Piratas de Galochas - Compilação Teórica
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Coletivo de Galochas
Piratas de Galochas na Luz
Reflexes sobre o processo
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Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo
Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012
ndice
Introduo ......................................................................................................................... 3 Pedro Paulo Rosa
Fico, realidade e calejamento ........................................................................................ 4 Daniel Lopes
O lugar de onde se v ....................................................................................................... 7 Nina Nussenzweig Hotimsky
Jogo e improviso: um olhar do ator sobre o processo .................................................................................. 12 Ighor Walace
A Luz, os Piratas e seu pblico ...................................................................................... 15 Pedro Paulo Rosa
Hierofania na Helvtia: Princpios do mascaramento no espetculo Piratas de Galochas ................................... 21 Las Trovarelli
Processo de criao Corporal ......................................................................................... 25 Felipe Bitencourt
A criao da voz do ator no espao pblico: Origem no corpo, projeo no espao ............................................................................ 29 Gabriel Hernandes
Operacionalizao da prtica: Iluminao e Sonoplastia ................................................................................................ 40 Cau Martins
Teatro de Invaso e Ocupao: Espao, suas determinaes e sua potncia criativa ....................................................... 43 Rafael Presto
Referncias ..................................................................................................................... 55
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Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo
Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012
Introduo
Reflexes acerca da criao teatral Piratas de Galochas nas ruas do bairro da
Luz, So Paulo.
Pedro Paulo Rosa
Aps realizar a temporada da pea Piratas de Galochas nas ruas do bairro da
Luz, o Coletivo de Galochas teve como proposta debruar-se sobre seu fazer teatral, de
modo a refletir teoricamente a partir do processo vivenciado. Durante quatro meses (de
maio agosto) o Coletivo realizou ensaios semanais no bairro da Luz, a fim de re-criar
o espetculo Piratas de Galochas. A pea foi originalmente criada em 2011, fruto de
um processo colaborativo realizado nos prdios da Ocupao Prestes Maia, um conjunto
de prdios que, anteriormente abandonados, foram ocupados pelo Movimento dos Sem
Teto do Centro (MSTC) e servia de moradia para mais de 380 famlias. Concomitante
criao da pea, o Coletivo de
Galochas participou da criao de
um Ncleo Cultural na Prestes
Maia, e foi l que a pea Piratas de
Galochas teve sua primeira
temporada, em novembro de 2011.
Em 2012, o grupo teve
anseios por experimentar essa pea
em outros espaos, e escolheu as
ruas da Luz, regio estigmatizada como Cracolndia. A proposta era deixar o prdio da
Ocupao e ocupar as prprias ruas da cidade. Apesar de j ter uma dramaturgia e
montagem bem definidas, ao chegar s ruas o grupo percebeu a necessidade de re-criar
a pea, a partir desse novo espao.
Depois de quatro meses de ensaio, Piratas de Galochas estreou na Luz, ficando
em cartaz de incio de setembro at meados de outubro. Passada a vivncia, cada um
dos integrantes do grupo escolheu um ponto do processo a ser debatido, elaborando uma
breve reflexo escrita sobre o assunto. Aqui, temos a compilao desses textos, escritos
pelos participantes do Coletivo de Galochas.
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Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo
Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012
Fico, realidade e calejamento
Daniel Lopes
Antes de qualquer coisa a dor - sinto uma profunda e inexplicvel. Tentando
refletir sobre o processo de ator com a adaptao do espetculo Piratas de Galochas no
bairro da Luz, sinto o peso de todo o processo de criao, cujo gozo proporcional.
Ao idealizar o projeto, que posteriormente foi contemplado pelo Programa de
Valorizao de Iniciativas Culturais (VAI) da Prefeitura de So Paulo, queramos
continuar a pesquisar atravs da re-significao do espao, discutir temas como a
especulao imobiliria e a gentrificao do centro.
Em nossa primeira montagem dentro da ocupao de sem-teto Prestes Maia,
percebemos a potncia do jogo da pirataria como matria ficcional e a realidade dos
ocupantes, interpondo nossa dramaturgia corrosidade do espao.
A adaptao seguiu os mesmos preceitos, mas ingenuamente acreditvamos que
o mais difcil j estava feito. Ao depararmos com nosso novo espao cnico
percebemos que as questes abordadas dentro da ocupao no dariam conta da
complexidade do bairro.
Analisando a adaptao, o que mais me marcou foi a diferena entre a situao
da ocupao e a das ruas do bairro. Dentro da Ocupao, apesar de sempre estar em
conato com o lado mais podre da gentrificao e da desvalorizao do ser humano,
estvamos embotados por um sentimento de luta; por nossos direitos, contra a violncia
vivida todos os dias pelas famlias ocupantes.
Quando iniciamos nosso processo nas ruas o que vimos era violncia tambm,
mas ela estava materializada de uma forma muito mais desanimadora; a violncia da
polcia quanto aos usurios de crack, pessoas em situao de rua, moradores de penses
temendo perder seus lares, crianas e nenhuma luta aparente, sem perspectivas de
mudana. Isso destri qualquer um, at mesmo o mais bravo dos piratas, mesmo
pensando ter velejado todos os mares e enfrentado todos os monstros. Al estava um
oponente invisvel, inominvel, encontramos apenas uma pista para o tal, o Projeto
Nova Luz, projeto urbanstico que pretende operar grandes mudanas na regio
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Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo
Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012
estigmatizada de Cracolndia pela prefeitura, a partir de uma perigosa lei de Concesso
Urbanstica, sem nenhum dilogo com moradores, desapropriando para valorizar as
propriedades no mercado imobilirio.
Por que todas essas questes so invisveis, mesmo que a mdia trate sempre da
Cracolndia? Por que agora sinto esse incomodo e dio que antes era apenas um
pequeno mal-estar?
Na pea sou o capito dos piratas, e assim como meu pattico pirata me encontro
perdido, deriva com muitas questes e nenhum mapa do tesouro.
Na rua a possibilidade de nossa fico tornar-se apenas fantasia, uma brincadeira
de criana, perante a constante interveno dispersiva da realidade ainda maior. O que
podemos fazer? O que um grupo de
artistas est fazendo em um local
como aquele? Muitas dvidas
tumultuavam nossos ensaios e
apresentaes.
Em uma de nossas
apresentaes um senhor transtornado
exclamou: Eles (apontando para
usurios de crack que estavam
amontoados na calada, prximos a nossa cena) No precisam de fantasia, eles precisam
de ajuda.. Esse senhor nos acertou em cheio, conversamos muito sobre o assunto. De
incio defendi que no estvamos l para ajudar, no era essa a nossa inteno, mas essa
parece ser uma soluo fcil para o problema. No queremos transformar os problemas
daqueles sujeitos em espetculo, assim como vemos diariamente na televiso. Ento
qual a importncia da potica do pirata?
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Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo
Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012
Pensando em todas essas questes e tantas outras que viriam, decidi me preparar
fisicamente para o trabalho na rua, que convenhamos exige um esforo hercleo tanto
do ator quanto do pblico. Pretendendo ganhar condicionamento fsico, comecei a
treinar Muay Thai em 2012. Diferentemente de todas outras artes marciais, esta luta de
origem tailandesa usa as canelas ao invs dos ps para executar os chutes e as defesas
tambm, o que muito dolorido. Com o tempo a dor diminui, devido ao trabalho de
calejamento e tambm pelo fato de nos
acostumarmos com a mesma.
Como ator, associo todas as
experincias cotidianas ao meu fazer artstico.
Assim, penso que o teatro funciona de forma
oposta ao calejamento executado nas artes
marciais. Nossos piratas descobrem feridas da
cidade e as abrem, mesmo que comicamente,
uma piada indigesta, e por isso que se torna
uma experincia to intensa.
Dentro da cidade o normal o total
calejamento, fazemos isso como uma defesa
inconsciente, uma forma de convivermos com
tanta violncia sem prejudicar nossas vidas,
mas essa defesa extremamente perigosa. Sem
perceber que somos violentados e que o ser humano est em ltimo lugar nas polticas
pblicas, deixamos tambm de nos revoltar. A mdia nos mostra a violncia, mas ela usa
do artifcio sensacionalista e a transforma em um produto que compramos para
sentirmo-nos mais humanos, essa sensibilizao nunca associada s suas causas, quase
sempre apenas mais uma forma de calejamento alienador.
O teatro nossa forma de ter uma experincia compartilhada com o pblico.
Atravs da fico tentamos interagir com a realidade, participar e transform-la
Agradeo a todos meus companheiros de barco, ao pblico, as crianas que
acompanharam todo o processo, que enfrentaram todas as dificuldades da rua; a
fragilidade de nosso trabalho perante a tudo, a insuficincia de nossas vozes, ao frio,
chuva, e principalmente ao desgaste emocional. Vocs abriram uma ferida em mim.
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Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo
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O lugar de onde se v
Nina Nussenzweig Hotimsky
[Teatro, da palavra grega Theatron: lugar de onde se v.]
I.
Praa Jlio Prestes, Helvetia, Dino Bueno: lugares que estiveram em evidncia
desde Janeiro de 2012. Operao policial, manifestaes da sociedade civil organizada,
cobertura intensa da mdia. Segundo semestre de 2012: o que um grupo de teatro vai
fazer por ali?
A exposio ou o ocultamento de situaes sociais no so fortuitos, so opes
que servem a determinados interesses. O Estado moderno faz viver ou deixa morrer.
Rubens Adorno 1, etngrafo que estudou o bairro da Luz, fala da invisibilidade de
populaes como um dispositivo para deixar morrer. Certas pessoas morrem enquanto
no falo sobre elas.
Talvez por isso o acmulo de usurios de crack em determinados pontos da
cidade incomode tanto; mais difcil ignorar as pessoas quando elas se renem em um
mesmo tempo-espao. Diz Henrique Carneiro que o crack a faceta visvel da
misria. Visvel, mas silenciada por longos perodos. O bairro da Luz sofreu uma
operao policial intensa em 2008, andou um tempo em banho-maria, e voltou a
estourar (com armas e noticirios) em 2012...
Qual o motivo de olharmos a Luz? Existe um novo projeto para o bairro, a
chamada Nova Luz, amparada por um projeto de Concesso Urbanstica. Para que
Parcerias Pblico Privadas funcionem, preciso atrair investimentos para a regio e os
investidores precisam de garantias. Foi criado o termo Cracolndia: preciso
estigmatizar os bairros do centro para ento revitaliz-los. Comprar a preo de
1 Fala realizada no seminrio A cracolndia muito alm do crack. Faculdade de Sade Pblica da USP, 28 a 30/05/2012.
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Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo
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Cracolndia, vender a preo de Nova Luz2. Desenhar simbolicamente a Cracolndia
exige alarde, espetacularizao.
Falamos sobre fluxos populacionais e urbansticos e sua ligao com a
circulao de discursos. As pessoas, a cidade, e o campo simblico. Esconder ou dar a
ver, tornar invisvel ou visvel, objetificar ou espetacularizar? Resta fazer a passagem
o que a mdia e a polcia agiram na Luz, e o que os artistas teatrais foram fazer ali no
segundo semestre de 2012.
Uma coisa ensaiar; quando ensaio estou desarmada. No perodo de criao da
pea, o Coletivo de Galochas acostumou- se a viver ao menos uma interveno por dia.
Ao menos uma pessoa pertencente ao bairro fazia questo de tornar-se visvel.
Uma senhora me beija: voc parece tanto a minha filha de dezesseis anos!
Olha, t vendo as trs estrelas? (Aponta para o cu, volta para a terra). Voc vai me
ajudar?.
Um palhao profissional latino-americano escuta o ator falar em liberdade, entra
em cena e pergunta: O que es Libertad?.
Hernandez, clarinetista bbado (mas sem preconceito com outras drogas) v os
atores em roda e impe-se cenicamente: Isso algo, isso algo! Eu, vocs, esse
crculo, a iluminao. Deus no lgico, porque a vida no lgica. Deus para ser
sentido. A vida tambm improviso.
Uma senhora atravessa o aquecimento corporal gritando suas bravatas: Cis
moram com a me! Paga um cursinho da Poli pra mim! O saber pesa, n?. Respondo
aflita que ela tem razo de estar brava. Voc no psicloga!. Um ator pondera:
Voc j chegou atacando.... Ela responde: A melhor defesa o ataque. Luta de
classes, pois . Os atores do Coletivo de Galochas se assemelham em algo com os
futuros moradores da Nova Luz, com os espectadores da Sala So Paulo, com as
pessoas que passam com medo por aquelas ruas. Vocs esto fugindo, esto fugindo!,
gritava a senhora ao final. No, senhora, precisamos mesmo ensaiar a prxima cena na
prxima esquina.
2 Frase de Mariana Fix, urbanista, no debate: Cracolndia. Faculdade de Sociologia e Poltica de So Paulo, 15/06/2012.
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Anedota ltima: o homem que senta na roda de conversa tendo na boca um
cigarro ao contrrio. Ele responde, Eu sei, eu sei. Vocs no tm noo de onde eu
estou. (Respira fundo em sua brisa). Aqui a Cracolndia, porra!.
Perodo de ensaios. A cidade nos atravessa, e atravessa a dramaturgia.
II.
a Luz, A p,
o Oceano e o Barco.
Outra coisa apresentar. Paramentada por uma barba, maquiagem, figurino, luz,
sonoplastia: o que fao nas ruas da Luz? O que se torna aquele lugar? Oceano e bairro
em concesso urbanstica. preciso jogar com os colegas atores, e preciso jogar com
a platia - sem esquecer
quem j estava ali antes de
chegarmos...
Parte de quem j
estava ali so os
moradores das penses
prximas. Famlias,
trabalhadores, imigrantes,
ciganos e crianas. Pessoas
que receiam ter de se
mudar, caso a transformao em Nova Luz faa o aluguel subir muito. Os adultos
nem sempre saem de suas casas, mas elegem uma ou outra cena para assistir de suas
janelas. As crianas entram de cabea na pea, a nova brincadeira nas noites de final de
semana.
Mas h quem j estava ali como bode expiatrio. Quem vivia a sua festa at a
polcia chegar. Quem veio provocar ao longo dos ensaios. Aqueles que apanharam,
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aqueles de quem a mdia tanto falou, aqueles que acostumaram-se a ver passar pessoas
com medo. Qual era a relao deles com a pea?
Um teatro na rua no pode obrigar ningum a ter interesse. Alguns usurios de
crack tinham prazer em assistir a pea, mas muitos deles no se mobilizavam para tanto.
Essa uma opo que no cabe criticar. O grupo pode se perguntar: at que ponto a
pea convidava esses espectadores?
Alm de possveis espectadores, os usurios de crack tornavam-se elemento de
leitura da pea. Espectadores que vinham de fora passavam seus olhares pelas pessoas
nas caladas, e essa viso necessariamente integrava a sua experincia ao assistir
Piratas de Galochas. Estar em cena na rua faz perceber como a cidade mais
interessante que o ator. No cabe competir, preciso lidar com o que a rua oferece
(grande desafio para atores to jovens!). O que a pea fez dos usurios de crack?
Duas foram as preocupaes:
1. No quero torn-los invisveis.
Moradores de So Paulo esto acostumados a no ver a misria.
Para qu montar uma pea na to alardeada Cracolndia se pretendo tocar a todo
custo a fbula dos Piratas? Qual o peso simblico de uma cena atravessada por um
carroceiro, se o ator o ignora?
2. No quero a visibilidade espetacularizada.
A pea um passeio pelo centro. Ela pde permitir que alguns espectadores de
classe mdia olhassem ao vivo o que a televiso retratou. Pisar a Helvetia com a Dino
Bueno. No ter tanto medo.
As cmeras televisivas captaram os usurios do crack como bodes expiatrios.
Como os espectadores de Piratas de Galochas (espectadores intencionais, vindos de
outras regies da cidade para assistir a pea) captaram quem estava diante deles?
III.
Desenvolvidas algumas das preocupaes e contradies, um apontamento final.
Nos ltimos finais de semana da temporada, a regio da Luz foi pesadamente
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higienizada. A operao policial se intensificou quem sabe, por conta do segundo
turno das eleies municipais.
Subitamente, as esquinas barulhentas silenciaram, e as caladas lotadas se
esvaziaram. Que paz. Paz. Paz.
Uma batida policial violenta em frente ltima cena fez lembrar o custo da
aparente limpeza. Impossvel saber quantos espectadores perceberam essa outra cena.
Como atriz, preferia as contradies da rua lotada ao silncio cruel do
higienismo.
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Jogo e improviso: um olhar do ator sobre o processo
Ighor Wallace
Cracolndia o nome pelo qual conhecida uma regio do bairro da Luz na cidade de
So Paulo, situada prxima a uma grande estao metro-ferroviria. Incrustrado neste espao
de grande circulao urbana existe uma rea expressiva aonde drogas so comercializadas e
consumidas abertamente. Uma vida marginal - hoje sob intensa vigilncia, que varia da total
passividade agressividade ostensiva - mas que ambiente comum de trabalhadores, crianas,
empreendedores...
O Coletivo de Galochas, carregando consigo a experincia do trabalho de um ano na
Ocupao Prestes Maia, escolheu adaptar o espetculo Piratas de Galochas para o contexto da
Cracolndia, remontando pesquisa de teatro na rua realizada no primeiro trabalho do
coletivo.
No incio do processo realizvamos treinamentos corporais dentro da Estao da Luz e
suas imediaes, assim como improvisos onde as peculiaridades dos espaos eram os maiores
provocadores e nossa principal funo era jogar com o entorno. Pouco a pouco fomos nos
aproximando da praa Prestes Maia, em frente Sala So Paulo - uma luxuosa casa de
concertos e eventos - e desta Cracolndia em questo (posto que a terminologia tornou-se um
conceito que se espalhou pela cidade com o aumento do policiamento naquela regio
especfica), intensificando os treinamentos, nos preocupando mais com a preparao vocal e
definindo cada cena do novo espetculo em seu respectivo espao de representao.
No havia um dia sequer em que no fossemos abordados por algum durante os
ensaios. Esses encontros fortuitos que algumas vezes nos tocaram profundamente eram com
pessoas dos mais variados tipos. O comunista inconformado, a prostituta, o senhor que cresceu
e viveu sempre ali, o bbado chato, o compositor bomio, o nia, o palhao argentino, a me
adolescente, o empreendedor, as crianas... Claro que era muito importante seguir adiante e
continuar o trabalho de montagem da pea, mas essas interrupes eram momentos
preciosssimos. Cada uma daquelas individualidades exigindo ateno, ansiando por se
comunicar e evitando que a misria os despersonificassem, nos desestabilizava em algum
nvel. Fazia com que ponderssemos o nosso trabalho, descobrindo novos caminhos.
No que essa condio de luta seja exclusividade dos que esto a margem da sociedade.
Manter a individualidade tambm uma batalha para todos que se colocam em posio de
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mercadoria, ao empregar sua fora de trabalho. Era natural que para ns, ao trabalhar no
campo das artes cnicas e colocando nosso prprio corpo como parte da obra, o temor de nos
tornarmos mera mercadoria fosse recorrente. Insistimos, portanto, em estabelecer um dilogo
mais prximo com os moradores e comerciantes da regio. Isto ajudou muito no sentido de
fazer com que se estabelecesse um vnculo entre o Coletivo e o cotidiano daquele bairro, e
assim a construo do espetculo se tornasse um acontecimento pertencente a todos nalguma
medida. Angarivamos tambm estofo para os improvisos de cena que dariam liga entre uma
nova linha dramatrgica que no se desconectasse completamente da original e a temtica
provocada pela vivncia da organizao social da Luz.
Sentimos logo a necessidade de estabelecer
certos parmetros de permeabilidade interferncia do
pblico. Era notrio que seramos abordados tambm
durante as apresentaes e estvamos conscientes de
que a pea que construamos tinha como alvo, alm de
nossos convidados, aquele pblico especfico de
moradores que seria barrado de qualquer sala de
espetculos e, portanto, no est acostumado com todo
o cdigo de postura do teatro tradicional. Mais do que
isso, nos encontrvamos em um territrio aonde o
trato social estava completamente deslocado.
Todos estamos presos condio de ator, sem
distino. O homem um ser social e a capacidade de
se comunicar imprescindvel. Geralmente um emprego pede um figurino apropriado ou
paramentos prprios. Lidamos o tempo todo com a construo e interpretao simblica. Fora
isso seguimos uma conduta que o corpo da sociedade espera de ns. Tudo isso nos desloca de
nosso verdadeiro eu - somos uma construo da qual nem sempre tomamos parte. Por isso foi
relativamente simples estabelecer um contato pacfico com a ronda policial (que se tornou um
smbolo da coroa britnica em cena), com os proprietrios de penso e comrcio (que cederam
espaos de representao e contrarregragem), com os espaos culturais e instituies do
entorno.
Lidar com as crianas e os embriagados era um grande desafio. Estes partilhavam da
mesma parcela de liberdade para fugir de determinadas regras sociais que ns. A maior parte
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dos adultos parava para julgar se o que fazamos era bom ou no e, quando gostavam, alguns
agiam como as crianas: queriam entrar em jogo e entravam, mesmo sem autorizao!
O conceito de jogo, to inerente ao Teatro nas lnguas francesa e inglesa, fica camuflado
na nomenclatura do acontecimento cnico em portugus. Isso no quer dizer que jogo e
improviso sejam a mesma coisa. Quando assistimos a uma pea com quarta parede, o jogo se
d somente entre os atores e j est previamente combinado - a brincadeira consiste em fazer o
combinado valer. Quando o seu pblico exige ser colocado em ao passa a ser
responsabilidade nossa faz-lo e queramos que a montagem permitisse isso, ainda que
impelindo-os a refletir sobre o que estavam acompanhando, somente.
Tambm existiam aqueles interessados apenas em atrapalhar e fazer pouco de nosso
trabalho, que deflagravam uma espcie de existncia para o desdm. Quando lidvamos com
esse tipo de situao optvamos por suspender o trabalho momentaneamente e pedir para que
se retirassem, e se no dava certo ns que nos afastvamos. Seria no mnimo injusto e
prepotente tratar da mesma forma aqueles que se colocavam genuinamente em ao, e para
atender essa demanda era necessria constante prontido e escuta por parte dos
atores/criadores. Isso quer dizer que nada pode ser ignorado, toda provocao gerando um
retorno vigoroso, tornando em esttico o inesperado.
Por isso o intrprete realiza uma funo mltipla. Ao mesmo tempo em que age
ativamente no dar a ver de sua personagem, permanece permevel s alteraes do entorno.
Esta uma constante no jogo de cena entre atores de todo tipo de teatro, mas quando estamos
lidando com o improviso, torna-se essencial, pois inclui-se a plateia e o momento presente se
transforma em amparo e guia de nossa arte.
O ato de criar em ao opera de forma diferente no corpo de cada um. Em geral
tentvamos no quebrar a personagem que interpretvamos a no ser que corrssemos risco.
Muitas vezes chegar neste estado de prontido nos incita a criar o tempo todo e ento preciso
diminuir, da a necessidade de equilbrio com a escuta, pois a compreenso da fbula e dos
dilemas morais apresentados ainda um valor muito caro ao Coletivo. tambm comum que
o ator se prenda criao verbal e abandone o corpo construdo para sua figura, fragilizando o
potencial energtico de sua interpretao.
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A Luz, os Piratas e seu pblico
Pedro Paulo Rosa
O teatro de rua instala-se no espao pblico, e se constitui como surpreendente acontecimento artstico. Este acontecimento provoca ruptura na funcionalidade espacial cotidiana, modifica o repertrio de usos do espao. Em virtude disso, o pblico do teatro de rua fundamentalmente um pblico acidental, que presencia o espetculo porque se encontra casualmente com este acontecimento. Por princpio, a relao do pblico com o espetculo da rua, est condicionada pela surpresa e alterao das expectativas ou at mesmo pela inverso desta quanto ao uso da rua. H grande quota de acaso neste encontro e isso contribui de forma significativa para a construo de sentidos do espetculo.3
Como vemos na citao acima, para Andr Carreira a caracterstica primeira do
pblico do teatro da rua o acaso, o pblico acidental, algum que no pretendia assistir
a uma pea, mas encontrou uma na rua. Encontrou e, ao invs de simplesmente
continuar passando (como muitos fazem), por algum motivo parou, constituindo-se
assim como pblico.
Como Piratas de Galochas foi um espetculo realizado em via pblica, pelas
ruas do bairro da Luz em So Paulo, seria lgico concluir, de acordo com Carreira, que
seu pblico seria, principalmente, acidental. O espetculo comearia e o pblico viria ao
longo, passante e fragmentado. Porm, a expectativa do grupo com relao ao pblico
no era essa, ou pelo menos no apenas essa. Que os passantes acabassem por
integrarem-se ao grupo e acompanhassem a pea, isso era previsto, mas havia uma
expectativa de atrair um pblico intencional, de chegar Praa Julio Prestes s 20h, em
frente Sala So Paulo, e encontrar um grupo de pessoas aguardando pelo incio da
pea. Quando no havia um nmero grande de pessoas espera dos atores, estes no
deixavam de sentir uma leve frustrao: ora, mas, se era uma pea da rua, por que os
artistas queriam tanto esse pblico do teatro?
Quando Piratas de Galochas foi criado, em 2011, na Ocupao Prestes Maia, a
pea acontecia dentro do prdio ocupado e todo seu pblico era intencional. O espao
era alternativo, pois no se tratava de um edifcio teatral, e no havia palco tradicional.
Os espectadores, depois de subirem nove andares de escada, passando pela porta das
casas dos moradores, chegavam ao local do espetculo, onde sentavam-se em
banquinhos de papelo e eram convidados a se mover pelo espao durante a pea. Para 3 CARREIRA, Andr, Teatro de Rua: (Brasil e Argentina nos anos 1960): uma paixo no asfalto, So Paulo: Aderaldo & Rothchild Editores LTDA, 2007.
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Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo
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os moradores, fazia parte da experincia vivenciar uma pea de teatro dentro de suas
casas, ou seja, no prdio onde eles moravam. Para aqueles que vinham de fora, fazia
parte da experincia entrar em uma Ocupao de moradia e visitar a casa de algum.
Mas, ainda assim, o pblico era formado por pessoas que, tendo conhecimento sobre a
existncia da pea, escolhiam sair de suas casas (seja essa casa no oitavo andar da
Ocupao ou no bairro de Higienpolis), deslocarem-se at o nono andar da Ocupao
Prestes Maia e l compartilhar o acontecimento teatral. Era um pblico intencional,
pessoas que se propuseram a ir ao teatro, apesar de no irem um edifcio teatral.
Ao levar a pea para as ruas da Luz o processo de divulgao da pea e a
expectativa de atrair um pblico intencional continuaram. Aqui visitar a chamada
Cracolndia fazia parte da experincia proposta pelo Coletivo de Galochas para um
pblico de teatro que provavelmente no freqentaria (ou muitas vezes nem conheceria
pessoalmente) essa regio da cidade.
Podemos dizer que a vontade de ter um pblico intencional vem do desejo de
propor uma experincia, e mais que isso, um contraste de experincias, uma ruptura (ou
pelo menos uma micro-fissura) em um fluxo j estabelecido para aquele espao. Ao
convidarmos freqentadores de teatro para assistirem a um espetculo nas ruas da Luz
no estamos apenas convidando-os para uma pea de rua estamos chamando essas
pessoas para as ruas da Cracolndia, convocando-as a estarem presentes fisicamente
nesse espao. A partir dessa presena fsica a pea percorre o espao, interfere sobre e
interage com ele, criando relaes com os fluxos urbanos existentes naquela regio, e o
pblico convidado, a partir dessa vivncia, a criar sua prpria experincia com relao
quele espao, ser atravessado pelo espao e tudo que ele contm: os atores (pelo menos
durante aquelas duas horas), moradores, cracmanos, policiais, crianas, donos de bares,
moradores das ruas.
O desejo de atrair um pblico intencional no anula nem diminui, de maneira
alguma, a importncia e a necessidade de um pblico acidental. No justo, tampouco
preciso, generalizar o perfil dos dois tipos de pblico em questo (intencional e
acidental), mas vale apontar que era comum que o primeiro fosse composto, muitas
vezes, por pessoas que conheciam o Coletivo de Galochas e seu trabalho, ou que tinham
algum tipo de contato com algum integrante do grupo. Muitos deles tinham pouca
familiaridade com aquela regio da cidade, e podemos dizer que tinham como principal
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Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo
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referncia daquele espao a imagem espetacularizada de Cracolndia, difundida pela
mdia, fazendo daquelas ruas uma regio desconhecida, mas de certo muito perigosa. J
o segundo contava com os freqentadores da regio, nesse caso moradores de casas,
penses e cortios, transeuntes, usurios de drogas, policiais, crianas, moradores de
rua, donos de botecos. Estes sim, estavam passando pelas ruas quando encontraram um
pea de teatro. Alguns paravam para olhar e continuavam at o fim. Outros passavam
batido. Alguns espiavam pela janela de casa a
cena que acontecia ali em frente, mas nem
sempre desciam para virar a esquina e
acompanhar a prxima.
A composio desses dois pblicos,
colocados lado a lado devido a um
acontecimento artstico, torna-se potente quanto
proposio de experincia. Possibilitar um
pblico-mosaico, que venha de regies diferentes
da cidade (e do pas), de opinies e escolhas
polticas diferentes, de escolaridades diferentes
mas, principalmente, de classes sociais
diferentes. Colocar essas pessoas frente a frente,
mediadas por uma pea, de mondo que elas compartilhem uma mesma experincia,
criem e modifiquem sua relao com aquele espao, e com as relaes sociais que ele
representa na construo urbana atual.
Se as ruas so pblicas, por que no podemos estar todos nelas?
Alguns passantes, freqentadores do bairro, ao se deparar com a pea olhavam,
curiosos. Acompanhavam por um tempo e depois seguiam seu caminho. Alguns
assistiam um pedao e voltavam no dia seguinte para acompanhar a pea desde o incio
aqui, o pblico acidental de ontem o pblico intencional de hoje. Conforme os
ensaios e as apresentaes foram se tornando recorrentes, a pea passou a fazer parte da
dinmica de funcionamento daquelas ruas. Moradores que passavam reconheciam os
atores como tais, eram familiares com a realizao daquela pea inclusive alguns
nunca assistiram pea inteira, mas sabiam que ela acontecia ali. Depois de um tempo,
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no era mais surpresa encontrar um pirata bebendo e cantando pela rua, no meio do
caminho de casa.
Dentre os espectadores acidentais que se tornavam pblico voluntrio, no
podemos deixar de mencionar as crianas. Assim que a pea estreou, logo teve um
grande nmero de crianas no pblico. Moradoras da regio, por vezes acompanhavam
partes do ensaio, e com o incio das apresentaes, passaram a ser freqentadoras
assduas. Uma criana assistia uma cena em um dia, no outro, vinha assistir a pea
inteira, no terceiro trazia um amigo e no dia seguinte, os pais. Muitas das crianas
tornaram-se um pblico cativo estavam presentes praticamente todos os dias,
esperavam pela pea,
ansiavam pelas piadas, j
sabiam onde posicionar-se
para ver melhor cada cena,
ficavam decepcionadas
quando a pea era cancelada
devido chuva. As crianas
foram, sem dvida, uma dos
pontos mais fortes de
ligao do Piratas de Galochas com os moradores da regio, pois elas passaram a trazer
seus pais para acompanhar a pea. Todas as crianas da regio da Rua Helvetia e da
Alameda Dino Bueno conheciam e acompanhavam a pea e seus pais comentavam com
o grupo o quanto no agentavam mais ver seus filhos brincando de piratas, ou, em
outro caso, a menininha que quis comprar um par de galochas para assistir pea.
Apesar de conhecer j a histria e os personagens, os pequenos no se cansavam de
acompanhar os atores, dia aps dia.
Piratas de Galochas nunca pretendeu ser um pea infantil, mas inegvel que
havia algo naquela montagem que cativava as crianas. Talvez os personagens, piratas
caricatos, talvez o humor, talvez o cio das crianas ao brincar na rua, ou talvez uma
combinao disso tudo, uma espcie de estar no lugar certo na hora certa. Porm, ao
mesmo tempo que a pea era apreciada por crianas de todas as idades, havia algo de
indigesto nela. Por diversas vezes, espectadores intencionais comeavam a assistir a
pea mas a abandonavam no meio. s vezes vinham justificar, seja se manifestando
pela internet ou conversando com algum integrante do Galochas. Foi recorrente a
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meno um incmodo, uma sensao de desconforto extremo, que fizesse a pessoa
querer se retirar daquela situao. Ora, o que uma comdia sobre piratas, muitas vezes
assistida por crianas, pode der de to intragvel?
Refletindo, pudemos perceber que o incmodo tinha uma localizao temporal e,
mais importante, geogrfica na pea. O espetculo comeava em frente Sala So
Paulo, passeava pela Praa Jlio Prestes e seguia a Alameda Cleveland, entrava na Rua
Helvtia, depois virava esquerda na Alameda Dino Bueno e caminhava novamente at
a Praa Julio Prestes. O primeiro trecho da pea, na Praa Jlio Prestes, era bem
recebido, o pblico ia se aquecendo e tornando-se mais caloroso durante o decorrer da
cena. Porm, quando os atores dobravam a esquina da Alameda Cleveland e entravam
na Rua Helvtia, algo acontecia. Era a esquina fatdica. Al, algo acontecia que causa
incmodo. Coincidentemente ou no (acredito muito que no), era nessa regio que
havia uma maior concentrao de usurios de crack e moradores de rua. A cena
acontecia em meio a eles. Muitas vezes, os cracmanos eram mais interessantes que
qualquer pirata. Estar na Cracolndia tornava-se mais forte que estar assistindo uma
pea, em uma instncia coletiva. Para alguns, era incmodo demais, preferiam ir
embora.
Alguns desses espectadores comentaram que o desejo de partir vinha de uma
sensao de invaso, de desrespeito para com aqueles que j estavam ali, e no de medo
ou incmodo. No posso deixar de pensar que tal constatao uma desculpa, ainda
acredito que o que faz as pessoas abandonarem um navio o mal-estar, um incmodo.
De qualquer maneira, apesar dos desertores, a pea costumava ter mais
espectadores ao final do que no incio de cada apresentao algo esperado para uma
pea na rua. Apesar de ter crticas e abandonos, havia tambm espectadores
absolutamente imersos na experincia proposta.
Independentemente de receber crticas e elogios, o que vale frisar com relao
Piratas de Galochas na Luz que algo acontecia com as pessoas que estavam ali, que
se propunham a vivenciar aquilo. Seja algo positivo ou negativo, mas algo se passava
creio que seja seguro dizer que poucos espectadores passavam impunes. Podiam odiar a
pea, podiam amar, podiam analisar a estrutura cnica, admirar (ou condenar) a
coragem-quase-estpida dos jovens atores, mas algo a dizer a respeito dos Piratas,
teriam, pois eram atravessados por ela, de alguma maneira. A esse atravessamento,
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chamamos de experincia um espao em que o homem efetivamente vivencia algo,
atravessado e, portanto transformado de alguma maneira, ainda que sutilmente. Um
espao onde podemos deixar de lado nosso calejamento cotidiano para, de fato, ver,
sentir, pensar e ser nossa cidade, pelo menos por um instante.
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Hierofania na Helvtia: Princpios do mascaramento no espetculo Piratas de
Galochas na Luz
Las Trovarelli
A prtica dos Piratas de Galochas sempre partiu da invaso e ocupao artstica
do espao. A partir da construo da primeira verso do espetculo, quando ainda
ocupvamos o nono andar da Ocupao Prestes Maia, chegamos a uma estrutura
malevel da pea capaz de nos conferir o tamanho adequado a qualquer lugar que
pisssemos. Entretanto, a estrutura dramatrgica segura e conhecida foi o elemento
propulsor para o que viria a ser, acredito, a base para que pudssemos transpassar as
regras que ns mesmos havamos traado. O esmiuar das especificidades fsicas e
simblicas de um espao determinado nos deu ferramentas para o alcance da
universalidade, que aqui tratarei especialmente no que tange ao trabalho de ator. Assim
como as atrizes do coro, que concretamente valiam-se de mscaras de ltex idnticas, os
atores da tripulao tambm passavam por um processo de mascaramento ainda que
com outras especificidades. A mscara aquilo que revela atravs do ocultamento. Ao
vesti-la, o ator se veste internamente de preciso, racionalidade e distncia. como se
fosse capaz de revestir-se de quilmetros.
A idia era ocupar as ruas da chamada Cracolndia. Antes de ancorarmos,
entretanto, era preciso tatear. Foi perceptvel, logo que chegamos, que a roupagem de
artistas e estudantes era demasiado estrangeira. Ainda em primeiros encontros, fizemo-
nos os duplos necessrios. Samos em trio para coletar pistas do novo territrio,
absorver o lugar. O gatilho era tocar todas as campainhas e ao sermos atendidos
inventar alguma desculpa que nos permitisse desenvolver as descobertas, e se possvel
entrarmos nas casas, no ntimo daqueles que vivem expostos nos jornais
sensacionalistas. Como se vestidos de estudantes de arquitetura, de pesquisadores do
censo, de curiosos. Por dentro, distncia.
Chegado o perodo do levantamento das cenas no novo espao, era tambm hora
de reaquecer os corpos. O treinamento de quedas, que havia se feito rotina desde o
incio do Piratas, sempre trouxe imensas contribuies ao preparo corporal e ao
detalhamento da composio das personagens. O treinamento nos norteava fisicamente,
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nos puxava a um registro interpretativo grande, violento, grotesco. E no foi diferente
nas ruas da Luz. O mascaramento fsico das personagens foi sendo recuperado, mas
mesmo em seu nvel mximo parecia engolido pela cidade. Era preciso fazer-se maior
que o Gigante da Praa Julio Prestes, talvez maior que a Sala So Paulo, para no
sermos engolidos pelos discretos e os nem tanto transeuntes e moradores daquele bairro.
Ao contrrio do que se possa acreditar atravs da mdia, no se trata de um bairro
despovoado: pulsa.
Durante os nossos encontros, as interferncias eram uma constante. Haviam as
agressivas, as interessadas, as vazias, as carentes, as chorosas, as ininteligveis.
Recebamos, todas, tentando filtrar e
absorver aquilo que pudesse se converter em
material. Entretanto, chegado o momento
em que tnhamos desenhada a nova verso
da pea, no podamos parar. Tampouco
ignorar as interferncias. Era dado que
havamos optado por um espao pblico, e
ignorar a vida daquele espao seria uma
enorme perda. Foi preciso, ento, que
aprendssemos a acessar um estado de jogo
com o imprevisto. No era novidade que
precisssemos vez ou outra lidar em cena
com algo que sasse diferente do planejado,
mas desta vez as intempries eram maiores e
mais capazes de desestabilizar o rumo da
pea. Era preciso mais - mais sintonia com os demais atores, mais relao fsica e
simblica com o espao, mas principalmente, mais apropriao do ator sobre o
mascaramento da sua personagem/figura.
Quando se trabalha com a mscara da maneira convencional, o distanciamento
(por parte do ator) claro medida em que o centro da persona representada (rosto) est
to distante do prprio centro que chega a no mais fazer parte do prprio corpo
externo. O princpio do duplo do ator pode ser exemplificado em um paralelo com o
trabalho com tteres: enquanto boneco-vivo (fisicalizador da ao), o ator deve estar
ciente de cada movimento que realiza, controlando o tnus, o ritmo, a respirao, a
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amplitude dos movimentos e todos os outros aspectos da ao fsica. Enquanto
manipulador, o ator deve ser capaz de distanciar-se para observar e captar a fisicalizao
daquilo que deseja representar ou narrar. preciso ativar uma escuta corporal e dar
vazo s reaes, ao mesmo tempo em que preciso raciocinar e ser capaz de perceber
o que e o que no pertinente ao corpo que se deseja construir. Trata-se de um estado
extra-cotidiano, implacvel, que no deixa dvidas quanto justeza ou no de cada
ao.
Para a construo dos corpos das personagens, no incio da pesquisa do
espetculo Piratas de Galochas, valemo-nos de muitos exerccios de composio
corporal proposio de postura, das mos, do
eixo, dos quadris, dos joelhos, etc. Entenda-se
aqui este processo de composio como anlogo
confeco de uma mscara. Diante, ento, das
proposies fsicas (no caso da mscara
convencional, o desenho - expresses, linhas
faciais, etc.), o ator opta e desenvolve os
componentes mais sutis daquela figura. Assim
fizemos e quando chegamos s ruas da Luz as
personagens j tinham corpo, voz e jeito. Naquele
espao, cada personagem era um nariz de clown:
a mscara que podia nos dar voz frente uma
interveno externa. Um ser de outra realidade e
que exige outro nvel de comunicao, no mais um(a) artista que representa
exatamente o que .
Claro que o entendimento corpreo desse estado de jogo foi gradual. Durante os
ensaios, os imprevistos eram contornados de diversas maneiras, inclusive atravs da
interrupo das cenas. Entretanto, quando comeamos a apresentar a pea efetivamente,
essa possibilidade inexistia. Se antes os transeuntes e moradores vinham a ns pelos
mais diversos motivos, mas principalmente estabelecendo contato atravs da conversa,
quando estreamos a situao mudou. Sejam pelas figuras e figurinos extravagantes,
sejam pelos equipamentos de iluminao e sonoplastia, seja pela movimentao do
pblico (quase sempre numeroso), fato que as interferncias externas cresceram. De
incio, talvez pela nsia de fazer o espetculo exatamente como o planejado, era comum
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que ignorssemos uma rplica inesperada de um morador de rua ou mesmo a passagem
de um nibus barulhento que no permitia que o pblico ouvisse alguma fala. E foi em
crescente que a escuta interna e externa do grupo aumentou: em um segundo momento,
alguns de ns interagiam com determinado fato, outros ignoravam; ou todos
interagamos com uma situao e ignorvamos uma outra mais complicada. Em um
terceiro momento, entretanto, o domnio das personagens/figuras nos permitiu um
estado apurado de escuta e reao imediata dois princpios fundamentais da mscara.
Samos pelas ruas da Cracolndia tendo em ns pouco menos que um nariz de
clown. Mascarados de idias, de tenses corporais calculadas. Mscara como escudo.
Uma defesa burlesca, mas capaz de reverter uma fora no sentido de uma ao
determinada. Um equilbrio dinmico entre o inesperado e o pressuposto - e a aceitao
de um caminhar grotesco na contramo da altivez de quem sabe pra onde vai.
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Piratas de Galochas: Processo de criao Corporal
Felipe Bitencourt
I . Ocupao Prestes Maia primeira criao corporal
Quando penso em procedimentos de preparo corporal, no percebo estes
somente como uma espcie de preparo fsico, mas, tambm, como elaborao de um
corpo especfico para cada ator e a juno destes corpos visando uma assinatura do
coletivo.
Acredito que nosso processo de trabalho fsico, assim como todo o nosso
trabalho, sempre foi colaborativo. Temos idias individuais, claro, mas que juntas
acabaram por compor esta palheta que temos agora. Para a criao do trabalho de corpo
fomos inspirados por vrios campos artsticos, no somente cnicos, mas tambm pelas
Artes Visuais, o Cinema, Seriados e, at mesmo, Animaes. Como alguns (de tantos)
exemplos, poderia citar, no campo das Artes Plsticas, a artista Marina Abramovic,
performer e artista visual que tinha o limite fsico como base de suas pesquisas e
apresentaes. No mbito do teatro, o grupo Cena 11, que trabalha com quedas e
encenaes performticas, testando o limite entre cena e performance. Nos
Seriados, o grupo Monty Python, - criadores e intrpretes da srie cmica Monty
Python's Flying Circus. E por, fim, no cinema, tambm tivemos como referncia (quase
inevitvel, por ser parte to forte do imaginrio coletivo contemporneo de pirata) os
filmes Piratas do Caribe.
No incio, no saberamos ao certo o resultado que teramos, porm, sabamos
que, de alguma forma, viria das necessidade deste espetculo, um espetculo
diferenciado, fruto do que o assunto pirata pode surtir.
Como uma de nossas primeiras pesquisas, em 2011, trabalhamos com exerccios
de aquecimento, alongamento e, principalmente, com quedas. Para tal, tnhamos o
grupo Cena 11, citado acima, como guia para o entendimento desta prtica. A proposta
a de aprender a elaborar quedas livres no cho, sem nenhum resqucio de defesa, sem
se machucar. Este j foi o incio de um formato corporal que o grupo comeou a
adquirir. Acabou sendo, tambm, um pequeno incio de uma futura pesquisa em nossos
figurinos: as quedas nos exigiam certas protees como cotoveleiras e joelheiras, que
acabaram incorporadas ao nosso figurino final.
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Por meio do treinamento de quedas, h essa altura do processo j havia uma raiz
de unio, uma pauta comum de movimentaes e objetos, um vocabulrio corporal para
todos os atores. Neste momento tambm j tinhamos um certo trabalho textual sobre a
dramaturgia. Havia, agora, a necessidade de comear a estabelecer, dentro deste
universo criado, qual o carter individual que cada personagem teria. Como cada um
anda, como cada um fala, como cada um interage com os outros e com o pblico.
Comeamos, ento, a desenvolver workshops experimentais. O interessante
destes workshops que eles permitiram uma explorao do corpo de cada um consigo
mesmo e com o espao: muitos acabavam saindo da nossa sala de ensaio caminhando
para lugares externos como locais descampados, gramados e estacionamentos. Uma
destas propostas era a de
cada ator trazer, para o
prximo ensaio, alguma
imagem alegrica do
universo dos piratas. Ento,
no caso, no consistia em
trabalhar uma cena ou um
monlogo em si, mas a de
criar uma figura mtica,
pessoal e iconogrfica. Um ator virou de gente para um estranho bicho acorrentado,
uma atriz virou um ser isolado em um banheiro pblico com diversas moedas grudadas
em seu corpo enquanto estas caiam com sua respirao, outra colocou uma barba
postia e virou mulher-homem, e por a vai.
Observando agora todos estes passos que demos no incio do processo, me
parece claro que este espetculo claramente uma juno de todos estes procedimentos.
Ainda assim, em meados de 2011 nossos corpos ainda estavam confinados no espao de
uma sala, de modo que a expanso espacial que os corpos tomavam ainda possua esta
limitao espacial.
Embora j estivssemos ensaiando pelos andares da Ocupao Prestes Maia,
uma vez por semana ensaivamos nas salas de aula do departamento de artes cnicas da
USP, o CAC, e era l, nesse espao seguro, que realizvamos a pesquisa corporal. No
espao universitrio, alm de ns, muitos outros coletivos estavam ali tambm, cada
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qual com suas pesquisas. Porm, com o desenvolvimento do processo, sentimos cada
vez mais necessidade de abraar o espao alternativo de uma vez por todas, e abandonar
o conforto das salas de ensaio. Quando passamos a realizar todo nosso trabalho corporal
no prdio de ocupao localizado na Prestes Maia, no bairro da Luz, conseguimos
desenhar com mais preciso vrios fatores , o principal deles sendo, talvez, a nossa
relao social com os moradores, j ento observadores, e, de certa forma, o pblico
prvio que teramos.
Na Prestes Maia, estvamos fora daquele espao confinado. Agora, todos nossos
exerccios e cenas j comeavam a criar relao com outros corpos, definindo conceitos
para a pea e afunilando a criao de nossos personagens. No trabalhamos com uma
trajetria rpida ou simples, mas sim um processo que criou um corpo nico, um corpo
do Coletivo de Galochas.
II. Piratas na Luz
Ao chegar s ruas da Luz, em 2012, retomamos nossos exerccios de
alongamento, aquecimento e quedas citados no incio desta fala. Continuamos, agora j
treinados e aprimorando tcnicas, nosso trabalho fsico na regio da Luz. Percebemos
que sempre estvamos lidando com lugares de passagem: mesmo no sendo locais
especificamente cnicos, (sem um palco ou um aviso prvio de espetculo aos
moradores e transeuntes do local, por exemplo) parece que a ao de nossos corpos
estabeleceram uma comunicao e um acordo: uma rua, que era somente um local de
travessias, se transformou em lugar de espetculo. Em dado horrio e dia, as crianas,
moradores e transeuntes viam assistir nossa apresentao. Repetitivamente.
Afirmo isto desde nossos ensaios e treinamentos, e no somente com nossa pea
finalizada. Ento comeamos a ensaiar, caamos no cho no meio da rua. O cho j no
era mais seguro, o espao no era seguro e, tambm, no conhecamos at ento
aquele pblico que ali se aglomerava.
Parece que nossos corpos cnicos ganham fora quando h platia. Eles se
esforam, se jogam mais alm, se transformam em mquinas quase indestrutveis.
Tnhamos pblico sempre. No sei bem ao certo se esse foi o caso de todos ns termos
nos adaptado a um cho to duro, concreto e desconfortvel. Mas sei que, sem dvida,
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foi um dos fatores que nos impulsionou. Platia gera compromisso. E o corpo cnico
sempre responde.
III. Relaes de Comportamento
Ao trabalhar com espaos alternativos, sair do edifcio teatral e interagir com os
fluxos da cidade, acabamos por ocupar locais j ocupados. Logo, ali j existem suas
prprias hierarquias, colocaes scias, funes... enfim. Uma sociedade local com sua
organizao. Ento, como poderamos nos dar ao direito de tamanha invaso? Isto se
apresentou com um novo olhar sobre a sociedade construda em um local. Quando
convidvamos e recebamos pblico, tnhamos ali o que podemos chamar de uma certa
elite em um local no comum. Mas parece que a relao hierrquica entre corpos se
invertia. Esse pblico convidado recebia, da populao local, falas e cenas antecipadas
s nossas aes, pois j haviam decorado nosso trajeto e manifestaes. Uma forma de
deixar claro que eram bem familiares com o que era apresentado. Assim, quem tem o
maior poder de visualizao e compreenso? Quem apreende o contedo do que dito?
Seria o convidado que descobre terras novas, ou aquele que ali mora e se identifica com
o que lhe apresentado?
Quedas no cho e ensaios abertos. Me impressiona como algo to absurdo
primeira vista possa virar algo tradicional, mesmo que sempre sendo quase o mesmo
procedimento, e que continuamente acompanhado. Obtivemos fs.
Percebemos que um mesmo discurso, inevitavelmente, modifica um espao e
suas relaes pessoais. Modifica seu tempo, sua percepo e valor visual. Me recordo
que, em um dado momento, uma moradora de uma das casas do ambiente nos disse algo
assim: No deixem de apresentar o trabalho de vocs, mesmo sem pblico, porque ns
assistimos da janela. Coisas como esta nos propulsionam, incentivam e locomovem a
continuar nosso trabalho e pesquisa.
Deixamos na mo do outro possveis crticas, ganhos ou perdas do que
apresentamos. Afinal, fazemos teatro. Sem relaes scias, no h comunicao
tampouco manifestaes artsticas. Queremos trocas e comunicaes. Creio que
conseguimos.
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A criao da voz do ator no espao pblico:
Origem no corpo, projeo no espao
Gabriel Hernandes
I. Introduo
Esse relatrio tem como objetivo fazer um registro do processo de treinamento
de voz com os atores do Coletivo de Galochas para a apresentao da pea Piratas de
Galochas na Luz, encenada nos espaos entre a Praa Jlio Mesquita e Rua Dino Bueno.
Relatarei alguns aspectos que chamaram a minha ateno nesse processo que fiz parte
como ator e treinador de voz.
Aps pesquisas, em vo, atrs de alguma bibliografia ou registro que me
ajudasse a criar um treinamento de voz para teatro em espao pblico da cidade de So
Paulo, resolvi experimentar uma metodologia prpria que levaria em considerao a
minha experincia pessoal de voz como ator, exerccios aprendidos no curso de Artes
Cnicas e auxlio do Prof. Zebba Dal Farra (CAC/ECA/USP). Iniciei essa metodologia
com a idia de que deveramos estudar a criao da voz individual e dividi esse trabalho
em dois eixos: corpo e espao. Estudaramos em cada um desses eixos onde e como
essa voz pode ser criada e, com base nesse conhecimento, como projet-la.
II. Prtica
1. Corpo
Cada corpo nico e a sua forma de desenvolvimento reflete o desenvolvimento
de uma vida, suas conseqncias e traumas psicolgicos, fsicos e genticos. Com esse
entendimento, escolhi trabalhar a origem da voz a partir da musculatura corporal em
busca de uma voz neutra e mais livre o possvel de traumas que possam silenci-la.
Primeiramente fizemos um reconhecimento das principais partes responsveis pela
criao da voz, partindo de uma postura neutra, verificando como a postura ssea e a
musculatura auxiliam na descoberta dessa postura. Depois fizemos estudo aprofundado
de cada parte do rosto, relaxando a musculatura responsvel pela emisso da fala nesse
local: toda a musculatura do rosto, interior e exterior das bochechas, lngua, palato,
assoalho e cu da boca, lbios. Dessa forma acabamos por criar um aquecimento que se
construiu a cada encontro com as novas descobertas de voz encontradas nesse
treinamento.
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Comeamos ento o estudo de uma respirao torxica para a criao da voz a
partir do corpo. Primeiro a percepo do movimento de costelas e diafragma nos
estgios separados da respirao, inspirao e expirao. Reconhecendo as costelas,
massageando-as e, com uma mo em cada conjunto de costelas experimentamos a
emisso do som das vogais na ordem da mais fechada para a mais aberta: I-E--A--O-
U. O foco deveria estar na relao entre o movimento de abertura e fechamento que a
musculatura intercostal prope ao inspirar/expirar e o ar que entra, naturalmente pela
diferena de presso no interior e exterior do corpo, e empurrado para fora, para assim
comear a emisso de uma voz. Em seguida treinamos a ativao do abdmen para a
sustentao da nova postura descoberta. Aps a experimentao individual propus que
se dividissem em duplas e realizassem o seguinte exerccio:
Exerccio n1
Vibrando no outro
I. Duplas: colocar mo e/ou ouvido da dupla durante a emisso do
som.
II. Sentir qual parte do corpo vibra mais em cada vogal.
III. Sentir qual parte do corpo vibra mais, de modo geral.
VI. Tentar descobrir o movimento do som atravs da vibrao no
corpo da dupla ao fazer a seqncia i-e--a--o-u.
V. Explorar as intensidades de emisso dessa(s) voga(l)(is).
VI. Comentar explorao e inverter funo das duplas.
Depois desse exerccio com o foco nas musculaturas intercostais para a
realizao da respirao torxica, orientei a todos os atores que ficassem atentos a esse
movimento daquele instante em diante, at o final do processo de ensaios, sempre que
fossem emitir a voz.
Tendo experimentado um processo de criao da voz a partir da estrutura do
corpo individual comeamos a estudar a projeo dessa voz: orientei que primeiro
estimulassem o bocejo algumas vezes, espreguiassem, e percebessem como a estrutura
do corpo se comporta nesse movimento. Depois, instru para que escolhessem uma fala
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do seu personagem e a emitissem em forma de bocejo, organizando a estrutura corporal
da mesma forma percebida anteriormente. Ento fizemos o seguinte exerccio coletivo:
Exerccio n 2
Telefone sem fio
I. Um ator emite um som de vogal continuamente a partir do
bocejo. Outro ator se distancia at que consiga ouvir
minimamente aquele som projetado pelo primeiro. O prximo
ator realiza o mesmo procedimento do ltimo at que todos os
atores ficassem espalhados pela Praa Jlio Prestes na distncia
mxima que as suas vozes poderiam alcanar o prximo.
II. O primeiro ator fala uma frase, criada aleatoriamente, a partir
do bocejo, para o prximo, que dever repeti-la para o ator
seguinte.
III. O ltimo ator deve repetir o que ouviu para o primeiro.
IV. O grupo se rene novamente e o primeiro diz o que ouviu do
ltimo ator e qual era a frase original.
A partir de observaes realizadas nesse exerccio percebi que o trabalho da
projeo deveria ser aprofundado na idia de projetar a voz para algum, ter uma pessoa
em determinada distncia para receb-la e estimular a sua projeo. Elaborei, ento o
prximo exerccio, em duplas:
Exerccio n 3
Imitando o som do outro
I. Duplas.
II. Escolher um texto do seu personagem, falar com as intenes,
mas com a voz natural do ator.
III. Esse ator vai abraar levemente (sem fazer peso, sem apertar
nada, apenas para estimular a movimentao muscular) o parceiro
de dupla pelas costas.
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IV. O parceiro, abraado, vai utilizar do corpo do outro para
respirar e falar o texto, com projeo. Quem est abraando deve
respirar junto e falar o texto ainda em voz natural. Repetir esse
procedimento quantas vezes for necessrio.
V. O texto volta para a boca original e deve ser experimentado
com o que foi sentido do corpo do outro.
VI. Sem mudar o mecanismo de emisso desse texto o
companheiro que est assistindo deve ficar no lugar no espao
onde o texto deve chegar (e aumentar essa distncia: perto, mdio
e longe; frente, lado e costas).
VII. Inverter as funes nas duplas.
Aps a prtica em duplas propus outro exerccio com o mesmo objetivo de
trabalho de projeo da voz, individualmente, na tentativa de que houvesse um
aprofundamento maior:
Exerccio n 4
Projetando
I. Encontrar, a partir dos comentrios do exerccio anterior, o
lugar do seu corpo onde a vibrao mais intensa.
II. Imaginar uma bolinha no meio de um fio, voc est segurando
essa bolinha pelas extremidades desse fio e a bolinha esse foco,
esse lugar que mais vibra na emisso da voz.
III. Movimentar a bolinha, dentro do corpo, para baixo e para
cima, emitindo o som.
IV. Movimentar a bolinha, externa ao corpo, para baixo e para
cima, emitindo o som.
Durante a conversa ps-treinamento de voz alguns atores relataram dificuldade
na realizao desse exerccio, entre eles as atrizes, as mesmas que vinham comentando
algumas dificuldades de projetar a voz. Para o prximo treinamento ento planejei
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trabalhar com perturbaes que tirassem o corpo do ator de um lugar confortvel na
hora de emitir a sua voz, pensando que deveramos tentar escapar a voz de suas tenses,
todas aquelas conseqncias e traumas responsveis pela formao do corpo individual.
Exerccio n 5
Jogo do Busnardo
Aes:
1. falar Busnardo vendar e caminhar falando texto
previamente escolhido.
2. desmaiar o grupo ergue o corpo do ator com este falando um
texto seu previamente escolhido.
3. separar-se do coro o ator deveria voltar ao coro, que criar
resistncia corporal para aceit-lo novamente, empurrando-o e
falando texto previamente escolhido.
* todas as falas sero realizadas com a dinmica da respirao
torxica.
I. O grupo todo deve caminhar junto e vagarosamente pelo espao
da Praa Jlio Prestes.
II. Cada um do coro deve estar falando uma seqncia de texto
previamente escolhida em intensidade mais baixa a possvel.
III. Ator e, conseqentemente, coro realizam uma das 3 aes
descritas acima.
Aps a realizao desse exerccio conversamos sobre o desenvolvimento da voz
junto ao desenvolvimento do corpo e o lugar de cada um no grupo. Percebemos que
muitas pessoas no eram ouvidas ou percebidas quando realizavam uma das trs aes e
algumas identificaes sobre voz dentro do coletivo, iniciativa, traumas de
desenvolvimento corporal e o lugar de onde sai a voz de cada um.
2. Espao
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O segundo eixo de criao de uma voz comeou com o reconhecimento do
espao. Nos reunimos na praa adjacente a Praa Jlio Prestes, de espao menor, menor
circulao de pessoas porm maior circulao de carros. Pedi aos atores que
caminhassem por todo espao da praa e sempre que ouvissem um som tentassem
segui-lo e imit-lo com a voz. Todos os sons eram vlidos: avies, trens chegando e
partindo da estao logo ao lado, sirenes de polcia, msica, voz e passos dos outros
atores. Deveriam seguir o som at no ouvi-lo mais, dentro dos limites daquela praa.
Para estudarmos a voz partindo do reconhecimento do espao seria necessrio tom-lo
em presena coletiva, a partir do trabalho individual adquirido por cada um no eixo
anterior (do corpo), para que pudssemos explorar a projeo da voz entre as
imprevistas estruturas fsicas e sonoras do espao pblico da cidade.
O prximo jogo tinha como objetivo a criao de um barco, necessrio para a
encenao da pea. Esse barco seria criado atravs dos sons suscitados por uma
embarcao pirata. Ento propus um exerccio anterior como preparatrio para em
seguida criarmos o barco da tripulao dos Piratas de Galochas.
Exerccio n 6
Super-carro-trem
I. Todo o grupo em coro colocando sua voz em fryin'.
II. Coletivamente ir acelerando o fryin' at o surgimento da voz.
III. medida que a intensidade da voz vai aumentando o coro
comea a caminhar e conforme essa voz vai ganhando corpo a
caminhada aumenta at a corrida.
IV. A intensidade da voz vai, aos poucos, diminuindo junto com
a velocidade de movimentao do coro.
V. Caminhar na direo linear reta sempre, virar apenas em face a
obstculos.
Exerccio n 7
Navio-coro
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1. Funes no barco:
Remar
Orientar: expandir, juntar, virar, parar
Frear
I. Em coro cada um deve assumir uma funo do barco.
II. Cada funo deve ter um som criado intuitivamente e
executado sempre que for realizada a devida funo
III. O navio-coro dever navegar pelo espao realizando as
funes descritas.
Comeamos a realizar prticas vocais que envolvessem elementos individuais
(voz partindo do seu corpo a partir da respirao torxica) e coletivos para superar os
obstculos do espao pblico (a escuta como principal ferramenta para essa superao).
Como auxiliar na projeo trabalhamos tambm com o conceito de palavra cantada, um
estudo do movimento da voz (prosdia) durante toda a extenso de uma fala, e que
auxiliaria tambm na emisso das falas com as vozes dos respectivos personagens em
vez da voz natural-cotidiana do ator. Pedi que os atores dessem suas falas cantando, em
forma de msica de livre improvisao meldica.
Exerccio n 8
Palavra cantada
I. Duplas.
II. Cada ator escolhe uma fala de seu personagem e a canta para a
sua dupla.
III. A dupla se distancia na extenso da largura de uma rua (cada
um em um lado da rua).
IV. O primeiro deve cantar a sua fala ao prximo que s vai
prosseguir com o exerccio se tiver escutado detalhadamente tudo
o que foi dito. Em caso negativo o primeiro deve repetir a fala
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cantada.
V. O prximo canta a sua fala para o primeiro da prxima dupla.
VI. A dinmica segue assim at todos terem participado.
Executamos esse exerccio com a inteno do bocejo, proporcionando algumas
descobertas e comentrios de evoluo por parte dos atores. Em seguida revisamos os
nossos aprendizados nos dois eixos de treinamento vocal para que aprendssemos a
cantar uma msica (criada por mim, tema dos Piratas de Galochas na Luz, em anexo).
Para isso separei o grupo em naipes de graves e agudos e criei linhas meldicas para
cada naipe. Integramos a execuo dessa msica tambm ao nosso aquecimento de voz
pr-ensaios e pr-apresentaes.
III. Concluso
possvel, sim, a projeo da voz no espao pblico. Aps trs meses de curto
processo de treinamento de voz acredito que deve ser dado o devido cuidado para no
se cair em uma tradicional rotina chata de aquecimento e treinamento de voz. Muitas
vezes a treinamos como cumprimento ritualstico de ensaio ou apresentao e, por conta
desse comodismo, no h aparente evoluo nas chamadas tcnicas de voz que
aprendemos, por parecerem sempre como mais do mesmo, uma repetio enfadonha.
No h outra maneira de treinar a voz seno partindo do treinamento do corpo,
exerccios bsicos de foco nos rgos responsveis pela emisso e pela explorao
consciente do lugar do corpo individual e do espao atravs do corpo coletivo, lugares
esses onde a voz criada.
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OS PIRATAS DO KUTTEL DADDEL DU Tom: C ' ' ' ' ' ' ' ' Intro: F C F G C C G F C Ns somos os piratas do Kuttel Daddel Du F C D7 G Ns vamos saqueando pelos mares da Luz C G F C Ns somos violentos, matamos sem razo F C F G C O servio completo, cabea, p e mo. C G F C Ns somos os piratas, piratas bem legais! F Ns vamos entrar C Sem nos importar D7 G O quanto dinheiro ns vamos levar F No fique nervoso C Se no for gostoso F G C Furamos seu olho e roubamos um bar!
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OS PIRATAS DO KUTTEL DADDEL DU 1 VOZ SOL D SOL D MI SOL SOL SOL L SOL L D SOL Ns so - mos os pi ra - tas do Ku - ttel Da - ddel Du SOL L D SI L SOL MI MI F R MI F SOL Ns va - mos sa - que - an - do pe - los ma - res da Luz SOL D SOL D MI SOL SOL SOL L SOL L D SOL Ns so - mos vi o - len - tos, ma - ta - mos sem ra - zo SOL L D SI L SOL MI MI F MI F R D O ser - vi - o com - ple - to, ca - be - a, p e mo. SOL D SOL D MI SOL SOL SOL L SOL L D SOL Ns so - mos os pi - ra - tas, pi - ra - tas bem le - gais! L L L L L Ns va - mos en - trar L SOL SOL SOL SOL Sem nos im - por - tar R R R R MI MI F SOL SOL SOL SOL O quan - to di - nhei - ro ns va - mos le - var L L L L L L No fi - que ner - vo - so L SOL SOL SOL SOL SOL Se no for gos - to - so R MI R MI F MI R F MI R D Fu - ra - mos seu o - lhoe rou - ba - mos um bar!
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2 VOZ SOL D D D D SI SI SI D D SI L SOL Ns so - mos os pi ra - tas do Ku - ttel Da - ddel Du SL MI MI MI MI R SI D R D SI D R Ns va - mos sa - que - an - do pe - los ma - res da Luz SOL D D D D SI SI SI D D SI L SOL Ns so - mos vi o - len - tos, ma - ta - mos sem ra - zo SL MI MI MI MI R SI SOL L F SI SOL D O ser - vi - o com - ple - to, ca - be - a, p e mo. SOL D D D D SI SI SI D D SI L SOL Ns so - mos os pi - ra - tas, pi - ra - tas bem le - gais! MI MI MI MI MI Ns va - mos en - trar MI R R R R Sem nos im - por - tar SI SI SI SI D D D R R R R O quan - to di - nhei - ro ns va - mos le - var MI MI MI MI MI MI No fi - que ner - vo - so MI R R R R R Se no for gos - to - so SOL L SOL L SI L SI D D D D Fu - ra - mos seu o - lhoe rou - ba - mos um bar!
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Operacionalizao da prtica: Iluminao e Sonoplastia
Cau Martins
Para entender como foi o processo de iluminao e sonoplastia do Piratas de
Galochas pelas ruas da Luz, na sua idealizao e prtica, temos que levar em conta o
espao com o qual estvamos lidando e a trajetria dos atores.
O primeiro passo foi pensar em como transportar ou prender as caixas de som,
microfones, o projetor e os refletores de iluminao e sonoplastia. Necessitvamos de
algo mvel, que facilitasse o transporte de todos os equipamentos. O segundo foi
elaborar como ligar esses equipamentos sem que necessitasse-mos puxar fios de energia
dos locais da regio. Essa foi uma de nossas maiores preocupaes.
I. Parte Tcnica
1 Estrutural
O Carinho industrial foi a soluo para o transporte de todos os equipamentos.
Incorporamos nele uma estrutura de madeira, onde nosso sistema eltrico era todo
ligado, alm disso, ele
continha uma barra que
suportava dois refletores,
que era de onde uma parte
da iluminao era disparada.
O carrinho tambm
acomodava a caixa de som,
de onde toda trilha sonora
era disparada. Alm de
acomodar os equipamentos,
tambm era de fundamental importncia ter espao no carrinho para guardar os diversos
acessrios de figurino e contra-regragem.
Uma bateria de caminho 12V, ligada a um inversor de corrente para 110V com
capacidade de 2000watts de potencia foi a nossa fonte de energia para suportar os
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equipamentos do espetculo.A bateria, assim como o inversor, tambm ficavam
alojados no carrinho, na base da estrutura de madeira descrita acima.
A caixa de som foi colocada estrategicamente no carrinho, para possibilitar a
manipulao das musicas, e para que ficasse direcionada para o publico.
2 Iluminao
Os refletores foram pensados em questo de economia de energia, j que
estvamos lidando com uma fonte no fixa de energia, que era a bateria de caminho.
Outra questo foi a de ter como modificar a iluminao de uma forma rpida, durante a
pea, pois no teramos tempo de trocar gelatinas. Para isso tnhamos 4 refletores Par
Led, e uma mesa controladora
DMX de Luz. Os quatro
refletores tinham que ficar
plugados um no outro, pois o
sinal lanado da mesa, e isso
nos exigia ter toda uma
movimentao certeira dos
refletores, de uma cena para a
outra. Tambm for utilizamos set-
ligths de lmpada incandescente e de lmpada Led.
Em alguns momentos nos utilizamos dos prdios e construes edificadas para
suporte de imagens, lanadas por um projetor de dentro do carrinho. O desafio descobrir
em quais suportes projetar sem que perdesse muita luz pelas interferncias da rua.
O conceito aplicado para as escolhas de luz era criar um contraste entre a cena e o
espao. Em diversos momentos os piratas eram iluminados pela luz natural do
ambiente, e os refletores eram utilizados para iluminar o prprio espao, que era assim
valorizado com as cores.
3 Sonoplastia
A Sonoplastia tem um papel muito importante para a pea, em diversos momentos
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de transio, planos de fundo para as cenas, trilha para brigas, alem de criar tenso em
momentos especficos da pea. As msicas utilizadas eram emitidas diretamente da
caixa de som ativa. Outra forma utilizada de musica e trilhas era o acordeo que uma
das atrizes tocava durante a pea. Alm disso, tnhamos cenas em que todos os atores
cantarolavam, e para isso foram necessrios diversos exerccios de canto. Alem desses
efeitos, tambm foram utilizados mega-fones para projetar a voz de cenas que no se
conseguiam ouvir.
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Teatro de Invaso e Ocupao:
Espao, suas determinaes e sua potncia criativa
Rafael Presto
No confundir a cidade com o discurso que a descreve,
ainda que haja uma relao entre eles
talo Calvino, As Cidade Invisveis
Este artigo tem o intuito de debater o processo de ressignificao do espao
pblico atravs da invaso e ocupao teatral do ambiente urbano, partindo da anlise
do processo de construo do espetculo Piratas de Galochas na Luz, ao empreendida
pelo Coletivo de Galochas no bairro da Luz.
O trabalho desde o incio era apoiado no conceito de invaso teatral 4. Essa
invaso parte da compreenso do espao como uma somatria de fluxos. Os fluxos
caracterizam um lugar, so aquilo que o tornam singular, diferente de tantos outros. So
as linhas que ditam as formas de uso social do espao e tambm o que define nossa
percepo cultural. So determinaes de naturezas diversas.
A primeira determinao que podemos pensar a do espao fsico tomado em
suas dimenses estruturais muros, caladas, bancos, paredes, portas, pilares, colunas.
A arquitetura de um lugar define muito dele.
Mas o que permanentemente anima esse espao fsico, o que define seus fluxos,
so as rotinas de uso que as pessoas estabelecem nele. So elas que demarcam uma
espcie de lgica do espao, responsvel pela forma como apreendemos o territrio da
urbe em nosso dia-a-dia.
Existe um projeto por detrs do espao, herdamos suas caractersticas nas rotinas
de uso que estabelecemos com ele. No entanto, no vivemos o projeto do mundo,
vivemos seu cotidiano concreto: ao mesmo tempo que o espao nos determina, o
transformamos o tempo todo, em um permanente processo de rupturas e suturas
dialticas de determinaes e criaes.
Esta a abordagem que toma o espao enquanto ambiente, uma organizao que
parte de um projeto mas necessariamente o transforma dando-lhe caractersticas
4 CARREIRA, Andr. Teatro de Invaso: redefinindo a ordem da cidade in LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Espao e Teatro: do edifcio teatral a cidade como palco. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
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singulares, fruto dos deslocamentos culturais e de comportamentos. O ambiente est em
constante transformao, sua dinmica interna imprime mudanas o tempo inteiro.
A invaso teatral praticada pelo Coletivo de Galochas parte de um jogo com os
fluxos de um determinado ambiente. Atravs da ao teatral o grupo busca alterar as
rotinas de uso especificas de um determinado espao, ressignificando-as. Assim, o
ambiente onde a ao teatral acontece no tomado como suporte, mas antes como
dramaturgia, potncia criativa. A ideia produzir, por meio de uma interveno cnica,
rupturas e reordenamentos temporrios nas rotinas que constituem o espao. Tomar o
ambiente enquanto objeto cultural, uma narrativa que define o que somos, para ento
interferir nele.
A invaso teatral , por princpio, uma ao poltica. Seu foco est em atritar os
fluxos do espao gerando
possibilidades inusitadas de
uso, possibilidades essas para
alm dos regimes de produo
daquele ambiente. Busca o
rompimento momentneo das
categorias; uma fala de
resistncia que ocupa o espao.
uma interferncia na lgica
da cidade, uma intromisso ao uso cotidiano do espao. (Andr Carreira, 2008).
Para praticar este teatro, preciso repensar o instrumental de trabalho do ator.
Este deve partir de um principio de porosidade e adaptabilidade absoluta. Enquanto joga
com determinado ambiente, o ator precisa estar aberto para perceber e incorporar em
sua ao teatral todos os elementos nicos que a frico com o espao oferece. Buscar
estes pontos de interseco passa a ser o ponto principal do trabalho do ator, que parte
de uma interpretao permanentemente criativa, fundamentalmente improvisacional.
A rotina de invases constantes faz com que a prtica teatral, pouco a pouco, se
introduza nos fluxos do ambiente, alterando as possibilidades de uso do espao de
maneira mais perene. A capacidade de interveno teatral se amplia, passa a figurar
como um dos elementos que constitui aquele cotidiano. Momento de maturao nas
relaes estruturais, simblicas e de convivncia entre prtica esttica e zona ocupada: o
que era invaso torna-se ocupao.
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Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo
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As invases teatrais realizadas servem de instrumento de investigao do espao.
Neste segundo momento, de ocupao, temos a reflexo do material cnico produzido
pelas invases teatrais. O intuito constituir, partindo de um repertrio de experincias
concretas, uma ao teatral mais complexa, mais profundamente entrelaada entre os
muitos fluxos que definem o ambiente. No trabalho do Coletivo de Galochas, a fronteira
entre esses dois momentos, invaso e ocupao, demarcada pela finalizao da
dramaturgia do espetculo, construda ao longo das muitas aes de tomada do espao.
O espetculo, portanto, torna-se indissocivel do espao que ocupa.
Antecedentes: Da Ocupao Prestes Maia as ruas da Luz
Esse conceito de invaso e ocupao teatral foi praticado pelo Coletivo de
Galochas, inicialmente, dentro de uma Ocupao de Moradia. Durante um ano, em
parceria com o MSTC Movimento Sem Teto do Centro, o grupo trabalhou dentro da
Ocupao Prestes Maia, maior ocupao vertical da Amrica Latina, casa retomada de
mais de 360 famlias. L o Coletivo participou de mutires de limpeza, assembleias,
atos pblicos, da ocupao de outro imvel. Os ensaios do espetculo transcorriam em
paralelo com toda essa movimentao, acontecendo cada dia em um andar diferente dos
dois prdios do imvel.
Todo esse processo desembocou na consolidao do Ncleo Cultural Prestes
Maia, atrelado finalizao do espetculo Piratas de Galochas. A pea, finalmente
ancorada no nono andar de um dos prdios, era uma comdia sobre piratas que
ocupavam uma ilha sem funo social. A construo da dramaturgia do espetculo
partiu do atrito do universo da pirataria clssica com o cotidiano da ocupao, cotidiano
experienciado pelo grupo atravs da convivncia cotidiana e de muitas invases teatrais.
Durante esse processo, por estar ao lado dos ocupantes, o grupo acompanhou
diversas intempries polticas externas, como as constantes ordens de despejo e os
discursos miditicos estigmatizantes. Mas o cotidiano de ensaios, a produo teatral
especfica l dentro, no era marcada por fortes atritos. A relao dos teatristas com o
espao era pacfica e acordada, tinham a segurana de estar em um ambiente privado
onde tudo partia de uma construo em conjunto com o Movimento de Moradia. Um
jogo cordial com os fluxos de uma organizao social. A dramaturgia do espetculo
buscava um atrito com o imaginrio e ideologia dos ocupantes, mas posicionada: o
Coletivo de Galochas, afinal, lutava politicamente ao lado dos moradores.
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Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo
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Dentro das lutas polticas do movimento de moradia, um projeto figura como um
dos grandes viles: o Projeto Nova Luz. Atualmente a Ocupao Mau, tambm tocada
pelo MSTC, corre risco de