Plautus’ Mostellaria, 157-312

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TRANSLATIO Porto Alegre, n. 19, Outubro de 2020 57 ISSN 2236-4013 TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS BRASILEIRO DOS VERSOS 157 A 312 D’ A COMÉDIA DOS FANTASMAS DE PLAUTO A Brazilian Portuguese translation of Plautus’ Mostellaria, 157-312 Carol Martins da Rocha 1 Resumo: Esta é uma tradução do latim para o português brasileiro dos versos 157 a 312 da peça Mostellaria de Tito Mácio Plauto, comediógrafo do séc. III a.C. A passagem corresponde ao que se convencionou delimitar como terceira cena do primeiro ato dessa comédia. Nela figuram duas personagens femininas, que, embora não contracenem novamente no restante da ação, são parte do motor do plano do escravo Tranião, que envolve os fantasmas mencionados no título da peça. Filemácia, jovem meretriz, e Escafa, sua velha escrava, que outrora também fora prostituta, conversam sobre o modo como se sucedem as relações entre os jovens apaixonados e as meretrizes, alegados alvos da sua paixão. As notas que acompanham a tradução procuram ora elucidar passagens mais obscuras (seja em termos de edição de texto ou de tradução), ora chamar a atenção do leitor para os aspectos metateatrais que, a nosso ver, caracterizam a cena em cotejo. Palavras-chave: Plauto; Mostellaria; meretrizes; metateatro; tradução. Abstract: This is a translation from Latin to Brazilian Portuguese of Titus Maccius Plautus’ Mostellaria, 157-312. In this passage, the third scene of the first act of this comedy, two female characters perform. Although they do not act together again in the play, they are central to Tranio’s plan, which includes the ghosts mentioned in the play title. Philematium, a young meretrix, and Scapha, her ancilla, that were also a prostitute, talk about how evolve the relationship between the young lovers and the alleged target of their love, the prostitutes. Along the translation there are footnotes that try to elucidate obscure passages (in terms of text or translation issues) or to highlight metatheatrical aspects which seem to us central to the scene here translated. Keywords: Plautus; Mostellaria; prostitutes; metatheatre; translation. Introdução 2 Os fantasmas mencionados no título da comédia de Tito Mácio Plauto (III II a.C.) aqui em apreço são parte do plano arquitetado por Tranião, escravo calejado (seruus callidus) dessa 1 Docente do Departamento de Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Doutora em Linguística Aplicada pelo IEL/Unicamp (2015), com estágio de pesquisa no exterior no Seminar für Klassische Philologie (Universität Heidelberg). 2 Essa tradução é parte do projeto (em andamento) de tradução integral dA comédia dos fantasmas. Agradeço aos pareceristas pelas sugestões feitas durante a fase de avaliação do texto e aos editores da Translatio pelo cuidadoso processo editorial.

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TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS BRASILEIRO DOS VERSOS 157 A 312 D’ A

COMÉDIA DOS FANTASMAS DE PLAUTO

A Brazilian Portuguese translation of Plautus’ Mostellaria, 157-312

Carol Martins da Rocha 1

Resumo: Esta é uma tradução do latim para o português brasileiro dos versos 157 a 312 da

peça Mostellaria de Tito Mácio Plauto, comediógrafo do séc. III a.C. A passagem corresponde

ao que se convencionou delimitar como terceira cena do primeiro ato dessa comédia. Nela

figuram duas personagens femininas, que, embora não contracenem novamente no restante da

ação, são parte do motor do plano do escravo Tranião, que envolve os fantasmas mencionados

no título da peça. Filemácia, jovem meretriz, e Escafa, sua velha escrava, que outrora também

fora prostituta, conversam sobre o modo como se sucedem as relações entre os jovens

apaixonados e as meretrizes, alegados alvos da sua paixão. As notas que acompanham a

tradução procuram ora elucidar passagens mais obscuras (seja em termos de edição de texto ou

de tradução), ora chamar a atenção do leitor para os aspectos metateatrais que, a nosso ver,

caracterizam a cena em cotejo.

Palavras-chave: Plauto; Mostellaria; meretrizes; metateatro; tradução.

Abstract: This is a translation from Latin to Brazilian Portuguese of Titus Maccius Plautus’

Mostellaria, 157-312. In this passage, the third scene of the first act of this comedy, two female

characters perform. Although they do not act together again in the play, they are central to

Tranio’s plan, which includes the ghosts mentioned in the play title. Philematium, a young

meretrix, and Scapha, her ancilla, that were also a prostitute, talk about how evolve the

relationship between the young lovers and the alleged target of their love, the prostitutes. Along

the translation there are footnotes that try to elucidate obscure passages (in terms of text or

translation issues) or to highlight metatheatrical aspects which seem to us central to the scene

here translated.

Keywords: Plautus; Mostellaria; prostitutes; metatheatre; translation.

Introdução2

Os fantasmas mencionados no título da comédia de Tito Mácio Plauto (III – II a.C.) aqui

em apreço são parte do plano arquitetado por Tranião, escravo calejado (seruus callidus) dessa

1 Docente do Departamento de Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Doutora em Linguística Aplicada pelo IEL/Unicamp (2015), com estágio de pesquisa no exterior no Seminar für

Klassische Philologie (Universität Heidelberg). 2 Essa tradução é parte do projeto (em andamento) de tradução integral d’ A comédia dos fantasmas. Agradeço aos

pareceristas pelas sugestões feitas durante a fase de avaliação do texto e aos editores da Translatio pelo cuidadoso

processo editorial.

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peça.3 A peripécia consiste em convencer o velho Teoprópides, pai de Filólaques, dono de

Tranião, de que o adulescens havia abandonado a casa em que moravam porque o fantasma de

um hóspede assassinado pelo antigo proprietário dela havia lhe aparecido em sonho para revelar

todo seu infortúnio e avisá-lo da maldição que assombrava aquele lar (v. 431-531).

A cena que escolhemos traduzir ocorre antes de o escravo bolar seu plano e colocá-lo

em prática. Nela figuram Escafa e Filemácia. Esta última, uma meretriz, é um dos motivos pelos

quais o ludíbrio se faz necessário: dada a longa ausência do pai, Filólaques, apaixonado pela

jovem moça, transforma o patrimônio da família (v. 134-156) em ruínas. O adulescens chega a

se endividar com um agiota para comprar a liberdade da meretriz (v. 210-1). O bon vivant,

entretanto, se vê em apuros quando inesperadamente Teoprópides regressa (v. 353). Diante da

possibilidade de ser pego em flagrante, o jovem, que àquela altura bebia e festejava com

Calidamates, seu amigo, e Délfia, a outra meretriz da peça, se desespera (v. 378-381) e pede

ajuda a Tranião. O escravo ordena que as meretrizes entrem na casa e lá se mantenham em

silêncio (v. 397-402), enquanto ele articula seu ardil.

A participação de Filemácia e Escafa, uma escrava, que outrora fora meretriz, ocorre

ainda perto do início da ação de Mostellaria. Ambas entram em cena após um extenso

monólogo de Filólaques, em que o jovem, usando uma metáfora que equipara o homem a uma

casa, lamenta a ruína de suas estruturas (v. 85-156). Estando no palco, Filemácia e Escafa não

sabem, mas a conversa entre elas é ouvida pelo jovem apaixonado, que a todo momento faz

apartes ao diálogo espionado. Em linhas gerais, a cena que aqui apresentamos é a seguinte.

Filemácia e Escafa conversam, enquanto a jovem meretriz se apronta para a chegada do

adulescens. A preocupação de Filemácia é com sua aparência: ela acaba de se banhar (v. 157-

8), quer ter certeza se as roupas lhe caem bem (v. 166-7; 172) e se seus cabelos estão arrumados

(v. 254), deseja se maquiar (v. 257 ss.), se perfumar (v. 272) e se enfeitar (v. 248-9). A

preocupação de Escafa, por sua vez, é com o triste destino das mulheres que vivem como

meretrizes. Segundo sua própria experiência, a velha escrava sabe que a sobrevivência de uma

prostituta, de um lado, depende do ganho monetário advindo da sua relação com um homem

por ela apaixonado e, por outro lado, está atrelada à juventude dessa mulher.

3 Esta é a única das peças de Plauto em que se apresenta o tema dos espectros. Para um levantamento mais completo

sobre o tema na literatura antiga em geral, cf. KEMPER, 2010. Segundo Ernout (PLAUTE, 2003, p. 13), seriam

três as comédias gregas nomeadas Φάσμα, das quais atualmente se conhece apenas o título: uma de Teogneto (III

a.C.), outra de Menandro (III a.C.) e a terceira de Filemão (III a.C.). Supõe-se, a partir da proposta de Ritschl, em

seu estudo de 1845 (Parerga zu Plautus und Terenz), que esta última tenha sido o modelo para a peça plautina,

ainda que o indício para tal afirmação – a saber, a menção a Dífilo no verso 1149 da peça – seja pouco confiável

(cf. PLAUTE, 2003, p. 13: “On admet, depuis Ritschl, que c’est de cette dernière que Plaute se serait inspiré, mais

cela sur un indice bien faible”).

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O fato de que esta peça de Plauto ainda não recebeu uma tradução para o português

brasileiro é uma das justificativas para apresentarmos uma mostra dessa tarefa, que

pretendemos levar a cabo futuramente. Além disso, esta cena específica, única em que

Filemácia e Escafa contracenam, ilustra, na nossa opinião, um jogo entre dois elementos

presentes nesta comédia. De um lado, estão as imagens desse tipo que as meretrizes da peça

expressam ter para si. De outro lado, está o modo como as duas personagens planejadamente

fazem vir à tona em seus discursos cada uma dessas imagens. Implicado nesse jogo está ainda

um duplo movimento metalinguístico, que aponta, sobretudo, para o caráter ilusório do teatro.

Ora alude-se ao comportamento que o tipo da meretriz costuma ter no palco da palliata. Ora

chama-se a atenção seja por meio dos elementos cênicos, seja por referência ao desajuste entre

o ator e o personagem feminino que ele representa, por exemplo, para a materialidade

relacionada aos corpos reais dos atores que interpretam essas personagens.

1. Breves notas sobre a tradução

Para a tradução que apresentamos a seguir, adotamos o texto latino editado por Ernout

e publicado pela coleção Belles Lettres (PLAUTE, 2003). Nas notas, faremos referência às

edições e traduções consultadas da seguinte maneira:

Collart = PLAUTUS, T. M. Mostellaria. Edição, introdução e comentário de Jean

Collart. Paris: Presses Universitaires de France, 1970.

Ernout = PLAUTE. Comédies. Mostellaria – Persa – Poenulus. Texto estabelecido e

traduzido por Alfred Ernout. Tome V. 4ª edição. Paris: Les Belles Lettres, 2003.

Nixon = PLAUTUS. The merchant – The braggart warrior – The haunted house – The

persian. Tomo III. Com tradução para o inglês de Paul Nixon. Cambridge, Harvard University

Press; Londres, William Heinemann, 1980.

Pereira = PLAUTO. A comédia do fantasma (‘Mostellaria’). Tradução, introdução e

comentário de Reina Marisol Troca Pereira. Coimbra; São Paulo: Imprensa da Universidade de

Coimbra; Annablume Editora, 2014.

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Sonnenschein = PLAUTI, T. MACCI. Mostellaria. Edição e notas de Edward A.

Sonnenschein. 2ª edição. Oxford: Clarendon Press, 1907.

Como o leitor perceberá, esta é uma tradução em prosa (para um texto escrito

originalmente em verso). Na medida da nossa habilidade, procuramos recriar parte dos

inúmeros efeitos poéticos do latim plautino, ressaltando aqui e ali, por exemplo, assonâncias e

repetições. As notas, em geral, têm como objetivo esclarecer possíveis problemas de caráter

textual (trechos corrompidos ou de lição divergente entre os editores), elucidar expressões

latinas, cuja tradução pode ser obscura ou não remeter ao contexto original, ou, ainda, chamar

a atenção do leitor para os aspectos metateatrais referidos em nossa breve introdução. Nossa

intenção é comum a todo tradutor de teatro: produzir um texto que possa funcionar no palco.

Certamente a execução não está livre de problemas, mas a expectativa é, ao menos,

proporcionar alguma diversão ao leitor.

2. Texto latino

PHILE. Iam pridem ecastor frigida non laui magis lubenter

Nec quom me melius, mea Scapha, rear esse deficatam.

SC. Euentus rebus omnibus<t>, uelut horno messis magna

Fuit.

PHILE. Quid ea messis attinet ad meam lauationem? 160

SC. Nihilo plus quam lauatio tua ad messim.

PHILO. Oh Venus uenusta!

Haec illa est tempestas mea, mihi quae modestiam omnem

Detexit, tectus qua fui. Tum mihi Amor et Cupido

In pectus perpluit meum, neque iam umquam optigere possum.

Madent iam in corde parietes; periere haec oppido aedes. 165

PHILE. Contempla, amabo, mea Scapha, satin haec me uestis deceat.

Volo me placere Philolachi, meo ocello, meo patrono.

SC. Quid tu te exornas, moribus lepidis quom lepida tute es?

Non uestem amatores amant [mulieris], sed uestis fartim.

PHILO. Ita me di ament, lepida<st> Scapha; sapit scelesta multum. 170

Vt lepide omnis <mo>res tenet sententiasque amantum!

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PHILE. Quid nunc?

SC. Quid est?

PHILE. Quin me aspice et contempla ut haec me dece<a>t.

SC. Virtute formae id euenit, te ut deceat quicquid habeas.

PHILO. Ergo ob istoc uerbum te, Scapha, donabo ego hodie aliqui,

Neque patiar te istanc gratiis laudasse, quae placet mi. 175

PHILE. Nolo ego te adsentari mihi.

SC. Nimis tu quidem stulta es mulier.

Eho, mauis uituperari<er> falso quam uero extolli? 177.178

Equidem pol uel falso tamen laudari multo malo

Quam uero culpari, aut meam speciem alios inridere. 180

<PHILE.> Ego uerum amo, uerum uolo dici mihi; mendacem odi.

SC. Ita tu me ames, ita Philolaches tuus te amet, ut uenusta es.

PHILO. Quid ais, scelesta? quo modo adiurasti? ita ego istam amarem?

Quid istaec me, id cur non additum est? infecta dona facio.

Peristi; quod promiseram tibi donum, perdidisti. 185

SC. Equidem pol miror tam catam, tam ⁺doctam⁺ te et bene doctam

Nunc stultam stulte facere.

PHILE. Quin mone, quaeso, si quid erro.

SC. Tu ecastor erras, quae quidem illum expectes unum atque illi

morem praecipue sic geras, atque alios aspernere.

Matronae, non meretricium est unum inseruire amantem. 190

PHILO. Pro Iuppiter, nam quod malum uersatur meae domi illud?

Di deaeque me omnes pessumis exemplis interficiant,

Nisi ego illam anum interfecero siti fameque atque algu.

PHILE. Nolo ego mihi male te, Scapha, praecipere.

SC. Stulta es plane,

Quae illum tibi aeternum putes fore amicum et beneuolentem. 195

Moneo ego te : te ille deseret aetate et satietate.

PHILE. Non spero.

SC. Insperata accidunt magis saepe quam quae speres.

Postremo, si dictis nequis perduci, ut uera haec credas

Mea dicta, ex factis nosce rem. Vides quae sim; et quae fui ante!

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Nihilo ego quam nunc tu amata sum; atque uni modo gessi morem, 200

Qui pol me, ubi aetate hoc caput colorem commutauit,

Reliquit deseruitque me. Tibi idem futurum credo.

PHILO. Vix comprimor, quin inuolem illi in oculos stimulatrici.

PHILE. Solam ille me soli sibi suo <sumptu> liberauit :

[Solam] Illi me soli censeo esse oportere opsequentem. 205

PHILO. Pro di immortales, mulierem lepidam et pudico ingenio!

Bene hercle factum, et gaudeo mihi nil esse huius causa.

SC. Inscita ecastor tu quidem es.

PHILE. Quapropter?

SC. Quae istuc <cures>,

Vt te ille amet.

PHILE. Cur obsecro non curem?

SC. Libera es iam.

Tu iam quod quaerebas habes : ille te nisi amabit ultro, 210

Id pro tuo capite quod dedit perdiderit tantum argenti.

PHILO. Perii hercle, ni ego illam pessumis exemplis enicasso.

Illa hanc corrumpit mulierem malesuada ⁺uitilena⁺.

PHILE. Numquam ego illi possum gratiam referre, ut meritust de me.

Scapha, id tu mihi ne suadeas, ut illum minoris pendam. 215

SC. At hoc unum facito cogites : si illum inseruibis solum

Dum tibi nunc haec aetatulast, in senecta male querere.

PHILO. In anginam ego nunc me uelim uerti, ut ueneficae illi

Fauces prehendam atque enicem scelestam stimulatricem.

PHILE. Eundem animum oportet nunc mihi esse gratum, ut inpetraui, 220

Atque olim, priusquam id extudi, quom illi subblandiebar.

PHILO. Di<ui> me faciant quod uolunt, ni ob istam orationem

Te liberasso denuo et ni Scapham enicasso.

SC. Si tibi sat acceptum est fore tibi uictum sempiternum,

Atque illum amatorem tibi proprium futurum in uita, 225

Soli gerundum censeo morem et capiundas crines.

PHILE. Vt fama est homini, exin solet pecuniam inuenire.

Ego si bonam famam mihi seruasso, sat ero diues.

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PHILO. Siquidem hercle uendundust pater, uenibit multo potius,

Quam te me uiuo umquam sinam egere aut mendicare. 230

SC. Quid illis futurum est ceteris qui te amant?

PHILE. Magis amabunt,

Quom <me> uidebunt gratiam refer<re rem fe>renti.

PHILO. Vtinam meus nunc mortuos pater ad me nuntietur,

Vt ego exheredem ⁺meis me⁺ bonis me faciam atque haec sit heres.

SC. Iam ista quidem absumpta [quidem] res erit : dies noctesque estur, bibitur, 235

Neque quisquam parsimoniam adhibet : sagina plane est.

PHILO. In te hercle certumst principi ut sim parcus experiri;

Nam neque edes quicquam neque bibes apud me his dec<em> diebus.

PHILE. Siquid tu in illum bene uoles loqui, id loqui licebit;

Nec recte si illi dixeris, iam ecastor uapulabis. 240

<PHILO.> Edepol si summo Ioui ⁺bo⁺ argento sacruficassem

Pro illius capite quod dedi, numquam aeque id bene [col]locassem.

[Vt] Videas eam medullitus me amare. Oh! probus homo sum :

Quae pro me causam diceret, patronum liberaui.

SC. Video te nihili pendere prae Philolache omnis homines; 245

Nunc, ne eius causa uapulem, tibi potius adsentabor,

Si acceptum sat habes, tibi fore illum amicum sempiternum.

PHILE. Cedo mi speculum et cum ornamentis arculam actutum, Scapha,

Ornata ut sim, quom huc <ad>ueniat Philolaches uoluptas mea.

SC. Mulier quae se suamque aetatem spernit, speculo ei usu<s> est : 250

Quid opust speculo tibi, quae tute speculo speculum es maxumum?

PHILO. Ob istuc uerbum, ne nequiquam, Scapha, tam lepide dixeris,

Dabo aliquid hodie peculi – tibi, Philematium mea.

PHILE. Suo quique loco, uiden, capillus satis compositust commode?

SC. Vbi tu commoda es, capillum commodum esse credito. 255

PHILO. Vah, quid illa pote peius quicquam muliere <me>morarier?

Nunc adsentatrix scelesta est, dudum aduersatrix erat.

PHILE. Cedo cerussam.

SC. Quid cerussa opust nam?

PHILE. Qui malas oblinam.

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SC. Vna opera, <era>, ebur atramento candefacere postules.

PHILO. Lepide dictum de atramento atque ebore. Eugae, plaudo Scaphae. 260

PHILE. Tum tu igitur cedo purpurissum.

SC. Non do. Scita es tuquidem.

Noua pictura interpolare uis opus lepidissimum?

Non istanc aetatem oportet pigmentum ullum attingere,

Neque cerussam neque Melinum neque aliam ullam offuciam.

PHILE. Cape igitur speculum.

PHILO. Ei mihi misero! sauium speculo dedit. 265

Nimis uelim lapidem qui ego illi speculo dimminuam caput.

SC. Linteum cape atque exterge tibi manus.

PHILE. Quid ita, obsecro?

SC. Vt speculum tenuisti, metuo ne olant argentum manus :

Ne usquam argentum te accepisse suspicetur Philolaches.

PHILO. Non uideor uidisse lenam callidiorem ullam alteras. 270

Vt lepide atque astute in mentem uenit de speculo malae!

PHILE. Etiamne unguentis unguendam censes?

SC. Minime feceris.

PHILE. Quapropter?

SC. Quia ecastor mulier recte olet, ubi nil olet.

Nam istae ueteres, quae se unguentis unctitant, interpoles,

Vetulae, edentulae, quae uitia corporis fuco occulunt, 275

Vbi sese sudor cum unguentis consociauit, ilico

Itidem olent, quasi cum una multa iura confudit cocus.

Quid olant nescias, nisi id unum, ut male olere intellegas.

PHILO. Vt perdocte cuncta callet! nil hac docta doctius.

Verum illuc est; maxuma adeo pars uestrorum intellegit, 280

Quibus anus domi sunt uxores, quae uos dote meruerunt.

PHILE. Agedum, contempla aurum et pallam, satin haec <me> deceat, Scapha.

SC. Non me istuc curare oportet.

PHILE. Quem obsecro igitur?

SC. Eloquar :

Philolachem; is nequid emat, nisi quod sibi placere censeat. 284.285

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Nam amator meretricis mores sibi emit auro et purpura.

Quid opust, quod suum esse nolit, e<i> ultro ostentarier?

Purpura aetati occultandaest, aurum turpi mulieri;

Pulchra mulier nuda erit quam purpurata pulchrior.

[Poste nequiquam exornata est bene, si morata est male. 290

Pulchrum ornatum turpes mores peius caeno conlinunt.]

Nam si pulchra est, nimis ornata est.

PHILO. Nimis diu abstineo manum.

Quid hic uos [diu] agitis?

PHILE. Tibi me exorno ut placeam.

PHILO. Ornata es satis.

Abi tu hinc intro atque ornamenta haec aufer. Sed, uoluptas mea,

Mea Philematium, potare tecum conlibitum est mihi [libet]. 295

PHILE. Et edepol mihi tecum; nam quod tibi libet, idem mihi libet,

Mea uoluptas.

<PHILO.> Em istuc uerbum uile est uiginti minis.

PHILE. Cedo, amabo, decem; bene emptum tibi dare hoc uerbum uolo.

PHILO. Etiam nunc decem minae apud te sunt; uel rationem puta :

Triginta minas pro capite tuo dedi.

PHILE. Cur exprobras? 300

PHILO. Egone id exprobrem, qui mihimet cupio id opprobrarier,

Nec quicquam argenti locaui iam diu usquam aeque bene?

PHILE. Certe ego, quod te amo, operam nusquam melius potui ponere.

PHILO. Bene igitur ratio accepti atque expensi inter nos conuenit.

Tu me amas, ego te amo; merito id fieri uterque existimat. 305

Haec qui gaudent, gaudeant perpetuo suo semper bono;

Qui inuident, ne umquam eorum quisquam inuideat prosus commodis.

PHILE. Age accumbe igitur. Cedo aquam manibus, puere; appone hic mensulam;

Vide tali ubi sint. Vin unguenta?

<PHILO.> Quid opust? cum stacta accubo.

Sed estne hic meus sodalis, qui huc incedit cum amica sua? 310

Is est : Callidamates cum amica [cum] incedit. Euge, oculus meus!

Conueniunt manuplares eccos, praedam participes petunt.

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3. Tradução

FILE. Por Castor, já há algum tempo não me banho com tanto prazer em água fria e nunca

consideraria estar mais bem limpa, minha Escafa.

ESC. Todas as coisas têm seu resultado, assim como foi grande a arrecadação4 este ano.

FILE. O que essa arrecadação tem a ver com o meu banho? <160>

ESC. Nada além do que seu banho [tem a ver] com a arrecadação.

FILO. Ó Vênus venerável! Aquela ali é minha tempestade, que me arranca todo o juízo, com o

qual eu estava coberto. Então, Amor e Cupido caíram como chuva contra meu peito e eu já não

posso mais cobri-lo. As paredes em meu coração já estão encharcadas. Esta casa pereceu

completamente!5 <165>

FILE. Veja,6 por favor, minha Escafa, se essa roupa7 me cai bem o suficiente. Eu quero agradar

Filólaques, meu olhinho, meu protetor.8

ESC. Por que você se enfeita com modos encantadores quando você mesma é encantadora? Os

apaixonados não amam a roupa [da mulher], mas o que recheia as roupas.9

4 Velut horno messis magna messis fuit (v. 159-160): segundo Collart (p. 52), a comparação estabelecida por Escafa

é “sem dúvida proverbial” (“sans doute proverbiale”). O termo messis designa mais propriamente uma colheita

(anual), mencionada para indicar passagem do tempo (cf. OLD, sentido 1). Embora “arrecadação” não corresponda

ao sentido literal do termo latino, preferimos aludir aqui à ideia de um grande ganho financeiro – a que o possível

tom proverbial da fala de Escafa pode fazer referência –, que, certamente, está subentendida ao longo desse diálogo

entre as duas mulheres. Pereira (p. 39-40) afirma que, dada a reação de Filemácia, o ditado proferido por Escafa

deve ser desconhecido dos mais novos. 5 Aqui Filólaques retoma a imagem construída em seu monólogo na cena anterior (v. 85-156), em que, usando

uma metáfora que faz o homem equivaler a uma casa, lamenta a ruína de suas estruturas devido a sua paixão por

Filemácia. Em seu aparte ao diálogo entre a meretriz e Escafa, Filólaques compara Filemácia a uma tempestade

que “destelha” essa casa de forma definitiva. Na sequência, como vemos, o jovem atribui a destruição de seu peito,

que não pode mais ser coberto, à ação do amor e de Cupido. Por fim, a polissemia do verbo madeo, que pode

significar tanto “estar molhado” (sentido 1 do OLD) como “estar embriagado” (sentido 3 do OLD), mantém a ideia

de uma casa, que tendo sido encharcada pela chuva, está completamente perdida. 6 Contempla (v. 166): este é o primeiro registro dos diferentes termos relacionados à visão que se repetem

insistentemente ao longo desta cena. 7 Haec uestis (v. 166): o pedido de Filemácia chama atenção para um elemento cênico: seus trajes. Essa atitude

vai se repetir ainda outras vezes durante a conversa entre meretriz e escrava. 8 Meo ocello, meo patrono (v. 167): os termos ocellus e patronus pertencem a campos semânticos bastante

distintos. O primeiro é empregado na linguagem amorosa, assim como ocorre usualmente com outros diminutivos

(cf. Cas. 134-7). Já patronus pertence ao campo semântico do direito: o termo indica o responsável pela proteção

de uma outra pessoa ou aquele que fora dono de um, agora, ex-escravo. Filemácia faz referência ao fato de que

Filólaques obteve sua posse, tendo-a comprado com dinheiro emprestado do usurário Misargírides. O modo como

a meretriz aproxima termos dissonantes em sua fala parece-nos um aceno à célebre lábia das meretrizes da palliata.

Sobre este tema, cf. ROCHA, 2015, p. 80-4. 9 Non uestem amatores amant [mulieris], sed uestis fartim (v. 169): Collart (p. 54) chama atenção novamente para

a presença de um tom proverbial na fala de Escafa. O termo fartim, acusativo de *fars, fartis, cujo sentido parece

ser algo como “recheio”, é registrado, segundo Sonnenschein (p. 84), apenas no ablativo (em um fragmento de

Plauto preservado por Festo (p. 333) e, se aceitarmos a lição de Skutsch, no acusativo no verso 8 de Miles

Gloriosus). Como advérbio, o termo ainda é encontrado num fragmento de Lucílio (78 M.).

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FILO. Que os deuses me guardem! Escafa é encantadora. A pilantra é muito sabida! <170>

Como conhece bem todos os costumes e pensamentos dos apaixonados!

FILE. E aí?

ESC. O que foi?

FILE. Vai, olhe para mim e veja como essa roupa me cai.

ESC. Em virtude da sua beleza, acontece de lhe cair bem o que quer que vista.

FILO. Muito bem! Por causa dessa sua fala, Escafa, hoje vou lhe dar algo... Que eu não deixe

você a ter elogiado – o que me agrada – de graça. <175>

FILE. Eu não quero que você puxe meu saco.

ESC. De fato, você é uma mulher muito tonta. O quê?! Você prefere ser afrontada com mentiras

a ser exaltada com verdades? <177.178> De fato, por Pólux, eu prefiro muito mais ser elogiada

ainda que com mentiras a ser culpada com verdades ou a que outros riam da minha aparência.

<180>

<FILE.> Eu amo a verdade. Quero que a verdade me seja dita: odeio a mentira.

ESC. Como, “você me ama”, “Filólaques lhe ama”, do mesmo modo digo, você é admirável.

FILO. O que você está dizendo, pilantra? Pelo que você jurou? “Que eu a amo”? Por que não

se adicionou “que ela me ama”?10 Eu faço desfeita aquela oferta. Você está perdida! A oferta

que eu lhe tinha prometido, você perdeu! <185>

ESC. De fato, por Pólux, me admira que você tão esperta, tão ilustrada e tão bem ilustrada,11

agora se faça de tonta tontamente.

FILE. Vamos, aconselhe-me, por favor, se estou errando em algo.

ESC. Você, por Castor, está errando ao, de fato, ficar esperando apenas ele e assim só fazer o

que ele quer12 e, com isso, repelir os outros homens. Ficar presa a um único amor é coisa de

matrona, não de meretriz. <190>

10 Quo modo adiurasti? ita ego istam amarem? (v. 183): a intervenção de Filólaques ajuda a esclarecer o sentido

da condensada fala anterior de Escafa. As frases reportadas por Escafa seriam juramentos. Ao menos é o que

parece entender Filólaques, ao empregar o verbo adiuro (v. 183) em sua reclamação. 11 Tam catam, tam ⁺doctam⁺ te et bene doctam (v. 186): o texto final deste verso tem alguns problemas textuais.

catam é uma correção proposta por Pio para o termo captam registrado nos manuscritos B, C e D. Pelo fato de que

o termo doctam se repetiria na sequência, os editores adotam outras soluções: Redslob e Leo sugerem docilem ...

doctam; Camerarius, doctam ... eductam; Schoell, tam cordatam et bene doctam. Adotamos a lição de Ernout,

concordando com a observação de Collart (p. 57): a repetição de um mesmo termo num mesmo verso é

característica da fala de Escafa: lepidis... lepida, v. 168; speculo speculum, v. 251; commoda... commodum, v. 255.

Além disso, doctam ... doctam parece ressoar na repetição que vem a seguir: stultam stulte. 12 Illi morem ... geras (v. 188-189): segundo o OLD (sentido 8d de gero), a expressão morem alicui gerere significa

“regular a conduta de acordo com o desejo de outra pessoa, satisfazê-la ou obrigá-la” (“to regulate one’s conduct

in accordance with the wishes of another, gratify or oblige him”). Pereira (p. 42) afirma que há na passagem

“conotações imbuídas de alguma tonalidade sexual e imoral”. Embora afirme que a expressão passa a ter mais

tardiamente (com exemplos em Suetônio e Apuleio) um sentido sexual, relacionado ao comportamento feminino,

Adams (1990, p. 164) indica que esse aspecto é derivado do sentido primário, da época de Plauto, da expressão,

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FILO. Por Júpiter! Que tipo de mal é esse que está se apossando da minha casa? Que todos os

deuses e deusas me arruínem com os piores castigos se eu não matar essa escrava de fome, de

sede e de frio!

FILE. Eu não quero que você me aconselhe mal, Escafa.

ESC. Você é absolutamente tonta se pensa que ele lhe será eternamente benevolente e

apaixonado. <195> Eu estou avisando: ele vai lhe deixar quando você envelhecer e ele se

encher.13

FIL. Espero que não.

ESC. As coisas inesperadas acontecem mais vezes do que as que se espera. No fim, se você não

pode se convencer pelo que foi dito a ponto de acreditar que é verdade o que eu disse, saiba da

situação a partir dos fatos. Você está vendo quem eu sou. E quem eu era antes! Não fui menos

amada do que você agora. E eu, então, fiz só o que queria um único homem <200> que, por

Pólux, quando envelheci e este cabelo mudou de cor, me abandonou e me deixou. Acredito que

você terá o mesmo futuro.

FILO. Mal me contenho para não dar nos olhos dessa instigadora.14

FILE. Ele, só eu, só para si, com seu próprio tesouro libertou. Só a ele julgo conveniente

[apenas] eu ser obediente.15 <205>

FILO. Pelos deuses imortais, que mulher encantadora e de mentalidade recatada! Por Hércules,

fiz bem e eu me alegro de não estar sem um tostão por causa dela.

ESC. Por Castor, você é realmente ignorante!

significando “a relação matrimonial ideal de uma esposa para com o marido” (“the ideal married relationship of

wife to husband”). Preston (1916, p. 33) inclui esta passagem de A comédia dos fantasmas entre os exemplos do

emprego da expressão mori gerere (e outras construções semelhantes) que, embora derive de expressão grega com

cunho erótico, foi usada em latim de forma menos explícita, referindo-se geralmente a uma obediência física

(“physical compliance”). 13 Como nota Collart (p. 58), o texto latino referente a essa passagem concentra ideias antitéticas: aetate (v. 196)

contrapõe-se a aeternum (v. 195), e beneuolentem (v. 195), a satietate (v. 196). Além disso, como buscamos

reproduzir em nossa tradução, satietate contém, de alguma forma, o termo aetate. 14 Stimulatrici (v. 203): o termo stimulatrix é provavelmente criação de Plauto. Lilja (1965, p. 13) o inclui, junto a

circumspectatrix (Aul. 41) e persuastrix (Bacch. 1167) entre exemplos de insultos femininos. O sentido literal do

termo é “aquele que insta ou incita”. Nas edições que consultamos, os tradutores adotaram as seguintes soluções:

Nixon (p. 307) prefere “the fiend”, Pereira (p. 43), “daquela mulher”, e Ernout (p. 27), “cette enjôleuse”. O termo

é registrado novamente no verso 219 de Mostellaria. 15 Quanto aos versos 204 e 205, Ernout adota em sua edição a ordem sugerida por Ritschl. Outros editores, como

Sonnenschein (p. 9) e Collart (p. 59), seguindo os manuscritos B, C e D, apresentam os versos em ordem contrária

ao que indicamos aqui, ou seja, a lição de tais editores é a seguinte: Illi me soli censeo esse oportere opsequentem

:/ Solam ille me soli sibi suo sumptu liberauit. Segundo Collart, o copista dos manuscritos palatinos “parece ter

sido particularmente distraído aqui” (“paraît avoir eté ici particulièrment distrait”). Na justificativa do editor

francês, a presença de solam, que Ernout sugere cortar, antes de illi me seria uma grafia por antecipação diante de

um grupo de palavras semelhantes em dois versos sucessivos. Além disso, o termo meo, incluído nos manuscritos

B, C e D, parece ser influência de suo. O copista ainda teria saltado o termo sumptu (4º termo iniciado por -s nessa

sequência), incluído por Bentley.

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FIL. Por quê?

ESC. Porque se esforça para que ele lhe ame.

FILE. Por que, me diga, não me esforçaria?

ESC. Você está livre. Já tem o que você desejava. Ele, se não continuar amando você mais

tarde, <210> terá perdido o tanto de dinheiro que deu pela sua liberdade.16

FILO. Por Hércules, estou perdido se eu não matar essa aí com os piores castigos. Essa

cafetina17 pervertedora corrompe a mulher!

FILE. Eu nunca serei capaz de agradecê-lo como é devido. Escafa, não venha me convencer a

ter menor consideração por ele. <215>

ESC. Mas peço que você pense apenas nisto: se você vai ficar presa apenas a ele agora enquanto

é jovenzinha, na velhice, você se arrependerá.

FILO. Agora eu queria me transformar em uma angina para tomar conta do pescoço dessa bruxa

e matar essa instigadora pilantra.

FILE. Convém que agora, que consegui o que me agrada, eu tenha a mesma afeição <220> de

quando outrora, antes de eu arrancar isso dele, o cobria com palavras doces.

FILO. Que os deuses façam de mim o que querem, se eu, por causa dessa fala, não tornar você

livre novamente e não matar Escafa.

ESC. Se você admitiu que terá sustento perpétuo e que esse amor será só seu a vida toda <225>,

acredito que você deva fazer o que ele quer e usar o cabelo preso.18

FILE. O homem costuma obter dinheiro na mesma proporção da fama que tem. Eu mesma, se

conservar uma boa fama para mim, serei rica o suficiente.

FILO. Supondo que, por Hércules, fosse preciso vender meu pai, ele seria colocado à venda

muito antes de eu, em vida, permitir que você passe necessidade ou mendigue. <230>

ESC. O que acontecerá com os outros que lhe amam?

16 Pro tuo capite (v. 211): o termo caput tem, entre outras acepções, o sentido de “pessoa livre (em oposição à

escravizada)” (cf. sentido 6b do OLD). Escafa faz referência aqui ao fato de Filólaques ter adquirido a posse de

Filemácia. 17 malesuada ⁺uitilena⁺ (v. 213): a lição do fim deste verso é discutida entre os editores. Segundo Collart (p. 60), a

correção uiti plena seria bastante provável não fosse o fato de impor uma escansão incomum ao 2º hemistíquio do

verso. Quanto à ⁺uitilena⁺, forma registrada no manuscrito B (Palatino Vaticano), sugerem-se outras opções:

Vttilena, no manuscrito C, Vtilena no D1 e, por fim, Ussing registra a forma cantilena. Os tradutores que

consultamos optam pela seguinte tradução para o termo ⁺uitilena⁺: “maquerelle” (Ernout, p. 28) e “bawdyslut”

(Nixon, p. 309). Nossa tradução vai nesse mesmo sentido. 18 Capiundas crines (v. 226): crinis significa literalmente “trança”. Segundo os editores, a referência aqui é ao

penteado de uma matrona, que trazia os cabelos trançados (cf. Collart, p. 62; Sonnenschein, p. 89). O termo

também é registrado nos versos 791-2 da peça Miles gloriosus, num momento em que uma meretriz vai ser

disfarçada de matrona.

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FILE. Amarão mais quando me virem agradecendo por isso ao meu agrado.19

FILO. Tomara me fosse anunciado que meu pai agora está morto para que eu renunciasse a

meus bens e fizesse dela minha herdeira.

ESC. Essas posses certamente serão consumidas. Bebe-se e come-se dia e noite; <235>

ninguém tem parcimônia: é claramente uma dieta de engorda.

FILO. Por Hércules, é certo que eu experimente ser econômico com você primeiro: pois nada

comerá nem beberá em minha casa por dez dias.

FILE. Se você deseja falar bem dele, pode falar. Mas se falar mal, por Castor, será açoitada.

<240>

<FILO.> Por Pólux, se eu tivesse sacrificado um boi ao grande Júpiter com o dinheiro que dei

pela liberdade dela, nunca o teria empregado tão bem. Vê-se como ela me ama do fundo do

coração. Oh! Sou um homem excelente: dei a liberdade a um advogado para que fale em meu

favor.

ESC. Vejo que, em comparação a Filólaques, você não tem consideração nenhuma pelos

homens. <245> Agora, para que eu não seja açoitada por causa dele, vou logo concordar com

você, se você admitiu que ele será seu amor perpétuo.

FILE. Escafa, me dê o espelho e a caixinha com os enfeites imediatamente, para eu me enfeitar

para quando Filólaques, minha delícia, chegar.

ESC. A mulher que desdenha de si mesma e da sua idade é que precisa de um espelho. <250>

De que serve um espelho a você, que é o melhor espelho para um espelho?

FILO. Por causa dessa fala, que não à toa você disse tão encantadoramente, Escafa, vou lhe dar

hoje algo de valor... a ti, minha Filemácia.

FILE. Tudo está em ordem. Veja: meu cabelo está perfeito o bastante?

ESC. Quando você está perfeita, acredito que seu cabelo está perfeito. <255>

FILO. Ah, tá! É possível mencionar algo pior do que esta mulher? Agora a pilantra é uma puxa-

saco. Antes era uma puxa-tapete!

FILE. Passe-me o pó.20

ESC. Mas para que serve o pó?

FILE. Para cobrir as maçãs do rosto.

ESC. Do mesmo jeito, minha dona, se podia esperar branquear o marfim com tinta preta.

19 Gratiam refer<re rem fe>renti (v. 232): Ernout adota a correção de Gruter, a qual, como lembra Collart (p. 62-

3), incorpora um jogo de palavras e uma figura etimológica. 20 Cerussam (v. 258): cerussa refere-se ao alvaiade, um pigmento branco, derivado do chumbo, usado como

maquiagem.

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FILO. Isso de tinta preta e marfim é uma fala encantadora. Muito bem, palmas para Escafa!

<260>

FILE. Então você me passa o blush.21

ESC. Não dou. Você com certeza é linda. Quer remendar uma belíssima obra com uma nova

pintura? A essa idade não convém tocar pigmento algum nem pó, nem mesmo um importado,22

nem qualquer outra tintura.

FILE: Então pegue o espelho.

FILO. Ai, pobre de mim! Ela deu um beijo no espelho. <265> Eu queria muito uma pedra para

despedaçar a cabeça daquele espelho.

ESC. Tome um pano e enxugue suas mãos.

FILE. Por que isso, por favor?

ESC. Porque você segurou o espelho, fico com medo de que suas mãos cheirem a dinheiro e

que Filólaques suspeite que você tenha recebido dinheiro em alguma circunstância.

FILO. Não me parece que já vi vez alguma cafetina mais calejada. <270> Como essa do espelho

veio à mente da perversa de maneira encantadora e astuta!

FILE. Você acha que também devo me perfumar com perfumes?

ESC. Não faça isso.

FILE. Por quê?

ESC. Porque, por Castor, a mulher cheira bem quando não cheira a nada. Pois estas velhas, que

ficam se banhando em perfumes, velhas remoçadas, desdentadas, que encobrem as

imperfeições do corpo com maquiagem, <275> quando o suor se junta aos perfumes, cheiram

à mesma coisa, assim como quando um cozinheiro mistura muitos molhos em um só. Não se

sabe a que cheiram; só se sabe uma coisa: que cheiram mal.

FILO. Como em toda coisa é sabiamente habilidosa! Nada é mais sábio do que essa sábia.

Aquilo é verdade. Compreende isso mesmo uma grande parcela de vocês, <280> para quem

estão em casa as velhas esposas, que lhes ganharam com um dote.

FILE. Ande, Escafa, veja se o ouro e a veste me caem bem.

ESC. Não cabe a mim cuidar disso.

FILE. A quem então, por favor?

21 Purpurissimum (v. 261): segundo o OLD, trata-se de um pó tingido com púrpura, usado como pigmento ou

cosmético. 22 Melinum (v. 264): literalmente faz-se referência aqui a um pó acinzentado, encontrado em Melos, usado como

pigmento.

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ESC. Vou dizer: a Filólaques. Que ele não compre algo, a não ser aquilo que julgue lhe agradar.

<248.285> Pois o apaixonado compra para si os costumes da meretriz com ouro e púrpura. De

que serve exibir a ele gratuitamente o que ele não deseja que seja dele? Para esconder a idade,

é preciso púrpura, para a mulher indecorosa, ouro. Nua, a mulher bonita ficará mais bonita do

que em roupa púrpura. [Além do mais, de nada adianta ser bem enfeitada, se é mal comportada.

<290> Os comportamentos indecorosos mancham um belo enfeite pior do que a lama.] Pois se

você é bela, está enfeitada o bastante.

FILO. Já aguentei a mão demais. O que vocês estão fazendo aqui?

FILE. Eu estou me enfeitando para lhe agradar.

FILO. Você já está bem enfeitada. Vá para dentro e leve com vocês esses enfeites. Mas, minha

paixão, minha Filemácia, eu adoraria beber com você. <295>

FILE. E eu, por Pólux, com você. O que lhe agrada, agrada igualmente a mim, minha paixão.

<FILO.> Ah! Por vinte minas essa palavra sairia barato.

FILE. Dê-me, por favor, dez: eu quero dar essa palavra para você a um bom preço.

FILO. Ainda agora dez minas estavam com você. Calcule bem: eu dei trinta minas pela sua

liberdade.

FILE. Por que você me reprova? <300>

FILO. Eu reprovar você? Eu, que desejo ser eu mesmo reprovado por isso, e que já há muito

tempo não gastava dinheiro tão bem?

FILE. Com certeza, eu nunca pude empregar melhor meu afeto ao amar você.

FILO. Então, estamos quites na conta entre o que saiu e o que entrou.23 Você me ama, eu amo

você. Ambos julgam que isso acontece como deve ser. <305> Aqueles que se alegram com isso,

que se alegrem sempre com seu próprio bem contínuo. Os que invejam, que nunca alguém

inveje as benesses deles.

FILE. Vamos, tome seu lugar então. Escravo, traga água para as mãos! Apronte aqui uma

mesinha! Veja onde estão os dados. Você quer perfumes?

<FILO.> Para quê? Eu me sento com a própria mirra. Mas é meu parceiro que vem andando

para cá com a amante dele? <310> É ele: Calidamates vem andando com a amante. Eba, minha

menina dos olhos! Eis os companheiros soldados se reunindo, buscam tomar parte do butim.

23 Ratio accepti atque expensi inter nos conuenit (v. 304): esta é uma expressão de termos financeiros, cuja tradução

literal seria algo como “a razão entre a receita e a despesa entre nós se ajusta bem”. Collart (p. 74) lembra que,

mutatis mutandis, há semelhança na imagem usada para ilustrar a relação entre Fédromo e Planésia, de Curculio,

em que se empregam termos do campo semântico jurídico.

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REFERÊNCIAS

Edições e traduções de textos antigos

PLAUTE. Comédies. Mostellaria – Persa – Poenulus. Texto estabelecido e traduzido por Alfred

Ernout. Tomo V. 4ª edição. Paris: Les Belles Lettres, 2003.

PLAUTI, T. MACCI. Mostellaria. Edição e notas de Edward A. Sonnenschein. 2ª edição.

Oxford: Clarendon Press, 1907.

PLAUTO. A comédia do fantasma (‘Mostellaria’). Tradução, introdução e comentário de Reina

Marisol Troca Pereira. Coimbra; São Paulo: Imprensa da Universidade de Coimbra;

Annablume Editora, 2014.

PLAUTUS. The merchant – The braggart warrior – The haunted house – The persian. Tomo

III. Com tradução para o inglês de Paul Nixon. Cambridge, Harvard University Press; Londres,

William Heinemann, 1980.

PLAUTUS, T. M. Mostellaria. Edição, introdução e comentário de Jean Collart. Paris: Presses

Universitaires de France, 1970.

Bibliografia secundária

ADAMS, J. N. The Latin Sexual Vocabulary. Baltimore: The Johns Hopkins University Press,

1990.

KEMPER, Sjef. Docendi Facultas: la Retorica dello Spettro nella Mostellaria di Plauto. In:

RAFFAELLI, Renato; TONTINI, Alba (orgs.). Lecturae Plautinae Sarsinates XIII.

Mostellaria. Sarsina, 29 settembre 2009. Urbino: QuattroVenti, 2010, p. 31-57.

LILJA, S. Terms of Abuse in Roman Comedy. Annales Academiae Scientiarum Fennicae. Série

B, tomo 141, 3. Helsinki: Finnish Academy, 1965.

PRESTON, Keith. Studies in the Diction of the Sermo Amatorius in Roman Comedy.

Dissertation, Faculty of Graduate School of Arts and Literature, University of Chicago, 1916.

ROCHA, Carol M. da. De Linguado a Lingua(ru)da: Gênero e Discurso das mulieres plautinae.

2015. 251 p. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem,

Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.