pesquisa etnografica comparada

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A pesquisa etnográfica e as especificidades da observação participante Ada Kesea Guedes Bezerra 1 Resumo A etnografia é um método de investigação e análise advindo da antropologia, mas atualmente utilizado em pesquisas na sociologia, história, comunicação social, dentre outras áreas do conhecimento que têm como objeto de investigação as diferentes formas de sociabilidade, ritos, cultura, crenças e costumes de um determinado grupo social. Este artigo tem como finalidade, portanto, apresentar uma breve explanação sobre o desenvolvimento da etnografia enquanto atividade científica ao longo do tempo, bem como apreender, através dos relatos de determinados autores, as especificidades do trabalho de campo e de suas técnicas como o preparo teórico, a observação participante, a coleta de dados, a inferência e a descrição densa dos fenômenos investigados. Palavras-chave: Etnografia; pesquisa de campo; observação participante. Abstract The ethnography is a method of research and analysis arising from anthropology, currently used on researches within sociology, history, media, among other areas of knowledge which take the different forms of social interaction, rituals, culture, beliefs and customs of a particular social group as their objects of research. This article aims to present a brief explanation about the development of ethnography as a scientific activity throughout time, and learn, through the reports of some authors, the specificities of field work and its technical and theoretical preparation, participant observation, data collection, inference, and dense description of the phenomena investigated. Key-words: Ethnography; field research; participant observation. 1 Jornalista, Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB; Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG e Professora do Curso de Comunicação Social – Hab. em Jornalismo das Faculdades Integradas de Patos – FIP. E-mail: [email protected]

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Pesquisa etonográfica em nosso tempo. Perspectiva e ajustes,

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A pesquisa etnográfica e as especificidades da observação participante

Ada Kesea Guedes Bezerra 1

Resumo

A etnografia é um método de investigação e análise advindo da antropologia, mas atualmente utilizado em pesquisas na sociologia, história, comunicação social, dentre outras áreas do conhecimento que têm como objeto de investigação as diferentes formas de sociabilidade, ritos, cultura, crenças e costumes de um determinado grupo social. Este artigo tem como finalidade, portanto, apresentar uma breve explanação sobre o desenvolvimento da etnografia enquanto atividade científica ao longo do tempo, bem como apreender, através dos relatos de determinados autores, as especificidades do trabalho de campo e de suas técnicas como o preparo teórico, a observação participante, a coleta de dados, a inferência e a descrição densa dos fenômenos investigados. Palavras-chave: Etnografia; pesquisa de campo; observação participante.

Abstract The ethnography is a method of research and analysis arising from anthropology, currently used on researches within sociology, history, media, among other areas of knowledge which take the different forms of social interaction, rituals, culture, beliefs and customs of a particular social group as their objects of research. This article aims to present a brief explanation about the development of ethnography as a scientific activity throughout time, and learn, through the reports of some authors, the specificities of field work and its technical and theoretical preparation, participant observation, data collection, inference, and dense description of the phenomena investigated. Key-words: Ethnography; field research; participant observation.

1 Jornalista, Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB; Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG e Professora do Curso de Comunicação Social – Hab. em Jornalismo das Faculdades Integradas de Patos – FIP. E-mail: [email protected]

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Introdução A etnografia constitui um método de investigação próprio das ciências sociais

utilizado por excelência pela antropologia na obtenção e tratamento de dados a partir

do contato intersubjetivo entre o cientista social e a cultura e costumes de um

determinado grupo, ora seu objeto de estudo 2. Aplicado por excelência pela

antropologia, mas também nas áreas da sociologia, história e comunicação social,

dentre outros campos do saber é indicado tanto na compreensão da cultura de

sociedades primitivas quanto nas formas sociais contemporâneas de fenômenos

urbanos.

Marcada pelo trabalho de campo, a observação participante e a presença da

alteridade, o método exige práticas específicas no trato com o outro enquanto objeto de

estudo. Na prática, porém esta atividade é perpassada de detalhes, incidentes,

imprevistos e descobertas que se sobrepõe a uma descrição e conceituação em poucas

palavras.

Antropólogos, etnólogos e pesquisadores, apresentam em seus relatos as

nuances que cercam o trabalho de campo de maneira a exacerbar a “experiência” como

etapa crucial de cada trabalho. De fato, Roberto da Mata ao falar sobre como ter

“Anthropological Blues”, pontua a existência de três fases de uma pesquisa, a primeira,

denominada teórico-intelectual, seria o momento de contato com livros, teorias e

ensaios, um excesso de conhecimento teórico no qual o pesquisador encontra-se

totalmente separado do seu objeto de estudo; a segunda etapa, o período prático,

representa a antevéspera da pesquisa, na qual a concentração sai do universo da

teoria para os problemas concretos do cotidiano em campo, como será a forma de

estadia ou moradia, acesso a alimentação e medicamentos, contratação de auxiliares,

dentre outras questões; a terceira e última fase foi descrita pelo autor como etapa

pessoal ou existencial, a qual é “essencialmente globalizadora e integradora: ela deve

sintetizar a biografia com a teoria e a prática do mundo com a do ofício.” É o momento

2 Vale mencionar a observação de James Clifford ao afirmar que o trabalho de campo não pode mais ser associado apenas à Antropologia e que tais associações não devem ser consideradas permanentes, pois na atualidade “os estilos de descrição cultural são historicamente limitados e estão vivendo importantes metamorfoses”.

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da vivencia com a cultura do etnólogo e a do outro com todas as especificidades que

este contato venha gerar.

O autor concebe a última etapa, a da experiência, como a fase que abarca as

anteriores e ainda fornece o sentimento de apreensão e busca diante do novo. É o

momento revelador da pesquisa. E conclui pontuando a importância do anthropological

blues como o ato de “incorporar no campo mesmo das rotinas oficiais, já legitimadas

como parte do treinamento do antropólogo, aqueles aspectos extraordinários, sempre

prontos a emergir em todo o relacionamento humano.” (DA MATA, 1978, p. 27-28).

Com isto o autor trás em seu texto uma descrição de episódios curiosos de imprevistos

e mal-entendidos que constantemente cerceiam o trabalho de campo quanto maior a

distância entre as culturas e costumes do etnólogo e o ambiente onde se encontra.

Desde os primórdios da antropologia social, os livros e manuais refletiam uma

preocupação em estabelecer com precisão as práticas e rotinas de pesquisa para o

trabalho de campo. Considera-se, portanto, estes os ensinamentos oficiais enquanto os

relatos dos fatos extraordinários e curiosos como formas de ensinamentos

complementares que muitos pesquisadores consideram relevantes.

Lévi-Strauss (1991, p. 415-416) muito bem descreveu a importância da

experiência de campo inclusive como momento não somente do exercício, mas da

formação e educação do antropólogo;

É por uma razão muito profunda, que se prende à própria natureza da disciplina e ao caráter distintivo de seu objeto, que o antropólogo necessita da experiência do campo. Para ele, ela não é nem um objetivo de sua profissão, nem um remate de sua cultura, nem uma aprendizagem técnica. Representa um momento crucial de sua educação, antes do qual ele poderá possuir conhecimentos descontínuos que jamais formarão um todo, e após o qual, somente, estes conhecimentos se "prenderão" num conjunto orgânico e adquirirão um sentido que lhes faltava anteriormente.

Em síntese, é possível afirmar que o método etnográfico pode ser entendido

como uma forma específica de atuar em que o pesquisador entra em contato com a

realidade vivida pelos pesquisados e compartilha seu universo, num exercício que vai

além de captar e descrever a lógica de suas representações e visão de mundo, mas

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para, numa relação de troca, comparar suas próprias teorias e representações com as

deles a fim de obter um modelo inédito de entendimento, ou pelo menos um caminho

para estes, não previsto anteriormente. Mas, na verdade, ao observar relatos e

monografias modelos desta prática, percebe-se a complexidade dos vários aspectos,

imprevistos e desafios que cercam o trabalho do etnógrafo.

O que na prática se apresenta como tarefa difícil, pois as “interpretações

culturais” realizadas pelo pesquisador constituem ao final um relato escrito que deve

ser reconhecido e legitimado pela academia. Neste sentido, Clifford Geertz (1978, p.

15) ao definir o método, afirma que:

Segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário e assim por diante. Mas não são estas coisas, as técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O que o define é um tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma descrição densa.

Geertz ilustra sua afirmação com o exemplo das piscadelas e enfatiza que uma

das características cruciais da descrição etnográfica é a interpretação, “o que ela

interpreta é o fluxo do discurso social e a interpretação envolvida consiste em tentar

salvar o ‘dito’ num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas

pesquisáveis”. (GEERTZ, 1978, p. 15).

Conforme destaca James Clifford (1998), tal exercício subjuga as dificuldades a

partir de seu lugar de autoridade como mecanismo científico de observação:

Analisando esta complexa transformação, deve-se ter em mente o fato de que a etnografia está, do começo ao fim, imersa na escrita. Esta escrita inclui, no mínimo, uma tradução da experiência para a forma textual. O processo é complicado pela ação de múltiplas subjetividades e constrangimentos políticos que estão acima do controle do escritor. Em resposta a essas forças, a escrita etnográfica encena uma estratégia específica de autoridade. Essa estratégia tem classicamente envolvido uma afirmação, não questionada, no sentido de aparecer como a provedora da verdade no texto. (CLIFFORD, 1998, p. 21-22).

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Deste lugar de autoridade, o exercício etnográfico se expressa após um longo

percurso em busca deste posto, pois até o final do século XIX, tanto o etnógrafo, quanto

o missionário ou o administrador apareciam como conhecedores da vida nativa, estes

últimos, antes de uma consagração científica da etnografia, algumas vezes mais ainda,

em detrimento do tempo maior de contato com a língua e costumes nativos. O que

contemplaremos melhor mais adiante.

Desta forma, o exercício etnográfico, caracterizado também pelo acúmulo do

conhecimento teórico e acadêmico, tem como ponto crucial o trabalho de campo, e

culmina com a escrita, tarefa não menos criteriosa. Neste texto, porém, a finalidade é

trazer um breve diálogo entre autores que trataram, sobretudo, sobre as especificidades

do trabalho de campo, tanto em suas ditas “rotinas oficiais” quanto em seus relatos

extraordinários, que tanto auxiliam o entendimento e preparação para esta atividade.

Antes, porém se faz relevante uma breve explanação sobre a etnografia enquanto

atividade científica ao longo do tempo.

1. A autoridade etnográfica – afirmação e reconfigurações

Entre a etapa do conhecimento teórico-intelectual e a escrita, os acontecimentos

se revelam de maneiras distintas ao pesquisador. Desde o fato de se apresentar a

aldeia, comunidade, grupo, dentre outros, é necessário uma compreensão da etnografia

enquanto prática. Esta tem seu percurso perpassado a priori por uma busca pela

autoridade e mudanças em suas formas, estilos e lugares de falas sobre a tradução da

experiência de campo para o relato textual.

É possível mencionar um ponto importante no tempo marcado por uma alteração

caracterizada pela redistribuição do poder colonial nas décadas de 60 e 70, a partir da

qual o Ocidente deixa de ser concebido como o único gerador de conhecimento

antropológico sobre o outro, até mesmo o ato de localizar o “outro” se reconfigura na

contemporaneidade.

É entre os anos de 1900 e 1960 que se estabelece uma concepção própria de

pesquisa de campo como norma difundida para a antropologia americana e européia

caracterizada pela presença do trabalho intensivo de especialistas sociais advindos das

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universidades e capacitados para de forma legítima relatar dados sobre povos exóticos.

Mais especificamente a partir da década de 30 esta definição de que as descrições

culturais deviam ser realizadas apenas por pesquisadores com formação acadêmica, já

se difundira internacionalmente de maneira consensual.

Já na década de 20, Malinowski marcara a validade e autoridade da experiência

de campo 3. Este autor trás como técnica diferenciada dos cientistas naturais o método

da observação participante compondo o perfil do novo “teórico-pesquisador de campo”

e do exercício etnográfico como modelo científico e literário, reconhecido e que

delegava ao pesquisador não apenas um lugar de tradutor de costumes, mas também

de provedor de teorias dentro da antropologia.

James Clifford (1998, p. 28) pontua quais foram as principais inovações

institucionais e metodológicas que promoveram um conhecimento mais rápido e

específico de outras culturas ao mesmo tempo em que assegura a autoridade científica

desta atividade na época. “Figuras de proa como Malinowski, Mead e Marcel Griaule,

transmitiram uma visão da etnografia como cientificamente rigorosa ao mesmo tempo

que heróica.” Mencionou a aceitação da presença em campo por um período menor

“que raramente excedia a dois anos” e concentrada em um domínio ou conteúdo

específicos, técnicas empregadas por Margaret Mead; igualmente destaca a inovação

da observação-participante como norma de pesquisa; e por fim a busca do

conhecimento não através de um relato completo e complexo dos costumes, mas do

conhecimento do todo através de descrições de uma ou mais de suas partes.

Estas inovações serviram para validar uma etnografia eficiente, baseada na observação participante científica. Seus efeitos combinados podem ser vistos claramente no que pode ser considerado o tour de force da nova etnografia, Os nuer de Evans-Pritchard, publicado em 1940. Baseado em onze meses de pesquisa realizada em condições quase impossíveis, Evans-Pritchard foi, todavia capaz de compor um clássico. (CLIFFORD, 1998, p. 31).

3 Vale mencionar que a etnografia profissional começa a se delinear bem antes com a atuação de cientistas naturais em pesquisas de campo se contrapondo ao trabalho de administradores, missionários e demais religiosos. Com Franz Boas; A. C Haddon e Baldwin Spencer em fins dos anos 1890, o caráter científico começa a permear estas práticas.

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Desta etapa de definição de metodologias e afirmação da autoridade científica,

seguem considerações e críticas levantadas por determinados autores, geralmente

relacionadas às subjetividades na interpretação, na presença da intuição e

consequentemente em elementos da escrita. Tanto a chamada autoridade experiencial

quanto o caráter interpretativo é perpassado por subjetividades, a primeira parece um

tanto vaga por ser caracterizada por insights e intuições enquanto a segunda trás a

tona por um lado, uma discussão sobre a separação da experiência e interpretação

com o momento da escrita de fato que geralmente ocorre na volta do campo, por outro

lado, evoca o caráter político dos indivíduos, uma vez que estes são dotados de

consciência, subjetividade e significados. É constante ainda a voz do autor

(pesquisador) como única na interpretação de uma cultura e por vezes da presença de

um interlocutor abstrato e generalizado.

Diante de tais questões, Clifford explica que “paradigmas de experiência e

interpretação estão dando lugar a paradigmas discursivos de diálogo e polifonia”, o que

marcam uma reconfiguração da autoridade etnográfica. As críticas neste momento

apontam para uma forma de escrita pautada em diálogos e espaço para as vozes do

nativo em detrimento de uma interpretação de uma realidade circunscrita e relatada a

partir da visão e da fala do pesquisador. Para Bakhtin, “as palavras da escrita

etnográfica, portanto, não podem ser pensadas como monológicas, como a legítima

declaração sobre, ou a interpretação de uma realidade abstraída e textualizada”.

Surgem então por volta dos anos 70 novas formas de relatos sobre o trabalho de

campo marcado pelo paradigma discursivo da escrita etnográfica, o modelo dialógico e

o polifônico juntam-se ao interpretativo e ao experiencial, que compõem modos de

autoridade possíveis na contemporaneidade. Clifford, sobre estes paradigmas, afirma

que nenhum é obsoleto ou puro.

Os processos experencial, interpretativo, dialógico e polifônico são encontrados, de forma discordante, em cada etnografia, mas a apresentação coerente pressupõe um modo controlador de autoridade. Um argumento é que esta imposição de coerência a um processo textual sem controle é agora inevitavelmente uma questão se escolha estratégica. [...] Se a escrita etnográfica está viva, como acredito que esteja, ela está em luta nos limites dessas possibilidades, ao mesmo tempo que contra elas. (CLIFFORT, 1998, p. 58).

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O proposto para o exercício e a escrita etnográfica é, além de considerar estas

possibilidades, pensar em trabalhos que não se dirijam mais a um único perfil de leitor e

que forneça a este, várias possibilidades de leituras e interpretação. A teoria atual

propõe que o texto para ser eficaz precisa se distanciar de intenções do autor para se

concentrar na potencialidade criativa do leitor.

2. A observação participante A cultura pensada como um conjunto de comportamentos, costumes, hábitos,

rituais e crenças, de certa forma determina o poder da observação. A presença do

pesquisador como observador-participante ficou estabelecida como metodologia

legítima a partir de Malinowski que questionou a validade das informações de

informantes nativos, por vezes perpassadas de interesses ou interpretações diversas,

além do mais, a observação criteriosa por parte do pesquisador se faz a partir de certos

métodos e desprendidas de interesses.

Existe uma série de relatos contando detalhes da presença e atuação do

interprete ou do informante, figuras indispensáveis ao trabalho de campo, mas que

exigem certos cuidados e atenção do pesquisador. Gerald D. Berreman e William

Foote-Whyte são dois autores que apresentam de forma detalhada, em seus textos

descrições relevantes sobre este personagem tão importante da pesquisa de campo.

Suas pesquisas diferenciam-se, sobretudo em sua natureza, finalidade e local. A

primeira realizada em uma aldeia camponesa no Himalaia na Índia Setentrional e a

segunda, de caráter urbano, em um bairro norte-americano marcado pela imigração

italiana e a presença de gangsters. A relação que pode ser estabelecida entre os dois

trabalhos consiste na prática da observação participante e nas especificidades narradas

por estes etnógrafos que fornecem histórias reveladoras sobre a inserção do

pesquisador em campo, o contato com os “nativos” e as conseqüências da presença do

interprete/assistente.

Gerald Berreman relata em seu texto “Behind many Mask, The society of applied

antrhopology” de 1962, determinados aspectos de sua pesquisa realizada na Índia,

entre os anos de 1957 e 1958. Para o autor a experiência humana empreendia num

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trabalho como este constitui tarefa científica que deve constar em qualquer relato.

Sirkanda, o local da pesquisa é uma aldeia camponesa do baixo Himalaia onde viviam

os Paharis das montanhas, um local de sociedade extremamente fechada e

estratificada 4 na qual estranhos eram abertamente rejeitados ou ignorados. Este fato

decorria geralmente da figura do estranho estar relacionada a missionários ou a

agentes do governo que cobravam impostos sobre as produções e terras. Os primeiros

impasses decorreram de suspeitas de que o pesquisador representava uma dessas

“ameaças” aos aldeões.

Mesmo desfeitas estas primeiras suspeitas, o pesquisador conta que meses se

passaram até obter certa confiança por parte dos moradores. Acompanhado de seu

assistente-interprete, um brâmane de origem humilde e já experiente neste tipo de

trabalho, encontrou resistências por parte da população local até que em um dado

episódio pôde se apresentar como pesquisador a partir de um discurso que aferiu o

orgulho dos aldeões como paharis indianos de uma nação independente, geradora de

recursos e mundialmente respeitada, após 1947. Mesmo depois de tal discurso a

aceitação do interlocutor seguiu-se aos poucos e sem maior entusiasmo, baseado

muito mais num episódio específico que consistiu na aceitação deste por parte de um

brâmane que se mostrava hostil no momento do impasse e o aceitou publicamente.

Este ato é que surtiu o efeito esperado muito mais devido ao contexto em que

aconteceu, ou seja, publicamente e depois de um bom espaço de tempo da presença

dos pesquisadores na aldeia. O curioso é que o autor afirma que o ato do brâmane que

o desafiou o fez por necessidade de reconhecimento público, pois ao se opor ao

pesquisador publicamente e exigir deste uma explicação ganhara automaticamente

notoriedade da mesma forma que aceitando sua explicação justificava sua suposta

imponência.

Outro fato importante e que o autor bem o faz ao enunciar, foi a preocupação

que se seguiu, dos homens da aldeia em relação às mulheres, fato que só se encerrou

4 Na aldeia viviam pessoas de castas altas (rajput e brâmanes) e de castas baixas (achut, os intocáveis). Os primeiros expressamente numerosos dominam o poder político, os recursos econômicos e a diferença de castas através dos rituais. Vale mencionar que entre estes aldeões as diferenças sociais, políticas e rituais são grandes, porém a diferença econômica é relativamente nula.

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após o pesquisador e seu assistente trazer suas respectivas esposas e filhos ao

conhecimento da aldeia.

Mas o relato mais notável, dentre muitos outros, foram as conseqüências da

troca do assistente, pois o primeiro, Sharma, o brâmane adoeceu tornando impossível

sua permanência na aldeia, foi quando um segundo assistente, um professor

mulçumano denominado Mohammed sem nenhuma familiaridade com pesquisas

etnográficas proporciona uma maior aproximação com as castas baixas. Gerald

Berreman explica porque este grupo era reticente e fugidio.

Nossos informantes eram fundamentalmente aldeões de casta alta, que pretendiam nos impressionar com a sua quase total conformidade aos padrões de comportamento e crença dos membros das castas altas dos vales. Os membros das castas baixas eram respeitosos e reticentes, frente a nós, principalmente, como descobrimos, porque um de nós era brâmane e éramos estreitamente identificados com os poderosos aldeões de casta alta. (BERREMAN, 1980, p. 136).

Berreman relata que o primeiro informante chegava a influenciar a conversa

quando se tratava de apresentar a um americano (o etnógrafo) uma imagem de seu

próprio povo, por outro lado, as conversas com a presença de Mohammed começaram

a se mostrar reveladoras com os membros das castas baixas. O fato deste comer carne

e beber bebidas alcoólicas foi um motivo de aproximação pois os pesquisadores

começaram a saber de festas freqüentes que serviam bebidas, e por vezes de caráter

inter-castas e com o tempo também passaram a ser convidados para estes eventos

onde estranhos eram excluídos.

Somente a partir da inesperada troca de assistente, é que o pesquisador pôde

transitar entre os grupos da aldeia e chegar a informações importantes, principalmente

porque os membros das castas baixas não apresentavam tanta resistência como os de

castas altas, pois estes últimos tinham uma impressão a manter enquanto os intocáveis

não temiam em revelar os chamados “segredos” que detinham por servirem certas

vezes os membros de casta alta.

Em sua análise, Berreman trata exatamente do controle de impressões e afirma:

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O etnógrafo surge diante de seus sujeitos como um intruso desconhecido, geralmente inesperado e frequentemente indesejado. As impressões que estes têm dele determinarão o tipo e a validez dos dados aos quais será capaz de ter acesso e, portanto, o grau de sucesso de seu trabalho. Entre si, o etnógrafo e seus sujeitos são, simultaneamente, atores e público. Têm que julgar os motivos e demais atributos de uns e de outros com base em contato breve, mas intenso, e, em seguida, decidir que definição de si mesmos e da situação circundante desejam projetar; o que revelarão e o que ocultarão, e como será melhor faze-lo. Cada um tentará dar ao outro a impressão que melhor serve aos seus interesses, tal como os vê. (BERREMAN, 1980, p. 141).

Neste caso em particular, a postura dos interpretes-assistentes também era

afetada pelo controle de impressões, pois enquanto Sharma buscava controlar as

impressões do etnógrafo a respeito de sua gente e do hinduísmo, Mohammed, o

mulçumano mantinha pouco envolvimento com o sistema de castas e, portanto pouco

interesse pessoal na impressão que o etnógrafo pudesse ter sobre os costumes

religiosos da aldeia. Enquanto o primeiro mantinha uma preocupação em manter seu

status pessoal, o mulçumano preocupava-se com a impressão dos aldeões com a

equipe de etnógrafos. Sharma direcionava a conversa inclusive para evitar

constrangimentos enquanto o segundo assistente deixava o pesquisador mais livre

atendo-se apenas a sua atividade de interprete.

Apesar de um distanciamento das castas altas por estar acompanhado de um

“intocável”, o pesquisador pôde tomar conhecimento inclusive das relações inter-castas;

dos segredos das castas altas, uma vez que os membros de castas baixas não tinham

nenhum constrangimento em revelar; e ainda de uma separação dentro das castas

baixas.

É possível afirmar que os resultados da pesquisa não seriam os mesmo se não

tivesse acontecido a “troca” de assistentes, por outro lado, ficou claro quais eram os

atores capaz de revelar segredos e por fim, que nem sempre o fator identificação

influencia no contato com os sujeitos, mas o tempo suficiente de permanência em

campo é sempre necessário. O texto de Berreman é extremamente revelador quanto as

questões eventuais e inesperadas de um trabalho de campo; é essencial ao

conhecimento das primeiras relações entre pesquisador e grupo pesquisado e

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descritivo analítico quanto as nuances do controle das impressões e de como lidar com

os atores e seus segredos em campo.

O outro trabalho aqui mencionado “Sociedade de esquina: a estrutura social de

uma área urbana pobre e degradada” de William Foote-Whyte originalmente publicado

em 1943 diferencia-se sobremaneira do texto anterior por se tratar de uma pesquisa

realizada no espaço urbano, em meio ao tempo e espaço do pesquisador 5. Consiste

numa extensa pesquisa de campo com observação participante em um distrito de

pequeno porte localizado em Boston nos Estados Unidos. Este estudo traz uma

brilhante apreensão da realidade vivida por um grupo situado numa região marcada

pela imigração italiana e pelas condições de vida precárias em relação ao resto da

sociedade. Neste cenário o autor desvenda a relação das pessoas com o mundo da

política e do crime. Tendo como enfoque as redes sociais, o autor percebe os vínculos

de lealdade dentro da esfera política, a peculiar relação destes indivíduos com os

favores e o dinheiro e ainda as práticas eleitorais e de corrupção e obrigações mútuas

que cercavam os atores sociais.

De duração maior, esta pesquisa foi realizada em três anos, o autor muda-se

para o bairro e é necessário um longo período de negociação para sua inserção nesse

“grupo”. Com redefinição de objetivos, o pesquisador comete algumas gafes

reincidentes a este tipo de trabalho e como tantos outros, percebe que é fundamental a

presença de um intermediário para realizar sua observação. Apresenta de maneira

clara a importância de um "Doc", termo empregado para definir um informante-chave,

que constitui neste trabalho uma espécie de mediador, capaz de garantir o acesso à

localidade revelando-se também um conselheiro e protetor, alertando e defendendo o

pesquisador de eventos inesperados próprios ao trabalho de campo.

A entrada do autor no grupo estudado a princípio não carecia de explicações

enquanto esse esteve acompanhado de seu informante. Diferente da experiência de

Berreman no Himalaia, em “Cornerville”, nome fictício dado ao local da pesquisa de

Foote-White, havia um certo desinteresse pelo motivo real daquele estranho no bairro.

5 Trata-se do versado exercício pontuado por Da Matta de transformar o familiar em exótico, na intenção de se distanciar, “tirar a capa de membro de uma classe e de um grupo social específico” para então perceber o exótico, dentro do que é tão facilmente assimilado pela familiaridade e constância no cotidiano de nossas instituições.

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Comecei com uma explicação um tanto elaborada. Eu estaria estudando a história social de Cornerville, mas possuía uma nova perspectiva. Ao invés de trabalhar do passado para o presente, estava buscando o conhecimento exaustivo das condições atuais para depois partir do presente em direção ao passado. Eu estava muito satisfeito com esta explicação, mas ninguém parecia dar importância a ela. [...] Logo descobri que as pessoas estavam desenvolvendo a sua própria explicação sobre mim: eu estava escrevendo um livro sobre Cornerville. Como esclarecimento isso podia parecer inteiramente vago e, no entanto, era suficiente. Descobri que a minha aceitação no bairro dependia muito mais das relações pessoais que desenvolvesse do que das explicações que pudesse dar. Escrever um livro sobre Cornerville seria bom ou não, dependendo da opinião expressa a respeito de minha pessoa. Se eu fosse uma boa pessoa, o projeto era bom, se não fosse, nenhuma explicação poderia convencê-los de quer o livro era uma boa idéia. (FOOTE-WHYTE, 1980, p. 79).

Desta forma, é possível afirmar que cada experiência traz suas especificidades e

que o cuidado com a observação dos costumes e a inserção do pesquisador no grupo

ou localidade deve ser de maneira apropriada. Neste caso, o autor declara: “aprendi, a

importância crucial de obter o apoio de indivíduos-chaves em todos os grupos ou

organizações que estivesse estudando”. Foote-Whyte percebeu que explicar sua

presença a líderes dos grupos e ganhar a confiança destes surtia um melhor efeito, pois

seu próprio “Doc” ao ser questionado sobre ele, respondia as perguntas e restabelecia

a confiança no que fosse preciso. Aos poucos seu informante passou desta para a

qualidade de colaborador da pesquisa ao contribuir com discussões e idéias sobre as

propostas e finalidades do trabalho e particularmente sobre como se aproximar dos

moradores, como e quando deveria perguntar ou calar.

Apesar de se tratar de uma pesquisa urbana e ter uma certa familiaridade com

os costumes dos moradores, nota-se uma série de nuances e contratempos que

permeiam o contato do pesquisador com os moradores de uma região marcada pela

presença de grupos internos e consequentemente de líderes e questões adversas

como questões políticas e presença de pessoas ligadas a máfia italiana.

Mas, uma questão que carece ser mencionada foi o grau de envolvimento do

pesquisador com os hábitos dos moradores, Foote-Whyte conta o quanto seu

comportamento foi afetado por este convívio.

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Descobri que as pessoas não esperavam que eu fosse igual a elas; na verdade, sentiam-se atraídas e satisfeitas pelo fato de me acharem diferente, contanto que eu tivesse amizades por elas. Em conseqüência parei de esforçar-me por uma interação completa. Ainda assim meu comportamento foi afetado pela vida na rua. Quando John Howard veio pela primeira vez de Harvard para colaborar no estudo de Cornerville notou imediatamente que me expressava em Cornerville de modo diferente do usual em Harvard. O problema não era o emprego de palavrão ou obscenidades, nem de expressões gramaticais incorretas. Eu me expressava de um modo que me parecia natural, mas o que era natural em Cornerville não o era em Harvard. Em Cornerville eu falava mais entusiasticamente, engolindo os finais e gesticulando muito. (FOOTE-WHYTE, 1980, p. 82-83).

Este relato ensina que o pesquisador não deve querer se mostrar igual ao grupo

pesquisado e ter em mente que também é constantemente observado. Com o tempo, a

aproximação se fez inevitável, a ajuda a certas tarefas dos moradores como o auxílio

perante uma entrevista de emprego ou companhia a uma incubência passa a tornar-se

rotina, porém, o empréstimo de dinheiro por parte do pesquisador, pode prejudicar o

crescimento da ligação.

A observação participante implica saber ouvir, escutar, ver, fazer uso de todos os

sentidos. É preciso ponderar sobre o momento certo para perguntas e por vezes

esperar mais do que o imaginado. As entrevistas formais são muitas vezes

desnecessárias, devendo a coleta de informações não se restringir a isso. Com o tempo

os dados podem vir ao pesquisador sem que ele faça qualquer esforço para obtê-los e

isto pode ajudar significativamente na manutenção do relacionamento estabelecido.

Este trabalho é referência nos estudos da chamada “antropologia da política” 6 e

é perpassado pela observação participante e como visto, de ensinamentos sobre esta

atividade. Sabe-se que diversos trabalhos podem ser mencionados como modelos de

estudos sobre temas urbanos, o que faz deste um exemplo, é exatamente a capacidade

de desvendar o que aparentemente não está escondido, mas que o autor consegue

desnudar em seu relato, como a relação entre os políticos e suas bases; as nuances da

disputa entre candidatos e particularmente os resultados obtidos com a observação dos 6 Termo utilizado atualmente em vez da expressão “antropologia política” na qual o termo política podia ser confundido com uma adjetivação enquanto o termo antropologia da política refere-se exatamente a um campo específico de investigação e não a uma posição ideológica. Ver em: KUSCHNIR, Karina. Antropologia da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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comícios políticos e seus rituais adjacentes. Ao descrever o dia da eleição, por

exemplo, Foote-Whyte expõe as formas de controle sobre os eleitores – o que se

mostra bem singular nesta cidade - e os esquemas de corrupção e fraude, tudo com

riqueza de detalhes. Revela-se ainda um manual da prática etnográfica, das

especificidades que podem surgir em campo e, sobretudo, da capacidade de perceber

além do familiar, pois conforme Da Matta, nem sempre o que vemos e convivemos é

necessariamente conhecido.

3. Estudos urbanos – observação participante no espaço “familiar”

Os fenômenos e as práticas dos indivíduos em suas atividades urbanas, em

organizações modernas e cidades são campos de investigação cada vez mais presente

nesta área, a antropologia urbana tem contribuído para compreender a natureza

complexa dessas realidades sociais e culturais. Neste contexto, o grau de

familiaridade com o objeto de estudo é tido por muitos como um empecilho, se for

considerado igual a conhecimento. Diferentes autores falam da preocupação constante

com a necessidade de uma “distância mínima” do objeto investigado que garanta a

objetividade, mas é certo que essa premissa não é compartilhada por toda a

comunidade acadêmica onde prevalece ainda a noção de que é inevitável a existência

de um envolvimento com o objeto de estudo e que este fato não constitui na verdade

um empecilho ou que automaticamente relegue falhas ou tropeços ao trabalho.

É evidente que observar uma comunidade dita primitiva é uma tarefa distinta de

observar um fenômeno de uma sociedade moderna, contudo, as práticas etnográficas

têm suas bases independentes de tal distinção. Gilberto Velho já alertara sobre a

questão da distância social e psicológica assim como Roberto da Mata apontara suas

“fórmulas” de transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico.

Apesar da concepção da antropologia estar relacionada ao estudo dos povos

primitivos, o homem moderno e suas práticas constituem objeto de investigação

igualmente interessante e de certa forma mais “acessível” ao estudo. A vida e a cultura

urbanas por mais variadas e complexas que sejam, mas em sua observação

presenciamos os mesmos métodos de observação despendidos em estudos clássicos

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sobre povos exóticos e sociedades primitivas, como os trabalhos de antropólogos tais

como Willian Foote-Whyte, sendo este contemplado em alguns poucos aspectos neste

texto e Robert Ezra Park, dentre outros.

Gilberto Velho ao contemplar esta questão, afirma que “o que sempre vemos e

encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido e o que não

vemos e encontramos pode ser exótico, mas até certo ponto conhecido” e destaca a

complexidade do fator “distância” diante do objeto de estudo.

Da janela do meu apartamento vejo na rua um grupo de nordestinos, trabalhadores de construção civil enquanto a alguns metros adiante conversam alguns surfistas. Na padaria há uma fila de empregadas domésticas, três senhoras de classe média conversam na porta do prédio em frente; dois militares atravessam a rua. Não há dúvida de que todos estes indivíduos e grupos fazem parte da paisagem, do cenário da rua, de modo geralestou habituado com a sua presença, há uma familiaridade. Mas, por outro lado, o meu conhecimento a respeito de suas vidas, hábitos, crenças, valores é altamente diferenciado. Não só o meu grau de familiaridade, nos termos de Da Matta, está longe de ser homogêneo, como o de conhecimento é muito desigual. No entanto, todos não só fazem parte de minha sociedade, mas são meus contemporâneos e vizinhos. (VELHO, 1978, p. 39).

Na verdade, o convívio com os indivíduos numa sociedade, ou mesmo uma certa

‘paisagem social’, para usar o termo do autor, apresenta-se de forma familiar, de

maneira a ser possível uma classificação dos sujeitos em categorias mais gerais, fato

que não significa, porém, que esta visualização permita uma compreensão da lógica de

suas relações. O autor menciona ainda que este “conhecimento” pode ser dificultado

por esta “aproximação” com o objeto investigado.

O meu conhecimento pode estar seriamente comprometido pela rotina, hábitos, estereótipos. Logo, posso ter um mapa, mas não compreendendo necessariamente os princípios e mecanismos que o organizam. O processo de descoberta e análise do que é familiar pode, sem dúvida, envolver dificuldades diferentes do que em relação ao que é exótico. Em princípio dispomos de mapas mais complexos e cristalizados para nossa vida cotidiana do que em relação a grupos ou sociedades distantes ou afastados. (VELHO, 1978, p. 41).

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A realidade, seja esta familiar ou exótica, como em outros termos pontuado pelos

autores aqui mencionados, é sempre filtrada sob algum ponto de vista do observador,

ou seja, a investigação etnográfica é sempre interpretativa.

4. Considerações finais

Um relato etnográfico está sempre perpassado de interpretações, seja sua

escrita marcada pelo caráter dialógico ou polifônico, o relato não deixa de se apresentar

enquanto resultado de uma interpretação de uma objetividade relativa.

Perante a subjetividade das relações sociais e mesmo da contingência da mente

humana, é aceitável que novas perspectivas e opiniões acadêmicas surjam e

redimensione a discussão sobre o exercício e a escrita etnográfica, porém o indiscutível

é a importância da presença em campo do pesquisador por tempo suficiente e

acompanhado de informantes ou assistentes, considerando é claro as subjetividades e

papel social também deste personagem dentro da sociedade em que atua.

Vale ressaltar, lembrando os dois estudos considerados aqui especificamente,

que foi percebido tanto na pesquisa de Gerald Berreman quanto no relato de Foote-

Whyte, que “quando o pesquisador está tentando participar de mais de um grupo, seu

trabalho se complica”. (FOOTE-WHYTE, 1980, p. 84). Existem conflitos dentro de uma

organização social, e o pesquisador de campo precisa estar preparado e por vezes se

definir como o caso descrito em “Sociedade de Esquina” 7 e a eminente troca de

informantes na pesquisa de Berreman no Himalaia.

Uma observação detalhada aos relatos destes dois autores possibilitou também

uma compreensão da atividade etnográfica tanto junto a uma aldeia indiana fechada a

entrada de estranhos, extremamente estratificada e com costumes totalmente

diferentes do pesquisador quanto em um relato resultante do trabalho de campo em

uma sociedade urbana com sujeitos característicos do cotidiano do pesquisador. Não

obstante os detalhes diferenciados, as pesquisas fornecem dados para a compreensão

7 Dois grupos cercavam o cotidiano do pesquisador em Cornerville: Os “Nortons” e o “clube comunidade Italiana”. Em uma partida de boliche entre os dois grupos, a torcida do pesquisador se evidenciou para os Nortons. Igualmente quando defendeu os rapazes deste grupo de provocações de outro rapaz e ainda ao participar de uma disputa de baseball ganhando a confiança e identificação dos mesmos.

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da observação participante, suas especificidades, rotinas científicas, adversidades e

experiência humana.

Exemplos repletos de detalhes valiosos para as diferentes etapas da pesquisa de

campo, que podem ser apreendidos tanto para a atividade etnográfica de estudos

antropológicos, como para investigações jornalísticas, sociológicas, historiográficas, etc.

Trata-se de um método recorrente às pesquisas nas ciências sociais e humanas, que

requerem um contato direto entre investigador e pesquisados, e como as relações

humanas são perpassadas por subjetividades, fica evidente a necessidade de técnicas

de aproximação, bem como da busca da neutralidade por parte do pesquisador.

Técnicas reveladas prioritariamente a partir da experiência e dos relatos de

conhecedores da atividade da pesquisa de campo.

Referências bibliográficas BERREMAN, Gerald. Por detrás de muitas máscaras. In: Desvendando máscaras sociais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1980. CLIFFORD, A Experiência Etnográfica - Antropologia e Literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 1998. (Org. José Reginaldo Santos Gonçalves). DA MATTA, Roberto. O Ofício de Etnólogo, ou como ter “Anthropological Blues”. In: Edson de Oliveira Nunes (Org.). A aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. KUSCHNIR, Karina. Antropologia da Política. Rio de janeiro: Zahar, 2007. VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: Edson de Oliveira Nunes (Org.). A aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. WHYTE, William Foote. Sociedade de Esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Tradução de Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. _____________________. Treinando a observação Participante. In: Desvendando máscaras sociais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1980.