Perspectivas Da Política Social No Brasil - IPEA

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Livro do IPEA de Política Social - completo

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  • Livro 8

    Perspectivas daPoltica Social no Brasil

    Projeto Perspectivas doDesenvolvimento Brasileiro

    da Democracia

    Desafios ao Desenvolvimento Brasileiro: contribuies do conselho de orientao do Ipea

    Trajetrias Recentes deDesenvolvimento: estudos de experincias internacionais selecionadas

    Insero Internacional Brasileira Soberana

    Macroeconomia para o Desenvolvimento

    Estrutura Produtiva e Tecnolgica Avanada e Regionalmente Integrada

    Infraestrutura Econmica, Social e Urbana

    Sustentabilidade Ambiental

    Proteo Social, Garantia de Direitos e Gerao de Oportunidades

    Fortalecimento do Estado, das Instituies e

    Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro

    Livro 1:

    Livro 2:

    Livro 3:

    Livro 4:

    Livro 5:

    Livro 6:

    Livro 7:

    Livro 8:

    Livro 9:

    Livro 10:

    O projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro foi concebido tambm para dar concretude aos sete eixos temticos do desenvolvimento brasileiro, estabelecidos mediante processo intenso de discusses no mbito do programa de fortalecimento institucional em curso no Ipea. O conjunto de documentos derivados deste projeto o seguinte:

  • Perspectivas da poltica social no Brasil

    Livro 8

  • Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro Samuel Pinheiro Guimares Neto

    PresidenteMarcio Pochmann

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalFernando Ferreira

    Diretor de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas InternacionaisMrio Lisboa Theodoro

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da DemocraciaJos Celso Pereira Cardoso Jnior

    Diretor de Estudos e Polticas Macroeconmicas Joo Sics

    Diretora de Estudos e Polticas Regionais, Urbanas e AmbientaisLiana Maria da Frota Carleial

    Diretor de Estudos e Polticas Setoriais, de Inovao, Regulao e InfraestruturaMrcio Wohlers de Almeida

    Diretor de Estudos e Polticas SociaisJorge Abraho de Castro

    Chefe de GabinetePersio Marco Antonio Davison

    Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaoDaniel Castro

    URL: http://www.ipea.gov.br Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

    Fundao pbl ica v inculada Secretar ia de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasi leiro e disponibi l iza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

  • Perspectivas da poltica social no Brasil

    Livro 8

    Braslia, 2010

  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2010

    ProjetoPerspectivas do Desenvolvimento Brasileiro

    Srie Eixos Estratgicos do Desenvolvimento Brasileiro

    Livro 8 Perspectivas da Poltica Social no Brasil

    Organizadores/EditoresJorge Abraho de CastroHelder Rogrio SantAna FerreiraAndr Gambier CamposJos Aparecido Carlos Ribeiro

    Equipe TcnicaAlexandre Arbex ValadaresAlinne BonettiAna Cleusa Serra MesquitaAna Luiza Machado de CodesAndrea Barreto de PaivaAngela Maria Rabelo Ferreira BarretoAntnio Teixeira Lima Junior

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    Perspectivas da poltica social no Brasil / Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada. Braslia : Ipea, 2010.452 p. : grfs., mapas, tabs. (Srie Eixos Estratgicos do De-

    senvolvimento Brasileiro ; Proteo Social, Garantia de Direitos e Gerao de Oportunidades ; Livro 8)

    Inclui bibliografia.Projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro.ISBN 978-85-7811-063-5

    1. Poltica Social. 2. Brasil. I. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada. II. Srie.

    CDD 361.250981

    Brancolina FerreiraEdvaldo Batista de SElizabeth BarrosFbio AlvesFbio Monteiro VazFrederico Augusto Barbosa da SilvaHerton Ellery ArajoJoana MostafaJos Aparecido Carlos RibeiroLeila Posenato GarciaLuciana de Barros JaccoudLuciana Mendes Santos ServoMarcelo GalizaMaria Paula Gomes dos SantosNatlia de Oliveira FontouraPaulo Augusto Meyer M. NascimentoPaulo Roberto CorbucciPedro Herculano Ferreira de SouzaRafael Guerreiro OsorioRoberto GonzalezSergei Dillon SoaresSrgio Francisco Piola

  • SUMRIO

    APRESENTAO ................................................................................7

    AGRADECIMENTOS ..........................................................................11

    INTRODUOPERSPECTIVAS ABERTAS POLTICA SOCIAL NO BRASIL ............................13

    PARTE I

    CAPTULO 1DESENVOLVIMENTO, MODERNIZAO E CONDIES DE VIDA...................25

    CAPTULO 2BALANO DA POLTICA SOCIAL NO NOVO MILNIO ..................................57

    CAPTULO 3EFEITOS ECONMICOS DO GASTO SOCIAL NO BRASIL .............................109

    PARTE II

    CAPTULO 4PERSPECTIVAS PARA PROMOO DA EDUCAO COMO DIREITO DE TODOS ...................................................................................163

    CAPTULO 5CENRIOS PARA A CULTURA EM 2022.....................................................191

    CAPTULO 6REFORMA AGRRIA E CONCENTRAO FUNDIRIA ...............................213

    CAPTULO 7TRABALHO E RISCOS SOCIAIS NO BRASIL ................................................279

    CAPTULO 8PERSPECTIVAS PARA A TAXA DE MORTALIDADE INFANTIL EM 2022 ........313

    CAPTULO 9PERSPECTIVAS PARA O SISTEMA DE GARANTIA DE RENDA NO BRASIL ....345

  • CAPTULO 10DESIGUAIS RESPONSABILIDADES FAMILIARES DE HOMENS E MULHERES ...419

    NOTAS BIOGRFICAS .....................................................................445

  • APRESENTAO

    com imensa satisfao e com sentimento de misso cumprida que o Ipea entrega ao governo e sociedade brasileira este conjunto amplo, mas obvia-mente no exaustivo de estudos sobre o que tem sido chamado, na ins-tituio, de Eixos Estratgicos do Desenvolvimento Brasileiro. Nascido de um grande projeto denominado Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro, este objetivava aglutinar e organizar um conjunto amplo de aes e iniciativas em quatro grandes dimenses: i) estudos e pesquisas aplicadas; ii) assessoramento governamental, acompanhamento e avaliao de polticas pblicas; iii) treina-mento e capacitao; e ivagora plenamente com a publicao desta srie de dez livros apresentados em 15 volumes independentes , listados a seguir:

    Conselho de Orientao do Ipea publicado em 2009

    Livro 2 Trajetrias Recentes de Desenvolvimento: estudos de experi-ncias internacionais selecionadas publicado em 2009

    Livro 3 Insero Internacional Brasileira Soberana

    - Volume 1 Insero Internacional Brasileira: temas de pol-tica externa

    - Volume 2 Insero Internacional Brasileira: temas de eco-nomia internacional

    Livro 4 Macroeconomia para o Desenvolvimento

    - Volume nico Macroeconomia para o Desenvolvimento: cresci-mento, estabilidade e emprego

    Livro 5 Estrutura Produtiva e Tecnolgica Avanada e Regional-mente Integrada

    - Volume 1 Estrutura Produtiva Avanada e Regionalmente Inte-

    - Volume 2 Estrutura Produtiva Avanada e Regionalmente Inte-grada: diagnstico e polticas de reduo das desigualdades regionais

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil8

    Livro 6 Infraestrutura Econmica, Social e Urbana

    - Volume 1 Infraestrutura Econmica no Brasil: diagnsticos e perspectivas para 2025

    - Volume 2 Infraestrutura Social e Urbana no Brasil: subsdios para uma agenda de pesquisa e formulao de polticas pblicas

    Livro 7 Sustentabilidade Ambiental

    - Volume nico Sustentabilidade Ambiental no Brasil: biodiversi-dade, economia e bem-estar humano

    Livro 8 Proteo Social, Garantia de Direitos e Gerao de Oportunidades

    - Volume nico Perspectivas da Poltica Social no Brasil

    Livro 9 Fortalecimento do Estado, das Instituies e da Democracia

    - Volume 1 Estado, Instituies e Democracia: repblica

    - Volume 2 Estado, Instituies e Democracia: democracia

    - Volume 3 Estado, Instituies e Democracia: desenvolvimento

    Livro 10 Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro

    Organizar e realizar tamanho esforo de reflexo e de produo editorial apenas foi possvel, em to curto espao de tempo aproximadamente dois anos de intenso trabalho contnuo , por meio da competncia e da dedicao institucional dos servidores do Ipea (seus pesquisadores e todo seu corpo funcional administrativo), em uma empreitada que envolveu todas as reas da Casa, sem exceo, em diversos estgios de todo o processo que sempre vem na base de um trabalho deste porte.

    , portanto, a estes dedicados servidores que a Diretoria Colegiada do Ipea primeiramente se dirige em reconhecimento e gratido pela demonstrao de esprito pblico e interesse incomum na tarefa sabidamente complexa que lhes foi confiada, por meio da qual o Ipea vem cumprindo sua misso institucional de produzir, articular e disseminar conhecimento para o aperfeioamento das polticas pblicas nacionais e para o planejamento do desenvolvimento brasileiro.

    Em segundo lugar, a instituio torna pblico, tambm, seu agradecimento a todos os professores, consultores, bolsistas e estagirios contratados para o projeto, bem como a todos os demais colaboradores externos voluntrios e/ou servidores de outros rgos e outras instncias de governo, convidados a compor cada um dos documentos, os quais, por meio do arsenal de viagens, reunies, seminrios, debates, textos de apoio e idas e vindas da reviso editorial, enfim puderam chegar a bom termo com todos os documentos agora publicados.

  • Apresentao 9

    Estiveram envolvidas na produo direta de captulos para os livros que tratam explicitamente dos sete eixos do desenvolvimento mais de duas centenas de pessoas. Para este esforo, contriburam ao menos 230 pessoas, mais de uma centena de pesquisadores do prprio Ipea e outras tantas pertencentes a mais de 50 instituies diferentes, entre universidades, centros de pesquisa, rgos de governo, agncias internacionais etc.

    A Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal) slida parceira do Ipea em inmeros projetos foi aliada da primeira ltima hora nesta tarefa, e ao convnio que com esta mantemos devemos especial gratido, certos de que os temas do planejamento e das polticas para o desenvolvimento temas estes to caros a nossas tradies institucionais esto de volta ao centro do debate nacional e dos circuitos de deciso poltica governamental.

    Temos muito ainda que avanar rumo ao desenvolvimento que se quer para o Brasil neste sculo XXI, mas estamos convictos e confiantes de que o material que j temos em mos e as ideias que j temos em mente se constituem em ponto de partida fundamental para a construo deste futuro.

    Boa leitura e reflexo a todos!

    Marcio Pochmann Presidente do Ipea

    Diretoria ColegiadaFernando Ferreira

    Joo SicsJorge Abraho

    Jos Celso Cardoso Jr.Liana Carleial

    Mrcio WohlersMrio Theodoro

  • AGRADECIMENTOS

    O nascimento deste livro Perspectivas da Poltica Social no Brasil s foi possvel a partir da colaborao de diversos colegas, que se empenharam no processo de discusso e elaborao dos textos, bem como na criao de condies para que esse processo se tornasse vivel.

    De incio, agradecimentos ao ministro da Secretaria de Assuntos Estratgi-cos Samuel Pinheiro Guimares , ao presidente do Ipea Marcio Pochmann e aos diretores Fernando Ferreira, Joo Sics Siqueira, Jorge Abraho de Castro, Jos Celso Cardoso, Liana Maria Carleial, Mrcio Wohlers de Almeida e Mrio Lisboa Theodoro. Em um importante e indito esforo de renovao institucio-nal, todos apostaram em um novo eixo de atuao para o Ipea: em vez de apenas se debruar sobre o passado, tentar se projetar tambm para o futuro. Juntamente aos demais integrantes da srie Eixos Estratgicos do Desenvolvimento Brasileiro, este livro demonstra o sucesso dessa aposta.

    Os autores e colaboradores dos textos a seguir tambm merecem todos os agradecimentos. Entre os autores, mencionam-se Rafael Guerreiro Osorio, Sergei Dillon Soares e Pedro Herculano Ferreira de Souza, responsveis pelo primeiro captulo da parte I; Jos Aparecido Carlos Ribeiro, Alexandre Arbex Valadares e Maria Paula Gomes dos Santos, responsveis pelo segundo captulo da parte I; Joana Mostafa, Pedro Herculano Ferreira de Souza e Fbio Monteiro Vaz, res-ponsveis pelo terceiro captulo da parte I; Ana Luiza Machado de Codes, Angela Maria Rabelo Ferreira Barreto, Paulo Augusto Meyer M. Nascimento e Paulo Roberto Corbucci, responsveis pelo primeiro captulo da parte II; Frederico Augusto Barbosa da Silva, Ana Luiza Machado de Codes e Herton Ellery Arajo, responsveis pelo segundo captulo da parte II; Brancolina Ferreira, Alexandre Arbex Valadares, Antnio Teixeira Lima Junior e Fbio Alves, responsveis pelo terceiro captulo da parte II; Roberto Gonzalez e Marcelo Galiza, responsveis pelo quarto captulo da parte II; Srgio Francisco Piola, Edvaldo Batista de S, Luciana Mendes Santos Servo, Leila Posenato Garcia, Andrea Barreto de Paiva e Elizabeth Barros, responsveis pelo quinto captulo da parte II; Luciana de Barros Jaccoud, Maria Paula Gomes dos Santos e Ana Cleusa Serra Mesquita, respon-sveis pelo sexto captulo da parte II; e Natlia de Oliveira Fontoura e Alinne Bonetti, responsveis pelo stimo captulo da parte II.

    J entre os colaboradores, destacam-se Ana Amlia Camarano, Danielle Cro-nemberg, Fernando Gaiger Silveira, Jhonatan Ferreira, Luana Pinheiro, Matheus Stivali, Snia Miguel, Soraya Fleischer, Thiago Costa Arajo e os demais colegas

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil12

    da Diretoria de Estudos e Polticas Sociais (Disoc) que compareceram s reunies e oficinas de discusso dos textos.

    Agradecimentos tambm a outros colegas da Disoc, que ajudaram a criar condies para o bom andamento das atividades que resultaram neste livro, entre os quais se mencionam Alberto Pereira da Silva, Maria de Ftima Costa, Ana Bete Marques Ferreira, Alda Pimentel Chaves e Silvnia de Arajo Carvalho.

    Os colegas responsveis pelo processo editorial do Ipea no poderiam ser esquecidos, pois seu trabalho foi decisivo para a confeco deste livro, sob vrios pontos de vista. Agradecimentos a Daniel Castro, Cludio Passos de Oliveira, Iranilde Rego, Marco Aurlio Dias Pires, Jane Fagundes, Maria Aparecida Taboza, aos demais colegas da Assessoria de Comunicao (Ascom) e aos parceiros reviso-res e diagramadores que se envolveram em todo o processo.

    Por fim, os colegas que respondem pela administrao do Ipea tambm merecem ser lembrados, pois viabilizaram diversos processos administrativos e financeiros, sem os quais este livro certamente no seria possvel. Agradecimentos a todos da Diretoria de Desenvolvimento Institucional (Dides).

    Jorge Abraho de CastroHelder Ferreira

    Andr Gambier CamposJos Aparecido Carlos Ribeiro

    Organizadores

  • INTRODUO

    PERSPECTIVAS ABERTAS POLTICA SOCIAL NO BRASIL

    Antagnicas, antitticas, antinmicas: eis algumas das qualificaes utilizadas pela literatura para descrever as relaes entre a regulao social e a dinmica econmica, ao menos em sociedades que se organizam em torno de mercados. Em tais sociedades, definidas desde o incio da era moderna como capitalistas, os mercados so os mecanismos fundamentais de direcionamento dos esforos humanos e dos recursos naturais disponveis. Mecanismos que atuam medida que podem se valer do livre confronto entre demanda e oferta de capitais, de terras, de produtos, de servios, de trabalho e assim por diante. Desse confronto resulta um intrincado conjunto de preos, que sinalizam aos atores qual deve ser o sentido da dinmica econmica, no que tange a cada uma das mercadorias citadas, no tempo presente ou mesmo futuro.

    O mercado de trabalho, especificamente, sempre foi o palco dos maiores antagonismos entre a atuao dos atores pblico-estatais e dos atores privados nas sociedades capitalistas. As sucessivas tentativas de regulao do mercado laboral pelo Estado foram o resultado de antinomias vrias entre trabalhadores e empre-srios, como atesta a longa histria dos conflitos operrios a partir da metade do sculo XIX. Em boa medida, essas tentativas de regulao versaram sobre a maneira pela qual a capacidade de trabalho seria convertida em uma mercadoria, stricto sensu. Ou seja, versaram sobre a prpria constituio do mercado laboral, que a disponibilizao de pessoas livres para alienar sua potencialidade de traba-lho a outrem, em troca de pagamento de uma contraprestao.

    Seja como for, as iniciativas de regulao do mercado de trabalho pelo Estado seguiram dois caminhos paralelos e complementares. Um deles foi a cons-tituio de direitos e garantias diretamente concernentes ao trabalho, em suas diversas facetas como a contratao, a utilizao, a disposio, a remunerao, a tributao, a demisso, a organizao e a atuao coletiva de trabalhadores. Isso ocorreu pelas mos estatais, com a edio de legislao heternoma, e tambm por meio da negociao direta entre atores empresariais e trabalhistas, que resul-tou em normas autnomas. Outro caminho seguido na regulao laboral foi a instituio de direitos e garantias relacionados no propriamente ao trabalho, mas sim possibilidade de no trabalho. Tratou-se da constituio de um rol de polticas sociais, em reas distintas, como educao, sade, alimentao, trabalho, previdncia, assistncia, habitao, saneamento e transporte.

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil14

    Essas polticas sociais atuaram em dois sentidos paralelos e complementares. Um primeiro consistiu na disponibilizao de benefcios monetrios a trabalha-dores que se encontravam, temporria ou permanentemente, em situaes de impossibilidade de auferir renda por meio de seu trabalho. Exemplos dessas situ-aes, voluntrias ou involuntrias, esto no desemprego, na gravidez, na reclu-so, na doena, no acidente, na velhice ou na morte. J um segundo sentido de atuao das polticas sociais foi a disponibilizao, pelo Estado, de bens e servios necessrios reproduo dos trabalhadores, como os de educao, alimentao, sade, habitao, saneamento e transporte. Com a oferta pblica de tais bens e servios, os trabalhadores deixaram de ter parcela importante de sua reproduo vinculada demanda privada nos mercados, o que significou no s a desnecessi-dade de recorrer aos mercados para adquirir esses bens e servios, mas tambm se dirigir ao mercado laboral para auferir a renda exigida para sua aquisio.

    Abrindo um parntese, a regulao do mercado de trabalho exigiu um novo tipo de Estado, que se delineou principalmente a partir da metade do sculo XX. O ator estatal do incio da era contempornea caracterizava-se por seus atributos negativos, ou seja, por se dedicar defesa das liberdades individuais opostas ao prprio Estado e consagradas no respeito ao direito de ir, vir e permanecer; liberdade de crena, pensamento e expresso; ao direito de propriedade etc. J no perodo mais recente, o ator estatal denotou-se por seus caracteres positivos, o que significou a preocupao com as liberdades e as igualdades coletivas manifestas na extensa normatizao das condies individuais de trabalho, no estmulo organizao e atuao coletiva dos trabalhadores, assim como na proteo/pro-moo destes por meio da instituio de polticas sociais.

    Fechando o parntese, a regulao laboral, por meio da juridificao do trabalho e tambm do no trabalho , significou uma desconstruo do movi-mento de mercantilizao antes referido. Ou seja, a criao de direitos e garantias relacionados ao trabalho e tambm ao no trabalho, concretizados nas polticas sociais descontinuou a dinmica de converso da capacidade laboral em merca-doria, sujeita acumulao capitalista. A literatura apontou algumas razes para que isto ocorresse, destacando que a potencialidade de trabalho no pode ser considerada uma mercadoria como outra qualquer, dado que:

    1. No caso de uma mercadoria comum, o suprimento dos vendedores quase sempre dimensionado previamente pela expectativa futura de transao no mercado; ao passo que, no caso da capacidade laboral, no h como seus vendedores dimensionarem e controlarem seu suprimen-to ex ante por critrio parecido.

    2. Os vendedores da capacidade de trabalho no tm como aguardar pela melhor condio de venda e majorar seu valor mercantil, dado que

  • Perspectivas Abertas Poltica Social no Brasil 15

    dependem continuamente de meios de sobrevivncia; j os vendedores de uma mercadoria comum muitas vezes conseguem aguardar pela melhoria da condio do mercado, extraindo ento valor mais elevado da venda.

    3. Os compradores da capacidade laboral quase sempre tm como melho-rar a eficincia de sua utilizao na produo de valor; j os vendedores dessa mercadoria no conseguem aprimorar a eficincia de sua prpria reproduo, pois os meios de sobrevivncia so relativamente constan-tes e integrantes de um amplo padro, definido socioculturalmente em certo perodo.

    4. Os vendedores da capacidade de trabalho esto sob a ameaa reiterada de envelhecimento material ou simblico, concreto ou abstrato , hiptese s afastada a partir da intervenincia do Estado, com polticas sociais de reeducao, por exemplo; j os vendedores de uma mercado-ria comum e, mais especificamente, os controladores do capital no se encontram sob grau semelhante de tal ameaa, at porque o capital est envolvido em um padro circular de renovao constante.

    5. As decises dos compradores da capacidade laboral e, mais especifi-camente, dos controladores do capital tm impactos coletivos e de larga extenso, pois elas quase sempre alcanam vrios membros desse mercado; ao passo que as decises dos vendedores de tal mercadoria contam com impactos individuais e de raio reduzido, dado que quase sempre envolvem apenas o prprio vendedor exceto quando ele con-segue se articular com semelhantes.

    6. Os vendedores da capacidade de trabalho no conseguem se dissociar objetivamente de sua mercadoria, o que implica o comprometimento de sua subjetividade, durante sua utilizao na produo de valor; ao passo que, obviamente, o mesmo no ocorre com os compradores dessa mercadoria os controladores do capital.

    Enfim, a criao de direitos laborais anteriormente referida como a juridificao do trabalho , assim como de direitos sociais juridificao do no trabalho , foi uma resposta aos vrios problemas gerados pelo movimento de mercantilizao do trabalho nas sociedades capitalistas. Problemas de aguda assimetria poltica, social e econmica entre trabalhadores e empresrios, que historicamente se manifestaram quase sempre em desfavor dos primeiros. Mas preciso ressaltar que essa criao de direitos, prpria da esfera poltica, esteve em contradio permanente com a acumulao de capital, prpria da esfera econmica. Da a assertiva da literatura, de que as relaes travadas entre a regulao social e a dinmica econmica caracterizaram-se por serem antagnicas, antitticas e antinmicas.

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil16

    Entre outros aspectos, este livro questiona at que ponto essa perspectiva da literatura d conta da situao atual de pases como o Brasil. Ou seja, at que ponto adequada e suficiente tal perspectiva, dado que ela est preocupada essen-cialmente com as contradies entre a regulao social e a dinmica econmica. Esse questionamento surge a partir da constatao de que a poltica social, com seus diversos vetores e componentes definidos ao fim da dcada de 1980, influi sobremaneira na definio dos parmetros vigentes da economia brasileira, de um ponto de vista macro, meso ou mesmo micro.

    A fim de comear a verificar esse questionamento, o caso de se fazer uma sumria referncia evoluo do produto interno bruto (PIB) e, simultanea-mente, dinmica do gasto social que uma espcie de equivalente-geral da poltica social nos anos aps a Constituio Federal de 1988 (CF/88).

    Quanto ao primeiro elemento, depois de reduzidas taxas de crescimento entre 1995 e 2003, perodo de preocupaes com a estabilidade do padro mone-trio do pas, o PIB passou a apresentar uma nova dinmica a partir de 2004, quase dobrando seu incremento anual mdio, para 4% reais entre 2004 e 2009.

    Quanto ao segundo, o gasto social apresentou taxas de crescimento no per-odo ps-1995, particularmente expressivas aps 2002, alcanando 21% do PIB em 2006. A explicao desse movimento esteve na progressiva implementao das polticas sociais inscritas na CF/88, bem como na gradativa valorizao de parmetros fundamentais dessas polticas como o salrio mnimo.

    Desse rpido cruzamento entre o PIB e o gasto social, deriva um questio-namento sobre a influncia do segundo sobre o primeiro. Para alm da presena direta e imediata do gasto estatal na composio do PIB, por quais meios o gasto social poderia se fazer presente, influenciando os demais integrantes da composio do PIB como o consumo dos indivduos/famlias e o investi-mento das empresas? Entre as muitas possibilidades de resposta, destacam-se quatro meios bsicos:

    A oferta de benefcios monetrios as transferncias sociais nas reas de previdncia, assistncia e trabalho oferecem, a amplos segmentos da populao, rendimentos diretos, permanentes, regulares e previ-sveis. E, ademais, rendimentos com relevncia crescente, dada sua majoritria vinculao ao salrio mnimo que, ao menos no pe-rodo mais recente de anlise, ganhou valor real em quase todos os anos desde 1995. Supe-se que a maior parte dessas transferncias transforma-se em consumo imediato dos indivduos e das famlias, bem como se supe que isto tende a estimular o investimento das empresas, a ocupao/consumo dos trabalhadores assim como a arrecadao dos tributos em todo o Brasil.

  • Perspectivas Abertas Poltica Social no Brasil 17

    A oferta de bens e servios principalmente nas reas de educao, sade, alimentao, habitao, saneamento e transporte, os bens e os servios sociais consistem, na prtica, em rendimentos indiretos para extensos segmentos populacionais que os acessam. Ainda que com problemas vrios de iniquidade de oferta, de insuficincia de qualidade, de re-gressividade de custeio etc. , tais servios geram um efeito-desloca-mento relevante, permitindo que a renda que seria neles gasta o seja, de fato, aplicada no consumo de outros bens e servios.

    A contratao de trabalhadores para a prestao de servios os servi-os sociais so intensivos em mo de obra, especialmente nas reas de educao, sade e assistncia. E so intensivos em mo de obra rela-tivamente capacitada, com razovel grau de instruo professores, mdicos, enfermeiros, assistentes sociais etc. , alm de relativamente bem remunerada. Ademais, as oportunidades de trabalho que ofere-cem, com vnculo estatutrio ou contratual, tendem a ser permanentes, pois tais servios ainda podem se expandir dada a demanda social ainda existente no pas.

    A contratao de obras, bens e servios instrumentais em reas como educao, sade, alimentao, habitao e transporte, a oferta de bens e a prestao dos servios sociais demandam uma srie de meios e de instrumentos obras, bens e outros servios , que so fornecidos qua-se sempre pelo segmento privado da economia, mediante regime de li-citaes e contrataes prprio do segmento pblico. Como claro, h impactos positivos disso sobre o investimento empresarial, a ocupao/consumo laboral e a arrecadao tributria.

    Alm de uma influncia sobre o nvel do PIB stricto sensu, que se d pelos quatro meios descritos, o gasto social provavelmente tem influncia tambm sobre a sua distribuio. As evidncias disso advm, por exemplo, do perfil social e territorialmente distributivo da maior parte das transferncias monetrias, que se concentram nos estratos de base da estrutura social e se distribuem por todo o territrio nacional inclusive pequenas municipalidades das regies mais remo-tas do pas. Ou seja, provvel que essas transferncias incentivem um padro mais inclusivo de crescimento do PIB, com menos pobreza e menos iniquidade de renda, com impactos ainda mais positivos em termos de investimento das empresas, ocupao/consumo dos trabalhadores e arrecadao dos impostos, taxas e contribuies.

    De fato, informaes apresentadas mais frente neste livro evidenciam que, sob diferentes perspectivas, o gasto social tem uma influncia aprecivel sobre o PIB do pas, em termos de seu montante e em termos de sua distribuio. Sem

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil18

    pretender esgotar um assunto que ser tratado com cuidado logo adiante, os dados mostram que o incremento de 1% no gasto da rea de educao resulta em um PIB 1,85% maior; enquanto que, no caso da sade, esse percentual de 1,7%.

    Esses multiplicadores do PIB no so positivos apenas quando o gasto social refere-se prestao de servios. Quando se trata de transferncias monetrias, o fenmeno semelhante. O aumento de 1% no gasto com programas da assistn-cia social resulta em um PIB 1,44% maior no caso do Programa Bolsa Famlia e 1,38% maior no caso do Benefcio de Prestao Continuada. Introduzindo as transferncias do Regime Geral de Previdncia Social na anlise, constata-se que o PIB cresce 1,23% quando os benefcios de aposentadorias, penses e auxlios se elevam em 1%.

    Tais multiplicadores so importantes principalmente quando se leva em conta outros tipos de gastos do Estado brasileiro, que no os das reas sociais. Um exemplo est nos gastos com o pagamento de parcelas de juros da dvida pblica mobiliria, que, se mostram incremento de 1%, resultam em um PIB 0,29% menor. Ou seja, a influncia dos gastos relacionados aos servios da dvida sobre o PIB do pas no s so menos positivos que os gastos sociais, mas so negativos.

    As informaes apresentadas mais frente deixam claro que o gasto social tem uma influncia considervel sobre o PIB brasileiro, seja quanto ao seu montante, seja quanto sua distribuio. E isso j antecipa uma das possveis constataes deste livro: ao descrever as relaes entre a regulao social e a dinmica econmica, j no basta prender-se s contradies historicamente existentes entre ambas.

    preciso considerar que a primeira integrante e constitutiva da segunda, o que significa dizer que, no Brasil de hoje, a poltica social alimenta e retroali-menta decisiva e positivamente a economia. Sem as transferncias previdenci-rias, assistenciais e trabalhistas, sem os servios de educao, sade, alimentao e transporte, sem os bens relacionados habitao e ao saneamento, a economia do pas daria vrios e vrios passos atrs.

    Em alguma medida, o Estado social desenhado na Constituio de 1988 conseguiu moldar, sua imagem e semelhana, uma economia igualmente social. E no uma economia a ser desprezada, dados seus vnculos orgnicos com a poltica to criticados pela perspectiva liberal, que considera a boa economia como aquela livre das determinaes polticas, capaz de se apoiar puramente na atuao dos mercados. Pelo contrrio, uma economia que, nos ltimos anos, tem se mostrado capaz de crescer e distribuir bem-estar a extensas parcelas da populao brasileira, como demonstraro os dados apresentados nos prximos captulos.

  • Perspectivas Abertas Poltica Social no Brasil 19

    Obviamente, o mero crescimento dessa economia no afasta a necessidade de um estudo crtico de seus problemas, que no so poucos. Mas as virtualidades abertas por essa/a essa economia social no podem mais ser ignoradas no debate, sob pena de seu depauperamento. E o objetivo deste livro justamente colaborar com esse debate, abrindo novas possibilidades de anlise de tal economia.

    Este livro est organizado em duas partes distintas, mas tambm comple-mentares. Com um foco geral, a primeira parte se detm em aspectos da relao estabelecida, ao longo de nossa histria, entre a regulao social e a dinmica socioeconmica, bem como explora os traos que podem ser assumidos por esta relao em um futuro prximo, tendo como referncia o ano de 2022 bicente-nrio da independncia poltica brasileira.

    O primeiro captulo desta parte dedica-se anlise das principais mudanas ocorridas no pas ao longo de sua trajetria de modernizao e desenvolvimento. Verifica-se como essas mudanas influenciaram as experincias cotidianas e as condies de vida da populao, por meio de uma srie de indicadores socioeco-nmicos das ltimas trs dcadas. Por meio desses indicadores, percebe-se que, mesmo com os diversos problemas trazidos pela modernizao e pelo desenvol-vimento, as condies de vida melhoraram muito, para contingentes cada vez maiores da populao brasileira.

    O segundo captulo preocupa-se com a regulao social, que ajudou o pas a aprimorar seus indicadores socioeconmicos, especialmente aps o fim da dcada de 1980. Mais do que na regulao, lato sensu, o foco da discusso encontra-se na poltica social, cujos parmetros foram aprimorados pela Carta Magna de 1988. Em reas setoriais distintas, observa-se a atual configurao desses parmetros, como o alcance objetivo da poltica social, a sua abrangncia subjetiva, a sua forma de organizao no territrio, o seu modo de articulao institucional, os seus recursos financeiros e assim por diante. Ressalta-se no apenas os avanos alcanados pela poltica social at o presente, mas tambm os desafios que ela ter de enfrentar em um futuro prximo.

    O terceiro captulo est calcado nos desdobramentos macroeconmicos dos gastos efetuados por conta da poltica social brasileira. A partir dos multiplicado-res de uma Matriz de Contabilidade Social, examinam-se os efeitos de tais gastos sobre dois aspectos: o processo de crescimento da economia e a distribuio da renda gerada neste processo. Esses multiplicadores indicam que incrementos nos gastos em servios de sade e educao, bem como em transferncias assistenciais e previdencirias, resultam em um PIB maior e mais bem distribudo pela popu-lao do pas. Ou seja, os desdobramentos macroeconmicos da poltica social so mltiplos e, alm disso, claramente positivos.

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil20

    J a segunda parte deste livro adota um enfoque setorial, oferecendo anlises para diversas reas de interesse: educao, cultura, reforma agrria, trabalho, sade, garantia de renda e igualdade de gnero. Grosso modo, o intuito em cada uma dessas anlises observar em que sentido caminhou a trama social, dados os esforos reali-zados pela poltica social em cada rea especfica desde 1988. Ademais, o objetivo verificar como determinados problemas enfrentados em cada rea podem ser supe-rados em um futuro prximo, tendo como referncia o ano de 2022.

    Na rea de educao, os problemas encontram-se na erradicao do analfa-betismo, na expanso do ensino infantil e na concluso do ensino fundamental, bem como na ampliao do acesso ao ensino superior. Note-se que esses quatro problemas guardam relaes entre si, tendo em vista a natureza sistmica da edu-cao. De maneira que aes sobre um deles necessariamente impactaro sobre os demais, ao passo que aes isoladas em qualquer deles tendero a apresentar resultados aqum dos desejados para 2022.

    Na rea de cultura, o problema a ser enfrentado no se refere propriamente a experincias culturais da populao, mas sim a insuficincias da poltica social nesta rea. Em princpio, tais insuficincias podem ser superadas por meio da organizao de um sistema nacional de cultura, que se mostre devidamente arti-culado entre os entes federados, que conte com a participao plural de organis-mos da sociedade civil e que seja adequadamente financiado.

    Na rea de reforma agrria, h um problema que se destaca dos demais, que a concentrao fundiria brasileira. Esta concentrao est na raiz de vrios dilemas do campo e mesmo das cidades, como a pobreza e a desigualdade socioe-conmica. A soluo passa pelo cumprimento da funo social da terra, tal como definida na Carta Constitucional de 1988, e pela consequente distribuio deste bem pblico, de maneira a contemplar um extenso grupo de agricultores fami-liares, de trabalhadores rurais sem-terra e de comunidades tradicionais. E, para alm da distribuio da terra, a soluo passa pela implantao de novas polticas de desenvolvimento do mbito rural, voltadas principalmente para a produo sustentvel de alimentos para o mercado interno do pas.

    Na rea de trabalho, o problema que merece ateno a desproteo social dos trabalhadores brasileiros, que se manifesta mediante a ausncia ou a insufici-ncia de mecanismos de garantia de diversos grupos contra vrios riscos laborais. Essa desproteo se mostra vinculada, por um lado, s limitaes histricas do assalariamento no Brasil que, ao contrrio do ocorrido em outros pases, no consegue se universalizar como relao de trabalho. Por outro lado, tal desprote-o est associada s disparidades encontradas em meio ao prprio assalariamento que se denota por grupos muito distintos de trabalhadores, no que se refere aos padres de rendimentos e s condies laborais em geral.

  • Perspectivas Abertas Poltica Social no Brasil 21

    Na rea de sade, o problema a ser sublinhado a mortalidade infantil, cuja taxa um indicador (negativo) da (ausncia de) sade de uma populao, em determinada poca e determinado territrio. Essa taxa um traador da situao da sade e, at mesmo, do desenvolvimento socioeconmico dessa populao. No Brasil como um conjunto, os dados mostram que a mortalidade infantil reduziu-se muito nas ltimas dcadas. No obstante, ela ainda se situa em nveis elevados, alm de se manifestar de forma desigual entre os entes federados. De modo que so discutidas aqui as perspectivas de reduo para a mortalidade infantil, no Brasil e nos vrios estados, procurando-se fazer uma anlise a partir da construo de distintos cenrios at 2022.

    Na rea de garantia de renda, que consolida as anlises de previdncia e assis-tncia social, o problema encontra-se na presso desestruturadora exercida sobre o sistema de proteo social, organizado no pas a partir da CF/88. Essa presso se faz notar, principalmente, sobre a oferta de benefcios monetrios populao, seja sob a forma de seguro (na previdncia), seja sob a de seguridade (na assistncia). Em linha contrria aos defensores da desestruturao da proteo social, demons-tra-se aqui que os benefcios monetrios mitigam situaes de pobreza, assim como reduzem desigualdades de condies de vida. E, desde que de modo articulado com outras iniciativas de poltica econmica e social, podem atuar preventiva e decisiva-mente sobre processos de vulnerabilizao da populao brasileira.

    Na rea de igualdade de gnero, o problema que se destaca a distribuio inqua do trabalho domstico entre homens e mulheres distribuio sustentada por concepes socioculturais a respeito dos arranjos familiares que se perpetuam no tempo. De acordo com tais concepes, papel das mulheres suprir uma srie de lacunas da poltica social, ofertando servios de cuidados com determi-nados grupos como as crianas e, cada vez mais, os idosos. Contrapondo-se a isso, defende-se aqui uma nova atuao do Estado, das empresas e de outros atores sociais, no sentido de possibilitar o surgimento de relaes de gnero mais igualitrias, de forma a garantir uma insero mais democrtica para homens e mulheres nos diferentes espaos da sociedade.

    Enfim, na primeira parte deste livro, que conta com uma abordagem geral, analisa-se a relao historicamente estabelecida entre a regulao social e a din-mica socioeconmica, bem como se explora os traos que podem ser assumidos por esta relao at 2022. J na segunda parte, que possui uma perspectiva seto-rial, verifica-se em que direo se moveu a sociedade brasileira, levando-se em conta os esforos realizados pela poltica social desde a Constituio de 1988. Em paralelo, estima-se a probabilidade de que certos problemas enfrentados em cada rea possam ser superados em um futuro prximo, levando-se em conta a mesma referncia temporal (o ano de 2022).

  • PARTE I

  • CAPTULO 1

    DESENVOLVIMENTO, MODERNIZAO E CONDIES DE VIDA

    1 INTRODUO

    A metanarrativa das teorias de desenvolvimento estabelece uma promessa: a de que o desenvolvimento transformar as sociedades em lugares em que a felicidade a regra e as violncias e as privaes so desconhecidas. em nome desta que as sociedades se engajam em sua modernizao, buscando se desenvolver para promover o bem comum. A histria da humanidade, infe-lizmente, mostra que nem sempre tudo funciona como preconiza a fbula e que os muitos efeitos colaterais e indesejados do desenvolvimento real da misria injustificada face aos recursos suficientes para super-la destruio inconsequente do meio ambiente frequentemente contradizem a promessa.

    Contudo, parafraseando Sen (2000), se fato que as sociedades contem-porneas ainda se encontram distantes de realizar tal meta, algumas mais do que outras, tambm fato que nunca tantos viveram to bem e por tanto tempo quanto no mundo atual. O Brasil no exceo: se, por um lado, h ainda muito a ser feito para que se torne uma sociedade mais justa, por outro, houve bastante progresso. O pas atual, construo de acertos e erros de vrias geraes, bem melhor do que o do passado, graas ao desenvolvimento e modernizao.

    A modernizao normalmente entendida como um conjunto de processos que acompanham o desenvolvimento de sociedades industrializadas e urbanas a partir de sociedades tradicionais. Esta, porm, no se resume industrializao da economia e urbanizao da populao. Tambm envolve grandes mudanas de valores, tecnolgicas, na estratificao social, nos padres de formao de fam-lias, nos arranjos elaborados para darem conta das necessidades quotidianas e nos gostos e hbitos que fazem que a vida no seja apenas um conjunto de obrigaes, mas tambm uma experincia prazerosa. Compreende, ainda, transformaes no papel do Estado como indutor desses processos e garantidor do bem-estar social.

    O objetivo deste captulo recuperar parte das grandes mudanas pelas quais o Brasil passou em sua trajetria de desenvolvimento e modernizao, que so refle-tidas pelos indicadores socioeconmicos. D-se nfase aos aspectos relativos s con-dies de vida e experincia cotidiana dos brasileiros. Para tanto, sero abordadas apenas brevemente as mudanas ocorridas at 1980. Depois, o foco passa s ltimas

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil26

    trs dcadas, quando as mudanas identificadas com o desenvolvimento e a moder-nizao continuaram, embora com certo arrefecimento do ritmo em dimenses nas quais as transformaes haviam sido mais intensas no perodo anterior e acelerao em outras. Com isso, pretende-se retratar o Brasil como uma sociedade em ebulio, que passou por mudanas profundas e nem sempre sincrnicas, um pas que avan-ou muito e se modernizou, sem, no entanto, atingir o Eldorado previsto pela teoria da modernizao e pelo estrutural-funcionalismo americano (PARSONS, 1974). Um pas que j no mais o que era, mas ainda no chegou ao que gostaria de ser.

    2 DESENVOLVIMENTO, MODERNIZAO E CONDIES DE VIDA AT 19801

    H certo consenso em identificar na Revoluo de 1930 o marco inicial da modernizao brasileira. No perodo subsequente ocorrem mudanas estruturais, rpidas e profundas at o incio da dcada perdida, os anos 1980. Conferindo os grandes nmeros disponveis para o perodo, percebe-se que o Brasil passou por um intenso processo de modernizao. Em 1950, a produo industrial j era responsvel por 24,1% do produto interno bruto (PIB), se equiparando agricul-tura, cuja fatia era de 24,3%. Trs dcadas depois, a contribuio da agricultura para o PIB cara para 10,2% e a da indstria subira para 40,6% (BAER, 2003).

    De 1940 a 1980, a populao brasileira quase triplicou de tamanho, pas-sando de 41,2 a 119 milhes de habitantes, e esse crescimento foi acompanhado por uma urbanizao acelerada: apenas 31% residiam em reas urbanas, em 1940, contra 68%, em 1980. Ou seja, enquanto a populao rural cresceu a uma taxa mdia de 0,1% ao ano (a.a.), a urbana teve crescimento mdio de 4,7% a.a. Mais ainda, o crescimento das reas urbanas foi tambm bastante concentrado: em 1940, as capitais das nove regies metropolitanas (RMs) originalmente institucio-nalizadas em meados dos anos 1970 (Belm, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e So Paulo) somavam 4,7 milhes de habitantes, o que representava cerca de 11,5% da populao brasileira; em 1980, j reuniam 22,5 milhes de moradores, ou quase 19% da populao.

    A industrializao e a urbanizao levaram ao fortalecimento do mercado interno, integrando as regies do pas e demandando os produtos da indstria nas-cente, levando autossustentao desses processos. Porm, houve regies em que se deu o fenmeno da urbanizao sem industrializao local (LOPES, 1978, p. 31), pois o desenvolvimento e a modernizao foram marcados pelo reforo da desigual-dade regional ento existente, com concentrao dos subsdios e dos financiamentos do Estado nas regies Sul e Sudeste poca, comumente designadas Centro-Sul.

    1. Os dados desta seo foram majoritariamente retirados dos Anurios Estatsticos em especial, das edies refe-rentes aos anos de 1936, 1949, 1952, 1962, 1972 e 1983 e outras publicaes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) (1950a, 1950b, 1953, 1962, 1972, 1984, 2003, 2006, 2007) e do Instituto Nacional de Estatstica (INE) (1936), exceto nos casos em que a fonte indicada explicitamente.

  • Desenvolvimento, Modernizao e Condies de Vida 27

    Estas ltimas haviam se tornado os eixos dinmicos da economia ao longo do sculo XIX, e seus empresrios detinham, por riqueza e proximidade geogrfica da capital, maior poder poltico e capacidade para exercer presso junto s autoridades compe-tentes (LOPES, 1978, p. 12) e obter vantagens diversas de emprstimos generosos a licenas de importao que contornavam o fechamento da economia permitindo a aquisio de mquinas modernas. O ritmo diferente de desenvolvimento e moderni-zao dividiu o pas em um Brasil moderno, adiantado, e em um Brasil tradicional, atrasado, com consequncias duradouras sobre os indicadores sociais das regies.

    Malgrada a desigualdade regional, a urbanizao e a industrializao foram acompanhadas por inequvocos ganhos de bem-estar, at mesmo nas regies atrasadas. Entre os mais expressivos, figuram as diminuies nas taxas de mortalidade. Estas ltimas para o perodo anterior a 1980 esto sujeitas a imprecises por causa da precariedade dos registros de nascimentos e de bi-tos, mas as estimativas censitrias autorizam a afirmao de que se reduziram. A taxa de mortalidade bruta, a razo entre o nmero de bitos ocorridos em um ano e a populao total no meio deste, cai de 19,7% em 1950 para 8,9% em 1980. Taxas de mortalidade infantil o nmero de bitos de crianas de menos de um ano para cada mil nascidas vivas so raras para esse perodo. Estimativas sugerem que a taxa de mortalidade infantil em So Paulo tenha subido de 69,9, em 1963, para 94,6 bitos por mil nascimentos, em 1973, para depois declinar para 64,6 bitos por mil nascimentos em 1979 (WOOD; CARVALHO, 1994). razovel supor que os nmeros nos demais estados adiantados fossem semelhantes aos de So Paulo e ainda maiores no Brasil atrasado. Desconsiderando a impreciso das taxas, a queda na mortalidade levou ao brusco aumento da esperana de vida ao nascer, constatado a partir dos censos demogrficos, passando de 42,7 anos em 1940 para 61,7 anos em 1980.

    A esperana de vida ao nascer, por ser determinada pela mortalidade, que, por sua vez, depende tanto de caractersticas dos indivduos quanto dos servi-os de que dispem, sejam estes ltimos proporcionados pelo mercado ou pelo Estado, considerada uma medida sumria da qualidade de vida que prevalece em meio a uma populao (WOOD; CARVALHO, 1994). Pode-se ir alm e considerar que tambm uma medida sumria do grau de desenvolvimento e modernizao. A urbanizao, a evoluo tecnolgica, a formao de mercados internos, o aumento do nvel da educao, o estabelecimento e a ampliao do alcance dos meios de comunicao de massa, as mudanas de valores, e a reduo da desigualdade que se espera acompanhar a mudana no sistema de estratificao social e na diviso do trabalho, todos esses fatores, normalmente apontados como caractersticos da transio das sociedades tradicionais para as modernas (KAHL, 1970) podendo-se acrescentar a construo de um conjunto de polticas sociais , contribuem para a reduo da mortalidade e o aumento da esperana de vida.

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil28

    Uma parcela desse ganho de 19 anos na esperana de vida ao nascer se deve expanso dos servios de sade, em quantidade e qualidade, em parte possvel graas concentrao da populao nas crescentes reas urbanas. Embora servios de sade no se restrinjam assistncia hospitalar e ambulatorial, e haja diferenas na apurao desses dados ao longo do tempo, algumas estatsticas histricas desse aspecto da sade pblica auxiliam a dimensionar a expanso.

    Em 1946, segundo o levantamento de estabelecimentos e leitos da assistncia mdico-sanitria, havia no Brasil apenas 3.420 estabelecimentos de sade ofertando 144.417 leitos. Esse nmero inclui hospitais gerais, maternidades, estabelecimentos voltados ao atendimento das crianas, os mantidos por organizaes industriais, leprosrios, os para doentes mentais e nervosos, tuberculosos e militares e os ser-vios oficiais de sade pblica, independentemente do tipo da entidade mantene-dora. Havia, portanto, sete estabelecimentos e 305 leitos para cada grupo de 100 mil habitantes.2 Em 1980, o nmero de estabelecimentos de sade de qualquer tipo havia passado a 18.489, ofertando 509.104 leitos: respectivamente, 16 e 428 destes para cada 100 mil habitantes. Outro aspecto comumente apontado como fator to importante para a reduo da mortalidade quanto o acesso, porm mais difcil de apurar, a mudana da tecnologia e da qualificao dos trabalhadores da sade.

    A melhoria das moradias e dos bairros nas quais se situam tambm contri-buiu para o aumento da qualidade de vida traduzida pela esperana de vida ao nascer. Em que pese a dificuldade de se obterem dados de populao cujos domi-clios se situam em ruas pavimentadas, com iluminao pblica, contando com gua canalizada e esgotos sanitrios, para anos anteriores a 1970,3 algumas estats-ticas precrias podem dar a dimenso da evoluo dos melhoramentos urbanos. Dos 119.508 logradouros em que o IBGE dividia o Brasil em 1947, apenas 17% contavam com pavimentao e, menos ainda, 1% tinha pavimentao de con-creto ou asfalto; 29% dos logradouros contavam com gua canalizada; 15%, com esgotos sanitrios; e 51%, com iluminao pblica o que d uma ideia grosseira da disponibilidade de energia eltrica para fins residenciais.

    Os melhoramentos nas condies de urbanizao desde ento foram gran-des. Em 1980, o Censo Demogrfico apurou que 55% dos domiclios possuam gua canalizada de rede geral de distribuio e 43% contavam com escoadouro adequado dos esgotos para rede ou fossa sptica. Em termos de populao, essas porcentagens eram, respectivamente, 52% e 40%. Na ausncia de informaes confiveis para anos anteriores, registre-se que em 1970 as porcentagens respecti-vas, para domiclios, eram 33% e 27%.

    2. Considerando uma populao de 47,4 milhes de habitantes em 1946, obtida por interpolao geomtrica a partir das populaes totais dos Censos de 1940 e 1950 divulgadas pelo IBGE (2007).3. Para o qual o Censo de Populao em microdados est disponvel, permitindo a elaborao de qualquer tabulao ou indicador a partir da informao coletada pelos questionrios.

  • Desenvolvimento, Modernizao e Condies de Vida 29

    A energia eltrica, sem a qual impossvel a vida moderna e cuja disponibi-lidade para as indstrias e a populao simultaneamente condio e consequn-cia do desenvolvimento, merece um comentrio particular. Em 1948, a potncia estimada de todas as usinas geradoras instaladas no pas, hidro e termoeltricas, estatais ou privadas, era de 1.616 MW. Em 1980, a capacidade das geradoras j era de 33.229 MW. Nesse ano, o Censo registrou que 69% dos domiclios contavam com energia eltrica, servindo a 66% da populao. Dez anos antes, o de 1970 contabilizara acesso energia eltrica em apenas 48% dos domiclios.

    Entre as caractersticas individuais, a educao um grande marcador da transio para modernidade e um significativo determinante do aumento da esperana de vida. Pessoas alfabetizadas tm maior acesso informao por poderem receb-la de forma escrita, e geralmente a educao propor-cionada pelo sistema de ensino transmite noes bsicas de higiene, como lavar as mos e filtrar e/ou ferver a gua usada para cozinhar e beber, e a importncia do asseio das casas e do prprio corpo.

    A sociedade tradicional brasileira, como tantas outras na Amrica Latina, era marcada pela presena de uma microscpica elite altamente letrada, uma pequena camada pouco educada e uma grande massa de analfabetos. Em 1900, 75% da populao de 15 ou mais anos no sabiam ler e escrever; em 1940, a porcentagem de analfabetos nessa populao havia baixado a 56%; em 1980, se reduzira a 25%. Assim, nas quatro primeiras dcadas do sculo XX, a taxa de analfabetismo decresceu ao ritmo mdio de 1/2 ponto percen-tual (p.p) a. a. e a quase 1 p.p. a.a. nas quatro dcadas seguintes.

    A despeito das reformas na estruturao do sistema de ensino, e da pre-cariedade e impreciso dos dados sobre o nvel educacional da populao do Censo de 1940, possvel elaborar alguns indicadores para aquele ano a partir das tabelas divulgadas. Apenas 8% da populao de 20 ou mais anos de idade possua diploma ou havia completado algum curso; para 5%, o grau mais ele-vado era o elementar; para 2%, o mdio;4 e apenas 0,5% tinha grau superior. A perspectiva para os mais jovens tambm no era animadora, com as informa-es disponveis sugerindo que para a maior parte dos poucos que chegavam a receber alguma instruo, esta era provavelmente limitada alfabetizao. Na faixa etria dos 5 aos 9 anos, apenas 20% recebiam algum tipo de instruo no necessariamente em escolas; dos 10 aos 14 anos, a porcentagem era mais elevada, 32%; e dos 15 aos 19 anos, apenas 9% mas os dados tabulados do Censo de 1940 revelam que grande parte desses alunos no sabia ler e escrever.

    4. O grau elementar corresponde, grosso modo, s quatro ou cinco sries iniciais do atual ensino fundamental; o mdio possua dois ciclos, o primeiro corresponde segunda metade do ensino fundamental e o segundo, ao ensino mdio a documentao no clara sobre se a populao com ensino mdio completo compreende os que haviam completado o primeiro ciclo. Os diplomas poderiam se referir a cursos tcnicos ou profissionalizantes.

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil30

    Em quatro dcadas, a populao de 20 ou mais anos de idade com ao menos o equivalente ao elementar passou para 33%: 5% com elementar completo; 15% haviam completado o primeiro ciclo do ensino mdio, o primrio ou o primeiro grau; 9%, o ensino mdio ou o equivalente; 4% possuam um diploma de curso superior; e 0,1%, ttulos de mestre ou doutor. A escolarizao se expandiu em ritmo acelerado, e, em 1980, frequentavam escola 47% das crianas de 5 a 9 anos de idade, 70% das de 10 a 14 anos e 42% dos jovens de 15 a 19 anos. O fato de a taxa de escolarizao na faixa etria dos 10 a 14 anos ser consideravelmente maior do que na anterior indica que ainda era baixa a porcentagem de crianas que comeavam a frequentar a escola em idade adequada e a alfabetizao era em regra atrasada. Mesmo assim, a mudana no perfil educacional da populao de 1940 a 1980 foi substantiva, e por certo foi um dos principais fatores a levar ao aumento da esperana de vida.

    Um aspecto frequentemente esquecido nas caracterizaes das transforma-es estruturais profundas por que passou o Brasil a mudana nas tecnologias de comunicao. A instalao de linhas telefnicas comeou cedo, mas era altamente concentrada em So Paulo, no Rio Grande do Sul e no municpio do Rio de Janeiro (antigo Distrito Federal DF). Em 1907, havia 15.203 aparelhos telefnicos no pas (71,6 para cada 100 mil habitantes);5 e em 1935, j existiam 70.281 destes apenas no municpio do Rio de Janeiro. A expanso da telefonia foi rpida nos anos seguintes e, em 1948, existiam 188.388 aparelhos no ento DF para 130.991 assinantes; nesse ltimo ano, registravam-se 492.231 aparelhos instalados no Brasil (992,4 para cada 100 mil habitantes) e 371.111 assinantes (748,2 para cada 100 mil habitantes).6 Em 1980, o nmero de terminais telefnicos em servios chegara a 4.084 para cada 100 mil habitantes e o de terminais residenciais a 2.865 para cada 100 mil habitantes. Alm da expanso da cobertura, em 1980, apenas 4% dos municpios no contavam com ao menos um posto telefnico oferecendo ligaes interurbanas; em 71% dos municpios, a rede telefnica permitia ligaes interurbanas via discagem direta ou operadora; e 28% dos domiclios contavam com discagem direta internacional.

    Antes desse grau de integrao ser atingido via servios telefnicos, o principal meio para a comunicao rpida de longa distncia no Brasil era o telegrama. A rede telegrfica era a responsvel pela integrao nacional e tambm pela comunicao entre empresas e as famlias separadas pela migrao de seus membros, seja para as reas urba-nas prximas, seja para as eventualmente distantes zonas de dinamismo econmico. Em 1934, foi enviado um telegrama para cada 3,7 habitantes,7 razo que chegou a um para cada 1,6 habitantes em 1948. Desde ento, a perda de importncia do telegrama

    5. Considerando uma populao de 21,2 milhes de habitantes em 1907, obtida por interpolao geomtrica a partir das populaes totais dos Censos de 1900 e 1920 divulgadas pelo IBGE (2007).6. Considerando uma populao de 49,6 milhes de habitantes em 1948, obtida por interpolao geomtrica a partir das populaes totais dos Censos de 1940 e 1950 divulgadas pelo IBGE (2007).7. Considerando uma populao de 32,5 milhes de habitantes em 1934, obtida por interpolao geomtrica a partir das populaes totais dos Censos de 1920 e 1940 divulgadas pelo IBGE (2007).

  • Desenvolvimento, Modernizao e Condies de Vida 31

    como meio de comunicao longa distncia foi tal que em 1980 foi enviado apenas um telegrama para cada 7,7 habitantes, sendo que um quarto eram telegramas fonados.

    Quanto comunicao impressa, no Brasil iletrado das primeiras dcadas do sculo XX, a leitura de jornais era para poucos: em 1933, apenas 100 jornais de circulao diria foram contabilizados em todo o pas, 3,1 para cada milho de habitantes.8 Em 1980, o nmero de jornais dirios era de 343, mas a razo por milho de habitantes cara um pouco, para 2,9, com uma tiragem total de 1,4 milhes de exemplares/dia. Em que pese o fato de que, considerando a tiragem, informao no disponvel para 1933, o acesso aos jornais tenha provavelmente aumentado, a evoluo nesse quesito parece no corresponder de outros j vistos.

    Dos meios que facilitam a difuso dos valores associados vida moderna levando a mudanas comportamentais, o rdio e a TV tiveram expanso e influncia muito mais pronunciadas do que os jornais. As primeiras rdios do Brasil foram instaladas na primeira metade dos anos 1920, e em 1935 s havia 44 empresas funcionando, a maior parte concentrada no municpio do Rio de Janeiro e em So Paulo. Em 1950, comeou a operar o primeiro canal comercial de TV, a Tupi, em So Paulo. Nesse ano, j existiam 300 rdios no Brasil, das quais 185 haviam comeado a operar a partir de 1946. Em 1960, j havia 605 rdios e 15 TVs; e em 1971, o nmero de rdios che-gava a 1.008 e o de TVs a 52. Em apenas uma dcada, o nmero destas mais do que dobrou, chegando a 114 em 1980, ano em que havia 1.263 rdios registradas no pas.

    A expanso das rdios e das televises foi acompanhada pela evoluo tecnolgica. Houve aumento da qualidade e da cobertura territorial das transmisses, representado, no caso das rdios, pelo progressivo aumento do nmero destas transmitindo em frequ-ncia modulada (FM). No caso da TV, ocorreu a adoo do videoteipe e da transmisso colorida. Em 1980, j havia canais de TV transmitidos por satlite e repetidos em todo o territrio nacional. E tanto nesta quanto no rdio, trs tipos de programas se conso-lidaram como campees de audincia: as novelas, os de auditrio e os jornalsticos.

    Em suma, o Brasil que chegou aos anos 1980 era radicalmente diferente daquele do comeo do sculo XX. No lugar de um pas rural e fragilmente integrado, com uma populao majoritariamente analfabeta, emergiu um pas predominante urbano e em rpida industrializao, muito mais integrado e testemunhando a rpida difuso tanto de servios quanto de valores considerados tipicamente modernos. A ecloso da crise da dvida externa e toda a instabilidade econmica subsequente, no entanto, modificaram rapidamente o panorama e sinalizaram o esgotamento do modelo por trs do milagre econmico. Os anos 1980 rapidamente viraram a dcada perdida, de crescimento econmico medocre e hiperinflao. Diagnsticos e propostas claramente divergentes emergiram, opondo os que defendiam reformas econmicas liberalizantes e em prol do

    8. Considerando uma populao de 32 milhes de habitantes em 1933, obtida por interpolao geomtrica a partir das populaes totais dos Censos de 1920 e 1940 divulgadas pelo IBGE (2007).

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil32

    livre comrcio e os que propunham solues keynesianas ou de inspirao cepalina, para quem a crise resultava mais dos desequilbrios da economia internacional do que de polticas equivocadas dos governos nacionais, e os ajustes estruturais recomendados pelo Fundo Monetrio Internacional (FMI) apenas agravavam os problemas (KIELY, 2007). No cabe neste estudo entrar no mrito de tais diagnsticos nem avaliar as teo-rias por trs do Plano Real e da abertura econmica da segunda metade dos anos 1990. O ponto central da prxima seo o de mostrar que, apesar de o Brasil no ter recuperado o ritmo de crescimento econmico da dcada de 1970, os ltimos 30 anos continuaram a ser de profundas mudanas estrutu-rais, que se encaixam perfeitamente no script da transio para a modernidade. Assim, enquanto algumas dimenses, como a industrializao, perderam vigor, em outras, principalmente as relacionadas esfera dos valores, as transformaes foram bastante aceleradas.

    3 AS LTIMAS TRS DCADAS9

    Entre 1980 e 2000, data do ltimo censo, a populao brasileira aumentou mais de 50 milhes de pessoas, mas o ritmo do crescimento populacional (em mdia, 1,8% a. a.) foi bem inferior ao das duas dcadas anteriores: mesmo j tendo comeado a cair nos anos 1970, o crescimento mdio entre 1960 e 1980 foi de 2,7% a. a. Como mostra a tabela 1, a urbanizao continuou acelerada, com uma diminuio significativa em termos absolutos e relativos da populao em reas rurais. Assim, em 1970, 56% dos brasileiros viviam em reas urbanas; em 2000, j eram 81%.

    TABELA 1Populao total e crescimento mdio anual por reas e regies Brasil, 1970-2000

    Populao (milhes) Crescimento mdio anual (%)

    1970 1980 2000 1970-1980 1980-1991 1991-2000

    reas

    urbana 52,1 80,4 137,9 4,0 3,0 2,4

    rural 41,1 38,6 31,8 -0,6 -0,7 -1,1

    Regies

    Metropolitanas 23,8 34,5 51,1 3,8 1,9 2,0

    Capitais Periferias

    16,5 22,5 28,8 3,2 1,4 1,1

    Resto do Brasil 7,3 12,0 22,4 5,1 3,0 3,4

    69,3 84,6 118,7 2,0 1,9 1,5

    Total 93,1 119,1 169,8 2,5 1,9 1,6

    Fonte: Censos de populao/IBGE.

    9. Todos os dados citados nesta seo so resultados de tabulaes prprias com base nas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domiclios (PNADs), exceto nos casos em que a fonte explicitamente mencionada.

  • Desenvolvimento, Modernizao e Condies de Vida 33

    O que mudou bastante, contudo, foi a forma de urbanizao, na medida em que esta deixou de ser um sinnimo de metropolizao:10 o crescimento mdio anual das grandes cidades brasileiras caiu bruscamente nos anos 1980, em especial nas capitais, onde o crescimento percentual caiu abaixo da mdia nacional pela primeira vez desde 1920. As periferias tambm passaram por processo semelhante, embora com muito menos intensidade, o que, de toda maneira, alterou a distribuio relativa da populao nas RMs: em 1970, quase 70% dos moradores residiam nas capitais; em 2000, apenas 56%.

    De forma geral, a urbanizao trouxe consigo o acesso crescente a alguns equi-pamentos bsicos da vida moderna. Como se v no grfico 1, em 1981, o acesso ao saneamento bsico era mais um luxo do que um direito e, at mesmo em 2008, apenas a coleta de lixo chegou mais prximo da universalizao. O acesso rede geral de esgoto, que depende muito mais de iniciativas do setor pblico do que da renda familiar, continua um grande problema nacional: embora os ltimos 15 anos tenham apresentado avanos expressivos e em um ritmo razoavelmente constante, estimativas recentes reforam a necessidade de ainda mais investimentos, pois, caso contrrio, ainda se ter de esperar algumas dcadas at a universalizao desse tipo de servio. Felizmente, as perspectivas so melhores para os dois outros itens do grfico 1. O acesso energia eltrica tornou-se praticamente universal nos ltimos anos e, da mesma forma, quase todos os brasileiros vivem em domiclios com gela-deiras, um dos bens de consumo durveis mais fundamentais para a vida moderna.

    GRFICO 1Populao em domiclios ligados rede geral de gua e esgoto, com coleta de lixo, energia eltrica e geladeira Brasil, 1981-2008(Em %)

    Fonte: Microdados da PNAD/IBGE.

    10. Neste captulo, por RMs, entendemos as nove regies originalmente institucionalizadas por lei federal no binio 1973-1974: Belm, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e So Paulo. Para consideraes sobre o processo de institucionalizao e seus desdobramentos, ver Souza (2003) e Moura et al. (2003). Vale observar que, a partir da Constituio Federal de 1988 (CF/88), a responsabilidade pela criao e regulao das RMs passou aos estados, o que levou no s institucionalizao de inmeras outras, como tambm, em alguns casos, a mudanas na composio das regies j existentes. Dessa forma, para 1970, contabilizar-se- todos os municpios que vieram a fazer parte da composio original das RMs e, nos anos seguintes, incluir-se-o todos os municpios que faziam parte destas no momento do Censo.

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil34

    O acesso ampliado ao saneamento bsico, aos ganhos educaionais e difu-so de valores tipicamente modernos, entre outros fatores, modificaram profun-damente as taxas de mortalidade e de natalidade no pas, de modo que, em apenas 30 anos, entre 1978 e 2008, a composio etria da populao brasileira apresen-tou um visvel processo de envelhecimento (grfico 2). As crianas com menos de 10 anos de idade, por exemplo, representavam 27% da populao masculina em 1978 e apenas 16,2% em 2008; tambm entre os homens, os idosos com 65 anos ou mais passaram de 3,7% para 6,8%; em termos absolutos, um aumento de 2 milhes para 6,25 milhes. Fenmenos parecidos ocorreram entre as mulheres.

    GRFICO 2 Composio etria da populao brasileira, por faixas e gnero Brasil, 1978 e 2008(Em %)

    Fonte: Microdados da PNAD/IBGE.

    Tudo isso fez a composio dos domiclios mudar rapidamente. O nmero mdio de pessoas por domiclio diminuiu bastante, de 5,8% em 1981 para 4,1% em 2008, uma queda de quase 30%. Os arranjos familiares, por sua vez, se tornaram mais heterogneos e, apesar de casais com filhos ainda serem predo-minantes, domiclios com casais sem filhos, monoparentais femininos e unipes-soais passaram a ser muito mais comuns (MEDEIROS; OSORIO, 2002). Esta incipiente reorganizao da intimidade, por sinal, particularmente interes-sante e duplamente moderna, na medida em que se afasta tanto das famlias estendidas tpicas de sociedades tradicionais quanto dos modelos nucleares com filhos consagrados pela modernidade no sculo XX. Ora, o questionamento dos seus prprios pressupostos justamente um dos traos mais tpicos daquilo que muitos autores chamam de modernidade tardia ou terceira fase da moderni-dade (BECK; BONSS; LAU, 2003; WAGNER, 1996).

  • Desenvolvimento, Modernizao e Condies de Vida 35

    As mudanas nas relaes de gnero refletem bem essa modernizao da sociedade brasileira. Embora certamente ainda haja um longo caminho a per-correr at a superao das assimetrias de poder, inegvel que as mulheres con-quistaram amplos espaos de liberdade, principalmente em comparao com o velho esteretipo da dona de casa acossada por uma sociedade patriarcal. A par-ticipao no mercado de trabalho possivelmente o melhor exemplo disto. Em 1981, cerca de 75% dos homens e 33% das mulheres com 10 anos ou mais eram economicamente ativos;11 em 2008, o percentual de homens economicamente ativos caiu para 71%, enquanto o de mulheres atingiu 50%. Para os homens, o que houve, essencialmente, foi uma leve diminuio na participao dos mais novos e dos mais idosos; entre as mulheres, a entrada macia na PEA deu-se por uma combinao de efeitos de perodo e de coorte. Em conjunto, essas mudan-as implicam uma reconfigurao do mercado de trabalho, pois, em 1978, cerca de 69% dos indivduos ocupados eram homens, mas, em 2008, este percentual j havia cado para 59%. Mais importante ainda, trata-se de uma tendncia que no apresenta nenhum sinal de arrefecimento e tambm se refletiu na diminui-o dos diferenciais salariais entre homens e mulheres. Em 1981, a remunerao mdia das mulheres ocupadas equivalia a 54% da remunerao dos homens; em 2008, 71%, um percentual ainda muito baixo e que sinaliza a relevncia das desigualdades de gnero, mas que, de todo modo, denota a diminuio desta.

    As ramificaes desses fenmenos so amplas e ilustram bem a importncia dos servios pblicos no combate s desigualdades de gnero. O encolhimento das famlias e seus novos arranjos e a entrada das mulheres no mercado de traba-lho, por exemplo, criam um novo problema: quem vai cuidar das crianas? Em 1978, quase 69% das de at 14 anos viviam com mes ou madrastas que no trabalhavam e que, portanto, ao menos em teoria, podiam dedicar-lhes ateno integral. Em 2008, este nmero caiu para 39% e, se a tendncia prosseguir, pro-vavelmente vai diminuir ainda mais. Na ausncia de servios e instituies que ajudem na difcil tarefa de criar filhos, o resultado inevitvel, em uma sociedade em que papis masculinos e femininos ainda so bem delimitados, seria um fardo adicional imposto s mes que trabalham, a j conhecida dupla jornada.

    Em boa medida, isso poderia ser aliviado pela expanso da educao, em especial das pr-escolas, o que se verificou apenas parcialmente. Entre crianas de 6 a 14 anos, de fato, o acesso educao universalizou-se: em 1978, apenas 64% destas nesta faixa etria frequentavam a escola, contra 98%, em 2008. A creche e a pr-escola, contudo, continuam longe de serem universais: em 1995, somente 19% das crianas de at 5 anos frequentavam instituies desse tipo, percentual

    11. Consideramos como PEA os indivduos com 10 anos ou mais de idade que estavam empregados ou procurando emprego na semana de referncia da PNAD.

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil36

    que subiu para 38% em 2008 ainda muito longe do desejvel. Isto impe uma presso adicional s famlias mais pobres, que acabam tendo que contratar priva-damente ajuda ou se desdobrar entre as tarefas domsticas e o mundo do trabalho. Assim, entre os 10% mais pobres, pouco menos de 30% das crianas com menos de 6 anos frequentam a escola, enquanto entre os 10% mais ricos este percentual de quase 59%. Trata-se de uma forma de desigualdade perversa e muitas vezes invisvel, que, no entanto, acarreta graves consequncias tanto para o bem-estar presente das famlias quanto para o futuro de seus filhos, especialmente quando se leva em conta que o desenvolvimento de recursos cognitivos na primeira infncia tem repercusses importantes para as chances de vida das crianas, tanto para o acmulo posterior de capital cultural quanto para um bom desempenho escolar (ESPING-ANDERSEN, 2004). Investimentos pblicos em servios para esta faixa etria poderiam, portanto, contribuir bastante para a reduo das desigual-dades de oportunidades. Neste aspecto, o Brasil ainda est muito longe do ideal.

    Em outras frentes, felizmente, os avanos foram maiores. Entre crianas de 10 a 14 anos, no apenas a frequncia escola se tornou praticamente universal, como tambm o trabalho infantil diminuiu bastante, embora ainda no tenha sido completamente erradicado: em 1978, 19% das crianas nesta faixa etria trabalhavam ou estavam procurando emprego; em 2008, eram 6%. Entre os jovens de 15 a 19, a frequncia escolar tambm aumentou, de 45% para 69%. Melhor ainda, at mesmo para o ensino superior houve melhorias expressivas: em 1978, menos de 4% da populao de 20 anos ou mais estava cursando ou j tinha cursado este nvel; dez anos depois, em 1988, j eram 8%. Entre 1988 e 1998, contudo, quase no houve mudanas; no entanto, entre 1998 e 2008, o percentual subiu de 9% para quase 15%. Em termos absolutos, isso significa um salto de 1,9 para 17,1 milhes de pessoas em apenas 30 anos. A expanso, por sinal, se fez acompanhar por uma mudana significativa na composio do grupo com acesso ao ensino superior, com a ascenso das mulheres: em 1978, 58% eram homens; em 2008, apenas 44%.

    Um dos aspectos marcantes da modernidade como Utopia a perda de influncia das caractersticas individuais adscritas (aquelas que os indivduos no escolhem, como a cor, o sexo e a famlia em que nascem) na determina-o da posio social. Em sociedades desenvolvidas, idealmente, a posio ocupada por indivduos depende menos da classe ou raa na qual nasceram e mais de seus talentos e seus prprios esforos. Infelizmente, no h tanto o que se comemorar neste aspecto, pois estas caractersticas permanecem sendo fatores importantes para a determinao do sucesso dos indivduos.

    Isso pode ser visto, por exemplo, nas dificuldades para a superao das desi-gualdades raciais de acesso ao ensino superior. A evoluo foi moderada nesta rea

  • Desenvolvimento, Modernizao e Condies de Vida 37

    e ocorreu basicamente nos ltimos 10 anos, quando a porcentagem de brancos entre aqueles que estavam cursando ou j tinham cursado o ensino superior caiu de 85% para 73%, como mostram os grficos 3A e 3B. De qualquer forma, mesmo este aumento dos ltimos dez anos deriva no s de menor desigualdade de opor-tunidades, mas tambm de mudanas na composio racial da populao: mesmo que as probabilidades de acesso em 1988 fossem mantidas, apenas as alteraes observadas na composio racial da populao derrubariam de 85,5% para 81% o percentual de brancos entre aqueles com acesso. Ou seja, os avanos da ltima dcada podem ser comemorados, mas preciso manter os ps no cho, pois ainda h muito a ser feito, pelo menos no campo educacional, at que as desigualdades raciais possam ser superadas, e no s no que diz respeito educao superior. Tais diferenas gritantes no acesso de negros e brancos a algo to importante como o ensino superior no so coerentes com as promessas da modernidade.

    GRFICO 3Populao com acesso ao ensino superior, por cor ou raa, e composio racial dos que tm ou tiveram acesso Brasil, 1988-200812(Em %)

    12. Por brancos, entendemos os indivduos que se autodeclararam brancos ou amarelos; por no brancos, os pretos, pardos e indgenas. Ter acesso ao ensino superior significa estar cursando ou j ter cursado este nvel.

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil38

    Fonte: Microdados da PNAD/IBGE.

    4 A OFERTA DE TRABALHO

    Em termos absolutos, a PEA aumentou de 42,4 para 78,1 milhes de pessoas; em termos relativos, de 53% para 60% da populao em idade ativa. Mas, entre mui-tos outros fatores, o prolongamento da passagem pela escola e como ser visto a expanso das aposentadorias e da rede de proteo social brasileira, por um lado, e a entrada das mulheres no mercado de trabalho, por outro, exerceram efeitos discrepantes sobre a oferta da mo de obra, como se v no grfico 4. Entre 1978 e 2008, tanto os indivduos abaixo de 20 anos quanto os acima dos 60 diminuram sua taxa de participao, enquanto aqueles entre os extremos aumentaram.

    GRFICO 4Participao na PEA, por idade Brasil, 1978 e 2008

    Fonte: Microdados da PNAD/IBGE.

  • Desenvolvimento, Modernizao e Condies de Vida 39

    Infelizmente, o mercado de trabalho brasileiro se mostrou, durante a maior parte das ltimas trs dcadas, incapaz de gerar postos de trabalho em quantidade e qualidade suficiente para absorver o crescimento da PEA. justamente nesse ponto, por sinal, que mais nos afastamos da narrativa moder-nizante ou pelo menos de sua verso desenvolvimentista, que sonhava com a continuidade da trajetria de industrializao e de formalizao do trabalho.

    Ainda assim, importante salientar como, de forma geral, o comportamento do mercado de trabalho no foi homogneo nos anos 1980, 1990 e 2000 e, alm disso, como o desempenho das RMs destoou do resto do Brasil, principalmente nos anos 1990. Os grficos 5A e 5B exibem a evoluo de dois dos aspectos mais visveis tanto da crise quanto da recuperao, o ndice de desemprego e a remune-rao mdia do trabalho.13 Em conjunto, eles contam uma histria diferente para cada dcada: nos anos 1980, delineia-se um cenrio de baixo desemprego, mas com hiperinflao durante boa parte do tempo,14 gerando flutuaes abruptas na remunerao do trabalho, o que, inclusive, recomenda extrema cautela na comparao dos valores reais daquela poca com os observados depois de 1995. Nos anos 1990, o perodo pr-Plano Real tambm foi marcado pela hiperin-flao, mas com queda significativa da renda ao longo do perodo 1990-1993 e com aumento do desemprego, que passou a oscilar entre 6,5% e 7%, contra os cerca de 3% observados no fim da dcada de 1980. Com este plano econ-mico e o controle da inflao, as remuneraes mdias reais aumentaram cerca de 20% entre 1993 e 1995, passaram por um perodo de estagnao e, a partir de 1998, entraram em uma trajetria de queda que perdurou at 2003. Da mesma maneira, o desemprego comea a subir de 7% at chegar a mais de 10% em 1999. Apenas em meados dos anos 2000, mais particularmente a partir do binio 2004-2005, que ambos os indicadores passam a apresentar comportamento positivo: o ndice de desemprego cai dos 10% para menos de 8% e a remunerao mdia do trabalho acumula um ganho real de 17% entre 2004 e 2008, chegando a R$ 1.042,00. Apesar disso, no entanto, ambos continuam piores do que o observado anteriormente. O ndice de desemprego ainda no voltou a se aproximar dos percentuais obtidos na dcada de 1980 e a remunerao do trabalho continua em um nvel inferior ao verificado entre 1995 e 1998. A boa notcia, contudo, que, pela primeira vez em muito tempo, tambm o percentual de trabalhadores

    13. O ndice de desemprego o percentual de pessoas que no tinham trabalho, mas estavam procurando na semana de referncia da PNAD. A remunerao mdia do trabalho calculada apenas para aqueles trabalhadores remunera-dos e deflacionada de acordo com a sugesto de Corseuil e Foguel (2002). Os dados para 1991, 1994 e 2000 foram obtidos por interpolao.14. Na verdade, a inflao, medida pelo ndice Nacional de Preos ao Consumidor (INPC), ficou razoavelmente estvel, porm em um patamar elevado (entre 95% e 100% a. a.), entre 1980 e 1982; disparou entre 1983 e 1985, chegando a 239% a. a. Com o Plano Cruzado, em 1986, a inflao foi momentaneamente controlada, caindo para 59% a. a. Nos anos seguintes, contudo, houve novo descontrole inflacionrio e, em 1989, o INPC acumulado foi de 1.863% a. a. O perodo pr-Plano Real foi tambm de bastante instabilidade, com novo recorde inflacionrio em 1993 (2.489% a. a.).

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil40

    formais15 subiu de forma consistente nos ltimos anos, chegando a 42,8% da PEA em 2008, depois de patinar em torno de 36% nos anos 1990 e de atingir um valor mnimo de 34,2% em 199916.

    GRFICO 5ndice de desemprego aberto e remunerao mdia real dos ocupados Brasil, 1981-2008(Em &)

    Fonte: Microdados da PNAD/IBGE.

    15. Consideramos neste estudo como trabalhadores formais todos os empregados com carteira assinada, os funcion-rios pblicos estatutrios e os militares. 16. Vale observar que o percentual de empregadores e de trabalhadores por conta prpria na PEA no apresentaram grandes variaes entre 1981 e 2008. O primeiro oscilou entre 3% e 4% ao longo de todo o perodo; o segundo variou em torno de 21% e 22% at meados dos anos 2000, quando passou a declinar lentamente, de modo que, em 2008, os trabalhadores por conta prpria representavam 19,6% da PEA.

  • Desenvolvimento, Modernizao e Condies de Vida 41

    preciso ter em mente, de qualquer maneira, que a crise no mercado de trabalho no afetou o Brasil todo por igual. Os maus resultados dos anos 1990 foram influenciados principalmente pelo pssimo desempenho das RMs. Assim, por exemplo, entre 1995 e 2003, a remunerao mdia do trabalho nestas regies despencou 25,7%, de R$ 1.501,00 para R$ 1.115,00. No Brasil no metropoli-tano, tambm houve queda, mas bem menor, de cerca de 11,4%, de R$ 892,00 para R$ 790,00. Nesse intervalo de tempo, o ndice de desemprego aumentou de 8,3% para 14,1% no Brasil metropolitano e apenas de 5,7% para 8,5% no resto do pas. Da mesma maneira, at mesmo a recuperao econmica entre 2003 e 2008 beneficiou menos as RMs: nestas, a renda mdia do trabalho cresceu pouco menos de 12% em cinco anos, contra praticamente 20% do Brasil no metropolitano.

    Em outras palavras, alm de um perodo de crise e outro mais curto de cresci-mento, o que os dados parecem mostrar uma tendncia de reconfigurao espacial do mercado de trabalho brasileiro. Durante boa parte do sculo XX, as RMs foram as grandes propulsoras do crescimento, recebendo muito mais investimentos pblicos e privados do que o resto do pas, o que, por sua vez, tambm estimulou a migrao em massa. O que as ltimas duas dcadas mostram uma diminuio da distncia entre elas e o Brasil no metropolitano, com uma distribuio menos concentrada dos postos de trabalho e, at mesmo, um crescimento populacional mais homogneo, como foi visto. Os dados de Ramos e Ferreira (2005), por exemplo, reforam a tese da despolarizao e da realocao geogrfica do emprego formal, em especial do emprego industrial: entre 1995 e 2003, houve um aumento de 12% no nmero de postos de trabalho formais nas RMs, contra 37% no resto do pas; j o emprego industrial caiu 13% nelas e cresceu 27% no Brasil no metropolitano. Um efeito colateral desta reconfigurao espacial, por sinal, o de que o tom apocalptico adotado por muitos autores ao falar do mercado de trabalho nos anos 1990 provavelmente pode ser atribudo, em parte, anlise exclusiva de dados da Pesquisa Mensal do Emprego (PME), cuja cobertura restrita a apenas seis RMs e que, portanto, tem resultados muito influenciados, sobretudo, por Rio de Janeiro e So Paulo, que foram as regies que mais sofreram com a crise. Isso no sig-nifica, naturalmente, que os diagnsticos destes autores estivessem errados: com efeito, possvel imaginar que parte da frustrao e do malaise muitas vezes encontrados nas RMs resulte da incapacidade de realizao de expectativas tipicamente modernas em um cenrio de relativa estagnao econmica. O que no se pode, contudo, extrapolar este cenrio para o resto do pas, que vivenciou uma trajetria bastante distinta.

    Esses movimentos ficam bem ntidos nos grficos 6A, 6B e 6C, a seguir, que mostram o percentual de trabalhadores por setor econmico.17 A diminuio

    17. Para garantir a compatibilidade das PNADS 1981-2008, foi preciso recorrer a esta classificao bastante avtgrega-da, que infelizmente acaba ocultando as transformaes ocorridas em um mesmo setor. Vale lembrar que, em inds-tria, inclumos tanto os trabalhadores da indstria da transformao quanto os da construo civil e de outras ativi-dades industriais e que os servios consideram prestadores de servios, empregados domsticos e outros exemplos.

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil42

    brutal da participao do setor agrcola uma tendncia que vem de longa data e que manteve praticamente o mesmo ritmo entre 1981 e 2008, puxado quase exclusivamente pelo Brasil no metropolitano. O crescimento do trabalho no setor de servios outra tendncia forte e razoavelmente constante dos ltimos 30 anos: entre 1981 e 1999, a variao em p. p. foi idntica nas RMs e no resto do Brasil; s nos ltimos dez anos que houve divergncia, com o setor de servios no Brasil no metropolitano continuando a absorver relativamente mais mo de obra enquanto as RMs se mantiveram estveis.

    Mais interessante o comportamento do trabalho industrial. Em 1981, o percentual nessas regies era muito maior do que nas do resto do pas; no entanto, com todas as transformaes mencionadas anteriormente, a participao percentual do emprego na indstria convergiu e se tornou praticamente idntica em ambas em 2008. No total, tomando o Brasil como unidade de anlise, v-se que as duas trajetrias opostas acabam quase se anulando, com apenas uma pequena queda da participao da indstria menos do que a desindustrializao, o movimento que mais chama a ateno o esvaziamento do setor agrcola e a subsequente absoro de trabalhadores no setor de servios. Por fim, o percentual de trabalhadores envolvidos na administrao pblica subiu bem levemente, tambm como resultado de duas tendncias opostas (queda relativa nas RMs e aumento relativo no resto do Brasil).

    GRFICO 6Distribuio dos trabalhadores por setores econmicos Brasil, regies metropoli-tanas e no metropolitanas, 1981-2008(Em %)

  • Desenvolvimento, Modernizao e Condies de Vida 43

    Felizmente, esse comportamento errtico do mercado de trabalho pde ser pelo menos parcialmente atenuado pela expanso e consolidao do sistema brasileiro de proteo social, principalmente depois da CF/88. No cabe neste estudo, claro, fazer um balano de todas as conquistas e os obstculos surgidos desde ento (IPEA, 2009), mas vale a pena repassar alguns nmeros que ilustram o impacto das mudanas, pelo menos no que diz respeito garantia de renda.18

    18. Por motivos de espao, no ser possvel abordar neste estudo outros trunfos da poltica social nas ltimas dca-das, como a institucionalizao do Sistema nico de Sade (SUS) e a expanso do ensino pblico.

  • Perspectivas da Poltica Social no Brasil44

    Em primeiro lugar, notvel a ampliao do papel cumprido pela Pre-vidncia Social, tanto em termos do nmero de beneficirios quanto do valor mdio dos benefcios. Em 1981, 6,5% da populao recebia aposenta-dorias ou penses; e entre a populao com 65 anos ou mais, cerca de 72% eram beneficirios. Em 1995, o percentual de aposentados j estava prximo dos 10%, chegando a 12% em 2008. A cobertura entre a populao idosa tambm melhorou: nesse ltimo ano, quase 86% das pessoas com 65 anos ou mais recebiam aposentadorias ou penses. Enquanto a renda mdia real do trabalho permaneceu estagnada na comparao entre 1981 e 2008, a das aposentadorias e penses somadas cresceu 50%, em especial por causa dos aumentos reais do salrio mnimo (SM). Logo, enquanto na PNAD 1981 a renda do trabalho representava 85% do total e as aposentadorias e penses correspondiam a 9,5%, na PNAD 2008 a participao do trabalho caiu para 76% e a das aposentadorias e penses chegou a 18% da renda total.

    Alm disso, os benefcios no contributivos tambm se expandiram. O Benefcio de Prestao Continuada (BPC) um bom exemplo: previsto na CF/88 e regulamentado em 1993 pela Lei Orgnica de Assistncia Social (Loas), um benefcio mensal no contributivo e incondicional no valor de um SM destinado a idosos com 65 anos ou mais e pessoas com deficincia incapacitante cuja renda familiar per capita seja inferior a um quarto de SM.19 De acordo com dados administrativos,20 entre 1996 ano em que comeou a ser concedido e 2009 o programa cresceu quase dez vezes. No fim de seu primeiro ano, foram emitidos quase 350 mil benefcios; em dezembro de 2009, j eram quase 3,2 milhes. O montante das transfern-cias do programa atingiu R$ 16,8 bilhes em 2009, cerca de 0,55% do PIB. Trata-se, sem dvida, de um dos grandes feitos da poltica social brasileira dos ltimos tempos, sobretudo quando se considera todas as evidncias que apontam para um excelente grau de focalizao nos mais pobres, que permite que o programa cumpra um papel muito importante no combate pobreza e s desigualdades (STYRO; SOARES, 2009; MEDEIROS; SAWAYA NETO; GRANJA, 2009a).

    O Programa Bolsa Famlia (PBF), o outro grande programa brasileiro de transferncia de renda, difere do BPC por no ser um direito ou seja, as famlias elegveis no podem exigir na justia seu recebimento, estando

    19. O BPC substituiu a Renda Mensal Vitalcia (RMV), criada nos anos 1970 e destinada a idosos e portadores de deficincia que tivessem realizado pelo menos 12 contribuies previdncia social, mas que no tivessem acesso a aposentadorias ou penses. Originalmente, o limite de idade do BPC-Idoso era de 70 anos, sendo posteriormente reduzido para 67 anos e, finalmente, 65 anos. Para uma anlise minuciosa da institucionalizao e da expanso deste benefcio, ver Ipea (2007). Para uma discusso acerca do conceito de famlia utilizado pelo programa, ver Medeiros, Sawaya Neto e Granja (2009b). 20. Disponvel em: .

  • Desenvolvimento, Modernizao e Condies de Vida 45

    este sujeito a circunstncias polticas e econmicas e no ser estritamente incondicional: grosso modo, no exagero dizer que o PBF rene dois pro-gramas em um s, na medida em que, para famlias muito pobres,21 h uma transferncia fixa sem contrapartidas que se aproxima conceitualmente de um programa de renda mnima, mas para as famlias consideradas apenas pobres22 h tambm benefcios variveis em funo do nmero de crianas e jovens de at 17 anos e que impem condicionalidades. Criado em 2003, o programa unif