Uma Teoria Etnografica Da Democracia - Marcio Goldman

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311 Etnográfica, Vol. IV (2), 2000, pp. 311-332 UMA TEORIA ETNOGRÁFICA DA DEMOCRACIA: A POLÍTICA DO PONTO DE VISTA DO MOVIMENTO NEGRO DE ILHÉUS, BAHIA, BRASIL Este trabalho visa apresentar uma análise etnográfica da participação de um segmento do movimento negro da cidade de Ilhéus, situada no sul do estado da Bahia, Brasil, nas eleições municipais de 1992 e 1996. Os eventos narrados são relacionados entre si, bem como com alguns fatos anteriores e, principalmente, com acontecimentos que chegam até 1999. A partir daí, procura-se desenvolver uma perspectiva mais geral a respeito da participação dos “eleitores” no chamado processo democrático dos modernos estados-nação, explorando tanto fenômenos como as “promessas eleitorais” e a “compra de votos”, quanto conceitos como reciprocidade e subjetividade. Pretende-se, assim delinear uma abordagem mais geral, elaborando os esboços de uma verdadeira “teoria etnográfica da democracia”. Marcio Goldman “Ninguém deverá se espantar se votos forem comprados a dinheiro. Não se pode dar muito ao povo sem retirar dele ainda mais”. (Montesquieu, O Espírito das Leis, livro oitavo, cap. II) O material empírico dessa apresentação deriva da pesquisa que realizo desde 1996 na cidade de Ilhéus, no sul da Bahia, no nordeste do Brasil. Meu trabalho inicial como antropólogo concentrou-se nos chamados cultos afro- -brasileiros; após um investimento na história do pensamento antropológico, passei a me dedicar, a partir de 1993, a uma investigação de “antropologia da política”, direcionada para o estudo do processo eleitoral e do voto na sociedade brasileira. Em 1996, essa investigação deslocou-se para Ilhéus, e em 1997 passou a fazer parte de um projeto interinstitucional mais amplo, que denominamos “Uma Antropologia da Política”, reunindo uma série de pesquisadores que trabalham sobre temas tidos usualmente como perten- centes à ordem da “política”. Diferentemente da “antropologia política” tradicional, procuramos evitar conceber “a política” como um domínio, ou mesmo um processo, específico, definível objetivamente de fora. Ao contrá- rio, trata-se, de modo geral, de investigar fenômenos relacionados àquilo que, “do ponto de vista nativo”, é considerado como “política”. Foi assim que retornei a Ilhéus, quase 13 anos após ter aí realizado a pesquisa de campo que compôs parte de minha dissertação de mestrado sobre a possessão no candomblé. Meu trabalho se concentrara no Ewá Tombency Neto, terreiro da “nação Angola” fundado em 1885, que se organiza hoje sobre uma base familiar composta pela mãe-de-santo, seus quatorze

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Uma teoria etnografica da democracia Marcio Goldman

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  • Uma Teoria Etnogrfica da Democracia

    311Etnogrfica, Vol. IV (2), 2000, pp. 311-332

    UMA TEORIAETNOGRFICA

    DA DEMOCRACIA:A POLTICA DO

    PONTO DE VISTADO MOVIMENTO NEGRO

    DE ILHUS, BAHIA,BRASIL

    Este trabalho visa apresentar uma anliseetnogrfica da participao de um segmento domovimento negro da cidade de Ilhus, situada nosul do estado da Bahia, Brasil, nas eleiesmunicipais de 1992 e 1996. Os eventos narradosso relacionados entre si, bem como com algunsfatos anteriores e, principalmente, comacontecimentos que chegam at 1999. A partirda, procura-se desenvolver uma perspectivamais geral a respeito da participao doseleitores no chamado processo democrtico dosmodernos estados-nao, explorando tantofenmenos como as promessas eleitorais e acompra de votos, quanto conceitos comoreciprocidade e subjetividade. Pretende-se, assimdelinear uma abordagem mais geral, elaborandoos esboos de uma verdadeira teoria etnogrficada democracia.Marcio Goldman

    Ningum dever se espantar se votos forem comprados a dinheiro.No se pode dar muito ao povo sem retirar dele ainda mais.

    (Montesquieu, O Esprito das Leis, livro oitavo, cap. II)

    O material emprico dessa apresentao deriva da pesquisa que realizodesde 1996 na cidade de Ilhus, no sul da Bahia, no nordeste do Brasil. Meutrabalho inicial como antroplogo concentrou-se nos chamados cultos afro--brasileiros; aps um investimento na histria do pensamento antropolgico,passei a me dedicar, a partir de 1993, a uma investigao de antropologiada poltica, direcionada para o estudo do processo eleitoral e do voto nasociedade brasileira. Em 1996, essa investigao deslocou-se para Ilhus, eem 1997 passou a fazer parte de um projeto interinstitucional mais amplo,que denominamos Uma Antropologia da Poltica, reunindo uma srie depesquisadores que trabalham sobre temas tidos usualmente como perten-centes ordem da poltica. Diferentemente da antropologia polticatradicional, procuramos evitar conceber a poltica como um domnio, oumesmo um processo, especfico, definvel objetivamente de fora. Ao contr-rio, trata-se, de modo geral, de investigar fenmenos relacionados quiloque, do ponto de vista nativo, considerado como poltica.

    Foi assim que retornei a Ilhus, quase 13 anos aps ter a realizado apesquisa de campo que comps parte de minha dissertao de mestradosobre a possesso no candombl. Meu trabalho se concentrara no EwTombency Neto, terreiro da nao Angola fundado em 1885, que se organizahoje sobre uma base familiar composta pela me-de-santo, seus quatorze

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    filhos carnais e respectivas famlias. Em 1986, alguns membros do Tombencyfundaram o Grupo Cultural Dilazenze, cujo objetivo principal a preser-vao e divulgao da cultura afro-brasileira na regio sul da Bahia, e quefaz parte do movimento negro de Ilhus. Movimento de duas vertentes: deum lado, uma seo do Movimento Negro Unificado (MNU), de carternacional; de outro, um conjunto de grupos que se autodesignam comomovimento afro-cultural, e denunciam o que consideram ser o carterexcessivamente poltico do MNU, o fato de que este no estaria interes-sado na preservao e divulgao da cultura afro, mas em fazer poltica.Cultura e poltica so, pois, objetivadas como categorias em oposio.Em 1989 foi fundado o Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhus(CEAC), que rene cerca de dez grupos autodefinidos como culturais (seuatual presidente o presidente do Dilazenze).

    Assim, aps estudar o candombl no Tombency, passei a me dedicarao estudo da poltica de Ilhus, ou mais precisamente, ao estudo dapoltica em Ilhus encarada do ponto de vista de seu movimento afro-cul-tural e, mais particularmente, do Grupo Cultural Dilazenze. A preciso importante e possui uma srie de importantes implicaes sobre as quais noinsistirei aqui. Basta dizer que essa definio do trabalho obriga a tratar aschamadas representaes nativas sobre poltica como teorias polticasque preciso levar muito a srio e com as quais absolutamente necessrioestabelecer um dilogo.

    Algumas consideraes gerais

    Antes de entrar no material etnogrfico propriamente dito, algumas consi-deraes de ordem geral. H alguns anos, por ocasio de um encontroacadmico, ao tentar explicitar o que poderia significar o estudo antropol-gico das eleies, sustentei pretensiosamente que o objetivo de um trabalhodesse tipo seria, em ltima instncia, a capacidade de produzir uma pers-pectiva sobre nosso prprio sistema poltico equivalente quela elaborada,por exemplo, por Evans-Pritchard para os Nuer. Perguntaram-me, ento, seuma tal posio no seria por demais arriscada j que parecia supor oupregar algum tipo de relativizao da democracia, a qual, segundo minhainterlocutora, representaria um enorme perigo tico e poltico.

    No recordo muito bem o que respondi na ocasio, mas lembro de umcerto espanto ao me defrontar com uma objeo que, no limite, significariaum obstculo quase intransponvel para a anlise antropolgica de nossaprpria sociedade ou, ao menos, para a anlise do que pode haver a demais relevante. Compreendi, contudo, de imediato que uma postura dessanatureza possa ser defendida no contexto brasileiro. Afinal, a histria poltica

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    recente do pas contada como a de uma difcil luta por sua (re)demo-cratizao. Aps uma instvel experincia democrtica no ps-guerra, o pasmergulhou, por mais de duas dcadas, em uma ditadura militar, da qual ssaiu, lenta e gradualmente, com a abertura poltica empreendida peloprprio regime militar, que culminou com a eleio, ainda indireta, de umpresidente civil, e, em 1989, com a primeira eleio direta aps quase trintaanos. Quis o destino que o presidente assim eleito tivesse sofrido umprocesso de impedimento legal, o que, na prtica, teria feito com que aseleies de 1994, com a escolha de um intelectual, antigo opositor do regimemilitar e de tendncia supostamente social-democrata, consistissem noverdadeiro marco da instaurao plena da democracia.

    claro que a esse relato opem-se outros, que insistem na posturaantidemocrtica assumida pelas elites e pela mdia, nas imperfeies de umsistema eleitoral ultrapassado, na falta de educao poltica de um povopobre. No obstante, compreende-se perfeitamente que, sobre um fundohistrico narrado na chave da redemocratizao, mesmo aqueles que acre-ditam que o Brasil ainda no viva em um regime democrtico perfeitodesconfiem com fora de qualquer tentativa, real ou suposta, de relativizara democracia.

    Mas, suponhamos por um instante que por estado democrticopossamos entender aproximadamente aquele

    que apela aos princpios da democracia poltica, cujo governo procede de elei-es livres (no sentido de que os cidados podem efetivamente escolher en-tre candidatos ao poder realmente diferentes), que pratica uma certa separaoentre as ordens legislativa, executiva e judiciria, que num plano mais geralreconhece serem os conflitos constitutivos da existncia social e, pelo menosem princpio, afirma que a negociao o melhor meio para resolv-los, e queadmite ser a funo do Direito a de garantir a liberdade das pessoas (e de seusbens) e sua igualdade perante a lei (Chtelet e Pisier-Kouchner 1983: 170).

    Mesmo acreditando em uma tal definio, difcil deixar de argumentar, comMichel Offerl (1993: 139-140), que uma das condies histricas de pos-sibilidade para a existncia de um sistema assim concebido a produo deum eleitor que no seja excessivamente passivo mas, ao mesmo tempo, queno se torne por demais ativo: toda uma domesticao do eleitor, uma orto-pedia social inseparvel da democracia. Ou poderamos recordar, dessa vezcom Michel Foucault, que sem dvida, o sculo XVIII inventou as liberdades;mas ele lhes forneceu um subsolo profundo e slido a sociedade disciplinar,da qual ainda somos um produto (Foucault 1975: 4 capa).1

    1 Trata-se da hiptese de que os regimes democrticos modernos liberais s so possveis devido a um longo trabalhoprvio de disciplinarizao de seus cidados (Pizzorno 1988: 244). O ponto aqui, evidentemente, no crer ou nocrer na democracia, mas no ser ingnuo e reconhecer, com Michael Herzfeld, que a democracia (ou melhor, a

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    No se trata aqui, contudo, de entrar nos sutis debates da cincia ouda filosofia polticas. O problema que ao estudar o funcionamento efetivode um sistema poltico, o etngrafo se defronta com uma srie de prticas queno podem ser reduzidas a modelos ideais to bem acabados. E no sequernecessrio que o antroplogo pretenda converter a produo do eleitor oua disciplinarizao da sociedade em seus objetos de estudo imediatos. Bastaque ele se dedique ao essencial do mtier: elaborar o que Malinowski poderiadenominar uma teoria etnogrfica da democracia.2 Uma teoria em queprticas e normas no se oponham mas se articulem; onde os ideais e asrealidades formem o acompanhamento obrigatrio uns dos outros; onde dadose teorias no faam dois, de modo que a construo de modelos deinteligibilidade a partir e para um determinado contexto possa funcionar comomatriz de deciframento de contextos outros e vice-versa.

    Desse ponto de vista, a hiptese de Paul Veyne (1984) acerca de umaduplicidade constitutiva da chamada democracia grega crucial. Cha-mando a ateno para o fato de que entre essa democracia e aquela queemerge no sculo XVIII apenas o nome permanece, Veyne mostra que o casogrego se apoiava, na verdade, sobre a coexistncia e alternncia de doismodelos bem diferentes: o militante semelhante ao clima mental dospartidos polticos ativistas (Veyne 1984: 58), onde um homem que no fazpoltica no passa por um homem tranquilo, mas por um mau cidado(Veyne 1984: 60) , e o governo de uma minoria ativa, que conta com umacerta averso pela participao poltica. No difcil, assim, perceber que achamada democracia representativa apoia-se igualmente sobre umaambiguidade constitutiva: de um lado a representao poltica, de outro aprofissionalizao. A representao, como o militantismo antigo, constituinosso semi-ideal, mais que uma ideologia, sem chegar a ser uma prtica(Veyne 1984: 58); a profissionalizao moderna, como o ativismo antigo,constitui, por outro lado, uma prtica sempre busca de um modo deexpresso (ver Bourdieu 1989).

    No se trata aqui de imaginar que o ideal se oponha s prticas.Ao contrrio, apenas sobre o pano de fundo do semi-ideal da democraciarepresentativa que prticas como as que produzem o eleitor ou a profis-sionalizao da poltica podem fazer sentido e funcionar. Do mesmo modo, apenas apoiando-se sobre prticas dessa natureza que a idia de democraciarepresentativa pode sobreviver e continuar a ser sustentada contra todas asevidncias do cotidiano. Na verdade, ao invs de opor normas e compor-tamentos, trata-se de trabalhar com a hiptese avanada por Foucault (1984:

    democratizao) no necessariamente o equivalente de uma maior tolerncia (Herzfeld 1996: 83), e que, comoqualquer regime, este tambm envolve uma poltica de excluses (Herzfeld 1996: 111).2 em Coral Gardens and their Magic que Malinowski prope a elaborao de uma teoria etnogrfica da linguageme da magia (ver Malinowski 1935: 2 vol.; ver tambm Tambiah 1985a).

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    32-33) em seus estudos sobre a tica antiga.3 certo que existem, de umlado, regras polticas e, de outro, comportamentos polticos. A democracia,como qualquer sistema poltico ou social, composta por essas duasdimenses, e se os comportamentos no correspondem s normas podemossempre acionar o sistema repressivo ou construir belos modelos destinadosa explicar por que isso no acontece. Modelos que, no caso brasileiro, tendema apelar para o carter recente de sua democracia, para a falta de educaopoltica do povo, para a inconsequncia das elites, para lacunas da legislaoeleitoral, para o descalabro da mdia, etc.4 Explicaes que no so falsas,mas que deixam de lado uma terceira dimenso to constitutiva da polticaquanto da tica: a dimenso da subjetividade. Sem se confundir com umsujeito originrio, essa dimenso consiste em um certo tipo de relao comos outros e consigo que articula necessariamente, e de formas distintas,regras e comportamentos. No mesmo sentido em que Foucault fala daconstituio de um sujeito moral ou de uma conscincia moral, podera-mos, pois, falar da objetivao de um sujeito poltico e de uma conscinciapoltica.

    O ponto essencial aqui o pressuposto de que um estudo antropo-lgico de nossa vida poltica deve partir necessariamente do privilgioetnogrfico e terico dessa terceira dimenso da poltica. Trata-se, portanto,de no mais indagar sobre regras e comportamentos, seus ajustes e desa-justes, mas sobre prticas; de no mais levantar questes relativas a estru-turas, funes ou mesmo processos, e sim aquelas sobre funcionamentos; deno mais buscar a elaborao de teorias, em geral abstratas, acerca dossistemas ou processos polticos, mas em tentar construir uma teoria etnogrficada democracia, no sentido malinowskiano do termo. Uma teoria queopere sobre

    um nvel em que os fenmenos conservem uma significao humana epermaneam compreensveis intelectual e sentimentalmente para umaconscincia individual [] que no encontra jamais em sua existncia hist-rica objetos como o valor, a rentabilidade, a produtividade marginal ou apopulao mxima (Lvi-Strauss 1958: 398-399).

    3 Devo a Emerson Giumbelli a aproximao entre o tema da subjetivao moral e o que poderamos denominarsubjetivao poltica. Como diz Veyne, o indivduo no se ope sociedade ou mesmo ao estado: ele atingidoem seu cerne pela potncia pblica na medida em que atingido em sua imagem de si mesmo, na relao que temconsigo mesmo quando obedece ao estado ou sociedade (Veyne 1987: 7).4 As abordagens tradicionais sobre poltica eleitoral tendem a ser negativas, no sentido de que a explicao paraas questes levantadas basicamente, porque o eleitor vota de uma determinada maneira so em geral encontradasna falta de algum elemento tido a priori como essencial: racionalidade, informao, tradio e organizao partidrias,eficincia governamental, etc. (Goldman e SantAnna 1996: 22). Parece ter sido necessrio que um membro de seugrupo chegasse ao poder para que os intelectuais comeassem a perceber que podem se comportar politicamente domesmo modo que imaginavam que apenas o povo fazia (justificando seu voto pelas qualidades pessoais de seucandidato, racionalizando a posteriori profundas mudanas de posicionamentos polticos, defendendo, em nome deinteresses superiores, alguns casusmos e continusmos, etc.).

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    Mas, apesar dessas declaraes, o objetivo deste trabalho mais modesto ainda que ele pretenda, claro, ser fiel e exemplificar a posio expostaacima: partindo da etnografia de um caso especfico, trata-se apenas de tentarmostrar as bases sobre as quais essa posio poderia ser construda. O casoem questo foi retirado do material etnogrfico oriundo da pesquisa quedesenvolvo em Ilhus.5

    Eleies em Ilhus e no Brasil

    Na falta de um estudo etnogrfico aprofundado sobre esses temas, direipouca coisa sobre a cidade, a regio e sua histria. Como Richard Handler(1988: 18-19), suponho que o que se denomina conhecimento histrico oumesmo o que poderia ser considerado como descrio objetiva dedeterminado contexto consiste na maior parte dos casos em um conjuntode prticas retricas objetivantes que procuram impor uma srie de inter-pretaes como fatos supostamente objetivos e indiscutveis.6 O que signi-fica que talvez seja mais sensato abster-se de tentar descrever um supostobackground histrico e/ou geogrfico que antecederia as tramas que preten-demos analisar. Na verdade, esses contextos locais e temporais fazem partedessas tramas e s podem aparecer a elas j integrados. Como diz aindaHandler (1988: 70), deveramos evitar recorrer a falsos panos de fundo comopreldio de algum tipo de anlise sincrnica

    Limitar-me-ei, pois, a algumas brevssimas indicaes. A histria deIlhus contada por seus habitantes de um modo curioso para um obser-vador externo: insiste em acontecimentos datados do sculo XVI (fundaoda Capitania Hereditria de So Jorge dos Ilhus em 1535, transformao emvila 30 anos mais tarde, explorao de pau-brasil e acar, ataques dendios); silencia sobre quase tudo o que ocorreu do final do sculo XVI atmeados do XIX (limitando-se a mencionar a decadncia da regio); porfim, retoma a narrativa a partir da introduo e expanso da lavouracacaueira, com a elevao de Ilhus a cidade (1881), as lutas pela terra(incio do sculo XX), o apogeu do cacau e a riqueza por ele trazida(dcada de 20), a crise do cacau (a partir da dcada de 80).7

    5 Paulo Rodrigues dos Santos trabalhou como auxiliar nessa pesquisa em 1996 e o responsvel pela coleta de boaparte do material aqui utilizado. Em 1997 e 1998, Thereza Cristina Cardoso Menezes e Ana Cludia Cruz da Silvarealizaram pesquisa de campo em Ilhus para suas dissertaes de mestrado por mim orientadas no PPGAS, MuseuNacional, UFRJ (ver Menezes 1998, e Silva 1998). Algumas informaes aqui utilizadas foram obtidas ou completadaspor elas. Agradeo especialmente a Ana Cludia Cruz da Silva que comigo discute frequentemente o materialetnogrfico de Ilhus. Desde 1997, Miguel Vale de Almeida desenvolve em Ilhus um projeto de pesquisa paralelo aomeu (ver Almeida 1999).6 O primeiro antroplogo a elaborar o tema do carter apenas relativo da suposta objetividade histrica foi, semdvida, Claude Lvi-Strauss (1962: 338-348).7 Ver, por exemplo, Adonias Filho 1976; Andrade 1996; Barbosa 1994; Heine 1994.

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    O municpio ocupa uma rea de 1700 km2, e possua, em 1996, umapopulao de cerca de 240 000 habitantes, dos quais 72% viviam na regiourbana. Quase 85% da populao de Ilhus declarou ao Censo Demogrficode 1991 ser parda ou preta (em Salvador, a percentagem de 78%, naBahia 79%, e no Brasil 47,5%). O nmero de eleitores aptos a votar em 1998foi de pouco mais de 100 000 pessoas (dos quais apenas cerca de 65 000efetivamente votaram). Embora no haja estatsticas oficiais sobre desem-prego, estima-se que o ndice atual deva estar situado acima de 30%. O Dila-zenze e mais trs grupos afro-culturais tem sua sede na Conquista, umbairro grande (o mais populoso da cidade, com quase 19 000 habitantes),situado em um morro prximo do centro da cidade, de populao pobre ede ampla maioria negra.

    Enfim, algumas informaes sobre o sistema eleitoral brasileiro.Trata-se de um regime presidencialista bicameral, no qual eleiesgerais, realizadas de quatro em quatro anos, escolhem o Presidente daRepblica, os governadores dos estados, os membros de uma das cmaraslegislativas federais, o Senado, cujo mandato de oito anos cargos ditosmajoritrios , bem como os ocupantes dos cargos da outra cmarafederal (a Cmara de Deputados), das cmaras estaduais (AssembliasLegislativas) cargos chamados proporcionais. Alternadamente, tambmde quatro em quatro anos, so realizadas eleies municipais, que escolhemos Prefeitos dos Municpios (cargo majoritrio) e os membros dascmaras municipais ou Cmaras de Vereadores (cargos proporcionais).O voto obrigatrio entre os 18 e 70 anos, e facultativo a partir dos 16 eaps os 70.

    Em todas as eleies majoritrias, os partidos apresentam umcandidato para cada nvel em disputa (a no ser quando concorrem emcoligaes); o eleitor vota em um nome, e o mais votado eleito. Naseleies proporcionais, os partidos apresentam uma lista de candidatospara cada nvel em disputa e o eleitor vota em apenas um nome. Os votosvlidos e os em branco so somados, e o total dividido pelo nmero decadeiras a preencher, obtendo-se o quociente eleitoral. Apenas ospartidos com votos acima do quociente eleitoral disputam as vagas. Osvotos de cada partido cuja votao total fica acima do quociente eleitoralso divididos por esse nmero, obtendo-se o quociente partidrio nmero de cadeiras obtidas por cada partido, preenchidas, na ordem, pelosmais votados de cada um deles. Finalmente, as sobras da diviso servempara redistribuir as cadeiras restantes atravs de uma frmula especfica.Em 1996, em Ilhus, por exemplo, o quociente eleitoral foi de 3549 votos;o vereador eleito menos votado teve 452 votos, e o mais votado teve 1150votos.

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    A poltica em Ilhus

    Em Ilhus h um modo de pronunciar a palavra poltica que remete oouvinte quase inequivocamente para todo o desprezo suscitado pela menoou lembrana desse tipo de atividade, desprezo que aponta para uma curiosapeculiaridade da pesquisa sobre poltica. A prtica tradicional do antro-plogo costuma confront-lo com situaes em que, por convico ou sim-ples profissionalismo, deve se comportar como um ctico que se defrontacom pessoas, grupos ou mesmo sociedades que ele concebe, em maior oumenor grau, como crentes. Que isso seja um dado objetivo, um pressu-posto de ordem metodolgica, ou algum tipo de projeo etnocntricainteressa pouco aqui. O importante que no caso da poltica tudo parecese passar de forma bem diferente: em relao a esse assunto em particularso nossos informantes que costumam ser cticos e os antroplogos maisou menos crdulos.

    Essa observao aparentemente sem consequncias nos coloca nocentro da questo a ser aqui discutida. Porque por poltica, em Ilhus,pode-se entender coisas razoavelmente diferentes: as administraes pblicasmunicipal, estadual e federal fazem parte da poltica, claro; o perodoeleitoral chamado a poltica, e se diz que a poltica comeou ou acabou(assinalando-se, assim, o incio ou fim da campanha eleitoral), ou que anode poltica (ou seja, ano eleitoral), e assim por diante.8 Mas polticatambm, e talvez principalmente, aquilo que os polticos fazem: acordos,arranjos, favores, pedidos, promessas, articulaes, manipulaes, acusaes,barganhas, etc. Concepo circular, claro, j que por polticos designa--se em geral aqueles que fazem poltica. Essa circularidade, contudo, no inteiramente viciosa, uma vez que a classificao de algum como pol-tico fundamentalmente contextual. Isso significa que a poltica no pensada basicamente como um domnio ou mesmo como um aspecto da vidasocial substantivismo e formalismo que constituem os dois grandes modosde defini-la na tradio acadmica , mas como uma atividade.

    Ora, se a poltica uma atividade, mesmo aqueles que no sopolticos podem, s vezes, pratic-la e isso no se aplica apenas polticano sentido mais oficial: os rumores de que o resultado da competio entre

    8 Trata-se aqui do que Moacir Palmeira e Beatriz Heredia (1993) denominaram tempo da poltica. Creio, contudo,que com essa expresso os autores tenham pretendido apenas transcrever a concepo nativa dos eleitores,enfatizando o carter temporrio de seu envolvimento na atividade poltica. Essa importante noo poderia, assim,ser desdobrada em funo de diferentes concepes de poltica: existem sempre muitos tempos da poltica emconexo e/ou competio o dos polticos em geral, o dos candidatos, seus assessores, cabos eleitorais, o do eleitorcomum, aquele dos mais engajados. Essas temporalidades parcialmente heterogneas se interpenetram de formafundamentalmente assimtrica, pois uma coisa aproveitar as eleies para obter, taticamente digamos, pequenasvantagens ou empregos em geral transitrios, outra desenvolver estratgias para o controle de posies e cargossocialmente tidos como muito importantes.

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    os blocos afro de Ilhus no carnaval de 1999 havia sido manipulado e modi-ficado, foram imediatamente expressos dizendo-se que fizeram poltica como desfile. Da mesma forma, quando se suspeita que algum esteja tentandouma manobra no interior de um bloco afro, visando ampliar sua esfera deinfluncia, conquistar uma posio de mais prestgio, ou obter algumavantagem material, pode-se acus-lo de estar fazendo poltica. Deixe de(fazer) poltica (quer dizer, seja sincero, ou seja claro) no uma expressoincomum em Ilhus.

    No basta, contudo, dizer que poltica um termo polissmico, ano ser que estejamos de acordo em emprestar um sentido mais sociolgicoa essa polissemia. As diferentes concepes de poltica coexistem, interpe-netrando-se e opondo-se em um espao social hierarquizado. Assim, se oseleitores em geral tendem a conceber a poltica como uma atividade transi-tria, transcendente e poluente no sentido de que contamina as relaessociais , quanto mais nos aproximamos do domnio institucionalmentedesignado com esse termo, mais nos deparamos com uma concepo maissubstancialista (a poltica como esfera ou domnio) e moralmente ao menosneutra, definindo assim uma atividade de direito permanente, contnua,imanente e positivamente valorizada.

    O caso do Centro Afro-Cultural

    Em 1991, cercados pelo clima de desconfiana em relao aos polticos pro-fissionais que marcara a campanha presidencial de 1989 reforado,paradoxalmente, pelo impedimento do maior beneficirio desse clima evitorioso na eleio , um grupo de pessoas que se definiam como apo-lticas, dizendo-se descontentes com os polticos profissionais (mesmoque algumas j tivessem participado da poltica partidria), lanaram oMovimento Ilhus Coraes. Apresentando-o como oriundo da sociedadecivil, seus articuladores iniciaram uma campanha visando revelar novoscandidatos potenciais para a Cmara de Vereadores e para a Prefeitura. Essescandidatos eram selecionados a partir de seu curriculum, recolhido entreaqueles que jamais tivessem desempenhado atividade poltico-partidria eque gozassem de bom nome na comunidade.

    Aps alguns meses, um funcionrio administrativo do porto deIlhus, socilogo, acabou sendo escolhido e lanado como candidato aprefeito; cerca de dez nomes foram lanados para a Cmara Municipal, sendoum deles o de um estivador que ocupava, ento, a presidncia do Conselhodas Entidades Afro-Culturais de Ilhus (CEAC). Ambos negros, os doiscandidatos se aliaram e conseguiram atrair o apoio do movimento afro-cul-tural da cidade. O MNU, aliado tradicional do Partido dos Trabalhadores (de

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    esquerda), permaneceu fora dessa articulao. Alm da influncia do entopresidente do CEAC, foi determinante para a adeso do movimento afro--cultural o compromisso assumido pelo candidato a prefeito de que, uma vezeleito, construiria imediatamente um Centro Afro-Cultural: prdio desti-nado a abrigar, expor e vender a cultura afro local, onde academias decapoeira, blocos afro, vendedores de artesanato, mes e pais-de-santojogando bzios, dividiriam um espao que receberia uma grande quantidadede turistas. Alm de dar visibilidade cultura afro local, o Centro fun-cionaria, pois, como uma importante fonte de renda para os grupos e pessoasque fazem parte do movimento afro-cultural de Ilhus.

    Quando pesquisas de opinio apontavam o favoritismo do candidatoligado ao movimento negro, este foi convidado pelo candidato a prefeito deum partido maior para ser seu candidato a vice-prefeito, com o argumentode que no dispunha de recursos para chegar at o final da campanha.A proposta foi aceita e tratou-se de comunicar imediatamente ao movimentoafro-cultural que o novo candidato incorporara o compromisso de construodo Centro Afro-Cultural sua plataforma. Os membros do movimento afro--cultural teriam, ento, se lanado na campanha, e a margem de 8455 votosque garantiu a vitria citada como prova da importncia do movimentonegro na campanha, j que este exatamente o nmero de votos que osmilitantes estimam ter conseguido. Trs pessoas identificadas com oMovimento Ilhus Coraes se elegeram para a Cmara, e o entopresidente do CEAC acabou como primeiro suplente de seu partido, almde ser nomeado assessor da Secretaria de Indstria e Comrcio (que tinha ovice-prefeito como titular).9

    Aps as eleies, contudo, as coisas pareceram mudar: o movimentoafro-cultural passou a enfrentar portas fechadas e a no conseguir sequerter acesso aos ocupantes do poder municipal. Apesar de grande mobilizaoe de tentativas de presso, apenas em 1995 o ento prefeito doou um terrenoem rea nobre da cidade para a construo do Centro. Em meio a uma grandefesta organizada para a ocasio, entregou, na frente de cmeras de televiso,no apenas um ttulo de posse como um cheque pessoal destinado a dar incioa uma campanha de arrecadao de fundos para a construo do prdio. Umasemana mais tarde, a Cmara de Vereadores anulou a doao, argumentandoque o terreno se localizava em rea de preservao ambiental.

    9 Consultando um trabalho sobre as eleies de 1992 em Ilhus (Gasparetto 1993), interessante observar a absolutaausncia de qualquer referncia ao envolvimento do movimento negro. No se trata, creio, de uma particularidadeda produo sociolgica local, mas de uma tendncia da sociologia e da cincia poltica em retirar dos atoressocialmente no privilegiados toda a agency de que dispem em processos dessa natureza. Tudo se passa como umaaceitao passiva e uma espcie de duplicao da ideologia da democracia representativa: os nicos agentes so aselites e os polticos; os eleitores essas seres fictcios cuja existncia se limita a poucos minutos em uma cabineeleitoral ou s pginas de alguns manuais s aparecem como valores agregados em tabelas estatsticas.

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    J em clima eleitoral, o prefeito e o vice-prefeito acusaram a oposiopela no construo do centro; a oposio, por sua vez, sustentou que adoao no passara de encenao e manobra eleitoral, destinada a obter, maisuma vez, o apoio do movimento negro nas eleies municipais de 1996.O movimento negro, por fim, afirmava que as duas coisas eram verdadeiras,que nem situao nem oposio se interessavam de fato pelo centro, e queo movimento no participaria da campanha de 1996, com exceo do com-bate sem trguas que moveria contra o vice-prefeito e o j ento ex-pre-sidente do CEAC, tidos como os principais responsveis pela situao ecomo traidores.

    No obstante, claro que os dois principais candidatos a prefeito naseleies de 1996 o candidato derrotado em 1992 pela oposio, e umdeputado federal pela situao no deixaram de tentar obter o apoio domovimento afro-cultural. Atravs de um candidato a vereador negro,morador da Conquista, a situao promoveu uma srie de reunies eofereceu dinheiro aos grupos afro-culturais para se apresentarem em seuscomcios e outras atividades. A oposio, por sua vez, afirmava quecondenava esse tipo de acordo e que desejava o apoio do movimento negroem virtude de princpios e compromissos, no por compra ou pro-messas. Apesar disso, contava igualmente com um candidato a vereadornegro, tambm morador da Conquista, para promover os contatos com oCEAC.10

    Finalmente, o conselho se dividiu: parte dos grupos (entre eles um dosmaiores) decidiu apoiar o candidato da oposio local, que j contava como MNU, na medida em que seu candidato a vice era do Partido dosTrabalhadores; os demais grupos (entre eles dois dos maiores) fizeram aopo oposta e decidiram apresentar-se nos comcios da situao. Quandoindagados se no seria contraditrio apoiar as foras que, quatro anos antes,os haviam enganado, ora respondiam que no se tratava de apoio, masde trabalho, ora que os verdadeiros traidores no eram o candidato a pre-feito ou mesmo o prefeito de ento, mas o vice e o ex-presidente do CEAC.Um dos grupos que ficou com a situao dizia ter recebido R$ 6.000,00(U$ 5.000,00, na poca) por suas apresentaes em comcios, passeatas,arrastes, etc., dinheiro utilizado na construo da quadra do grupo.A posio inicial de que se tratava apenas de trabalho que no significava

    10 importante observar aqui que minha pesquisa tambm desempenhou um papel fundamental no rumo daparticipao do movimento afro-cultural nas eleies de 1996. Meu auxiliar de pesquisas interessou-se tambm emmobilizar o movimento negro para as eleies, realizando uma srie de reunies para debater o processo. Ao saberdisso, e ao vincular essas reunies com o fato de este auxiliar ser colega de trabalho de membros do comit eleitoral daoposio, candidatos da situao temeram que tudo consistisse em uma estratgia para atrair o movimento negro paraa campanha da oposio suspeita, alis, compartilhada por parte dos militantes negros. A situao tratou, ento, deatrair o movimento, promovendo uma srie de encontros e fazendo algumas ofertas concretas.

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    necessariamente o voto foi se modificando, at que ao final da campanhapassou-se a dizer que no era possvel trabalhar para algum e votar oupedir votos para outrem pois isso seria vergonhoso.

    O argumento da construo do Centro Afro-Cultural foi retomado e,no final da campanha, dizia-se que, se a situao ganhasse, o Centro seriaconstrudo. Em contrapartida, lembrava-se que no mandato anterior do agoracandidato de oposio (entre 1982 e 1988) o movimento negro havia sidodesprestigiado, que o apoio oficial aos desfiles de escolas de samba e blocosde afox havia sido retirado o que teria levado extino desses grupos e introduo dos trios eltricos no Carnaval de Ilhus, privilegiando assima elite branca da cidade.

    Um dos efeitos imediatos da diviso do movimento afro-cultural foia falta de consenso em torno de um candidato a vereador. Vrios se apre-sentaram como possveis representantes mas nenhum conseguiu apoioconsistente e nenhum se elegeu. A coligao de centro-esquerda elegeu oprefeito e ofereceu ao MNU alguns cargos no setor cultural da admi-nistrao; no mais se falou no Centro Afro-Cultural de Ilhus. Os gruposque haviam apoiado a antiga situao trataram logo de se aproximar doprefeito. Passaram, ento, a sustentar uma ltima verso para sua adeso aosderrotados: na verdade, eles saberiam, desde o incio, que a oposioganharia as eleies e s apoiaram o outro candidato por razes materiaisj que os grupos afro-culturais encontravam-se em uma situao muito ruimem parte derivada do que ocorrera nas eleies de 1992. Alm disso, sabiamque, uma vez eleito, o prefeito no poderia ignor-los, j que prometera umapoltica cultural mais agressiva.

    No incio de 1998, o prefeito de Ilhus anunciou formalmente seu apoio candidatura reeleio do presidente da repblica, bem como sua adeso,no plano estadual, s posies do presidente do Senado. O Partido dosTrabalhadores rompeu sua aliana com o prefeito, e os membros do MNU queocupavam posies na administrao municipal deixaram seus cargos. Nessemomento, o CEAC comprometeu-se a apoiar a reeleio do presidente darepblica, apresentando-se no comcio que este realizou em Ilhus e parti-cipando da campanha de candidatos Assemblia Legislativa e CmaraFederal que o apoiavam. No mesmo dia, reivindicou junto Prefeitura odireito de indicar um nome para ocupar o cargo at ento ocupado pelopresidente do MNU local cargo at hoje no preenchido. A partir de meadosde 1999, o Grupo Cultural Dilazenze comeou a ser procurado por pelo menoscinco candidatos potenciais a vereador nas eleies municipais do ano 2000.Um deles, candidato reeleio, j se comprometeu a desengavetar o projetode criao do Centro Afro-Cultural de Ilhus. Outros se comprometeram aapoiar o grupo, a arrumar empregos para seus membros, a colaborar com omovimento negro da cidade Mas esta j uma outra histria.

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    Compra de votos, falta de participao, promessas

    O que fazer diante de um material etnogrfico dessa natureza? Em primeirolugar, observemos que no h nada a de estranho para a antropologia maistradicional. Pelo menos desde Evans-Pritchard, quando nos deparamos comcrenas mais ou menos inverosmeis (ou com comportamentos aparen-temente contraditrios), levantamos imediatamente a questo de comopessoas razoveis podem agir dessa forma, e nos preparamos para tentardescobrir algum tipo de lgica subjacente, que devolva aos fatos e aosnossos informantes sua normalidade. O mesmo, suponho, poderia serfeito quando enfrentamos a poltica em nossa prpria sociedade.No entanto, parece mais fcil ser relativista entre os Azande do queentre ns.

    Como compreender, sem apelar para noes problemticas como alie-nao, carncia ou logro, que, em troca de pequenas retribuies materiais,pessoas muito pobres acabem votando naqueles mesmos que as exploram?Como escutar, sem preconceito ou rancor, a afirmativa tantas vezes repetidade que todos os polticos, ou todos os partidos, so iguais? O nico caminho,creio, tratar tais questes antropologicamente, ou seja, restituindo etnogra-ficamente o sentido dos agentes, e tentando articul-lo entre si e com outrasdimenses da experincia, de um modo que, em geral, os prprios agentesno fazem.

    muito comum, entretanto, que confrontados com dados desse tipoos antroplogos sucumbam tentao de submeter os comportamentos eidias muito concretos com que se defrontam no campo a supostos princpiosgerais, que serviriam para dar conta do que realmente observado. Assim,pode-se ser facilmente tentado a explicar o voto como derivando de umsistema de dependncias mtuas, em tese caracterstico de uma sociedadecomo a brasileira: clientelismo ou personalismo, que se apoiariam emvalores como honra ou compromisso, e que funcionariam a partir degrandes princpios de troca ou de reciprocidade.

    Apesar de possurem uma srie de virtudes, essas abordagens, que eucaracterizaria de modo frouxo como culturalistas, apresentam uma sriede dificuldades. Em primeiro lugar, so sempre circulares: o etngrafo chegaat o que considera valores centrais a partir da observao emprica de umnmero necessariamente limitado de idias e/ou comportamentos. Emseguida, busca extrair desse material algum princpio abstrato e, quando bemsucedido, passa a aplicar esse princpio como fonte de explicao dequalquer comportamento ou idia observveis, os quais, por sua vez, passama funcionar como simples confirmao de que o valor existe, central edeterminante (ver Herzfeld 1980: 340 e 1984: 439; Leite 1969: 45, 100, 124;Neiburg e Goldman 1998: 68).

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    Essa circularidade instaura, em seguida, o que poderamos denominarum curto-circuito entre o emprico e o transcendental. Empiricamente, bvio que no ocorreria a ningum negar, por exemplo, que o voto comotroca e compromisso seja uma prtica (e uma representao) importante erecorrentemente observvel. No entanto, o valor de verdade e a valoraomoral dessa prtica constituem um espao aberto para a divergncia, oconflito, a negociao e a mudana de opinio. Ao converter aes e smbolosmuito concretos em categorias, valores, padres, elimina-se todo essecampo de variao e transmuta-se a troca em uma espcie de razo transcen-dental do voto. Ao efetuar essa operao, o antroplogo afasta tanto apolissemia sociolgica dos termos com que trabalha quanto a dinmica socialque deveria tornar inteligvel.11

    Em terceiro lugar, a submisso das prticas a valores abstrados doscontextos em que efetivamente funcionam e so agenciados leva asubestimar o papel de mecanismos sociopolticos precisos na determinaodos fenmenos observados. Assim, o fato de o movimento negro de Ilhusno conseguir eleger um vereador que o represente no tem nada a vercom a maior ou menor adeso das camadas populares a valores bsicosdo individualismo ocidental ou da democracia representativa. Deriva sim dajustaposio de diferentes lgicas sociais marcadas por uma assimetria depoder.

    Finalmente, e apesar das aparncias, as abordagens centradas emsupostas especificidades culturais dificilmente so capazes de escapar de umcerto mecanicismo, que tende a derivar o que as pessoas efetivamente dizeme fazem de valores que existiriam em alguma parte de seu esprito ou emalgum tipo de conscincia coletiva. Como escreveu Sherry Ortner (1984:151), infelizmente, os antroplogos em geral consideraram que atores commuita densidade psicolgica eram metodologicamente difceis de manipu-lar. Os processos de subjetivao so deixados de lado, e tende-se a ignoraros complexos processos atravs dos quais subjetividade e socialidade seengendram mutuamente.

    Ora, uma das virtudes do drama social do qual apenas algunsfragmentos foram narrados acima reside no fato de ter permitido acom-panhar durante um razovel perodo de tempo uma srie de modalidadesde relaes sociais e polticas muito concretas. Esse drama tornou possvel,sobretudo, a anlise das relaes entre vrias lgicas distintas, que, longe desimplesmente se oporem ou exclurem, se compem, na medida em que soalternativamente acionadas por diferentes pessoas em diferentes contextosde diferentes maneiras. Lgicas que, evidentemente, no so equivalentes ou

    11 Pierre Clastres (1977: 199) parece ter sido o primeiro antroplogo a chamar a ateno para essa confuso entre oemprico e o transcendental nas anlises da chamada reciprocidade. Ver tambm Goldman e Silva 1998: 45, nota 17.

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    meramente alternativas, mas assimtricas: a resultante que deriva de suainterpenetrao tende a ser infletida mais na direo de algumas linhas defora do que de outras.

    A partir desse drama, tentarei desenvolver, ainda que de forma algopreliminar, uma perspectiva alternativa quela caricatamente apresentadaacima. Os temas da compra de votos supostamente correlato de umasociedade, ou de uma camada social, regida por valores clientelistas e pelareciprocidade , do ceticismo e falta de participao poltica em teseoriundos da pouca adeso aos valores democrticos , e das promessaseleitorais prprias, acredita-se, de um universo social regido por relaespessoais , sero abordados a partir de trs princpios que considerofundamentais para a compreenso do processo eleitoral e da poltica em umasociedade como a nossa. Trata-se da pluralizao das categorias, da identificaode mecanismos complementares assimtricos, do reconhecimento dos processos desubjetivao.

    Pluralismo, poder, subjetividade

    Como observamos, a tentativa, bem sucedida, de atrair o movimento negropara a campanha de um candidato a prefeito esteve em boa parte centradano compromisso de construo de um Centro Afro-Cultural. unnime,entre membros do movimento negro, atribuir a esse compromisso seuengajamento na campanha, o fato de terem trabalhado sem nada receberimediatamente, como hbito nas campanhas eleitorais.12 Trabalhamos nabusca de votos, dizem alguns, sem comer, com fome mesmo. apenasem 1995, ou seja, j nos preparativos para a nova eleio municipal de 1996,que o candidato eleito efetua a manobra que narrei: doa uma rea pblica,doao embargada pela oposio.

    Isso significa, creio, que se do ponto de vista do movimento negro otrabalho na campanha e a construo do Centro Afro-Cultural podem, defato, ser encarados como os elementos de uma troca, digamos, restrita, omesmo no ocorre quando encaramos o fenmeno do ponto de vista doscandidatos e polticos. De seu ponto de vista, o compromisso de construodo Centro Afro-Cultural aparece antes como uma espcie de dvida cujaquitao pode ser adiada ou rolada. Na verdade, ela cuidadosamentepostergada at o momento em que pode ser inscrita em uma nova transao,que visa, evidentemente, a continuidade de algumas carreiras polticas.

    12 Em 1996, pagava-se entre R$ 5,00 e R$ 10,00 (de U$ 4,00 a U$ 8,00, na poca) para algum fazer propaganda eleitoralna rua. Algumas pessoas recebiam R$ 50,00 (cerca de U$ 45,00, na poca), para dedicar-se durante um ms inteiro campanha de um candidato.

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    Novamente no saldada, a dvida pde ser transferida, com certo sucesso,para a oposio e, de certo modo, para o vice-prefeito e o ex-presidente doConselho das Entidades Afro-Culturais. E no por acaso, creio, que omovimento negro considere que os verdadeiros traidores so justamente aspessoas mais prximas, no o prefeito.

    No imaginemos, contudo, que os membros do movimento negroestejam necessariamente dominados por uma lgica da reciprocidade,enquanto polticos e membros da elite operem sempre com processos tidoscomo mais modernos. Um candidato a vereador que patrocinara um blocoafro no carnaval de 1996, distribuindo camisetas com seu nome inscrito,acusou seus membros de traidores (traras) por no o terem apoiado naseleies municipais daquele ano. Os membros do bloco contestaram ainterpretao, j que de seu ponto de vista a transao efetuada no carnavalesgotava-se em si mesma, era profissional, um negcio. O poltico, aocontrrio, procurara inscrev-la na chave de uma relao de reciprocidadeque, portanto, implicaria um vnculo e um compromisso futuros. Do mesmomodo, como vimos, pelo menos durante um certo momento da campanhade 1996, membros do Dilazenze sustentavam que o fato de se apresentaremnos comcios de determinado candidato no significava que tivessem queapoi-lo na eleies.

    Tudo isso aponta para a necessidade de um esforo de pluralizaodas categorias. Como demonstrou Veyne (1976: 81-82) a respeito do ever-getismo romano, preciso substituir grandes e vagas noes como reci-procidade ou redistribuio por uma terminologia mais cuidadosa e maisafinada com a realidade. Assim, se dom, presente, troca, redistribuio,escambo, homenagem, prestao, endividamento, investimento, compra evenda, etc., inegavelmente fazem parte de um campo scio-semnticocomum, um absurdo subsumir todas essas variedades de relao sob umacategoria como reciprocidade. Ao contrrio, trata-se de usar a diversidadeterminolgica como instrumento destinado a dar conta da diversidade dosusos da reciprocidade elaborando, assim, mais uma pragmtica sociolgicaque uma semntica ou uma sintaxe.

    nessa chave, creio, que a complicada questo da compra de votospoderia ser ao menos iluminada. Tendemos a considerar essa prtica umaverdadeira abominao, algo que atenta contra os fundamentos da demo-cracia. No estou seguro, entretanto, de que essa averso no se deva ao fatode que a se revela, de modo algo obsceno, a prpria natureza de um sistemaidealmente pautado na ao individual e concretamente ancorado noequivalente geral, ou seja, a democracia representativa das formaes sociaiscapitalistas. Por outro lado, como vimos, no campo, a compra e venda devotos aparece como elemento de estratgias discursivas e no-discursivasvariadas: pode-se condenar algum por pratic-la, mas pode-se igualmente

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    invoc-la a fim de justificar posies s vezes difceis de confessar. Noescomo a de reciprocidade parecem aqui especialmente inadequadas, namedida em que tendem a obscurecer no apenas os procedimentosestratgicos como a diversidade dos mecanismos efetivamente postosem ao.

    O segundo ponto diz respeito ao fato de, pelo menos desde 1988, omovimento afro-cultural de Ilhus vir tentando, sem sucesso, eleger umvereador que o represente. Nas eleies de 1988, um membro da famliaque est no centro do Dilazenze teve uma votao considerada boa mas nose elegeu. Alguns de seus irmos atribuem a derrota ao fato de ele ter idobuscar apoio junto burguesia local, ou seja, junto classe mdia brancada cidade, em vez de concentrar seus esforos nos terreiros de candombl enos blocos afro. Ao proceder dessa forma, teria perdido parte do apoio destesltimos, sem conseguir compensar essa perda com as elites, que, supe-se,jamais apoiariam um candidato negro e pobre.

    Em 1992, como vimos, o ento presidente do CEAC conseguiu secolocar como primeiro suplente de seu partido, tendo inclusive assumido ocargo em algumas ocasies. No entanto, a no construo do Centro Afro--Cultural logo rompeu suas relaes com o movimento negro, a ponto de serafastado atravs de uma reestruturao e da escolha de uma nova diretoriapara o CEAC. Em 1996, uma srie de candidatos dividiram o apoio domovimento negro: nenhum deles se elegeu, ainda que um tenha conseguidoum nmero suficiente de votos para permanecer na vida poltica (nomeadosubsecretrio). Finalmente, desde meados de 1999, uma srie de candidatosa vereador tem tentado atrair o apoio do movimento negro, provocando umasrie de conflitos internos.

    No creio que esse fracasso possa ser atribudo, como s vezes sefaz, falta de organizao, educao poltica ou compromisso de partici-pao. Antes de apelar para essas grandes causas, cumpre proceder iden-tificao dos mecanismos que tendem a produzir esse tipo de resultado. Emprimeiro lugar, o fato de a concepo de poltica em jogo no movimentonegro de Ilhus a associar, como vimos, a uma atividade poluidora, transi-tria e transcendente. Pode-se, assim, considerar que o fato de um irmo tersido derrotado em uma eleio no ser to ruim, j que a derrota pelo menosimpediu que ele se tornasse poltico, ou seja, algum que se imaginaportador de um sem-nmero de defeitos morais. Alm disso, como mostrouHeredia (1996: 68), ao ser trazida para dentro de espaos concebidos comode direito indivisos, a poltica introduz divises e desigualdades negativa-mente valoradas. Tudo se passa, pois, como se ainda que o grupo ansiassepor algum que o representasse, temesse, ao mesmo tempo, a irrupo emseu interior de mecanismos de diferenciao interna mais um dos inmerosdouble binds que se situam no corao das democracias representativas

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    (Goldman e SantAnna 1996: 33-35).Ainda nesse sentido, uma srie de mecanismos de diluio de poder

    so continuamente postos em ao. muito comum que, ao serem procura-dos por diferentes candidatos em busca de apoio eleitoral, chefes de famlia,mes-de-santo, dirigentes de blocos afro, promovam uma diviso de votos,ou seja, determinem, com maior ou menor grau de sucesso, em quediferentes candidatos diferentes membros da famlia, terreiro ou grupo cul-tural devero votar. Trata-se aqui, claramente, de um desses mecanismos quePierre Clastres denominou contra-estado; ao contrrio deste autor, con-tudo, no creio que tenhamos razes para limitar o uso do termo a socie-dades inteiras, podendo estend-lo a processos sociopolticos que trans-correm mesmo em sociedades dotadas de estado (ver Clastres 1974; Deleuzee Guattari 1980: 441-446).

    Do mesmo modo, no necessrio falar em sociedades segmentarespara que a noo de segmentaridade possa ser empregada. Como mostraram,entre outros, Deleuze e Guattari (1980: 254-283) e Herzfeld (1992), estado esegmentaridade podem se opor mas tambm se compor. Assim, as segmen-taes que cortam os grupos afro e as camadas mais pobres da populaode Ilhus em geral, podem funcionar como pontos de encaixe para foras deoutra origem. Uma famlia pode dividir os votos de seus membros entrediferentes candidatos a quem sente dever alguma coisa, ou em quem de-posita alguma esperana ou interesse, mas o poltico bem sucedido aqueleque capaz de sobrecodificar (Deleuze e Guattari 1972; 1980) de algumaforma essa disperso, e de obter a quantidade de votos suficiente para eleg-lo. Se um candidato for capaz de aproveitar a srie de divises binrias entreos diversos blocos afro, pode impedir que estes se articulem em torno de umcandidato nico e, ao mesmo tempo, pode obter um razovel nmero devotos para sua eleio.

    O ponto aqui que as diversas lgicas postas em ao no so nemextrnsecas como no caso das comparaes transculturais de que se ocupaem geral a antropologia nem simtricas. Elas coexistem, se interpenetram,se subordinam, se opem e se compem em um espao fortemente hierar-quizado. Seu produto final uma espcie de resultante que, evidentemente,est mais infletida em uma direo a das camadas dominantes do queem outra. A identificao de mecanismos complementares assimtricosparece, ento, constituir, um outro eixo de investigao do funcionamentoefetivo das eleies e do processo poltico mais abrangente.

    O terceiro ponto a abordar diz respeito necessidade do reco-nhecimento da subjetividade, ou das formas e processos de subjetivao,em poltica. Tomemos como exemplo o caso das promessas eleitorais.O que pode fazer com que, pleito aps pleito, os mesmos eleitores sejamcapazes de ouvir mais ou menos as mesmas promessas, afirmarem que

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    no sero cumpridas, votarem nos polticos que as proferem e, aps aseleies, verem confirmadas suas suspeitas de que tudo no passava dementira?

    preciso reconhecer, inicialmente, que uma promessa no pode seridentificada por caractersticas que lhe seriam prprias. o contexto, o de-bate e a negociao que fazem com que uma proposio seja uma promessa,um compromisso, uma mentira, ou qualquer outra coisa. Como vimos, naseleies municipais de 1992, a construo de um Centro Afro-Cultural foiinicialmente aceita pelo movimento negro como um compromisso; norealizada, passou a ser definida como promessa e, logo depois, promessano cumprida. A questo de se tratar ou no de uma mentira (ou seja,se seus proponentes j sabiam que no a cumpririam quando a proferiram)ainda era objeto de debate em 1996. Processo semelhante ocorreu com umaproposta mais ampla: a implantao, em Ilhus, de uma Zona de Proces-samento de Exportaes que geraria mais de 10 000 empregos. Na campa-nha de 1996, as duas proposies foram reativadas sem sucesso: desde oincio foram majoritariamente definidas como falsas e mentirosas.

    Alm disso, preciso observar que todos esperam que polticos faampromessas. O fato de em 1996 o candidato de oposio sustentar ser umpoltico moderno, que no operava atravs promessas vazias, era fre-qentemente interpretado de forma negativa, como um modo de evitarassumir compromissos. Ou seja, e como j demonstraram h muito tempoos filsofos da linguagem (Austin 1955, 1957, 1961; Searle 1969), aspromessas no se justificam por um referente objetivo que lhes seria exte-rior e em relao ao qual sua veracidade poderia ser medida; elas so, comose sabe, performativas, no sentido de que instituem aquilo mesmo a quese referem. Ao mesmo tempo, no possvel deixar de escutar a advertnciade Bourdieu (1982: 85, 89-91) de que a fora ilocutria das expresses nopode ser buscada nas prprias palavras, mas no carter institucional dalinguagem, na autoridade de quem a utiliza: a eficcia simblica daspalavras se exerce apenas na medida em que a pessoa-alvo reconhece quema exerce como podendo exerc-lo de direito (Bourdieu 1982: 95-96). O quesignifica simplesmente que a abordagem antropolgica da promessa deveincidir justamente sobre seu contexto de funcionamento, ou seja, sobre aquiloque a filosofia da linguagem se limita a invocar como uma srie deconvenes extralingsticas. Trata-se, pois, de investigar sobretudo osefeitos que a promessa exerce ou pretende exercer sobre seus destinatrios,sua dimenso perlocutria mais que ilocutria.13

    Nesse sentido, as promessas polticas se articulam diretamente com

    13 Como demonstrou Tambiah (1985b: 128), preciso combinar a idia do performativo da filosofia da linguagemcom a de performance, no sentido de atuao. Ver tambm Herzfeld 1982.

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    a questo da subjetividade. Elas servem para estabelecer relaes deidentificao e de oposio entre os agentes; so certamente objeto demanipulao retrica, mas tambm de um contnuo debate em que formasde subjetividade vo se constituindo e refazendo. De algum modo, apromessa, mesmo no cumprida, significa um reconhecimento do eleitor porparte do poltico, reconhecimento que se articula com uma certa identificaodo primeiro com o segundo: eu voto em fulano uma expresso freqen-temente abreviada para estou com fulano, vou com fulano, ou mesmosou fulano.14

    Entre as razes para votar em algum e o voto em algum (entre osideais polticos e o comportamento poltico, portanto) intercala-se essadimenso da subjetividade poltica que faz com que se vote nos mesmoscandidatos por razes completamente distintas, e em candidatos diferentespelas mesmas razes. Mesmo o que em geral tido como pura troca econ-mica e interesseira passa necessariamente por essa dimenso de subjeti-vidade: o que mais irritava os membros dos blocos afro nas eleies de 1996no era o baixo pagamento por suas apresentaes nos comcios, nem mesmoo fato de que algumas vezes sequer recebiam o prometido; eram asapresentaes canceladas, as crticas sua qualidade musical, o desprezocom que sentiam ser tratados.

    Observaes finais

    Escrevendo sobre as eleies no Brasil do sculo XIX, Richard Graham pdesustentar que sua verdadeira funo no era realmente a escolha dosgovernantes, quase sempre produzidos por manobras fraudulentas ou pelouso aberto da violncia. Lembrando que um sufrgio amplo no significavauma poltica democrtica (Graham 1990: 108), Graham sugere que aseleies funcionavam como dramas nos quais os atores empregavam alinguagem do status social para operar distines entre os eleitores mais doque para simplesmente exclu-los (Graham 1990: 109).

    Ao construrem, de dois em dois anos, o espao onde esses dramas,mesclando participao e excluso, continuam a ser encenados; ao reforaremo sentimento de dependncia dos dominados face aos dominantes; aoaplainarem as subjetividades e eliminarem a alteridade (ver Guattari 1990:8-13); ao deslegitimarem outros meios de expresso, participao e protestopolticos, as eleies constrem de fato a dominao mas no da forma que

    14 Etnografias como as de Scotto (1994), sobre as eleies municipais de 1992 no Rio de Janeiro, e de Chaves (1993),sobre as eleies nacionais de 1989 e 1990 em Buritis (Minas Gerais), revelam bem o funcionamento de todo umcomplexo sistema de identificao, reconhecimento e subjetivao.

  • Uma Teoria Etnogrfica da Democracia

    331

    se imagina que fazem. Nas eleies, no voto e mesmo na poltica em geral,h muito mais do que simplesmente poltica: h poderes, agencies, pro-cessos, subjetividades, toda uma srie de variveis cuja natureza fundamen-tal e quase imperceptvel exige mais e melhores teorias etnogrficas.

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    AN ETHNOGRAPHIC THEORY OFDEMOCRACY: POLITICS FROM THE POINTOF VIEW OF THE BLACK MOVEMENT OFILHEUS, BAHIA, BRAZIL

    This paper aims to present an ethnographic accountof the political participation of the black movement ofIlhus (southern Bahia, Brazil) in the local electionsof 1992 and 1996. The events narrated here arerelated to some previous ones, and especially toevents presently ongoing. From these events, a moregeneral perspective is drawn that tries to understandthe broad participation of electors in the so-called democratic process of the modern nation-state.To do so, the paper explores practices such as, elec-toral promises and the commercialisation of votes,as well as the concepts of reciprocity and subjectivity.Finally, it begins to sketch out an ethnographictheory of democracy.

    Marcio Goldman

    Museu Nacional (UFRJ)Ncleo de Antropologia da Poltica NuAP

    [email protected]