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São Paulo, ano I, n. 02, MaI./aGo. de 2014

O ser humano é um capital que pode ser gerido?

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O capital humano: um olhar baseado no budismo de Nitiren Daishonin

Luiz dos Santos Vieira Marques1

Introdução

Estabelecer relação entre o conceito de capital humano e o resultado de

sua aplicação, à luz dos ensinamentos do budismo, na visão de Nitiren Daisho-

nin, monge do século XIII, do Japão, é a tarefa que se propõe neste artigo.

Como ponto de partida, coloca-se a indagação: “É possível falar de um

capital humano que possa ser gerido?”.

O capital humano é uma teoria construída no início do século XX, em

estreita articulação com os projetos desenvolvimentistas implementados

por governos de diversos países.

O conceito de capital humano

Segundo Theodore W. Schultz [1976], foi o economista americano Ir-

ving Fisher quem estabeleceu a base lógica de um conceito de capital que

abrange todos os aspectos, entre os quais se encontra o capital humano.

Para Irving Fisher, capital são todas as fontes de fluxos de renda. Entre

essas fontes se encontram não só suas formas tangíveis – os recursos na-

turais e os bens e mercadorias reproduzíveis de produção e consumo –,

assim como suas formas humanas: as capacidades herdadas ou adquiridas

dos produtos e consumidores.

Depois de permanecer num certo limbo por muito tempo, suplantada

por outras, a teoria do capital humano ressurgiu com novas feições nas úl-

1 Filósofo, sociólogo, mestre em Letras, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais.

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timas décadas, trazendo consigo o substrato que dá sustentação à produ-

ção flexível, às recomendações de eficiência e produtividade que compõem

o referencial neoliberal.

A teoria do capital humano no Brasil

A teoria do capital humano torna-se mais presente no Brasil por meio

do livro de Schultz, intitulado O valor econômico da educação, publicado

em 1962.

A escola, no Brasil, passou a ser estruturada para atender aos princí-

pios do capital:

[...] processos de subjetivação, no plano cultural, social, polí-

tico e também psicológico, culminavam na domesticação do

trabalhador. A política econômica orientada pela capital inter-

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nacional produz a ideia que a qualificação de capital humano,

a partir das instituições escolares, era a garantia de ascensão

social (SILVA, 2006, p. 38-39).

Assim, na constatação do próprio Schultz, a educação tornou-se a

grande aliada do capital, no que tange ao planejamento econômico, alicer-

ce para a formação do capital:

[...] o esclarecimento do conceito de capital humano e a sua

identificação mobilizaram as coisas para uma especificação

mais completa de mensuração e acumulação de capital mo-

derno. Fez, também, com que nos tornássemos mais cons-

cientes das mudanças que se registraram na qualidade do ca-

pital material. Desta forma, o fato de tratar a educação como

capital humano nada mais é senão um passo rumo a uma

captação consciente de todo o capital(SHULTZ, 1973, p. 130).

No mundo globalizado de hoje, onde prevalece o niilismo ético, os cír-

culos de RH identificam capital humano à pessoa em si. Os empregados

são apenas ativo de capital, recurso que pertence à empresa e de quem se

pode exigir toda a capacidade e comprometimento.

Esta visão constitui-se em um dos aspectos da perversidade da globa-

lização (SANTOS, 2001).

A GLOBALIZAÇÃO COMO PERVERSIDADE - De fato, para a

grande maior parte da humanidade a globalização está se im-

pondo como uma fábrica de perversidades. O desemprego cres-

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cente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias

perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar.

A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes.

Novas enfermidades como a SIDA se instalam, velhas doenças,

supostamente extirpadas, fazem seu retorno triunfal. A morta-

lidade infantil permanece, a despeito dos progressos médicos e

da informação. A educação de qualidade é cada vez mais inaces-

sível. Alastram-se e aprofundam-se males espirituais e morais,

como os egoísmos, os cinismos, a corrupção (SANTOS, 2001).

Para Ernesto Sabato [1911-2011], até as realizações da ciência, hoje,

são alheias às preocupações éticas:

[...] E assim aprendemos brutalmente uma verdade que deví-

amos ter previsto, dada a essência amoral do conhecimento

científico: que a ciência não é por si mesma garantia de nada,

porque a suas realizações são alheias as preocupações éticas

(SABATO, 2006, p. 16-17)

O budismo Mahayana

Considerado “a derradeira emancipação da dualidade”, o budismo é

reconhecido como uma das cinco grandes religiões consideradas mundiais.

Em suas principais formas históricas, o budismo é centrado em três verten-

tes: Theravada (doutrina dos anciões), localizado em terras do Sudeste Asiático,

sobretudo no Ceilão, Birmânia, Tailândia, Laos, Vietnã e Camboja; Mahayana

(grande veículo), no Nepal, Siquim, China, Coreia e Japão; e Tentrayana (veícu-

lo esotérico) que prevaleceu, outrora, no Tibet, Mongólia e partes da Sibéria.

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A escola fundamentada no pensamento de Nitiren Daishonin integra-

se à vertente Mahayana e tem, na Soka Gakkai Internacional – SGI, lide-

rada pelo dr. Daisaku Ikeda [1928-], seu principal veículo de propagação,

presente em mais de 190 países, inclusive no Brasil, com a BSGI – Associa-

ção Brasil Soka Gakkai Internacional.

O budismo baseado no pensamento de Nitiren Daishonin reverencia,

acima de tudo, a dignidade da vida. O ponto de partida e, ao mesmo tem-

po, de chegada, encontra-se na tese de Nitiren, “estabelecer o ensinamen-

to correto para a pacificação da Terra”.

O dr. Daisaku Ikeda (2012) faz uma leitura atual dessa escritura, nela

distinguindo três aspectos que considera especiais: “a posição filosófica

de que o bem-estar e a segurança dos cidadãos comuns devem ser prio-

ridades do Estado; o seu pedido pelo estabelecimento de uma concepção

de mundo enraizada no sentido vital da nossa interconexão; e o empode-

ramento: quando numa situação difícil, por meio do diálogo, incentivamos

outra pessoa a manifestar o seu poder inerente para mudar a realidade”.

O papel das religiões no século XXI

Para Hans Kung (1990),

É certo, as religiões sucumbiram sempre, e sucumbem ain-

da, à tentação de girar apenas em torno de si mesmas

para preservar o poder das suas constituições e hierar-

quias. E, todavia, têm o poder de fazer-nos crer, onde as-

sim o entendem, e com uma força moral bem diversa de

outras organizações internacionais, que o seu objetivo é

a felicidade e o bem-estar dos indivíduos. Pois todas as

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grandes religiões proporcionam, com o peso de sua auto-

ridade, uma orientação religiosa de base – apoio, auxílio

e esperança em face da mecânica própria das instituições

humanas, dos interesses específicos dos diferentes indiví-

duos e grupos e da sobreinformação veiculada pelos me-

dia (KUNG, 1990, p. 106-107).

As grandes religiões, disseminadas por toda parte, elegeram o bem-

estar e o destino da humanidade como princípio fundamental e objetivo

das ações humanas no âmbito do ethos humano.

Para Hans Kung, a dignidade, a liberdade e os direitos humanos não

só podem ser positivamente estatuídos, mas também fundamentados por

significado profundo e último, ou seja, religioso.

Adverte, no entanto, Daisaku Ikeda, em sua Proposta de Paz de 1999 :

A busca de si mesmo é um empreendimento humano fun-

damental, mas deve ser perseguida com a máxima cautela,

evitando armadilhas que jamais imaginamos mas que podem

parecer antes de o verdadeiro eu ser alcançado.

O fundamental é que o nosso mundo é dominado pelo que o

budismo considera como os três venenos: avareza, ira e estu-

pidez. Enquanto continuarmos vagando pela escuridão da es-

tupidez seremos incapazes de descobrir a luz que nos conduz

à saída da crise (IKEDA, 1999)

É da essência do budismo a ausência de exclusivismo, de fanatismo

ou de fundamentalismo baseado ou não em critério de verdade.Em qual-

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quer das suas vertentes ou escolas de pensamento, a prática budista tem

como finalidade a superação da dor e da infelicidade humanas:

O objetivo básico do budismo, diz Nhat Hanh, surge da própria ex-

periência humana – a experiência do sofrimento – e busca oferecer uma

resposta realista às questões mais urgentes do homem: como enfrentar o

sofrimento. O problema do sofrimento humano será insolúvel enquanto

os homens forem impedidos por suas ilusões individuais e coletivas de

lutar diretamente com o sofrimento em sua raiz dentro deles mesmos

(MERTON, 2006).

Conclusão

Considerar seres humanos como ativo do capital, portanto, fere de

morte a dignidade humana.

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A educação, na perspectiva do pensamento de Nitiren Daishonin, atu-

alizado por Daisaku Ikeda (2010, p. 89), fundamenta-se nos princípios da

sabedoria, coragem e benevolência:

Sabedoria para perceber a inter-relação de todos os tipos de

vida e ambiente.

Coragem para não temer nem negar diferenças, mas para res-

peitar e se esforçar para compreender pessoas de diferentes

culturas e crescer por meio desses contatos.

Benevolência para cultivar uma empatia imaginativa que al-

cance além do ambiente que nos cerca e se estenda a outras

pessoas que sofrem em lugares distantes.

Jamais no objetivo exclusivo de ampliar a capacidade de produzir, como

preconiza a teoria do capital humano.

Sem esta fundamentação ética, a educação, voltada apenas para aten-

der a interesses econômicos, constitui-se em uma bolha de realidade, inútil

configuração de energia, que não contribui, efetivamente, para a dignida-

de humana, para o bem-estar e a felicidade das pessoas.

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