Pedagogia da indignacao

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  • 1. Pedagogia da indignaoCartas pedaggicas e outros escritos

2. FUNDAO EDITORA DA UNESPPresidente do Conselho CuradorAntonio Manoel dos Santos SilvaDiretor-PresidenteJos Castilho Marques NetoAssessor-EditorialJzio Hernani Bomfim GutierreConselho Editorial AcadmicoAntonio Celso Wagner ZaninAntonio de Pdua Pithon CyrinoBenedito AntunesCarlos Erivany FantinatiIsabel Maria F. R. LoureiroLgia M. Vettorato TrevisanMaria Sueli Parreira de ArrudaRaul Borges GuimaresRoberto KraenkelRosa Maria Feiteiro CavalariEditora-ExecutivaChristine RhrigEditora-AssistenteMaria Dolores Prades 3. Paulo FreirePedagogia da indignaoCartas pedaggicase outros escritos 4. Copyright @ 2000 by Editora UNESPDireitos de publicao reservados :Fundao Editora da UNESP (FEU)Praa da S, 10801001- 900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 232-7171Fax.: (0xx11) 232-7172Home page: www.editora.unesp.brE- mail:[email protected] Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Freire, Paulo, 1921- 1997Pedagogia da indignao: cartas pedaggicas e outros escritos / Paulo Freire. So Paulo: EditoraUNESP, 2000.ISBN 85- 7139- 291- 21. Educao 2. Freire, Paulo, 1921-1997 3. Pedagogia I. Ttulo00- 987CDD- 370.1ndice para catlogo sistemtico:1. Freire, Paulo: Pedagogia: Educao 370.1Editora afiliada: 5. Do acervo de Ana Maria Arajo Freire. 6. SumrioApresentaoAna Maria Arajo Freire ............................................................................................................................................8Carta-prefcioa Paulo FreireBalduino A. Andreola................................................................................................................................................ 10Parte ICartas pedaggicasPrimeira CartaDo esprito deste livro............................................................................................................................................ 16Segunda CartaDo direito e dever de mudar o mundo.................................................................................................................... 26Terceira CartaDo assassinato de Galdino Jesusdos Santos - ndio patax....................................................................................................................................... 31Parte IIOutros escritosDescobrimento da Amrica.................................................................................................................................... 34Alfabetizao e misria .......................................................................................................................................... 36Desafios da educao de adultosante a nova reestruturao tecnolgica .................................................................................................................. 40A alfabetizao em televiso..................................................................................................................................47Educao e esperana............................................................................................................................................. 51Denncia, anncio, profecia,utopia e sonho ........................................................................................................................................................ 54 7. Apresentao Ana Maria Arajo FreireEntregar aos leitores e leitoras de Paulo Freire o livro que ele escrevia quando nos deixou, em 2 de maiode 1997, um momento de grandes emoes. Certamente no s para mim, mas tambm para aqueles eaquelas que acreditavam que entre dezembro de 1996, quando publicou a Pedagogia da autonomia, emaio de 1997, Paulo no teria ficado sem pr no papel as suas sempre criativas idias. No teria, porquase um semestre, deixado de expressar por escrito a sua preocupao de educador- poltico. No seenganaram os que assim pensaram e esperaram. Agora, se no passadas todas as angstias, dvidas,expectativas e tristezas por ele no estar mais entre ns, podemos comemorar com alegria a sua volta seditoras e livrarias, inicialmente, com o seu ltimo trabalho.At ento eu no tinha ainda lido as 29 pginas manuscritas das Cartas, uma das formas de comunicaoque Paulo tanto gostava de utilizar. 1 Eu apenas conhecia os temas tratados (e os que ele no teve tempode escrever), pois sempre estava falando, discutindo e comentando com alegria ou indignao os fatossobre os quais estava construindo o seu novo discurso antropolgico-poltico. Foi difcil para mim iniciar aleitura dessas pginas. Tinha medo. Era como se isso fosse confirmar o fato consumado de sua ausncia,to doloroso quanto irreversvel. Ler um livro incompleto de Paulo implicaria para mim estar novamentediante de sua morte. Quando uma relao amorosa como a nossa rompida abruptamente, ficamos, osque no se foram, perplexos, espantados, estarrecidos, antes mesmo de termos conscincia da dor brutalalojada para sempre dentro de ns; antes mesmo que possamos realizar em nosso espao do sentir aperda que acabamos de sofrer. Esses instantes (dias?) so tambm de um sofrer que nos marca parasempre tanto quanto o luto consciente. Acreditar na ausncia para sempre? Aceitar que o companheiro detodos os dias e de todas as horas partiu quando ainda tanto queria ficar entre ns? Minha reao inicialfoi, ento, essa intil tentativa de driblar a realidade. Defendia- me, entre outras maneiras,2 no lendo osseus escritos, para no enfrentar a situao de sofrimento que j estava instalada em mim, na verdade,desde o instante que soube de sua morte. Por isso fugi enquanto pude para no reafirmar a mim mesmaque alm de no mais ele poder me tocar, me escutar e me olhar ele tambm no poderia escrever mais.Ler esses textos, sobretudo porque eles estavam, como sempre, escritos pelas prprias mos de Paulo,significaria naquelas horas de dor indescritvel dizer a mim mesma que, definitivamente, estas Cartaspedaggicas (ele mesmo as chamou assim desde quando comeou a escrev-las) ficaram inacabadas. Einacabadas para sempre no porque ele tivesse, deliberadamente, abandonado o livro, pois ele tinha umprazer muito especial quando concretizava a tarefa que tivesse dado a si prprio, escrever e como ofazia belamente! O escrever era para ele como um exercc io epistemolgico ou como uma tarefaeminentemente poltica, alm de um gosto, um dever. E como tal jamais se negou a esse que- fazer comseriedade e tica.Meses, muitos meses passaram-se, talvez um ano, desde aquela madrugada de perda, at o momento emque comecei a executar minhas decises que resultam, hoje, neste livro. Somente quando ficou claro paramim tudo o que em mim se passava que foi possvel entender que era necessrio enfrentar as emoes e ler as Cartas. Depois de analisadas sob a perspectiva de sua incompletude que tive certeza quedeveria public- las, que no pode- ria sonegar mais este legtimo direito dos estudiosos(as) de Paulo e,sobretudo dele prprio. Esses escritos, compreendi, so fundamentais para quem estuda a obra freireanatanto por neles estarem, de fato, as suas ltimas reflexes escritas como pela importncia e modo deabordagem dos temas tratados. Foi assim que me convenci desta minha tarefa e empenhei-me nela comafinco.Inicialmente, considerei oportuno convidar alguns educadores e educadoras, todos e todas ligados teoriae/ou prxis de Paulo para escreverem cartas- respostas a ele. Seriam cartas sobre as reflexes prprias decada um(a) construdas a partir dos provocantes e atuais temas tratados por Paulo nas Cartaspedaggicas.1Sobre a preferncia de Paulo para escrever, algumas vezes, seus ensaios em forma de Cartas, ver PauloFreire, Cartas a Cristina, So Paulo: Paz e Terra, 1994, in: Ana Maria Arajo Freire, Notas: Introduo(p.237- 42).2Ver Ana Maria Arajo Freire, Nita e Paulo, crnicas de amor, So Paulo: Olho Dgua, 1998. 8. Dando tempo ao tempo, ansiosa algumas vezes, serenamente refletindo em outros momentos,pacientemente impaciente, como diria o meu marido, decidi, enfim, que estas derradeiras palavras deledeveriam formar um livro exclusivamente dele como autor. Livro com as suas palavras e idias, com assuas emoes e preocupaes, com sua sabedoria e sensibilidade e com apenas algumas palavras minhasde contextualizao 3 de cada uma das Cartas pedaggicas. Se, por um lado, ficou muito clara esta opo,por outro considerava que as Cartas, formando, quantitativamente, um todo muito pequeno, deveriam,ento, ser editadas como uma parte de um livro que se completaria com outros escritos do prprioPaulo.Estes outros escritos reunidos na segunda parte do livro uma seleo de cinco textos, quatro delesescritos no ano de 1996. Desafios da Educao de Adultos frente nova reestruturao tecnolgica e Aalfabetizao em televiso foram elaborados para conferncias que ele mesmo proferiu na poca.Educ ao e esperana e Denncia, anncio, profecia, utopia e sonho foram pensados e elaboradosespecialmente para publicao em livros. Descobrimento da Amrica, Paulo o escreveu em 1992, masno foi divulgado no momento em que come -morava- se os 500 anos da chegada do europeu ao NovoMundo. Faz parte desta seleo pelo fato de eu ter considerado de enorme importncia public- loexatamente no ms e ano em que se festeja, oficialmente, o Descobrimento do Brasil. Paulo mais umavez nos est oferecendo com este texto a possibilidade de uma leitura crtica de evento to significativopara brasileiros e brasileiras construrem sua identidade cultural verdadeira.Como em todos estes textos escolhidos para compor este livro Paulo demonstra a sua indignao, a sualegtima raiva e a sua generosidade de amar, resolvi que o ttulo do livro deveria corresponder a essa suapermanente atitude e inteligncia perante a vida e o mundo. Est tambm, como podem seus leitorescomprovar, claramente implcita nesses textos a sua postura, profundamente arraigada na vocaoontolgica de humanidade que temos em cada um de ns exercida com clareza cidad por ele, mesmodiante dos fatos to dramticos e difceis tratados, de forma a no se afastar da esperana. Esta, alis, amatriz da dialeticidade entre ela mesma, a raiva ou indignao e o amor. Assim, nomeei este livroPEDAGOGIA DA INDIGNAO. 4No podemos esquecer que Paulo sempre dizia que as verdadeiras aes ticas e genuinamente humanasnascem de dois sentimentos contraditrios e s deles: do amor e da raiva. E este livro, talvez mais do queos outros, est empapado, como ele dizia de seu amor humanista e de sua raiva ou indignao polticaque se traduziram em toda a sua obra, porque as vivia na sua existncia. Quer sob a forma deantropologia poltica compaixo/ solidariedade genuinamente humanista quer sob a forma de umaepistemologia histrico-cultural crena/f nos homens e nas mulheres e certeza na transformao domundo a partir dos oprimidos(as) e injustiados(as) atravs da superao da contradio antagnicaopressor/oprimido quer ainda sob a forma de uma filosofia sociontolgica com base, sobretudo, naesperana. Esta, pois, entendida em relao com o amor e a indignao. Todas como fatoresdinamizadores e necessrios para transformar os projetos de inditos viveis em concretudes histricas.Neste livro Paulo nos conclama para a concretizao deste indito, desta utopia que a democratizaoda sociedade brasileira, atravs do amor- indignao- espera na. Acreditei, portanto, que o ttulo nopoderia ser outro.Por fim, quero que os leitores e leitoras de Paulo no considerem que esta uma obra pstuma dele,como tanto se fazia e algumas vezes ainda se faz. Prefiro que esta seja considerada como a obra quecelebra a sua VIDA.NITATarde de vero, de sonhos realizando-se no meio das saudades imensas.So Paulo, 11 de fevereiro de 2000.3Paulo j havia me pedido para fazer Notas explicativas em trs de seus livros: Pedagogia da esperana,So Paulo: Paz e Terra, 1992; Cartas a Cristina, j citado, e sombra desta mangueira, So Paulo: Olhodgua, 1995.4Como Paulo j escrevera um livro com o ttulo de Pedagogia da esperana, este poderia ter tido o nomede Pedagogia do amor. Optei, entretanto por Pedagogia da indignao por considerar que este ttulo temfora maior para traduzir o que Paulo pretendeu denunciar quando escreveu os textos que o compem. AsCartas pedaggicas formaro, ento, a Parte I do livro e Outros escritos, a Parte II. 9. Carta-prefcio a Paulo Freire Balduino A. Andreola1Paulo,Recebi tuas Cartas pedaggicas, que a Nita amavelmente me enviou, pedindo- me que, depois de l- las,pusesse no papel minhas reflexes sobre as mensagens nelas contidas. Foi com muita emoo que as li,pois foram as ltimas cartas que escreveste s amigas e aos amigos do mundo inteiro. Muita gente meperguntou, com insistncia, quando sero publicadas. Agora respondo que a Nita e a Editora UNESP estoagilizando a publicao. Pessoalmente, Paulo, penso que cartas recebidas de amigos devem tambm serrespondidas por carta. Foi por isso que decidi escrever- te. Quando minha carta j estava escrita, a Nitame telefonou propondo- me coloc- la como prefcio de teu livro. Ao mesmo tempo que me emocionei,levei tambm um susto, pois a responsabilidade muito grande. Todavia, Paulo, quase no modificarei otexto, para que no perca a espontaneidade e a informalidade com que resolvi falar contigo.Na primeira das tuas Cartas, te propes escrever num clima de abertura ao dilogo, de tal modo que oleitor ou a leitora pudesse ir percebendo que a possibilidade do dilogo com seu autor se acha nelasmesmas, na maneira curiosa com que o autor as escreve, aberto dvida e critica. Este propsito e estaatitude foram constantes em tua vida e em tua obra. Ao ler agora o que escreveste, sinto- me invadido pordois sentimentos dialeticamente opostos: a tristeza profunda de uma grande perda e a alegriatransbordante de uma presena nova, totalmente diferente da que saborevamos antes que partissespara a tua grande viagem transistrica. Sempre que falei de ti e de tua obra, nestes quase trs anos deteu silncio solene, lembrei uma conversa emocionante com o filsofo Paul Ricoeur, quando me foi dado oprivilgio de t- lo como vizinho, em 1983, durante o estgio de um ms na biblioteca Mounier, emChtenay- Malabry, perto de Paris. Falando da morte de Mounier, ocorrida em 1950, ele disse: O lado maiscruel da morte que a gente faz perguntas ao amigo, e ele no responde mais. Lembro que a emoo lheembargou a voz, e ele ficou olhando longamente para o cho, em silncio. Impressionou- me constatarque estava repetindo, trinta e trs anos depois, o que escrevera em 1950, para o nmero especial darevista Esprit2 dedicado memria de Mounier, num texto memorvel cujo primeiro pargrafo citointegralmente, no apenas por seu valor afetivo, mas tambm por seu profundo sentido hermenutico.Assim escreveu Ricoeur:Nosso amigo Emmanuel Mounier no responder mais s nossas perguntas: uma das crueldades da morte mudar radicalmente o sentido de uma obra literria em andamento; no s ela no mais comportacontinuaes, estando encerrada, em todo o sentido da palavra, como tambm ela arrancada a estemovimento de intercmbio, de interrogaes e de respostas, que situava seu autor entre os vivos. Para todo osempre ela uma obra escrita, e somente escrita; a ruptura com seu autor est consumada; doravante elaingressa na nica histria possvel, a de seus leitores, a dos homens vivos que ela nutre. Em certo sentido, umaobra atinge a verdade de sua existncia literria quando seu autor morreu: toda publicao, toda edioinaugura a relao impiedosa dos homens vivos com o livro de um homem virtualmente morto.Tendo reconhecido a densidade da reflexo de Ricoeur, a leitura de teus escritos, Paulo, e sobretudo detuas Cartas, permite- me questionar, porm, esta hermenutica do dilogo interrompido. No dia 19 desetembro de 1998, durante a festa popular de encerramento do I Colquio Internacional Paulo Freire, noRecife, a Nita disse que no conseguia pensar em ti como ausente. Em 99 estive de novo na tua Recifeencantada, e posso dizer com toda a sinceridade que o clima todo do I e do II Colquio, bem como apujana das realizaes que tua obra continua inspirando, no Recife, em muitos outros municpios de1Professor Titular aposentado da Faculdade de Cincias da Educao (FACED) Universidade Federal doRio Grande do Sul (UFRGS). Professor Colaborador Convidado do Programa de Ps- Graduao emEducao (PPG/EDU) da UFRGS. Professor visitante da Capes no PPG/EDU da Universidade Federal dePelotas (UFPel). Doutor em Cincias da Educao pela Universidade Catlica de Louvain- la- Neuve(Blgica).2Paul Ricoeur, Une philosophie personnaliste. Esprit (Paris), p.860- 87, dc. 1950. Texto includo no livroHistoire et Vrit, Paris: Seuil, 1955; Histria e verdade, Trad. de F. A. Ribeiro, Rio de Janeiro: Forense,1968. 10. Pernambuco e em inmeros lugares do mundo inteiro, so evidncia eloqente de que continuas parceirode nossas caminhadas.Esta tua presena- permanncia, Paulo, eu a percebo intensamente em numerosos eventos, dedicados aoestudo de tua obra e discusso de inmeras experincias que nela se inspiram, nas mais diversasregies do mundo. Aqui no Rio Grande do Sul, o Congresso Internacional promovido pela Universidade doVale do Rio dos Sinos (UNISINOS), em 1998, congregou mais de 1.500 participantes. Em 99, aUniversidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Misses YURI realizou, em Santo ngelo, umColquio Internacional com 800 participantes. No Congresso da UNISINOS fundamos o Frum PauloFreire, como instncia permanente de dilogo e intercmbio em torno de experincias e estudosrelacionados com tua obra. O 1 Encontro do Frum realizou- se na UNISINOS, nos dias 21 e 22 de maiode 99, contando com mais de 70 trabalhos inscritos. Em maio deste ano o 2 Encontro anual ser sediadopela Universidade Federal de Santa Maria, coordenado por nosso amigo Fbio e outros estudiosos de tuaobra daquela Universidade. O Frum Paulo Freire, nascido como criao e projeto coletivo, assim ircontinuar, sendo sediado cada ano por uma cidade diversa do Estado, constituindo- se, pela dinmica desua organizao, uma experincia muito variada, prazerosa, e ao mesmo tempo crtica e criativa, dedilogo genuinamente freireano ou paulino em torno de diferentes leituras e diferentes recriaes de tuaobra.Paulo, a leitura de tuas Cartas pedaggicas foi para mim como a imerso numa imensa onda csmica denimo, de esperana e do sentimento de que vale a pena persistir na luta. Sinceramente h momentos emque a desesperana e a depresso parecem prevalecer. Mas ao sentir-te e ao ouvir- te inteiramente fiel ato fim na tua opo irrevogvel de lutar, denunciando e anunciando com a veemncia de sempre, taissentimentos se esvaem. A Terceira carta, que permaneceu incompleta sobre tua mesa, da qual tornamosconhecimento imediatamente aps tua morte pelo fragmento publicado pela Folha de S.Paulo, nos revelacom eloqncia a dimenso desta tua fidelidade total ao projeto coletivo de libertao de que foste oinspirador maior e que prossegue como um dos grandes projetos de solidariedade que pertencem hoje humanidade. Ao refletir sobre esta tua perseverana perene, lembrei-me de trs insignes intelectuais queme ajudam a caracteriz- la no seu significado histrico. Teu e nosso grande amigo, parceiro incomparvelde tuas lutas, Ernani M. Fiori, na ltima conversa que com ele tiveste, em 1984, 3 disse: Paulo, estou felizporque no paraste.Aproximo esta declarao do amigo inesquecvel, j prximo ento da viagem derradeira, afirmaoenftica do filsofo argentino Gustavo Cirigliano.4 Tendo lido teu livro Pedagogia da esperana, ele analisao sentido de tua obra dentro de um paradigma temporal de trs momentos: o pr-tempo (perodo auroralde grande mobilizao popular na Amrica Latina, que precedeu as ditaduras); o contra-tempo (perodode represso, prises, exlios e execues), e o des-tempo. O des-tempo, ou a assincronia foi o fenmenoque atingiu, segundo ele, quase todos os que voltaram dos diferentes exlios (ou silncios repressivos) dalonga noite dos regimes militares. Com relao a ti, porm, o ilustre filsofo proclama enfaticamente:sostengo que Paulo Freire ha quebrado el tiempo dei destiempo porque no ha perdido la palabra. Y eso es unahazana en nuestro continente.A expresso usada por Cirigliano isto uma faanha em nosso continente lembra- me as anlis es queJames Petras faz com relao a um fenmeno bastante generalizado, que ele caracteriza como dosintelectuais em retirada, que renunciam cada vez mais ao marxismo e se tornam conselheiros polticos dostatus quo. No Seminrio Internacional Ernesto Che Guiara 30 Anos, Petras 5 declarou:Yo creo que el inters que hay ahora en el Che Guevara, en parte, refleja el hecho de que el Che empezrevolucionrio y termina la vida revolucionrio. En el mundo actual, muchos jvenes miran, escuchan ydiscrepan com muchos personajes, lderes polticos, que empezaron revolucionrios y ahora, de una forma uotra, arrepentidos, critican su pasado y buscan formular proyectos de acomodamiento con el neoliberalismo.3 Paulo Freire, Depoimento de um grande amigo. Posfcio ao v.II dos Textos Escolhidos, de Ernani M.Fiori, Porto Alegre: L&PM, 1992, p.273- 87.4Gustavo F. J. Cirigliano, De la palabra conciencia de- la- opresin a la palabra proyecto-de- la- esperanza,entrevista La Educacin (Washington, DC3), ao XXXIX, v.120, n.1, p.1- 17, 1995.5James Petras, Algunas Piedras, Amrica Libre, n.12, p.248. O seminrio, promovido pela mesma revista,realizou- se em Rosrio, de 2 a 5 de outubro de 1997. 11. Utilizando su prestigio dei pasado, su militancia, su valentia, como un instrumento para evitar debates, cnticassobre su conducta actual. Y frente a esta manipulacin de sus antecedentes, el Che manifesta un contraste.Paulo, achei altamente expressivo o ttulo Pedagogia da indignao, escolhido por Nita para o livro quecontm tuas Cartas pedaggicas. Penso, porm, que, mesmo ao denunciar com indignao, tu sabias sermansamente respeitoso das pessoas. Confesso- te que s vezes no consigo imitar tua mansido. Foiassim que num artigo meu,6 ao pensar nestas reflexes de Petras, num tom irreverente escrevi:eu me pergunto se os numerosos ex-revolucionrios e ex-esquerdistas foram realmente revolucionrios ... Euchego a pensar que certas vocaes revolucionrias tm muito mais a ver com Freud do que com Marx. Ouseja: parece tratar- se de reprises equivocadas, ao longo da vida, de revoltas edipianas mal solucionadas, maisdo que de autnticas vocaes revolucionrias.Paulo, a leitura de tuas Cartas nos oferece pistas extraordinariamente ricas e desafiadoras para novasleituras de tua obra. Foi esta, alis, a preocupao e a idia inspiradora do I Frum Paulo Freire. Comminhas alunas e meus alunos do Mestrado em Educao da UFPel, tambm realizamos, em 98, umaexperincia interessante nesta linha, fazendo de teu livro Pedagogia da autonomia uma leitura temtica.Cada aluna ou aluno leu o livro na tica de seu tema preferido, de acordo com sua formao de origem ecom o objeto de sua pesquisa de mestrado. Nas sesses do seminrio, as diferentes leituras eramsocializadas e discutidas, sendo assim integradas numa leitura coletiva de teu livro. No Frum PauloFreire, em 99, intitulei meu trabalho Leituras proibidas de P. Freire e reli tua obra nas perspectivas daafricanidade e do campo (cultura e educao do campo).Uma das releituras que desejo fazer em dilogo com outros colegas a teolgico-bblica. J falei com oamigo Danilo Streck, da UNISINOS, que aderiu logo idia. Trata- se de ler tua obra e tua trajetria deluta a servio dos condenados da terra, dos oprimidos do mundo, na perspectiva de tua f crist, que nofoi a f de um cristianismo comprometido com o status quo, mas sim na linha de uma teologia dalibertao e da laicidade, como preconizaram La Tour Du Pin, Ozanan, Buchez, Teilhard de Chardin,Bernanos, Pguy, De Lubac, Chenu. Um cristianismo como o queriam Lebret, Hlder Cmara, Duclerq. Umcristianismo de fortes, de lutadores, como o visualizava Mounier no seu livro - meditao Laffrontmentchrtien. Um cristianismo como o descortinou Joo XXIII.A leitura de tuas Cartas pedaggicas surpreendeu- me pela variedade e riqueza de enfoques, alguns novosou menos enfatizados em tua obra. Entre estes eu destacaria o da famlia, ou do tema educao e famlia.Ao destacar, no posso incidir, porm, no reducionismo. Tu queres dirigir-te aos jovens pais e mes, aosfilhos e filhas adolescentes, mas tambm a professores e professoras. Tratas dos problemas do dia - a- dia,mas ao mesmo tempo, na perspectiva ampla das grandes mudanas acontecidas em nossos tempos edaquelas que esto acontecendo, de forma sempre mais rpida. Na tua primeira carta, Paulo, eu revivi afraternal conversa que tivemos, quando jantamos juntos no Hotel Embaixador, em 1995, e o ponto departida de nosso dilogo foram meus filhos Diego e Michel, que havias conhecido ao almoar em nossacasa, naquele dia 18 de maio. A educao de nossos filhos e de nossos alunos torna- se um desafiosempre maior, diante da magnitude crescente dos problemas que o mundo atual nos prope. Tu no tensreceitas, Paulo, e nunca foi este o sentido de tuas obras. Todavia tuas Cartas pedaggicas nos oferecem,isto sim, contribuies valiosas para todos ns, mes e pais, educadores e educadoras do novo sculo edo novo milnio. Obrigado, Paulo.No posso delongar- me em detalhes. Nomearei alguns ainda dos temas novos e dos novos enfoques detemas por ti j abordados amplamente. Se no novo o tema da Ecologia, novo o enfoque e a nfasecom que o tratas. Falas do amor ao mundo no contexto do amor vida, desafiado por tua santa eveemente indignao perante o espetculo cruel e desconcertante de cinco adolescentes brincando dematar, barbaramente, em Braslia, Galdino, o ndio patax. O tema da Ecologia est intimamenteassociado ao da tica, que perpassa tuas Cartas da primeira ltima pgina, da mesma maneira queperpassa, na minha leitura, como tema central, idia geradora, tema - chave, o teu livro-testamento,Pedagogia da autonomia . Tu contrapes nas Cartas, como naquele livro, a tica universal do ser humano,a tica d solidariedade, tica do mercado, insensvel a todo reclamo das gentes e apenas aberta agulodice do lucro. Paulo, h um novo modismo por a, inclusive entre ex-revolucionrios arrependidos,6Balduino A. Andreola, Atualidade da obra de Paulo Freire. Tempo de Cincia (UNIOESTE, Toledo,Paran), v.5, n.10, p.7-13, 1998. 12. propalando que no tem mais sentido, na ps-modernidade, falar as linguagens da tica e da poltica,superadas pelos delrios fatalistas da globalizao e da Internet. Que bom, Paulo, queno paraste,proclamando at o fim, com o vigor de um pedagogo- profeta, as dimenses tica epoltica comoexigncias ontolgico- existenciais e histricas da pessoa e da convivncia humana e, emparticular, daeducao.A leitura atenta de tuas Cartas exigir de todos ns uma releitura de tua obra. Elas acrescentam novasdimenses, ressignificando, em sua totalidade, o teu legado. Sem esquecer as perspectivas dainteligncia, da razo, da corporeidade, da tica e da poltica, para a existncia pessoal e coletiva,enfatizas tambm o papel das emoes dos sentimentos, dos desejos, da vontade, da deciso, daresistncia, da escolha, da curiosidade, da criatividade, da intuio, da esteticidade, da boniteza da vida,do mundo, do conhecimento. No que tange s emoes, reafirmas a amorosidade e a afetividade, comofatores bsicos da vida humana e da educao. Com relao poltica, o problema do poder adquirenovas configuraes. Contra as tentaes de abdicar da luta, de renunciar utopia, de negar a esperana,denunciaste, com o mesmo vigor com que denunciaste em Pedagogia da autonomia, todas as formas decompreenso mecanicista e determinista da histria, e proclamas:Uma das primordiais tarefas da pedagogia crtica radical libertadora ... trabalhar contra a fora daideologia fatalista dominante, que estimula a imobilidade dos oprimidos e sua acomodao realidadeinjusta, necessria ao movimento dos dominadores. defender uma prtica docente em que o ensinorigoroso dos contedos jamais se faa de forma fria, mecnica e mentirosamente neutra.Baseado na convico de que o amanh no algo inexorvel e de que, por isso mesmo, no est dadode antemo, anuncias a viabilidade de um projeto de mundo, e o direito das classes populares departicipar dos debates em torno de um projeto de mundo. Paulo, tu consideras as classes populares,organizadas em seus movimentos prprios, portadoras do sonho vivel e agentes histricos da mudana.Entre estes movimentos populares, salientas a importncia histrica do MST. Depois de lembrares atrajetria de lutas dos Sem Terra de ontem e de hoje, refletindo sobre a grande marcha que o MST do-Brasil inteiro realizou em 1997, declaras:que bom seria ... se outras marchas se seguissem sua. A marcha dos desempregados, dos injustiados,dos que protestam contra a impunidade, dos que clamam contra a violncia, contra a mentira e odesrespeito coisa pblica. A marcha dos sem teto, dos sem escola, dos sem hospital, dos renegados. Amarcha esperanosa dos que sabem que mudar possvel.Paulo, no posso concluir sem voltar tua Terceira carta. Diante do episdio da trgica transgresso datica dos jovens assassinos do ndio patax, em Braslia, afirmas que tal episdio:nos adverte de como urge que assumamos o dever de lutar pelos princpios ticos mais fundamentaiscomo o respeito vida dos seres humanos, vida dos outros animais, vida dos pssaros, vida dos riose das florestas.Paulo, tu ests defendendo o valor da vida na sua universalidade, sob todas as suas formas, com aveemncia do Cristo, que expulsou os profanadores do santurio, e com a linguagem potica e mstica deFrancisco de Assis, eleito o maior personagem do milnio recm findo.-Tua defesa no se inspira num sentimentalismo vago, mas sim na radicalidade de uma exigncia tica queassim proclamas:No creio na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se no nos tornamoscapazes de amar o mundo.A civilizao ocidental, expressa na racionalidade fria e calculista da filosofia, da cincia e da tecnologiamodernas, revelou- se incapaz de salvaguardar os valores que defendes e de articular a linguagem comque te comunicas. Degenerada num projeto de mundo identificado com o desamor da ganncia fratricidada posse, do lucro e da especulao financeira, conduziu a humanidade beira da destruio total. Paulo,h algum tempo venho meditando que me parecias deslocar- te do Ocidente para o Oriente e para o Sul.Lendo tuas Cartas confirmo- me nesta impresso de que, sem renunciar ao vigor da cincia e da filosofia, 13. ests muito mais prximo do pensamento e da viso de mundo dos grandes mestres orientais, comotambm do esprito csmico, mstico acolhedor e musical dos povos africanos.Paulo, simpatizo com a idia de pensar o teu projeto pedaggico-poltico na constelao do que denominoPedagogia das grandes convergncias. Eu lembro alguns grandes mestres da humanidade que no sculofindo, lutaram e dedicaram suas vidas por um projeto mais humano, fraterno e solidrio de mundo. Semexcluir outros, penso nos seguintes: Gandhi, Joo XXIII, Luther King, Simone Weil, Lebret, Frantz Fanon,Che Guevara, Teresa de Calcut, Dom Helder, Mounier, Teilhard de Chardin, Nelson Mandela, RogerGaraudy, Dalai Lama, Tovdjr, Betinho, Paramahansa Yogananda, Michel Duclerq, Fritjof Capra, PierreWeil, Leonardo Boff, Paul Ricoeur e outros. Ao pensar em outros, lastimo, Paulo, que tua despedidainesperada tenha impedido um encontro j previsto com o filsofo Jrgen Habermas, por ocasio daviagem que farias Alemanha, em 1997, para participar do Congresso Internacional de Educao deAdultos. Teria sido, com certeza, um dilogo histrico em alto nvel, entre dois pensadores de estaturainternacional. Cabe a ns, pois, no fundarmos clubinhos ou capelas, mas promovermos o dilogo amplo ecrtico entre as grandes teorias que, contra a mar do determinismo e do fatalismo inexorvel daeconomia de mercado, da especulao, da ganncia e da excluso, querem contribuir para um novoprojeto planetrio de convivialidade humana. Cabe a ns, Paulo, que aqui ficamos, derrubarmos muros einventarmos o que venho chamando, h alguns anos, uma engenharia epistemolgico-pedaggica depontes, atravs das quais possamos ir e vir, ao encontro uns dos outros, sonhando com o dia em quepossamos sentar sombra desta mangueira da fraternidade global.Se a tua voz, Paulo, fosse uma voz solitria, a esperana se tornaria difcil. Alegra- nos ver- te situado numprocesso histrico de grande envergadura. Tenho certeza plena de que todos os grandes mestres citadosacima, e dezenas de outros, assinariam o que escreveste em tuas emocionantes Cartas pedaggicas. Elaslanaro luzes novas sobre os caminhos de milhares de educadores, e de muitos milhes de pessoas, nomundo inteiro, que inspirados na tua obra, lutam para a construo histrica de um novo projeto dehumanidade. Porto Alegre, 20 de janeiro de 2000. 14. Parte ICartas Pedaggicas 15. Primeira cartaDo esprito deste livro A mim me d pena e preocupao quando convivo com famlias que experimentam a tirania da liberdade em que as crianas podem tudo: gritam, riscam as paredes, ameaam as visitas em face da autoridade complacente dos pais que se pensam ainda campees da liberdade.Fazia algum tempo um propsito me inquietava: escrever umas cartas pedaggicas em estilo leve cujaleitura tanto pudesse interessar jovens pais e mes quanto, quem sabe, filhos e filhas adolescentes ouprofessoras e professores que, chamados reflexo pelos desafios em sua prtica docente, encontrassemnelas elementos capazes de ajud- los na elaborao de suas respostas. Cartas pedaggicas em que eufosse tratando problemas, destacados ou ocultos, nas relaes com filhas e filhos ou alunas e alunos naexperincia do dia- a- dia. Problemas que, nem sempre, existiram para o jovem pai ou a jovem me ou ojovem professor na experincia quase recente de adolescncia ou que, se existiram, receberam diferentetratamento. Vivemos um tempo de transformaes cada vez mais radicais nos centros urbanos maisdinmicos. Aos 70 anos nos surpreendemos vestindo- nos como no o fazamos aos 40. como se hojefssemos mais jovens do que ontem. Da que uma das qualidades mais urgentes que precisamos forjarem ns nos dias que passam e sem a qual dificilmente podamos estar, de um lado, sequer mais oumenos altura do nosso tempo, de outro, compreender adolescentes e jovens, a capacidade crtica,jamais sonolenta sempre desperta inteligncia do novo. Do inusitado que, embora s vezes nosespante e nos incomode, at, no pode ser considerado, s por isso, um desvalor. Capacidade crtica deque resulta um saber to fundamental quanto bvio: no h cultura nem histria imveis. A mudana uma constatao natural da cultura e da histria. O que ocorre que h etapas, nas culturas, em que asmudanas se do de maneira acelerada. o que se verifica hoje. As revolues tecnolgicas encurtam otempo entre uma e outra mudana. O bisneto dos fins do sculo passado, repetia, nos grandes traos noque tange s formas culturais de valorar, de expressar o mundo, de falar, seu bisav. Hoje, numa mesmafamlia, nas sociedades mais complexas, o filho mais novo no repete o irmo mais velho, o que dificultaas relaes entre pais, mes, filhas e filhos.No haveria cultura nem histria sem inovao, sem criatividade, sem curiosidade, sem liberdade sendoexercida ou sem liberdade pela qual, sendo negada, se luta. No haveria cultura nem histria sem risco,assumido ou no, quer dizer, risco de que o sujeito que o corre se acha mais ou menos consciente. Possono saber agora que riscos corro, mas sei que, como presena no mundo, corro risco. que o risco umingrediente necessrio mobilidade sem a qual no h cultura nem histria. Da a importncia de umaeducao que, em lugar de procurar negar o risco, estimule mulheres e homens a assumi - lo. assumindoo risco, sua inevitabilidade, que me preparo ou me torno apto a assumir este risco que me desafia agora ea que devo responder. fundamental que eu saiba no haver existncia humana sem risco, de maior oude menor perigo. Enquanto objetividade o risco implica a subjetividade de quem o corre. Neste sentido que, primeiro, devo saber que a condio de existentes nos submete a riscos; segundo, devo lucidamenteir conhecendo e reconhecendo o risco que corro ou que posso vir a correr para poder conseguir um eficazdesempenho na minha relao com ele.Sem me deixar cair na tentao de um racionalismo agressivo em que, mitificada, a razo sabe e podetudo, insisto na importncia fundamental da apreenso crtica da ou das razes de ser dos fatos em quenos envolvemos. Quanto melhor me aproximo do objeto que procuro conhecer, ao dele me distanciarepistemologicamente,1 tanto mais eficazmente funciono como sujeito cognoscente e melhor, por issomesmo, me assumo como tal. O que quero dizer que, como ser humano, no devo nem posso abdicarda possibilidade que veio sendo construda, social e historicamente, em nossa experincia existencial de,intervindo no mundo, inteligi- lo e, em conseqncia, comunicar o inteligido. A inteligncia do mundo, toapreendida quanto produzida e a comunicabilidade do inteligido so tarefas de sujeito, em cujo processo1A propsito de distncia epistemolgica, ver Paulo Freire, sombra desta mangueira, op. cit. ePedagogia da autonomia. Saberes necessrios prtica educativa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.(Leitura). 16. ele precisa e deve tornar- se cada vez mais crtico. Cada vez mais atento rigorosidade metdica de suacuriosidade, na sua aproximao aos objetos. Rigorosidade metdica de sua curiosidade de que vairesultando maior exatido de seus achados.Se a mudana faz parte necessria da experincia cultural, fora da qual no somos, o que se impe a ns tentar entend-la na ou nas suas razes de ser. Para aceit- la ou neg- la devemos compreend-la,sabendo que, se no somos puro objeto seu, ela no tampouco o resultado de decises voluntaristas depessoas ou de grupos. Isto significa, sem dvida, que, em face das mudanas de compreenso, decomportamento, de gosto, de negao de valores ontem respeitados, nem podemos simples- mente nosacomodar, nem tambm nos insurgir de maneira puramente emocional. neste sentido que umaeducao crtica, radical, no pode jamais prescindir da percepo lcida da mudana que inclusive revelaa presena interveniente do ser humano no mundo. Faz parte tambm desta percepo lcida damudana a natureza poltica e ideolgica de nossa posio em face dela independentemente de seestamos conscientes disto ou no. Da mudana em processo, no campo dos costumes, no do gostoesttico de modo geral, das artes plsticas, da msica, popular ou no, no campo da moral, sobretudo noda sexualidade, no da linguagem, como da mudana historicamente necessria nas estruturas de poder dasociedade, mas a que dizem no, ainda, as foras retrgradas. Exemplo histrico de retrocesso a lutaperversa contra a reforma agrria, em que os poderosos donos das terras e que querem continuar donosdas gentes tambm, mentem e matam impunemente. Matam camponeses como se fossem bichosdanados e fazem declaraes de um cinismo estarrecedor. No foram os nossos seguranas que atiraramnos invasores, mas caadores que andavam pelas redondezas. O menosprezo pela opinio pblicarevelado neste discurso fala do arbtrio dos poderosos e da segurana de sua impunidade. E isto no fim dosegundo milnio... E ainda se acusam os Sem-Terra de arruaceiros e baderneiros porque assumem o riscode concretamente denunciar e anunciar. Denunciar a realidade imoral da posse da terra entre ns e deanunciar um pas diferente.Com a experincia histrica os Sem-Terra sabem muito bem que, se no fosse por suas ocupaes, areforma agrria pouco ou quase nada teria andado.Na intimidade de seus assentamentos devem emocionar- se com a sensibilidade do poder to preocupadocom ouvir e seguir o apelo do Papa...Mas o que quero dizer o seguinte: na medida em que nos tornamos capazes de transformar o mundo,de dar nome s coisas, de perceber, de inteligir, de decidir, de escolher, de valorar, de, finalmente,eticizar o mundo, o nosso mover- nos nele e na histria vem envolvendo necessariamente sonhos por cujarealizao nos batemos. Da ento, que a nossa presena no mundo, implicando escolha e deciso, noseja uma presena neutra. A capacidade de observar, de comparar, de avaliar para, decidindo, escolher,com o que, intervindo na vida da cidade, exercemos nossa cidadania, se erige ento como umacompetncia fundamental. Se a minha no uma presena neutra na histria, devo assumir tocriticamente quanto possvel sua politicidade. Se, na verdade, no estou no mu ndo para simplesmente aele me adaptar, mas para transform - lo; se no possvel mud- lo sem um certo sonho ou projeto demundo, devo usar toda possibilidade que tenha para no apenas falar de minha utopia, mas paraparticipar de prticas com ela coerentes. Me parece fundamental sublinhar, no horizonte da compreensoque tenho do ser humano como presena no mundo, que mulheres e homens somos muito mais do queseres adaptveis s condies objetivas em que nos achamos. Na medida mesma em que nos tornamosc apazes de reconhecer a capacidade de nos adaptar concretude para melhor operar, nos foi possvelassumir- nos (sic) como seres transformadores. E na condio de seres transformadores que percebemosque a nossa possibilidade de nos adaptar no esgota em ns o nosso estar no mundo. porque podemostransformar o mundo, que estamos com ele e com outros. No teramos ultrapassado o nvel de puraadaptao ao mundo se no tivssemos alcanado a possibilidade de, pensando a prpria adaptao, nosservir dela para programar a transformao. por isso que uma educao progressista jamais pode emcasa ou na escola, em nome da ordem e da disciplina, castrar a altivez do educando, sua capacidade deopor- se e impor- lhe um quietismo negador do seu ser. por isso que devo trabalhar a unidade entre meudiscurso, minha ao e a utopia que me move. neste sentido que devo aproveitar toda oportunidadepara testemunhar o meu compromisso com a realizao de um mundo melhor, mais justo, menos feio,mais substantivamente demo crtico. neste sentido tambm que to importante sublinhar crianaque, zangada, no importa por que, esperneia e agride quem dela se aproxima, com ponta- ps, h limitesreguladores de nossa vontade quanto estimular a necessidade de autonomia ou de auto- afirmao a umacriana tmida ou inibida. 17. preciso inclusive, deixar claro, em discursos lcidos e em prticas democrticas, que a vontade s seautentica na ao de sujeitos que assumem seus limites. A vontade ilimitada a vontade desptica,negadora de outras vontades e, rigorosamente, de si mesma. a vontade ilcita dos donos do mundoque, egostas e arbitrrios, s se vem a si mesmos.A mim me d pena e preocupao quando convivo com famlias que experimentam a tirania daliberdade, em que as crianas podem tudo: gritam, riscam as paredes, ameaam as visitas em face daautoridade complacente dos pais que se pensam, ainda, campees da liberdade. Submetidas ao rigor semlimites da autoridade arbitrria as crianas experimentam fortes obstculos ao aprendizado da deciso, daescolha, da ruptura. Como aprender a decidir, proibidas de dizer a palavra, de indagar, de comparar.Como aprender democracia na licenciosidade em que, sem nenhum limite, a liberdade faz o que quer ouno autoritarismo em que, sem nenhum espao, a liberdade jamais se exerce?Estou convencido de que nenhuma educao que pretenda estar a servio da boniteza da presenahumana no mundo, a servio da seriedade da rigorosidade tica, da justia, da firmeza do carter, dorespeito s diferenas, engajada na luta pela realizao do sonho da solidariedade pode realizar- seausente da tensa e dramtica relao entre autoridade e liberdade. Tensa e dramtica relao em queambas, autoridade e liberdade, vivendo plenamente seus limites e suas possibilidades, aprendem, semtrguas, quase, a assumir- se como autoridade e como liberdade. vivendo com lucidez a tensa relaoentre autoridade e liberdade que ambas descobrem no serem necessariamente antagnicas uma daoutra. a partir deste aprendizado que ambas se comprometem na prtica educativa com o sonho democrticode uma autoridade ciosa de seus limites em relao com uma liberdade zelosa igualmente de seus limitese de suas possibilidades.H algo ainda de que me convenci ao longo de minha longa experincia de vida, de que a de educador importante parte. Quanto mais e mais autenticamente tenhamos vivido a tenso dialtica nas relaesentre autoridade e liberdade tanto melhor nos teremos capacitado para superar razoavelmente crises dedifcil soluo para quem tenha se entregue aos exageros licenciosos ou para quem tenha estadosubmetido aos rigores de autoridade desptica.A disciplina da vontade, dos desejos, o bem- estar que resulta da prtica necessria, s vezes difcil de serc umprida, mas que devia ser cumprida, o reconhecimento de que o que fizemos o que devamos terfeito, a recusa tentao da autocomplacncia nos forjam como sujeitos ticos, dificilmente autoritriosou submissos ou licenciosos. Seres mais bem dispostos para a confrontao de situaes limites.A liberdade que, desde cedo, veio aprendendo, vivencialmente, a constituir sua autoridade interna pelaintrojeo da externa que vive plenamente suas possibilidades. As possibilidades decorrem da assunolcida, tica, dos limites e no da obedincia medrosa e cega a eles.Ao escrever agora, me recordo do exemplo de um desses exageros do uso e da compreenso daliberdade. Eu tinha 12 anos e morava em Jaboato. Um casal amigo de minha famlia nos visitava com ofilho de 6 ou 7 anos. O menino subia nas cadeiras, atirava almofadas para a direita, para a esquerda comose estivesse em guerra contra inimigos invisveis. O silncio dos pais revelava sua aceitao a tudo o queo filho fazia. Um pouco de paz na sala. O menino sumiu pelo quintal para, em seguida, voltar com umpinto, por pouco asfixiado, na mo quase crispada. Entrou na sala ostentando, vitorioso, o objeto de suaastcia. Tmida, a me aventurou uma plida defesa do pintinho, enquanto o pai se perdia num mutismosignificativo. Se falar de novo, disse o menino decidido, dono da situao, eu mato o pinto.O silncio, que nos envolveu a todos, salvou o pintinho. Solto, combalido e trpego, saiu da sala comopde. Atravessou o terrao e se foi esconder por entre a folhagem das avencas, mimos de minha me.Nunca esqueci o juramento que fiz em face de tamanha licenciosidade: se vier a ser pai, jamais serei umpai assim.Mas, a mim me d pena tambm e preocupao, igualmente, quando convivo com famlias que vivem aoutra tirania, a da autoridade, em que as crianas caladas, cabisbaixas, bem comportadas, submissas -nada podem. 18. Quo equivocados se acham pais e mes ou quo despreparados se encontram para o exerccio de suapaternidade e de sua maternidade quando, em nome do respeito liberdade de seus filhos ou filhas, osdeixam entregues a si mesmos, a seus caprichos, a seus desejos. Quo equivocados pais e mes seencontram quando, sentindo- se culpados porque foram, pensam, quase malvados ao dizer um nonecessrio ao filho, imediatamente o cobrem de mimos que so a expresso de seus arrependimentos doque no podiam arrepender- se de ter feito. A criana tende a perceber os mimos como a anulao daconduta restritiva anterior da autoridade. Tende a perceber os mimos como um discurso de escusas quea autoridade lhe faz.A demonstrao permanente de afeto necessria, fundamental, mas no de afeto como forma dearrependimento. No posso pedir desculpas a meu filho por ter feito o que deveria ter realmente feito. to mau isto quanto no explicitar meu sentimento por um erro que cometi. por isso tambm que noposso dizer no a meu filho por tudo ou por nada, um no que atende ao gosto de meu arbtrio. Devo sercoerente ao dizer no como ao estimular o filho com um sim.Contraditrios entre si estes modos, o autoritrio ou o licencioso, trabalham contra a urgente formao econtra o no menos urgente desenvolvimento da mentalidade democrtica entre ns. Estou convencido deque a primeira condio para aceitar ou recusar esta ou aquela mudana que se anuncia estar aberto novidade, ao diferente, inovao, dvida. Qualidades da mentalidade democrtica de que tantonecessitamos e que tm nos modelos referidos um grande bice.No tenho dvida de que a minha tarefa primordial de pai, amoroso da liberdade, mas no licencioso,zeloso de minha autoridade, mas no autoritrio, no manejar a opo partidria, religiosa ouprofissional de meus filhos, guiando- os para este ou aquele partido ou esta ou aquela igreja ouprofisso. Pelo contrrio, sem omitir- lhes minha opo partidria e religiosa, o que me cabe testemunhar-lhes minha profunda amorosidade pela liberdade, meu respeito aos limites sem os quaisminha liberdade fenece, meu acatamento sua liberdade em aprendizagem para que eles e elas, amanh,a usem plenamente no domnio poltico tanto quanto no da f. Me parece fundamental, do ponto de vistada mentalidade democrtica, no enfatizar a importncia espontnea do testemunho de pai ou de mesobre a formao dos filhos. Quase sempre, sub- reptcia ou ostensivamente o fazemos. O ideal, para mim,reconhecendo esta importncia, saber us- la e a melhor maneira de aproveitar a fora de meutestemunho de pai exercitar a liberdade do filho no sentido da gestao de sua autonomia. Quanto maisfilhas e filhos se vo tornando seres para si tanto mais se vo fazendo capazes de re- inventar seus pais,em lugar de puramente copi- los ou, s vezes, raivosa e desdenhosa- mente neg- los.O que me interessa no que meus filhos e minhas filhas nos imitem como pai e me, mas, refletindosobre nossas marcas, dem sentido sua presena no mundo. Testemunhar- lhes a coerncia entre o queprego e o que fao, entre o sonho de que falo e a minha prtica, entre a f que professo e as aes emque me envolvo a maneira autntica de, educando- me com eles e com elas, educ- los numa perspectivatica e democrtica.Na verdade, como posso convidar meus filhos e filhas a respeitar meu testemunho religioso se, dizendo-me cristo e seguindo os rituais da igreja, discrimino os negros, pago mal cozinheira e a trato comdistncia? Como posso, por outro lado, conciliar a minha fala em favor da democracia com osprocedimentos anteriormente referidos?Como posso convencer meus filhos de que respeito o seu direito de dizer a palavra se revelo mal-estar anlise mais crtica de um deles que embora criana ainda, ensaia, legitimamente, sua liberdade deexpressar- se? Que exemplo de seriedade dou s crianas se peo a quem atende ao telefone que chamaque, se for para mim, diga que no estou?Este esforo, porm, em favor da coerncia, da retido, no pode resvalar, sequer minimamente, paraposies farisaicas. Devemos buscar, humildemente e com trabalho, a pureza, jamais nos deixandoenvolver em prticas ou assumindo atitudes puritanas. Moral, sim, moralismo, no.Outra exigncia que me fazia: de umas certas marcas deveriam estar resguardadas, desde logo, as cartaspedaggicas. Resguardadas da arrogncia que intimida e inviabiliza a comunicao, da suficincia queprobe o prprio suficiente de reconhecer sua insuficincia, da certeza demasiado certa do acerto, doelitismo teoricista, cheio de recusas e indisposies contra a prtica ou do basismo negador da teoria, do 19. simplismo reacionrio e soberbo que se funda na subestimao do outro o outro no capaz de meentender. Assim, em lugar de procurar a simplicidade na apresentao do tema de que falo, trata- o deforma quase desdenhosa.Protegidas do simplismo, da arrogncia do cientificismo, as cartas, por outro lado, deveriam transparecer,na seriedade e na segurana com que fossem escritas, a abertura ao dilogo e o gosto da convivncia como diferente. O que quero dizer o seguinte: que, no processo da experincia da leitura das cartas, o leitorou leitora pudesse ir percebendo que a possibilidade do dilogo com o seu autor se acha nelas mesmas,na maneira curiosa com que o autor as escreve, aberto dvida e crtica. possvel at que jamais oleitor venha a ter um encontro pessoal com o autor. O fundamental que fiquem claras a legitimidade e aaceitao de posies diferentes em face do mundo. Aceitao respeitosa.No importa o tema que se discute nestas cartas elas se devem achar ensopadas de fortes convicesora explcitas, ora sugeridas. A convico, por exemplo, de que a superao das injustias que demanda atransformao das estruturas inquas da sociedade implica o exerccio articulado da imaginao de ummundo menos feio, menos cruel. A imaginao de um mundo com q ue sonhamos, de um mundo queainda no , de um mundo diferente do que a est e ao qual precisamos dar forma.No gostaria de ser homem ou de ser mulher se a impossibilidade de mudar o mundo fosse algo to bvioquanto bvio que os sbados precedem os domingos. No gostaria de ser mulher ou homem se aimpossibilidade de mudar o mundo fosse verdade objetiva que puramente se constatasse e em torno deque nada se pudesse discutir.Gosto de ser gente, pelo contrrio, porque mudar o mundo to difcil quanto possvel. a relao entrea dificuldade e a possibilidade de mudar o mundo que coloca a questo da importncia do papel daconscincia na histria, a questo da deciso, da opo, a questo da tica e da educao e de seuslimites.A educao tem sentido porque o mundo no necessariamente isto ou aquilo, porque os seres humanosso to projetos quanto podem ter projetos para o mundo. A educao tem sentido porque mulheres ehomens aprenderam que aprendendo que se fazem e se refazem, porque mulhere s e homens sepuderam assumir como seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que no sabem. De sabermelhor o que j sabem, de saber o que ainda no sabem. A educao tem sentido porque, para serem,mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem no haveriaporque falar em educao.A conscincia do mundo, que viabiliza a conscincia de mim, inviabiliza a imutabilidade do mundo. Aconscincia do mundo e a conscincia de mim me fazem um ser no apenas no mundo mas com o mundoe com os outros. Um ser capaz de intervir no mundo e no s de a ele se adaptar. neste sentido quemulheres e homens interferem no mundo enquanto os outros animais apenas mexem nele. por isso queno apenas temos histria, mas fazemos a histria que igualmente nos faz e que nos torna portantohistricos.Mas, se recuso, de um lado, o discurso fatalista, imobilizador da histria, recuso, por outro lado, odiscurso no menos alienado do voluntarismo histrico, segundo o qual a mudana vir porque est ditoque vir. No fundo, so ambos estes discursos negadores da contradio dialtica que cada sujeitoexperimenta em si mesmo, de, sabendo- se objeto da histria, tornar- se igualmente seu sujeito.Saliente-se que o discurso da impossibilidade da mudana para a melhora do mundo no o discurso daconstatao da impossibilidade mas o discurso ideolgico da inviabilizao do possvel. Um discurso porisso mesmo, reacionrio; na melhor das hipteses, um discurso desesperadamente fatalista.O discurso da impossibilidade de mudar o mundo o discurso de quem, por diferentes razoes, aceitou aacomodao, inclusive por lucrar com ela. A acomodao a expresso da desistncia da luta pelamudana. Falta a quem se acomoda, ou em quem se acomoda fraqueja, a capacidade de resistir. maisfcil a quem deixou de resistir ou a quem sequer foi possvel em algum tempo resistir aconchegar- se namornido da impossibilidade do que assumir a briga permanente e quase sempre desigual em favor dajustia e da tica. 20. Mas, importante enfatizar que h uma diferena fundamental entre quem se acomoda perdidamentedesesperanado, submetido de tal maneira asfixia da necessidade, que inviabiliza a aventura daliberdade e a luta por ela, e quem tem, no discurso da acomodao, um instrumento eficaz de sua luta ade obstaculizar a mudana. O primeiro o oprimido sem horizonte; o segundo, o opressor impenitente.Esta uma das razes por que o alfabetizador progressista no pode contentar- se com o ensino da leiturae da escrita que d as costas desdenhosamente leitura do mundo.Esta a razo tambm por que os militantes progressistas precisam, quixotescamente at, opor- se aodiscurso domesticador que diz que o povo quer cada vez mais menos poltica, menos conversa e maisresultados. As que vm enfatizando a ideologia do fazer naturalmente consideram e se esforam porintrojetar nas classes populares e no s nelas que qualquer reflexo sobre o em favor de que e de quemse faz a ao, sobre o em torno de quanto custou e poderia custar a obra feita ou a ser feita constituir umbla-bla- bl desnecessrio, pois o que vale mesmo fazer. Na verdade, no. Nenhuma obra se achadesvinculada de a quem serve, de quanto custa e de quanto poderia custar de menos sem prejuzo de suaeficcia.Lidar com a cidade, com a plis, no uma questo apenas tcnica, mas sobretudo poltica. Como polticoe educador progressista continuarei minha luta de esclarecimento dos que- fazeres pblicos tanto quantocontinuo lutando contra a constatao absurda de muita gente: voto nele. Rouba, mas faz.Gostaria de sublinhar, na linha destas consideraes, que o exerccio constante da leitura do mundo,demandando necessariamente a compreenso crtica da realidade, envolve, de um lado, sua denncia, deoutro, o anncio do que ainda no existe. A experincia da leitura do mundo que o toma como um texto aser lido e reescrito no na verdade uma perda de tempo, um bla- bla- bl ideolgico, sacrificador dotempo que se deve usar, sofregamente, na transparncia ou na transmisso dos contedos, como dizemeducadores ou educadoras reacionariamente pragmticos. Pelo contrrio, feito com rigor metdico, aleitura do mundo que se funda na possibilidade que mulheres e homens ao longo da longa histria criaramde inteligir a concretude e de comunicar o inteligido se constitui como fator indiscutvel de aprimoramentoda linguagem. A prtica de constatar, de encontrar a ou as razoes de ser do constatado, a prtica dedenunciar a realidade constatada e de anunciar a sua superao, que fazem parte do processo da leiturado mundo, do lugar experincia da conjectura, da suposio, da opinio a que falta porm fundamentopreciso. Com a metodizao da curiosidade, a leitura do mundo pode ensejar a ultra- passagem da puraconjectura para o projeto de mundo. A presena maior de ingenuidade que caracteriza a curiosidade nomomento da conjectura vai cedendo o espao a uma inquieta e mais segura criticidade que possibilita asuperao da pura opinio ou da conjectura pelo projeto de mundo. O projeto a conjectura que se definecom clareza, o sonho possvel a ser viabilizado pela ao poltica.A leitura crtica do mundo um que- fazer pedaggico- poltico indicotomizvel do que- fazer poltico-pedaggico, isto , da ao poltica que envolve a organizao dos grupos e das classes populares paraintervir na reinveno da sociedade.A denncia e o anncio criticamente feitos no processo de leitura do mundo do origem ao sonho por quelutamos. Este sonho ou projeto que v sendo perfilado no processo da anlise crtica da realidade que aidenunciamos est para a prtica transformadora da sociedade como o desenho da pea que o operrio vaiproduzir e que tem em sua cabea antes de faz- la est para a produo da pea.Coerente com a minha posio democrtica estou convencido de que a discusso em torno do sonho oudo projeto de sociedade por que lutamos no privilgio das elites dominantes nem tampouco daslideranas dos partidos progressistas. Pelo contrrio, participar dos debates em torno do projeto diferentede mundo um direito das classes populares que no podem ser puramente guiadas ou empurradas ato sonho por suas lideranas.Com a inveno da existncia que mulheres e homens criaram com os materiais que a vida lhes ofereceu,se lhes tornou impossvel a presena no mundo sem a referncia a um amanha. A um amanh ou a umfuturo cuja forma de ser, porm, jamais inexorvel. Pelo contrrio, problemtica. Um amanh que noest dado de antemo. Preciso de lutar para t- lo. Mas preciso de ter dele tambm um desenho enquantoluto para constru- lo como o operrio precisa do desenho da mesa na cabea antes de produzi-la. Estedesenho o sonho por que luto. 21. Uma das primordiais tarefas da pedagogia crtica radical libertadora trabalhar a legitimidade do sonhotico- poltico da superao da realidade injusta. trabalhar a genuinidade desta luta e a possibilidade demudar, vale dizer, trabalhar contra a fora da ideologia fatalista dominante, que estimula a imobilidadedos oprimidos e sua acomodao realidade injusta, necessria ao movimento dos dominadores. defender uma prtica docente em que o ensino rigoroso dos contedos jamais se faa de forma fria,mecnica e mentirosamente neutra. neste sentido, entre out ros, que a pedagogia radical jamais pode fazer nenhuma concesso sartimanhas do pragmatismo neoliberal que reduz a prtica educativa ao treinamento tcnico- cientficodos educandos. Ao treinamento e no formao. A necessria formao tcnico- cientfica dos educandospor que se bate a pedagogia crtica no tem nada que ver com a estreiteza tecnicista e cientificista quecaracteriza o mero treinamento. por isso que o educador progressista, capaz e srio, no apenas deveensinar muito bem sua disciplina, mas desafiar o educando a pensar criticamente a realidade social,poltica e histrica em que uma presena. por isso que, ao ensinar com seriedade e rigor suadisciplina, o educador progressista no pode acomodar- se, desistente da luta, vencido pelo discursofatalista que aponta como nica sada histrica hoje a aceitao, tida como expresso da mente modernae no caipira do que a est porque o que est a o que deve estar.Obviamente o papel de uma educadora crtica, amorosa da liberdade, no impor ao educando o seugosto da liberdade, a sua radical recusa ordem desumanizante; no dizer que s existe uma forma deler o mundo, que a sua. O seu papel, contudo, no se encerra no ensino, no importa que o maiscompetente possvel, de sua disciplina. Ao testemunhar a seriedade com que trabalha, a rigorosidade ticano trato das pessoas e dos fatos, a professora progressista no pode silenciar ante a afirmao de que osfavelados so os grandes responsveis por sua misria; no pode silenciar em face do discurso que dizda impossibilidade de mudar o mundo porque a realidade assim mesmo.A professora progressista ensina os contedos de sua disciplina com rigor e com rigor cobra a produodos educandos, mas no esconde sua opo poltica na neutralidade impossvel de seu que- fazer.A educadora progressista no se permite a dvida em torno do direito, de um lado, que os meninos e asmeninas do povo tm de saber a mesma matemtica, a mesma fsica, a mesma biologia que os meninos eas meninas das zonas felizes da cidade aprendem mas, de outro, jamais aceita que o ensino de noimporta qual contedo possa dar-se alheado da anlise crtica de como funciona a sociedade.Ao sublinhar a importncia fundamental da cincia, a educadora progressis ta deve enfatizar tambm aosmeninos e s meninas pobres como aos ricos o dever que temos de permanentemente nos indagar emtorno de a favor de que e de quem fazemos cincia.Ajudar na elaborao do sonho de mudana do mundo como na sua concretizao, de forma sistemticaou assistemtica, na escola, como professor de matemtica, de biologia, de histria, de filosofia, deproblemas da linguagem, no importa de qu; em casa, como pai, ou como me, em nosso tratopermanente com filhas e filhos, em nossas relaes com auxiliares que conosco trabalham, tarefa demulheres e de homens progressistas. De homens e de mulheres que no apenas falam de democracia masa vivem, procurando faz- la cada vez melhor.Se somos progressistas, realmente abertos ao outro e outra, devemos nos esforar, com humildade,para diminuir, ao mximo, a distncia entre o que dizemos e o que fazemos.No podemos falar a nossos filhos ou em sua presena de um mundo melhor, menos injusto, maishumano e explorar quem trabalha conosco. Podemos s vezes pagar melhor salrio no entanto camos nacantilena hipcrita segundo a qual a realidade assim mesmo e que no sou eu s que salvarei omundo. preciso testemunhar a nossos filhos que possvel ser coerente, mais ainda, que ser coerente um finalde inteireza de nosso ser. Afinal a coerncia no um favor que fazemos aos outros, mas uma forma ticade nos comportar. Por isso, no sou coerente para ser compensado, elogiado, aplaudido.Posso at perder materialmente alguma coisa por ter sido coerente. Pouco importa. 22. Nem sempre fcil de ser assumida, a busca da coerncia educa a vontade, faculdade fundamental para onosso mover-nos no mundo. Com a vontade enfraquecida difcil decidir sem deciso no optamosentre uma coisa e outra, no rompemos.Me lembro de que nas duas ou trs vezes em que, ao longo de minha vida, pretendi deixar de fumar mefaltou o fundamental; a vontade firme com a qual decidir, romper entre fumar e no fumar. S quandorealmente imperou a vontade perseverante e assumi, com raiva do fumo, a deciso de j no fumar, melibertei do cigarro, sem artifcio nenhum chicletes ou bombons. E fumava, ento, trs maos de cigarropor dia.Em ltima anlise, me sentia demasiado incmodo vivendo a incoerncia entre falar e escrever em tornode uma pedagogia crtica, libertadora, que defende o exerccio da deciso enquanto posio de sujeito eno a postura acomodada de puro objeto e a minha submisso total ao cigarro. Em certo momento,passou a ser difcil conviver com o conhecimento de quanto o fumo me estava prejudicando sem que eume rebelasse contra ele. A raiva do fumo e a raiva de mim mesmo por tanta complacncia que tivera comele fortaleceram a minha vontade. Decidi, ento. Parei de fumar para sempre. Antes, porm, tossi umanoite inteira. Amanheci e era todo raiva. Raiva do cigarro. Raiva de mim. Acabou, disse, no fumo mais,olhando, com outros olhos, os maos que me sobrariam do cigarro ingls que costumava fumar.Nunca dera ateno a propsitos de abandonar o cigarro de forma programada: comear fumando apenasdez cigarros por dia e, num ritmo lento, ir diminuindo at parar. Nunca ensaiei nada parecido. Trateisempre, pelo contrrio, de fortalecer minha vontade. Quantas vezes, em conversa comigo mesmo,reconhecendo o quanto gostava de fumar, reconhecia tambm que precisava vencer o gosto de fumar. Aquesto que se colocava a mim no era a de me enganar, mas a de decidir, de optar entre manter o gostosuicida ou transformar o desgosto provisrio, decorrente de meu decidido no ao cigarro, na satisfaopor minha afirmao como vontade. A questo que se colocava no era a de esconder de mim, com falsosargumentos como: no paro de fumar simplesmente porque no quero, a minha prpria fraqueza. O quetinha de fazer era, pelo contrrio, assumi- la para poder venc- la. Ningum supera a fraqueza semreconhec- la. que a debilidade de nossa vontade revela a fora do vcio que nos domina. Mas h umaforma vencida de reconhecer a fragilidade: proclamar a invencibilidade da prpria fraqueza. ficar cadavez mais submisso ao poder que nos esmaga, o que afoga em ns a possibilidade da reao e da luta. por isso que uma das condies para a continuidade da briga contra o poder que nos domina reconhecer- nos perdendo a luta, m no vencidos. Era disso que precisava. Obviamente algo no fcil deasser feito. Se exercer a vontade na luta contra o que nos ameaa e oprime fosse coisa que se fizesse sempertinaz trabalho e sem notvel sacrifcio, a luta contra qualquer tipo de opresso seria bem mais simples.Percebe-se facilmente a importncia da vontade compondo um tecido complexo com a resistncia, com arebeldia na confrontao ou na luta contra o inimigo que, s vezes, mais do que nos espreita, nos domina.Seja este inimigo o fumo, o lcool, a cocana, a maconha, o crack ou a explorao capitalista, de que aideologia fatalista embutida no discurso neoliberal um eficaz instrumento dominante. A ideologia quefala, em face das injustias sociais, de que a realidade assim mesmo, de que as injustias so umafatalidade contra que nada se pode fazer solapa e fragiliza o nimo necessrio para a briga como asdrogas, no importa qual delas, destruindo a resistncia do viciado ou da viciada, os deixam prostrados eindefesos.Com a vontade enfraquecida, a resistncia frgil, a identidade posta em dvida, a auto- estimaesfarrapada, no se pode lutar. Desta forma, no se luta contra a explorao das classes dominantescomo no se luta contra o poder do lcool, do fumo ou da maconha. Com no se pode lutar, por faltar ocoragem, vontade, rebeldia, se no se tem amanh, se no se tem esperana. Falta amanh aosesfarrapados do mundo como falta amanh aos subjugados pelas drogas.Por isso que toda prtica educativa libertadora, valorizando o exerccio da vontade, da deciso, daresistncia, da escolha; o papel das emoes, dos sentimentos, dos desejos, dos limites; a importncia daconscincia na histria, o sentido tico da presena humana no mundo, a compreenso da histria comopossibilidade jamais como determinao, substantivamente esperanosa e, por isso mesmo,provocadora da esperana.Um dos meus sonhos ao escrever estas cartas pedaggicas se no os tivesse no haveria por queescrev-las desafiar- nos, pais e mes, professoras e professores, operrios, estudantes, a refletir 23. sobre o papel que temos e a responsabilidade de assumi - lo bem, na construo e no aperfeioamento dademocracia entre ns. No de uma democracia que aprofunda as desigualdades, puramente convencional,que fortifica o poder dos poderosos, que assiste de braos cruzados aviltao e ao destrato dos humildese que acalenta a impunidade. No de uma democracia cujo sonho de Estado, dito liberal, o Estado quemaximiza a liberdade dos fortes para acumular capital em face da pobreza e s vezes da misria dasmaiorias, mas de uma democracia de que o Estado, recusando posies licenciosas ou autoritrias erespeitando realmente a liberdade dos cidados, no abdica de seu papel regula - dor das relaes sociais.Intervm, portanto, democraticamente, enquanto responsvel pelo desenvolvimento da solidariedadesocial.Precisamos de uma democracia que, fiel natureza humana que tanto nos fez capazes de eticizar omundo quanto de transgredir a tica, estabelea limites capacidade de malquerer de homens emulheres.No creio na democracia puramente formal que lava as mos em face das relaes entre quem pode equem no pode porque j foi dito que todos so iguais perante a lei. Mais do que dizer ou escrever isto, preciso fazer isto. Em outras palavras, a frase se esvazia se a prtica prova o contrrio do que nela estdeclarado. Lavar as mos diante das relaes entre os poderosos e os desprovidos de poder s porque jfoi dito que todos so iguais perante a lei reforar o poder dos poderosos. imprescindvel que oEstado assegure verdadeiramente que todos so iguais perante a lei e que o faa de tal maneira que oexerccio deste direito vire uma obviedade.O que me parece impossvel aceitar uma democracia fundada na tica do mercado que, malvada e s sedeixando excitar pelo lucro, inviabiliza a prpria democracia.O que me parece impossvel aceitar no haver outro caminho para as economias frgeis senoacomodar- se, pacientemente, ao controle e aos dit ames do poder globalizante. Poder ante o qual no hcomo no nos curvar fatalistamente, de braos cruzados, estupefatos ou conformados. O que me pareceimpossvel silenciar diante desta expresso ps- moderna de autoritarismo. O que me parece impossvel aceitar docilmente que o mundo mudou radical e repentinamente, da noite para o dia, fazendo sumir asclasses sociais, esquerda e direita, dominadores e dominados, acabando com as ideologias e tornandotudo mais ou menos igual. J no me parece impossvel, porm, respeitar o direito de quem pensa oupassou a pensar assim. Veementemente, contudo, recuso aceitar que eu j era porque continuoreconhecendo a existncia das classes sociais, porque nego a ideologia da despolitizao da administraopblica, embutida na chamada poltica de resultados, porque afirmo a fora das ideologias.Estas cartas pedaggicas expressam mais um momento da luta em que me empenho como educador,portanto, como poltico tambm, com raiva, com amor, com esperana, em favor do sonho de um Brasilmais justo.Sou dos que se exigem de si mesmos o cumprimento de tarefas entre as quais a de tornar algumas delaspossveis, quando delas se fala como inviveis. Como educa- dor, mas tambm como quem se d aoexerccio crtico e permanent e de pensar a prpria prtica para teoriz- la, isto o que venho fazendo aolongo de minha experincia profissional. isto o que venho aprendendo a fazer e, quanto mais aprendo,mais prazer me d assumir-me como tarefeiro. Rigorosamente, a importncia de nossas tarefas tem quever com a seriedade com que levamos a cabo, com o respeito que temos ao execut- ias, com o respeitoaos outros em favor de quem as exercemos, com a lealdade ao sonho que elas encarnam. Tem que vercom o sentido tico de que as tarefas devem molhar- se com a competncia com que asdesempenhamos, com o equilbrio emocional com que as efetivamos e com o brio com que por elasbrigamos.Nunca me esqueo das consideraes que um alfabetizando fez, em Natal, Rio Grande do Norte, em 1963,durante as discusses num Crculo de Cultura. Debatia - se exatamente este tema a importncia dastarefas a serem cumpridas por ns, mulheres e homens, na histria. Vejo agora, disse ele, como secomeasse a se libertar da desvalia com que se percebia a si mesmo, enquanto sapateiro, em sua oficinaprecria na esquina da rua que o meu ofcio de consertar solas de sapatos tambm muito valoroso.Devolvo, com o meu trabalho, a quem me traz um sapato estragado, um outro quase novo. Defendo osps das pessoas que ainda por cima gastam menos botando meia sola no sapato do que se tivessem decomprar outro novo. Tenho de brigar pela dignidade de meu trabalho e no me envergonhar por causa 24. dele. O que fao diferente do que faz o doutor que tem consultrio do outro lado da rua onde tenhominha tenda. diferente, mas importante tambm.Aquele homem que aprendia a escrever e a ler sentenas e palavras re- lia o mundo e, ao faz-lo,percebia o que antes, na leitura anterior do mundo, no havia captado. A re- leitura em que se engajava,enquanto se alfabetizava, re - fazia a estima de si mesmo, elaborada desde o ponto de vista da ideologiadominante que, inferiorizando o trabalho do dependente, intensifica sua subordinao ao poder. Aquelehomem, na verdade, se alfabetizava, no sentido amplo e profundo que h tanto tempo defendo. Ele noapenas lia mecanicamente sentenas e palavras, se assumia como tarefeiro.[Paulo escreveu esta carta em janeiro de 1997. Estvamos em nosso apartamento na praia de Piedade,em Jaboato dos Guararapes, no mesmo municpio em que ele tinha passado o seu segundo exlio. Diziaassim referindo-se ao perodo em que sua famlia fugiu de Recife, entre os anos de 1932 e 1941. Oprimeiro exlio teria sido o tempo de sua gestao no tero da sua me e o terceiro o imposto pelosgovernos militares, entre 1964 e 1980, quando viveu na Bolvia, Chile, EUA e Sua.Ele recordando, em 1997, criticamente, os tempos de sua adolescncia, na parte pobre e feia de Jaboato,re-viu-se por inteiro, enquanto pessoa e enquanto pensador. Analisou o seu percurso enquanto pai e pelaprimeira vez escreveu sobre a educao sob este ponto de vista. Falou tambm da educao das crianasde modo geral. Discutimos as dificuldades de vivermos a tenso licenciosidade e autoritarismo, liberdade eautoridade como possibilidades do ato de educar nossos filhos. Paulo tinha conscincia clara quanto aosriscos das opes que tornara neste processo mais pessoal dele, mas ao mesmo tempo uma crena noexemplo atravs da coerncia, da justia e do respeito aos outros e s outras.Nessa temporada sentia sua sade abalada por um cansao do qual queria se ver livre atravs de nossascaminhadas nas areias da praia, diariamente, no nascer das manhs. Anotava, diariamente, numa brancae pequena ficha de leitura o tempo dedicado a esse exerccio: dos iniciais 15 minutos at os 55. Falavaorgulhoso aos amigos desta sua faanha. Queria acreditar estar limpando seus pulmes dos quase 40anos nos quais fumara trs maos por dia. Na verdade, lembro-me, acendia um cigarro no outro atque, em Portugal, j nos fins dos anos 70, em casa de um casal de amigos, como narra na Carta, deixou-os, o casal e a Elza, por toda uma noite sem dormir. Aquela tosse que s a nicotina, mrbida e lentamentesabe produzir, anunciando o tempo de vida, sem levar em considerao a vontade de quem fuma deviver. Submisso que tinha feito Paulo conhecer o que avareza nos seus tempos de frica, poisguardava consigo, sofregamente, escondidos na sua mala os pacotes que levava sempre nestas viagens.Esse foi um dos termmetros que usou para medir a sua dependncia ao cigarro. E se envergonhavadisso... O ato de fumar em Paulo foi o nico do qual dizia ter-se arrependido. Entendia sempre que fizeratudo na sua vida dentro da tica e das possibilidades histricas pessoais e sociais , mas nunca seperdoou por ter fumado.Hoje vejo que este rever-se era um rever-se na sua totalidade. Revendo, analisando e discutindo a suavida, re-fazia a sua inteligncia de educador na histria. Reconstrua um modo novo de ler o mundo.Assim, mais do que relembrar, do que perceber-se nas suas limitaes histricas, do que saber-se e ver-se como um homem que amava com tolerncia, que procurou obstinadamente aperfeioar as suasvirtudes de homem e de educador poltico, inseriu-se com mais radicalidade na postura epistemolgica daps-modernidade progressista, na qual j o podamos incluir, sobretudo a partir da Pedagogia daesperana.] 25. Segunda carta Do direito e do deverde mudar o mundoSe algum, ao ler este texto, me perguntar, com irnico sorriso, se acho que, para mudar o Brasil, bastaque nos entreguemos ao cansao de constantemente afirmar que mudar possvel e que os sereshumanos no so puros espectadores, mas atores tambm da histria, direi que no. Mas direi tambmque mudar implica saber que faz- lo possvel. certo que mulheres e homens podem mudar o mundo para melhor, para faz- lo menos injusto, mas apartir da realidade concreta a que chegam em sua gerao. E no fundadas ou fundados em devaneios,falsos sonhos sem razes, puras iluses.O que no porm possvel sequer pensar em trans- formar o mundo sem sonho, sem utopia ou semprojeto. As puras iluses so os sonhos falsos de quem, no importa que pleno ou plena e boas intenes,faz a proposta de quimeras que, por isso mesmo, no podem realizar- se. A transformao do mundonecessita tanto do sonho quanto a indispensvel autenticidade deste depende da lealdade de quem sonhas condies histricas, mat eriais, aos nveis de desenvolvimento tecnolgico, cientfico do contexto dosonhador. Os sonhos so projetos pelos quais se luta. Sua realizao no se verifica facilmente, semobstculos. Implica, pelo contrrio, avanos, recuos, marchas s vezes demoradas. Implica luta. Naverdade, a transformao do mundo a que o sonho aspira um ato poltico e seria uma ingenuidade nore- conhecer que os sonhos tm seus contra-sonhos. que o momento de que uma gerao faz parte,porque histrico, revela marcas antigas que envolvem compreenses da realidade, interesses de grupos,de classes, preconceitos, gestao de ideologias que se vm perpetuando em contradio com aspectosmais modernos. No h hoje, por isso mesmo, que no tenha presenas que, de h muito, perduram noclima cultural que caracteriza a atualidade concreta. Da a natureza contraditria e processual de todarealidade. Neste sentido to atual o mpeto de rebeldia contra a agressiva injustia que caracteriza aposse da terra entre ns, de maneira eloqente encarnado pelo movimento dos trabalhadores sem- terraquanto a reao indecorosa dos latifundistas, muito mais amparados, obviamente, por uma legislao aservio preponderantemente de seus interesses, a qualquer reforma agrria, por mais tmida que seja. Aluta pela reforma agrria representa o avano necessrio a que se ope o atraso imobilizador doconservadorismo. Mas o que preciso deixar claro que o atraso imobilizador no um estranho realidade. No h atualidade que no seja palco de confrontaes entre foras que reagem ao avano eforas que por ele se batem. neste sentido que se acham contraditoriamente presentes em nossaatualidade fortes marcas do nosso passado colonial, escravocrata, obstaculizando avanos damodernidade. So marcas de um passado que, incapaz de perdurar por muito mais tempo, insiste emprolongar sua presena em prejuzo da mudana.Precisamente porque a reao imobilizante faz parte da atualidade que ela, de um lado, tem eficcia, deoutro, pode ser contestada. A luta ideolgica, poltica, pedaggica e tica a lhe ser dada por quem seposiciona numa opo progressista no escolhe lugar nem hora. Tanto se verifica em casa, nas relaespais, mes, filhos, filhas, quanto na escola, no importa o seu grau, ou nas relaes de trabalho. Ofundamental, se sou coerentemente progressista, testemunhar, como pai, como professor, comoempregador, como empregado, como jornalista, como soldado, cientista, pesquisador ou artista, comomulher, me ou filha, pouco importa, o meu respeito dignidade do outro ou da outra. Ao seu direito deser em relao com o seu direito de ter.Possivelmente, um dos saberes fundamentais mais requeridos para o exerccio de um tal testemunho oque se expressa na certeza de que mudar difcil, mas possvel. o que nos faz recusar qualquerposio fatalista que empresta a este ou quele fator condicionante um poder determinante, diante doqual nada se pode fazer.Por grande que seja a fora condicionante da economia sobre o nosso comportamento individual e social,no posso aceitar a minha total passividade perante ela. Na medida em que aceitamos que a economia oua tecnologia ou a cincia, pouco importa, exerce sobre ns um poder irrecorrvel no temos outro caminhoseno renunciar nossa capacidade de pensar, de conjecturar, de comparar, de escolher, de decidir, deprojetar, de sonhar. Reduzida ao de viabilizar o j determinado a poltica perde o sentido da luta pela 26. concretizao de sonhos diferentes. Esgota- se a eticidade de nossa presena no mundo. neste sentidoque, reconhecendo embora a in-discutvel importncia da forma como a sociedade organiza sua produopara entender como estamos sendo, no me possvel, pelo menos a mim, desconhecer ou minimizar acapacidade reflexiva, d ecisria, do ser humano. O fato mesmo de se ter ele tornado apto a reconhecerquo condicionado ou influenciado pelas estruturas econmicas o fez tambm capaz de intervir narealidade condicionante. Quer dizer, saber- se condicionado e no fatalistamente submetido a este ouquele destino abre o caminho sua interveno no mundo. O contrrio da interveno a adequao, aacomodao ou a pura adaptao realidade que no assim contestada. neste sentido que entre ns,mulheres e homens, a adaptao um momento apenas do processo de interveno no mundo. nissoque se funda a diferena primordial entre condicionamento e determinao. S possvel, inclusive, falarem tica se h escolha que advm da capacidade de comparar, se h responsabilidade assumida. porestas mesmas razes que nego a desproblematizao do futuro a que sempre fao referncia e queimplica sua inexorabilidade. A desproblematizao do futuro, numa compreenso mecanicista da histria,de direita ou de esquerda, leva necessariamente morte ou negao autoritria do sonho, da utopia, daesperana. que, na inteligncia mecanicista, portanto determinista da histria o futuro j sabido. Aluta por um futuro j conhecido a priori prescinde de esperana. A desproblematizao do futuro, noimporta em nome de que, uma ruptura com a natureza humana, social e historicamente constituindo- se.O futuro no nos faz. Ns que nos refazemos na luta para faz- lo.Mecanicistas e humanistas reconhecem o poder da economia globalizada hoje. Enquanto, porm, para osprimeiros nada h o que fazer em face de sua fora intocvel, para os segundos no apenas possvel,mas se deve lutar contra a robustez do poder dos poderosos que a globalizao intensificou ao mesmotempo que debilitou a fraqueza dos frgeis.Se as estruturas econmicas, na verdade, me dominam de maneira to senhorial, se, moldando meupensar, me fazem objeto dcil de sua fora, como explicar a luta poltica, mas, sobretudo, como faz- la eem nome de qu? Para mim, em nome da tica, obviamente, no da tica do mercado, mas da ticauniversal do ser humano,1 para mim, em nome da necessria transformao da sociedade de que decorraa superao das injustias desumanizantes. E tudo isso porque, condicionado pelas estruturaseconmicas, no sou, porm, por elas determinado. Se no possvel desconhecer, de um lado, que nascondies materiais da sociedade que se gestam a luta e as transformaes polticas, no possvel, deoutro, negar a importncia fundamental da subjetividade na histria. Nem a subjetividade faz,todopoderosamente, a objetividade nem esta perfila, inapelavelmente, a subjetividade. Para mim, no possvel falar de subjetividade a no ser se compreendida em sua dialtica relao com a objetividade.No h subjetividade na hipertrofia que a torna como fazedora da objetividade nem tampouco naminimizao que a entende como puro reflexo da objetividade. neste sentido que s falo emsubjetividade entre os seres que, inacabados, se tornaram capazes de saber- se inacabados, entre os seresque se fizeram aptos de ir mais alm da determinao, reduzida, assim, a condicionamento e que,assumindo- se como objetos, porque condicionados, puderam arriscar- se como sujeitos, porque nodeterminados. No h, por isso mesmo, como falar- se em subjetividade nas compreenses objetivistasmecanicistas nem tampouco nas subjetivistas da histria. S na histria como possibilidade e no comodeterminao se percebe e se vive a subjetividade em sua dialtica relao com a objetividade. percebendo e vivendo a histria como possibilidade que experimento plenamente a capacidade decomparar, de ajuizar, de escolher, de decidir, de romper. E assim que mulheres e homens eticizam omundo, podendo, por outro lado, tornar- se transgressores da prpria tica.A escolha e a deciso, atos de sujeito, de que no podemos falar numa concepo mecanicista da histria,de direita ou de esquerda, e sim na sua inteligncia como tempo de possibilidade, necessariamentesublinham a importncia da educao. Da educao que, no podendo jamais ser neutra, tanto pode estara servio da deciso, da transformao do mundo, da insero crtica nele, quanto a servio daimobilizao, da permanncia possvel das estruturas injustas, da acomodao dos seres humanos realidade tida como intocvel. Por isso, falo da educao ou da formao. Nunca do puro treinamento. Porisso, no s falo e defendo mas vivo uma prtica educativa radical, estimuladora da curiosidade crtica, procura sempre da ou das razes de ser dos fatos. E compreendendo facilmente como uma tal prtica nopode ser aceita, pelo contrrio, tem de ser recusada, por quem tem, na maior ou menor permanncia do1Ver Paulo Freire, Pedagogia da autonomia. Saberes necessrios prtica educativa, op. cit. 27. status quo, a defesa de seus interesses. Ou por quem, atrelado aos interesses dos poderosos, a eles ouelas serve. Mas, porque, reconhecendo os limites da educao, formal e informal, reconheo tambm asua fora, assim como porque constato a possibilidade que tm os seres humanos de assumir tarefashistricas, que volto a escrever sobre certos compromissos e deveres que no podemos deixar de contrairse nossa opo progressista. O dever, por exemplo, de, em nenhuma circunstncia, aceitar ou estimularposturas fatalistas. O dever de recusar, por isso mesmo, afirmaes como: uma pena que haja tantagente com fome entre ns, mas a realidade assim mesmo. O desemprego uma fatalidade do fim dosculo. Galho que nasce torto, torto se conserva. O nosso testemunho, pelo contrrio, se somosprogressistas, se sonhamos com uma sociedade menos agressiva, menos injusta, menos violenta, maishumana, deve ser o de quem, dizendo no a qualquer possibilidade em face dos fatos, defende acapacidade do ser humano de avaliar, de comparar, de escolher, de decidir e, finalmente, de intervir nomundo.As crianas precisam crescer no exerccio desta capa- cidade de pensar, de indagar- se e de indagar, deduvidar, de experimentar hipteses de ao, de programar e de no apenas seguir os programas a elas,mais do que propostos, impostos. As crianas precisam de ter assegurado o direito de aprender a decidir,o que se faz decidindo. Se as liberdades no se constituem entregues a si mesmas, mas na assuno ticade necessrios limites, a assuno tica desses limites no se faz sem riscos a serem corridos por elas epela autoridade ou autoridades com que dialeticamente se relacionam.Recentemente participei de perto da frustrao bem tratada de uma av, minha mulher, que passaravrios dias cuidando de sua alegria, a de ter consigo, em casa, Marina, a neta bem-amada. Na vspera dodia esperado, a av foi cientificada por seu filho que sua neta j no viria. Programara com amigas davizinhana uma reunio para a criao de um clube de diverses e esportes.Programando, a neta est aprendendo a programar e a av no se sentiu negada ou mal querida porque adeciso da neta, com que est aprendendo a decidir, no correspondia a seu desejo.Seria uma lstima se a av, fazendo beicinho, expressasse um desconforto indevido em face da decisolegtima de sua neta ou que seu pai, revelando insatisfao, tentasse, autoritariamente, impor filha quefizesse o que no queria. Isto no significa, por outro lado, que, no aprendizado de sua autonomia, acriana em geral, a neta, no caso, no aprenda tambm que preciso, s vezes, sem nenhum desrespeito sua autonomia, atender expectativa do outro. Mais ainda, necessrio que a criana aprenda que asua autonomia s se autentica no acata- mento autonomia dos outros.A tarefa progressista assim estimular e possibilitar, nas circunstncias mais diferentes, a capacidade deinterveno no mundo, jamais o seu contrrio, o cruzamento de braos em face dos desafios. claro eimperioso, porm, que o meu testemunho antifatalista e que a minha defesa da interveno no mundojamais me tornem um voluntarista inconseqente, que no leva em considerao a existncia e a forados condicionamentos. Recusar a determinao no significa negar os condicionamentos.Em ltima anlise, se progressista coerente, devo permanentemente testemunhar aos filhos, aos alunos,s filhas, aos amigos, a quem quer que seja a minha certeza de que os fatos sociais econmicos,histricos ou no se do desta ou daquela maneira porque assim teriam de dar-se. Mais ainda, que no seacham imunes de nossa ao sobre eles. No somos apenas objetos de sua vontade, a eles adaptando-nos mas sujeitos histricos tambm, lutando por outra vontade diferente: a de mudar o mundo, noimportando que esta briga dure um tempo to prolongado que, s vezes, nela sucumbam geraes.O Movimento dos Sem-Terra, to tico e pedaggico quanto cheio de boniteza, no comeou agora, nemh dez ou quinze, ou vinte anos. Suas razes mais remotas se acham na rebeldia dos quilombos e, maisrecentemente, na bravura de seus companheiros das