Philip José Farmer - Os Amantes do Ano 3050

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OS AMANTES DO ANO 3050"Para alguns, Os Amantes do Ano 3050 representava a bestialidade da pior espcie; para outros, a idia das relaes sexuais entre o Homem e os extraterrestres na base do puro amor era o tipo de salto imaginativo de que a fico cientfica precisava." Brian Ash (Who's Who in Science Fiction) "Consideramos Os Amantes do Ano 3050 uma histria delicada e bela, e tambm uma obra de arte poderosa que a muitos chocar. Philip Jos Farmer a revelao do ano." "Uma abordagem revolucionria do tema. Uma love story projetada sobre o rico pano-de-fundo de um enredo sem precedentes e escrita com fascinante, absorvente tcnica literria." Sam Moskowitz (Seekers of Tomorrow) "A histria da fico cientfica possui trs marcos importantes. A Mquina do Tempo, de H. G. Wells, que nos abriu o mundo da quarta dimenso; A Cotovia do Espao, de E. E. Smith, que lanou o homem para fora do sistema solar; e Os Amantes do Ano 3050, de Philip Jos Farmer, que libertou autores e leitores do tabu do sexo na fico cientfica. De repente se descobriu que era possvel viajar no tempo e para qualquer parte do Universo. E que, por ser cientfica, essa fico no devia ignorar um dos fatos mais elementares da biologia, a reproduo. Do sexo para o amor, foi um passo. A lalitha de Farmer (Lilith?) no mais uma frgida herona seminua, perseguida por um absurdo monstro de olhos esbugalhados." Fausto Cunha (O Dia da Nuvem)

PHILIP JOS FARMER (o "Jos" foi adaptado do nome de sua me, Jos) nasceu em Indiana, EUA, em 1918. Ganhou seu primeiro Trofu Hugo em 1953, como o melhor escritor novo do ano, por sua noveleta, depois ampliada para romance, Os Amantes do Ano 3050, publicada no ano anterior na revista Starling Stories, aps algumas recusas pela audcia e o inusitado do tema. Com essa histria, o sexo fazia sua entrada ruidosa, e definitiva, na fico cientfica. Depois, ele conquistaria mais dois Hugos, em 1968 e 1971, feito raro na cronologia do gnero. O nome de Philip Jos Farmer permanece at hoje associado presena do sexo na fico, cientifica, no s devido a Os Amantes do Ano 305O como tambm a outras histrias brilhantes e ousadas, como Flesh (j traduzido no Brasil: Carne, ed. Sabi), Dare e as de Strange Relations, em que so abordados alguns assuntos/tabus como o incesto, o regresso ao tero materno e as relaes sexuais entre seres humanos e aliengenas. Na srie Riverworld, Farmer desenvolve outro tema controvertido, que a ressurreio dos corpos. Todos os mortais se reencontram nesse outro mundo. Um desses romances tambm lhe valeu um Hugo. Em Os Amantes do Ano 3050, que despertou acesas polmicas mas logo desencadeou uma avalancha de outras histrias de fico cientfica em que o sexo era tratado com uma liberdade crescente, Philip Jos Farmer nos fala de uma expedio ao planeta Ozagen, onde os homens encontram uma raa evoluda a partir do inseto. Na Terra, depois de uma guerra apocalptica, em que os grandes pases foram destrudos, predomina uma civilizao altamente hierarquizada e repressiva, de extremo rigor religioso. A misso do Gabriel em Ozagen eliminar os autctones para a posterior ocupao do planeta pelo homem. Um dos cientistas, o nexialista Hal Yarrow, encontra uma jovem surpreendentemente humana e sensual, filha do nico sobrevivente de uma expedio anterior; por ela se apaixona, vencendo seus escrpulos religiosos e libertando sua sexualidade reprimida. A partir da, os acontecimentos tomam um curso vertiginoso, com o entrechoque mortal entre as duas raas. Os amantes so envolvidos pelos conflitos entre religio e luxria, ambio e autodefesa. Por fim. Hal Yarrow descobrir que no planeta Ozagen h uma terceira raa.

Philip Jos Farmer

Os Amantes do Ano 3050Traduo de LOUISA IBAEZ

LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S. A.

Copyright 1961, 1979 by Philip Jos Farmer. Publicado mediante acordo com The Scott Meredith Literary Agency, Inc. 845 Third Avenue, New York. N. Y. 10022 - USA

Ttulo original: The Lovers

Reviso: Luiz Augusto Pires Mesquita

Impresso no Brasil Printed in Brazil.

1981

A Sam Mines, que viu mais fundo que os outros

1- Tenho que escapar! Deve haver um meio! Hal Yarrow ouviu algum murmurar essas palavras, que pareciam vir de uma grande distncia. Acordou sobressaltado, mas ento percebeu que era ele quem havia falado. Alm do mais, o que dissera ao emergir de seu sonho nada tinha em comum com o que sonhara. Suas palavras ainda sonolentas e o sonho constituam dois acontecimentos separados. O que quisera dizer com aquelas palavras murmuradas? E onde estava? Teria realmente viajado no tempo ou experimentara um sonho subjetivo? Tudo tinha sido to vvido, que custou a retornar quele nvel do mundo. Um olhar para o homem sentado a seu lado clareou-lhe as ideias. Encontrava-se no nibus-areo para Sigmen City, no ano de 550 a.S. (3050 d.C., pelo estilo antigo, recordou-lhe sua mente de erudito.) Ento, no estava viajando no tempo? Sonhando? Tampouco estava em um planeta estranho, a muitos anos-luz de distncia dali, muitos anos aps o momento presente. Nem estivera face a face com o glorioso Isaac Sigmen, o Precursor, real seja o seu nome. O homem ao lado fitou-o de esguelha. Era um indivduo esguio, de mas do rosto salientes, cabelos negros e lisos, e olhos castanhos com uma leve dobra monglica. Vestia o uniforme azul claro da classe dos engenheiros e, sobre o peito, esquerda, exibia o distintivo de alumnio, indicativo de que pertencia ao escalo superior. Certamente seria um engenheiro eletrnico, formado por uma das melhores escolas profissionais. Pigarreando para clarear a garganta, o homem disse, em americano: - Mil perdes, abba. Sei que no deveria dirigir-lhe a palavra sem permisso, mas falou algo comigo, quando acordou. E, j que se encontra nesta mesma cabina, equiparou-se temporariamente. De qualquer modo, estou ansioso por fazer-lhe uma pergunta. No em vo que sou chamado de Sam Intrometido. Riu nervosamente, antes de acrescentar: - No pude deixar de ouvir o que disse comissria, quando ela protestou sobre seu direito de sentar-se aqui. Terei ouvido bem, ou realmente lhe disse que era um goat? [Bode-N. do T.] Hal sorriu e disse: - No, no foi goat que falei. Eu lhe disse que sou um joat. Das iniciais de jack-ofall-trades[Homem-dos-sete-instrumentos-N.doT.]. Afinal de contas, o senhor no se enganou muito. No campo profissional, um joat tem, mais ou menos, o mesmo prestgio que um bode. Suspirou e pensou nas humilhaes sofridas, porque no quisera ser um estrito especialista. Olhou pela janela, no querendo encorajar o companheiro de assento conversa. Viu um claro brilhante, muito longe e alto, sem dvida alguma nave

espacial militar, entrando na atmosfera. As poucas naves civis faziam uma descida mais lenta e comedida. Daquela altitude de sessenta mil metros, ele olhou para baixo e contemplou a curvatura do continente norte-americano. Era uma rutilao intensa, com pequenas faixas escuras aqui e ali, mostrando, ocasionalmente, uma faixa maior. As ltimas seriam cordilheiras ou alguma superfcie lquida, sobre a qual o homem ainda no conseguira construir residncias ou indstrias. A grande cidade. Megalpolis. E pensar que, apenas trezentos anos antes, todo o continente possua uma mera populao de dois milhes de habitantes! Dentro de mais cinquenta, a menos que acontecesse algo catastrfico, como a guerra entre a Unio Haijaquiana e as Repblicas Israelenses, a populao da Amrica do Norte compreenderia quatorze, talvez quinze bilhes! A Reserva da Baa de Hudson para Animais Selvagens se tornara a nica rea onde, deliberadamente, era negada permisso de moradia. Ele abandonara a Reserva apenas quinze minutos antes, mas estava desgostoso, uma vez que to cedo no poderia voltar para l. Tornou a suspirar. A Reserva da Baa de Hudson para Animais Selvagens... rvores aos milhares, montanhas, extensos lagos azuis, aves, raposas, coelhos e at mesmo linces, segundo os guardas-florestais. Entretanto, eram to poucos, que em mais dez anos seriam acrescentados longa lista dos animais extintos. Na Reserva, Hal podia respirar, sentia-se sem peias e limitaes. Livre. Por vezes, sentia-se tambm solitrio e inquieto. Comeava a dominar tal sensao, quando terminou sua pesquisa entre os vinte habitantes da Reserva que falavam Francs. O homem a seu lado remexeu-se no assento, como se procurasse coragem para novamente falar com ele. Aps algumas tossidelas nervosas, disse finalmente: - Que Sigmen me ajude, espero no o ter ofendido. Entretanto, eu me perguntava se... Hal Yarrow sentiu-se ofendido, porque aquele homem presumia demais. Ento, recordou o que o Precursor havia dito. Todos os homens so irmos, embora alguns sejam mais favorecidos pelo pai do que outros. O homem a seu lado no tinha culpa, se a cabina de primeira classe ficara apinhada de gente com prioridades mais altas. Isso o forara a escolher entre tomar um nibus-areo mais tarde ou viajar com o escalo inferior. - shib comigo - disse Yarrow, em resposta. - Oh! - exclamou o homem, parecendo aliviado. - Ento, no se incomoda, se fao outra pergunta? No em vo que me chamam de Sam Intrometido, como lhe disse. Ha! Ha! - No, no me incomodo - disse Hal Yarrow. - Um joat, embora sendo um homem verstil, no torna todas as cincias o seu campo de trabalho. Ele se confina a uma disciplina em particular, embora procure conhecer o mximo possvel de todos os ramos especializados. Ao invs de restringir-me a apenas uma das muitas reas da lingustica, possuo um bom conhecimento geral dessa cincia. Isto me capacita a correlacionar o que est acontecendo em todos os seus campos, a pesquisar em uma especialidade coisas que possam interessar a um homem em outra especialidade, a quem comunico o que descobri. De outro modo, o especialista que no tem tempo suficiente para ler as centenas de publicaes abrangendo apenas seu campo, poderia perder algo que o auxiliasse. "Todos os estudos profissionais possuem seus prprios joats, fazendo este trabalho. Em realidade, sou um homem de muita sorte, por estar neste ramo de

cincia. Se, por exemplo, fosse um joat mdico, ficaria desorientado. Teria que trabalhar com uma equipe de joats e, ainda assim, no me tornaria um legtimo homem-dos-sete-instrumentos, um indivduo verstil. Ficaria restrito a uma nica rea da cincia mdica. To formidvel o nmero de publicaes em cada especialidade da medicina - seja eletrnica, fsica ou qualquer outra cincia que queira mencionar - que nenhum homem ou equipe poderia correlacionar toda a disciplina. Felizmente, sempre fui interessado pela lingustica e, de certa forma, beneficiado por isso. Afinal, at me sobra tempo para alguma pesquisa particular, que ser depois adicionada avalancha de documentos. "Uso computadores, evidentemente, mas mesmo o maior complexo de computadores complexos no passa de um sbio idiota. necessrio a mente humana - uma mente penetrante e perspicaz, digo sem me gabar - para perceber que certos itens encerram mais significado do que outros e para fazer uma associao que tenha sentido, entre eles e entre o todo. Ento, eu os indico aos especialistas, que passam a estud-los. Poder-se-ia dizer que um joat um correlacionador criativo. "Seja como for - acrescentou ele - tudo isto custa do meu tempo pessoal para dormir. Devo trabalhar doze horas dirias ou mais, para a glria e proveito do Sturch." Seu ltimo comentrio foi para assegurar-se de que o indivduo, caso fosse um Uzzita ou espio dos Uzzitas, no pudesse informar que ele iludia o Sturch. Hal refletiu que, sem dvida, aquele homem devia ser mesmo o que aparentava. Entretanto, era melhor no correr o risco. Uma luz vermelha brilhou na parede, acima da entrada da cabina, enquanto uma gravao dizia aos passageiros que apertassem os cintos. Dez segundos mais tarde, o veculo areo comeou a desacelerar; um minuto depois, mergulhava bruscamente e continuou caindo, velocidade de mil metros por minuto, segundo tinham informado a Hal. Agora que estavam mais prximos do solo, ele pde ver que Sigmen City (chamada Montreal, at dez anos antes, quando a capital da Unio Haijaquiana se transferira de Rek, na Islndia, para aquele lugar) no era um nico claro uniforme. Manchas escuras, provavelmente parques, podiam ser vistas aqui e ali, e a estreita fita negra e serpenteante das proximidades era o Rio do Profeta, outrora So Loureno. Os palis de Sigmen City erguiam-se a quinhentos metros no ar; cada um deles abrigava um mnimo de cem mil seres - e havia trezentos daquele tamanho, na rea da cidade propriamente dita. No centro da metrpole, havia uma praa, ocupada por rvores e edifcios pblicos, nenhum dos quais passava dos cinquenta pavimentos. Ali ficava a Universidade de Sigmen City, onde Hal Yarrow trabalhava. Sua moradia, contudo, situava-se no pali prximo, e foi para l que ele se encaminhou, pela faixa rolante, aps desembarcar do nibus-areo. Agora, Hal comeava a sentir intensamente algo que no percebia antes - conscientemente em todos os dias de viglia em sua vida. Acontecera somente aps sua viagem de pesquisa Reserva da Baa de Hudson para Animais Selvagens. Era a multido, a massa de humanidade densamente apinhada, odorfera, correndo e empurrando. Apertavam-se todos contra ele, ignorando sua presena, sentindo-o apenas como outro corpo, outro homem, algum sem rosto, um breve obstculo no caminho at seus objetivos. - Grande Sigmen! - murmurou Hal. - Eu devia estar cego, surdo e mudo, para no perceber isto! Eu os odeio!

De repente, sentiu-se arder de culpa e vergonha. Olhou para os rostos sua volta, como se pudessem captar seu dio, sua culpa, sua contrio, tudo escrito na fisionomia. Entretanto, eles nada viram e nem podiam. Para aquela gente, tratava-se apenas de outro homem, algum que exigia certo respeito, se o encontrassem pessoalmente, porque era um profissional, tinha a sua profisso. No obstante, ali na faixa rolante que carregava aquela mar de carne rua abaixo, era diferente. Ele no passava de outro monte de carne e ossos, cimentado por tecidos e acondicionado em pele. Era um deles e, em vista disso, nada. Estremecendo ante essa sbita revelao, Hal abandonou a faixa rolante. Queria afastar-se deles, sentindo que lhes devia uma desculpa. E, ao mesmo tempo, tinha a sensao de hav-los esbofeteado. A poucos passos de distncia da faixa, acima dele, ficava o lbio plstico do Pali N. 30, Residncia dos Congregados Universitrios. No se sentiu melhor no interior daquela boca, embora houvesse passado a sensao de que devia desculpar-se com o povo da faixa rolante. Ningum soubera como ficara to revoltado de repente. Ningum vira o rubor traioeiro de seu rosto. Mesmo isso era tolice, disse para si mesmo, mordendo o lbio. Aquelas pessoas da faixa rolante no poderiam ter adivinhado, de modo algum. No poderiam, a menos que, tambm eles, sentissem a mesma presso por todos os lados, o mesmo aborrecimento. E, se sentiam, quem eram eles para censur-lo? Estava agora entre os seus iguais, homens e mulheres trajando o uniforme plstico e frouxo de profissionais, axadrezado, com o p alado no peito esquerdo. A nica diferena entre homens e mulheres, era que elas usavam saias compridas at o cho, por cima das calas, redes nos cabelos e, algumas, tambm um vu. Este ltimo era um artigo algo incomum e que comeava a desaparecer, um costume mantido pelas mulheres mais velhas ou pelos jovens mais conservadores. Outrora honorvel, o vu agora marcava a mulher como antiquada, embora o vero-difusor o elogiasse de vez em quando e lamentasse a extino do hbito. Hal cumprimentou vrias pessoas por quem passou, sem parar para conversar. A distncia, avistou o Doutor Olvegssen, chefe de seu departamento. Fez uma pausa, para ver se Olvegssen queria falar com ele. Agiu dessa maneira apenas porque o outro era o nico homem com autoridade bastante para faz-lo arrepender-se de no ter apresentado seus respeitos. Olvegssen, no entanto, devia estar muito ocupado, porque acenou para Hal, disse "Aloha" e afastou-se. Olvegssen tinha idade: gostava de usar cumprimentos e frases que haviam sido populares em sua juventude. Yarrow respirou aliviado. Embora se tivesse julgado ansioso para discutir sua permanncia entre os nativos de fala francesa que encontrara na Reserva, descobria agora que no sentia vontade de trocar ideias com ningum. No agora. Amanh, talvez, mas agora, no. Hal Yarrow esperou perto da porta do elevador, enquanto o encarregado verificava os provveis passageiros, a fim de determinar quem tinha prioridade. Quando as portas do elevador se abriram, o encarregado entregou a chave de Hal, dizendo: - O senhor o primeiro, abba. - Exaltado seja Sigmen - disse Hal. Passou para dentro do elevador e ficou contra a parede, perto da porta, enquanto os outros iam sendo identificados e classificados. No teve que esperar muito, porque o encarregado j tinha anos naquele emprego e conhecia quase todos de vista. Mesmo assim, passava sempre por tal formalidade.

De vez em quando, um dos residentes era promovido ou baixava de categoria. Se o encarregado cometesse o erro de no reconhecer a nova mudana de status, teria que ser denunciado. Seus muitos anos naquele posto indicavam que conhecia bem o seu servio. Quarenta pessoas imprensaram-se no elevador. O encarregado fez soar suas castanholas e a porta se fechou. O elevador disparou para cima rapidamente, fazendo com que todos os joelhos se encurvassem; continuou acelerando, porque era um expresso. Parou automaticamente no trigsimo andar e as portas se abriram. Ningum saiu; percebendo isso, o mecanismo tico tornou a fech-las e continuaram para o alto. Houve mais trs paradas, sem que ningum sasse. Ento, metade da multido desembarcou. Hal respirou fundo, porque se as ruas e o andar trreo lhe tinham parecido apinhados, dentro do elevador estavam triturados. Dez pavimentos mais, uma viagem no mesmo silncio de antes, cada homem e mulher parecendo concentrados na voz do vero-difusor, que saa do alto-falante no teto. Ento, as portas se abriram no andar de Hal. Os corredores mediam 4,5m de largura e, quela hora do dia, havia espao suficiente. Hal ficou satisfeito, ao no ver ningum por ali. Caso se recusasse a trocar algumas palavras com os vizinhos, durante uns poucos minutos, passaria a ser olhado como estranho. Isso podia significar comentrios, e comentrios significavam problemas, no mnimo uma explicao ao gapt de seu andar. Seguir-se-ia uma conversa franca, uma preleo e somente o Precursor poderia dizer o que mais aconteceria. Hal caminhou uns cem metros. Parou, quando viu a porta de seu puka. Seu corao comeou a martelar de repente, as mos tremeram. Sentiu vontade de dar meia volta e retornar ao elevador. Aquilo era um comportamento irreal, disse para si mesmo. No devia sentir-se dessa maneira. Por outro lado, Mary ainda demoraria uns quinze minutos para chegar em casa. Empurrou a porta aberta (no havia fechaduras no nvel profissional, claro est) e entrou. As paredes comearam a iluminar-se e, em dez segundos, brilhavam intensamente. Ao mesmo tempo, o tridi ganhou vida, expandindo-se em tamanho natural na parede oposta, enquanto soavam as vozes dos atores. Hal sobressaltouse. - Grande Sigmen! - exclamou, em um murmrio. Caminhou depressa para l e desligou a parede. Sabia que Mary a deixara ligada, pronta para funcionar, assim que ele entrasse. Hal j lhe dissera muitas vezes o quanto aquilo o assustava, sendo difcil acreditar que ela pudesse ter esquecido. Ento, o fato significava que Mary agia assim de propsito, consciente ou inconscientemente. Dando de ombros, disse para si mesmo que, doravante, no tocaria mais no assunto. Se Mary pensasse que aquilo deixara de irrit-la, talvez esquecesse de deixar a parede ligada. Ento, novamente, ela poderia perguntar-se por que, de repente, Hal silenciara sobre seu suposto esquecimento. Poderia continuar esperando que, no fim de contas, ele ficasse irritado, perdesse o controle e comeasse a censur-la aos gritos. Desta forma ela ganharia um round, mais uma vez, pois se recusaria a revidar, encolerizando-o com seu silncio e expresso martirizada, o que o tornaria ainda mais furioso.

Em resultado, ela teria que cumprir o seu dever, por mais penoso que lhe parecesse. Terminado o ms, iria ao quarteiro do gapt, a fim de dar parte do sucedido. Isso significaria mais uma, entre as muitas cruzes negras na Taxa de Moralidade de Hal, e que ele s poderia anular atravs de enrgicos esforos. No entanto, caso se dedicasse a tais esforos - e estava ficando cansado de repeti-los isso representaria tempo perdido, roubado a qualquer outro - ousaria confess-lo, at para si mesmo? - projeto que valesse a pena. Quando protestava, dizendo a Mary que ela o impedia de progredir na profisso, de ganhar mais dinheiro, de mudar-se para um puka maior, e obrigado a ouvir sua voz lamentosa e cheia de censuras, perguntando se, realmente, Hal queria que ela cometesse um ato irreal. E se lhe pedisse para no dizer a verdade, para mentir, por omisso ou infrao? Bem, no podia fazer tal coisa, porque ambos ficariam em perigo, ele e ela. Nunca veriam a face gloriosa do Precursor e nunca... etc., etc. No. No protestaria. No entanto, Mary vivia perguntando por que ele no a amava. E se respondia que a amava, ela ficava insistindo na mesma tecla. Era ento a sua vez de interrog-la, perguntar se achava que ele mentia. Porque no mentia, mas se Mary o chamasse de mentiroso, era sua obrigao denunci-la, no quarteiro do gapt. Com a maior falta de lgica, ela comeava a chorar, alegando ter certeza de que Hal no a amava. Claro, porque se a amasse, realmente, nem sonharia em denunci-la ao gapt. Quando Hal protestava, acusando-a de julgar shib para si mesma poder denuncilo, era respondido com novas lgrimas. E haveria mais lgrimas ainda, se continuasse caindo nas armadilhas que ela lhe preparava. Tornando a praguejar, ele disse para si mesmo que no voltaria a cair. Cruzou a sala de cinco metros por trs e foi para a cozinha, o outro nico aposento, alm do impronuncivel. Naquele cmodo de trs metros por dois e meio, girou para baixo o fogo na parede, junto ao teto. Discou o cdigo apropriado em seu painel de instrumentos e retornou sala. Ali, tirou o casaco, amassou-o em uma bola e o enfiou debaixo de uma poltrona. Sabia que Mary podia ach-lo e brigar com ele pelo que fizera, mas no se importava. No momento, estava cansado para alcanar o teto e puxar um cabide para baixo. Um som sibilante e amortecido partiu da cozinha. O jantar estava pronto. Hal decidiu esquecer a correspondncia, at depois de ter comido. Foi ao impronuncivel, lavar o rosto e as mos. Murmurou automaticamente a prece da abluo: - Assim permita Sigmen, que eu possa lavar de mim a irrealidade, to facilmente como a gua remove estas impurezas! Aps assear-se, apertou o boto para o retrato de Sigmen, acima da pia. Durante um segundo, o rosto do Precursor olhou para ele: uma face comprida e magra, com uma farta cabeleira ruiva e brilhante, enormes orelhas salientes, sobrancelhas espessas e cor-de-palha, encontrando-se acima da ponte do nariz de narinas dilatadas, plidos olhos azuis, a comprida barba laranja-avermelhada e os lbios to finos como o gume de uma faca. Depois disso, o rosto comeou a esmaecer, at sumir de todo. Em mais um segundo, o Precursor desaparecera, substitudo por um espelho. Hal tinha permisso para olhar-se naquele espelho apenas o tempo suficiente para certificar-se de que o rosto estava limpo e pentear o cabelo. Passado o perodo permitido, nada o impedia de continuar a contemplar-se, mas ele nunca transgredia consigo mesmo. Fossem quais fossem as suas faltas, a vaidade no era uma delas.

Pelo menos, era sempre o que acreditava. No obstante, ele demorou um pouquinho mais. Pde notar os ombros largos de um homem alto, o rosto aparentando trinta anos. Os cabelos eram ruivos, como os do Precursor, porm algo mais escuros, quase cor-de-bronze. A testa era alta e ampla, as sobrancelhas castanho-escuras, os olhos bem afastados um do outro tinham uma tonalidade cinza-escuro, o nariz era reto e de tamanho normal, o lbio superior ligeiramente exagerado no comprimento, boca carnuda e o queixo algo proeminente. Hal tornou a pressionar o boto. O prateado do espelho escureceu, interrompido por brilhantes estrias. Depois tornou a escurecer, firmando o retrato de Sigmen. Por uma frao de segundo, Hal viu sua imagem superposta dele; em seguida, suas feies esmaeceram-se, foram absorvidas pelas do Precursor, o espelho desapareceu e o retrato permaneceu. Hal deixou o impronuncivel e foi para a cozinha. Verificou se a porta estava trancada (as portas da cozinha e do impronuncivel eram as nicas que tinham fechadura), porque no queria que Mary o surpreendesse enquanto comia. Abriu a porta do fogo, removeu a caixa aquecida, colocou-a sobre uma mesa que puxou da parede e empurrou o fogo de volta ao teto. Em seguida, abrindo a caixa, comeu sua refeio. Aps deixar o recipiente de plstico cair pela abertura do tuborecuperador, na parede, voltou ao impronuncivel e lavou as mos. Enquanto fazia isso, ouviu Mary chamar seu nome.

2Hal vacilou por um momento, antes de responder, embora sem saber por que fazia isso. Ento, disse: - Estou aqui, Mary. - Oh! Eu sabia que voc s poderia estar a, se houvesse chegado - disse ela. Onde mais estaria? Sem sorrir, ele caminhou para a sala. - Precisava ser to sarcstica, mesmo depois que fiquei ausente tanto tempo? Mary era uma mulher alta, mais baixa que Hal apenas meia cabea. Tinha cabelos de um louro plido, fortemente repuxados para trs, onde se prendiam em um grande coque na nuca. Os olhos eram azul-claros. De feies regulares e midas, desfiguradas pelos lbios demasiado finos. A blusa folgada de gola no pescoo e a saia rodada que ia at o cho evitavam que se pudesse verificar que tipo de corpo possua. O prprio Hal no sabia. - Eu no estava sendo sarcstica, Hal - respondeu ela. - Fui apenas realista, Onde mais poderia estar? Tudo quanto tinha a fazer era dizer "Sim". E voc sempre tem de estar l - ela apontou para a porta do impronuncivel quando chego em casa. Parece gastar todo o seu tempo l dentro ou em seus estudos. D a impresso de que procura fugir de mim. - Uma bela acolhida - disse ele. - Voc no me beijou - lembrou Mary. - Tem razo - replicou ele. - o meu dever e esqueci... - No devia ser um dever, mas uma alegria. - difcil sentir alegria, beijando lbios que criticam. Para sua surpresa, ao invs de responder com rispidez, Mary comeou a chorar. Imediatamente, ele ficou envergonhado. - Sinto muito - disse. - No obstante, deve admitir que no chegou em casa bemhumorada. Aproximou-se e tentou abra-la, mas Mary esquivou-se. Mesmo assim, beijou-a no canto da boca, quando ela virou a cabea. - No quero que faa isso porque tem pena de mim ou por ser sua obrigao replicou ela. - Quero que faa porque me ama. - Pois eu a amo - disse ele, pelo que lhe pareceu a milsima vez, desde que estavam casados. No entanto, at para si mesmo, soava pouco convincente. Ora, ele a amava - disse com seus botes. Tinha de amar. - Voc tem uma bela maneira de demonstrar seu amor - disse ela. - Esqueamos o que houve - falou Hal. - Comearemos tudo de novo. Assim... Comeou a beij-la, mas Mary recuou. - O que, com o D, h com voc? - exclamou ele. - J me deu seu beijo de cumprimento - replicou Mary. - No pode comear a ficar

sensual. Este no o lugar nem o momento! Ele ergueu as mos no ar. - Quem est ficando sensual? Eu queria agir como se voc tivesse acabado de surgir na porta. Beijar uma vez mais que o permitido ser pior do que discutir? Seu problema, Mary, aceitar tudo literalmente. No sabe que o prprio Precursor nunca exigiu que suas determinaes fossem seguidas ao p da letra? Ele mesmo disse que, por vezes, as circunstncias exigem modificaes! - Sem dvida, mas tambm disse que devemos evitar racionalismos, quando nos afastamos de sua lei Em primeiro lugar, temos que conferir a realidade de nosso comportamento com um gapt. - Oh, mas claro! - exclamou Hal. - Telefonarei para o nosso bondoso anjo-daguarda pro tempore, perguntando se correto eu tornar a beij-la! - a coisa mais acertada a fazer - disse ela. - Grande Sigmen! - gritou Hal. - No sei se devo rir ou chorar! S sei que no a entendo! Nunca entenderei! - Faa uma prece a Sigmen - disse ela. - Pea a ele para dar-lhe realidade. Ento, no haver mais dificuldades. - Faa voc a prece - replicou ele. - So precisos dois para uma briga. Voc to responsvel quanto eu. - Conversarei com voc mais tarde - disse Mary -, quando no estiver to zangado. Tenho que me lavar e comer. - No se preocupe comigo. Estarei ocupado at a hora de dormir. Preciso enfronharme bem nessa incumbncia de Sturch, antes de apresentar-me a Olvegssen. - Aposto como isso o deixar muito satisfeito - disse ela. - Eu gostaria de termos uma conversa agradvel. Afinal, voc ainda no disse uma palavra sobre sua viagem Reserva. Ele no respondeu. - No precisa fazer essa cara para mim! - exclamou Mary. Hal tirou da parede um retrato de Sigmen e o desdobrou em uma cadeira. Ento, girando da parede o projetor-ampliador, inseriu nele a carta e ajeitou os controles. Aps colocar os culos protetores e decodificadores, adaptou o fone ao ouvido e sentou-se na cadeira. Sorriu ao fazer isso. Mary devia ter visto o sorriso e, sem dvida, gostaria de saber o que o provocara, mas no fez perguntas. E, mesmo que perguntasse, no obteria resposta. Hal no podia contar-lhe que sentia certa satisfao em sentar-se no retrato do Precursor. Mary ficaria chocada ou fingiria estar, ele nunca tinha muita certeza de suas reaes. De qualquer modo, ela no possua qualquer senso de humor que valesse a pena considerar e, por outro lado, Hal jamais lhe diria algo que pudesse baixar sua T. M. Hal pressionou o boto que acionava o projetor. Recostou-se na cadeira, sem relaxar. Imediatamente, o filme amplificado projetou-se sobre a parede oposta a ele. No estando de culos, Mary nada podia ver, alm da parede vazia. Ao mesmo tempo, ele ouviu a voz gravada no filme. Antes de mais nada, como sempre acontecia em comunicados oficiais, o rosto do Precursor surgiu na parede. A voz disse: - Exaltado seja Isaac Sigmen, em quem reside a realidade e de quem flui toda a verdade! Que ele abenoe a ns, seus seguidores, e confunda seus inimigos, os discpulos do inshib Retrocursor! A voz fez uma pausa e houve uma interrupo na gravao, a fim de que o espectador fizesse sua prece particular. Em seguida, uma nica palavra - woggle -

projetou-se na parede, enquanto o locutor continuava: - Devotado crente Hal Yarrow: Aqui temos a primeira, em uma lista de palavras surgidas recentemente no vocabulrio dos habitantes de fala americana da Unio. Esta palavra - woggle - originou-se no Departamento da Polinsia, propagando-se rapidamente a todos os povos da fala americana nos Departamentos da Amrica do Norte, Austrlia, Japo e China. curioso que ainda no tenha surgido no Departamento da Amrica do Sul que, como certamente deve saber, contguo Amrica do Norte. Hal Yarrow sorriu, embora houvesse uma poca em que declaraes semelhantes o deixavam furioso. Quando perceberiam os remetentes de tais cartas que ele no era apenas um homem de instruo superior, mas tambm um erudito? Naquele caso em particular, at mesmo os quase iletrados das classes inferiores deviam saber a localizao da Amrica do Sul, visto que o Precursor mencionara esse continente inmeras vezes, em seus O Talmude Ocidental e O Mundo e o Tempo Reais. No obstante, era verdade que os professores dos no-profissionais podiam no se dar ao trabalho de indicar a localizao da Amrica do Sul a seus alunos, embora eles prprios a conhecessem. - Woggle - prosseguiu o locutor - foi relatada pela primeira vez na ilha de Taiti. Essa ilha fica situada no centro do Departamento Polinsio, sendo habitada por descendentes dos australianos que a colonizaram, aps a Guerra Apocalptica. Atualmente, usada como base militar espacial. "Aparentemente, a palavra woggle difundiu-se de l, embora seu uso se tenha restringido aos no-profissionais, em particular. A nica exceo diz respeito aos profissionais espaciais. Acreditamos que exista alguma relao entre o aparecimento da palavra e o fato - que ns saibamos - de terem sido os espaonautas os primeiros a us-la. "Os vero-difusores solicitaram permisso para us-la no ar, mas o pedido lhes foi negado, at estudos posteriores. "A palavra em si, at onde pode ser determinado, tem sido usada como adjetivo, substantivo e verbo. Seu significado basicamente depreciativo, aproximado - mas no equivalente - ao das palavras linguisticamente aceitveis fouled-up e jinxed. Em adio, compreende um significado de algo estranho, sobrenatural. Em uma palavra: irrealstico. "Pela presente, ficar incumbido de investigar a palavra woggle, segundo o Plano N. ST-LIN-476, a menos que tenha recebido alguma ordem com um nmero de prioridade mais alto. Em qualquer dos casos, dever responder a esta carta, no mais tarde que at 12 de Fertilidade, 550 a.S." Hal prosseguiu at o fim da correspondncia. Por sorte, as outras trs palavras tinham prioridade mais baixa. No teria que executar uma faanha impossvel: investigar as quatro ao mesmo tempo. De qualquer maneira, teria que partir pela manh, aps apresentar-se a Olvegssen. Em vista disso, nem precisava se dar ao trabalho de desfazer sua bagagem e ficar dias usando as mesmas roupas, talvez at sem tempo de mandar limp-las. No que ele se aborrecesse com a viagem iminente. Entretanto, estava cansado e gostaria de descansar, antes de partir novamente. Descansar, como? - perguntou-se, aps retirar os culos e olhar Mary. Ela acabava de levantar-se da cadeira, aps desligar o tridi. Agora, abaixava-se e puxava uma gaveta da parede. Hal viu que Mary apanhava as roupas de dormir de ambos. E, como j lhe acontecera em tantas outras noites, ele sentiu um frio no

estmago. Mary se virou e viu seu rosto. - O que h? - perguntou. - Nada. Ela cruzou o aposento (apenas alguns passos para atravessar o comprimento da sala, o que fez Hal recordar quantos passos podia dar, durante sua permanncia na Reserva). Mary estendeu-lhe um bolo amarrotado de peas em tecido fino, dizendo: - No creio que Olaf tenha mandado lav-las. De qualquer maneira, ele no tem culpa. O deionizador no est funcionando. Ele me deixou um bilhete, dizendo que chamara um tcnico, mas sabe como levam tempo consertando qualquer coisa. - Eu mesmo consertarei, quando tiver tempo - disse ele. Cheirou a roupa de dormir. - Grande Sigmen! H quanto tempo o deionizador est parado? - Desde que voc viajou - respondeu Mary. - Como esse homem transpira! - exclamou Hal. - Deve viver em estado de permanente terror. No de admirar! O velho Olvegssen tambm me amedronta. Mary enrubesceu. - Tenho rezado tanto para que voc deixe de praguejar! - suspirou. - Quando vai abandonar esse hbito irreal? No sabe que... ? - Claro que sei - disse ele, interrompendo-a bruscamente. - Sei que a cada vez que tomar o nome do Precursor em vo, adio ainda mais a Suspenso do Tempo. E da? Mary recuou, afastando-se dos gritos e dos lbios escarnecedores. - E da? - repetiu ela, incrdula. - Hal, voc est mesmo falando srio? - No, claro que no estou! - replicou ele, respirando pesadamente. - claro que no! Como poderia? Acontece que fico fora de mim, quando voc recorda meus erros continuamente. - O prprio Precursor disse que devemos sempre recordar a nossos irmos as suas irrealidades. - No sou seu irmo. Sou seu marido! - exclamou ele. - Mesmo havendo muitas vezes, como agora, quando eu no desejaria s-lo. Mary perdeu a expresso afetada e reprovadora. As lgrimas inundaram seus olhos, os lbios e o queixo tremeram. - Pelo amor de Sigmen - disse ele - no chore! - O que mais posso fazer - soluou ela - quando meu prprio marido, minha prprio carne e sangue, unido a mim pelo Real Sturch, despeja injrias sobre minha cabea? E nada fiz para merec-las! - Nada, exceto aproveitar todas as oportunidades para denunciar-me ao gapt disse ele. Virando-se, ele se afastou e puxou a cama, fazendo-a descer da parede. - Imagino que as roupas de cama tambm estejam com o fedor de Olaf e de sua gorda esposa - disse. Pegou um lenol, cheirou-o e soltou: - Augh! Puxou os outros lenis e os jogou ao cho. Suas roupas de dormir foram para o mesmo monte. - Para, o D com eles! Vou dormir com minhas roupas. E voc ainda se considera uma esposa! Por que no leva nossas roupas ao vizinho e arranja que sejam limpas l? - Voc sabe por qu - disse ela. - No temos dinheiro para pagar a eles pelo uso de sua mquina limpadora. Poderamos, se voc tivesse uma T.M. mais alta. - E como posso ter uma T.M. mais alta, se voc corre para o gapt, sempre que cometo a mais leve falta? - A culpa no minha! - replicou ela, indignada. Que espcie de Sigmenita seria

eu, se mentisse para o bondoso abba, dizendo que voc merecia uma T .M. melhor? Como viver em paz depois disso, sabendo que fra to irreal e que o Precursor estava me vendo? Sim, porque quando estou com o gapt, posso sentir os olhos invisveis de Isaac Sigmen ardendo dentro de mim, lendo todos os meus pensamentos. Eu no poderia! E voc devia envergonhar-se, por desejar que eu proceda assim! - V para o I! - soltou Hal. Dando-lhe as costas, caminhou para o impronuncivel. No interior do pequeno compartimento, Hal tirou a roupa e foi para o chuveiro, l permanecendo durante os trinta segundos de ducha a que tinha direito. Depois ficou diante do secador, at seu corpo secar. Em seguida, escovou os dentes vigorosamente, como se quisesse limp-las das terrveis palavras que proferira. Como de costume, comeava a envergonhar-se do que tinha dito. E, tambm, a sentir medo do que Mary diria ao gapt, do que ele prprio diria ao gapt e do que aconteceria em resultado. Talvez sua T.M. ficasse to desvalorizada, que acabaria sendo multado. Se tal acontecesse, seu oramento, j muito apertado, estouraria, deixando-o mais endividado do que nunca, alm de ser preterido por ocasio das prximas promoes. Pensando nisso, vestiu-se novamente e saiu do diminuto aposento. Mary roou nele, a caminho do impronuncivel. Ficou surpresa ao v-la vestido e, parando, disse: - Oh, est bem! Voc jogou tudo de dormir no. cho! Deve estar brincando, Hal! - No, no estou - replicou ele. - No vou dormir naquelas coisas impregnadas do suor de Olaf. - Por favor, Hal - insistiu Mary. - Eu gostaria que no usasse essa palavra. Sabe que no suporto vulgaridade. - Peo-lhe desculpas - disse ele. - Prefere que eu use um termo islands ou hebreu, com esse sentido? Em qualquer dos idiomas, a palavra significa a mesma vil excreo humana: suor! Mary levou as mos aos ouvidos, correu para o impronuncivel e bateu a porta atrs de si. Hal se deixou cair sobre o colcho fino e pousou o brao sobre os olhos, a fim de que a luz no batesse neles. Em cinco minutos, ouviu a porta se abrir (estava precisando ser azeitada, mas isso s ia acontecer depois que o oramento deles e de Olaf Marconi permitisse a compra do lubrificante). Afinal, se sua T.M. baixasse, os Marconi podiam solicitar a prpria mudana para outro apartamento. Se encontrassem nova residncia, ento outro casal, ainda mais questionvel (talvez um que acabasse de ser promovido de uma classe profissional inferior), viria morar ali. Oh, Sigmen!, pensou Hal. Por que no me satisfao com as coisas, da maneira como so? Por que no aceito a realidade inteiramente? Por que devo ter tanto do Retrocursor em mim? Diga, responda-me! Foi a voz de Mary que ouviu, quando se instalou na cama, a seu lado. - Hal, imagino que no v insistir em tal inshib! - Que inshib? - perguntou ele, embora sabendo a que ela se referia. - Dormir com suas roupas de rua. - Por que no? - Hal! - exclamou ela. - Sabe perfeitamente por que no! - Pois no sei - replicou ele. Afastou o brao de sobre os olhos e deparou com a escurido absoluta. Como era

prescrito, Mary apagara a luz, antes de ir para a cama. Se despido, o corpo dela cintilaria de alvura, claridade da lmpada ou da lua, pensou ele. No entanto, jamais o vira, nunca a vira nem mesmo semidespida... Nunca vi um corpo de mulher, exceto naquele quadro, que o homem em Berlim me mostrou. E eu, aps um olhar entre faminto e horrorizado, fugi o mais depressa que pude. Gostaria de saber se os Uzzitas o encontraram logo depois e lhe deram o tratamento costumeiro, o reservado aos homens que pervertem a realidade de maneira to hedionda. De maneira to hedionda... Sim, ainda podia ver o quadro, como se o tivesse diante dos olhos, agora, claridade total de Berlim. E podia ver o homem que tentava vend-lo, um jovem atraente, de cabelos louros e ombros largos, falando a variedade berlinense do islands. Carne alva cintilando... Mary ficara calada por vrios minutos, mas ele a ouvia respirando. Ento: - Hal, no acha que fez o bastante, desde que chegou em casa? Pretende fazer-me contar ainda mais ao gapt? - E o que mais eu fiz? - perguntou ele, enfurecido. No obstante, sorriu de leve, decidido a faz-la falar francamente, descobrir-se e pedir. No que Mary chegasse a tanto, mas ele a foraria a quase isso, ao mximo do que ela seria capaz. - exatamente isso. Voc no fez nada - murmurou ela. - Afinal, de que est falando? - Voc sabe. - No, no sei. - Na noite anterior sua viagem para a Reserva, disse que estava muito cansado. No uma desculpa real, mas nada contei ao gapt, porque voc tinha cumprido sua obrigao semanal. No entanto, ficou fora duas semanas, e agora... - Obrigao semanal! - exclamou ele, em voz alta, descansando sobre um cotovelo - Obrigao semanal! o que voc pensa disso? - Ora, Hal, o que mais devo pensar? - perguntou ela, surpresa. Com um grunhido, ele tornou a deitar-se e fitou o escuro. - De que adianta? falou. - Por que, por que deveramos? Estamos casados h nove anos; no temos filhos; nunca os teremos. At mesmo fiz uma petio de divrcio. Ento, por que devermos continuar representando, como um casal de robs no tridi? Mary prendeu a respirao e ele pde imaginar o horror expresso em seu rosto. Aps uma pausa que pareceu pesada com seu choque, Mary falou: - Temos que fazer porque tem que ser assim. Que alternativa nos resta? Certamente, voc no est sugerindo que... - No, no - respondeu ele rapidamente, pensando no que aconteceria se Mary fosse com aquilo ao gapt de ambos. Ainda era possvel suportar outras coisas, mas se houvesse a menor insinuao de Mary, quanto ao marido recusar-se a cumprir o mandamento especfico do Precursor... Hal nem queria pensar nisso. Afinal, agora tinha prestgio como professor universitrio, um puka com algum espao e uma possibilidade de progredir. Entretanto, no haveria nada disso se... - Claro que no - insistiu ele. - Sei que devemos tentar ter filhos, mesmo se formos destinados a no t-los. - Os mdicos disseram que nada h de errado fisicamente conosco - disse ela, talvez pela milsima vez, nos ltimos cinco anos. - Portanto, um de ns deve estar pensando contra a realidade, negando o verdadeiro futuro com seu corpo. Sei que

no posso ser eu. No possvel! - "A escura personalidade oculta demasiada brilhante" - disse Hal, citando O Talmude Ocidental. - "O Retrocursor que em ns existe faz-nos prevaricar, e nem o percebemos. " Nada havia que irritasse tanto Mary - ela prpria sempre fazendo citaes - como ouvir Hal fazer o mesmo. Agora, contudo, ao invs de iniciar uma ladainha, exclamou: - Hal, tenho medo! Percebe que, em mais um ano, nosso tempo ter expirado? Que os Uzzitas nos submetero a outro teste? E, se falharmos, se eles descobrirem que um de ns est negando o futuro a nossos filhos... Eles so bem claros quanto ao que aconteceria! A inseminao artificial, atravs de um doador, era adultrio. E Sigmen proibira a clonagem, porque era abominao. Pela primeira vez naquela noite, Hal identificou-se com ela. Conhecia o mesmo terror que fazia o corpo de Mary estremecer e sacudia a cama. Entretanto, no podia permitir que ela soubesse disso, porque ento desmoronaria por completo, como j acontecera tantas vezes no passado. Ento, ele passara toda a noite recompondo as peas, deixando-as firmes novamente. - No creio que haja tanto motivo para preocupar-se - disse. - Afinal, somos altamente respeitados e necessrios como profissionais. Eles no iriam desperdiar nossa instruo e capacidade, mandando-nos para o I. Penso que, se voc no engravidar, conseguiremos uma extenso, mais tempo... De qualquer modo, eles j abriram precedentes e tm autoridade. O prprio Precursor disse que cada caso deveria ser considerado por seu contexto, ao invs de julgado por uma regra absoluta. E ns... - E quantas vezes um caso julgado pelo contexto? perguntou ela, em voz estridente. - Quantas vezes? Sabemos perfeitamente que a regra absoluta sempre aplicada! - No sei de nada disso - replicou ele, conciliador. Como pode ser to ingnua? Se for acreditar em tudo quanto dizem os vero-dIfusores... Ouvi certas coisas sobre hierarquia, e sei que fatores como relacionamento de sangue, amizade, prestgio e poder - ou utilidade para o Sturch podem provocar um relaxamento das regras. Mary sentou-se na cama, muito rgida. - Est querendo me dizer que os Urielitas podem ser subornados? - perguntou, em voz chocada. - Eu nunca, jamais diria semelhante coisa a algum declarou ele - jurarei pela mo perdida de Sigmen, que nem mesmo fiz qualquer velada aluso sobre to vil irrealidade, Nada disso; quero apenas dizer que a utilidade para o Sturch, por vezes, resulta em clemncia ou outra oportunidade. - Voc conhece algum que possa ajudar-nos? - perguntou Mary. Hal sorriu na escurido. Mary podia ficar chocada ante suas palavras ditas sem rodeios, mas era prtica e no vacilaria em apelar para todos os meios, a fim de livr-los de seu problema. Houve silncio por alguns minutos. Ela respirava ansiosamente, como um animal acuado .. - Em verdade, alm de Olvegssen, no conheo ningum influente - disse Hal, por fim. - E ele esteve fazendo comentrios sobre minha T.M., embora elogie meu trabalho. - Est vendo? Essa T.M.! Se ao menos voc se esforasse um pouco, Hal... - E se ao menos voc no fosse to ansiosa em rebaixar-me... - disse ele, com

amargura. - Hal! No posso fazer outra coisa, se voc est sempre descambando para a irrealidade! No gosto do que tenho de fazer, mas a minha obrigao! Ainda agora, voc acabou de cometer mais uma falha, censurando o que preciso fazer. Mais uma marca negra... - Que voc ser forada a repetir ao gapt. Sim, j sei. No vamos voltar ao assunto, pela dcima milionsima vez. - Foi voc que o provocou - declarou ela, com honestidade. - Parece que no temos mesmo outra coisa para falar. Mary arquejou, depois disse: - Nem sempre foi assim conosco. - Nem sempre - concordou ele - Pelo menos, durante o primeiro ano de casamento. Depois disso, contudo... - E de quem foi a culpa? - perguntou ela. - A est uma boa pergunta, mas acho conveniente pararmos por aqui. O tema poderia tornar-se perigoso. - O que est querendo dizer? - No me interessa discuti-lo. Ele prprio ficou surpreso com suas palavras. O que quisera dizer com aquilo? Era difcil responder; no falara com o intelecto, mas com todo o seu ser. O Retrocursor que pulsava em seu ntimo teria posto aquelas palavras em sua boca? - Vamos dormir - disse. - O amanh modifica a face da realidade. - S depois - disse ela. - Depois de qu? - perguntou Hal, enfastiado. - No queira bancar o shib comigo - replicou Mary. Foi por causa disso que tudo comeou. Com voc querendo... fugir ao seu... dever. - Meu dever! - suspirou -Hal. - A coisa shib a fazer, Claro! - No fale assim - disse ela. - No quero que o faa apenas por achar que sua obrigao. Quero que seja porque me ama, porque assim lhe foi determinado. E tambm porque quer amar-me. - Foi-me determinado amar toda a humanidade disse Hal. - Entretanto, percebo que estou expressamente proibido de cumprir o meu dever com qualquer pessoa, exceto a minha realisticamente imposta esposa. Mary ficou to chocada, que no encontrou resposta e se virou de costas para ele. Hal, no entanto, sabendo que agia dessa maneira no s para punir a ambos, como porque assim devia ser feito, tomou a iniciativa, A partir de ento, aps ter feito a declarao formal de introduo, tudo ficou ritualizado. Desta vez vez, ao contrrio de outras no passado, tudo foi executado passo a passo, palavras e atos, segundo o especificado pelo Precursor, em O Talmude Ocidental. Exceto por um detalhe: ele continuava usando suas roupas de dia. Hal decidira que isso podia ser relevado, pois o que importava era o esprito, no a letra. E que diferena fazia, se usasse o grosso traje de rua ou as volumosas roupas de dormir? Quanto a Mary, se percebeu alguma coisa, nada comentou a respeito.

3Mais tarde, deitado de costas e fitando a escurido, Hal meditou, como fizera tantas vezes antes. O que seria aquilo que varava seu abdmen como uma larga e espessa lmina de ao, parecendo decepar-lhe o torso dos quadris? Ficara excitado no comeo. Sabia disso porque seu corao batera depressa, a respirao saa em haustos. No entanto, ele no conseguia - realmente - sentir alguma coisa. E, chegado o momento - aquele que o Precursor denominara o tempo de gerao da potencialidade, a plenitude e execuo da realidade - Hal experimentara apenas uma reao mecnica. Seu corpo cumprira a funo que lhe fra prescrita, mas ele nada sentira daquele xtase, to vividamente descrito pelo Precursor. Era traspassado por uma lmina de ao, uma zona de insensibilidade, uma rea de nervos congelados. Nada sentia, exceto os espasmos de seu corpo, como se uma agulha eltrica lhe estimulasse os nervos, ao mesmo tempo em que os entorpecia. Disse para si mesmo que aquilo estava errado. Estaria mesmo? No seria algum engano do Precursor? Afinal de contas, o Precursor era um homem superior ao restante da humanidade. Talvez fosse um ser bem dotado o suficiente para experimentar to refinadas reaes, sem perceber que os demais no partilhavam de sua mesma sorte. Oh, no, no podia ser assim, caso fosse verdade - e perecesse a idia de ser o contrrio - que o Precursor podia ver na mente de todo homem. Sendo assim, ele, Hal, fracassara. Apenas ele, entre todos os discpulos do Real Sturch. Seria mesmo apenas ele? Hal jamais discutira seus sentimentos com quem quer que fosse. Fazer tal coisa era - seno inconcebvel - impossvel. Obsceno, irrealista. Seus professores nunca lhe tinham dito para no discutir o assunto; no precisavam dizer, porque Hal sabia, sem que lhe dissessem. No obstante, o Precursor descrevera quais deveriam ser suas reaes. Teria sido uma descrio total? Quando Hal considerava essa parte do Talmude Ocidental, que era lida apenas por noivos e casados, percebia que o Precursor, em realidade, no descrevera um estado fsico. Usara uma linguagem potica (Hal conhecia o significado da poesia porque, como linguista, tinha acesso a vrias obras literrias, proibidas a outros), metafrica, at mesmo metafsica. Expressara-se em termos que, analisados, demonstravam pouca relao com a realidade. Perdoe-me, Precursor, pensou Hal. Eu quis dizer que suas palavras no eram uma descrio cientfica do verdadeiro processo eletroqumico do sistema nervoso humano. Evidentemente, aplicam-se diretamente a um nvel superior, porque a realidade compreende muitos planos de fenmenos. Sub-realista, realista, pseudo-realista, surrealista, superrealista, retrorrealista. No o momento para teologia, pensou. No quero deixar minha mente turbilhonando de novo esta noite, como em muitas outras noites, s voltas com o insolvel, o irrespondvel. O Precursor sabia. Eu no posso.

Tudo quanto sabia agora que no estava em fase com as normas mundiais; no estivera e, possivelmente, nunca estaria. Oscilava borda da irrealidade, em todos os seus momentos de viglia. E aquilo no era bom - o Retrocursor o capturaria, ele cairia nas mos malignas do irmo do Precursor... Hal Yarrow despertou repentinamente, quando o toque matinal ecoou pelo apartamento. Ficou um instante confuso, o mundo de seu sonho misturando-se ao mundo desperto. Deixou a cama em seguida e, de p, olhou para Mary. Como sempre, ela no acordava ao primeiro toque, apesar de to alto, porque no lhe dizia respeito. Em mais quinze minutos, soaria a segunda clarinada no tridi, o toque para as mulheres. A essa altura, ele j deveria ter-se lavado, feito a barba, vestido e encaminhado para suas obrigaes. Mary teria quinze minutos para aprontar-se e sair; dez minutos mais tarde, os Olaf Marconi chegariam de seu trabalho noturno, prontos para dormir e permanecer naquele pequeno mundo, at o retorno dos Yarrow. Hal foi mais rpido que de costume, porque continuava com suas roupas de dia. Aliviou-se, lavou o rosto e as mos, esfregou creme sobre o comeo da barba, livrouse dos fios que apareciam (algum dia, se chegasse a subir de nvel na hierarquia, usaria barba, como Sigmen), penteou o cabelo e saiu do impronuncivel. Aps guardar na sacola de viagem as cartas recebidas na noite anterior, caminhou para a porta. Ento, levado por uma sensao inesperada e inanalisvel, deu meia volta, chegou junto da cama e inclinou-se para beijar Mary. Ela no acordou e, por um segundo, Hal lamentou isso, porque ficara sem saber o que ele fizera. Aquele no era um ato de dever, de imposio. Brotara de profundezas escuras, onde tambm devia haver luz. Por que agira dessa maneira? Na vspera, noite, pensara que a odiava. Agora... Como ele, Mary era compelida a fazer o que devia ser feito. Isso, naturalmente, no era desculpa. Cada ser tinha a responsabilidade do prprio destino; se algo bom ou ruim lhe acontecesse, seria o nico responsvel por isso. Hal corrigiu seu pensamento. Ele e Mary eram os geradores da prpria infelicidade, mas no conscientemente. O ego brilhante de ambos no desejava a runa de seu amor; era o ego escuro - o horrvel Retrocursor, agachado nas ltimas profundezas de cada um - que causava aquilo. Ao parar junto porta, viu que Mary abria os olhos e o fitava, de maneira um tanto confusa. Hal saiu apressadamente para o corredor, ao invs de tornar a beijla. Sentia-se em pnico, temendo que ela o chamasse e se repetisse toda a terrvel, enervante cena. S mais tarde, recordou que no houvera oportunidade de comunicar-lhe que estava de partida para o Taiti, nessa mesma manh. Enfim, o esquecimento poupara nova cena. quela altura, o corredor estava apinhado de homens, rumando para o trabalho. Como Hal, muito deles envergavam o traje xadrez dos profissionais. Outros usavam indumentria verde e escarlate, dos professores universitrios. Naturalmente, Hal dirigiu-se a todos. - Bom futuro para voc, Ericssen! - Que Sigmen lhe sorria, Yarrow! - Teve um sonho brilhante, Chang? - Shib, Yarrow! Direto da prpria verdade! - Shalom, Kazimuru. - Que Sigmen lhe sorria, Yarrow! Hal se postou perto das portas do elevador. Em vista da multido, havia um

encarregado de servios naquele andar, durante a manh, organizando a prioridade na descida. Uma vez fora da torre, Hal foi passando por uma srie de faixas rolantes, de velocidade crescente, at chegar expressa, a faixa rolante central. Situou-se ali, imprensado pelos corpos de homens e mulheres, porm vontade, porque todos pertenciam sua classe. Aps uma viagem de dez minutos, recomeou a abrir passagem por entre o povo, passando de uma para outra faixa rolante. Cinco minutos depois, chegava calada e encaminhou-se para a cavernosa entrada do Pali N 16, a Universidade de Sigmen City. No interior, no precisou esperar muito tempo, at que o encarregado lhe permitisse a entrada no elevador. O expresso o levou direto ao trigsimo nvel. Em geral, quando saa do elevador, Hal seguia imediatamente para seu escritrio, a fim de fazer sua primeira palestra do dia, um curso de sub-graduao, transmitido pelo tridi. Nesse dia, contudo, ele rumou para o gabinete do deo. A caminho, ansioso por um cigarro e sabendo que no poderia fumar em presena de Olvegssen, parou para acender um e aspirar a fumaa deliciosa do ginseng. Estava parado junto porta de uma classe de lingustica elementar, de onde podia ouvir trechos da preleo de Keoni Jerahmeel Rasmussen. - "Originariamente, puka e pali foram palavras dos primitivos habitantes polinsios, do arquiplago de Hava. As pessoas de fala inglesa que, mais tarde, colonizaram as ilhas, adotaram muitos termos do idioma havaiano; puka, com o significado de buraco, tnel ou caverna, e pali, significando penhasco, contavam-se entre os mais populares. "Quando os havaiano-americanos repovoaram a Amrica do Norte aps a Guerra Apocalptica, esses dois termos continuaram sendo usados em seu sentido original. Entretanto, h cerca de cinquenta anos, ambas as palavras mudaram de significado. puka passou a ser aplicado aos pequenos apartamentos destinados s classes inferiores, evidentemente em sentido depreciativo. Mais tarde, o termo abrangeu as classes superiores. Ainda assim, quem tem hierarquia reside em um apartamento; os pertencentes a toda a classe abaixo da hierarquia, mora em um puka. "Pali, com o significado de penhasco, foi aplicado aos arranha-cus ou a qualquer edifcio de vulto. Ao contrrio de puka, esse termo retm, ainda, seu sentido original." Hal terminou o cigarro, deixou-o cair em um cinzeiro e desceu o saguo, a caminho do gabinete do deo. L, ele encontrou o Doutor Bob Kafziel Olvegssen, sentado atrs de sua mesa de trabalho. Sendo seu superior, naturalmente foi Olvegssen quem falou primeiro. Tinha um leve sotaque irlands. - Aloha, Yarrow. O que anda fazendo por aqui? - Shalom, abba. Peo-lhe que me desculpe por ter vindo aqui sem ser convidado. Entretanto, eu precisava resolver vrios assuntos, antes de partir. Olvegssen, um homem de setenta anos e cabelos grisalhos, franziu as sobrancelhas. - Partir? Hal tirou a carta de sua pasta e a estendeu a Olvegssen. - Naturalmente, o senhor poder process-la mais tarde. De qualquer modo, posso poupar-lhe tempo, informando que se trata de outra ordem para uma investigao lingustica. - Voc mal acabou de voltar de uma! - exclamou 0lvegssen. - Como eles podem esperar que eu dirija esta universidade com eficincia e para a glria do Sturch, se requisitam meu pessoal continuamente para empreendimentos inteis e disparatados

atrs de palavras? - Sem dvida, no est querendo criticar os Urielitas - disse Hal, com um leve toque de malcia. No gostava daquele superior, embora procurasse superar esse pensamento irrealista. - Harrump! claro que no! Eu seria incapaz disso e sinto-me ofendido com sua insinuao de que pudesse ser! - Peo perdo, abba - disse Hal -, mas eu nem sonharia em insinuar semelhante coisa. - Quando parte? - perguntou Olvegssen. - No primeiro nibus-areo que, segundo penso, decola dentro de uma hora. - E voltar? - S Sigmen sabe. Quando terminar minha investigao e o relatrio. - Venha ver-me imediatamente, assim que chegar. - Peo-lhe perdo novamente, mas ser impossvel. Ento, minha T. M. ter vencido h muito e serei compelido a reorganiz-la, antes de fazer qualquer coisa mais. Isso pode tomar-me horas. Olvegssen deu de ombros e disse: - Sim, sua T. M... No se saiu muito bem com a ltima, Yarrow. Espero que a prxima indique algum progresso. Do contrrio... De repente, H!al sentiu todo o corpo. ardente e suas pernas estremeceram. - Sim, abba? Sua prpria voz soava fraca e distante. Olvegssen fez uma torre com as mos e olhou para Hal por cima dela. - Embora lamentando imensamente, serei forado a agir. No posso ter um homem com T. M. baixa, entre o meu pessoal. Receio que... Houve um longo silncio. Hal sentiu o suor porejando de suas axilas e gotculas brotando na testa e lbio superior. Sabia que Olvegssen o deixava em suspenso, deliberadamente, mas no queria fazer perguntas. No daria quele presunoso e grisalho gimel a satisfao de ouvi-lo falar. Entretanto, no ousava parecer desinteressado e, se no dissesse qualquer coisa, sem dvida o outro apenas sorriria e o despediria. - O que, abba ? - perguntou finalmente, procurando ocultar o receio em sua voz. - Receio muito que nem mesmo posso permitir-me a benevolncia de apenas rebaix-la para o ensino na escola secundria. Eu gostaria de ser menos severo mas, em seu caso, a generosidade s serviria para acentuar a irrealidade. uma possibilidade que no posso enfrentar. No... Hal amaldioou-se, por no conseguir controlar sua tremedeira. - Sim, abba? - Infelizmente, eu teria que pedir aos Uzzitas que cuidassem de seu caso. - No! - exclamou Hal, muito alto. - Sim - disse Olvegssen, ainda falando por trs da torre que suas mos formavam. - Acredite, lamentarei muito ter que agir assim, mas seria inshib fazer o contrrio. Somente procurando a ajuda deles, poderei sonhar corretamente. Desfez a torre das mos e girou em sua poltrona, virando-se de perfil para Hal. - De qualquer modo, no existem motivos para que eu tome essas providncias, existem? Afinal, voc, apenas voc, o responsvel pelo que lhe acontece. O nico a ser censurado. - Quer dizer que o Precursor revelou - disse Hal. Farei o possvel para que nada tenha a lamentar, abba. Agirei de modo a que meu gapt no tenha motivos para darme uma T. M. baixa.

- timo - disse Olvegssen, como se no acreditasse no que ouvia. - No vou retlo enquanto examino sua carta, porque devo receber uma duplicata, na correspondncia de hoje. Aloha, meu filho, e bons sonhos! - Que possa ver o que real, abba - despediu-se Hal. Dando meia volta, saiu do gabinete. Dominado pelo terror, mal sabia o que fazia. Seguiu para o porto automaticamente e, uma vez l, passou pelo processo de obter prioridade para sua viagem. Sua mente ainda se recusava a funcionar com clareza, quando embarcou no nibus-areo. Meia hora mais tarde, descia no porto de Los Angeles e se dirigiu seo de passagens, a fim de confirmar a sua vaga, no nibus-areo de partida para Taiti. Estava na fila das passagens, quando sentiu uma batidinha no ombro. Assustado, virou-se, a fim de pedir desculpas pessoa atrs dele. Ento, seu corao disparou, como se fosse demolir o peito. O homem era um indivduo atarracado, de ombros largas e ventre volumoso, trajando um uniforme folgado e negrssimo Usava um chapu alto e cnico, brilhantemente negro, de aba estreita. Em seu peito, havia a figura prateada do anjo Uzza. O oficial inclinou-se para diante, a fim de examinar os nmeros hebraicos, na borda inferior do p alado, ao peito de Hal. Em seguida, consultou um papel que tinha na mo. - Voc Hal Yarrow, shib - disse o Uzzita. - Acompanhe-me. Mais tarde, Hal refletiu que sua falta de terror era um dos aspectos mais estranhos da situao. Sentira medo, evidentemente, mas sepultara a sensao em um recanto longnquo da mente, cuja maior parte passara a considerar o assunto, estudando uma maneira de livrar-se daquilo. A incerteza, a confuso que o haviam dominado durante a entrevista com Olvegssen e perdurado por tanto tempo tinham-se dissolvido. Ele ficara insensvel, com a mente trabalhando depressa; o mundo se tornara claro e difcil. Talvez fosse porque a ameaa de Olvegssen ento ficara vaga e distante, sendo imediato e, sem dvida perigoso, o fato de ser tomado em custdia pelos Uzzitas. Foi conduzido a um pequeno veiculo, em uma faixa ao lado do prdio das passagens. Recebeu ordem de sentar-se. O Uzzita em sua companhia entrou tambm e regulou os controles para o rumo desejado. O veculo ergueu-se verticalmente a cerca de quinhentos metros e ento disparou para seu destino, com as sirenes abertas. Um tanto divertido, Hal no pde deixar de pensar que os tiras no haviam mudado, nos ltimos mil anos. Mesmo que a situao no fosse um caso de emergncia, os guardies da lei tinham que fazer barulho. Em dois minutos, o veculo chegou ao porto de um edifcio, no vigsimo nvel. Ali, o Uzzita que no pronunciara uma palavra, desde a conversa inicial, fez um gesto para que ele sasse. Hal tampouco dissera alguma coisa, sabendo que seria intil. Os dois subiram por uma rampa e depois enveredaram por inmeros corredores, cheios de gente apressada. Hal tentou orientar-se, para o caso de poder escapar dali. Sabia que voar seria ridculo, que nunca levaria a melhor em uma fuga de tal espcie. Por outro lado, pensou que ainda no havia motivo para imaginar-se em uma situao em que fugir seria a nica maneira de escapar. Pelo menos, assim esperava. O Uzzita finalmente parou diante de uma porta de gabinete, em cuja superfcie no havia qualquer letreiro. Apontou o polegar para ela e Hal caminhou sua frente. Entraram em uma ante-sala, onde havia uma secretria, atrs de uma mesa. - Anjo Patterson apresentando-se - disse o Uzzita. - Trouxe Hal Yarrow, Profissional LIN-56327.

A secretria transmitiu a informao atravs de um microfone e, da parede, brotou uma voz, dizendo que os dois entrassem. Apertando um boto, a secretria fez a porta deslizar. Hal entrou, ainda frente do Uzzita. Viu-se em uma sala, ampla, a julgar por seus padres. Maior mesmo que sua sala de aulas ou todo o seu puka em Sigmen City. Em seu extremo oposto havia uma mesa imensa, cujo topo, encurvado, assemelhava-se a um crescente ou dois chifres pontiagudos. Atrs dela sentava-se um homem e, ao v-lo, a calma compostura de Hal desmoronou. Esperava encontrar um gapt de alto nvel, um homem vestido de negro, usando um chapu cnico. Aquele homem, no entanto, no era um Uzzita. Trajava flutuantes mantos em cor prpura, com um capuz sobre a cabea. Em seu peito havia um grande e dourado L hebraico, o lamedh. E usava barba. Era um Urielita, da categoria mais alta dentro da alta. Hal tinha visto homens daquela espcie apenas umas doze vezes na vida e, pessoalmente, uma nica vez, antes daquela. O que terei feito, Grande Sigmen? Estou condenado, condenado!, pensou ele. O Urielita era um homem muito alto, quase meia cabea a mais que Hal. Tinha o rosto comprido, mas do rosto salientes, nariz grande, estreito e encurvado, lbios finos e olhos de um azul plido, com uma ligeira dobra epicntica interna. Atrs de Hal, o Uzzita disse, em voz muito baixa: - Alto, Yarrow! Posio de sentido! Faa tudo o que indicar o Sandalphon Macneff, sem vacilar e sem falsos movimentos. Hal assentiu com a cabea, pois nem pensara em desobedecer. Macneff o examinou durante um minuto, pelo menos, enquanto alisava a espessa barba castanha. Ento, aps deixar Hal suado e trmulo interiormente, decidiu-se a falar. Sua voz era surpreendentemente grave, para um homem de pescoo to fino. - Como gostaria de abandonar esta vida, Yarrow?

4Mais tarde, Hal encontrou tempo para agradecer a Sigmen, por no ter seguido seu impulso. Ao invs de ficar paralisado pelo terror, pensara em girar o corpo, sbita e rapidamente, para atacar o Uzzita. Embora no usasse qualquer arma visvel, sem dvida o oficial teria uma, em um coldre, por baixo das vestes. Se pudesse deixa-lo fora de combate com um soco, apoderando-se da arma em seguida, Hal usaria Macneff como refm e, escudado nele, conseguiria fugir. Para onde? No fazia idia. Para Israel ou para a Federao Malaia? Ambos eram muito distantes, embora a distncia pouco significasse, se ele pudesse roubar ou comandar uma nave. Entretanto, mesmo tendo sucesso nessa primeira parte, no havia possibilidade de passar pelas estaes antimsseis, a menos que ludibriasse os guardas. E ele no conhecia o suficiente sobre usos ou cdigos militares, para fazer isso. Nesse meio tempo, avaliando possibilidades, sentiu o impulso fenecer. Seria mais inteligente esperar, descobrir de que era acusado. Talvez fosse possvel provar sua inocncia. Os finos lbios de Macneff encurvaram-se levemente, em um sorriso que Hal conhecia muito bem. - Foi muito bom isso, Yarrow - disse ele. Hal no sabia se ali havia uma implicao para falar, mas agarrou a chance de no ofender o Urielita. - O que foi bom, Sandalphon? - Voc ficar vermelho, ao invs de empalidecer. Sou um leitor de egos, Yarrow. Posso ver dentro de um homem, segundos aps conhec-lo. E vi que voc no estava prestes a desfalecer de terror, como aconteceria a muitos, se tivessem ouvido as primeiras palavras que lhe dirigi. No; voc enrubesceu, com o sangue quente da agressividade. Estava disposto a negar, discutir, lutar contra tudo que eu dissesse. "Alguns, no entanto, poderiam dizer que essa no seria uma reao favorvel, que sua atitude demonstrava um pensamento errneo, uma tendncia irrealidade. "Entretanto, eu pergunto: o que a realidade? Foi esta a questo proposta pelo perverso irmo do Precursor, no grande debate. A resposta a mesma: somente o homem real pode dizer. "Eu sou real; de outro modo no seria um Sandalphon. Shib?" Hal assentiu, esforando-se para controlar a respirao ruidosa. Refletia, que, talvez, Macneff no fosse capaz de ler to claramente como imaginava, pois nada dissera a respeito de sua primeira inteno, a de usar a violncia. Ou seria Macneff sbio o bastante para perdoar? - Quando lhe perguntei como gostaria de abandonar esta vida - disse Macneff -, no estava sugerindo que fosse um candidato para o I.

Macneff franziu a testa. Depois acrescentou: - Embora sua T.M. indique que breve poder s-lo, caso voc permanea em seu atual nvel. No obstante, tenho certeza de que logo estar tudo em ordem, se for um voluntrio para o que vou propor. Ento, ficar em ntimo contato com muitos homens shib e no poderia escapar sua influncia. Como disse Sigmen, "a realidade gera realidade". "Bem, creio que estou antecipando as coisas. Em primeiro lugar, deve jurar sobre este livro - e Macneff pegou uma cpia do Talmude Ocidental - que nada do que dissermos aqui dentro ser divulgado, a pessoa alguma, sejam quais forem as circunstncias. Voc morrer ou sofrer todas as torturas, antes de trair o Sturch." Hal colocou a mo esquerda sobre o livro (Sigmen usava a mo esquerda, porque perdera a direita prematuramente) e jurou pelo Precursor e por todos os nveis de realidade, que seus lbios estariam fechados para sempre. Caso contrrio, seria eternamente excludo de qualquer esperana da glria de ver o Precursor face a face e de, algum dia, dirigir seu prprio universo. Enquanto fazia o juramento, comeou a sentir-se culpado, porque pensara em atacar um Uzzita e empregar a fora contra um Sandalphon. Como pudera entregarse to subitamente a seu eu cruel? Macneff era o representante vivo de Sigmen, que viajava atravs do tempo e do espao, a fim de preparar o futuro para seus discpulos. Recusar-se a obedecer a Macneff, fosse em que grau fosse, era o mesmo que esbofetear o rosto do Precursor, algo to terrvel, que ele nem suportava pensar nisso. Macneff tornou a colocar o livro sobre a mesa, e ento disse: - Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que recebeu, por engano, essa ordem para investigar a palavra woggle, em Taiti. Certamente, isso aconteceu, porque certos departamentos dos Uzzitas no trabalharam to intimamente como deveriam. No momento, est sendo investigada a causa do engano e sero tomadas medidas efetivas, para que erros similares no se repitam no futuro. O Uzzita atrs de Hal suspirou profundamente, deixando-o perceber que, ali dentro, no era o nico homem capaz de sentir medo. - Enquanto examinava seus relatrios, algum da hierarquia descobriu que voc solicitou permisso para viajar a Taiti. Ento, passou a investigar o fato, conhecedor que do alto, grau de segurana que cerca a ilha. Foi como pudemos intercept-lo. Aps examinar seus registros, conclu que voc podia ser, precisamente, a pessoa de que necessitamos para ocupar certo posto na nave. A esta altura, Macneff abandonara sua mesa e caminhava de um lado para outro, as mos entrelaadas nas costas, o corpo inclinado para diante. Hal podia ver o quanto era plida a sua pele, muito semelhante cor de uma presa de elefante, que certa vez observara no Museu dos Animais Extintos. O prpura do capuz sobre sua cabea acentuava ainda mais aquela lividez. - Dever apresentar-se como voluntrio - declarou Macneff -, visto que, a bordo, queremos apenas os homens mais - dedicados. No obstante, espero que se junte a ns, porque eu ficaria preocupado, se deixasse na Terra um civil que estivesse a par da existncia e do destino da Gabriel. No que eu duvide de sua lealdade. mas os espies israelitas so muito inteligentes, podendo induzi-lo a revelar o que sabe. Ou rapt-lo e ministrar-lhe drogas que o fariam falar. So seguidores dedicados do Retrocursor, esses israelitas. Hal gostaria de saber por que o uso de drogas pelos israelitas era considerado to irrealista e, pela Unio Haijaquiana to shib, mas logo se esqueceu disso, ao ouvir as

palavras seguintes de Macneff. - H cem anos atrs, a primeira nave interestelar da Unio deixou a Terra, rumo a Alfa do Centauro. Mais ou menos mesma poca, partiu uma nave israelita. Ambas retomaram em vinte anos; e comunicaram que no haviam descoberto nenhum planeta habitvel. Uma segunda expedio Haijaquiana voltou dez anos mais tarde e, doze anos depois, uma segunda nave israelita. Ningum encontrou uma estrela com qualquer planetas que os seres humanos pudessem colonizar. - Eu nunca soube disso - murmurou Hal Yarrow. - Ambos os governos souberam proteger muito bem o segredo, ocultando-o, de seu povo, mas no entre si - explicou Macneff. - Que saibamos, os israelitas no tornaram a enviar nenhuma nave interestelar, aps a segunda. Os custos e tempo envolvidos so astronmicos. Ns, entretanto, enviamos uma terceira nave, muito menor e mais rpida que suas duas antecessoras. Nos ltimos cem anos, aprendemos muito sobre propulso interestelar, mas isso tudo que lhe posso dizer a esse respeito. "Essa terceira nave retornou h vrios anos e informou... " - Que fra encontrado um planeta, no qual poderiam viver seres humanos e que j era habitado por seres sencientes! - exclamou Hal, em seu entusiasmo, esquecendo que no fra solicitado a falar. Macneff parou de andar e o fitou com seus plidos olhos azuis. - Como que soube? - perguntou bruscamente . - Perdoe-me, Sandalphon - disse Hal -, mas era inevitvel! No foi o que predisse o Precursor, em seu Tempo e Fronteira do Mundo, que esse planeta seria encontrado? Creio que est na pgina quinhentos e setenta e trs! Macneff sorriu e disse: - Alegro-me por suas lies de escritura lhe terem causado tal impresso. E como no causariam?, pensou Hal. Por outro lado, aquelas no haviam sido as nicas impresses. Pornsen, o meu gapt, costumava surrar-me, porque eu no aprendia bem minhas lies. Era um bom impressor aquele Pornsen. Era? ! Quando fiquei mais velho e fui promovido, o mesmo acontecia com ele, sempre onde eu estava. Foi meu gapt na creche, em seguida o gapt do dormitrio, quando fui para o colgio e imaginei que ficara livre dele. Agora o gapt do meu quarteiro, nico responsvel por minha T.M. to baixa. A revolta e o protesto chegaram rpidos. No, ele no; sou eu; apenas eu, o responsvel por tudo que me acontea. Se tenho uma T.M. baixa, porque eu quis assim. Eu ou o meu ego obscuro. Se morrer, tambm morrerei porque quis, Assim, perdoe-me, Sigmen, pelos pensamentos contrrios realidade! - Desculpe-me novamente, Sandalphon - disse Hal -, mas a expedio encontrou algum registro de que o Precursor estivera nesse planeta? Talvez at mesmo embora isto seja desejar demais - tenha encontrado o prprio Precursor! - No - disse Macneff. - Contudo, isto no significa a inexistncia de tais registros no planeta. A expedio tinha ordens para efetuar apenas uma rpida investigao sobre as condies e retornar Terra em seguida. No posso revelar-lhe a distncia em anos-luz ou qual era essa estrela, embora voc possa v-la a olho nu, quando noite neste hemisfrio. Se for voluntrio, ficar sabendo para onde vai, depois que a nave partir. E ela partir muito breve. - Precisam de um linguista? - perguntou Hal. - A nave imensa - disse Macneff -, mas em vista do nmero de militares e especialistas que levamos, os linguistas se limitam a um apenas. Consideramos

vrios de seus profissionais, por serem lamedhianos e acima de suspeita. Infelizmente... Hal aguardou. Macneff deu mais alguns passos, de cenho franzido. Ento, prosseguiu: - Infelizmente, existe apenas um joat lamedhiano, mas idoso demais para esta expedio. Em vista disso... - Mil perdes - disse Hal -, mas acabei de pensar em uma coisa. Eu sou casado. - Isso no nenhum problema - replicou Macneff. No teremos mulheres a bordo da Gabriel. Ento, se algum dos homens for casado, ficar divorciado automaticamente. Hal ofegou. Depois repetiu: - Divorciado? Macneff ergueu as mos, como quem pede desculpas- Voc ficou horrorizado, naturalmente. No entanto, Pela leitura do Talmude Ocidental, ns, os Urielitas, acreditamos que o Precursor, sabendo que surgiria tal situao, fez referncia mesma e disps sobre o divrcio. algo inevitvel no caso presente, j que o casal ficar separado, pelo menos durante oitenta anos objetivos. Naturalmente, ele ocultou a disposio em linguagem obscura. Em sua grande e gloriosa sabedoria, sabia que nossos inimigos, os israelitas, no conseguiriam ler, ali, o que ns planejamos. - Sou um voluntrio - disse Hal. - Conte-me mais, Sandalphon. Seis meses mais tarde, na cpula de observao da Gabriel, Hal contemplava a esfera da Terra, definhando acima dele. Era noite naquele hemisfrio, mas a luz refulgia das megalpoles da Austrlia, Japo, China, sudoeste da Asia, ndia e Sibria. Hal, o linguista, viu os discos e colares cintilantes falarem na distncia, em termos de idiomas. A Austrlia, Ilhas Filipinas, Japo e norte da China eram habitados pelos membros da Unio Haijaquiana que falavam americano. O sul da China, todo o sudoeste da Asia, sul da ndia e Ceilo, e estados da Federao Malaia falavam o idioma bazaar. A Sibria falava islands. Mentalmente, Hal girou o globo terrestre em sua direo e visualizou a Africa, cujo idioma era o swahili, ao sul do Mar do Saara. Em torno do Mar Mediterrneo, na Asia Menor, norte da ndia e Tibete, a lngua nativa era o hebreu. Ao sul da Europa, entre as Repblicas Israelitas e os povos de fala islandesa, ao norte da Europa, havia uma estreita, mas comprida faixa de territrio, chamada March. Disputada pela Unio Haijaquiana e as Repblicas Israelitas, aquela terra-de-ningum se tornara uma fonte potencial de guerra, durante os ltimos duzentos anos. Nenhuma das duas naes abria mo de suas reivindicaes sobre o territrio, mas nem uma nem outra fazia qualquer movimento que pudesse desencadear uma segunda Guerra Apocalptica. Em vista disso, e para todas as finalidades prticas, March se tornara uma nao independente e, no momento, possua governo prprio, embora no reconhecido alm de suas fronteiras. Seus cidados falavam todas as lnguas sobreviventes do mundo, e mais um novo dialeto, o lingo, cujo vocabulrio derivava dos outros seis, com uma sintaxe to simples, que caberia em meia folha de papel. Hal contemplou mentalmente o resto da Terra: Islndia. Groenlndia, Ilhas do Caribe e a metade oriental da Amrica do Sul. Ali, os povos falavam a lngua da Islndia, porque essa ilha se antecipara aos havaianoamericanos, ocupados em recolonizar a Amrica do Norte e metade ocidental da Amrica do Sul, aps a Guerra Apocalptica, Havia ento a Amrica do Norte, cuja fala nativa era o americano, excetuando-se

os vinte descendentes de franco-canadenses, residentes na Reserva da Baa de Hudson. Hal sabia que, quando aquele lado da Terra girasse para a zona da noite, Sigmen City cintilaria no espao. E, em algum ponto daquele enorme claro, estava seu apartamento. De qualquer modo, Mary no ficaria muito tempo morando ali, porque dentro de alguns dias, receberia a notificao de que seu marido havia morrido em um acidente. Hal tinha certeza de que ela choraria quando estivesse sozinha, pois o amava, em sua frgida maneira, embora aparecesse em pblico de olhos secos. Seus amigos e colegas profissionais se solidarizariam com ela, no por haver perdido um bem-amado esposo, mas porque estivera casada com um homem de ideias irrealsticas. Se Hal houvesse morrido em um desastre, gostaria que fosse assim. No havia coisas como um "acidente". Fosse como fosse, todos os outros passageiros (tambm supostamente mortos, naquela teia de elaboradas fraudes para ocultar o desaparecimento do pessoal da Gabriel) haviam, simultaneamente, "concordado" em morrer. Em vista disso, estavam em desgraa, no podendo ser cremados nem ter suas cinzas jogadas ao vento, em cerimnia pblica. Nada disso; os peixes podiam devorar seus corpos, a despeito da preocupao do Sturch. Hal lamentou por Mary; levou alguns momentos contendo as lgrimas que teimavam em vir-lhe aos olhos, quando em meio aos outros, na cpula de observao. Sim, disse para si mesmo, aquela fra a melhor maneira. Ele e Mary no precisariam mais destruir a paz um do outro: terminara a tortura mtua. Ela ficaria livre para casar-se de novo, ignorando que o Sturch a divorciara secretamente e julgando que a morte dissolvera seu casamento. Teria um ano para decidir-se e escolher o companheiro, em uma lista selecionada por seu gapt. Talvez agora russem as barreiras psicolgicas que a tinham impedido de conceber um filho dele. Talvez. Hal tinha suas dvidas, quanto a esse final feliz. Mary era to glida abaixo do umbigo, como ele prprio. O candidato ao casamento, escolhido pelo gapt, no faria mnima diferena... O gapt Pornsen. Hal no teria mais que ver aquele rosto gordo, ouvir a voz lamurienta... - Hal Yarrow! - exclamou a voz lamurienta. Hal se virou devagar, gelado, mas ardendo. Ali estava aquele homem atarracado e baixote, de bochechas frouxas, lbios grossos, nariz de ave de rapina e olhos estreitos, sorrindo para ele. Sob o cnico chapu azul-celeste, de aba estreita, com os cabelos negros e salpicados de grisalho caindo sobre a gola negra, alta e franzida. O casaco azul-celeste adaptava-se confortavelmente sobre o ventre volumoso - Pornsen aturara muitos sermes dos superiores, por causa de sua gulodice - e um largo cinturo azul sustinha um fecho metlico, para o punho de seu chicote. As pernas rolias estavam envoltas em apertadas calas azul-celeste, com uma listra negra descendo verticalmente ao longo da parte externa e interna. As botas, que subiam at os joelhos, tambm eram azulceleste. Entretanto, os ps eram to pequenos, que chegavam a ser ridculos. Na biqueira de cada bota, havia um espelho de sete faces. Circulavam alguns comentrios. obscenos entre os elementos da classe inferior, sobre a origem daqueles espelhos; Sem querer, Hal ouvira um desses comentrios certo dia e, s em record-la, ficava ruborizado. - Meu querido tutelado, minha mutuca permanente gemeu Pornsen. - Eu no fazia idia de que estivesse nesta gloriosa viagem. Entretanto, eu devia saber! Parecemos

ligados pelo amor. O prprio Sigmen deve t-to previsto. Amor para voc. meu tutelado. - Que Sigmen tambm o ame - disse Hal, com uma tossidela. - Que maravilhoso, ver seu estimado eu! Pensei que nunca mais nos veramos.

5A Gabriel estava orientada para seu destino e, em acelerao abaixo de 1-g, comeava a preparar-se para sua velocidade bsica, 33,1 % da velocidade da luz. Enquanto isso, todo o pessoal, excetuando-se os poucos membros necessrios manuteno do desempenho da nave, dirigiu-se para o suspensor. Ali, todos eles permaneceriam em animao suspensa, durante muitos anos. Algum tempo depois, aps uma inspeo de todo o equipamento automtico, a tripulao se juntaria aos outros. Ficariam dormindo, enquanto a Gabriel aumentaria a acelerao, a um ponto que os corpos no congelados do pessoal no suportariam. Atingida a velocidade desejada, o equipamento automtico interromperia a propulso, e a nave silenciosa, mas no vazia, arremeteria em direo estrela que era o fim de sua jornada. . Muitos anos mais tarde, aparelhos fton-calculadores, situados na proa da nave, determinariam que a estrela j estava prxima o bastante, para iniciar-se a desacelerao. Seria novamente aplicada a fora demasiado potente, que corpos no congelados jamais suportariam. Ento, aps diminuda consideravelmente a velocidade da nave, a propulso ficaria ajustada na desacelerao 1-g. A tripulao seria despertada automaticamente da animao suspensa e seus membros ento descongelariam o restante do pessoal. No meio ano que faltava para alcanarem seu destino, os homens fariam todos os preparativos que fossem necessrios. Hal Yarrow estava entre os ltimos que entraram no suspensor e entre os primeiros que de l saram. Tinha que estudar as gravaes da linguagem de Siddo, a nao principal de Ozagen. Entretanto, desde o incio, enfrentou uma difcil tarefa. A expedio que descobrira Ozagen comparara cinco mil palavras do siddo com um nmero igual de termos americanos. A descrio da sintaxe do siddo era muito restrita e, segundo Hal percebeu, evidentemente errada, em inmeros casos. Tal descoberta o deixou ansioso. Sua funo era escrever um texto didtico e ensinar todo o pessoal da Gabriel a falar o idioma de Ozagen. No entanto, empregando os parcos meios ao seu dispor, instruiria seus alunos erradamente, ainda assim, com poucas probabilidades de sucesso. Em primeiro lugar, havia certas diferenas entre os rgos fonadores dos nativos de Ozagen e dos terrestres, resultando em sons dissimilares, produzidos pelos respectivos rgos. Em verdade, poderiam ser aproximados, mas os ozagenianos compreenderiam tais aproximaes? Outro obstculo era a construo gramatical do siddo. No sistema dos tempos verbais, acontecia o seguinte: ao invs de flexionarem o verbo ou usarem uma partcula destacvel para indicar o passado ou futuro, em siddo empregavam uma palavra totalmente diversa. Assim, o infinitivo animado masculino dabhumaksanigalu'ahai, significando viver, transformava-se em ksu'u'peli'afo no pretrito perfeito e mai'teipa no futuro. O mesmo uso de uma palavra inteiramente diferente aplicava-se a todos os outros tempos verbais. Alm

disso, o siddo possua no apenas os trs gneros normais (para os terrestres) de masculino, feminino e neutro, mas tambm os dois extras de inanimado e espiritual. Por sorte, o gnero no tinha flexo, embora o que expressasse fosse difcil de entender, para quem no tivesse nascido em Siddo. O sistema de indicao do gnero variava segundo o tempo do verbo. Outras partes da fala - substantivos, pronomes, adjetivos-advrbios e conjunes operavam sob o mesmo sistema que os verbos. Para confundir ainda mais o uso da lngua, as diferentes classes sociais costumavam empregar palavras diferentes, para expressar o mesmo sentido. Quanto escrita, s podia ser comparada ao japons antigo. No havia alfabeto, mas ideogramas, linhas cujo comprimento, formato e ngulo relativo compunham um significado entre si. Os sinais que acompanhavam cada ideograma indicavam a inflexo correta de gnero. Na privacidade de seu cubculo-escritrio, Hal praguejou em voz baixa pela perdida mo direita de Sigmen. O comandante da primeira expedio havia escolhido. como base para suas pesquisas, o continente nos antpodas ozagenianos, cujos habitantes expressavam-se na linguagem mais difcil de ser dominada pelos terrestres. Se houvesse optado pelo outro continente, situado no hemisfrio norte, ele (isto , seu linguista) teria quarenta idiomas diferentes para escolha, alguns deles relativamente fceis em sintaxe e possuindo palavras curtas. Era o que deveria ser, se Hal pudesse dar crdito s amostras de tais idiomas, coligidas ao acaso pelo linguista. Siddo, a massa de terra do hemisfrio sul, tinha o tamanho aproximado da Africa, embora no o mesmo formato, sendo separada da outra por dez mil milhas de oceano. Se os gelogos wog estivessem corretos, essa massa terrestre outrora fizera parte de um Gondwana, separando-se posteriormente. Em resultado, a evoluo tomara caminhos um tanto diversos em cada um dos continentes. Enquanto o outro continente fra dominado pelos insetos e seus primos distantes, os pseudoartrpodes de esqueleto interno, essa massa de terra se mostrara bastante hospitaleira. para os mamferos. No obstante, Sigmen sabia que, nela, havia abundante vida insectvora At quinhentos anos antes, a espcie senciente em Abaka'a'tu, a massa de terra ao norte, fra o wogglebug e, em Siddo, um animal de aparncia acentuadamente humana. L, o Homo Ozagen desenvolvera uma cultura at um estgio anlogo ao do antigo Egito ou Babilnia. Ento, quase todos os humanos, civilizados ou selvagens, haviam perecido. Isso acontecera apenas um milnio antes de o primeiro Colombo wogglebug aportar em seu grande continente. Na poca da descoberta e nos dois sculos seguintes. os wogs presumiam que os indgenas estivessem extintos. Entretanto, quando os colonizadores wogs comearam a penetrar nas selvas e montanhas do interior, depararam com pequenos grupamentos humanides, que se haviam retirado para as regies incultas. L, eles se escondiam perfeitamente, como "os pigmeus africanos conseguiam ocultar-se, antes que terminassem as grandes florestas chuvosas. Segundo as estimativas, haveria uns mil, talvez dois mil humanides, espalhados por uma rea de cem mil quilmetros quadrados. Alguns poucos exemplares, todos machos, haviam sido capturados pelos wogs, os quais dominaram sua linguagem antes de libert-los. Tentaram tambm descobrir porque os humanides tinham desaparecido de maneira to misteriosa e repentina. Seus informantes ofereciam explicaes, mas eram contraditrias e de evidente

origem mtica. Em resumo, eles ignoravam a verdade, embora esta pudesse estar oculta em seus mitos. Alguns deles explicavam a catstrofe como uma praga, enviada pela Grande Deusa ou Me de Todos. Outros diziam que os adoradores da Me de Todos haviam transgredido suas leis e, enfurecida, ela enviara uma horda de demnios para dizim-los, Uma histria contava que ela afrouxara as estrelas, para que cassem sobre todos, exceto um nmero de pessoas. De qualquer modo, Yarrow no dispunha de todos os informes necessrios a seu estudo. O linguista da primeira expedio tivera apenas oito meses para coligir dados, uma - boa parte dos quais fra gasta ensinando americano a vrios wogs, antes que pudesse comear realmente a trabalhar. A nave permanecera dez meses em Ozagen, mas a tripulao continuara a bordo durante os dois primeiros, enquanto robs recolhiam espcimes atmosfricos e das biotas. Tais espcimes seriam estudados e analisados, a fim de que os terrestres pudessem aventurar-se no exterior, sem receio de serem envenenados ou atacados por doenas. A despeito de todas as precaues, dois expedicionrios haviam morrido em resultado de picadas de insetos, um fra morto por uma forma peculiar de predador e, em seguida, metade do pessoal tinha sido atacada por uma doena fortemente debilitante, embora no fatal. Era provocada por uma bactria, incua aos nativos, mas que sofrera mutao, no organismo dos no-ozagenianos. Temendo a ocorrncia de outras molstias e tendo recebido ordens para efetuar apenas uma pesquisa, ao invs de uma vasta explorao, o comandante or