Penumbra livro primeiro capitulo 1
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Transcript of Penumbra livro primeiro capitulo 1
Capitulo Primeiro
DESCONHECIDOS
Estava calor, um calor abafado e insuportável, quando
me pus à espera da minha mãe, que me viria buscar no seu
Mercedes negro e novo.
Chegara a hora da minha mudança, uma mudança
completa na minha vida, e só agora dava conta dos
factores positivos, como os verões passados na praia
quente e solarenga com amigos de infância, ou aquelas
voltas a Katerown de bicicleta. Uma mala e uma pasta
seriam as únicas coisas a levar para casa dos meus
padrinhos, em Sutterfrin.
Aquele lugar vira-me nascer, crescer, e ser quem sou
agora, mas com as complicações financeiras também as
discussões surgiram por tudo e por nada e o clima estava
tão pesado, que parecia cair-me uma pedra na cabeça
quando permanecia em casa, parecendo estar tudo contra
o que eu mais desejava, um pouco de sossego.
- Ainda estás a tempo de não ir! - Avisou-me a minha
avó "Camila", como era conhecida lá na rua, estando quase
a chorar com a minha partida.
A viagem seria penosa, demorada e muito quente, já
que o interior do carro, bastante bonito, com pele de
camelo num tom amarelado, tudo aquecia mais do que
deveria, e, por mais de uma vez quase que assistira à sua
total destruição por causa de pequenos incêndios. No
»1
entanto, via esta mudança como uma oportunidade de
poder tornar-me melhor e principalmente por sair do
inferno a que a minha casa se assemelhava. Os dias
pareciam não ter fim, em que eu, era o alvo para todos os
assuntos e conversas e assuntos, sem o mínimo interesse.
Mantinha-me distante. No fundo já tinha a decisão
mais que tomada, ao ponto de ser matriculado na escola
mais popular da nova cidade, o Liceu de Awferid e
pretendia fazer por lá algumas novas amizades.
Ups! Bem, quando voltei a mim a minha avó estava a
esbracejar e a gritar comigo, não levando eu duas
palmadas por sorte, mas eu já estava habituado a este
comportamento por parte da minha avó, até porque ela
tinha razão.
Finalmente uma buzina rouca e bastante prolongada
tinha-me chamado a atenção, continuando a minha avó a
murmurar qualquer coisa entre dentes.
- Vê se não ficas sem comer e se não apanhas frio
Dani. – Acrescentou preocupadamente.
Detestava aquele apelido, mas sabia que não me
podia pronunciar em relação a isso. Ao menos agora iria
ficar a ser chamado de Daniel ou Foller, mas não de Dani.
De facto esse nome fora-me chamado uma única vez
por um tio, agora a viver no estrangeiro, e ainda por cima
numa desta do quarto ano, quando interpretei o papel de
uma rapariga chamada Dani.
Absolutamente repugnante. Maldita professora.
Coitada!
»2
Lá ao longe uma luz cintilava no asfalto quente e a
exalar fumo precipitado para o ar. Alguém me acenava.
Decerto reconhecera a pessoa e a Harley Davinson que
percorria ruidosamente a estrada em direcção a mim,
parecendo uma gelatina depois de atacada por uma colher,
tremendo por causa do calor, coisas da física que não
percebia muito, e não gostava.
O meu pai chamou o meu nome e logo reconhecia a
sua voz grave e robusta, o seu tronco atlético e desportivo.
Trazia um casaco de cabedal apertado até ao peito, umas
calças verde alface que comprara no Havai, nas primeiras
férias com a minha mãe, e tudo isso me fazia vacilar agora
na escolha.
Cheirava a gasolina num tom carregado naquela linda
peça. Era uma das preferidas pelos rapazes da região e eu
tinha sorte em me passear nela.
Olá rapaz! - Exclamou com um sorriso entre dentes. -
Estás grande. E a tua mãe como está?
Parecia uma pergunta de provocação, pois ele sabia
perfeitamente como ela estava, mas eu não me importei
muito com a pergunta e então respondi de forma rápida e
fechada.
- Bem... – Pronto para bazarmos? - Questionou ele de
modo bastante aberto e parecendo empolgado com a ideia.
Momentaneamente um arrepio me atravessou as
costas, que suscitou em mim um medo de morte.
- Tu…. Sabes conduzir essa mota?
»3
Engasguei-me quando a pergunta saiu bastante baixa,
de modo a que ele não ficasse tão zangado como eu sabia
que ficaria, mas no fim, apenas um riso abafado saiu e ele
sorriu.
- Bem... Acho que sim. Achas que podemos ir?
Fiquei fascinado da maneira como a mota que movia
com graciosidade ao passar por entre as faixas brancas da
estrada algo velha. O vento passava por entre os meus
cabelos meio espetados, de forma vulgar, e prontamente
parecia que as minhas preocupações desapareciam como
que fossem apenas lembranças de um momento mau e,
que daí em diante ficariam fechadas numa gaveta do meu
antigo quarto.
Era livre como uma ave no céu, bem, não totalmente
mas, por agora era, enquanto via as grandes montanhas
que atravessavam o céu agora desprovido de quaisquer
nuvens e os verdes campos com erva fresca faziam os
cavalos que se viam parecessem maiores que o habitual,
que se calhar ao tempo que ali estariam não parecia assim
tão absurdo pensar daquela maneira. A sensação de estar a
país das preocupações da minha antiga vida, era uma
alegria, e eu estava disposto a esquecer o passado.
Durante a viagem, que demoraria cerca de meia hora
até ao largo onde viviam os meus padrinhos, eu e o meu
pai não nos falamos e eu sabia que em princípio, tímido
como ele era, não passaria muito dali. Senti-o diferente por
causa da idade, é certo, mas não era só isso que me estava
a deixar um pouco intimidado de estar ali.
»4
O distanciamento que permanecíamos embora eu
estivesse a poucos centímetros dele, pareciam quilómetros
que nos separavam, como se uma rede não me deixasse
tocar-lhe e um vidro que não me deixava ouvi-lo caso ele
falasse. Isso fez-me lembrar dos meus amigos e fiquei
angustiado só de pensar, tentando não pensar que
cometera um grande erro. Não era muito difícil pensar
assim, pois eu era bastante pessimista.
Passara então uns trinta e cinco minutos destes
pensamentos e eu nem notara que o descanço da Harley
estava no solo arenoso que sujava a pequena entrada da
casa.
A casa não era propriamente de ricos como eu estava
habituado à minha, e as suas dimensões também não me
esclareceram a tal conclusão. Tinha uma cozinha estreita
que acabava numa janela com a persiana descida.
Os quartos pareciam-se com os da minha antiga casa,
com a pintura ainda fresca, cheirava-se perfeitamente. O
mais pequeno, certamente onde eu ficaria também estava
pintado, num tom meio avermelhado que não me seduziu
muito, mas felizmente tive a notícia de que havia um outro
bastante maior, e o meu pai levara para lá as coisas. Este
figurava bastante o meu tipo, com a cor azulada a
predominar por completo, alguns móveis, poucos e
pequenos, e o mais interessante, uma televisão e uma data
de cd's pendurados a pregos na parede por baixo de uma
prateleira com uma aparelhagem de alto som, com duas
colunas do lado e a mostrarem a marca da Sony. Perguntei-
»5
me que estaria no quarto errado mas depressa percebia
que seria mesmo onde eu ficaria nos próximos tempos, ou
anos.
Estava a viver um sonho antigo, não que não tivesse
isto em Katerown mas aqui, isto era diferente, mais novo
sem dúvida, e o melhor era que seria um quarto só para
mim, não tendo eu de compartilhá-lo com nenhum irmão
mais velho que se armava em mandão. Estou a falar do
James. Era o meu único irmão e desde que atingiu os 18,
atingira também a parvalheira, digo sem dúvidas. Enfim.
A casa parecia abandonada, sem que alguém
aparecesse para me dar as boas vindas, com tudo
perfeitamente organizado. A meu ver tinha um aspecto de
abandono na sala, algo perdida entre fotografias velhas e
armários de loiças dos anos 50, e o tecto tinha buracos
feitos pelos bichos da madeira. Tomara que não me caísse
na cabeça. Suspirei.
- Não está cá ninguém, pai.
A minha afirmação mostrava arrependimento e eu
senti-me vulnerável às expectativas que teria tentado
pensar serem mais favoráveis que "o normal". Tinha a
certeza que estava errado mas mesmo assim, as saudades
apertavam.
O meu coração contraiu-se dentro do peito e eu não
conseguia respirar da forma correcta, soltando alguns
soluços enquanto olhava em meu redor, vazio e sem vida.
- Talvez estejam a chegar. Talvez...
»6
Aquele momento de pura hesitação por parte de
Johan, deveria proceder-se devido a algo que ele sabia e
não me contara.
Sentia-se a eminência de uma derrocada na minha
cabeça com aquele suspense e, por momentos, pareceu
que eu ouvi uma voz feminina a rir-se.
Tinha gente em casa mas eu não via clima vivo. A
mudança estava a dar comigo em doido. Os risos voltaram
a ouvir-se e desta vez nitidamente claros. Isto, porque
depois disso um mar de gente saiu de trás das cortinas da
janela da sala e começou-me a cantar os parabéns. Senti
uma confusão de sentimentos a invadirem-me os sentidos
e, num sentido de carácter união e tristonho, tornei aquilo
num aconchego no meu coração. Contorci as mãos vezes
sem conta e os meus ossos salientes obrigaram os dedos a
fecharem-se contra o meu corpo, abrindo os meus olhos
para deslumbrar toda a beleza genuína que me rodeava.
Até aí, já nem me lembrava de algum dia ter participado
numa festa, seja pelo que fosse, e quando havia o meu
aniversário, apenas assistia a prendas de palavras amargas
entre os meus país. Tanto só para mim, de gente que nem
me conhecia.
- Lamuriei-me estupidamente.
- Não dizes nada? Não gostaste? - Gritavam os
presentes, sentindo-me eu completamente baralhado. Era
tudo tão estranho, abstracto e deformado.
Chegara até a pensar se estariam a gozar comigo para
depois me porem a trabalhar.
»7
Nem tive tempo de pedir desculpas e fui a correr para
o meu quarto depois de subir as escadas ainda que
irregulares, que emitiam um ruído estranho, e percorrer um
longo corredor cheio de imagens e fotografias de família.
Tranquei a porta com violência e a paisagem tinha
mudado radicalmente. Via parcialmente que iria chover em
breve e por ali nada me agradava, com casas cinzentas e
um cheiro a fumo vinha dos carros.
- Mais valia não ter vindo para aqui! - Interroguei-me a
mim mesmo, batendo com a mão na secretaria, ainda meia
húmida do verniz que o meu pai passara, pois era
carpinteiro.
Uma profissão era certo, mas em relação às que
haviam na minha antiga cidade, nada era.
Eu estava habituado a médicos e engenheiros, numa
cidade grande.
Não sabia desvendar o verdadeiro motivo pelo qual
tinha fugido da sala, mas naquele momento, o que eu mais
desejava era que o amanhã chegasse.
Ainda era de dia e pelo estado do sol, não deveria
passar muito das cinco e pouco. Suspirei em sinal de
cansaço. Só agora me dava de conta que tinha a pele
eriçada.
A temperatura descera bastante, pelo menos uns dois
graus, e a temperatura não passaria dos onze graus antes.
Decerto que a minha roupa era quente, usando eu uma
camisola de malha que a minha mãe fizera antes de me
mudar para cá. Um casaco desportivo da marca Adidas, fino
»8
mas com a intenção não de me aquecer mas de combinar
com a camisola faziam o conjunto no meu tronco algo
magro, mas que toda a gente dizia ser atlético, apesar de
eu não achar.
Por outro lado pensava que não seria mesmo verdade,
até porque eu fazia musculação todas as sextas de manhã
num ginásio ali à beira. As calças que usava eram de
ganga, acabando com uma beira fina virada para cima. Não
era a minha roupa favorita mas em breve as minhas
melhores peças seriam, trazidas pela minha mãe. Não
estava preocupado em relação a nada disso. Também não
era pessoa que preocupasse com muitas coisas. Reparei
quase sem crer na janela do quarto, virada para a restante
cidade.
A vista era autêntica e bastante original, nada do que
vira até então em Katerown. Ao menos nem tudo me
aborrecia ali, tomei eu atenção ao que pensava, com um
pingo de ironia nas palavras que vagueavam na minha
cabeça, algo aturdida pelo cinzento do céu.
As portas não abriam com facilidade, e vi que teria de
recorrer à minha força para as abrir. Tinham um aspecto
velho, com uma pintura branca pintada de fresco por cima
de um cinzento-escuro e gasto, visto em algumas partes
com falhas. Tinha buracos provocados pelos bichos da
madeira e por fim ganhei coragem para abrir a tal janela,
mas detive-me quando ela soltou um barulho de
arrastamento encravado que me levou a encostar-me de
»9
imediato aos pés da minha cama, baixa e com cobertores
extremamente coloridos.
Um barulho semelhante a pequenas pedras começou a
ouvir-se a bater nos vidros já embaciados, e eu soube que
começara a chover. Não era mau aquele murmurar mas
mesmo assim sentia-me incomodado. No meu interior, o
meu coração palpitava de tal forma, que pensava ir
desmaiar, pois não tinha comido.
- Daniel? Está tudo bem? - Perguntou Moli, a minha
madrinha, do lado de fora do meu quarto. Eu conseguia
notar a preocupação na voz dela, mas nada disse.
- O que se passou? Tivemos de mandar as pessoas
embora! O que se passa? - Insistiu ela, desta vez sendo o
meu padrinho também falava, mas eu continuei calado,
ouvindo bater a porta várias vezes.
Era óbvio que estariam preocupados, e continuava
assim, estando a noite a precipitar no céu aveludado de
nuvens aglomeradas e pesadas. Ainda estavam a cair gotas
do telhado.
Não me levantei por um instante e o silêncio instalou-
se pesadamente. Eu não sabia, mas tinha adormecido.
Durante essa mesma noite, alguns sonhos ligeiros, não
deixaram marca no meu consciente, mas que ainda assim
me deixavam agitado, fazendo-me acordar por breves
segundos, não dando noção de onde estava. Não havia
necessidade de eu sonhar muito, pois nem era meu hábito
realizar proezas semelhantes, e assim, as horas passaram
sem que as minhas memórias me abalassem
»10
verdadeiramente. Saberia porém, que na manhã seguinte
acordaria meio atordoado e com a sensação de extrema
amargura, com algumas dores de barriga, que talvez, o que
fariam, era acordar-me agora e pôr-me a assaltar o
frigorifico. Tal não sucedeu e eu voltei-me para o outro
lado, não me recordando de mais nada, até à manhã
seguinte.
Quando amanheceu, eu não ouvira nenhum dos meus
dois despertadores que trouxera de Katerown.
- Daniel? Oh meu deus, ainda não abriste a porta?
Reconheci a voz melodiosa da minha madrinha, mas,
por agora, mostrava ser uma voz aflita e totalmente
exagerada de preocupação. Afinal eu não estava tão…
- Que horas são? – Quis saber eu, esperando alguma
resposta do lado de fora da porta, que entretanto veio, mas
em total sentido de reprovação.
- Não interessa que horas são. Apenas sei é que estás
meia hora atrasado. É o teu primeiro dia de aulas. Por favor
levanta-te!
Dei um salto da cama para o chão, tentando ficar de
pé nem que fosse por cinco minutos, mas o corpo estava de
tal forma adormecido que eu ainda cambaleei até à casa de
banho, apenas para ver a minha figura triste. O meu cabelo,
que já estava um pouco grande demais, meio avermelhado,
com madeixas cor de amêndoa, que agora descobrira que
tinha, estava completamente emaranhado sobre si mesmo
e muito despenteado. Seria um dilema penteá-lo, pois era
forte o suficiente para não querer recompor-se com água, e
»11
se fosse com gel então….ufa nem quero pensar! Duro como
ficava, era a sentença de morte para o meu tempo livre,
quando me dedicasse e torná-lo obediente para ele ficar
direito e apresentável.
Decidi que ficaria assim. Parecia uma estrela de Rock
misturada com um mendigo que não tem com que se
pentear, mas com certeza haveriam lá outros iguais a mim.
Pensei eu para tentar não dramatizar.
Seria um milagre eu conseguir chegar ao liceu em
menos de vinte minutos e eu podia escolher entre ir de
autocarro, ou ir a pé, mas ao sair da porta de casa, por
onde saíra aos tropeções, reparei numa bicicleta
estacionada mesmo junto ao portão. Não interessava de
quem era e eu peguei nela, esperando que ninguém me
visse a cometer aquele furto tão singelo, e depois de
observar que o caminho estava livre, pus-me a dirigir em
direcção ao liceu a grande velocidade quase encravando a
corrente e mal me importava em ver a paisagem cheia de
árvores e casas, algumas antigas que me circundavam a
cada pedalada que dava.
Pouco tempo depois, observei um grande edifício
avermelhado e, apenas soube que aquilo seria uma escola
pela grande tableta acima da porta principal, bastante
arranjada com motivos vegetais. Espreitei a tableta e fiquei
profundamente aliviado ao ver as palavras «Liceu» e
«Awferid».
Demasiado depressa para ter tempo de raciocinar,
levantei a dianteira da bicicleta, de modo a virar-me o mais
»12
possível para o portão principal, e, ganhando velocidade,
esgotei as minhas forças mortais para chegar a tempo da
porta não fechar, estacionando a bicicleta junto a uma
arvore a que a prendi, e logo depois ajeitei a minha roupa e
o cabelo, de forma a não dar nas vistas para não pensarem
que estava demasiado desesperado.
Estás com pressa rapaz! – Exclamou suavemente,
quase em tom de troça, o porteiro, e eu fiz-lhe um ar de
aborrecimento que ele entendeu logo. Afinal o meu
“disfarce” não tina resultado.
O interior da escola era frio e calmo, mas ainda assim
conseguia ouvir os murmúrios de colegas meus a entrarem
para as salas, ou não. Mesmo assim teria de encontrar a
sala de físico-química, para não levar um aviso logo no
primeiro dia.
- És o Daniel Foller?
Mostrava ser o tipo de rapariga que andaria sozinha na
escola, tendo um elegante aparelho metálico nos dentes,
que lhe dava uma aparência bastante razoável, exibindo
com ele um sorriso bastante simpático e tímido, com olhos
profundos de constrangimento.
- Apenas Daniel se não te importares. – Pedi eu
afavelmente, ajeitando a minha camisola larga, que me
fugia das mãos e me fazia parecer um “baldas”. Não tirei
no entanto, os olhos do chão, pois não estava habituado a
falar com raparigas, aliás, desde que me lembro de existir,
não falara com nenhuma até então.
- És desta turma?
»13
Não havia por onde fugir à questão, mesmo que eu
não pretendesse revelar-me já.
- Com certeza. – Respondi em forma de murmúrio
ainda que bastante audível, que percebi com o sorriso
aberto dela.
Aquela rapariga mostrava grande graciosidade,
fazendo ao mesmo tempo um esforço notável para não
mostrar vezes demais o seu “acessório”.
- Queres ir comigo no próximo intervalo para ficares a
conhecer a escola? Já sei todos os recantos! – Afirmou ela
de maneira fulminante, parecendo bastante contente com a
última a parte da frase, e, ao pensar em tais palavras senti-
me a corar. Devia parecer um tomate no tempo ideal para
se poder apanhar.
Um convite. Não me apetecia, de todo, conhecer nada
ali, para já. Mas teria de lho dizer de maneira a que não
ferisse os seus sentimentos tão elevados, de poder ter
alguém com quem falar e estar. Notava-se isso bastante
bem, e eu tinha de sair dali ou morreria de timidez.
- Obrigada, mas…pode ficar parta outra altura?
Amanhã?
De certo que não fora a melhor frase a ser empregue
ali, mas não estava disposto a colaborar com aquela nova
desconhecida.
- Não faz mal. – Amuou ela. – O meu nome é Anna. –
Depois desceu o tom de voz, olhando para os pés. - Vemo-
nos por aí.
»14
Agradeci novamente, mas já a rapariga de cabelo loiro,
com uma saia aos quadrados verdes sobre fundo preto, se
tinha afastado, indo na direcção das casas de banho, logo
ali ao virar de uma esquina em que estavam afixados
alguns papeis com avisos. Ela tinha ficado triste, mas eu
não podia mesmo sair dali para lado nenhum.
A sala não tinha ninguém, e algumas cadeiras estavam
desocupadas, com a maioria em vista de terem pertences
de alguém. Como era novo ali, decidi esgueirar-me para as
cadeiras do fundo, as três únicas que pareciam não ter
dono, mas dei conta de que todas já tinham coisas em cima
delas, duas mochilas e uma capa, aparentemente velha e já
rasgada que pus com cuidado em cima do parapeito da
janela mais próxima, larga e fechada por um vidro que
estava nitidamente sujo com pó.
Tocara e eu estava super nervoso. Os meus colegas
começaram a entrar, primeiro, um rapaz com sardas, meio
aloirado e de óculos. Tinha uma pose intelectual com os
livros de geologia e matemática debaixo do braço direito.
Trazia uma tshirt às riscas verdes de dois tons, um mais cor
da relva, muito vivo, e outro escuro, quase da cor do
musgo. Era simples, e por isso, talvez fosse gozado como
agora sucedia, quando um bruta montes com estilo
skinhead e a esmagar uma lata de Coca-Cola o empurrou,
deixando-o fazer cair os livros e folhas que trazia. Corri para
ajudá-lo, e comecei a dar-lhe os livros espalhados pelo chão
à minha volta.
»15
- Sou o Daniel! - Disse eu ao tentar que ele perdesse a
timidez e o medo.
- Ke...Kelvin..! - A sua expressão era tão inocente que
até senti pena dele. Depois afastei-me e sentei-me de novo
no meu lugar, prestando atenção ao resto da turma,
notando que a maioria era tudo raparigas, para meu
espanto.
Uma expressão interessada chamou-me a atenção.
Mostrava sinais de grande ansiedade e muito medo. Sim,
era a rapariga do aparelho, e não tirava os olhos de mim.
Baixei a cabeça e olhou fixamente para a minha
secretária, com riscos e cortes editor por x-actos. Sabia que
me observava ainda e senti-me a corar, sentindo as minhas
orelhas a arder. Ela riu-se baixinho. Era engraçada, não
podia negá-lo.
A entrada do professor saltou-me, ao mesmo tempo
que me deixou com receio. Estava estático e recto como
uma estátua ao sol. O meu peito doía-me e comecei a suar
em pingos longos.
- Tem calma, ele não te morde!
O sussurro da rapariga que me observava com um ar
incisivo não me deixou mais descansado, mas abstraiu-me
uns minutos da compostura rígida a que me propus reger, e
agora conseguia sentir de novo os dedos.
A aula seguiu com a apresentação do professor, de
nome Kockin qualquer coisa, e começamos logo o trabalho
a sério, com o estudo de um caso que desconhecia, não me
interessando minimamente por aquilo. Tinha a ver com
»16
raízes, e não achava nada daquilo um pouco que fosse, de
interesse, claro, era físico-química.
- Agora... – Aquele compasso de espera fez-me ficar
ainda mais nervoso quando o homem de cabelo quase
branco e de óculos no nariz, começou a observar os
presentes durante longos minutos, que na verdade foram
breves segundos, mas que para mim, pareceram um tempo
interminável, até que, a sua voz quebrou o silêncio cortante
que invadia a sala.
- Mr. Foller... – Estremeci de um salto na cadeira. Ele
continuou com um ar entusiasmado.
- Conte-nos por favor como é viver em Katerown.
Eu nem sabia como reagir. Dei por mim a pensar em
mil e uma formas de começar a explicação, que fosse breve
e que cativasse a atenção de todos.
Uma história de terror ou uma grande aventura em
que eu seria o herói...Não, de certeza que não eram as mais
distinguidas formas de poder ser aclamado o "maior da
turma", por isso, cingi-me a explicar um pouco da minha
experiência.
- Katerown... – Comecei para que parecesse
minimamente respeitável. - Tem sol, a maior parte do
tempo não chove, há praias enormes para se poder passear
ou apenas estar ao sol, grandes edifícios de empresas na
parte mais central da ostentosa cidade...
Olhava em volta e verifiquei que todos me
observavam com olhares de admiração e especulação.
Limitei-me a continuar, com um pouco mais de entusiasmo,
»17
não exagerando para não pensarem que fosse doido, ou
coisa do género.
- Vivi lá até este ano... - Hesitei em revelar as razões
de me ter mudado, e contornei a situação de uma forma
mais inteligente. - Mudei-me por causa do curso que quero
tirar por aqui, para poder ser arqueólogo.
- Mas Mr. Foller...
O que o meu professor acabara de fazer fora quase
um crime. Tornou a minha confiança num autêntico fiasco.
Perdera a vontade de continuar, suscitando em mim novo
medo, com toda a sala a franzir o sobrolho na minha
direcção em sinal de impaciência.
Todos menos uma pessoa. A mesma que ainda me
olhava com um sorriso aberto e inocente, deixando-me
mais à vontade, mas mesmo assim, tensamente rígido.
- Na sua antiga cidade haveriam árvores, certamente...
Ouvi dizer que é um espaço muito verde!
Ele tinha razão. Parecia conhecer muito bem o lugar
de onde eu provinha, mas mais nada disse, para me dar
nova oportunidade de falar, ao que não respondi, mas olhei-
o em busca de poder interpelá-lo.
- Sim, claro...
A afirmação saiu baixa e penosa, dando-me a
sensação de estar com uma expressão ridícula.
A aula parecia um interrogatório para ambientalistas.
Ainda faltavam quase quarenta minutos para o milagroso
toque estridente, mas salvador, que me faria sair da
"cadeira eléctrica".
»18
Mas de repente o clima foi cortado por uma batida
seca e forte na porta, que virou todas as atenções na
direcção do som, inclusive com a apreensão do professor
que agora que mostrava muito direito, depois de arranjar o
casaco, bastante brilhante e de cor cinzenta. Parecia um
"smoking".
A porta abriu-se e uns sonoros e pesados passos
ecoaram na sala e nos corredores do exterior desta.
De fato muito formal e com uma gravata azul
turquesa, de porto severo e olhar furtivo, apresentou-se
ainda que olhando para nós, um homem com os seus
cinquenta anos. Certamente que seria o director ou alguém
com muito prestígio ali, pela maneira como todos os
presentes o olhavam com precaução, quase não levantando
a cabeça para o fitarem nas faces pálidas.
- Muito boa tarde meus senhores...
Olhei de relance para o meu professor e notei que ele
tremia a cada palavra proferida a nós.
- Na próxima semana terão uma visita de estudo a um
museu local. Verão uma exposição de várias catedrais
românicas em fotografias emolduradas, que vos servirá
como introdução à disciplina de História e Cultura das
Artes, o qual eu serei o vosso professor e director de turma.
Esfregava as mãos ao dizer tal coisa e eu tive grande
noção que ele estaria ali para nos preparar para um ano de
pesadelo. - Obrigado pela atenção. Bom dia.
»19
E saiu porta fora em passo largo, quase não
pestanejando, sempre com aquele ar rígido e de grande
altivez.
Decerto que seria um bom motivo para eu nem
aparecer na visita, tendo inventado uma doença ou uma
indisposição qualquer, que fosse bastante convincente.
Além disso já tinha tido uma disciplina semelhante no ano
transacto, mas não me desagradando de todo a ideia de ver
catedrais.
Teria de reflectir no assunto e preparar-me no caso do
meu plano de falta falsa, desse para o torto.
- Olá! - Chamou uma voz atrás do meu ombro.
Logo atrás de mim, distanciada por trinta centímetros
estava uma rapariga. Tinha uns olhos brilhantes e muito
vivos, cor de amêndoa. Mostrava um rosto bastante
perfeito com curvas bem delineadas nas faces algo rosadas.
Tinha um sorriso fechado mas muito humilde e simpático, e
reparei que a sua expressão mostrava um pouco de aflição
e nervosismo, pois olhava sistematicamente. Parecia estar
preocupada com algo ou com alguém.
- Olá. – Repetiu antes de se apresentar. – O meu nome
é Bella. Ouvi dizer que és o Daniel Foller. É verdade?
Notei que ela quase me segredava tal pergunta, mas
também reparei em todos os olhares de novo, pousados em
mim, e agora nela, de forma quase mortífera.
- Quando vieste para cá?
Aquela pergunta era tão directa como a que Anna me
pusera ao perguntar o meu nome. Não percebia a razão
»20
mas, toda a gente parecia querer-me ali. No entanto, os
olhos que controlavam aquela rapariga, tão frágil e curiosa,
pareciam queimar-me o olhar e o corpo cada vez que o
confrontava com algum receio.
- Desculpa, não posso falar mais. O Edward está a
olhar para aqui. Finge apenas que me foste chegar uma
caneta do chão, porque ele parece zangado.
Fiz-lhe um sorriso tímido e debrucei-me na cadeira
para fazer o que me pedira. Não queria certamente ser
odiado por ninguém.
Era um rapaz, branco da cor de mármore mais branco
que existe, o que arrepiava-me. Quase não parecia ser
humano e o seu rosto mostrava em grande parte, ódio
serenamente controlado. Não gostava de mim, sabia-o, mas
não pretendia que ele me fizesse mal, até porque ele
deveria ter chegado ali primeiro que eu, pela sua estatura
bastante corpórea e altiva, mesmo sem mostrar sinais da
idade como rugas ou barba. Não teria tido barba em
nenhuma altura, sabia-o pela face completamente lisa, que
seria impossível poder ter por melhor que a tivesse cortado.
Arriscava-me a dizer que teria uns vinte e poucos anos.
- Obrigado. – Agradeceu Bella com um sussurro breve.
O seu murmurar era tão suave como uma criança de dez
anos, apesar de ela já ser uma rapariga bem desenvolvida.
Era simpática, mas seria melhor afastar-me, pelo menos
por agora. Ouvi-o quase rugir. Era estranho estar ali no
meio dos dois.
»21
Finalmente a aula parecia estar a terminar aquando
reparamos nos restantes que arrumavam as suas coisas à
pressa, arrastando as cadeiras e soltando um barulhinho de
fundo que me incomodava os ouvidos, assemelhando-se
aquilo a um enxame de abelhas em ponto de caça
eminente. Senti-me tonto e deixei-me ficar quieto na
cadeira à espera de me acalmar. As minhas mãos tremiam
e reparei que Edward passara mesmo atrás de mim,
raspando o seu longo casaco de pele cinzenta nas minhas
costas. Limitei-me a ignorar que ele estava ali e tentei não
pensar que ele me viria pedir explicações pela conversa
com a amiga dele.
Depois a campainha tocou de forma prolongada, e até
que todos saíssem, não mexi um dedo sequer. Só depois
me levantei e arrumei o caderno na pasta de uma alça que
trouxera. Teria agora que enfrentar o espaço interminável
da escola, e eu precisava urgentemente de comer.
Soltei um suspiro de alívio quando atravessei a porta
da sala e não observei ninguém por ali perto para me
interpelar. Senti de novo a minha cabeça no lugar, assim
como todo o corpo e bocejei. Anna riu-se baixinho, estando
mesmo atrás de mim.
- És muito engraçado sabias?
A voz era suave e eu conhecia-a, mas quando a
conheci, vi que não teria proferido uma frase para que
respondesse. Eu sabia que ela teria encontrado sim, o meu
eu, que eu procurava manter na penumbra.
»22
Virei o rosto e olhei por instantes, a face divertida que
conseguia observar, estando esta fixada em mim. Mostrava
ter o semblante um tanto ou nada carregado de receio,
como se ainda não estivesse à vontade para se dirigir
verbalmente a mim, deixando o seu olhar pregado na
tijoleira do chão.
- Estás bem?
Percebi que tal questão fora posta pela expressão
estúpida com que me deveria encontrar, ou por algum
cabelo fora do seu devido lugar, dando-me a ideia de que
faria figura de idiota ali. Mas porque é que eu estaria
assim?
- Como já disse, sou a Anna, Anna Lindsley.
O nome era giro, mas nada irrelevante para mim.
- Tens medo do Edward?
Boa! O Edward. A conversa já não me estava a suar
bem, pelo que comecei por parecer menos nervoso. Ele
seria perigoso para mim, mesmo que isso à partida fosse
mentira. Sabia-o perfeitamente.
A rapariga de estatura média, tal como eu, remexeu
num dos bolsos grandes da sua mala, vermelha e brilhante.
Prestei atenção à situação. O seu cabelo longo cobria-
lhe a face, e depois, olhou para mim com um olhar muito
aflito. Com uma mão tentou uma vez mais alcançar algo e
depois desistiu. Suspirei ao pensar que fosse buscar o
telemóvel para depois me pedir o número, o que me
deixaria extremamente aborrecido e irritado. Pelos vistos
seria apenas um caderno esquecido na aula anterior, o que
»23
não constituiria tanto motivo de preocupação, e ela
descansou depois de mo informar.
O meu estado de espírito estava gelado e aborrecido,
tendo a consciência de que nada estava ali a fazer com
aquela rapariga que não via como tal. De facto, não passará
muito tempo desde que começara a falar com Anna, e senti
o meu cérebro a divagar e a agitar-me, quando uns dedos
me irromperam os pensamentos sobre o almoço, como
flechas.
- Entrámos? - Perguntou uma voz aguda bem junto de
mim e dos meus ouvidos, ainda meio tapados pela
sensação de querer ter uma fuga rápida. Depois detive-me
por instantes, para pensar no meu horário. Senti-me mais
confiante, face à certeza de que a hora de sair para almoçar
se aproximava, depois desta aula. Porém, esta aula teria de
se realizar, o que era péssimo.
De certo modo, a ideia de que sequentemente iria
para casa, parecia deixar-me com um novo ânimo.
O professor Gregory já estava sentado na sua
secretaria de madeira americana. Tinha barba robusta,
olhar erguido e uma expressão forte e vincada de
impaciência nas rugas que apresentava sob a boca e na
testa. A aula começou sem percalços, ainda que tivesse de
falar novamente em Katerown, onde me limitei a imitar as
palavras proferidas anteriormente.
Estava agora em ciências.
Os olhares mostravam cansaço, quando alguns
reviravam os olhos e ninguém prestava atenção. No fundo
»24
da sala, à frente, o rapaz que ajudara do ataque de um
brutamontes, que felizmente agora tinha faltado, ainda se
mostrava interessado, e para meu espanto, escrevia muito
quando eu pronunciava algo da antiga cidade. Depois
acenava com a mão e erguia o polegar em sinal de
provação. Ao menos tinha um ouvinte, já não era mau.
Quando a hora de saída chegou, ergui-me da cadeira e
peguei na mochila, depois de dar um jeito ao cabelo, pois
parecia-me estar a cair para a frente dos olhos. Na verdade,
teria de o cortar o mais depressa possível, pois já me
chateava ter de aplicar gel todas as manhãs, e ele estava a
começar a ganhar caspa, o que me atrapalhava, já que a
minha roupa preferida tinha sempre preto, um inimigo
altamente perfeito para o meu problema capilar.
Quando encontrei a saída para o portão principal, fui
directo para o exterior, cansado e com vontade de
descansar um pouco.
A bicicleta estava exactamente no mesmo lugar onde
a deixara, e eu corri um pouco até chegar perto. Havia
gente por todo o lado, muitos alunos, o que me iria
dificultar a saída, mas a sorte estava comigo, e consegui
colocar-me no passeio principal, a caminho de casa, num
ápice.
Como tinha tempo, pedalei devagar e olhei em redor,
para observar toda a paisagem, cheia de casas bastante
arranjadas e de cores vivas, árvores enormes e cheias de
folhas, em cada um dos lados, sem muito trânsito na rua.
»25
O ar era fresco e fez-me apertar o casaco azul-marinho
que eu trazia, ainda aberto. Parecia que a chuva estava
para chegar, com nuvens negras a aglomerarem-se no céu
e a fazerem formas estranhas no amplo espaço vazio e
soturno.
A porta de casa dos meus padrinhos rangeu quando
lhe dei um jeito com a perna, para que abrisse, pois estava
meia empenada por ferrugem nas dobradiças velhas. A
casa precisava urgentemente de ter obras, mas, parecia
que isso não aconteceria nos próximos tempos.
Suspirei e entrei, em direcção à cozinha que
permanecia silenciosa e escura, dando-me logo a razão
pela qual a casa emanava a mofo.
Agora percebia o porquê de quando chegara àquela
casa, no dia em que supostamente, deveria ser o do meu
aniversário, a casa parecia velha e assustadora.
Os meus padrinhos trabalhavam todo o dia, até altas
horas da noite, e deixavam sempre a casa fechada e
desarrumada, como podia comprovar pela pilha de loiça
suja em cima da banca e da mesa encostada a uma coluna,
que dava também encosto para o sofá que se via
imediatamente ao abrir-se a porta, com um pequeno
espaço a separar a porta deste. O sofá era grande e tinha a
forma de L, todo branco, agora meio sujo por causa do pó,
apesar de ter um plástico a protegê-lo quase na totalidade.
Havia restos de piza pelo chão e os tapetes, à entrada e
junto à copa estavam gastos, muito decorados, é certo,
»26
com flores e formas geométricas, de um bordeau
carregado, mas inacreditavelmente, cobertos de pó.
Não gostava nada daquilo, e nunca fizera limpeza até
agora, mas aquilo fizera-me tanta impressão, que decidi
pegar numa vassoura. Teria de a encontrar primeiro, nos
cinco armários à beira do balcão de granito, o maior que
havia, junto ao forno de cor negra. No entanto isso não
constituía problema para mim, até porque era bastante
bom a encontrar coisas, e lá o encontrei, facilmente e no
meio de alguns produtos de limpeza e aventais.
Levantei mais pó do que o que limpei, mas a cozinha
ficara bem melhor assim, achei eu para comigo próprio.
Passara-se meia hora desde que comecei as limpezas,
e agora apenas dispunha de meia hora para almoçar.
Também não sabia cozinhar, por isso decidi comer a
caminho do liceu, num dos cafés que havia até lá, ao todo
três. Uma sanduíche e um sumo chegavam-me para
aguentar toda a tarde e não cair a meio de uma aula
qualquer. Eu era forte e na verdade, também não gostava
muito de comer, pois queria-me manter em forma. Nunca
fora gordo e não era agora que o iria começar a ser,
certamente.
Peguei nas chaves e dei um ligeiro jeito ao cabelo em
frente ao único espelho de corpo inteiro que havia no hall
de entrada. Depois peguei de novo na bicicleta, desta vez
meio descuidado (apenas me apercebi disso a caminho da
escola), e saí à procura do meu almoço de fast-food.
»27
Permaneci atento a todos os nomes de ruas por onde
passava, para futuramente, se gostasse do café, saber
onde era e qual o seu nome.
As montanhas que viam muito ao longe, e, por breves
segundos fascinaram-me. Ali não era tudo tão mau como
previra de manhã, com todas as perguntas sobre o meu
"passado".
Senti-me bastante confortável em cima da bicicleta
cinzenta e alta, podendo passar por sítios estreitos quando
aparecessem carros.
Finalmente apareceu um café, de nome "Food &
Friends", e gostei do aspecto da montra, cheia de bolos e
bebidas em lata, dispostos lado a lado. Não estava cheio e
foi fácil ser atendido rapidamente, dirigindo-me de imediato
à esquina que me levaria directa ao liceu. Desta vez não
estava atrasado.
Tudo correra como planeara. Fui digerindo pequenas
quantidades de fanta enquanto me aproximava do portão,
agora visível. Estava bem mais bem-disposto e quase me
desaparecera a ideia do martírio matinal.
Havia uma leve brisa no ar, que me passava na face e
me fazia levantar os pêlos dos braços em sinal de pequenos
arrepios, já que a minha temperatura corporal era mais
quente do que a aragem no ar, que fazia folhas nas árvores,
grandes e robustas, agitarem-se de um lado para o outro
como forma de uma dança perfeitamente ensaiada. Com
grande surpresa vi, parada e encostado ao muro que
figurava uma das alas para o portão, o rapaz que tinha sido
»28
envergonhado de manhã, com este perfeitamente à
vontade num grupo de cinco raparigas em seu redor, com
cadernos e a fazerem grande alarido.
- Génio da matemática! - Pensei com alegria e ao
mesmo tempo com tristeza, simultaneamente a soltar um
suspiro. Afinal a única fama que tinha era para uma
rapariga, que não fazia propriamente o "meu estilo".
- Daniel Foller certo? - Interrogou uma voz algo
familiar, mas muito distante para que a reconhecesse. Virei
a cabeça na direcção da voz e vi uma cara muito delicada,
com uns grandes olhos azuis da cor do mar, cabelo aloirado
com madeixas, e um capacete negro de motoqueiro. Trazia
uma mochila, que, pela expressão de dor no seu rosto
suado em forma de coração, a deveria estar a cansar muito.
Estendi-lhe a mão para oferecer ajuda de imediato.
- Importas-te? - A minha voz era fraca e rouca. Eu não
estava a fingir. As palavras que tinha dito apenas me
escapavam, como se de uma anel largo se tratasse, a fugir
de um dedo demasiado fino para ele. Senti-me atónito
perante tal conclusão, tão negativa.
A brisa leve e suave invadiu-me os sentidos. Os meus
olhos abriram-se repentinamente. Notei nas folhas de uma
árvore que se agitava, o mesmo nervosismo que tinha
dentro de mim, quando um frio miudinho me trespassou.
Dei um passo e ela afastou-se. Então sorri para a deixar
mais à vontade.
»29
- Não te preocupes. Sim, acertas-te no nome. Não que
seja algo de muito extraordinário. - Estremeci antes de
fazer a questão que tinha em mente. - Como te chamas?
Ela deu outro passo para trás, afastando-se ainda mais
de mim, e começou a andar para trás sem que a que o seu
lindo rosto se desviasse do meu. E depois desapareceu ao
entrar na porta principal. Parecia um dejá-vu da primeira
vez em que nos encontramos, quando ela quase me
atropelara e desaparecia rua abaixo.
Visto que a minha ajuda tinha sido dispensada e que
permanecia sozinho à entrada do liceu, decidi-me por
também entrar, tentando a todo o custo visualizá-la
novamente por ali perto. Havia algo de fascinante naquela
rapariga, algo que não sentira por nenhuma até então, e
que me punha sem palavras, com as pernas a tremer.
Sobrevivera. Um penoso sentimento de abandono
percorria todo o meu corpo, originando os maus
pensamentos de ter abandonado os meus país, o que me
era ainda tolerável e suportável, mas pouco. Não sentia os
braços há algum tempo e comecei a perguntar-me se seria
resultado da brisa que me deixará os membros
adormecidos, ou, por outro lado, bem mais grave e
incompreensível, se aquela rapariga me tinha deixado
assim, em tão mau estado. O que quer que fosse aquilo,
deixava-me mais ciente de que agora estava na hora de
entrada.
Ao chegar à sala do primeiro piso vi que os meus
colegas estavam muito contentes e a fazerem grande festa.
»30
- O que se passa?
- Vamos mudar de horário! - Gritou Anna, com um tom
totalmente eufórico.
- Isso... é bom? - A minha pergunta parecia um clone
de ironia e sarcasmo, o que quase ofendeu aquela rapariga
que novamente baixou o olhar e se afastou. Senti-me vazio,
o dia não podia estar-me a correr pior.
- Sr. Foller, Sr. Foller!
Alguém me chamava. Não seria com certeza um
colega meu, e arrepiei-me só de pensar que tivesse feito
algo de errado. Propus duas opções para, agora, o director
do liceu se estar a dirigir a mim; a primeira seria, por ter
chegado bastante atrasado à aula de química de manhã, já
depois do toque e depois de o porteiro se preparar para
fechar a porta, e por não me ter apresentado a ele quando
o deveria ter feito. Ou a segunda, menos grave, a bicicleta
que estaria estacionada num sítio proibido ou fora do lugar,
ou até pior, não poderiam entrar veículos desses no liceu.
Endireitei-me para escutar o sermão que
supostamente iria dar.
- Estou muito contente por o ter por cá! - A sua ovação
era tão sincera como as lágrimas de uma criança quando
tem fome.
Era ainda jovem, com um fato azul-marinho e uma
gravata vermelha, com o nó mal feito, o cabelo muito liso e
penteado classicamente, com pala e risca ao lado.
Não passaria seguramente dos quarenta e cinco. Até o
meu padrinho seria mais velho, com cinquenta e tais.
»31
Depois segurou-me o ombro com firmeza e aproximou-se
de mim, ao que eu correspondi com curiosidade.
- Então o seu pai encontra-se bem de saúde? Como
está o Sr. Foller, seu pai?
Apanhara-me de surpresa, pois não fazia ideia de que
este pudesse conhecer o Sr. Evans.
- Bem... Penso eu! - Ainda hesitei antes de lhe pôr uma
pergunta. - Conhece-o?
Ele soltou um riso abafado e dirigiu-se às escadas. -
Venha comigo!
- Mas... - Murmurei, preocupado com as aulas, ao que
ele acenou a cabeça em sinal de reprovação, deixando-me
aliviado. Depois segui-o até uma sala cheia de retratos e
fotografias antigas, situada no piso inferior, mesmo à beira
do bar.
- Aquele ali era o seu pai!
Não me aproximei para observar pela janela, enquanto
o senhor Andrew falava. Tentava interiorizar uma decisão
para futuramente poder suportar. Caso visse o meu pai, nas
férias de verão, seguramente que ele viria com a mãe,
mesmo que se tivessem separado, ou a ida até Katerown
para lhe fazer as questões que inundavam o meu espírito
de curiosidade.
Ele falou muito. Muito mesmo, que quando entrei
deveriam ser umas três horas e meia, e quando finalmente
me mandou sair, o ponteiro das horas e dos minutos
apontavam para as cinco horas. Hora de voltar a casa.
»32
Voltei as costas à sala, com o director a agradecer
ainda e desloquei-me a grande velocidade para a saída.
Estava cheio de vontade por regressar a casa. Estava tão
entusiasmado, mas assustado com todas as informações,
que desconhecia, do meu pai. Talvez pudesse satisfazer
uma ou outra coisa que ainda me perguntava se seria
possível.
- Olá Daniel. - Exclamou Sally mesmo junto da minha
bicicleta.
Sorri de espanto.
- Olá... Sally, não é? - E acenei, enquanto ela me
fixava o rosto com aqueles olhos azuis profundos e vivos.
- Posso fazer-te companhia? Penso que tenha sido um
pouco inconveniente a desaparecer como faço sempre.
Ela devia estar a tentar arranjar maneira de pedir
desculpas, contornando a situação.
- De facto.
- Mais uma vez peço desculpa.
Ao aproximar-se de mim vi os seus cabelos lisos e
brilhantes a ondularem, enquanto ela se movia
graciosamente. Era formidável falar com ela. E tremi desde
a ponta dos pés à cabeça. Ela baixou o olhar, havendo
silêncio até sairmos das imediações do liceu, e perguntei-
me se lhe deveria falar ou deixar que o silêncio imperasse,
o que me estava a incomodar. Optei por falar.
- Porquê?
Não consegui dizer algo melhor, com o receio que ela
não entendesse aquela pergunta tão sem sentido.
»33
Sorriu e encolheu os ombros. A seguir sentamo-nos
num degrau do passeio ali à beira e Sally abriu o casaco
roxo que lhe chegava aos pés.
- Então ainda continuas a achar que sou maluca... Era
a isso que te referias?
- Parece que lês mentes! Lamento - E baixei o olhar
em sinal de vergonha.
O olhar dela mostrava serenidade e nenhum rasto de
ódio, o que me fez sentir muito à vontade. Sabia que já não
me sentia assim à muito tempo.
Depois soltou uma gargalhada.
- Bem... Fico aqui! - Respondeu suavemente ao tirar as
chaves de casa.
Com aquilo tudo nem me dera conta que tínhamos
voltado a andar, com as bicicletas na mão. Olhei para a
estrada meia reduzida a reflexos do sol, ainda fraco, que
lhe batia. Em seguida reparei que a "minha" casa estava ali
mesmo, a duas casas de distância.
- É aqui que moras? - Quis saber com uma expressão
demasiado ansiosa para não disfarçar o entusiasmo de ter
Sally com vizinha. Como se não sentisse que aquilo não
passaria de um desejo forte de estar perto dela.
Mas o que estava eu a pensar? Não conhecia aquele
Daniel. Eu estava estranho, e isso deixava-me assustado,
mais assustado que as perguntas da manhã daquele dia
interminável. Depois ela virou-se para mim e olhou com
curiosidade nos meus olhos.
»34
Senti-me pequeno à sua beira, e não olhei
directamente para aquela desconhecida que queria tanto
conhecer. Peguei na bicicleta e mexi no plástico que cobria
o guiador.
- Essa é uma bela pergunta! - Afirmou num tom quase
inaudível, que me interroguei se estaria a dirigir-se a mim.
O silêncio instalou-se e só foi quebrado com a resposta
segura que ela deu. Entretanto, ainda suspirei
profundamente para ouvir, tendo o olhar posto nos seus
lábios, que agora se moviam.
- É a casa da minha amiga Charlotte. Veio para cá
passar férias e vou-lhe entregar as chaves que o meu pai
lhe mandou entregar por causa de um carro dado como
presente. Eles são grandes amigos!
- Aborreci-te! - Afirmei ao tapar a cara com as mãos,
estando com um ar enervado. Olhei-a muito rapidamente
quase à toa, para depois fazer parecer o parvo que era.
- Sou mesmo estúpido... Todos pensam que sou uma
coisa e depois, faço perguntas festas - Continuei de mãos
na cara, não conseguindo enfrentá-la, naquele ar quase
angélico dela.
- Não considerei um insulto, por isso não me sinto mal
pela tua pergunta. Apenas penso que sejas um pouco
tímido? Será a palavra certa?
Apesar do que eu dissera, ela parecia estar bastante
alegre, o que já não me surpreendia. Depois ela mostrou o
seu sorriso aberto e perfeito, e abriu o pequeno portão
»35
verde, para percorrer ainda um pequeno caminho até à
porta branca com desenhos em alto-relevo de anjos.
Cerrei os punhos para me despedir, mas o som do
"adeus" não saiu, e em vez disso, uma tosse rouca ecoou
pela rua, deixando-me embaraçado.
Ela despediu-se acenando.
- Até amanhã... - Disse, deixando o meu coração a
bater como uma metralhadora que não parava de disparar.
Quase desmaiei ao sentir tudo a andar à volta.
Pus um pé fora do passeio, e preparava-me para cair,
quando... algo duro me abraçou e segurou. Sally segurava-
me com as duas mãos à volta da cintura, quase colada a
mim.
- Tens de ter mais cuidado Daniel... - Advertiu
enquanto eu me sentava no passeio, quase não
raciocinando com o que sucedera. Sabia perfeitamente que
ela não teria tempo de me agarrar de tão longe que estava.
- Como é que tu... O meu sussurro pareceu nem se
ouvir. Sentia que uma coluna de pedra me amparara, e isso
era quase impossível.
Espantosamente a voz dela parecia tão brincalhona
que se preparava para rir. Tentei encontrar uma solução
para tal momento e deparei-me a pensar que tudo não
passava de uma mistura de emoções.
Uma vontade de sentir as suas mãos tão frágeis. Sabia
que algo era impossível, e despedi-me com pressa,
dirigindo-me a casa, já em cima da bicicleta. Éramos
desconhecidos ainda. Havia tanta coisa a perguntar, e
»36
ficava nervoso só de pensar que no dia seguinte nos
voltássemos a ver, para lhe questionar tudo que quisesse.
»37