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avar as mãos a todo momento, con- tar objetos, ver se o gás está mesmo desligado, ter tiques nervosos, arru- mar a casa mesmo quando ela já está super arrumada, verificar a toda hora o saldo bancário pela Internet ou acessar, de meia em meia hora, a caixa de e-mails: quem não tem pelo menos uma dessas manias? Uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) revela que duas em cada cem pessoas adquirem manias durante a vida. Secretas ou públicas, provocando estranhamento e risadas, elas são comuns a quase todos os seres humanos, pela simples necessidade da sensação de bem-estar. No Dicionário Aurélio, mania é “uma excentrici- dade, extravagância, esquisitice, gosto exagerado ou imoderado por alguma coisa”. De acordo com as teorias evolucionistas, alguns hábitos foram essenciais para o desenvolvimento e a preservação da espécie humana. Os antepassados prudentes e precavidos foram os que sobreviveram, justamente por estocarem alimentos, zelarem pela prole e evitarem ameaças naturais. Sendo assim, ter uma ou outra mania está dentro do quadro de normali- dade. O produtor de programas de televisão, Bruno Dieguez, por exemplo, tem mania de organização. “Não consigo continuar a fazer uma coisa se não me organizar. Posso perder um pouco de tempo, mas é melhor”, diz. Para quase tudo na sua casa há um arquivo de computador, até mesmo para controle do combustível e lista de supermercado. A mania de organização vem da família: a avó de Bruno arruma os remédios em ordem alfabética; os pais, assim que trocam de carro, compram caderno e caneta para anotar cada litro de gasoli- na que entra no veículo; a casa tem nove ramais para apenas duas linhas telefônicas; enquanto o móvel feito especialmente para guardar os DVD’s, não estava pronto, os mesmos ficavam em caixas de CD numeradas, assim como numa locadora: as embalagens originais guardadas em um local e os DVD’s em outro. “Eu me acho meio exagerado, mas aqui em casa ninguém acha”, afirma Bruno, que controla o combustível não só no caderno, como no palmtop. “Às vezes, me irrito por não ter tido tempo de fazer o controle. Foi por falta de tempo, não de organi- zação”, revela o produtor, que tem como um dos melhores passatempos criar listas e tabelas: “Você sabe que não vai fazer tudo, mas só de colocar no papel já dá uma sensação boa. Melhor ainda, quando risco uma tarefa da lista”, relata Bruno, que também coleciona mais de 1.700 latas de CECILIA NÓBREGA, LIA KONSKIER, MARIANA SOBREIRA E NATHALIE MAYOR Pequenos prazeres ou grandes loucuras? Com muito prazer 5 Manias curiosas tornam o dia a dia mais prazeroso e um pouco... esquisito Bruno Dieguez controla os gastos com combustível nos mínimos detalhes Mariana Sobreira L

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avar as mãos a todo momento, con-tar objetos, ver se o gás está mesmodesligado, ter tiques nervosos, arru-mar a casa mesmo quando ela jáestá super arrumada, verificar a toda

hora o saldo bancário pela Internet ou acessar, demeia em meia hora, a caixa de e-mails: quem nãotem pelo menos uma dessas manias? Umapesquisa da Universidade de São Paulo (USP) revelaque duas em cada cem pessoas adquirem maniasdurante a vida. Secretas ou públicas, provocandoestranhamento e risadas, elas são comuns a quasetodos os seres humanos, pela simples necessidadeda sensação de bem-estar.

No Dicionário Aurélio, mania é “uma excentrici-dade, extravagância, esquisitice, gosto exageradoou imoderado por alguma coisa”. De acordo comas teorias evolucionistas, alguns hábitos foramessenciais para o desenvolvimento e a preservaçãoda espécie humana. Os antepassados prudentes eprecavidos foram os que sobreviveram, justamentepor estocarem alimentos, zelarem pela prole eevitarem ameaças naturais. Sendo assim, ter umaou outra mania está dentro do quadro de normali-dade.

O produtor de programas de televisão, BrunoDieguez, por exemplo, tem mania de organização.“Não consigo continuar a fazer uma coisa se nãome organizar. Posso perder um pouco de tempo,mas é melhor”, diz. Para quase tudo na sua casahá um arquivo de computador, até mesmo paracontrole do combustível e lista de supermercado.

A mania de organização vem da família: a avóde Bruno arruma os remédios em ordem alfabética;os pais, assim que trocam de carro, compram

caderno e caneta para anotar cada litro de gasoli-na que entra no veículo; a casa tem nove ramaispara apenas duas linhas telefônicas; enquanto omóvel feito especialmente para guardar os DVD’s,não estava pronto, os mesmos ficavam em caixasde CD numeradas, assim como numa locadora: asembalagens originais guardadas em um local e osDVD’s em outro.

“Eu me acho meio exagerado, mas aqui em casaninguém acha”, afirma Bruno, que controla ocombustível não só no caderno, como no palmtop.“Às vezes, me irrito por não ter tido tempo de fazero controle. Foi por falta de tempo, não de organi-zação”, revela o produtor, que tem como um dosmelhores passatempos criar listas e tabelas: “Vocêsabe que não vai fazer tudo, mas só de colocar nopapel já dá uma sensação boa. Melhor ainda,quando risco uma tarefa da lista”, relata Bruno,que também coleciona mais de 1.700 latas de

CECILIA NÓBREGA, LIA KONSKIER, MARIANA SOBREIRA E NATHALIE MAYOR

Pequenos prazeres ougrandes loucuras?

Com muito prazer 5

Manias curiosas tornam o dia a dia mais prazeroso e um pouco... esquisito

Bruno Dieguez controla os gastos com combustível nosmínimos detalhes

Mariana SobreiraL

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alumínio. São todas organizadas por número ,nome, marca, qualificação, capacidade, nacionali-dade e tempo. A organização é garantida por dife-rentes planilhas no Excel.

A l e x a n d re Klang, estudante de economia, possui25 pares de tênis, mantidos com impecável cuida-do. Não é à toa que duram muitoe um deles, comprado há oitoanos, permanece com aspecto denovo. “Eu lavo meus tênis de tem-pos em tempos. Espalho eles pelasjanelas da casa para secar e osmando para o conserto re g u l a r-mente, mesmo que seja desne-cessário”, comenta Alexandre ,que não empresta os calçadospara ninguém. Motivo para talmania: o estudante não gosta derepetir o sapato e gosta de combi-nar o estilo do tênis com a ro u p a .“ Tenho tênis pra ir ao Maracanã,pra sair, ir à faculdade. Quandomeu pai compra um tênis bonito, roubo dele”, re-v e l a .

O estudante de Desenho Industrial, Bru n oRodrigues, possui o estranho hábito de lavar acabeça todos os dias com shampoo e condicionador,mesmo sendo careca. “Até hoje não sei se é porqueme sinto mais limpo ou se é apenas para seguirtodo o ritual e ordem do banho”, fala.

Na hora de dormir, Bruno só consegue pegar nosono com o ventilador ligado – não pelo vento, mas

pelo barulho peculiar. “Não consigo dormir nosilêncio completo e nem com muito barulho. E temque ser o som do ventilador”, afirma Bruno que, emcasa, só come com as pernas cruzadas em cima dacadeira. A posição de “índio” é sagrada. Se nãoestiver assim, o estudante perde o apetite.

Aos 21 anos de idade, Alexandre Ades, estudantede Engenharia Civil, é capaz de preencher sozinhouma estranha lista de manias. Entre suas esquisi-tices estão as de acender as luzes do corre d o r(sendo que, quando elas já estão acesas, é pre c i s osimular o ato), trocar as sílabas das palavras (elediria, por exemplo, que tem mania de trocar as“sílavras das palabas”), além da paixão maior: oF l u m i n e n s e .

Tricolor doente, Alexandre é capaz de cometerloucuras pelo time. Assiste a jogos inteiros, seja noMaracanã ou em casa, em uma única posição. Se oFluminense marca um gol, ele resiste à tentação dese movimentar. “Minha expressão é de felicidade,mas não posso me mover”, conta. Além disso, ele

faz praticamente uma coreografiaao passar em frente ao clube e sóassiste aos jogos com determ i-nadas roupas e pessoas. Recusa-se,por exemplo, a ficar perto do seumelhor amigo, também tricolor,pois “dá azar”.

“Eu acredito que as minhasmanias ajudam o Flu. Tenho umateoria de que se todo mundoestivesse focado no jogo, isso fariao time ganhar. Acredito que nãocontrolo o placar, mas o influen-cio”, afirma Alexandre. Suacrença é a principal razão paraque sinta prazer em repetir as

estranhas manias.Thiago Lucas tem o hábito de guardar as notas

fiscais de todos os produtos que compra, principal-mente livros e CD’s. Não para controle dasfinanças, mas porque considera que seja umaforma de “voltar no tempo” quando desejar. Outramania do estudante de jornalismo é fazer asrefeições acompanhado apenas pela televisão: “Émuito tédio comer olhando para os azulejos da co-zinha. Como não gosto de ser interrompido durante

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Organização é a palavra de ordem na coleção de latas deBruno

“Tenho tênis pra ir aoMaracanã, pra sair, ir

à faculdade etc.Quando meu paicompra um tênis

bonito, roubo dele”Alexandre Klang

Mariana Sobreira

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as refeições, só almoço e janto vendo TV”, justifica.Outra mania é perfume. “Perfume é momento. Se

q u e ro sexo, por exemplo, tenho o perfume que medeixa mais selvagem”, revela o estudante, que gostade rotina e se acha “super normal”. “Todas as pessoastêm manias estranhas, mas algumas são hipócritas,só falam das manias dos outros”, completa.

O que dizer, então, da professora aposentadaErilda Bittencourt, que além de ter seu funeraltodo pronto, já criou um asilo para sapos de ru adurante a adolescência? Erilda tinha cerca de 60sapos e chegou a perder um namorado por contado hábito, considerado por muitos como anor-m a l .

De acordo com o psicólogo Paulo CésarGuimarães, o limite entre o normal e o patológicoé muito tênue. “As pessoas lidam com o impulso,que nem sempre vem da consciência e, portanto,não conseguem controlar”, afirma Paulo César,que já teve em seu consultório um homem commania de sempre passar a mão na orelha direita aover uma mulher loira andando e uma paciente quelimpava a casa o dia inteiro, devido a um proble-ma sexual.

Há pessoas que se tornam prisioneiras dospróprios rituais. A mania mais estranha quechegou ao consultório foi a de um homem de 45anos que não tocava em nenhum tipo de maçane-ta, andando sempre com um pano no bolso. Houve

também a história de uma mulher que não levan-tava da cama sem bater sete vezes com o pé direitono chão e repetia o ato a cada vez que mudava deambiente. Em qualquer dos casos, trata-se de umasatisfação ou dissimulação dos impulsos.

Enquanto a mania não é obsessivo-compulsiva,tudo bem. Um hábito deixa de ser comum esaudável quando o indivíduo não consegue sedominar e sofre com isso. Pesquisas norte-ameri-canas revelam que mais de cem milhões de pessoasno mundo inteiro sofrem de TOC (Tr a n s t o rn oObsessivo Compulsivo). Também conhecida comoDOC (Distúrbio Obsessivo Compulsivo), a doença écrônica, exige tratamento e tem como principalproblema o longo período entre os primeiros sin-tomas e a busca de auxílio médico.

Com muito prazer 7

Bruno controla todos seus gastos também pelo palmtop

Manias estranhas? Nem tanto...• Roer unhas;

• Estalar os dedos, costas, pescoço e tornozelo;• Lamber a tampa do iogurte;

• Somar os números das placas de carros;• Ler no vaso sanitário;

• Batucar em mesa, cadeira ou em qualquer lugar;• Colocar o dedo no bolo;

• Olhar-se no espelho o tempo todo;• Pentear o cabelo várias vezes ao dia;

• Tirar meleca no carro(eca!).

Mariana Sobreira

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O que caracteriza o TOC é arepetição, a falta de finalidade e ofato de a pessoa não controlar opensamento ou ato. As vítimas dadoença são como Sísifo, persona-gem do clássico Odisséia. Comocastigo por enganar Zeus, Sísifo foicondenado a levar uma pedraenorme até o topo de uma mon-tanha para vê-la rolar até o solo efazer tudo de novo. “Onde estariasua tortura se, a cada passo, aesperança de conseguir o aju-dasse?”, reflete o escritor francêsAlbert Camus no livro O mito deSísifo: ensaio sobre o absurdo. Os obsessivo-compul-sivos têm a consciência de que seus pensamentos eatitudes são ilógicos, mas, como Sísifo, não con-seguem se livrar da condenação imposta por suasmentes.

Grandes nomes da história sofreram de TOC.Santo Inácio, por exemplo, antes de se converter,era um soldado extremamente vaidoso. Por muitotempo, o fundador da Companhia de Jesus nãoconseguiu se livrar da culpa pela antiga vida fútil edesenvolveu a mania de confessar sempre os mes-mos pecados. Já Kurt Gödel, um dos mais impor-tantes matemáticos do século XX e melhor amigo

de Albert Einstein, tinha pavor deficar doente. Parou de comer commedo de ser contaminado pelacomida.

O filósofo alemão Imannuel Kant,dominado por manias de “sol-teirão” assumido, inspirou o diver-tido livro A vida sexual de Kant, umabrincadeira do jornalista francêsFrédéric Pagè. Entre os costumes dofilósofo, o mais comum era seencontrar com um grupo de amigosna casa de um deles e cochilar comtodos para, então, despertar e con-versar sobre o mundo.

Personalidades atuais também ganham famanão apenas pelo trabalho, mas por estranhasmanias. O jogador de futebol David Beckham, porexemplo, sempre guarda na geladeira um númeropar de latinhas de refrigerantes e o cantor RobertoCarlos lava as mãos 16 vezes antes de entrar nopalco.

É preciso entender que nem toda mania tem ló-gica para existir e que qualquer um pode ser objetode conversas e alvo de risadas. As manias, neurosese obsessões aqui descritas não são exclusividade deestudantes, filósofos e artistas. Todo mundo, comcerteza, tem alguma esquisitice para contar.

Melhor é impossívelO filme mostra as estranhas

manias do personagem Melvin,um obsessivo-compulsivo inter-p retado por Jack Nicholson. Ose s p e c t a d o res se deliciam comhábitos esquisitos do perso-nagem como almoçar na mesmalanchonete todos os dias, nãopisar em rachaduras da calça-da, lavar as mãos após tocarpessoas e objetos e abrir efechar as trancas re p e t i d a-m e n t e .

Dormindo com o inimigoA personagem interpre t a d a

por Julia Roberts vive um casa-mento perfeito, até que começaa ser espancada pelo maridopor não seguir suas manias:deixar a ponta da toalha viradaem determinada posição e ali-nhar as latas de condimentos,entre outras.

MonkA série Monk, transmitida pelo

canal USA e estrelada por To n yShalhoub, mostra a vida de umdetetive capaz de solucionar oscrimes mais complicados de SãoFrancisco utilizando métodospouco convencionais. Entre as

esquisitices de Monk estão a sime-tria, obsessão por limpeza, medode germes, de altura e horror amultidão e a leite. Em sua segun-da temporada, Monk bateu re-c o rdes de audiência nos EstadosUnidos, sendo assistida por maisde 5,6 milhões de telespectadores.

Maníacos do telão e da telinha

“As pessoas lidamcom o impulso, quenem sempre vem da

consciência e, portanto, não

conseguem controlar”Paulo César Guimarães

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