Piratas No Brasil - Jean Marcel Carvalho Frana Sheila Hue

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A incrível história dos ladrões dos mares, que pilharam nosso litoral

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  • Copyright 2014 by Jean Marcel Carvalho FranaCopyright 2014 by Sheila Hue

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    1a edio, 2014

    cip-brasil. catalogao na publicaosindicato nacional dos editores de livros, rjFrana, Jean Marcel CarvalhoF881 Piratas no Brasil : as incrveis histrias dos ladres dos maresque pilharam nosso litoral / Jean Marcel Carvalho Frana, SheilaHue. - 1. ed. - So Paulo : Editora Globo, 2014.

    224 p. : il. ; 23 cm.

    Inclui bibliografiaisbn 978-85-250-5855-3.1. Piratas - Brasil - Histria. 2. Brasil - Histria - Perodo colonial,1500-1822. I. Hue, Sheila. II. Ttulo.

    CDD: 981.03214-16192 CDU: 94(81).025

    Direitos exclusivos de edio em lngua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S. A.Av. Jaguar, 1485 05346-902 So Paulo / SPwww.globolivros.com.br

  • SumrioCapaFolha de rostoCrditosApresentaoi. Thomas Cavendish (1591)

    Rota da expedio de Thomas CavendishA missa de Natal na vila de Santos

    ii. James Lancaster (1595)Rota da expedio de James LancasterUma expedio lucrativa

    iii. Jean-Franois du Clerc (1710)Rota da expedio de Jean-Franois du ClercO cobiado porto da Amrica portuguesa e a combalida Marinha de guerra francesaRota da invaso terrestre de Jean-Franois du ClercO combate endurece no centro da cidade

    iv. Ren Duguay-Trouin (1711)Rota da expedio de Ren Duguay-TrouinVingador de Du Clerc?

    Cenrio das invasesThomas Cavendish (1591) e James Lancaster (1595)

    BibliografiaCaderno de imagensNotas

  • Apresentao

    A pirataria no litoral brasileiro

    Piratas e corsrios

    A pirataria uma velha conhecida do Ocidente. J no sculo viii a.C. os gregos a praticavam com certaassiduidade no mar Egeu. No por acaso, a Odisseia, um livro repleto de aventuras martimas, trazinmeras menes aos homens que, cortando as salgas vagas com suas embarcaes errantes,emboscavam e saqueavam as naus daqueles que no podiam prescindir das vias martimas para sedeslocar ou para transportar suas mercadorias. Eram os ruins piratas, que infestavam o mar expondoas vidas para infortnio e dano de estrangeiros.[1]

    Os romanos tambm conviveram, ao longo de toda a existncia do seu vasto e poderoso Imprio,com os tais ruins piratas. Da os esforos que empreenderam para controlar o mar Mediterrneo, oMare Nostrum [nosso mar], e livr-lo dos homens que tanto medo levavam s cidades porturias doImprio e tanta insegurana geravam entre os que se viam, por dever de ofcio ou necessidade, obrigadosa naveg-lo. Plutarco narra que, durante as Guerras Mitridticas, no sculo i a.C., quando a segurana doMediterrneo andou descuidada, o nmero de embarcaes piratas que circulavam por l beirava omilhar, e o nmero de cidades costeiras atingidas pelo flagelo no era menor que quatrocentos. [2] Oproblema se agravou com a dissoluo do Imprio romano e, mais ainda, depois das levas demulumanos que se instalaram na pennsula Ibrica a partir do sculo viii. Ao norte, entre o Bltico e ocanal da Mancha, o problema eram os piratas escandinavos e normandos, bandidos que por sculoslevaram o terror s regies costeiras da Escandinvia, da Germnia, das ilhas britnicas e da Frana.[3]

    Os piratas que povoam este livro, no entanto, no so exatamente iguais a seus antecessores. H, verdade, quem diga que se trata de um velho personagem num tempo e num mundo novos, mas no bem assim. A pirataria dos sculos xvi, xvii e xviii, a denominada pirataria moderna, nasceu com odescobrimento do Novo Mundo, com o descobrimento da Amrica, na ltima dcada do sculo xv.[4] Oinesperado retorno de Colombo do que o navegador ainda acreditava ser Cipango (Japo) desencadeouuma verdadeira corrida pelo controle do Atlntico entre as duas potncias martimas de ento, Portugale Espanha, corrida que levou, em 1494, assinatura do conhecido Tratado de Tordesilhas. O tratadoconsagrava o princpio do Mare clausum [mar fechado], que garantia a liberdade de circulao pelos maresconhecidos ou a conhecer e a posse sobre as terras a descobertas ou a descobrir somente aos dois reinospeninsulares. Em outras palavras, de modo surpreendente, Portugal e Espanha, ignorando solenementeos demais reinos da Europa, dividiram em partes iguais os oceanos e os mundos a contidos.[5]

  • A inesperada partilha, que de certo modo autorizava navegadores lusos e espanhis, durante suasperambulaes pelo Atlntico Sul, pelo ndico e pelo Pacfico, a tomar posse de tudo que encontrassempela frente em nome de seu rei, no passou desapercebida aos demais reinos da Europa. Ao contrrio, medida que o interesse pelos novos mundos descobertos pelos pases peninsulares aumentou entreingleses, franceses e, um pouco mais tarde, holandeses, o princpio de um mar fechado, um marexclusivo de portugueses e espanhis, passou a ser sistematicamente combatido.

    Ilustrativo do descontentamento que a partilha gerou nos demais reinos europeus o irnicocomentrio do rei da Frana, Francisco i, que dizia desconhecer a clusula no testamento de Adodeterminando a singular diviso promovida pelos reis ibricos com a beno de Alexandre vi, um papaespanhol. Franceses e ingleses, a propsito, no se limitaram a lamentar e a ironizar o tratado ibrico, aocontrrio, lanaram-se conquista de posies nos mares e, sobretudo, no continente americano. Osholandeses entraram na disputa um pouco mais tarde, mas no com menos voracidade. Foi dos PasesBaixos que saiu a muito citada em seu tempo Dissertao sobre a liberdade dos mares, de Hugo Grotius,publicada em 1608. A histria que envolve a escrita do ensaio de Grotius diz muito sobre seu contedoe sobre o clima que ento se vivia nas cidades porturias da Europa.[6]

    Em 1603, uma frota holandesa pertencente Companhia das ndias Orientais aprisionou, emMalaca, a nau portuguesa Santa Catarina, que transportava uma carga riqussima. Os acionistas dacompanhia, homens devotos, pertencentes seita menonita,[7] tiveram dvida sobre a legalidade dacaptura, uma vez que as relaes de Portugal com a Holanda no eram de hostilidade. Os piedososholandeses pediram, ento, para aliviar a conscincia, um parecer sobre a questo a um jovem advogadode Delft, Hugo Grotius, que redigiu, como resposta, um longo escrito intitulado O direito de saquear, cujaparte xii, Mare Liberum [mar aberto], publicada separadamente em 1608, alcanou um imenso sucesso edespertou inmeras polmicas. O princpio geral do mar aberto simples e claro: deve haver liberdadede navegao em alto-mar para navios de todas as naes. Eis o que diz o jovem Grotius na abertura doprimeiro dos treze captulos que compem seu escrito:

    Propusemo-nos demonstrar, breve e claramente, que um direito dos holandeses, isto , dossditos das Provncias Unidas blgico-germnicas, navegar, como de fato fazem, para as ndias emanter comrcio com os povos do lugar. Tomaremos por base esta regra elementar do direito dospovos, denominada primria, cujo significado claro e imutvel, a saber: permitido a qualquernao se aproximar de qualquer outra nao e negociar com ela.[8]

    Grotius, na verdade, deu forma legal a uma prtica que se consolidava nos mares: oquestionamento sistemtico da partilha dos oceanos e das terras descobertas feita por portugueses eespanhis. No entanto, a transio para uma nova partilha partilha que passou a incluir ingleses,franceses e holandeses durou pelo menos dois sculos e contou com a decisiva contribuio daquelesque supostamente defendiam a total liberdade dos mares, os piratas. Atrados pelas notcias dadescoberta de grande quantidade de ouro e prata na Amrica e, sobretudo, pela enorme debilidade daMarinha espanhola e da portuguesa sempre incapazes de proteger os portos e as frotas que escoavam

  • as riquezas americanas , notvel sua proliferao pelo Atlntico e pelos Mares do Sul, da regio doCaribe aos portos do Chile e do Equador, entre a metade do sculo xvi e o primeiro quartel do sculoxviii.[9]

    Ao longo do perodo em que atuaram, esses homens geralmente marginalizados da sociedadeeuropeia, recrutados pelos governos ou por particulares com a promessa de uma vida de riquezas eaventuras receberam designaes diversas: piratas (do grego peirates), entendido pura e simplesmentecomo ladres do mar; mas tambm corsrios, ladres do mar que contavam com uma carta de corso, isto, com uma autorizao de seu rei para saquear navios e colnias pertencentes a reinos inimigos,respeitando as leis da guerra, ou capturar embarcaes piratas (aquelas que no navegavam sob abandeira de nenhuma nao). Por vezes, foram tambm chamados flibusteiros, piratas que atuavam contraas possesses e os navios espanhis nas regies do Caribe e dos Mares do Sul; aos flibusteiros sucederamos bucaneiros, designao que predominou a partir do final do sculo xvii e que se refere sobretudo aospiratas que exerciam seu ofcio no mar das Antilhas.

    Os nomes diferem, mas as atividades exercidas por uns e outros muito se assemelham. A distinomais saliente talvez seja entre corsrios e piratas: portadores ou no de carta de corso e de vnculo com aMarinha real de seus pases. Mas mesmo aqui as coisas no so to claras. H corsrios financiados porparticulares, h aqueles financiados pelo rei e h, ainda, aqueles bancados em parte pelo rei e em partepor companhias de comrcio particulares. Tambm bastante comuns so os casos de piratas que, depoisde muitas aventuras como autnomos, so incorporados Marinha de algum reino e passam a atuarcomo corsrios, respeitando os tratados internacionais. Tal converso que se deu num crescendo eem paralelo com o estabelecimento da nova partilha dos mares e das terras descobertas, consolidada noprimeiro quartel do sculo xviii foi decisiva para o desaparecimento dessa figura que, durantesculos, esteve associada, erroneamente na maioria dos casos, aventura descompromissada e defesa daliberdade dos mares.[10]

    Os ladres do mar que o leitor conhecer neste livro so todos corsrios. Os quatro, ThomasCavendish (1591), James Lancaster (1595), Jean-Franois du Clerc (1710) e Ren Duguay-Trouin (1711),ainda que tenham sido patrocinados por companhias de comrcio particulares, atacaram as cidades dacosta brasileira (Santos, Recife e Rio de Janeiro) com autorizao de seus monarcas e tiveram,supostamente, o propsito poltico comum de causar interrupes e perdas no fluxo de riquezas dacolnia para a metrpole alm, claro, de enriquecer a si prprios e aos acionistas das companhiasque tinham pagado as aventuras. H, contudo, muitas dessemelhanas entre as histrias desses corsrios,dessemelhanas que convidamos o leitor a descobrir acompanhando suas traumticas passagens pelolitoral brasileiro.

  • i. Thomas Cavendish (1591)

  • A missa de Natal na vila de Santos

    A missa da oitava de Natal dos moradores da vila de Santos, na manh de 25 de dezembro de 1591,transcorria como nos outros anos e talvez contasse com uma presena ilustre, o superior dos jesutas,padre Maral Beliarte, que passava uma temporada na regio. Nessa mesma manh, ancorada nosarredores da ilha de So Sebastio, no muito longe dali, uma frota armada por um jovem aristocrataingls aguardava notcias de seu capito, John Cocke, que tomara o caminho de Santos com algumasbarcaas, com a misso de atacar e tomar a vila.

    Para os ingleses foi uma feliz coincidncia terem encontrado quase todos os habitantes de Santosna missa e sem chance de resistir ao assalto. Para os colonos, acuados pelos ingleses e sem socorro,comeava um perodo peculiar de sua histria, que agora se entrelaava aos lances perigosos da polticamartima da rainha Elisabeth i contra a hegemonia espanhola no Novo Mundo. Um dos ingleses que fezparte da tomada da vila, o aventureiro Anthony Knivet, assim resume a ao inglesa, facilitada peloelemento surpresa: desembarcamos e marchamos at a igreja, onde tomamos todas as espadas semresistncia. Trezentos ingleses passariam dois meses em Santos, ocupando a cidade, antes de seguiremviagem para o estreito de Magalhes.

    O ataque e a tomada da vila de Santos por Thomas Cavendish (1560-1592) no foi o primeirocontato da gente da terra com os sditos da rainha da Inglaterra. A vila de Santos j tinha sidofrequentada por navios ingleses. Dez anos antes recebera a visita comercial do Minion of London, naucarregada de mercadorias que viera negociar pacificamente manufaturas pelo acar brasileiro. Santostinha pelo menos dois ingleses l radicados, e um deles, John Whithall, era um senhor de engenho quemantinha contato frequente com a Inglaterra, genro de um dos principais homens da regio, o genovsJos Adorno. John Whithall, ali apelidado de Joo Leito, tinha sido originalmente um agente comercial,e o Minion of London viera a Santos em 1581 por iniciativa dele, que planejava estabelecer uma rotacomercial com seu pas de origem. O projeto era o envio anual de um navio mercante de Londres para oporto de Santos. Negociar o acar que Whithall produzia no era, porm, o que Cavendish buscava nacosta brasileira.

    A nova visita inglesa a Santos, em dezembro de 1591, tinha, pois, outro carter. No se tratavamais de comrcio, mas da prtica sistemtica de saque, pilhagem e destruio, prtica glorificada porFrancis Drake, heri nacional que inspirava a carreira de uma gerao de ingleses. A frota do jovemaristocrata Thomas Cavendish trazia mais homens de guerra que marinheiros Santos foi tomada nopor homens do mar, mas por soldados. O objetivo de sua expedio martima no era o Brasil, mas simo Oriente, onde pretendia consolidar os contatos estabelecidos por Francis Drake, de 1577 a 1580, e porele mesmo na circum-navegao que havia realizado alguns anos antes, entre 1586 e 1588. Santos eraapenas a primeira parada antes de rumarem para o estreito de Magalhes e em seguida lanarem-se emdireo s Filipinas, China e ao Japo. As motivaes para uma empreitada dessa envergadura erammuitas e de diferentes naturezas. Havia o desejo de glria, comum aos navegadores ingleses daquele

  • perodo, havia o mpeto nacionalista de quebrar o monoplio espanhol, o sonho de honra e riquezasconquistadas numa viagem ultramarina triunfante, e, no caso de Thomas Cavendish, havia tambm aurgente questo de uma fortuna pessoal arruinada, que ele pretendia refazer a ferro e fogo nas rotasmonopolizadas pela Espanha. A expresso capitalista selvagem, apesar de anacrnica, pode iluminar essequadro.

    O nobre que se tornou corsrio

    Thomas Cavendish, o franco ladro dos mares e terrvel flibusteiro da historiografia luso-brasileira,no tinha o perfil esperado para um pirata ou um corsrio. Filho de uma famlia nobre de Suffolk,parente dos duques de Devonshire e dos duques de Newcastle, o ainda adolescente Thomas Cavendishherdou, aos 12 anos, a enorme fortuna do pai. Alguns anos depois, aps abandonar os estudos emCambridge e j instalado em Londres, no corao da corte elisabetana, seu estilo de vida extravagante eaventureiro o levou tanto a ser processado por no pagamento de dvidas e ganhar fama de perdulrioquanto a investir em empresas polticas e comerciais ultramarinas por exemplo, na viagem secreta deum agente de sir Francis Walsingham (o homem forte de Elisabeth i) a Constantinopla em 1581, comvistas a abrir uma rota comercial inglesa com o Oriente.

    Sua primeira experincia no mar aconteceu aos 25 anos, quando, sem nenhuma prtica martimaou militar, foi nomeado alto almirante da frota armada por Walter Raleigh para a colonizao daVirginia, que hoje compreende os estados da Virginia e da Carolina do Norte, nos Estados Unidos.Cavendish comprou e armou a sua prpria custa a pinaa Elizabeth, que partiu, em abril de 1585, juntocom as outras naus da frota comandada por Richard Grenville, para fundar a colnia de Roanoke, umadas primeiras tentativas de colonizao inglesa da Amrica. Tendo tomado algumas aulas tericas denavegao poucos anos antes na Durham House, espcie de quartel-general de Walter Raleigh, ondeconheceu os dois ndios trazidos da Virginia que estavam ali hospedados, Cavendish partiu para suaprimeira viagem martima como o segundo em importncia na frota e, provavelmente, o primeiro eminexperincia.

    Thomas Cavendish estava no epicentro dos acontecimentos da corte de Elisabeth i. Voltou daexpedio Virginia sem lucro e sem remediar suas alquebradas finanas, mas com uma ainda maisslida rede de contatos, e imediatamente se empenhou em organizar outra viagem ultramarina, no maisde colonizao, mas de explorao e pilhagem. Conseguiu licena da rainha e preparou-se, em 1586, pararealizar nada menos que a circum-navegao do globo, como havia feito seis anos antes Francis Drake, oprimeiro ingls a romper e desafiar o monoplio espanhol no Novo Mundo. Por meio de uma srie deemprstimos, vendas e hipotecas de seu real estate (operaes que por si s dariam um livro), Cavendishcomprou o galeo Desire e a pinaa Hugh Gallant. Outros investidores de peso se juntaram a ele:Walsinghan, mercadores de Londres, um primo da rainha e tambm Walter Raleigh, que se associou

  • viagem com uma pinaa. Na tripulao, veteranos da viagem de Drake e um comandante experiente emviagens ao Brasil.

    nessa bem-sucedida circum-navegao que Cavendish vem ao Brasil pela primeira vez. Sua frotaancora durante um ms na face continental da ilha de So Sebastio, na capitania de So Vicente, ilha emque atualmente est o municpio de Ilhabela. L consertam as naus, constroem uma pinaa, produzemcordas e tentam entrar em contato com John Whithall, alegando serem comerciantes, mas no obtmresposta. Dali, seguem para uma viagem realmente triunfante. Cavendish saqueia e incendeia dezenas devilas e naus no litoral da Amrica espanhola, captura o riqussimo galeo real Santa Ana o maiorbutim j conseguido por um ingls at ento , chega s Filipinas e costa da China e volta com mapase informaes estratgicas para os projetos elisabetanos de expanso martima e comercial rumo aofabuloso Oriente.

    Aos 28 anos, o terceiro homem a completar a circum-navegao do globo, faanha que mandaregistrar em um retrato feito pelo gravador flamenco Jodocus Hondius, e no qual se representa com umplanisfrio marcado pela rota de sua viagem. Logo aps voltar para a Inglaterra, foi recebido como heripela rainha numa cerimnia naval, a qual chegou espetacularmente a bordo do Desire, como relatou oembaixador espanhol em Londres, d. Bernardino de Mendoza, ao rei Filipe ii:

    O navio de Thomas Cavendish foi trazido do West Country e velejou diante da corte emGreenwich. Entre outras coisas, a rainha disse: o rei da Espanha late muito mas no morde. Nonos importamos com os espanhis; seus navios, carregados de ouro e prata, chegam at aqui apesarde tudo. Todos os marinheiros usavam uma corrente de ouro em torno do pescoo e as velas donavio eram de damasco azul, e o estandarte era de tecido de ouro e seda azul. Foi como seClepatra tivesse ressuscitado.[11]

    A Invencvel Armada[12] acabara de ser derrotada pelos ingleses, em agosto de 1588. Um msdepois, Cavendish e seus tesouros subtrados aos espanhis marcavam mais uma vitoriosa etapa noprojeto ingls de desmantelar o Imprio ultramarino de Filipe ii.[13] o que Cavendish diz em uma cartaescrita na ocasio:

    E da mesma forma que prouve a Deus dar a Sua Majestade a vitria sobre parte de seus inimigos,creio eu que logo ela triunfar sobre todos eles. Os territrios onde esto suas riquezas, ondeguardam e produzem suas mercadorias, esto agora perfeitamente descobertos, e se isso for doagrado de Sua Majestade, com um pequenssimo poder ela poder tomar o butim de todos eles.[14]

    Tomar o butim dos espanhis no Novo Mundo era uma poltica de Estado inglesa.O tesouro trazido por Cavendish de sua viagem de circum-navegao no durou muito, aps o

    pagamento de dvidas, salrios e outros encargos. Mandar fazer um retrato algo comparvel hoje amandar fazer uma esttua no deve ter sido uma de suas despesas mais vultosas depois de retornar desua volta pelo globo. A historiografia inglesa unnime em afirmar que em pouco tempo suas finanasestavam novamente em runas. A Clepatra de d. Bernardino de Mendoza havia ido novamente

  • bancarrota. neste momento, em 1591, que Cavendish planeja o que seria sua ltima expediomartima, na qual passaria uma temporada de dois meses em Santos, na capitania de So Vicente, e daqual nunca retornaria.

    Hora de voltar ao mar

    Cavendish pretendia tirar proveito das abundantes informaes, dos roteiros e mapas das Molucas, daChina e do Japo, documentos recolhidos ou produzidos pelos homens de sua frota durante a circum-navegao. Ao atingir pela segunda vez o Oriente, planejava estabelecer uma rota comercial direta com aInglaterra, quebrar o monoplio ibrico e, ao mesmo tempo, voltar com os navios carregados demercadorias de alto preo. Se a primeira viagem em que circum-navegou o globo tinha sido dedescobrimento e reconhecimento, esta seria de conquista. Cavendish obteve uma comisso da rainhapara empreender a nova travessia martima e uma licena para atacar navios e portos espanhis, masdessa vez no despertou o entusiasmo de investidores da corte e dos mercadores, desinteresseprovavelmente motivado pelas grandes perdas sofridas na circum-navegao, da qual apenas um naviovoltou Inglaterra.

    A frota da nova viagem (1591-1592), armada s expensas do prprio Cavendish, no cumpriria oplano de chegar ao Oriente: depois da longa estadia em Santos, acabaria por no ultrapassar o estreito deMagalhes e terminaria com a morte de seu almirante no meio do Atlntico. Quatro naus da frotapertenciam a Cavendish: o galeo Leicester, sob seu comando, o Roebuck, com o capito John Cocke, almdo veterano Desire, comandado por John Davies, e da Black Pinnace, com Tobias Parris. John Davies erauma das figuras de maior relevo da navegao inglesa, um homem de slida reputao, explorador dortico e empenhado em descobrir a ento chamada northwest passage, uma passagem martima doAtlntico Norte para o Pacfico atravs do rtico, que, quando descoberta, facultaria o fcil acessoingls ao Oriente, projeto apoiado pela rainha e pelo influente conselheiro e gegrafo Richard Hakluyt.O plano de Davies era seguir com Cavendish at a Califrnia e dali partir para uma viagem dedescobrimento no Pacfico Norte, subindo a Amrica, em busca do lado oeste da imaginada passagem.Davies foi o nico investidor na nova viagem de Cavendish: alm de comandar a Desire, levou a Dainty,uma nau de sua propriedade em sociedade com Adrien Gilbert, comandada por um amigo pessoal, ocapito Randolf Cotton.

    A bordo do gigante galeo Leicester e do Desire ia todo tipo de tripulante da nobreza inglesa,alistado como homem de armas. Jovens de alta estirpe, descapitalizados, que viam na pilhagem dostesouros espanhis um mtodo legtimo de estruturar suas vidas. Figuras da Inglaterra elisabetana comoo poeta Thomas Lodge, filho do prefeito de Londres, ento um jovem deserdado e endividado, mas jum autor conhecido,[15] ou como o aventureiro Anthony Knivet, filho natural de sir Henry Knivet,tambm em busca de fortuna, e autor de um livro de memrias sobre a viagem.[16] Para conseguir uma

  • colocao numa frota como a de Cavendish era preciso ter conexes na corte elisabetana e sabermanusear um mosquete, ou seja, ser um musketeer um mosqueteiro. Seguiam tambm diversos tiposde profissionais, como mdicos, agentes comerciais, dois jovens japoneses capturados na viagem decircum-navegao e os msicos particulares de Thomas Cavendish. De um total de 330 homens na frota,estima-se que duzentos pertenciam nobreza, com direito no somente pilhagem, mas tambm a umaparticipao no montante do saque.[17]

    Uma pequena vila ganha importncia estratgica

    Santos seria somente uma estadia inicial e estratgica, quase secreta, na fase inicial de uma extensaviagem. Entretanto, a longa temporada dos ingleses na vila litornea terminou por ser decisiva nodesastre em que se transformou a viagem, a ltima da luminosa carreira de Cavendish. Numa empreitadaplanejada para as Filipinas e a China, a princpio parece difcil compreender por que a vila de Santos, nolitoral da capitania de So Vicente, nos confins da civilizao, teria entrado nos planos de um ambiciosonavegador ingls em demanda dos tesouros do Oriente.

    A ideia de conquistar uma das vilas mais ao sul do Brasil, entretanto, no era nova para osingleses, pois, na expanso martima pelo Atlntico Sul, elas eram consideradas estratgicas tanto para anavegao do estreito de Magalhes quanto para o abastecimento das naus. A ausncia de fortificaes edefesas nas vilas litorneas da colnia era um facilitador. Como dizia um senhor de engenho luso-baianoem 1587, em carta ao rei da Espanha,

    os corsrios com mui pequena armada se senhorearo desta provncia, por razo de no estarem aspovoaes dela fortificadas [], do que vivem os moradores dela to atemorizados que estosempre com o fato entrouxado para se recolherem para o mato, como fazem vista de qualquernau grande, temendo-se serem corsrios.[18]

    A capitania de So Vicente era conhecida dos ingleses desde a volta de uma das naus da frota deDrake, em 1579, quando o comandante John Winter e sua tripulao, que estiveram ancorados prximoa So Vicente e travaram contato com John Whithall, divulgaram as qualidades da regio. Um dosconselheiros da rainha, Richard Hakluyt, aconselhara a soberana no mesmo ano:

    A ilha de So Vicente pode ser facilmente tomada por nossos homens, visto que no tem guardas eno fortificada, e sendo conquistada deve ser mantida por ns. Essa ilha e a regio circunvizinha to abundantemente provida de mantimentos que pode alimentar infinita multido de gente, comonos relataram nossos homens que l estiveram com Drake, e que l conseguiram vacas, porcos,galinhas, limes, laranjas etc.[19]

  • Richard Hakluyt havia inclusive cogitado um projeto de colonizao, considerando o extremosul do Novo Mundo altamente importante para o futuro da Inglaterra como uma potncia comercial ecolonial.[20] Numa carta rainha, ele assevera:

    Instalando entre eles alguns bons capites ingleses, e mantendo nas baas do estreito uma boaarmada, no h dvida de que iremos submeter Inglaterra todas as minas de ouro do Peru e todaa costa e trato daquela terra firme da Amrica ao largo do mar do Sul. E fazer o mesmo em regiesvizinhas quela terra.[21]

    Poucas providncias tinham sido tomadas desde ento para remediar a desproteo do litoralbrasileiro. E havia ainda um fator que tornava Santos e So Vicente especialmente interessantes: adescoberta da mina de Jaguar hoje s margens da rodovia Anhanguera e os muitos rumoressobre os descobrimentos de novas minas de ouro na regio. Segundo as noes geogrficas da poca,como afirmou um dos ingleses que comerciaram pacificamente em Santos em 1581, o Peru ficavasomente a doze dias de viagem por terra e mar desde a vila de Santos,[22] o que significava que poderiaser uma regio igualmente rica em ouro. Em 1578, John Whithall escrevera a comerciantes de Londresafirmando que o provedor Brs Cubas fundador da vila de Santos e figura de maior proeminncia naregio e o capito-mor Jernimo Leito tinham descoberto algumas minas de prata e ouro, e estoaguardando a qualquer momento a chegada de mestres para abrir as ditas minas que, quando abertas,iro enriquecer em muito esta terra; este lugar se chama So Vicente [], perto da fronteira com oPeru.[23]

    Pouco tempo depois, o navegador espanhol Diego Flores de Valds escreve ao rei Filipe ii sobreas minas de prata, ouro e cobre j descobertas e das quais sua majestade j recebeu amostras.[24] Nomesmo ano em que Cavendish chega a Santos, o novo governador-geral do Brasil, d. Francisco de Sousa,est na Bahia envolvido em uma entrada de descobrimento de minas, e em breve passar longatemporada na capitania de So Vicente. A oportunidade do descobrimento de metais no sudeste doBrasil no era desconhecida de Thomas Cavendish e provavelmente alguns dos homens de suatripulao j haviam estado no Brasil, na capitania de So Vicente.

    Os ingleses, na verdade, tinham uma linha direta com Santos, na pessoa de John Whithall, eestavam bem informados sobre a regio. Em 1582, o corsrio Edward Fenton, por intermdio deWhithall, havia feito contatos na vila e, ao que tudo indica, tivera a inteno de estabelecer ali umacolnia inglesa, mas seus planos foram interrompidos pela chegada da armada de Flores de Valds, queexpulsou os ingleses dali uma das poucas atitudes de Filipe ii para proteger o litoral brasileiro. Oprprio Cavendish, como vimos, havia tentado contato com Whithall quando passara uma pequenatemporada na ilha de So Sebastio, e trouxera dessa viagem um roteiro detalhado da costa da capitaniade So Vicente, com a descrio de regimes de ventos, correntes, profundidades e topografia da costa, oque demonstra o interesse na regio.

    Para os historiadores ingleses, a longa temporada de Cavendish em Santos carece de lgica. Comoobserva Philip Edwards, Cavendish passou um tempo inexplicavelmente longo ocupando Santos.[25]

  • Entretanto, no escopo das viagens anteriores e dos discursos ingleses sobre a expanso martima, Santose So Vicente surgiam como uma espcie de terra prometida e possvel Eldorado ainda inexplorado.Thomas Cavendish, em sua busca por riquezas no por acaso seu navio principal era um enormegaleo de quatrocentas toneladas, capaz de transportar grande quantidade de carga , provavelmenteplanejara investigar as informaes sobre a riqueza mineral da capitania, numa prospeco de novos epromissores mercados.

    O projeto de Cavendish, portanto, ao que tudo indica, no era somente atacar e saquear Santos,como fizera anos antes em uma srie de vilas na costa do Pacfico durante a viagem de circum-navegao. Seu projeto para Santos tinha outro carter. O que ocorreu na vila em janeiro e fevereiro de1592 no foi apenas um ataque pirata, mas uma verdadeira ocupao, uma conquista, ainda que breve.

    A viagem e a conquista de Santos

    A frota partiu de Plymouth em 5 de setembro de 1591, semanas depois da data planejada e aps umasucesso de problemas no recrutamento dos marinheiros e no abastecimento, sem a quantidadenecessria de vveres e mantimentos para alimentar os homens durante a travessia do Atlntico. Seguiudireto para o Brasil, enfrentando 27 dias de calmaria, nos quais a tripulao, alm de sofrer o calorextremo do sol e os vapores noturnos,[26] escassez e privaes de todo tipo, enfrentou o gnio tirnicode Cavendish, sempre pronto a enforcar quem desobedecesse a suas ordens. A frota chegou ao Brasil naspiores condies, faminta e doente de escorbuto, vida por mantimentos, gua e repouso, mas nem porisso incapaz de atacar e pilhar.

    Ao se aproximarem do litoral, em 29 de novembro, capturaram uma nau portuguesa que ia dePernambuco para o rio da Prata. Era um navio negreiro carregado tambm de mercadorias. Nessenavio capturamos um padre que tinha se escondido num caixote de farinha,[27] conta em seu livro dememrias o jovem aventureiro ingls Anthony Knivet, demonstrando o terror que se instalava nastripulaes no litoral do Brasil, frequentemente atacadas em viagens ao longo da costa, que andavainfestada de franceses e ingleses.[28]

    Para seguir viagem, aprisionaram o piloto portugus do navio, Gaspar Jorge, que guiou a frota atIlha Grande, na atual baa de Angra dos Reis. Ali, os fidalgos ingleses da tripulao, esfomeados edoentes, se comportaram como verdadeiros piratas, segundo Knivet, que estava l e participou doataque a meia dzia de pobres casas de colonos e ndios, onde no havia muito mais do que razes,bananas e alguns porcos e galinhas:

    nessa ocasio, houve tanta confuso entre os nossos que, se os portugueses fossem mais corajosos,teriam matado muitos de ns. Nossos homens brigavam por comida como se fossem judeus e nocristos, e aqueles que conseguiam o melhor bocado escondiam-no em algum buraco, ou embaixo

  • de alguma rvore na mata, e assim ficavam enquanto tivessem o que comer. De minha parte,naquele lugar cheio de trapaas no consegui comida nem dinheiro, de modo que, levado pela purafome, me meti na floresta para tentar caar alguma coisa ou encontrar algumas batatas. Enquantoseguamos, encontramos sete ou oito homens de nosso grupo que se aglomeravam ao redor de umporco que haviam matado e brigavam para ver quem ficaria com a melhor parte. Chegamos bem nomomento em que comeavam a se socar, e assim roubamos um pedao da caa e corremos paradentro da floresta onde passamos muito bem a noite.[29]

    Ao sarem de Ilha Grande, os ingleses, como era de praxe nesse tipo de ao, queimaram todas ascasas e tambm o navio negreiro, abandonando a tripulao portuguesa e os escravos na praia. Detarde, aps incendiarmos o navio e queimarmos todas as casas, deixando o comerciante e todos os seusnegros na praia, partimos de l, conta com naturalidade Knivet, um dos soldados empenhados na ao.

    Dali, rumaram para a ilha de So Sebastio, onde Thomas Cavendish j fizera uma parada paraabastecimento em sua viagem de circum-navegao em 1586. Mas, desta vez, em lugar de permanecer nailha e abastecer a frota antes de seguir viagem litoral abaixo, o plano era outro. Ancorados na ilha de SoSebastio,

    todos os pilotos e capites embarcaram no navio do capito-mor para saber como este pretendiatomar a cidade de Santos. Todos resolveram que nosso barco longo e nossa chalupa com somentecem homens eram suficientes, j que o piloto portugus [Gaspar Jorge] nos tinha dito que a cidadeno era fortificada.[30]

    Fundeado na ilha de So Sebastio, Cavendish enviou duas naus para a tomada da vila de Santos,o Desire, comandado por John Davies, e a Black Pinnace, capitaneada por John Cocke, que levava umgrande contingente de homens de armas. Houve briga na hora de entrar nas naus que fariam o ataque.Depois da misria que encontraram em Ilha Grande, desta vez os soldados ingleses tinham esperana deuma pilhagem lucrativa. Valia tudo na hora de encontrar um meio de ir a bordo, conforme as memriasde Knivet:

    Quando chegou o momento dos barcos partirem, havia tantos de ns que queriam embarcar, quecomeamos a brigar e lanarmo-nos uns aos outros ao mar. Assim que o nosso capito-mor ouviu obarulho, ordenou a todos que retornassem ao navio. Como eu temia o capito-mor e queria estarentre os primeiros a ir (pois j tinha visto que os ltimos nunca conseguiam nada de valor) meenfiei debaixo do banco da nossa chalupa, e l fiquei por duas horas. O barco, no entanto, foi seenchendo e eu no conseguia mais sair e teria sufocado se no fosse por William Waldren, nossocontrapiloto e timoneiro da chalupa, que, ouvindo-me chamar debaixo dele, retirou as tbuas esalvou minha vida.[31]

  • Enquanto uns rezam, outros atacam

    Na manh do dia 25 de dezembro as naus j estavam prximas e alguns homens se dirigiram vilaa bordo de botes. Em determinado momento, o sino da igreja soou.

    Justo ento Gaspar Jorge, o piloto portugus, contou-nos que aquele era o momento certo paradesembarcar pois, pelo tocar do sino, estavam todos na metade da sua missa, e que naquele instanteo padre levantava o po do sacramento para que os fiis o adorassem.[32]

    Vinte e quatro soldados ingleses, sob o comando do capito Cocke, realizaram a primeirainvestida, assim descrita por um dos tripulantes do Desire, o agente comercial John Jane: nessa aotomamos todas as pessoas da cidade na missa, tanto homens quanto mulheres, os quais ns mantivemospresos na igreja durante todo o dia.[33] De acordo com Anthony Knivet, na igreja havia trezentoshomens alm de mulheres e crianas.[34]

    Enquanto a maioria dos ingleses mantinha sentinela na igreja, esperando que o restante doshomens desembarcasse, alguns portugueses que estavam em suas casas puderam escapar com os seus ecom o dinheiro que tinham.[35] Para alguns dos ingleses, esse foi um erro estratgico, que comprometeuo montante do saque. John Jane, em seu relato de viagem, escrito em grande parte para culpar Cavendishpelo fracasso da viagem e para eximir o almirante John Davies de qualquer culpa pelo desastre, lastimou:

    Foi tal a negligncia de nosso comandante Master Cocke que os ndios conseguiram carregar parafora da cidade o que quiseram, e a vista de todos, e ningum os controlou, e no dia seguinte ao quetomamos a cidade nossos prisioneiros foram todos postos em liberdade, e somente quatro pobresvelhos foram mantidos como garantia para prover as nossas necessidades. Desta forma em trs diasa cidade, que estava apta a abastecer qualquer frota com todos os tipos de produtos, foi deixadapara ns praticamente nua, sem habitantes e sem provises.[36]

    Knivet, ao contrrio de Jane, registra que na vila havia um bom estoque de alimentos, docescristalizados, acar e farinha de mandioca, com a qual fizemos timo po, e que os moradores sforam libertados aps ordens recebidas de Cavendish. Ele relata:

    To logo saqueamos a vila e posicionamos nossos homens, mandamos notcias ao capito-morsobre tudo o que havia sido feito. Depois que o capito-mor nos enviou resposta, libertamos todosos portugueses exceto sete ou oito homens de importncia e nos fortificamos na cidade sob asordens do capito Cocke, capito da almiranta e nosso comandante em terra.[37]

    Sobre a extenso dos danos materiais cometidos na regio, os relatos ingleses so sucintos ediretos. John Jane diz que, aps dois meses de ocupao, partimos de Santos e queimamos So Vicenteat o cho.[38] Anthony Knivet, igualmente econmico, registra que, ao abandonarem Santos, nossoshomens caminharam por terra at outra vila chamada So Vicente e no caminho queimaram cinco

  • engenhos de acar.[39]As narrativas inglesas sobre a invaso, objetivas e desapaixonadas, contrastam com os poucos

    testemunhos coloniais contemporneos. Um desses testemunhos o do provincial da Companhia deJesus, padre Maral Beliarte, que presenciou o assalto ingls e que, coincidentemente, durante a viagemque o levara a Santos, tinha escapado, no mar, da frota de Cavendish. O padre Beliarte registrou numacarta de agosto de 1592 sua verso dos fatos:

    Porque deixando os perigos do mar e da navegao, [Deus] nos livrou quase milagrosamente deuma armada de ingleses luteranos, que por esta costa anda, havendo tomado outro navio da nossaCompanhia, e feito, nos que iam nele, grandes pesquisas por ns.[40]

    As grandes pesquisas seriam perguntas sobre a existncia de ouro e bens em Santos. O saquedessas riquezas, segundo os relatos ingleses, foi efetuado sem batalha. Mas, de acordo com osdepoimentos dos padres jesutas, os nicos contemporneos a escreverem sobre o episdio, durante apilhagem os hereges luteranos aterrorizaram a populao e o clero ao saquearem casas e igrejas emSantos e So Vicente, profanando objetos sagrados para os habitantes da colnia, como relata o padreBeliarte:

    Depois do qual deram na capitania de So Vicente, que a ltima da banda do sul, e, tomando-a deimproviso, a entraram, e queimando uma vila toda e parte de outra, fazendo grandes desacatos simagens, templos, relquias etc. Os nossos, contudo, tiveram algum tempo para se acolherem,consumindo primeiro o Santssimo Sacramento, e levando a prata e alguns ornamentos. Depois dehaverem estado os ingleses quarenta dias senhores da terra, e feito muitos insultos, se partiram comintento, segundo cremos, de passar o estreito de Magalhes e dar no Peru. Toda a nossa pobrezaroubaram e desejaram bem e procuraram haver os nossos s mos. Entraram a 26 de dezembro eforam a 3 de fevereiro de 1592. E porque aquela terra ficou sem defesa alguma, por lhe haveremeles levado toda a artilharia, com intento de fazerem ali sempre escala e fornecerem-se debastimentos, ordenei aos nossos que enquanto El-Rei ou os seus Governadores no a proveem, notenham ali mais fato [roupas, bens] que o que, em os ingleses entrando, se possa logo levar e passar serra, em terra firme, onde tudo seguro.[41]

    Um ano depois de seu duplo encontro com os ingleses, o padre Maral Beliarte, durante viagemmartima no litoral do Brasil, seria novamente vtima de corsrios, sendo dessa vez aprisionado. Comoconta em uma carta Jos de Anchieta, ao encontro de quem se dirigia quando foi interceptado pelosluteranos: O padre Maral Beliarte, provincial, me enviou a estas capitanias do Rio de Janeiro e SoVicente a visitar; detive-me nelas o tempo que me pareceu necessrio, porque o padre provincial, por sertomado dos franceses, no pde acudir a tempo.[42]

    Quando escreveu essa carta, Anchieta tinha h pouco escapado de cair prisioneiro de inglesesdurante uma viagem de canoa de Santos para o Rio de Janeiro. As costas do Brasil estavam infestadas deinimigos da Santa F catlica e de Filipe ii, e os jesutas em suas andanas entre as capitanias, como

  • vimos, eram presa constante.Cair nas mos de corsrios ingleses e franceses, ento apodados de hereges e luteranos, ministros

    das trevas licenciosos,[43] era temerrio e invariavelmente fatal. Aos olhos dos padres catlicos, inglesese franceses eram como uma encarnao do mal. Particularmente ilustrativa desses sucessos a narrativada morte do jesuta Loureno Cardim a bordo de uma nau do Brasil:

    E como na viagem, os hereges corsrios acometessem o navio, Loureno Cardim, cheio defervoroso esprito, com um crucifixo nas mos animava os que pelejavam contra os inimigos danossa Santa F, consolando os que saam feridos e confessando os que morriam, at que passadocom uma bala, abraado com o santo crucifixo, entre os abraos de seu Senhor, Lhe entregouditosamente a alma.[44]

    Outro testemunho portugus sobre a tomada de Santos pelos ingleses uma carta de maio de1592 do padre jesuta Incio Tolosa, que avaliou em mais de 100 mil cruzados o valor total do saque edo prejuzo, mas que estimava em muito mais vultosa a perda infligida ao patrimnio histrico esimblico da capitania de So Vicente.

    A ns [jesutas] tambm nos coube parte da perda, porque, ainda que os padres puseram algumascoisas a salvo, no pde ser tudo. Desampararam a casa; e nela se alojou o general [Cavendish],tomando a capela-mor e a sacristia para seus aposentos. Mas nenhuma perda sentimos tanto quantoa cabea das Onze Mil Virgens. Como estava bem ornada, apanharam-na e nunca se soube dela.Imaginamos que aqueles malditos ingleses a atirariam ao mar.[45]

    As cabeas das 11 mil virgens,[46] padroeiras das provncias do Brasil, relquias veneradas nacolnia, vinham de Portugal e eram recebidas com faustosas festas e procisses. A relquia destrudapelos homens de Cavendish havia chegado a So Vicente em 1577 numa grande cerimnia. Anchietamenciona em um poema a virtude dessas relquias de combater os pecados dos moradores e,ironicamente, de fazer cessar os muitos reveses com que os hereges franceses nos podero apertar eluteranos ingleses.[47] Eram populares na colnia as trovas de Anchieta escritas por ocasio dorecebimento de uma das cabeas das 11 mil virgens mandadas colnia: cordeirinha linda,/ como folgao povo/ porque vossa vinda/ lhe d lume novo!.[48] A profanao inglesa em So Vicente tinhaantecedentes. Outra cabea das 11 mil virgens havia sido vtima de corsrios, dessa vez franceses, queatacaram em 1570 uma nau em que ia um grande grupo de jesutas que acompanhava a relquia. O padreSimo de Vasconcellos conta que os hereges passaram os padres primeiro a punhaladas e depois oslanaram, meio vivos, ao mar, entregando-os s ondas vorazes, para onde tambm atiraram a santacabea.[49] Era esse o imaginrio que cercava as ofensas cometidas pelos homens de Cavendish.Tratava-se de uma guerra de motivao geopoltica entre os inimigos da Espanha e o rei Filipe ii ede forte cariz religioso.

    Lanar ao mar uma imagem catlica era, na verdade, um topos, um lugar-comum nas narrativasreligiosas sobre os ataques de hereges iconoclastas, um componente narrativo indispensvel a esse tipo

  • de relato. Tanto que, sculos depois do ataque a Santos, frei Gaspar da Madre de Deus em seu ufanistaMemrias para a capitania de So Vicente, hoje chamada de So Paulo, publicado em 1792, acrescenta um pontoao conto e mais uma imagem, desta vez de Santa Catarina, arremessada ao mar pelos ingleses deCavendish. Escreveu o compungido padre em meio sua narrao edificante da histria da capitania:

    Os ingleses, quando roubaram a vila do porto de Santos, lanaram no mar a dita imagem, a qual de barro, e depois de muitos anos veio a terra casualmente, extrada pelos escravos dos jesutas emuma rede, com que estavam pescando [], ainda conserva a sagrada imagem algumas cascas deostras, que nela se geraram, quando esteve o mar, e admira a circunstncia de a no teremdespedaado aqueles iconoclastas, costumando eles dilacerar as imagens dos santos.[50]

    Nesta nova verso da histria, escrita duzentos anos depois dos fatos, mesmo a longa estadia dafrota de Cavendish em Santos rasurada para dar lugar bravura da populao, idealmente pronta pararesistir:

    a Vila de So Vicente desde o seu princpio at agora nunca foi acometida, nem por ndios, nempor europeus, exceto no ano de 1592 por ingleses piratas, que lhe deram um assalto repentino, edepois de a roubarem aceleradamente, e largarem fogo Cadeia e a outros edifcios, tornaram paraos seus navios, temerosos de que lhes disputassem a retirada os moradores, os quais se achavamfora da vila nas suas fazendas e j vinham correndo.[51]

    O fogo na cadeia e em outros edifcios de So Vicente, queimados at o cho segundo John Jane, atestado por um documento do cartrio da vila, dcadas mais tarde, no qual se registra que otestamento de Margarida Domingues, falecida em 1588, se queimara com o cartrio de So Vicente eque a fazenda da dita defunta levaram os ditos ingleses, quando vieram saquear esta vila e no havianotcia dela. Ou seja, para a infelicidade dos herdeiros de d. Margarida, no havia testamento e muitomenos fazenda (bens), graas s aes da frota de Cavendish.[52]

    Os hereges, luteranos, destruidores de santas relquias, saquearam Santos e queimaram a vizinhavila de So Vicente, mas pouparam sua populao, que, segundo narram os ingleses, fugiu para ointerior e no empreendeu contra-ataque algum durante os meses de ocupao. A fama do vandalismodos mosqueteiros de Cavendish chegou Amrica espanhola, sendo cantada no poema pico do padreMartin del Barco Centenera, La Argentina y Conquista del Ro de la Plata, em que o clrigo descreveem tintas carregadas e romanescas a toma y robo del puerto de Santos y San Vicente y de los insultos ymaldades que all hizo el Capitan Tomas Candish:

    Entrando [na igreja de Santos], matar querem ali ao vicrio,/ e a um frade, caso horrendo edetestvel que o templo profanando, os temerrios,/ imagens, relquias de consolo,/ com irrisojogavam ao solo.// Prenderam os principais, demudando/ a todos quanto pde naquele fito,/ ascasas pelo solo derrubando,/ as tbuas, e madeira e paus tira:/ e logo pela terra caminhando, emSo Vicente entram, dando grita;/ assolam-na tambm em um momento./ E nisto entra Candish

  • em gro contentamento.[53]

    Os relatos ingleses confirmam o que diz Centenera. Thomas Cavendish s chegou a Santos umdia segundo Knivet ou uma semana de acordo com Jane depois do assalto. Desembarcoucom duzentos homens, e logo ordenou que queimassem toda a parte de fora da vila [] e que ateassemfogo a todos os navios ancorados no porto.[54] Seus homens tomaram a cidade j esvaziada e seinstalaram nas casas dos moradores. Os capites e os jovens fidalgos se hospedaram no colgio dosjesutas, cujos fundos davam agradavelmente para a praia e onde os mosqueteiros puderam escolher ascelas que mais lhes agradassem. Anthony Knivet, um desses jovens fidalgos, tratou de, por conta prpriae sorrateiramente, saquear as habitaes jesuticas, onde encontrou um butim que perderia no decorrerde suas aventuras:

    Aconteceu-me, ao percorrer cela por cela, de olhar embaixo de uma cama numa cela escura, e lencontrar uma pequena caixa firmemente pregada, cujas bordas estavam brancas de farinha de trigo.Retirei-a e, percebendo como era pesada, arrebentei-a, a encontrando 1.700 reais de oito, cada umvalendo quatro xelins. Alojei-me nesse pequeno quarto sem que ningum soubesse de meus grandesganhos: lenis, camisas, cobertas e camas e muitas coisas que ningum viu.[55]

    Os dias nada pacatos de Cavendish em Santos

    Hospedado na sacristia do colgio dos jesutas, Thomas Cavendish recebeu visitas inesperadas quelhe fizeram compreender a complexidade das provncias do Brasil, equilibradas entre as aes de umasociedade colonial emergente e as contra-aes das populaes indgenas. Numa noite, quandoCavendish dormia em sua cama na sacristia transformada em quarto , dois ndios conseguiramentrar por um dos corredores do convento que davam para a praia, situados nas costas do edifcio, eacordaram o navegador ingls oferecendo galinhas e perus em sinal de amizade. Os presentes e a duplade visitantes noturnos assustaram o comandante, que gritou por socorro. Um dos ndios, entretanto,conseguiu explicar que tinha vindo para implorar-lhe seu favor e no atac-lo.[56]

    Na manh seguinte, em horrio apropriado, foram recebidos por Cavendish e explicaram quetinham fugido dos portugueses, por quem eram maltratados, e, com o intuito de celebrar uma alianacom os ingleses, forneceram uma srie de informaes de interesse dos invasores. Os dois ndios deramnotcias sobre a localizao e o estado do acampamento dos moradores expulsos de Santos, e aindarevelaram os planos dos portugueses de atacar Cavendish quando ele sasse da vila.[57] Indicaramtambm, para felicidade dos corsrios, a localizao de trs grandes sacos de dinheiro e um poteescondidos embaixo da raiz de uma figueira e tambm os levaram at um campo onde havia trezentascabeas de gado que, segundo Knivet, alimentaram a frota durante toda a temporada em Santos. Ainda

  • de acordo com Knivet, este foi apenas o primeiro de uma srie de grupos de canibais que vieram atns querendo que o capito-mor destrusse os portugueses e tomasse a terra para si, dizendo-lhe queestavam todos a seu lado.[58]

    O apoio dos ndios tomada de Santos e o papel que esperavam que os ingleses desempenhassemnos embates coloniais certamente devem ter surpreendido Cavendish em suas reunies com vriosgrupos de ndios sublevados e armados. A guerra campal aos ndios nomeados carijs tornara-se umapoltica colonial na capitania de So Vicente desde 1585, quando Jernimo Leito, a pedido das cmarasde So Vicente, iniciou campanhas pelo serto em busca de escravos.[59] Essas entradas se tornarofrequentes nos anos seguintes, dando incio ao ciclo bandeirante da caa ao ndio e acirrando a reaodos povos indgenas contra os colonos.[60] Meses antes da chegada de Thomas Cavendish a Santos, ostupiniquins do serto, aliados a ndios das aldeias crists, atacaram o povoado de Pinheiros, no planalto na atual cidade de So Paulo , onde, numa ao semelhante dos corsrios ingleses iconoclastas,teriam queimado a igreja e despedaado a imagem de Nossa Senhora do Rosrio.[61]

    Eram essas as relaes entre os colonos e os povos indgenas, e a chegada de uma frota inglesaacendeu nos ndios escravizados e sublevados uma oportunidade de virar o jogo. Entretanto, nessasreunies entre ingleses, carijs e tupiniquins, ficou claro para o comandante Cavendish quais eram asforas em jogo naquela terra e qual seria a dimenso do investimento necessrio para participar dapartida. Dessa forma, educadamente, o capito-mor agradeceu-lhes a todos por sua gentileza, mas disse-lhes que naquele momento tinha outros planos.[62]

    Esses planos, ao que tudo indica, diziam respeito corrida do ouro j em curso na regio,empreendida pelas figuras proeminentes da elite colonial. Mais uma vez, foram os prprios ndios quemostraram aos ingleses o que eles mais almejavam. Com a ajuda dos canibais, Cavendish encontrou osdepsitos de ouro da vila de Santos, ouro, como afirma Knivet, que os ndios costumavam trazer deum lugar chamado por eles de Mutinga, onde os portugueses agora tm minas.[63] Assim, asinformaes que os ingleses tinham sobre a regio se confirmavam da maneira mais espetacular, eCavendish abasteceu o Leicester no apenas com o acar saqueado dos armazns e dos navios ancoradosno porto, mas tambm com um carregamento do ouro da capitania de So Vicente.

    Nem tudo, no entanto, se resumiu a rapinas e roubos durante a invaso inglesa em Santos.Enquanto Cavendish negociava com as lideranas indgenas, informava-se sobre a regio e saqueava oouro escondido na vila, outros membros da frota passavam o tempo em um sem-nmero de afazeresmais amenos.

    O comandante John Davies, o ento clebre explorador do rtico, que descobriria as ilhasFalkland em agosto desse mesmo ano de 1592, empregou os dias livres em Santos para ocupar-se de umaatividade artstica: a pintura. Do alto do morro onde se erguia a casa de Brs Cubas, o navegador inglsdesenhou um panorama do local, talvez o primeiro dos panoramas do porto de Santos, como osquadros a leo de Benedito Calixto, de meados do sculo xix, com vista do alto da ilha de Brs Cubas edo morro do Pacheco. A pintura era uma ocupao comum aos navegadores ingleses. O prprio FrancisDrake, em sua viagem de circum-navegao, ao mesmo tempo que atacava e saqueava naus e cidades

  • costeiras da Amrica espanhola, pintava paisagens, pssaros, rvores e lees-marinhos, como relatou opiloto portugus Nuno da Silva, prisioneiro do corsrio ingls: Ele [Francis Drake] um adepto dapintura e tem com ele um rapaz, um parente, que um grande pintor. Quando os dois se trancam na suacabine esto sempre pintando.[64]

    Enquanto Davies pintava, outros se ocupavam de literatura. O poeta e soldado Thomas Lodge,autor de vrias obras, entre poesia, panfletos e peas de teatro como o ento famoso romancepastoral Rosalynde, que inspirou Shakespeare a escrever As you like it , instalou-se na biblioteca doconvento dos jesutas em Santos, onde estava hospedado. L, consultando os livros a seu bel-prazer, fezleituras importantes para as obras que escreveria no futuro, como contar num prlogo ao leitor: Tivea sorte de encontrar na biblioteca dos jesutas em Santos essa histria na lngua espanhola, que quando lime deleitou, e deleitando-me acabou por se assenhorear de mim, e assenhoreando-se de mim fez comque eu a escrevesse.[65] O misterioso livro em lngua espanhola ou portuguesa que inspirou Lodgenunca foi identificado, mas deu origem ao romance A Margarite of America, publicado em 1596. Oromance, conta seu autor dramaticamente no prlogo, foi escrito em parte no Novo Mundo e duranteuma viagem martima para o estreito de Magalhes, quando eu escrevia mais na esperana de os peixescomerem tanto a mim prprio escrevendo quanto aos meus papis escritos do que ser conhecido pelafama.[66] Os peixes, contudo, no o comeram nem a seus papis, e A Margarite of America chegou a fazersucesso entre os leitores da poca.

    Thomas Lodge responsvel tambm pela sobrevivncia da nica relquia concreta da viagem: omanuscrito jesutico Doutrina cristiana na lngua braslica, catecismo usado para a converso dos ndios,escrito em trs idiomas (tupi, latim e portugus), que o poeta roubou da biblioteca do convento deSantos, levou para a Inglaterra, enfrentando tempestades e naufrgios, e doou biblioteca daUniversidade de Oxford, onde se encontra hoje, em timo estado de conservao.[67] Durante o tempoem que estudou, leu e surrupiou livros na biblioteca dos jesutas, Lodge fez amizade com Jos Adorno,senhor de engenho genovs e sogro do ingls John Whithall. Numa carta particular que escreve em1609, Lodge registra as boas relaes entre Adorno e os ocupantes ingleses da vila de Santos: Um velhogenovs da nobre casa dos Adorno, depois dos seus muitos e gentis favores para a expedio de Mr.Cavendish, estando eu para partir e pronto para dar a vela, disse-me: Adeus, meu filho, que Deus tereconduza a salvo tua casa,[68] relembrou Lodge, anos depois da temporada sul-americana.

    No deixa de ser curioso o fato de um membro da elite colonial como Jos Adorno ter mantidotimas relaes com os ingleses invasores, descritos em to cruas linhas pelos jesutas portugueses. Deque lado estava Jos Adorno? Do lado dos colonos e moradores, da elite colonial de Santos, vila tomadae saqueada pelos ingleses? Ou do lado dos invasores luteranos? Seu genro era um ingls que, dez anosantes, havia escrito cartas para a Inglaterra assegurando que tinha o apoio do sogro e dos governadoresda regio Brs Cubas e Jernimo Leito para iniciar uma linha comercial com a Inglaterra, adespeito da proibio do comrcio entre a colnia e qualquer nau estrangeira. Tambm d o que pensaro fato de os ingleses terem atacado So Vicente ao zarparem em direo ao estreito de Magalhes oque aconteceu no dia 3 de fevereiro de 1592 e no terem dado o mesmo destino a Santos.

  • A fracassada partida rumo ao Pacfico

    O comportamento dos homens no havia se amainado com a temporada santista e um espritopuramente pirata ainda animava os nimos dos viajantes. A balbrdia dos homens na hora de embarcarera tanta que, se os portugueses tivessem um pouco de coragem, poderiam facilmente ter cortado nossasgargantas. Os dois ndios que tinham entrado noite no quarto do capito-mor seguiram conosco parao estreito, relata Knivet.[69]

    O fracasso da viagem, que intentava atingir o Oriente, se deu a caminho do estreito de Magalhes,para onde a frota se dirigiu durante a pior temporada para a navegao mais um exemplo da falta deplanejamento que parece ter guiado toda a viagem de Cavendish. Ainda em Santos, o comandante haviasido avisado por membros da tripulao de que deveria passar o inverno ali e no se aventurar aatravessar o estreito quela altura do ano. Mas Cavendish no deu ouvidos a seus homens.

    Foram quatro meses de navegao. As condies da viagem, ao longo do extremo sul docontinente, se mostraram extremas. Passamos, naquele momento, por reveses durssimos, enfrentandotempestades monstruosas, com nevascas sem fim, e muitos de nossos homens morreram de frio efome,[70] relata o agente comercial John Jane, que estava a bordo do Desire. Thomas Cavendish, em suacarta-testamento, escreve:

    O ms de maio finalmente chegou, mas no tivemos nada alm de miserveis nevascas e geadas torigorosas que em toda a minha vida no vi nada que se compare. Esses extremos fizeram com queos homens doentes piorassem; em sete ou oito dias, nessas terrveis condies, morreram quarentahomens, e setenta ficaram doentes, de forma que no restaram mais do que cinquenta homenscapazes de manter-se em p sobre o convs.[71]

    A tentativa de travessia do estreito foi dramtica, mas ganha tintas humorsticas na pena deAnthony Knivet:

    Deste ponto penetramos ainda mais no estreito, apesar do vento contrrio e do frio que matou oitoou nove homens de nosso navio. Nesse lugar um ourives chamado Harris perdeu o nariz; quandotentou asso-lo, ele acabou caindo de seus dedos no fogo. Isto John Chambers, Cesar Ricasen emuitos outros que agora esto na Inglaterra podem confirmar.[72]

    Thomas Cavendish, como era do conhecimento de seus subordinados e colegas, procedia sempreda mesma forma, objetiva e cruel, com os homens doentes de suas tripulaes. John Jane relata: grandeparte dos doentes foram impiedosamente deixados na costa, na floresta, expostos neve, ao vento e aofrio, em condies em que mesmo homens saudveis dificilmente teriam resistido, e onde terminaramseus dias miseravelmente.[73] O prprio Anthony Knivet foi abandonado, mais tarde, na ilha de SoSebastio, ao lado de companheiros moribundos. O comandante no achava conveniente gastar asescassas provises com homens doentes. Nessa situao extrema, beira da runa, Cavendish achou

  • melhor retornar costa do Brasil e l dividir nossa frota entre os portos de Santos, Rio de Janeiro eEsprito Santo. Ele pretendia com isso no s se reabastecer de cordas, velas e comida a preos queestava certo conseguir, mas tambm tomar Santos novamente.[74]

    Na viagem de retorno, do estreito para Santos, a frota se dispersou, dois navios perderam-se emtempestades e o Desire, comandado por John Davies, tambm se afastou da frota. De acordo comKnivet, Davies teria abandonado Cavendish e seguido de volta para o estreito, para tentar completar atravessia, e, segundo John Jane, o Desire se desgarrara durante uma tempestade.

    O Leicester, manejado por um nmero pequeno de marinheiros e com a tripulao quase todadoente, se viu sozinho. O estado da tripulao era deplorvel, como conta Anthony Knivet:

    Minhas roupas estavam em trapos, os dedos de meus ps cheios de vermes que (Deus minhatestemunha) se apinhavam sob a minha pele e a de muitos outros.[75] Estvamos completamente ass em um nico navio grande e no sabamos o que fazer. No final decidimos rumar para Santosna esperana de l encontrar o restante da nossa companhia.[76]

    Nesse momento, para os homens de Cavendish, a vila de Santos representava uma espcie deporto seguro, um territrio conhecido ao qual ansiavam voltar.

    A volta de Cavendish a Santos era dada como certa pelos jesutas. O padre Incio de Tolosa, nacarta em que relata as depredaes dos ingleses, registra que a populao de Santos j havia tomadoprovidncias defensivas prevendo um novo e iminente ataque dos corsrios: os moradores de Santos jno os temem, porque em todas as partes esto com cercas e postos em armas, esperando por eles.Toda a costa sudeste estava em alerta, segundo Tolosa: especialmente os do Rio de Janeiro, que tmfama de grandes soldados. E o governador Salvador Correia [de S] mui animoso e bom capito.[77] Jo padre Maral Beliarte no se mostrava to otimista e escreve ao padre-geral em Lisboa, pedindopermisso para que os padres abandonem o convento de Santos em caso de novos assaltos, pois a vilano tinha mais defesa contra os corsrios que a que agora tem, e por ver quo arriscados esto ali osnossos.[78] O futuro de Santos, no temor dos jesutas, parecia ingls.

    Ao se aproximar da cidade, o galeo de Cavendish em nada se parecia com aquele que h poucotempo sara de l carregado de ouro e acar. Estava sozinho, avariado, carente de comida e gua,grande parte do carregamento havia se perdido durante as tempestades e sua tripulao estavamiseravelmente doente e faminta, tornando invivel a retomada da vila. O Leicester ancorou em frente aum engenho de acar, na inteno de obter comida e gua. Trs capites acompanhados por vintesoldados, entre eles um ndio do Brasil incorporado tripulao um daqueles que surgiram noquarto de Cavendish em Santos , embarcaram num bote improvisado, feito de madeira de caixotes deacar e barris, j que o navio tinha perdido todos os barcos auxiliares nas tempestades. O pequenopeloto assaltou o engenho, capturando uma grande barcaa que carregaram com comida e mandarampara o Leicester, o que foi mais bem-vindo do que se fosse ouro, relata Knivet.[79] Contrariando asordens de Cavendish, que instrura os homens a voltarem logo para o Leicester, o peloto permaneceu emterra e passou trs dias no engenho, mandando suprimentos pela barcaa. Numa manh, finalmente,

  • foram atacados pela gente da terra e massacrados.Em sua carta-testamento escrita no meio do Atlntico, Thomas Cavendish relembra o episdio:

    Avistei um ndio vindo em direo ao mar e se dirigindo ao navio; estvamos ansiosos por notcias[] quando o vimos, percebemos que se tratava de nosso prprio ndio, que tinha conseguidoescapar, ferido em trs lugares; ele nos contou que o resto de nossos homens tinha sido trucidadopor trezentos ndios e oitenta portugueses, que ao anoitecer caram subitamente sobre eles. Entoeu perguntei por que eles no tinham embarcado quando ordenei. O ndio me respondeu quealguns no queriam vir, e o resto no fizera mais que comer galinhas e porcos, que tinham emabundncia, e que eles no pretendiam de maneira alguma embarcar. Deixo que voc julgue aminha dor naquele momento, privado de meus principais homens e do bote de que tantoprecisava.[80]

    Anthony Knivet ainda mais dramtico sobre a morte dos companheiros e transforma o ndioaliado dos ingleses em um heri pico, personagem digno da Ilada:

    No dia seguinte ao assassinato de nossos homens, nosso barco longo foi at a praia e trouxe-nosnotcias de como o bote tinha sido destrudo e todos os nossos homens mortos. Um dos ndios dequem j falei tinha desembarcado com nossos homens e, quando estavam todos no auge da luta,conhecendo bem a regio, fugiu, com uma flecha atravessada no pescoo e outra que lhe entravapela boca e saa pelas costas. Esse ndio veio at ns agarrado num tronco e contou-nos que todosos nossos homens haviam sido mortos.[81]

    Sem a barcaa e com 23 homens a menos, Cavendish resolveu rumar para a ilha de So Sebastio,sua velha conhecida, onde pretendia recompor as foras, a tripulao e o navio. Mas, antes de levantaremncora, foram surpreendidos pela chegada do desgarrado Roebuck com os mastros quebrados e empssimo estado , que tivera a mesma ideia de retornar a Santos e se aproximou da embocadura do rioBertioga, onde estava o Leicester, dando tiros de canho. Encorajados pela chegada inesperada doRoebuck, um navio muito mais leve e manobrvel que o Leicester, os ingleses resolvem atacar, umasegunda vez, a vila de Santos. Entretanto, o Leicester encalhou e foi necessrio desembarcar oitentahomens em um rio prximo para desencalh-lo. Ali conseguiram abastecer o navio com amplasprovises de mandioca, bananas e abacaxis que encontraram nas imediaes. Mas foram avistados peloslocais e atacados por seis canoas lotadas de portugueses e ndios a defesa santista da qual o padreBeliarte falara em sua carta. Os ingleses conseguiram, no sem esforo, afugentar os portugueses, masviram-se obrigados a desistir de Santos e resolveram atacar outro porto do litoral.

    Foi nesse momento que um portugus que estava a bordo do Leicester desde Cabo Frio, tendosobrevivido ao desastre da viagem pelo estreito de Magalhes, sugeriu um novo destino, conforme relataAnthony Knivet em suas memrias:

    Vendo nosso fracasso, o portugus contou-nos de uma vila chamada Esprito Santo, disse-nos que

  • poderamos ir at a dita vila com nossos navios e que, sem nenhum risco, poderamos assaltarmuitos engenhos de acar e conseguir boa proviso de gado. As palavras desse portugus nosfizeram desistir de nossa inteno de rumar para So Sebastio. Partimos ento para o EspritoSanto.[82]

    Em oito dias, os dois navios ingleses estavam na entrada do porto de Vitria. Como o canal eramuito menos profundo do que o portugus havia garantido, o que impedia a navegao do pesadoLeicester, Cavendish, acusando o portugus de traio, sem nenhum julgamento, mandou enforc-lo, oque foi feito imediatamente.[83] Tal era o esprito do comandante a essa altura da viagem e aps perdervinte homens em Santos. Mas esse empecilho no impediu o ataque dos ingleses. A bordo de duasembarcaes auxiliares, e comandados por um capito e um tenente, 123 homens encaminharam-se paratomar a vila. Alguns desembarcaram em frente a um pequeno forte e afugentaram os portugueses que lestavam.[84] A outra embarcao seguiu adiante, desembarcou numa praia, abaixo de uma pequenafortificao no lugar onde mais tarde seria construdo o forte So Joo , e encontrou a resistnciaarmada pela governadora d. Luisa Grimaldi e por seu cunhado Miguel de Azeredo. Nesse lugar, ossoldados ingleses tiveram suas vidas rapidamente abreviadas em uma luta muito violenta. Em resumo,perdemos oitenta homens naquele lugar e, dos quarenta que voltaram, no havia um sequer sem umaflecha ou duas em seu corpo, e muitos tinham cinco ou seis, relembra Knivet.[85] Nesse meio-tempo, oprimeiro grupo de ingleses, que tinha se apoderado do primeiro forte, foi atacado por uma chuva deflechas e teve que fugir, voltando ao bote e partindo desordenadamente, deixando para trscompanheiros que foram massacrados por portugueses e ndios.

    Em sua carta-testamento, Cavendish, pouco antes de morrer, no se sabe se por causas naturais oupor suas prprias mos, descreve seu estado de esprito depois do fracasso de sua ltima incurso nolitoral do Brasil. Imagine a minha situao ao ver muitos dos meus melhores homens massacrados e aodescobrir que dispunha em meu navio de no mais que cinquenta homens sos. Estava, pois, mais doque na hora de levantarmos ncora, e foi o que fizemos na manh seguinte.[86]

    A carta, juntamente com o Leicester, chegou Inglaterra em maro de 1593 e foi entregue a seutestamenteiro e amigo, Tristam Gorges. No se sabe quantos homens chegaram ao final da viagem, masentre eles estava o poeta Thomas Lodge e os manuscritos roubados do convento de Santos.

    John Davies e o Desire chegaram s costas da Irlanda em julho de 1593, aps empreenderem umasegunda tentativa, sem xito, de atravessar o estreito, de onde foram forados por furiosos ventos amais uma vez retornar.[87] Dos 75 homens que embarcaram no Desire em 1591, somente dezesseisvoltaram. Davies foi imediatamente preso, por conta das acusaes contidas na carta-testamento deCavendish. Aps se defender perante a Justia, Davies deu seguimento a sua carreira, publicando o livroThe Seamans Secrets [Os segredos do marinheiro], em 1595, e em 1600 comandava um dos navios, ao ladode James Lancaster, na primeira frota armada pela Companhia das ndias Orientais, marco inicial dodomnio ingls no oceano ndico. Santos tinha ficado para trs.

  • ii. James Lancaster (1595)

  • Uma expedio lucrativa

    O ataque pirtico da frota comandada por James Lancaster (c.1555-1618) a Pernambuco, em 1595, foito espetacularmente rendoso que o relato da viagem, ao ser editado na coletnea The PrincipalNavigations [As principais navegaes], em 1600 uma ufanista coleo inglesa publicada no auge dahostilidade contra o Imprio do rei espanhol Filipe ii , apresentado por um longo e triunfantettulo: A bem-sucedida e prspera viagem de Mr. James Lancaster, iniciada com trs navios e uma galeota em Londres,em outubro de 1594, com destino a Pernambuco [Fernambuck], vila porturia de Olinda, Brasil. Na qual viagem (almde ter capturado vinte e nove navios e fragatas), tomou de surpresa a dita vila porturia, mesmo sendo bem fortificada eguarnecida, e a ocupou por trinta dias (apesar dos muitos e ousados assaltos dos inimigos, tanto por terra quando pormar) e tambm derrotou seus perigosos e quase indefensveis artifcios de fogo. Ali encontrou o rico carregamento de umanau da ndia que, juntamente com grande abundncia de acar, pau-brasil e algodo, trouxe consigo, carregando a bordode quinze navios e barcas.[88]

    H outro testemunho ingls sobre a viagem, igualmente grandiloquente, um panfleto publicadoem outubro de 1595, em Londres, poucos meses aps o retorno de Lancaster Inglaterra. Escrito pelopoeta profissional Henry Roberts, que j havia cantado em versos laudatrios os feitos martimos deFrancis Drake e William Hawkins contra os territrios espanhis no Novo Mundo, o panfleto Lancasterhis Allarums[89] narra em tons heroicos as aes militares da frota de Lancaster e o saque de Fernand Bucke(Pernambuco). A guerra entre Inglaterra e Espanha acontecia no apenas nos mares, mas tambm napropaganda, difundindo atravs de livros impressos, como o folheto sobre Fernand Bucke, as vitrias dosingleses, em honra de seu pas e da Rainha, sobre os covardes portugueses [90] e nossos inimigos osespanhis.[91]

    O completo sucesso da viagem a Pernambuco do ponto de vista ingls garantiu enormesganhos aos investidores, calculados em 50 mil libras pelos ingleses e em mais de 2 milhes em ouropelos embaixadores de Veneza em Madri. [92] A tomada do porto sul-americano foi decisiva na carreirado navegador e mercador James Lancaster, que viria a ser conhecido na histria da Inglaterra no comoo autor do superlativo saque de Pernambuco, mas como o fundador do comrcio ingls com o Oriente efigura-chave na formao do Imprio Britnico na ndia.

    Ocidente ou Oriente?

    Antes de atacar e saquear o Recife, ento uma pequena povoao porturia aos ps de Olinda, uma dasvilas mais prsperas e ricas da colnia, Lancaster havia comandado a primeira viagem martima inglesaao ndico pelo cabo da Boa Esperana, atingindo a Malsia, entre 1591 e 1594. Apesar de desastrosa e

  • malsucedida financeiramente, a expedio teve o mrito de abrir caminho para os navios elisabetanos,iniciando uma rota de navegao at ento desconhecida dos ingleses, e de conferir in loco a fragilidadedo domnio portugus na regio. Lancaster, como pioneiro nas rotas martimas antes exclusivas deportugueses, recolheu informaes que permitiriam a seus compatriotas, num futuro prximo, derrotara hegemonia portuguesa naquele at ento remoto e inatingvel pedao do globo, miticamente nomeadonos documentos quinhentistas ingleses de Spice Islands, de onde vinham as mercadorias mais valiosaspara a economia daquele perodo.

    Lancaster fez mais uma srie de histricas e decisivas viagens ao Oriente, estabelecendo oprimeiro entreposto comercial ingls na regio, em Bantam, na ilha de Java, e fundando, ao lado deoutros prsperos mercadores, a Companhia das ndias Orientais inglesa. Pernambuco foi, portanto, umaviagem singular na carreira desse homem cujos olhos estavam, assim como os de seus contemporneosportugueses e ingleses, nas ricas e valorizadas mercadorias do Oriente.

    Em outubro de 1594, cinco meses depois de voltar de sua malsucedida e atribulada primeiraviagem ndia, na qual quase todos os navios se perderam em naufrgios e ele mesmo foi abandonadopela tripulao amotinada na ilha de Mona, no Caribe, tendo voltado para a Europa em um naviofrancs que o resgatou, Lancaster empenhou-se em outra empresa ultramarina de longa distncia, destavez para as ndias Ocidentais. Associado a um grupo de mercadores ingleses, venerveis senhores dacidade de Londres[93] e futuros fundadores da Companhia das ndias Orientais, liderou uma novaexpedio ultramarina com destino a Fernambuck.

    Os mercadores ingleses, h anos proibidos de comerciar em portos e vilas das possesses de Filipeii, e sem acesso aos produtos que antes negociavam nos portos de Portugal e da Espanha, abriam foraos caminhos para seus negcios ultramarinos nas rotas comerciais monopolizadas pela Coroa ibrica.Cada vez mais empenhados em operaes de corso, atacando e saqueando navios portugueses eespanhis no litoral europeu e no Caribe, eventualmente pensaram no Atlntico Sul como meta, ou seja,em buscar diretamente no mercado produtor algumas das commodities que interceptavam, tais comoacar e pau-brasil. Essa ideia j tinha sido posta em prtica pelo menos uma vez, em 1587, quando umafrota armada pelo conde de Cumberland acossou por duas semanas os engenhos do recncavo e a vilade Salvador, na Bahia, aterrorizando a populao e angariando grande butim.

    Desta vez, em 1595, a companhia comandada por Lancaster e formada por eminentes mercadoreslondrinos, entre eles John Watts, vereador e futuro prefeito de Londres, e Paul Bayning, tambmmembro da cmara da cidade, escolheu a longnqua e remota mas no desconhecida capitania dePernambuco como alvo. A capitania j estava nos planos de Lancaster fazia algum tempo: em suaprimeira viagem ao Oriente, o comandante havia tentado seguir para Pernambuco, durante o percursode volta para a Inglaterra, mas sua tripulao, doente e amotinada, recusou-se a atender seu desejo. Issoindica que Lancaster tinha informaes seguras sobre o local e avaliava positivamente as chances de umaincurso militar de assalto e saque naquelas paragens.

    Havia, na verdade, certa familiaridade entre os navegadores ingleses e a longnqua capitaniabrasileira. Desde 1580, as naus que saam regularmente de Pernambuco com destino a Lisboa e seus

  • ricos carregamentos de acar, a mercadoria mais valorizada das ndias Ocidentais, caamfrequentemente nas mos dos corsrios ingleses. Os Brazilmen, como costumavam ser chamados essesnavios, eram uma das presas mais comuns no Atlntico Norte. Somente nos trs anos seguintes derrota da Invencvel Armada espanhola pelos ingleses, em 1588, 34 dessas naus foram capturadas pelosnavios elisabetanos, e alguns de seus pilotos e oficiais foram expatriados, com suas cargas, e interrogadospelas autoridades inglesas, fornecendo amplas informaes sobre a navegao, os portos e a condio dasvilas litorneas do Brasil. Os manuscritos portugueses e espanhis apreendidos nessas naus eram topreciosos quanto suas mercadorias. Um deles, de autoria do mercador portugus Lopes Vaz, veio a serpublicado em ingls e enfatizava as qualidades da rica vila de Olinda: Pernambuco a mais importantecidade de toda aquela costa, e tem cerca de trs mil casas, com setenta engenhos de acar, um grandeestoque de pau-brasil e abundncia de algodo.[94] Como observou o historiador K. R. Andrews,Pernambuco era um macio e suculento pedao do Imprio de Filipe ii e um alvo evidente para osmagnatas comerciais, cujos lucros foram diminudos com a guerra entre Espanha e Inglaterra.[95]

    A pequena Lisboa era desprotegida

    Se o porto do Recife era o maior exportador de acar, Olinda ostentava um estilo de vida luxuoso, queimpressionara o jesuta portugus Ferno Cardim durante sua viagem por vrias capitanias, em 1584.Cardim surpreendeu-se com as fazendas maiores e mais ricas que as da Bahia, os banquetes deextraordinrias iguarias, os leitos de damasco carmesim, franjados de ouro e as ricas colchas da ndia.Em Olinda conviveu com senhores de engenho vestidos de veludo e damasco de vrias cores, quebebem a cada ano 50 mil cruzados de vinhos de Portugal, e foi ali apresentado a chefes indgenasvestidos de damasco com passamanes de ouro.[96] Tais extravagncias coloniais levaram o jesuta aresumir suas impresses numa frase antolgica: Enfim, em Pernambuco acha-se mais vaidade que emLisboa.[97] Olinda era de fato uma pequena Lisboa, ento com casas de pedra e cal, vrios edifciospblicos, principalmente igrejas e conventos, entre os quais se sobressaa, primando pelamagnificncia da sua construo, o colgio dos jesutas, onde se ensinavam humanidades e belas-letras.[98]

    A prspera capitania de Pernambuco, entretanto, no contava com meios eficazes de defesa,fortificaes slidas, companhias militares organizadas ou qualquer outro meio de proteo alm dosarrecifes que dificultavam a entrada em seu porto. Cristvo de Barros, dinmico e empreendedorfuncionrio da Coroa, escreveu uma carta ao rei, em 18 de novembro de 1578, advertindo sobre algunsinconvenientes que no fazem o bem da sua fazenda, e entre eles apontava a ausncia de uma fortalezapara a defesa do porto do Recife. Segundo a relao de Ambrsio de Siqueira sobre a receita e a despesado estado do Brasil, antes do assalto de James Lancaster a mais slida construo do Recife era uma

  • casa terreira sem taipas, que servia de cobrir as pes de artilharia que o senhor da terra tinha aliplantadas.[99] Foi somente aps a lucrativa visita de Lancaster que se organizaram duas companhiasarmadas para a defesa da regio, cada uma delas com 220 mosqueteiros e arcabuzeiros, uma sediada emOlinda, outra no porto.[100]

    Os magnatas e mercadores londrinos tiveram extremo cuidado ao compor a tripulao da frotacom destino atraente, opulenta e desprotegida capitania pernambucana. Contrataram para a tripulaohomens de sua prpria categoria, e no nobres,[101] opo oposta de Thomas Cavendish em suadesastrosa viagem ao Brasil. Edmund Barker, amigo pessoal de Lancaster, veterano da viagem aoOriente e seu companheiro de infortnio na ilha de Mona, no Caribe, ia novamente como vice-almirante, e John Audley, que viajara com Drake e j estivera em So Vicente, foi nomeado contra-almirante. Iam a bordo dois franceses de Dieppe, que falavam perfeitamente o tupi, e tambm se juntaria frota o capito Randolf Cotton, que estivera no Brasil com Cavendish no comando da Dainty.Provavelmente, os pilotos empregados na viagem eram experientes na navegao da costa brasileira, jque manobraram e entraram no perigoso porto do Recife sem dificuldades. H indcios de que um delesseria Nuno da Silva, piloto portugus responsvel pelo xito da circum-navegao de Drake, e na pocaradicado em Plymouth.[102] O experiente James Lancaster, parceiro de negcios dos magnatas londrinos,foi eleito almirante da expedio.

    Um ingls que conhecia os portugueses

    James Lancaster era experiente no somente em navegao e comrcio, mas tambm em assuntosrelativos a Portugal. Isso se explica por uma peculiaridade da biografia do navegador ingls. Nascido emBasingstoke, no condado de Hampshire, Lancaster passou a infncia e parte da vida adulta em Portugal,provavelmente no ncleo de mercadores ingleses radicados em Lisboa, integrantes da Spanish Company,firma comercial inglesa que atuava na pennsula antes da irrupo da guerra anglo-ibrica. Como elemesmo conta, fui criado entre essa gente, e vivi entre eles como cavalheiro, servi ao lado deles comosoldado, e estive estabelecido entre eles como mercador.[103] No casual o fato de o primeiro ingls acomandar uma frota para o Oriente ter passado parte da vida em Portugal, entre a gente da corte e nointenso mercado globalizado que ligava Europa, frica, Amrica do Sul e Oriente. A referncia a suaatuao como soldado talvez indique que ele tenha se alistado nas tropas dos portugueses partidrios ded. Antnio, o prior do Crato, pretendente ao trono de Portugal. D. Antnio, aps perder a decisivabatalha de Alcntara para Filipe ii, foi apoiado pela Inglaterra de Elisabeth i, onde se radicou durantealguns anos e de onde organizou, com apoio dos ingleses e sem xito, aes militares em solo portuguse nos Aores com o objetivo de conquistar a coroa de Portugal.

    Lancaster voltou Inglaterra logo depois do incio do conflito entre Espanha e Inglaterra, em

  • 1585, ano em que Filipe ii confiscou todas as propriedades e bens de ingleses radicados na pennsula.Tendo perdido tudo, o cavalheiro e mercador ingls voltou para sua terra natal e, em 1587, comeouuma nova carreira, a de corsrio. No comando de um navio da frota comandada por Francis Drake earmada pela prpria rainha, participa do ataque ao porto espanhol de Cdiz, provocando prejuzos armada espanhola, que se reunia na regio preparando-se para invadir a Inglaterra. Em 1588, Lancasterest no comando do galeo Edward Bonnaventure, combatendo e vencendo a Invencvel Armada de Filipeii. No ano seguinte, parte para Portugal na frota liderada por Francis Drake, na qual viajava d. Antnio,pretendente ao trono de Portugal, com o objetivo de invadir o reino. Os ingleses tomam facilmente acidade de Torres Vedras, saqueiam vilas do Algarve e chegam a Lisboa, onde so rechaados.

    O historiador ingls Robert Southey, em sua Histria do Brasil, avalia que o ataque de Lancaster aPernambuco seria uma traio moral[104] do navegador ao pas que o acolheu por tanto tempo, opiniorepetida, quase com as mesmas palavras, por grande parte da historiografia luso-brasileira. Entretanto,depois das grandes perdas financeiras sofridas em Lisboa, ao ter seu patrimnio apreendido e seu meiode vida subtrado, o que movia o navegador-mercador era no apenas um patriotismo genrico, mastambm um ressentimento pessoal.

    Sua m opinio sobre os portugueses expressa com todas as letras em um dos episdios dainvaso inglesa de Pernambuco. Diante do espanto de sua tripulao por ter se recusado a negociar comportugueses de Olinda, Lancaster faz um veemente discurso sobre o carter do povo com o qualconviveu durante tanto tempo e que lhe confiscou os bens:

    Senhores, conheo algo das suas maneiras e da sua natureza. Sei que quando no conseguem vencerpela fora da espada, ento empregam suas falas enganosas, pois no tm nenhuma f nem lealdade,e no as usaro a no ser para proveito prprio. Por isso lhes aviso que fiquem alertas, se lhesderem conversa eles nos trairo. No que me diz respeito, me pesaria muito ser enganado por essagente ou pelos espanhis do que por qualquer outra nao do mundo. E estou contente por ter afortuna de usar com eles de um dos enganos que costumam empregar, pois vos garanto que eles meentendem mais do que podeis imaginar.[105]

    Foi nesse contexto, poltico e pessoal, que Lancaster partiu da Inglaterra com o objetivo desaquear o porto de Olinda, a futura cidade do Recife, ento apenas uma pequena povoao porturiaadjacente principal vila da capitania. A frota de trs navios o Consent, o Salomon e o Virgin ,comandada por Lancaster, com um contingente de 275 tripulantes, saiu de Blackwall, perto de Londres,em outubro de 1594, abastecida de todo o necessrio. Logo no incio da viagem, ainda na costa daInglaterra, o Consent perdeu de vista os outros dois navios e seguiu para a ilha de Tenerife, nas Canrias,um dos pontos de encontro combinados em caso de separao da frota. L, Lancaster captura duas nausportuguesas carregadas de vinho. Seguindo viagem para Cabo Blanco, no norte da frica, reencontram aVirgin, cujos homens informam que a Salomon, comandada por Barker, havia voltado para a Inglaterracom os mastros quebrados. Com apenas dois navios, a tripulao argumenta que dificilmenteconseguiria tomar o porto de Pernambuco, e sugere que eles deveriam seguir para o Caribe, onde

  • poderiam mais facilmente atacar e saquear as vilas litorneas. No entanto, Lancaster adverte que noseria inteligente alterar o curso da viagem sem antes procurar pela Salomon nos pontos de encontrocombinados, pois, a alterao de rotas a runa da maioria das nossas aes.[106] Em Cabo Blanco, defato, encontram a Salomon e seu comandante.

    Barker no s os estava esperando no ponto de encontro como j tinha atacado e capturado dosportugueses e espanhis 24 velas, entre caravelas e pesqueiros, dos quais retirara tudo o queprecisava.[107] Lancaster incorporou quatro desses navios sua frota, somando-se a um dos que haviatomado em Tenerife, com vistas a poder embarcar parte da mercadoria que pretendia saquear emPernambuco. O feliz encontro com Barker e a Salomon no foi a nica boa notcia que os esperava emCabo Blanco. Ali, na costa da atual Mauritnia, Lancaster inteirou-se conforme registra o autorannimo do relato publicado em The Principal Navigations de uma informao que aguaria ainda maisseu apetite e sua determinao em rumar para o Recife:

    Nesse lugar, ele soube, por um dos pilotos desses navios, que um dos galees que vinham dasndias Orientais naufragara em Pernambuco, tendo toda a sua mercadoria sido armazenada noArrecife, que a cidade baixa. Todos nos alegramos com estas notcias, e muito comemoramos,pois nossas esperanas eram as melhores tendo um tal butim diante de ns.[108]

    Tratava-se da So Pedro, uma nau da carreira da ndia que se desgarrara da armada composta decinco navios e viera encalhar na costa da capitania de Pernambuco, carregada das mercadorias quecostumavam estar a bordo dessas enormes e superlotadas embarcaes: especiarias, drogas, perfumes,preciosos tecidos indianos, tapetes, sedas, rubis, esmeraldas, diamantes, ouro e uma srie de outrosprodutos orientais. Todo o carregamento da nau encalhada foi transportado para os armazns do portodo Recife e, ciente disso, Filipe ii fizera uma proviso em junho de 1595 para Manuel MascarenhasHomem (capito-mor da capitania de Pernambuco de 1596 a 1603) comandar uma frota de urcas comdestino a Pernambuco, para resgatar e levar a Lisboa a rica carga a essa altura, no entanto, os inglesespouco haviam deixado nos armazns do Recife. Outra nau dessa mesma armada da ndia, a Cinco chagas,tambm cruzou o caminho dos corsrios ingleses e foi atacada, na altura dos Aores, pelo conde deCumberland, naufragando sem que os corsrios a pudessem capturar.

    Capturar uma nau da ndia, as desejadas Indiamen, era infinitamente mais difcil do que tomar esaquear uma nau do Brasil. Durante todo o perodo do conflito entre Espanha e Inglaterra apenas trsforam apreendidas pelos ingleses, uma delas por Francis Drake em sua viagem de circum-navegao,outra por Thomas Cavendish em 1587 e uma terceira em 1601. Pode-se avaliar a sorte de JamesLancaster em ter providencialmente as mercadorias da So Pedro esperando por sua frota nos armaznsdo Recife.

    A felicidade da tripulao com essa notcia foi total, redobrando o nimo de todos. Ao seguiremviagem, na ilha de Maio, no Cabo Verde, onde pararam para fazer aguada e construir uma galeota quetinham trazido desmontada e que se destinava abordagem do porto do Recife, encontraram o corsrioEdward Fenner com sua Peregrine e mais trs embarcaes ibricas capturadas, e tambm Martin

  • Philiphs, comandante da Welcome, cuja frota contava com uma pinaa e um navio apreendido. Oscorsrios ingleses se juntaram a Lancaster e, civilizadamente, assinaram documentos estipulando adiviso do butim pernambucano em trs quartos para a frota de Lancaster e um quarto para Fenner ePhiliphs.

    A emocionante batalha de oitenta contra mil

    Dessa forma, uma frota de pelo menos quinze embarcaes zarpou em direo capitania dePernambuco em busca do acar do Recife e das mercadorias da nau da ndia. Ao chegarem diante doporto, por volta da meia-noite do dia 29 de maro de 1595, numa Sexta-Feira Santa, Lancaster foi denavio em navio, no seu bote, ordenando que preparassem todos os homens disponveis, armados demosquetes, piques, alabardas, arcos, flechas e qualquer outra arma que tivessem, a fim de acompanh-lo.[109] O plano era atacar ao amanhecer e tomar de surpresa a vila do Recife e o fortim de So JorgeVelho, uma tosca construo militar. [110] A ao seria comandada pela galeota, liderada pelo prprioalmirante, com oitenta de seus melhores homens de armas, e equipada com um bom canho e doiscanhonetes. Como reforo, seguiriam a galeota cinco das pequenas