Observa-se que o próprio Supremo Tribunal Federal tem abraçado a proposta de entrosamento e diálogo in-troduzida por Marcelo Neves, vez que, por diversas vezes, tem se utilizado de decisões de cortes e tribunais interna-cionais para fundamentar seus julgados.

De fato, a existência dessas cortes e tribunais traz em seu íntimo o direito à justiciabilidade internacional dos direitos humanos, além da aceitação compulsória dessas cortes, nos termos do §4º do art. 5º da Constituição Fede-ral, acima colacionado.

129 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 264.

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Nas experiências brasileiras mais recentes, nota-se que o transconstitucionalismo com outras ordens jurídi-cas vem se desenvolvendo de maneira sensível no âmbi-to do Supremo Tribunal Federal. Em decisões de grande relevância em matéria de direitos fundamentais, obser-va-se que a invocação da jurisprudência constitucional internacional tem se revelado não apenas nos votos in-dividuais dos ministros, mas se expressa nas Ementas e Acórdãos, como parte dratio decidendi.

Entretanto, de acordo com o dileto ministro do Su-premo Tribunal Federal, Gilmar Mendes130 (MENDES, 2012), a introdução do transconstitucionalismo no direi-to brasileiro ainda ocorre de maneira lenta e gradual. A exemplo dos casos analisados neste tópico, onde se obser-va a incorporação da perspectiva internacional dos direi-tos humanos nas decisões da nossa Corte Constitucional.

Conclusão

A ideia de soberania traçada na Idade Moderna não se aplica mais de maneira absoluta e os Estados não go-zam das mesmas prerrogativas de supremacia e inde-pendência que gozaram outrora. Ao contrário, progres-sivamente, os poderes estatais vão se esvaziando frente a entidades internacionais que praticam ingerência em questões de ordem das políticas públicas, como é o caso das cortes de proteção aos direitos humanos.

Foi possível compreender, no desenrolar dos capí-tulos, que a sociedade atual multicêntrica, cada vez mais

130 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártir; BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.

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se desprende das fronteiras territoriais de seus Estados soberanos para tornar-se sociedade global. Consequen-temente, os problemas constitucionais referentes a direi-tos fundamentais deixam de ser particularidade de um ou outro povo ou nação, e passa a ser uma problemática da sociedade global. Órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos são criados, para assim acelerar o processo de efetivação dos direitos fundamentais even-tualmente garantidos por uma Carta Maior, mas que, por motivos obviamente alheios à vontade do Constituinte, não se concretizam na vida do cidadão.

Cabe às Constituições, desta feita, promover o papel heroico de proteção aos direitos humanos e a integração dos sistemas jurídicos, seja por meio de única constitui-ção que possa servir a um bloco ou comunidade de na-ções, por meio do interconstitucionalismo, seja por meio de normas e dispositivos constantes nos seus textos que propiciem um diálogo entre os mais variados regimes, o que ilustra o Transconstitucionalismo.

O transconstitucionalismo contribui para a forma-ção de um raciocínio transversal, isto é, um instrumen-to de diálogo à disposição dos aplicadores do Direito e que serve de parâmetro para que decisões que envolvam questões complexas como possíveis antinomias entre jul-gados provenientes do direito interno e externo possam ser resolvidas com facilidade.

No cenário jurídico brasileiro discutem-se os refle-xos do fenômeno do transconstitucionalismo no Supre-mo Tribunal Federal. Conforme o exposto, observa-se que, ainda que a passos lentos, nossa Corte Constitu-cional tem sem preocupado em levar em consideração a perspectiva internacional dos direitos humanos em suas

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decisões, não apenas nas fundamentações, mas também quando da última ratio.

Entretanto, essa ainda não é uma medida de plena aplicação no Supremo. Vê-se que, apesar da brilhante decisão quando do julgamento do “Caso Ellwanger”, no qual invocou normas e precedentes de outras ordens ju-rídicas, o STF ainda possui certa resistência em dialogar com algumas decisões de órgãos internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

De fato, não há dúvidas de que o transconstitucio-nalismo proposto por Neves é de implementação prá-tica dificultosa O que pode ser observado é que a nova ordem global não tem interesse em controlar ou limitar sua atividade, prezando significativamente pela sobera-nia. Ocorre que a ascensão da proteção internacional aos direitos humanos vem fazendo surgir a necessidade de se relativizar a soberania em prol da justiça global.

Referida relativização não consiste em, exatamente, ignorar o princípio da soberania, mas repensá-la em ter-mos diversos daqueles que a impõe junto a um caráter meramente militarista ou territorialista. Sendo assim, ideal seria reproduzir em âmbito global a sistemática da subordinação mútua, voluntária e cooperativa, de manei-ra a atribuir a ela um conceito evolutivo e positivo para a sociedade global.

Assim, cabe observar que as diversas ordens trans-nacionais se envolvem simultaneamente, ou seja, com pluralidade de ordens de tipos diferentes: estatais, inter-nacionais, supranacionais e locais, envolvendo até ordens de caráter informal. Desta forma é que se dá o sistema mundial de níveis múltiplos entrelaçados.

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O transconstitucionalismo, portanto, também ten-de ao envolvimento de mais de duas ordens jurídicas, sejam elas da mesma espécie ou de tipos diversos. Es-sas situações complexas apontam para um sistema ju-rídico mundial de níveis múltiplos, no qual ocorre um transconstitucionalismo pluridimensional, que resulta da relevância simultânea de um mesmo problema jurídi-co-constitucional para uma diversidade de ordens jurí-dicas, promovendo cooperações e colisões através das já tratadas pontes de transição que, não coincidentemente, são essenciais à concreção dos direitos fundamentais: a justiça e a igualdade.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997.

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A Força Normativa da Constituição: uma análise das relações de poder tangentes à Constituição de 1988 e a práxis Constitucional.Robson Parente Ribeiro131

Introdução

O Princípio da Força Normativa da Constituição é conhecido na atualidade como uma das principais fer-ramentas de interpretação constitucional, bem como um dos maiores instrumentos de efetividade da Cons-tituição. Segundo Hesse “Quanto mais o conteúdo de uma constituição lograr corresponder à natureza singu-lar do presente, tanto mais seguro há de ser o desenvol-vimento de sua força normativa” 132. A força normativa da Constituição refere-se à efetividade plena das normas contidas na Carta Magna de um Estado. Sua força se dá pela efetividade. Na atualidade, a temática deste trabalho soa como reinventar a roda: A constituição deve, obriga-toriamente, ter sua efetividade atrelada à realidade social e política em que está inserida. Todavia, a análise dos tra-balhos de Ferdinand La Salle e Konrad Hesse, que para muitos soam como conflitantes, revela uma superação e não um rompimento com a ideia anterior. Hesse apenas deu para o estudo de La Salle o caráter técnico jurídico que lhe faltava.

131 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas ( bol-sista da CAPES). Advogado.

132 HESSE, Konrad. Die Normative Kraft der Verfassung. A força normativa da Consti-tuição. Tradução Gilmar Mendes. Porto Alegre. 1991. P.20.

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Em 16 de abril de 1862, Ferdinand La Salle apresen-tou ao mundo a “essência da Constituição” (Über das Verfassungswesen). La Salle foi um percussor da social--democracia alemã e contemporâneo de Karl Marx, com quem aparentemente trocou muitas experiências e co-nhecimentos. Desta forma, La Salle desenvolveu o con-ceito sociológico de Constituição, o qual vem descrito no Über das Verfassungswesen. Em seu livro, descreve uma situação hipotética onde todas as bibliotecas da Prússia seriam incendiadas, e não se existiria mais registro de nenhuma lei ou mesmo da Constituição, todavia o autor nos explica que ainda assim, haveria uma Constituição. A essência da Constituição não está no pedaço de papel que se perdera durante o incêndio, mas sim nas relações de poder existentes na realidade fática do estado, que constituem a “Constituição real” de um país, segundo o autor. A Constituição de um país expressa as relações de poder nele dominantes, quais sejam, a Monarquia, a Aris-tocracia, a Grande Burguesia, os Banqueiros, a Pequena Burguesia e a Classe Operária.

Neste ponto, La Salle manifesta sua ideia chave: A Constituição real é a única e verdadeiramente válida, porquanto a Constituição papel (a qual definiu como constituição jurídica) tem sua capacidade de regular e de motivar limitada à sua compatibilidade com a Constitui-ção real. Neste ponto se inicia a divergência de ideias com Konrad Hesse, o qual se manifesta contrariamente à ideia de ausência de força normativa por parte da constituição, e deixa clara sua indignação:

Essa negação do direito constitucional importa na negação do seu valor enquanto ciência jurídica.

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Como toda ciência jurídica, o Direito Constitucio-nal é ciência normativa; Diferencia-se, assim, da So-ciologia e da Ciência Política enquanto ciências da realidade. Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente mutá-veis, não há como deixar de reconhecer que a ciência da Constituição jurídica constitui uma ciência ju-rídica na ausência do direito, não lhe restando ou-tra função senão a de constatar e comentar os fatos criados pela Realpolitik. Assim, o Direito Consti-tucional não estaria a serviço de uma ordem esta-tal justa, cumprindo-lhe tão somente a miserável função – indigna de qualquer ciência – de justifi-car as relações de poder dominantes. Se a Ciência da Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua desca-racterização como ciência normativa, operando-se a sua conversão numa simples ciência do ser. Não haveria mais como diferençá-la da Sociologia ou da Ciência Política (grifo nosso)133.

O trecho em destaque deixa clara a maior preocu-pação de Hesse: A função miserável a qual seria reduzida a constituição no modelo sociológico de La Salle. Como jurista, Hesse se sentiu compelido à dar um novo enfo-que na essência da Constituição, e sua contribuição nos é apresentada em 1959, com sua obra “A força normativa da Constituição” (Die normative Kraft der Verfassung). Nela, o autor procura elevar a palavra constitucional para um novo patamar, dando a ela força suficiente para que, ao

133 HESSE, Konrad. Die Normative Kraft der Verfassung. A força normativa da Consti-tuição. Tradução Gilmar Mendes. Porto Alegre. 1991. P.3.

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contrário do que dizia La Salle, disputar com as demais relações de poder existentes no Estado.

É neste contexto, de eterna tensão entre as forças políticas e dominantes do estado vs a força normativa da constituição, que passamos a analisar a existência de uma força normativa constitucional. Abordaremos a existên-cia de força normativa do texto constitucional da CF/88 em sua plenitude, e um caso atual e peculiar de embate entre uma manifestação de poder da sociedade e o texto constitucional.

A Força Normativa da Constituição e a proposta de Konrad Hesse para sua existência

Com o objetivo de afastar a ideia de que a consti-tuição é apenas um instrumento jurídico que serve às forças dominantes do estado, Konrad Hesse busca dar força equivalente para a norma constitucional, para esta possa ser capaz de motivar e ordenar a vida do estado. O objetivo então é determinar se, ao lado das relações de poder inerentes ao estado, expressas pelas forças políti-cas e sociais, existe também uma força determinante do Direito Constitucional, a chamada força normativa da Constituição. Hesse formula três pontos que devem ser analisados com a finalidade de identificar a existência de força própria por parte da norma constitucional: (1) O condicionamento recíproco existente entre a Constitui-ção jurídica e a realidade político-social; (2) Os limites e as possibilidades da atuação da Constituição jurídica; (3) Os pressupostos de eficácia da Constituição.

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O condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade político-social

O primeiro ponto a ser abordado por Hesse, diz res-peito ao cerne de sua abordagem constitucional: a con-cordância entre o “Ser” e o “Dever ser”. Aqui o autor des-taca a importância entre a adequação da realidade social e da norma constitucional. A norma constitucional deve ser o casamento entre a realidade fática e sua eficácia:

Os efeitos dessa concepção ainda não foram supe-rados. A radical separação, no plano constitucional, entre realidade e norma, entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) não leva a qualquer avanço na nossa indaga-ção. Como anteriormente observado, essa separação pode levar a uma confirmação, confessa ou não, da tese que atribui exclusiva força determinante às rela-ções fáticas. Eventual ênfase numa ou n outra dire-ção leva quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento da realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo. Faz-se mister encontrar, portanto, um caminho entre o abandono da normatividade em fa-vor do domínio das relações fáticas, de um lado, e a normatividade despida de qualquer elemento da rea-lidade, de outro. Essa via somente poderá ser encon-trada se se renunciar à possibilidade de responder às indagações formuladas com base numa rigorosa alternativa134.

134 HESSE, Konrad. Die Normative Kraft der Verfassung. A força normativa da Consti-tuição. Tradução Gilmar Mendes. Porto Alegre. 1991. P.4

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Sendo assim, Hesse nos diz apresenta a possibilida-de de superar a separação entre o “Ser” e o “Dever ser” e observar a norma constitucional como uma força capaz de, a um só tempo, ser determinante para a ordem social e também der determinada por ela. E resta, portanto, na figura da pretensão de eficácia da norma constitucional o seu caráter de “Força”, capaz de modificar a realidade em que está inserida. Todavia, a pretensão de eficácia de uma norma constitucional não se confunde com as condições de sua realização: elas são, entre si, autônomas.

Os limites e as possibilidades da atuação da Constituição jurídica

Ao tratar deste tópico, Hesse assevera que a “Cons-tituição real” e “Constituição jurídica” estão em uma re-lação de coordenação, ou seja, condicionam-se mutua-mente, mas não dependem simplesmente uma da outra. A Constituição adquire força normativa conforme realiza sua pretensão de eficácia. O autor conclui que para o sa-dio desenvolvimento de uma “Constituição jurídica” ela deve buscar sua “força vital” no plano da realidade, por-quanto não deve construir o Estado de forma abstrata e teórica, pois se as leis culturais, sociais, políticas e econô-micas que imperam em uma determinada sociedade são ignoradas pela Constituição, ela não irá possuir a “coope-ração” necessária para a busca de sua eficácia.

Ademais, a força normativa de uma norma cons-titucional não reside apenas em sua perspicácia em se adaptar à realidade fática, mas também em seu caráter organizativo: Ela é capaz de impor tarefas. Desta forma,

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sua eficácia vem também como um reflexo destas tarefas sendo realizadas, daí o caráter de cooperação evidenciado no parágrafo anterior: É necessário a vontade de se cum-prir os comandos constitucionais, a Constituição con-verter-se-á em força ativa se estiverem presentes não só a vontade do poder, mas também a vontade da constituição.

Os pressupostos de eficácia da Constituição

Chegamos aos pressupostos para a eficácia da Cons-tituição – Que não se confundem com a pretensão de efi-cácia da Constituição. Enquanto aqueles dizem a vontade da Constituição, estes inseridos neste tópico dizem res-peito aos pressupostos para a realização desta vontade, e podem ser enumerados desde o conteúdo constitucional até a práxis constitucional.

No que tange o conteúdo, uma constituição mo-derna, na visão de Hesse, deve lograr êxito em respeitar as ordens e poderes vigentes no presente, mas também deve ter a maleabilidade necessária para se adaptar ás mudanças. A Constituição deve repousar sobre o terre-no da ponderação135, pois caso a Constituição ultrapasse os limites de sua força normativa, a realidade haveria de pôr termo à sua normatividade, derrogando os princípios que ela buscava concretizar. Importante salientar que, no caso da nossa Constituição de 1988, ela abarca em seu corpo materialidade que abraça desde os direitos e garan-

135 Aqui não nos referimos aquela Ponderação de Alexy, no que se refere aos Direitos Fundamentais, mas sim a capacidade que a norma constitucional tem de obser-var adaptação ao caso concreto e se mover dentro do jogo de interesses da evolu-ção social.

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tias fundamentais no seu glorificado Art. 5º, como tam-bém a Previdência Social e, seus artigos 201 e 202, ordem econômica em seu art. 170 e até mesmo Reforma Agrá-ria em seu capítulo III, artigos 184 e seguintes. É visível, usando nossa Carta Magna como exemplo, a adequação do texto constitucional, não apenas como resultado da convergência das relações de poderes fáticos, mas tam-bém possuindo uma função de mediadora, ponderando tais interesses.

A práxis constitucional vem como sendo o passo se-guinte a ser dado em prol da eficácia do texto constitu-cional. Neste ponto, é vital a dedicação e empenho dos agentes da vida constitucional (juristas, juízes, políticos e personagens que lidam com a práxis constitucional) em ver satisfeito o comando constitucional. É fundamental o respeito à Constituição. O autor destaca um perigo emi-nente da práxis constitucional, que guarda relação intima com nossa Carta Magna:

Igualmente perigosa para força normativa da Cons-tituição afigura-se a tendência para a frequente re-visão constitucional sob a alegação de suposta e inarredável necessidade política. Cada reforma cons-titucional expressa a ideia de que, efetiva ou apa-rentemente, atribui-se maior valor às exigências de índole fática do que à ordem normativa vigente. Os precedentes aqui são, por isso, particularmente preo-cupantes. A frequência das reformas constitucionais abala a confiança na sua inquebrantabilidade, debil-

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tando a sua força normativa. A estabilidade constitui condição fundamental da eficácia da Constituição.136

Ao se referir às reformar constitucionais e como elas abalam sua estabilidade, impossível não fazer a associa-ção com nossa Carta Magna e suas insuperáveis Emen-das Constitucionais. Segundo o site da casa civil, existem atualmente 52 Emendas Constitucionais vigentes137. To-davia, os dados não são atualizados desde 2012, e atual-mente existem 93 emendas à Constituição Brasileira vi-gente138. Não há como negar que passamos a impressão de existir em nosso país uma prevalência da realidade política sobre a constitucional.

Por fim, a Hermenêutica Constitucional tem signi-ficado decisivo para a consolidação e preservação da for-ça normativa da Constituição. O Hermeneuta deve levar em conta as condicionantes dadas pelos fatos concretos da vida, correlacionando-as com as proposições normati-vas da Constituição. Todavia, o intérprete deve observar ao mesmo tempo o limite fático e jurídico para a aplica-ção extensiva de sua interpretação. Se o sentido de uma proposição normativa não é mais realizável, a revisão constitucional faz-se inevitável. Desta forma, não pode o interprete romper com os limites traçados também pela constituição ao exercício de sua função hermenêutica, sob pena de estar usurpando a competência legislativa daquele que deveria estar, efetivamente, realizando a re-

136 HESSE, Konrad. Die Normative Kraft der Verfassung. A força normativa da Consti-tuição. Tradução Gilmar Mendes. Porto Alegre. 1991. P.9

137 Disponível em http://www.casacivil.go.gov.br/post/ver/111617/emendas-consti-tucionais, acesso em 19 de novembro de 2016.

138 Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_emendas_%C3%A0_cons-titui%C3%A7%C3%A3o_brasileira_de_1988, Acesso em 19 de novembro de 2016

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visão constitucional, quando ela for necessária. De igual forma, não deveria o Legislativo se acovardar e deixar para o Interprete a árdua missão de modificar o modo como se entende o texto constitucional, por temor reve-rencial às forças políticas, sociais e econômicas.

Uma análise sobre a força normativa da Constituição jurídica de 1988 e sua atual relação com as forças da Constituição real

De início, cumpre destacar o seguinte: Formalmen-te, a constituição de 1988 tem seu corpo dividido em 3 partes, a saber: O Preâmbulo, o corpo principal da Cons-tituição e seus 250 artigos, bem como o Ato das Dispo-sições Constitucionais Transitórias (ADCT) e seus 100 artigos. Considerando que o corpo principal da Consti-tuição e seus 250 artigos seguem os mesmos pressupostos de eficácia que a teoria já esboçada para a existência da força normativa, sua força normativa não está sob análi-se, mas sim a sua compatibilidade com a realidade fática e a necessidade de adequação, razão pela qual trataremos de sua análise a partir de um caso específico de choque com uma relação de poder externa ao ordenamento jurí-dico em capitulo próprio. Analisaremos primeiramente a força normativa do preâmbulo e do ADCT, pois cada um nos ensina uma perspectiva diferente tanto da estrutura quanto da práxis constitucional.

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A força normativa do preâmbulo

A palavra preâmbulo tem sua origem no Latim praeambúlus, “o que caminha à frente”, sendo formada pela conexão de dois elementos, o prefixo “prae”  (antes, sobre) e o verbo «ambulare”  (caminhar). O Preâmbulo possui uma função de conexão/rompimento temporal, pois expressa desejos e esperanças, contendo um «esbo-ço do futuro». Ele é uma fotografia do momento em que foi promulgada pelo poder constituinte e seus anseios por um futuro melhor. No caso de nosso preâmbulo, ele representa o rompimento com um regime ditatorial e o início da democracia.

Costumeiramente presente em Constituições, rela-tórios de conferências e tratados, o preâmbulo na nossa CF/88 traz o seguinte texto:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberda-de, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na or-dem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (grifo nosso).

O trecho em destaque motivou a polêmica sobre a força normativa do preâmbulo, o qual foi questionado

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na ADI 2076/AC. Á época, a Constituição do Estado do Acre ao reproduzir o preâmbulo constitucional em seu texto deixou de incluir a frase “sob a proteção de Deus”, o que ensejou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, que visava declarar a incompatibilidade da constituição Acreana com a Constituição Federal. Sem mais delongas, segue a ementa do julgado:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre. I. - Normas centrais da Constituição Fede-ral: essas normas são de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem lo-cal. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404). II. - Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. III. - Ação di-reta de inconstitucionalidade julgada improcedente. (STF, ADI 2076/AC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 15/08/2002, p. DJ 08/08/2003).

Em seu relatório neste julgamento, adicionou ainda o Min. Carlos Velloso que “O preâmbulo, ressai das lições transcritas, não se situa no âmbito do direito, mas no do-mínio da política, refletindo posição ideológica do cons-tituinte”. Desta forma, a jurisprudência do STF se conso-lidou no sentido de que o preâmbulo constitucional, por estar inserido no campo da política e não do direito, não tem força normativa e, portanto, não seria de reprodução obrigatória.

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Sendo assim, o preâmbulo constitucional se confir-ma nos dias de hoje como um elemento alegórico, uma manifestação do espirito do poder constituinte, capaz de elencar os anseios políticos para o futuro, mas incapaz de ter força normativa perante as mudanças sociais.

A força normativa do ADCT

Para Pedro Lenza, a finalidade do ADCT seria “esta-belecer regras de transição entre o antigo ordenamento jurídico e o novo, instituído pela manifestação do poder constituinte originário, providenciando a acomodação e a transição do antigo e do novo direito edificado”139. Tal como o preâmbulo, ele representa um rompimento tem-poral. Todavia, aqui não se trata mais de um anseio ou manifestação política, mas sim de uma preocupação ins-trumental com o processo de transição entre uma Cons-tituição antiga, e a agora vigente.

Entretanto, nada impede que o corpo do ADCT possa ter incluído novos artigos, em que pese já termos passado 28 anos de Carta Magna, através do Poder Cons-tituinte Reformador. Foi o que ocorreu por exemplo no caso da Emenda Constitucional 80 de 2014, a qual deu um passo gigantesco para o fortalecimento da Defensoria Pública da União. Por conta da EC 80/2014, foi estipu-lado um prazo de 8 anos para a expansão da defensoria em todo o território nacional e foi incluído o artigo 98 no ADCT. Por sua natureza peculiar, o STF já teve de se

139 Disponível em http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/ato-das-dis-posicoes-constitucionais-transitorias-adct-e-o-seu-desvirtuamento/11952, aces-so em 19 de novembro de 2016.

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manifestar acerca da força normativa do ADCT no julga-mento do julgamento do RE 160.486/SP. No entanto, o entendimento aqui foi diferente do que foi observado no caso do preâmbulo:

PRECATÓRIO – PAGAMENTO PARCELADO –ADCT, ART. 33 – NATUREZA JURÍDICA DAS NOR-MAS INTEGRANTES DO ADCT – RELAÇÕES EN-TRE O ADCT E AS DISPOSIÇÕES PERMANENTES DA CONSTITUIÇÃO – ANTINOMIA APARENTE – A QUESTÃO DA COERÊNCIA DO ORDENAMEN-TO POSITIVO – RECURS O EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. (...) O Ato das Disposi-ções Transitórias, promulgado em 1988 pelo legisla-dor constituinte, qualifica-se, juridicamente, como um estatuto de índole constitucional. A estrutura normativa que nele se acha consubstanciada ostenta, em consequência, a rigidez peculiar às regras inscri-tas no texto básico da Lei Fundamental da República. Disso decorre o reconhecimento de que inexistem, entre as normas inscritas no ADCT e os preceitos constantes da Carta Política, quaisquer desníveis ou desigualdades quanto à intensidade de sua eficácia ou à prevalência de sua autoridade. Situam-se, am-bos, no mais elevado grau de positividade jurídica, impondo-se, no plano do ordenamento estatal, en-quanto categorias normativas subordinantes, à ob-servância compulsória de todos, especialmente dos órgãos que integram o aparelho de Estado. (...) (STF, RE 160.486/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 11/10/1994, p. DJ 09/06/1995) (grifo nosso).

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Como evidencia o trecho em destaque, o STF en-tendeu no julgado supracitado que o ADCT tem a força normativa e o status hierárquico do corpo principal da constituição, razão pela qual seu conteúdo possui força normativa. É característica a força normativa do ADCT por duas razões peculiares: A dita EC 80/2014 que con-feriu maior autonomia à Defensoria Pública da União, também estipulou um prazo, para o estado, no qual deve-ria ser cumprido o comando constitucional. É no ADCT que o comando constitucional fica alocado, pois é dele a função de realizar a adequação entre o antigo e o novo trazendo para o corpo da Constituição as instruções es-pecíficas de transição.

No entanto, a respeito do caráter transitório do ADCT, deixamos aqui um alerta de Lenza:

Cabe alertar que a essência do ADCT vem sendo des-virtuada pelo constituinte reformador, que, por ve-zes, introduziu, por emenda, normas permanentes, sem qualquer conteúdo de direito intertemporal e sem qualquer conexão com o momento de transição, em total atecnia legislativa, como, por exemplo, o seu art. 96 (acrescentado pela EC n. 57/2008), que, de modo inconstitucional (e, por que não dizer, imoral), convalidou a criação de municípios em total violação ao art. 18, § 4.º, CF/88.

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A força normativa do corpo principal da Constituição: O jogo de interesses e poderes políticos, a práxis constitucio-nal e sua relação com a força normativa da Constituição

Para observar o fenômeno da força normativa em nossa Carta Magna, nos moldes de Hesse, faz-se neces-sária uma breve análise do texto constitucional com des-taque para os pontos elencados por Hesse. Analisando os pressupostos para a eficácia constitucional, o primei-ro ponto salta aos olhos: Nossa constituição possui 250 artigos. Em sua criação, o poder constituinte procurou observar as relações de poderes existentes na época e os fez inserir seus ensejos e projeções na carta magna, tal como fez com a Previdência Social e, seus artigos 201 e 202, ordem econômica em seu art. 170 e até mesmo Re-forma Agrária em seu capítulo III, artigos 184 e seguintes. Essa relação se dá pela própria natureza do Poder Consti-tuinte, o qual segundo Sieyés, deve refletir os anseios não apenas do Clero e da Nobreza, mas também do Povo, em sua obra descrevendo a Nação como terceiro Estado.140

Assim, em um paralelo com nossa constituição, fica clara a convocação, por parte do Poder constituinte, das forças existentes no estado, como as Forças econômicas, as Forças intelectuais, as Forças Armadas e até mesmo os latifundiários e os anseios da população pela reforma agrária.

Noutro ponto, analisamos a práxis constitucional e a Hermenêutica constitucional. Aqui é importante desta-car a atuação da nossa Suprema Corte ao enfrentar temas polêmicos e paradigmáticos, como foi o caso da União

140 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. Titulo original: Qu’est-ce que le Tiers État.

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Afetiva entre pessoas do mesmo sexo, declarada possível pelo Supremo Tribunal Federal em 5 de maio de 2011 no julgamento conjunto da  Ação Direta de Inconstitucio-nalidade (ADI) nº 4277, proposta pela Procuradoria-Ge-ral da República, e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental  (ADPF) nº 132, apresentada pelo governador do estado do Rio de Janeiro.

Nada o que discutir aqui sobre a evolução do status quo da nossa sociedade e sua postura com reação à união homoafetiva – Demoramos até demais. A questão aqui é discutir a práxis constitucional e como ocorreu, no plano dos poderes políticos, uma “leve” inversão de competên-cias, estipulada no plano da força normativa constitucio-nal e seu comando organizacional, entre o Legislativo e o Judiciário.

O termo chave para a discussão aqui elencada é Ati-vismo Judicial. O termo em si é extremamente polêmico, então para o salutar desenvolvimento do tópico aborda-remos o conceito de Barroso:

Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Consti-tuição, expandindo o seu sentido e alcance. Normal-mente ele se instala em situações de retração do Po-der Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efeti-va(..)expressa uma postura do intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador ordinário. Trata-se de um mecanismo para contornar, bypassar o processo po-

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lítico majoritário quando ele tenha se mostrado iner-te, emperrado ou incapaz de produzir consenso141.

O autor destaca o Bypass, para dar ênfase no fato de que o Ativismo Judicial serve como mecanismo de con-torno dos entraves políticos que acabam por criar um congestionamento legislativo. Cita, como exemplo, a inércia e a incapacidade na produção de um consenso político. Todavia, nada fala sobre o Acovardamento das casas legislativas perante questões que estão em ascen-são e visam a garantia de direitos fundamentais. O aco-vardamento político da casa legislativa surge como um fenômeno político, e o Poder Judiciário se vê obrigado a suprir esse vácuo legislativo utilizando suas ferramentas para garantir a efetiva garantia de direitos cíveis, in casu o julgamento de uma ADI o qual vincula as instâncias infe-riores ao seu entendimento.

Não houve, nesta situação, Emenda Constitucional (que seria bem-vinda, dentre as 93 já existentes em nos-so ordenamento). Portanto não houve alteração formal na constituição, mas sim uma alteração no modo de in-terpretar a Carta Magna. Todavia, uma situação curiosa ocorre: Enquanto de um lado, sai fortalecido o coman-do constitucional do Art. 3º, IV que elenca como obje-tivo fundamental da República “promover o bem de to-dos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, por outro sai enfraquecida a repartição de poderes, pois era de respon-sabilidade do Legislativo legislar sobre a matéria, que era um anseio popular, e promover a devida “atualização” da

141 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade de-mocrática. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revis-ta/1235066670174218181901.pdf, Acesso em 20 de novembro de 2016.

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nossa Carta Magna. Ao invés disso, se acovardou e “em-purrou com a barriga” por duas décadas o problema, que teve de ser solucionado pela Suprema Corte brasileira.

Conclusão

O deslinde histórico e o choque do posicionamen-to de La Salle com Hesse não resultou na eliminação de um dos polos, mas sim em um entendimento novo. Adi-cionou-se a técnica jurídica ao discurso sociológico, e o resultado é o Direito tendo sua efetivação no campo do “Ser” e do “Dever ser”. Ou pelo menos este deveria ser o resultado lógico.

Na CF/88, foi possível observar que desde o poder constituinte houve a preocupação com os elementos políticos e fáticos da realidade e sua adequação com as projeções da CF/88. Na forma do preâmbulo e do ADCT, é possível visualizar os comandos políticos e de desejos, bem como os comandos de transição, eminentemente técnicos e que estipulam comandos para o estado que ainda viria a ser criado com a Constituição. Daí, suas di-ferentes forças normativas: Uma com viés eminentemen-te político e outra com viés de força normativa constitu-cional. Daí a importância do estudo conjunto destes dois brilhantes autores: Ainda que careça de força normativa constitucional, o preâmbulo representa os anseios e as-pirações que a Assembleia Constituinte projetou para a CF/88. Nada além disso, mas nada aquém disso também. De igual forma o ADCT representa o elemento de transi-ção de realidade.

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Por fim, ao analisar o texto da nossa Constituição e como configurar a força normativa de seu conteúdo, o Poder Constituinte Originário nos pareceu bastante preocupado – Até demais em algumas visões. Nossa carta abraça os mais diversos conceitos, e ouvir os mais diver-sos anseios, diversos setores da sociedade se veem repre-sentados naquela que, não atoa, responde pela alcunha de Constituição Cidadã. Mas ela vem, aos poucos, através dos agentes políticos, perdendo parte de sua estabilidade. A práxis hoje brinca com a hermenêutica constitucional, e é importante sim observar o Ativismo judicial como um fenômeno positivo, naquilo que lhe for possível ser posi-tivo. Mas é igualmente importante alertar sobre o perigo de se aplicar extensivamente esta técnica interpretativa, pois a tendência é um legislativo “acomodado” com as tomadas de decisão do judiciário, e a posterior desesta-bilidade do ordenamento constitucional, prejudicando assim a força normativa do comando constitucional, tal como ocorrerá com a repartição e competências, pelo pior dos caminhos da práxis constitucional.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DOU, 5 out. 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui-caocompilado.htm, Acesso em 21 de novembro de 2016.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo ju-dicial e legitimidade democrática. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revis-

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A pseudo independência e harmonia entre os pode-res no Brasil por meio da deturpação do sistema de “freios e contrapesos”: uma análise da crise de legiti-midade dos poderes políticos e o fenômeno da judicia-lização da política.Tibério Celso Gomes dos Santos142

Introdução

O Estado brasileiro atual foi estruturado constitu-cionalmente na perspectiva dos órgãos que realizam for-mal e materialmente suas funções em uma disposição tripartite, ou seja, foram constituídos três órgãos inde-pendentes e harmônicos entre si, doravante neste estudo denominados de poderes, que realizam suas funções típi-cas e atípicas mediante uma segregação de competências relativamente rígida.

A concepção da divisão das funções do Estado em três entes separados remonta a Aristóteles, em sua obra “A Política”, passando por John Locke, em sua obra titu-lada “Segundo Tratado sobre o Governo Civil”, sendo, entretanto, desenvolvida de modo mais assemelhado ao modelo utilizado pelos Estados contemporâneos através dos ensinamentos de Montesquieu, em sua obra “O espí-rito das leis”, na qual, enfim, o Poder Judiciário desponta como um dos três poderes ao lado do Executivo e Legis-lativo, consagrando a denominada divisão tripartite dos poderes do Estado de Montesquieu.

142 Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Procu-rador da Fazenda Nacional no Amazonas.

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A problematização central desse estudo não será a análise detida dos aspectos históricos que contribuíram para a formatação contemporânea da divisão de poderes, ou mesmo o aspecto jurídico das competências constitu-cionais de cada um desses poderes, sendo, em verdade, o objetivo desse estudo analisar o atual equilíbrio de forças manejado entre os três poderes republicanos brasileiros, verificar os fatores institucionais e políticos que poten-cialmente geram desequilíbrio de forças entre os pode-res, tendo como ênfase a experiência da relação entre o Poder Legislativo com o Poder Judiciário, ao investigar a legitimidade e limites do controle e intervenção do Poder Judiciário sobre os atos do Poder Legislativo, de modo a verificar como eventuais excessos de invasão de um po-der republicano sobre o outro podem colocar em xeque o postulado constitucional da harmonia entre os poderes.

Nesse contexto de desequilíbrio entre os poderes re-publicanos constituídos, o estudo adiante dedicará maior atenção a uma forma de exteriorização bastante em voga quando ocorre esse desarranjo institucional nos poderes políticos (Executivo e Legislativo), através do tema da ju-dicialização da política, concentrando a análise no atual fenômeno do recente protagonismo do Poder Judiciário como poder constituído chamado a resolver litígios de grande relevância antes solvidos estritamente no âmbito interna corporis do Poder Legislativo e do Poder Executivo.

Nessa perspectiva do objeto de pesquisa ser a judi-cialização da política, serão analisados os limites da atua-ção do Poder Judiciário ao ser chamado para exercer sua jurisdição em face de matérias típicas dos demais poderes políticos, em especial os atos políticos e atos não políticos do Poder Legislativo, a recente mudança de paradigma

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sobre o papel do Estado-Juiz na sociedade contemporâ-nea e na sua relação mediante o exercício do judicial re-view sobre os atos típicos dos outros poderes, a análise do caráter técnico-jurídico ou meramente político dessa ju-risdição, bem como a investigação das possíveis causas e repercussões dessa recente faceta aparentemente hiper-trófica do Poder Judiciário na balança de equilíbrio entre os poderes republicanos.

A pseudo independência e harmonia constitucional entre os poderes republicanos

O artigo 2º, da Constituição Federal de 1988143 esta-belece que o Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário são poderes da União independentes e harmô-nicos entre si, consolidando com essa disposição norma-tiva a decisão do constituinte originário em não atribuir preponderância hierárquica ou relação de subordinação entre nenhum dos poderes. Muito ao contrário, com esse mandamento o objetivo a priori do constituinte foi de as-sentar uma relação de harmonia recíproca no funciona-mento dos poderes constituídos.

Com o objetivo de elevar ao máximo a proteção ju-rídica da relação de independência entre os poderes, a separação entre os poderes foi expressamente inserida no artigo 60, § 4º, inciso III da Constituição Federal de 1988144 como uma clausula pétrea, sendo vedado qual-

143 Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

144 Art. 60. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: III - a separação dos Poderes; Ibid.

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quer ato modificativo tendente à sua abolição ou mesmo redução de sua força normativa.

Outro exemplo da proteção jurídica constitucional conferida à separação entre os poderes observa-se no dis-positivo que estabelece que qualquer ato sensível tenden-te a restringir o livre exercício dos poderes nas unidades federadas estaduais desafia o procedimento constitucio-nal de intervenção federal145, sendo, tanto a elevação da regra da imutabilidade da separação entre os poderes como clausula pétrea, como a hipótese de intervenção federal citada, duas verdadeiras blindagens jurídicas pro-tetivas à separação e harmonia esperada entre os poderes a demonstrar sua relevância para o Estado brasileiro.

Essa relação de necessária limitação de poder entre os poderes constituídos do Estado remonta às noções ini-ciais de Platão, também ao desenvolvimento da teoria da divisão da autoridade estatal por Aristóteles146, perpassa por John Locke e, principalmente, pelo desenvolvimento da teoria tripartite pelo Barão de Montesquieu, nascido em Bordeus na França em 1689, através da obra O espírito das leis, na qual destacava os perigos do poder do Estado concentrado em suas diversas funções nas mãos de uma só pessoa ou uma só instituição.147

145 Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Bra-sília, DF: Senado, 1988.

146 Segundo Aristóteles: “Por ‘constituição’ entendo a organização das várias autori-dades, e em particular da autoridade suprema, que está acima de todas as outras. Mas é preciso deixar claro que, em todos os casos, o corpo dos cidadãos é sobe-rano; a constituição é a soma total da politeuma”. ARISTÓTELES. Política . In: Os Pensadores. São Paulo : Nova Cultural, 2000. p. 221.

147 Conforme Montesquieu: “Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mes-mo corpo de principais ou nobres, ou do Povo, exercesse esses três poderes: o de

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Na linha da busca desse esperado equilíbrio de forças e competências entre os poderes, desenvolveu-se a teoria classicamente denominada “freios e contrapesos”, deno-minada no direito anglo-saxão como check and balan-ces, na qual os poderes devem não somente exercer suas funções em separado evitando a concentração do poder nas mãos de uma só força institucional, como também os poderes devem atuar através de um elaborado sistema de controles recíprocos no qual cada poder exerce como uma de suas funções atípicas a tarefa de adentrar legiti-mamente amparado pela norma constitucional no cam-po de atuação típica dos outros dois poderes148.

Podem ser observados no texto constitucional bra-sileiro alguns exemplos da materialização desse sistema de controle reciproco entre os poderes, no exercício das denominadas funções atípicas, como na atribuição do Poder Legislativo de julgar e aprovar as contas do chefe do Poder Executivo, a realização de comissões parlamen-

fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar as os crimes ou as demandas dos particulares.” MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Introdução, trad.e notas de Pedro Vieira Mota. 7ª ed. São Paulo. Saraiva: 2000. p. 67-68.

148 Conforme Dirley da Cunha Júnior: “Entretanto, importa deixar bem claro que o que caracteriza a independência entre os órgãos do Poder político não é a exclusi-vidade no exercício das funções que lhes são atribuídas, mas, sim, a predominân-cia no seu desempenho. Isso significa que, na clássica tríplice divisão funcional, as funções legislativas, executivas e judiciais são exercidas, predominantemente, pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, respectivamente. Ao lado des-sas funções predominantes, denominadas de funções “típicas”, há outras, cha-madas de funções “atípicas”, que são realizadas, não prioritariamente, mas sim subsidiariamente, por aqueles poderes como meios garantidores de sua própria autonomia e independência. ” DA CUNHA JÚNIOR, Dirley. A Judicialização da Po-lítica, a politização da Justiça e o Papel do Juiz no Estado Constitucional Social e Democrático de Direito. p. 3. Disponível em: https://beta.brasiljuridico.com.br/ar-tigos/a-judicializacao-da-politica--a-politizacao-da-justica-e-o-papel-do-juiz-no--estado-constitucional-social-e-democratico-de-direito.-por-dirley-da-cunha-ju-nior. Acessado em: 21 nov. 2016.

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tares de inquérito – CPI`s pelo Poder Legislativo sobre atos praticados pelo Poder Executivo, na atribuição do chefe do Poder Executivo para indicação e nomeação dos ministros dos tribunais superiores do Poder Judiciário, mediante aprovação em sabatina prévia no parlamento, a possibilidade de o chefe do Poder Executivo vetar projeto de lei do Poder Legislativo, dentre vários outros exemplos que estruturam um sistema de contatos e controles recí-procos entre os poderes.

Entretanto, a despeito de na seara normativa consti-tucional e no plano teórico a noção de separação de fun-ções entre os poderes constituídos e o equilíbrio de forças entre eles se realizar idealmente através dos mecanismos de “freios e contrapesos”, no plano prático da realidade político-constitucional brasileira esse pseudo equilíbrio não funciona exatamente como pensado abstratamente, sendo frequentes os casos de ciclos de franca hipertrofia de um poder sobre os outros desequilibrando o bom fun-cionamento do Estado brasileiro.

Algumas hipóteses são defendidas como causa para o desequilíbrio entre os poderes, seja através da crítica aos mecanismos de controle recíprocos “freios e contra-pesos”, ou seja via reprovação do padrão de competên-cias constitucionais delineadas aos três poderes. Há forte crítica por exemplo de que o texto constitucional dentro da perspectiva de um sistema de governo presidencialista teria uma concentração excessiva de poderes no rol de atribuições do chefe do Poder Executivo, desequilibrando a relação entre os poderes por uma suposta prevalência de poderes do Executivo em detrimento dos demais poderes.

Atualmente, nessa relação de tensão entre os pode-res, desperta o interesse dos meios de comunicação e as

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discussões no meio acadêmico e jurídico o tema da judi-cialização da política, fenômeno resultante de uma série de fatores englobados em uma perspectiva maior que se relacionam como causas e efeitos, a exemplo da crise ins-titucional e de legitimidade vivenciada pelo Poder Legis-lativo e Poder Executivo, e, por consequência, o “vácuo de poder” deixado por esses dois poderes republicanos em favor do Poder Judiciário, que passa a tender a uma hipertrofia de poder ao ser a fonte em grande medida das decisões mais relevantes da vida política e institucional no país.

Adiante, será analisada a mudança de paradigma relacionada ao papel do Poder Judiciário na sociedade contemporânea e os elementos que contribuem para seu atual protagonismo entre os poderes republicanos, inclu-sive a análise dos fatores relacionados ao próprio Poder Judiciário e aos demais poderes que contribuem para o fenômeno da judicialização da política.

Mudança de paradigma sobre o papel do Poder Judi-ciário na sociedade atual e a crise dos outros poderes como elementos para a judicialização da política

A gradual mudança do escopo do Estado liberal para o Estado social o Welfare State nos Estados Unidos, ou Estado providência – État providence dos franceses, atre-lada ao desenvolvimento dos direitos fundamentais nas ordens jurídicas nacionais, principalmente a partir da segunda metade do século XX, impulsionaram na socie-dade ocidental o desenvolvimento de uma cultura de ti-tularidade de direitos e sua exigibilidade face ao Estado,

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o que, por via de consequência, fez florescer gradativa-mente a tendência de uma constante busca por meio da prestação jurisdicional do Poder Judiciário para a entrega de direitos não efetivados pelo demais poderes.149

O então Estado-Juiz “boca da lei”, expressão cunhada na França após a Revolução Francesa de 1789, que reali-zava a mera interpretação e aplicação da legislação vigen-te de forma mecânica foi num processo gradativo sendo substituído por um Juiz que enfrenta o cerne de questões extremamente sensíveis para a sociedade, seja criando meios para a efetivação de direitos antes negligenciados pelo Estado sob o manto da reserva do possível, a exem-plo das decisões judiciais que impõem ao Estado o dever de prestar tratamentos de saúde, fornecer medicamentos, seja o Poder Judiciário enfrentando temas historicamente considerados verdadeiros tabus na sociedade por desafiar dogmas religiosos, morais ou científicos, como a questão da liberalização do aborto de feto anencefálico, utilização de células-tronco para pesquisas científicas e questões re-lacionadas ao reconhecimento da união homoafetiva.

Em suma, utilizando-se como exemplo a experiência brasileira, pelo menos nos últimos dez anos o Poder Ju-diciário passou a enfrentar esses temas com relativo su-cesso, o que carreou para este poder uma imagem de so-

149 Conforme Dirley da Cunha Júnior: “Nesse sentido, exige-se desse também novo Judiciário uma maior e mais intensa participação para a construção da sociedade do bem-estar, haja vista que a efetivação dos novos direitos sociais exige mudan-ças nas funções clássicas dos juízes, que se tornaram, sem dúvida alguma, co-res-ponsáveis pela realização das políticas públicas dos outros Poderes.” DA CUNHA JÚNIOR, Dirley. A Judicialização da Política, a politização da Justiça e o Papel do Juiz no Estado Constitucional Social e Democrático de Direito. p. 6-7. Disponível em: https://beta.brasiljuridico.com.br/artigos/a-judicializacao-da-politica--a-po-litizacao-da-justica-e-o-papel-do-juiz-no-estado-constitucional-social-e-demo-cratico-de-direito.-por-dirley-da-cunha-junior. Acessado em: 21 nov., 2016.

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lucionador de conflitos sociais com uma eficiência maior que a dos outros poderes constituídos.

Também corrobora para a mudança de paradigma sobre o papel do Poder Judiciário a expansão entre seus membros da corrente denominada ativismo judicial, em que os juízes passam a trabalhar criativamente a inter-pretação e aplicação do ordenamento jurídico de forma a não limitar-se apenas às amarras da letra da lei, atuando com maior espectro decisório ao utilizarem-se de corren-tes interpretativas modernas e dos princípios jurídicos com reconhecido caráter normativo como ratio decidendi.

Deste modo, o ativismo judicial também contribui para um novo status do Poder Judiciário, aproximando o julgador quase que da figura do legislador, sendo um exemplo bastante atual desse modelo de ativismo as deci-sões judiciais intervindo criativamente na execução de po-líticas públicas do Estado antes reservadas exclusivamente à formulação e execução pelo Executivo e Legislativo.

Em paralelo ao movimento de ascensão do Poder Judiciário na sociedade em decorrência do relativo êxito que vem desincumbindo-se ao ser demandado para con-secução de direitos fundamentais de cunho prestacional, muitos deles voltados em face de um Estado inerte e ine-ficiente, deve-se destacar, saindo da seara social e aden-trando na seara institucional e política, a profunda crise sem precedentes que acomete o Poder Executivo e Poder Legislativo no Brasil, em especial nos últimos dez anos.

O atual sistema político vigente no Brasil, popular-mente chamado de presidencialismo de coalização, impõe ao chefe do Poder Executivo, para assegurar condições mínimas de governabilidade de modo a aprovar suas iniciativas de governo no Congresso Nacional, invaria-

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velmente que engendre uma verdadeira base política de sustentação obtida via de regra mediante práticas de fi-siologismo político resultante da celebração de acordos políticos casuísticos, tais como distribuição do comando de ministérios aos aliados políticos, indicações de aliados para cargos públicos estratégicos em empresas estatais, negociação de emendas parlamentares etc., fatores que tornam o postulado da separação e independência dos poderes quase que uma ingênua utopia constitucional150.

Como um exemplo clássico da infeliz deturpação do postulado de “freios e contrapesos” concebido na Cons-tituição com a criação de regras que impõem o entrela-çamento complexo entre os poderes para a realização de atos da vida republicana, cite-se a experiência do regime constitucional de elaboração, votação e execução das leis orçamentárias, no qual a iniciativa para deflagrar o processo legislativo das três peças orçamentárias (Plano Plurianual - PPA, Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO e Lei Orçamentária Anual – LOA) é reservada privativa-mente ao chefe do Poder Executivo151, sendo, entretanto, submetida ao encaminhamento prévio de propostas or-çamentárias respectivas pelos outros poderes (Judiciário

150 Como afirma Abranches: “Por ser presidencialismo, esse regime de governança reserva à presidência um papel crítico e central, no equilíbrio, gestão e estabili-zação da coalizão. O presidente precisa cultivar o apoio popular ¾ o que requer a eficácia de suas políticas, sobretudo as econômicas ¾ para usar a popularidade como pressão sobre sua coalizão; ter uma agenda permanentemente cheia, para mobilizar atenção da maioria parlamentar e evitar sua dispersão; ter uma atitude proativa na coordenação política dessa maioria, para dar-lhe direção e comando”. ABRANCHES, S.H. “Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasilei-ro”. Dados. Rio de Janeiro, Iuperj, v. 31, n.1, 1988, p.5-34.

151 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: XXIII - enviar ao Con-gresso Nacional o plano plurianual, o projeto de lei de diretrizes orçamentárias e as propostas de orçamento previstos nesta Constituição; BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

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e Legislativo), para, após consolidação em peça orçamen-tária única pelo Executivo, passar ao crivo de toda a tra-mitação pelo processo legislativo nas duas casas do Con-gresso Nacional.

Sendo certo que esses três instrumentos orçamen-tários são cruciais para toda a execução das políticas pú-blicas e ações de governo sob encargo do Poder Execu-tivo, por um prisma o controle da iniciativa legislativa reservada ao Executivo é apontado como um fator que afeta a independência entre os poderes, por outro prisma a deformação da política de relação institucional entre os poderes republicanos na realidade brasileira faz com que o processo de votação e aprovação dessas leis orça-mentárias não raro desrespeite os prazos constitucionais em decorrência das batalhas políticas esgrimidas entre os poderes, em especial entre o Executivo e Legislativo me-diante a negociação de emendas parlamentares e demais conchavos políticos condicionados pelo parlamento para aprovação das peças orçamentárias.

Neste contexto, a deturpação dos postulados cons-titucionais de “freios e contrapesos” entre os poderes gera o presidencialismo de coalizão e o fisiologismo político materializando-se por meio de verdadeiros esquemas de corrupção alastrados em todas as esferas governamen-tais, a exemplo do recentemente deflagrado esquema de corrupção do “mensalão”, tramitado no Supremo Tribu-nal Federal na Ação Penal n.º 470, e, mais recentemente, a operação Lava-Jato, responsável por deflagrar o maior esquema de corrupção já visto na história republicana.

Como consequência das crises institucionais viven-ciadas pelos dois poderes tipicamente políticos – Execu-tivo e Legislativo, ocorreu uma inevitável perda de legi-

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timidade e poder dessas forças que gravitam quase que exclusivamente em função da sobrevivência de suas res-pectivas forças políticas, e passam a negligenciar a condu-ção de seus misteres constitucionais.

A instabilidade política no Executivo e Legislativo imersos em uma verdadeira crise faz com que esses po-deres abstenham-se de enfrentar temas polêmicos que carreiem um clamor social negativo, sob pena de com-prometer mais ainda a já combalida força política de suas elites dominantes, restando o Judiciário como verdadeira terceira via para enfrentar temas sensíveis na sociedade e no Estado brasileiro152.

Judicialização da política

Como resultante de todos os fatores acima analisa-dos que comprometem o equilíbrio idealizado entre os poderes constituídos, uma forma nítida de expressão do desarranjo entre os poderes republicanos constituídos pode ser percebida com o fenômeno da judicialização da política.

A judicialização da política representa a atuação dire-ta do Poder Judiciário como sujeito decisivo em questões consideradas tipicamente políticas afetas aos outros dois poderes constituídos, sendo o objeto de estudo específico deste tópico concentrado na ação do Judiciário, sobretu-

152 Conforme defende o Ministro do STF Luiz Fux: “Entendo que o Parlamento tem que resolver seus próprios conflitos. E ele não o faz, evidentemente, para não assumir nenhuma postura social que desagrade o seu eleitorado” Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fux-nao-comenta-impeachm. Acessado em: 21 nov. 2016.

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do do Supremo Tribunal Federal, para solução de litígios tipicamente com viés político do Poder Legislativo.

Em face dessa realidade e dos limites da presente análise, resulta importante concentrar a problematiza-ção de algumas reflexões específicas acerca dos limites do judicial review em matéria de atos do Poder Legislativo. No momento em que os poderes que realizam ativida-de política, em especial o Poder Legislativo, se socorrem no Poder Judiciário para resolução de questões sensíveis estritamente atinentes à atividade política, seria cabí-vel essa atuação do Poder Judiciário? Sendo cabível essa atuação do Poder Judiciário, quais os limites dessa atua-ção em relação aos atos políticos e atos não políticos do Poder Legislativo? Seria essa atuação do Poder Judiciário em matéria tipicamente política uma atividade jurisdi-cional estritamente técnico-jurídica ou teria um cunho político também?

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - STF consolidou-se no sentido da impossibilidade de controle de juridicidade em face de atos do Poder Legislativo con-siderados interna corporis153, sendo estes atos relacionados aos procedimentos internos típicos do Poder Legislativo geralmente atrelados a atuação em sede de processo le-gislativo com aplicação regimental. Logo, a necessidade de preservação da separação entre os poderes, em es-pecial nas matérias diretamente afetas às competências constitucionais típica dos Poder Legislativo, limitam a atuação jurisdicional.

153 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – Mandado de Segurança 23.920/DF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inciden-te=1922093. Acessado em: 21 nov. 2016.

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Entretanto, a despeito da jurisprudência consolida-da do STF entendendo pela impossibilidade de exercer judicial review em atos interna coporis, os próprios parla-mentares, membros do Poder Legislativo, tem buscado por iniciativa própria cada vez mais o Poder Judiciário para solução de questões com caráter tipicamente par-ticulares à atividade política, uma vez que a severa crise institucional desse poder além de gerar um ambiente de acirramento político que compromete as condições para a formação de consensos, típicos das casas legislativas, também retira a legitimidade decisória até mesmo das maiorias no curso da deliberações legislativas, desbor-dando as querelas políticas no Poder Judiciário.

Por um lado, o princípio da inafastabilidade da ju-risdição154assegura em tese a possibilidade de submissão ao Poder Judiciário de toda lesão ou ameaça a direito, podendo ser utilizado como fundamento por um parla-mentar que provoque o Judiciário para a solução de uma matéria tipicamente política, sendo oportuno destacar que tal princípio é equiparado a um direito fundamental que deve receber a máxima otimização possível dentro das circunstancias fáticas e jurídicas do caso concreto155.

154 Art. 5 - XXXV- a lei não excluirá do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça a direito; BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

155 Segundo Alexy: “O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por pode-rem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas.” ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 5. Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90.

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Deve-se destacar que o princípio da inafastabilida-de da jurisdição também é protegido contra tentativas de sua abolição como clausula pétrea, pelo artigo 60, § 4º, inciso III da Constituição Federal de 1988.

Observando por outro prisma, o postulado da sepa-ração entre os poderes impõe a mínima intervenção pos-sível do Poder Judiciário sobre atos do Poder Legislativo tipicamente políticos, uma vez que a pratica de atos da vida política pelos parlamentares é em essência precisa-mente o núcleo da materialização da competência cons-titucional típica legitimada democraticamente a este po-der, não cabendo a outro poder sem a mesma natureza de legitimidade democrática interferir na atividade política sub-rogando-se em suas funções mesmo em tempos de profunda crise ética e de legitimidade vivenciada pelo Po-der Legislativo.

Além do argumento da proteção dos atos políti-cos da censura jurisdicional pela prevalência da separa-ção entre os poderes e a respectiva preservação de suas funções típicas, também corrobora essa necessidade de menor judicialização da política o possível em razão da preservação da soberania popular expressada no artigo 1ª, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988 156, uma vez que são exatamente os atos de caráter político realizados pelos parlamentares os que guardam maior necessidade de auferir legitimidade democrática via re-presentação popular157, uma vez que a dialética da ativida-

156 Art. 1º, § único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de represen-tantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. BRASIL. Constitui-ção (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

157 Nesse sentido, Fábio Konder Comparato: “O povo não pode atuar, ao mesmo tem-po, como acusador e julgador; ele não pode decidir, por exemplo, se a manifes-

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de tipicamente política realizada pelos representantes do povo é que forma legitimamente a vontade popular sobre os rumos da política nacional, não cabendo ao Poder Ju-diciário imiscuir-se nesse mister158.

Em contrapartida, é necessário frisar que o fenô-meno do avanço da judicialização da política aufere suas causas muito mais nas carências dos poderes políticos (Executivo e Legislativo), como já citado alguns exemplos que contribuem para a crise institucional e de legitimida-de dos poderes políticos, do que pode-se atribuir a uma eventual usurpação do Judiciário em ofensa a separação de poderes por um fator bem objetivo, o de que a inércia de iniciativa do Poder Judiciário, atributo típico da ativi-dade jurisdicional, impede naturalmente que a iniciativa de todas as controvertidas demandas que configuram a judicialização da política tenham surgido do próprio Judi-ciário e sim, em verdade, decorrem da própria busca dos membros do Poder Legislativo para a solução de questões não resolvidas no seio do próprio poder entre seus pares159.

tação da sua vontade numa eleição, num referendo ou num plebiscito é confor-me ou não à ordem jurídica, pois numa república a ninguém é lícito atuar como juiz em causa própria. É por aí que se deve entender a posição do Judiciário, na organização democrática de poderes. Ele não é nem pode ser representante do povo, mas atua sempre como árbitro de todos os conflitos de interesse, inclusive quando o povo é uma das partes em causa, como demandante ou como deman-dado. A qualidade essencial do árbitro, escusa lembrá-lo, é a sua imparcialidade”. COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 678.

158 É exatamente o que observa Ronald Dworkin: “Os juízes não são eleitos nem ree-leitos, e isso é sensato porque as decisões que tomam ao aplicar a legislação tal como se encontra devem ser imunes ao controle popular”. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 17.

159 Conforme o Ministro do STF Luís Roberto Barroso: “Em última análise, quem é senhor do maior ou menor grau de judicialização é o próprio Congresso, porque na medida em que ele atue, o Supremo não vai atuar”. Ativismo ju-dicial. Congresso é responsável pela judicialização da política, afirma Barroso.

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Em suma, a inafastabilidade da jurisdição deve asse-gurar o controle de juridicidade sobre aspectos da legali-dade dos atos legislativos, mas nunca sobre o controle do próprio mérito dos atos políticos do Legislativo, esse sim deve ser considerando intangível ao Judiciário.

Deve-se ressalvar que a concepção aqui defendida de não cabimento da intervenção do Poder Judiciário sobre os atos tipicamente políticos não necessariamente refu-ta por completo o fenômeno da judicialização da política, uma vez que, por obvio, a judicialização da política abran-ge não somente a submissão de atos políticos em sentido estrito ao Poder Judiciário, mas, também, abrange a sub-missão de questões outras internas ao Poder Legislativo, entretanto sem a tipicidade política estrita, o que pode adentrar adequadamente numa esfera de controle de ju-ridicidade e legalidade passível do crivo do judicial review.

É importante não confundir a ideia de defender ser indevassável pelo Poder Judiciário o controle de mérito sob atos tipicamente políticos do Poder Legislativo, con-siderando a necessidade de preservar-se a separação de poderes, com a ideia cada vez mais usual de que o Poder Judiciário, em especial a Suprema Corte - STF, pode sim atuar com uma conotação política, portanto não somen-te técnico-jurídica, sem desviar-se do seu mister jurisdi-cional constitucionalmente privativo.

Nesse sentido, não encontra resistência atualmente o entendimento de que o STF como Corte Constitucio-nal e no exercício da jurisdição constitucional ao decidir matérias de notável repercussão social, com eficácia jurí-dica transindividual, a exemplo do controle de constitu-

Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-ago-19/congresso-responsavel--judicializacao-politica-barroso. Acessado em: 21 nov. 2016.

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cionalidade concentrado de lei em tese, pode sim adotar decisões com nítido caráter político-social, não adstrito somente ao caráter subsuntivo e silogístico da interpre-tação jurídica, uma vez que o faz no livre exercício de sua competência de jurisdição constitucional160.

Logo, as reservas feitas ao fenômeno da judicializa-ção da política circunscrevem-se muito mais às suas cau-sas decorrentes da crise institucional e de legitimidade vivenciada pelo Poder Legislativo em seus vários aspectos analisados nos tópicos anteriores do que pela impossibili-dade hipotética de o Poder Judiciário apreciar, via contro-le de juridicidade, questões internas do Poder Legislativo, desde que não sejam matérias estritamente políticas.

Conclusão

A concepção teórica atualmente prevalecente da se-paração dos poderes, principalmente com base na teoria da tripartição de poderes de Montesquieu, consubstan-ciou-se no texto constitucional brasileiro mediante uma

160 Assim observa Dalmo de Abreu Dallari: “O juiz sempre terá de fazer escolhas, en-tre normas, argumentos, interpretações e até mesmo entre interesses, quando estes estiverem em conflito e parecer ao juiz que ambos são igualmente prote-gidos pelo direito. A solução do juiz será política nesse caso, mas também terá conotação política sua decisão de aplicar uma norma ou de lhe negar aplicação, pois em qualquer caso haverá efeitos sociais e alguém será beneficiado ou preju-dicado. [...] O reconhecimento da politicidade do direito nada tem a ver com op-ções partidárias nem tira, por si só, a autenticidade e a legitimidade das decisões judiciais. Bem ao contrário disso, o juiz consciente dessa politicidade fará um esforço a mais para conhecer e interpretar o direito, considerando sua inserção necessária num contexto social, procurando distingui-lo do direito abstrato ou do que é criado artificialmente para garantir privilégio, proporcionar vantagens injustas ou impor sofrimentos a outros com base exclusivamente numa discri-minação social”. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 89-90.

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série de normas que asseguram a efetiva separação e in-dependência, a exemplo das regras analisadas no estudo que elevam a separação entre os poderes ao patamar de clausula pétrea, logo intangível às modificações redutivas do seu alcance de proteção normativa, bem como obser-vou-se que o texto constitucional estatuiu um sistema de zonas de contatos e controles recíprocos entre os poderes de modo a promover o equilíbrio entre os poderes através da lógica do sistema de “freios e contrapesos” ou check and balances.

Entretanto, no plano da realidade política institucio-nal observa-se que a independência e harmonia postula-das expressamente no artigo 2º da Constituição Federal de 1988 por uma série de fatores nem sempre se efetiva em decorrência da deturpação política do regramento do sistema de “freios e contrapesos”.

No caso do dogma da independência entre os pode-res, observa-se que o desequilíbrio de poder de algumas competências constitucionais propicia eventual preva-lência de um dos poderes sobre o outro, a exemplo de al-gumas competências dedicadas ao Poder Executivo que potencializam sua prevalência sobre os demais poderes, como o caso analisado dos procedimentos para aprova-ção dos instrumentos orçamentários (LDO, LOA e PPA).

No caso do dogma da harmonia entre os poderes, observa-se que a crise de legitimidade vivenciada recen-temente por alguns dos poderes constituídos, principal-mente pelo Poder Legislativo e Poder Executivo, decor-rente de um ambiente de instabilidade política resultante do fisiologismo político instaurado como praxe em cons-tantes casos de corrupção e acirramento político moti-vado pelas disputas pelo poder inerentes ao ambiente do

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presidencialismo de coalizão faz com que o Poder Legis-lativo não desincumba-se de resolver suas questões inter-nas fazendo chegar ao Poder Judiciário temas antes tra-tados exclusivamente como internas corporis, causando o fenômeno chamado de judicialização da política.

O Poder Judiciário ao longo dos tempos mudou gra-dativamente seu papel na sociedade e na relação entre poderes, galgando atualmente uma postura mais criativa como acepção de um maior ativismo judicial, bem como enfrentando com relativo êxito temas sociais polêmicos não eficazmente tratados pelos demais poderes através da atuação de sua Suprema Corte – STF com um viés de atuação também político, fatores que também contri-buem para uma tendência de hipertrofia do Poder Judi-ciário em face do “vácuo de poder” deixado pelos demais poderes republicanos constituídos.

Em face de todos esses fatores somados, observa-se que o fenômeno da judicialização da política representa uma clara forma de exteriorização desse desarranjo e de-sequilíbrio interno dos poderes políticos – Executivo e Legislativo, que culminam submetendo cada vez mais ao crivo de juridicidade pelo Poder Judiciário questões an-tes resolvidas internamente a cada poder, sejam elas de cunho não político no sentido estrito, na qual defende--se ser cabível o judicial review para controle de legalidade pelo princípio constitucional da inafastabilidade da juris-dição, sejam as questões de caráter político propriamente ditas e afetas às competências típicas dos poderes políti-cos, as quais sustenta-se somente serem censuráveis pelo Poder Judiciário pelo princípio constitucional da inafas-tabilidade da jurisdição no aspecto da legalidade externa ao ato, não cabendo, de modo algum, ao Poder Judiciário

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adentrar na análise do mérito político, sob pena de fla-grante ofensa ao dogma da separação de poderes.

Referências

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Este livro foi impresso em dezembro de 2016. O projeto gráfico – miolo e capa – foi feito pela Editora Valer.

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