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  • A crise mundial

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    Poltica DemocrticaRevista de Poltica e Culturawww.politicademocratica.com.br

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    Conselho Editorial

    Poltica Democrtica Revista de Poltica e Cultura Braslia/DF: Fundao Astrojildo Pereira, 2011.No 31, novembro/2011200 p.

    1. Poltica. 2. Cultura. I. Fundao Astrojildo Pereira. II. Ttulo.

    CDU 32.008.1 (05)

    Ficha catalogrfica

    Ailton BeneditoAlberto Passos Guimares FilhoAmarlio Ferreira Jr.Amilcar BaiardiAna Amlia MelloAntonio Carlos MximoArmnio GuedesArtur Jos PoernerAspsia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCcero Pricles de CarvalhoDimas MacedoDiogo Tourino de SousaFabrcio MacielFernando de la CuadraFernando PerlattoFlvio KotheFrancisco Fausto Mato GrossoFrancisco Jos Pereira

    Gilson LeoGilvan CavalcantiHamilton GarciaJos Antonio SegattoJos Carlos CapinamJos Cludio BarriguelliJos Monserrat FilhoLuiz Carlos AzedoLuiz Carlos Bresser-PereiraLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Mrio GazzaneoLuiz Werneck ViannaMarco Aurlio NogueiraMarco MondainiMaria Alice RezendeMarisa BittarMartin Czar FeijMilton LahuertaOscar DAlva e Souza FilhoOthon Jambeiro

    Osvaldo Evandro Carneiro MartinsPaulo Afonso Francisco de CarvalhoPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo Csar NascimentoPaulo Fbio Dantas NetoPedro Vicente Costa SobrinhoRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhoRubem BarbozaSergio Augusto de MoraesSrgio BessermannSinclair Mallet Guy GuerraSocorro FerrazTelma LoboUlrich HoffmannWashington BonfimWillame JansenWilliam (Billy) MelloWillis Santiago Guerra FilhoZander Navarro

  • Poltica DemocrticaRevista de Poltica e CulturaFundao Astrojildo Pereira

    Novembro/2011

    A crise mundial

  • Sobre a capa

    J Oliveira

    J Oliveira (Josimar Fernandes de Oliveira) a quem homenagea-mos nesta edio , nascido na Ilha de Itamarac/PE, um artista mltiplo, como podemos observar nestes seus trabalhos. Estudou Ar-tes Grficas na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro e, por seus mritos e perseverana, conseguiu uma bolsa para estudar Programa-o Visual na Escola Hngara de Artes de Budapeste. Mas no se tornou um artista europeu. Desde ento, sempre ligado s suas ori-gens nordestinas, tem-se dedicado incansavelmente a produzir beleza e emoo, em livros, cartazes, quadrinhos e selos. Revaloriza a hist-ria do Brasil e seus personagens, os ndios, nossa ligao com a frica, a paisagem tropical, a fauna, a flora, o folclore, as lendas, as danas e folguedos, as festas populares.

    Como o estilo uma escolha, seu trao, quase sempre figurativo e narrativo, ligado regio que lhe serviu de bero, o Nordeste, que lhe alimenta sua rica inspirao. da feira, dos entalhadores, dos gravadores, dos santeiros, dos pintores primitivos, dos desenhistas ingnuos, das bordadeiras, das rendeiras, dos teceles, dos cestei-ros, dos carranqueiros, dos ceramistas, dos bonequeiros, dos folhe-tos de cordel, da paisagem tropical que vm a fora e o equilbrio de seu desenho, pleno de energia e vitalidade. Suas cores fortes evocam o aroma do Nordeste litorneo: manga, jaca, sapoti, caj, caju, aba-caxi, banana, laranja, graviola, pitomba, pitanga, umbu, cco, milho, maracuj, mamo...

    Jornalista, ilustrador, ex-professor de Artes do Instituto de Artes da Universidade de Braslia e tcnico em Comunicao Visual, J tem diversas histrias em quadrinhos e mais de 20 livros publicados no Brasil e no exterior (Itlia, Grcia e Argentina, entre outros). Com a ilustrao de Alice no Pas das Maravilhas, recebeu na 58 Bienal In-ternacional do Livro de So Paulo (1998) o Certificado de Altamente Recomendvel da Fundao Nacional do Livro Infantil e Juvenil. So dele tambm as ilustraes para centenas de selos da Empresa dos Correios e Telgrafos (ECT).

  • Sumrio

    APRESENTAOOs Editores ......................................................................................................... 09

    I. TEMA DE CAPA: A CRISE MUNDIAL

    Uma crise econmica diferente de todasTony Volpon ........................................................................................................ 17

    Origem, causas e impacto da criseJos Luis Oreiro ................................................................................................... 24

    Como respostas bonitas, mas erradas, colocaram o mundo em crise novamenteJos Carneiro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso ................................................... 30

    Crise econmica internacional: desdobramentosSergio Augusto de Moraes .................................................................................... 36

    II. OBSERVATRIO

    Crises e referncias republicanasWashington Bonfim .............................................................................................. 43

    O 11 de Setembro e nsRaul Jungmann ................................................................................................... 46

    O processo de modificao do Cdigo Florestal brasileiro

    Ludmila Caminha Barros ..................................................................................... 48

    A sociedade civil: fermento da democraciaCndido Gryzbowski .......................................................................................... 52

    III. BATALHA DAS IDEIAS

    Que herege era aquele Gramsci liberalMassimo DAlema ................................................................................................ 57

  • Norberto Bobbio, os comunistas e a democracia procedimentalMichel Zaidan Filho .............................................................................................. 61

    A grave responsabilidade pela rediviso do Par

    Lcio Flvio Pinto ................................................................................................. 65

    IV. QUESTES DO DESENVOLVIMENTO

    Nacionalismo e desenvolvimento: o Brasil nem to maior

    Demetrio Carneiro da Cunha Oliveira .................................................................... 71

    Razes do atraso brasileiroWanderley de Souza ............................................................................................ 77

    A industrializao a qualquer custo e a nova Poltica Industrial

    Amilcar Baiardi ................................................................................................... 79

    V. POLTICAS PBLICAS

    Urgncia na SadePaulo Kliass ........................................................................................................ 85

    Sade BrasilJos Eduardo Gomes ........................................................................................... 89

    SUS Pblico ou Estatal?Fernando Antunes ............................................................................................... 92

    VI. DIREITO & JUSTIA

    Imunidade tributria como instrumento de concretizao de direitos sociais fundamentaisWillame Parente Mazza ........................................................................................ 97

    VII. ENSAIO

    Direitos humanos e marxismoMarco Mondaini ................................................................................................. 105

    Democracia brasileira: entre a representao e a participao

    Fernando Perlatto .............................................................................................. 116

  • VIII. MUNDO

    Identidade nacional e globalizao

    Paulo Csar Nascimento ..................................................................................... 125

    Perspectivas de paz entre palestinos e israelensesDina Lida Kinoshita ........................................................................................... 129

    Indignao e Poltica

    Luiz Srgio Henriques ........................................................................................ 136

    IX. VIDA CULTURAL

    Manifestaes artsticas da civilizao da seca

    Benedito Vasconcelos Mendes ............................................................................ 141

    Cinema e desenvolvimento regionalWolney Oliveira ................................................................................................. 149

    X. HISTRIA

    Frei Veloso: pioneiro da botnica, da edio e da qumica no Brasil

    Luiz Cruz .......................................................................................................... 155

    XI. HOMENAGEM

    Itamar, o reconhecimento tardioMoacir Longo ..................................................................................................... 161

    Nelson Werneck Sodr, o intelectual como ofcioJoel Rufino ........................................................................................................ 166

    Como conheci Nelson Werneck SodrJ. R. Guedes de Oliveira ..................................................................................... 171

    XII. RESENHA

    O sonho de DescartesCsar Benjamin ................................................................................................. 175

  • A Era Lula, segundo Werneck ViannaRubem Barboza Filho ......................................................................................... 182

    A esquerda democrtica e a revoluo cubana

    Fernando de La Cuadra ..................................................................................... 184

    XIII. O AUTOR E UM POUCO DE SUA OBRA

    Cames, poeta de todos os tempos

    Luiz Fernando de Moraes Barros ........................................................................ 193

  • 9Apresentao

    Aps vivenciar os melhores seis anos (2003-2008) de atividade econmica do ltimo meio sculo, o mundo est em sobres-salto e com imensa dificuldade de identificar o que fazer de concreto para sair da ampla e profunda crise econmica e financeira em que foi mergulhado, desde o final do ano 2008, e com srias re-percusses na vida poltica e social. A quase unanimidade dos econo-mistas se refere a uma situao de abalo csmico parecido com o de-flagrado a partir de 1929, com possibilidade de ser qualitativamente maior e mais complexo.

    As colaboraes recebidas de diferentes autores a respeito desta delicada questo, que nosso tema de capa, procuram nos situar diante desta crise da qual ningum arrisca dizer at quando ela po-der permanecer conosco. Elas so enriquecedoras pois cada uma delas no apenas identifica causas diferentes para o que ora ocorre, como tambm faz observaes distintas sobretudo sobre o que vem frente para o planeta e para o nosso pas, especificamente.

    H quem veja nela, como o economista Tony Volpon, no uma crise da economia globalizada, ou uma crise do capitalismo, mas exatamente o contrrio, como uma crise do sucesso da globalizao, especificamente da globalizao chinesa. Tudo porque a base do processo da globalizao tecnolgica: as novas tecnologias de infor-mtica e comunicao permitem uma disperso do processo produ-tivo, criando uma complexa cadeia de oferta permitindo s empre-sas explorar vantagens comparativas ao redor do mundo. Segundo ele, nossa situao boa, pois temos uma grande relao com a Chi-na, embora possamos enfrentar uma recesso se houver uma parada

  • 1010

    Poltica Democrtica N 31

    brusca no fluxo de capital externo, j que no temos poupana inter-na. O economista Jos Luis Oreiro defende que a crise financeira de 2008 foi o resultado do modus operandi do capitalismo neoliberal implantado no final da dcada de 1970 e prev que os seus efeitos sobre o nvel de produo e de emprego nos pases desenvolvidos sero duradouros devido ao elevado endividamento do setor privado, gerado por um regime de crescimento do tipo finance-led (um tipo de financeirizao cujos resultados so negativos para a sociedade e para a economia em geral). Para os jovens economistas Jos Carnei-ro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso a crise subprime comeou com um problema sistemtico de endividamento pessoal em nveis insustentveis no longo prazo, mas a forma como governos atuaram para enfrent-la criou um problema de trajetria de dvida e gastos pblicos insustentveis no longo pra-zo. Mas, dizem eles: Resta saber se agora que a reduo do gasto pblico e a melhoria de sua qualidade se fazem fundamentais para a superao do novo problema, os governos tero a mesma disposio, agilidade, patriotismo e compromisso com a populao que tiveram na hora de aument-lo. Ou ser que iro escolher a inflao e todos seus efeitos danosos como rota de fuga, trocando a nova crise de d-vida por uma futura crise inflacionria?. J o engenheiro Sergio Au-gusto de Moraes frisa que essa crise global pe novamente mostra a incapacidade do sistema capitalista de resolver os problemas bsi-cos da humanidade; destaca a existncia de movimentos de massa contra os efeitos desta crise, movimentos que ainda no colocam como bandeira a ultrapassagem desse modo de produo, talvez pelo fato de ainda no ter sido formulada uma alternativa ao capita-lismo do sculo XXI que incorpore os ensinamentos das tentativas anteriores de construo do socialismo e, ao mesmo tempo, consiga indicar caminhos que evitem os erros cometidos nas mesmas.

    Alm destas, h outras instigantes matrias espalhadas nas di-versas sees da revista, como na Observatrio, na qual o cientista social Washington Bonfim faz curiosa anlise sobre o papel da inteli-gentzia no mundo de hoje e numa sociedade como a nossa. Em certo trecho, ele ressalta: O que assusta, no caso brasileiro, que parece haver poucas referncias intelectuais capazes de aglutinar reflexes profundas sobre a situao mundial e seus impactos sobre a vida, a sociedade e a economia nacionais, e a principal delas est no concei-to de repblica. O ex-ministro Raul Jungmann examina os dez anos

  • 1111

    Apresentao

    do 11 de Setembro nos Estados Unidos e faz ilaes muito pertinen-tes a respeito de como o terrorismo levado pouco a srio no Brasil. A advogada e consultora Ludmila Caminha Barros amplia e aprofun-da alguns aspectos do Cdigo Florestal que est sendo discutido no Congresso Nacional e dependendo do que se aprove ser malfico para o pas. E o socilogo Cndido Grzybowski analisa o papel da cidadania na sociedade brasileira e mundial, via seus vrios meca-nismos de ao, como as ONGs, hoje alvo de uma visibilidade nega-tiva alimentada pela criao indiscriminada delas por atores polti-cos que objetivam com elas apenas ter um instrumento de arrecadao de recursos pblicos, sob formas alheias tica republi-cana. Dirigente de uma entidade sria e com servios relevantes prestados ao pas, como o Ibase (Instituto Brasileiro de Anlises So-ciais e Econmicas), ele denuncia esta nova tragdia vivida pela so-ciedade e acentua a importncia de se separar o joio do trigo.

    Na Batalha das Ideias, h textos que nos convidam leitura e reflexo como o do dirigente socialista italiano Massimo DAlema, em torno das ideias do hertico pensador e ativista Antonio Gramsci, uma forte referncia para o pensamento e ao no apenas em sua terra mas em muitos pases de vrios continentes; como o do professor Mi-chel Zaidan Filho, que faz um registro polmico sobre o advento no Brasil das obras do pensador e lder poltico liberal tambm italiano Norberto Bobbio, com seus conceitos e sua viso a respeito da demo-cracia representativa e os percalos que surgem na concretude da sua vigncia, na Itlia e em muitos pases. E o registro feito pelo jornalista e intelectual Lcio Flvio Pinto em torno da situao hoje vivida pelo povo paraense que, na primeira quinzena de dezembro, ter que se definir se aceita ou no dividir o seu territrio, de forma a se criar mais duas novas unidades para a Federao brasileira. No Ensaio, alm do leitor ampliar enormemente sua viso sobre o marxismo e os direitos humanos, num provocativo trabalho do historiador Marco Mondaini, ele se deleita com o belo trabalho do cientista social Fernando Perlatto, no qual este coloca em cena as dvidas que nos assaltam quanto continuidade da aplicao da forma representativa da democracia, nos novos tempos, e da forma participativa.

    A seo Questes do Desenvolvimento tambm rica de temas que esto na ordem do dia dos que se preocupam com o presente e o futuro do pas. H contribuies valiosas sobre aspectos diferencia-dos da realidade, particularmente sobre caminhos equivocados de

  • 1212

    Poltica Democrtica N 31

    tentar fazer o Brasil alcanar um nvel de desenvolvimento fora dos padres tradicionais trilhados por diferentes governos brasileiros. Os economistas Demtrio Carneiro da Cunha Oliveira e Amilcar Baiardi, e o professor Wanderley de Souza, abordam como os conceitos nacio-nalismo e desenvolvimentismo so mal colocados no plano da produ-o industrial, como pouco ou nada se faz para que a indstria se torne contempornea dos avanos cientficos e tecnolgicos, e como h uma quase absoluta despreocupao dos poderes pblicos com as pesquisas cientficas, importante fator de desenvolvimento econ-mico e social, e a ausncia de uma legislao especfica que facilite o registro de suas patentes. Nas sees Polticas Pblicas e Direito & Justia, h enfoques variados sobre algumas questes relevantes no pas, como a da sade pblica e o fortalecimento do SUS (Paulo Kliass, Jos Eduardo Gomes e Fernando Antunes) e o da imunidade tributria (Willame Parente Mazza).

    Em Mundo, o cientista poltico Paulo Csar Nascimento faz um questionamento criterioso e profundo sobre a globalizao e o espao que existe para a continuidade do Estado-nao, defendendo que a questo nacional ainda tem um peso especfico que no pode ser su-bestimado. E a fsica Dina Lida Kinoshita, membro do Conselho da Ctedra Unesco de Educao para a Paz, traa um amplo panorama da situao dominante no Oriente Mdio, h muitos anos, e que en-volve israelenses e palestinos na luta por seu espao prprio, e com um elemento novo que foi o pedido formal da Autoridade Nacional Palestina feito ONU de reconhecimento do Estado Palestino. Insti-gante tambm a anlise do ensasta Luiz Srgio Henriques a respeito da complexa realidade poltica existente no mundo e certas mobiliza-es de massa, em diferentes pases, at nos Estados Unidos, em torno de bandeiras democrticas e de equidade.

    Nas demais sees, como Vida Cultural, temos, alm das Mani-festaes artsticas da civilizao da seca, do engenheiro agrnomo Benedito Vasconcelos Mendes, um rpido comentrio do cineasta Wolney Oliveira a respeito de como o cinema brasileiro est se am-pliando e pode ampliar-se muito mais com a crescente produo re-gional da Stima Arte, do Norte ao Sul do pas; na Histria, o profes-sor de histria Luiz Cruz nos revela um achado da maior qualidade, o da figura de Frei Veloso, o pioneiro da botnica, da edio e da qu-mica no Brasil; na Homenagem, alm de publicarmos o excelente artigo do jornalista e escritor Moacir Longo sobre a figura emblem-

  • 1313

    Apresentao

    Os Editores

    tica do ex-presidente Itamar Franco, damos continuidade publica-o de textos ressaltando os grandes mritos do historiador Nelson Werneck Sodr, em seu centenrio de nascimento, desta feita pelo doutor em comunicao e cultura Joel Rufino e pelo ensasta Jos Roberto Guedes de Oliveira; na seo Resenha, contamos com arti-gos de Csar Benjamin (sobre o lanamento das Obras Escolhidas, de Ren Descartes), Rubem Barboza Filho (a respeito de Moderniza-o sem o Moderno. Anlises de conjuntura na Era Lula, de Luiz Werneck Vianna) e Fernando de la Cuadra (sobre Silncio, Cuba. A esquerda democrtica diante do regime da Revoluo Cubana, de Claudia Hilb). E, finalmente, em O Autor e um pouco de sua obra, o especialista em Literatura Portuguesa, Luiz Fernando de Moraes Barros, professor da UERJ, apresenta uma anlise e uma bela cole-tnea em Cames, poeta de todos os tempos.

    Boa leitura!

    Os Editores

  • I. Tema de capa: A crise mundial

  • Autores

    Tony VolponEconomista brasileiro, residente em Nova Iorque, onde estrategista para a Amrica Latina do Nomura Security International Inc. [email protected].

    Jos Luis OreiroProfessor do Departamento de Economia da Universidade de Braslia, diretor da Associa-o Keynesiana Brasileira e coeditor do livro The financial crisis: origins and implica-tions, Palgrave Macmillan, 2011. [email protected].

    Jos Carneiro da Cunha Oliveira NetoPs-doutorando em economia (UnB), doutor em Administrao (UnB), mestre e graduado em Economia (UCB), atualmente professor adjunto do Departamento de Administrao e atua no Programa de Ps-Graduao em Administrao e do Mestrado Profissional em Economia da Universidade de Braslia.

    Amanda Almeida PaivaGraduanda em Administrao de Empresas pela Universidade de Braslia.

    Gustavo Gomes BassoGraduado em Administrao de Empresas pela Universidade de Braslia.

    Sergio Augusto de MoraesEngenheiro, do Conselho Diretor do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro e mestre em econometria pela Universidade de Genebra.

  • 1717

    Uma crise econmica diferente de todas

    Tony Volpon

    Causa espanto a crise que assola os Estados Unidos e a Euro-pa. Primeiro, por sua extenso, sendo uma crise econmica, financeira, mas tambm poltica e social, como evidenciada pela alarmante alta no desemprego e a onda de protestos por todo o continente europeu, muitas vezes violento, como na Grcia, na Espa-nha, na Turquia e na Inglaterra. Segundo, porque as solues usuais esto falhando, tanto as econmicas como as polticas. Aprendemos a pensar a Europa e os Estados Unidos como sociedades desenvolvi-das, com instituies sofisticadas e eficientes, mas, ao mesmo tempo, diferentes; a Europa, com um modelo social-democrata, e os Estados Unidos, com um modelo liberal. Por dcadas, o debate foi em torno de qual modelo era melhor (especialmente qual deveria ser adaptado pelos pases em desenvolvimento). Mas hoje essa diferenciao pare-ce incua: tanto a resposta social-democrata europeia como a liberal americana parecem inteis frente crise atual.

    Todos esses fatos podem ser mais bem compreendidos se percebe-mos que o que ocorre no momento tem uma natureza estrutural indi-ta. Ela no apenas diferente de uma recesso comum, algo j reco-nhecido pelas vrias comparaes feitas em 2008 entre a atual crise e a Grande Depresso, mas a de hoje totalmente distinta da dos anos 30. A incapacidade dos pases desenvolvidos em dar uma resposta adequa-da crise devida, em grande parte, incapacidade intelectual e pol-tica de ver o que h de totalmente novo nessa crise, e de se ater a mo-delos e concepes moldados por um passado que no mais existe.

  • 1818

    Tema de capa: A crise mundial

    Poltica Democrtica N 31

    Uma globalizao chinesa

    Alguns podem ver isso como uma crise da economia globalizada, ou talvez at uma crise do capitalismo. Mas exatamente o contrrio. Essa uma crise do sucesso da globalizao, especificamente da glo-balizao chinesa.

    A base do processo da globalizao tecnolgica: as novas tecno-logias de informtica e comunicao permitem uma disperso do pro-cesso produtivo, criando uma complexa cadeia de oferta (supply chain) permitindo s empresas explorar vantagens comparativas ao redor do mundo.

    Tal processo mudou profundamente o j conhecido processo im-perialista de relao entre pases desenvolvidos e em desenvolvimen-to (as antigas colnias). Simplificando: antes da atual globalizao, o processo poderia ser descrito como aquele em que matrias-primas eram exportadas para pases desenvolvidos, onde seriam transforma-das em produtos manufaturados para consumo local e exportados de volta aos pases em desenvolvimento. Dado que o valor adicionado via tecnologia ocorria no pas desenvolvido, esse processo colocava os pases em desenvolvimento em desvantagem, com uma queda secular em seus termos de troca com os pases desenvolvidos (o preo relativo das exportaes contra o das importaes). Tal processo, corretamen-te analisado nos anos 1940 e 1950, por vrios economistas da Amri-ca Latina, muitos deles ligados Cepal, foi a base da luta pela indus-trializao regional.

    Mas, comeando nos anos 1980, as novas tecnologias quebram a bipolaridade da distribuio dos meios de produo entre pases ricos e pobres. Agora, empresas podem no somente transferir a produo de manufaturados para os mais baratos pases em desenvolvimento, mas fracionar o processo entre vrios pases. Isso hoje tomou escala global, tendo a sia, e especialmente a China, como epicentro.

    Do ponto de vista histrico, o que vivemos hoje resultado da coin-cidncia da abertura econmica chinesa, promovida pelo ento lder chins Deng Xiaoping, a partir de 1978, com os avanos tecnolgicos que permitem fracionar o processo produtivo. A abertura chinesa pro-veu o sistema econmico mundial com uma vasta, disciplinada e ba-rata mo de obra, junto com um governo que, apesar de nominalmen-te comunista, fez de tudo para facilitar a vida das empresas globais que se deslocaram para a China, estabelecendo este pas como nova base global para a produo e exportao de manufaturados.

  • 1919

    Uma crise econmica diferente de todas

    Tony Volpon

    A revolta das elites

    Essa profunda reestruturao do sistema produtivo mundial teve vrias consequncias. Ela, sem sombra de dvida, o fato mais im-portante do nosso tempo.

    No mundo desenvolvido, a globalizao e subsequente exportao da capacidade industrial quebraram o pacto social entre a classe trabalhadora local e a classe dirigente. Hoje, o capitalista tem seus interesses mais alinhados com os interesses dos pases em desenvol-vimento do que com a classe trabalhadora local. Antes, o trabalhador no mundo desenvolvido poderia diminuir a extrao de mais valia (ou, colocando de forma equivalente, receber o valor da sua produti-vidade marginal) pelo fato de o capitalista no ter muita opo geo-grfica onde colocar seus meios de produo. A realidade hoje ou-tra muito diferente. Frente ao esvaziamento gradual da vantagem relativa aos pases em desenvolvimento, e apesar das grandes dife-renas entre a Europa e os Estados Unidos, cada sociedade utilizou o mesmo expediente para enfrentar as consequncias dessas mu-danas: o endividamento.

    A dupla bolha americana

    A fuga da indstria do mundo desenvolvido para o em desenvolvi-mento gerou todo tipo de efeito econmico e social. Nos Estados Uni-dos, ajudou a diminuir a importncia do movimento sindical. Isso e o fato que os empregos da indstria sempre foram melhores pagos em relao a um determinado nvel educacional geraram forte concentra-o de renda. De fato, desde os anos 1970, a renda mdia do trabalha-dor estadunidense no tem aumentado: todos os ganhos tm se con-centrado no topo da pirmide.

    A compensao por essa estagnao da renda veio de duas fon-tes. Primeiro, muitos bens de consumo caram de preo, com a maior produtividade do trabalhador asitico. Isso ajudou, depois dos cho-ques dos anos 70, a iniciar um grande perodo de menor inflao mundialmente. A entrada dos trabalhadores asiticos no mercado global representou fortssimo choque positivo de oferta que barateou os preos, e assim ajudou a amenizar a queda dos salrios nos pa-ses desenvolvidos.

    Com sua vontade de manter modelos baseados na forte expanso dos investimentos e das exportaes, principalmente depois da crise de 1997, os pases asiticos comearam a acumular fortemente reser-vas internacionais. Isso ajudou a manter suas moedas competitivas, o

  • 2020

    Tema de capa: A crise mundial

    Poltica Democrtica N 31

    que, ao mesmo tempo, representa uma exportao de poupana do-mstica (como um forte subsdio aos produtores em detrimento do consumo local). Essa poupana foi direcionada principalmente aos Estados Unidos, dado o fato que o dlar americano a moeda reserva do mundo e tem o mais lquido mercado de divisa, as Treasuries. Ve-mos, desde o final dos anos 1990, o inesperado fenmeno de pases pobres investindo em pases ricos.

    Com a inflao global em queda, e com forte oferta de poupana de pases pobres, os Estados Unidos, com seus dinmicos mercados fi-nanceiros, comeam a fortemente expandir a oferta de crdito para o consumo e para o mercado imobilirio. Tal processo gerou uma dupla bolha: a do consumo, gerando forte expanso do dficit em conta cor-rente, e a bolha imobiliria, uma forte alta nos preos dos imveis.

    Ambos esses processos geram um falso sentido de bem-estar na populao e na economia. Privado do poder de barganha e ganhos reais de salrio, o trabalhador recebe crdito farto e barato para manter o consumo crescendo, apesar da estagnao da renda. En-quanto isso, a alta dos seus imveis tambm gera uma falsa sensa-o de riqueza.

    O estouro dessas bolhas se deu em 2008, e continua. A opo do governo americano foi a de apoiar o mercado financeiro e o setor ban-crio (deciso de fato correta, vista luz da experincia dos anos 1930), mas sem promover um encontro de contas entre credores e devedores. Optou-se por no atacar o estoque de dvidas acumula-das, especialmente no setor imobilirio, o que at agora impediu a recuperao desse mercado. Mas optou-se por aplicar polticas fis-cais keynesianas de gastos (o dficit fiscal americano hoje chega a 10% do PIB) com tambm forte expanso monetria para tentar rea-nimar o crescimento, esperando que este resolvesse o sobre-endivi-damento das famlias. Mas esses expedientes, que funcionaram to bem no passado, agora se mostram no apenas insuficientes para gerar crescimento, mas ajudam a piorar a crise por rapidamente so-bre-endividar o Estado. E essa utilizao de espao fiscal ocorre no incio de uma virada demogrfica que vai fortemente pressionar a demanda por aposentadoria e sade, forando ainda mais os gastos do setor pblico. Chegamos ao ponto em que tanto o consumidor quanto o governo estadunidense esto sobre-endividados, enquanto suas empresas gozam de alta liquidez, baixo endividamento e boa lucratividade, por serem, de fato, muito mais globais do que ameri-canas. A revolta das elites se completa.

  • 2121

    Uma crise econmica diferente de todas

    Tony Volpon

    A aposta na moeda nica

    Na Europa, a histria no foi muito diferente em sua essncia: ve-mos tambm uma fuga da indstria, mas principalmente no Sul. A indstria de grande valor agregado do Norte europeu, por enquanto ainda mantm liderana global. Diferentemente dos Estados Unidos, o modelo social-democrata minimizou a concentrao de renda duran-te esse perodo. Mas a Europa tambm pagou um preo pelo seu mo-delo social, enfrentando taxas de desemprego sempre mais elevadas que a estadunidense.

    Mas tal como nos Estados Unidos, os trabalhadores do Sul da Europa, dos agora chamados pases perifricos da Unio Euro-peia, perdem seus empregos industriais, mas ganham, em compen-sao, uma moeda nica que gera forte crescimento do crdito, es-pecialmente para o mercado imobilirio. Apesar da zona econmica manter, diferentemente dos Estados Unidos, relativa estabilidade no conjunto de suas contas externas, entre os pases do euro se esta-beleceu forte desequilbrio, com os pases do Norte, como a Alema-nha, exportando poupana para os pases do Sul. Como na relao China-Estados Unidos, em que o primeiro financia as exportaes, e, portanto, o consumo do segundo, dentro da Europa, o Norte fi-nancia e exporta para suprir o consumo do Sul, que se sobre-endi-vida e perde competitividade.

    Como nos Estados Unidos, a resposta europeia crise teve forte carter fiscal, com grande aumento dos dficits em mais uma malsu-cedida aposta keynesiana. Como nos Estados Unidos, um problema de endividamento privado rapidamente se tornou pblico, como agra-vante de uma moeda nica no poder cair para atender s necessida-des de maior demanda de uma Grcia ou Portugal. Ao mesmo tempo, a falta de unio fiscal e um temor de abalar a situao do sistema bancrio impedem um necessrio encontro de contas. Finalmente, a Europa tambm gasta sua munio fiscal quando est prestes a en-frentar uma virada demogrfica mais problemtica que a do prprio Estados Unidos.

    E o Brasil com isso?

    Felizmente, o Brasil est muito bem, porque como foi simples e corretamente explicado pelo economista de Harvard Kenneth Rogoff, em recente edio do Financial Times, O Brasil tem tudo o que a Chi-na precisa.

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    Tema de capa: A crise mundial

    Poltica Democrtica N 31

    A China mudou tudo. Primeiro, a secular queda nos termos de troca se reverteu. Podemos hoje comprar produtos manufaturados mais baratos, tanto por causa da produtividade chinesa como pela oferta excedente dos pases desenvolvidos ainda atolados em recesso. Conseguimos exportar nossas commodities por maiores preos para o consumidor chins, mais rico e mais urbano. Estamos, de fato, plena-mente atados ao incio do supply chain asitico.

    No deve nos espantar, portanto, que, apesar dos crescentes pro-blemas nos Estados Unidos e na Europa, nossas perspectivas econ-micas no sejam to negativas assim. certo que, como em 2008, se houver uma parada sbita de fluxo de capital, nossa economia en-trar em recesso. Tendo dficit em conta corrente e pouca poupana, o Brasil necessita de poupana externa para crescer, e qualquer que-da em sua oferta necessariamente derruba o crescimento. Alm dessa vulnerabilidade, h outras duas reas de preocupao para o Brasil.

    A primeira que o Brasil pode estar relativamente isolado dos acontecimentos nos pases desenvolvidos, mas isso certamente no verdade em relao China. Ela no s se tornou nosso maior parcei-ro mundial, mas sua demanda estabelece os preos internacionais de nossas exportaes. Isto , a China pode receber somente 20% das nossas exportaes, mas ela fixa o preo de 70% ou mais delas, dado seu peso nos mercados de commodities.

    A economia chinesa tem seu prprio conjunto de problemas e de-safios. Primeiro, suas taxas de investimento, que chegam a 50% do PIB, podem assegurar seu forte crescimento, mas no so sustent-veis, algo que j reconhecido pelo governo chins. Seu modelo econ-mico tem que transitar mais para ao consumo, em detrimento dos investimentos e exportaes, uma transio complexa e perigosa, como foi visto no caso japons. Para financiar investimentos, especial-mente em resposta crise, houve um forte crescimento do crdito privado, o que infelizmente lembra em parte a dinmica dos pases desenvolvidos antes da crise.

    Mas na China, diferente dos Estados Unidos e da Europa, muito mais recursos so destinados infraestrutura e ao investimento pro-dutivo. No caso chins, difcil acreditar que um pas ainda em franco desenvolvimento e com baixa renda per capita carea de boas oportu-nidades de investimento. Alm disso, o governo chins tem na manga uma enorme carta para enfrentar qualquer problema de sobre-endi-vidamento: pode deslanchar o que seria o maior processo de privatiza-o da histria. Tal soluo no existe para os pases desenvolvidos. Por essas razes, mantemos uma viso mais otimista sobre o futuro

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    Uma crise econmica diferente de todas

    Tony Volpon

    da China do que o dos Estados Unidos ou da Europa. Acreditamos que o deslocamento do centro de gravidade mundial para o Sul e o Oriente deve continuar nas prximas dcadas.

    A segunda grande vulnerabilidade do Brasil nesse processo con-tinuar a se engajar com a sia de forma passiva, isto , deixando a nossa economia a se especializar em funo das necessidades desses pases e no da nossa vontade nacional. Isso no implica ignorar nos-sas amplas vantagens comparativas, muito ao contrrio. Deveramos concentrar nossos esforos industriais, tecnolgicos e educacionais ampliando valor adicionado nas cadeias em que detemos vantagem global. Mas tal processo no passa somente pela montagem de gran-des conglomerados nacionais com dinheiro subsidiado do Estado, grupos estes que acabam ocupando posies oligopolistas na econo-mia e assim perdem incentivos para gerar maior eficincia e investir em novas tecnologias, mas sim pelo duro e demorado trabalho de criar condies estruturais para alimentar competitividade. O nosso mode-lo tem que ser a Alemanha e a prpria China, com suas milhares de empresas exportadoras, e no a oligopolizada economia mexicana com seus conglomerados.

    Se o Brasil quiser ser mais do que um apndice do processo eco-nmico asitico ter que rever toda a poltica econmica atual, espe-cialmente a atual orientao ao consumo e ao mercado interno, em detrimento da poupana e do investimento. Temos muitas vantagens comparativas, nesse mundo voltado sia, mas temos que construir vantagens competitivas, e nunca faremos isso sem aumentar forte-mente nossos investimentos e nossa poupana. Um governo que opta por sempre colocar o consumo, em primeiro lugar, est condenando o pas a crescer menos no futuro. Escolhas tm que ser feitas.

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    Origem, causas e impacto da crise

    Jos Luis Oreiro

    A crise financeira de 2008 foi a maior da histria do capitalismo desde a grande depresso de 1929. Comeou nos Estados Uni-dos, aps o colapso da bolha especulativa no mercado imobili-rio, alimentada pela enorme expanso de crdito bancrio e poten-cializada pelo uso de novos instrumentos financeiros, e se espalhou pelo mundo todo em poucos meses. O evento detonador da crise foi a falncia do banco de investimento Lehman Brothers, no dia 15 de setembro de 2008, aps a recusa do Federal Reserve (FED, banco cen-tral americano) em socorrer a instituio. Essa atitude do FED teve um impacto tremendo sobre o estado de confiana dos mercados fi-nanceiros, rompendo a conveno dominante de que a autoridade mo-netria norte-americana iria socorrer todas as instituies financeiras afetadas pelo estouro da bolha especulativa no mercado imobilirio.

    O rompimento dessa conveno produziu pnico entre as institui-es financeiras, o que resultou num aumento significativo da sua preferncia pela liquidez, principalmente no caso dos bancos comer-ciais. O aumento da procura pela liquidez detonou um processo de venda de ativos financeiros em larga escala, levando a um processo Minskiano de deflao de ativos, com queda sbita e violenta dos preos dos ativos financeiros, e contrao do crdito bancrio para transaes comerciais e industriais. A evaporao do crdito resul-tou numa rpida e profunda queda da produo industrial e do co-mrcio internacional em todo o mundo.

    Com efeito, no ltimo trimestre de 2008, a produo industrial dos pases desenvolvidos experimentou uma reduo bastante significati-va, apresentando, em alguns casos, uma queda de mais de dez pontos base com respeito ao ltimo trimestre de 2007. Mesmo os pases em desenvolvimento, que no possuam problemas com seus sistemas fi-nanceiros, como o Brasil, tambm constataram uma fortssima queda na produo industrial e no Produto Interno Bruto (PIB). De fato, no caso brasileiro, a produo industrial caiu quase 30% no ltimo tri-mestre de 2008 e o PIB apresentou uma contrao anualizada de 14% durante esse perodo. As bolhas e a fragilidade financeira nasceram do capitalismo neoliberal adotado a partir dos anos 1970.

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    Origem, causas e impacto da crise

    Jos Luis Oreiro

    Os governos dos pases desenvolvidos responderam a essa crise por meio do uso de polticas fiscal e monetria expansionistas. O FED reduziu a taxa de juros de curto prazo para 0% e aumentou o seu ba-lano em cerca de 300% para proporcionar liquidez para os mercados financeiros nos EUA. Polticas similares foram adotadas pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Banco do Japo. Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama conseguiu aprovar uma expanso fiscal de quase US$ 800 bilhes para estimular a demanda agregada. Na rea do euro, os governos foram liberados das amarras fiscais do Tratado de Maastricht, sendo autorizados a aumentar os dficits fiscais alm dos limites impostos por este Tratado. Esforos similares foram reali-zados no Reino Unido e nos pases em desenvolvimento.

    Na China, por exemplo, o governo aumentou o investimento pbli-co fundamentalmente em infraestrutura em mais de US$ 500 bi-lhes, com o intuito de manter uma elevada taxa de crescimento eco-nmico. No Brasil, a expanso fiscal comeou antes da expanso monetria devido a um comprometimento irracional do Banco Cen-tral (BC) com um regime de metas de inflao muito rgido. Nesse contexto, o governo Lula aprovou um pacote de estmulo fiscal no fim de 2008, constitudo de aumento do investimento pblico, reduo de impostos e aumento do salrio mnimo e do seguro desemprego. A reduo da taxa de juros comeou apenas em janeiro de 2009, aps o colapso da produo industrial e da disseminao de rumores quanto possvel demisso do presidente do BC. Como resultado da demora no relaxamento na poltica monetria, o PIB declinou 0,7% em 2009.

    Apesar da forte queda da produo industrial e do PIB tanto nos pases desenvolvidos como nos pases em desenvolvimento, a severi-dade da crise de 2008 ficou muito aqum dos resultados catastrficos verificados na dcada de 1930. No fim de 2009, a economia americana comeou a apresentar sinais positivos de recuperao, apontando para um crescimento modesto em 2010. Frana e Alemanha saram da recesso tcnica em meados de 2009, o mesmo ocorrendo com o Reino Unido no ltimo trimestre desse ano.

    Os pases em desenvolvimento tiveram um desempenho econmico muito superior ao dos pases desenvolvidos durante a crise. O cresci-mento econmico da China foi de 8,5% em 2009, mostrando uma pe-quena reduo com respeito a 2008, quando a economia cresceu 9%. A performance econmica da ndia tambm foi boa. Aps uma expan-so de 7,3% do PIB em 2008, o crescimento foi reduzido para 5,4% em 2009. O desempenho econmico do Brasil durante a crise no foi to bom como o da China e da ndia. Aps um crescimento robusto de 5,1% em 2008, o PIB caiu 0,7% em 2009. Em 2010, contudo, a econo-

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    Tema de capa: A crise mundial

    Poltica Democrtica N 31

    mia brasileira apresentou uma forte recuperao, apresentando um crescimento econmico superior a 7%. Entre os Brics, apenas a Rs-sia apresentou uma queda forte do nvel de atividade econmica, cain-do 7,5% em 2009, aps um crescimento de 5,6% em 2008.

    A intensidade da crise financeira de 2008 coloca duas questes fundamentais para os economistas e formuladores de poltica econ-mica. A primeira questo se refere s origens da crise. A segunda se refere s consequncias dessa crise para a economia mundial. Sobre essas questes se formou uma sabedoria convencional, a qual ser detalhada na sequncia, mas que apresenta respostas essencialmente incorretas para as mesmas.

    No que se refere primeira questo, a sabedoria convencional afirma que a crise financeira de 2008 foi apenas o resultado de uma regulao financeira inadequada, combinada com uma poltica mo-netria muito frouxa conduzida pelo FED durante a administrao Greenspan. Se assim for, ento no ser necessria a implementao de polticas que revertam a tendncia ao aumento da desigualdade na distribuio de renda nos pases desenvolvidos, verificada nos ltimos 30 anos. Uma mudana limitada na regulao financeira e a redefini-o do regime de metas de inflao de maneira a incluir a estabilizao dos preos dos ativos financeiros como um dos objetivos da poltica monetria, por intermdio de uma espcie de regra de Taylor amplia-da, seria suficiente para evitar uma nova crise financeira no futuro.

    No que se refere segunda questo, a sabedoria convencional estabelece que a crise de 2008 foi apenas um desvio temporrio no curso normal de eventos (um momento Minsky), de tal forma que, no futuro prximo, as economias capitalistas iro retomar a trajetria de crescimento observada antes da crise. O crescimento mundial poder ser novamente puxado pela expanso de crdito nos Estados Unidos e a poltica econmica poder voltar a ser conduzida com base no assim denominado novo consenso macroeconmico, o qual estabelece que o objetivo fundamental, seno o nico, da poltica macroeconmica a estabilidade da taxa de inflao.

    A crise financeira de 2008 no foi apenas o resultado da combina-o perversa entre desregulao financeira e poltica monetria frou-xa. Essas so apenas as causas prximas da crise. Mas existe uma causa mais fundamental, qual seja: o padro de capitalismo adotado nos Estados Unidos e na Europa a partir do final da dcada de 1970, o qual pode ser chamado de capitalismo neoliberal. Entre 1950 e 1973, as economias capitalistas avanadas vivenciaram uma poca de ouro de crescimento econmico, no qual a distribuio pessoal e

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    Origem, causas e impacto da crise

    Jos Luis Oreiro

    funcional da renda era progressivamente mais equitativa, a taxa de acumulao de capital era mantida em patamares elevados devido existncia de um ambiente macroeconmico estvel (inflao baixa, juros baixos, taxas de cmbio estveis) e forte expanso da demanda agregada. Alm disso, a taxa de desemprego era inferior a 4% da fora de trabalho em quase todos os pases desenvolvidos (exceto, curiosa-mente, nos Estados Unidos). Durante esse perodo, os mercados fi-nanceiros eram pesadamente regulados, a movimentao de capitais entre as fronteiras nacionais era bastante restrita, as taxas de cmbio eram fixas com respeito ao dlar americano e os salrios reais cres-ciam aproximadamente ao mesmo ritmo da produtividade do trabalho.

    A combinao entre estabilidade macroeconmica, crescimento acelerado e baixo desemprego permitia que os governos dos pases desenvolvidos operassem com baixos dficits fiscais e uma dvida p-blica reduzida como proporo do PIB. O Estado do Bem-Estar Social no representava um fardo para as contas pblicas.

    Esse capitalismo socialmente regulado apresentava um regime de crescimento do tipo wage-led, ou seja, um regime no qual o cresci-mento dos salrios reais (num ritmo igual produtividade do traba-lho) permitia uma forte expanso da demanda de consumo, a qual induzia as firmas a realizar um volume elevado de investimentos na ampliao de capacidade produtiva, ao mesmo tempo em que manti-nha as presses inflacionrias relativamente contidas devido estabi-lidade do custo unitrio do trabalho.

    Com o colapso do Sistema de Bretton Woods e os choques do pe-trleo em 1973 e 1979, o ambiente macroeconmico muda radical-mente e o mundo desenvolvido passa a conviver com o fenmeno da estagflao. Esse ambiente macroeconmico permitiu o ressurgi-mento daquelas doutrinas liberais.

    Aps a eleio de Margareth Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, as polticas econmicas nos pases de-senvolvidos foram progressivamente pautadas pelos motes da desre-gulao, privatizao e reduo de impostos. Os mercados financeiros foram liberalizados, os controles de capitais foram abolidos nos pases desenvolvidos e os impostos foram reduzidos, principalmente sobre os mais ricos. Os sindicatos de trabalhadores foram deliberadamente en-fraquecidos pelas polticas adotadas por Reagan e Thatcher, registran-do-se uma forte reduo da filiao sindical da fora de trabalho.

    O resultado macroeconmico desse novo padro de capitalismo foi uma crescente desigualdade na distribuio funcional e pessoal da renda, medida que os salrios passaram a crescer num ritmo bem

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    Tema de capa: A crise mundial

    Poltica Democrtica N 31

    inferior ao da produtividade do trabalho e o sistema tributrio perdeu, em vrios pases, o seu carter progressivo. O aumento da concentra-o de renda e o crescimento anmico dos salrios reais foi o respon-svel pela perda do dinamismo endgeno dos gastos de consumo, no-tadamente nos Estados Unidos, os quais passaram a depender cada vez mais do aumento do endividamento das famlias para a sua sus-tentao a mdio e longo prazo.

    Nesse contexto, a desregulao dos mercados financeiros tornou-se funcional, uma vez que a mesma permitiu um aumento consider-vel da elasticidade da oferta de crdito bancrio, viabilizando assim o crescimento do endividamento das famlias, necessrio para a susten-tao da expanso dos gastos de consumo. O aumento extraordinrio do crdito bancrio resultou num processo cumulativo de aumento dos preos dos ativos reais e financeiros, permitindo assim a susten-tao de posturas financeiras cada vez mais frgeis (especulativa e Ponzi) por parte das famlias, empresas e bancos.

    O regime de crescimento wage-led fora substitudo por um regime finance-led. Daqui se segue que no capitalismo neoliberal as bolhas e a fragilidade financeira no so anomalias no sistema, mas parte integrante do seu modus operandi.

    No que se refere tese de que a crise de 2008 seria apenas um desvio temporrio da trajetria de crescimento de longo prazo das eco-nomias capitalistas, os eventos ocorridos depois de 2009 parecem apontar claramente para a falsidade dessa conjectura.

    Com efeito, a crise de 2008 no foi apenas um curto circuito na mquina capitalista, o qual poderia ser corrigido por intermdio da interveno do Estado no mecanismo de ignio das economias ca-pitalistas. Isso porque o regime de crescimento do tipo finance-led teve como contrapartida uma elevao significativa do endividamento do setor privado nos anos anteriores crise de 2008.

    Considerando apenas os pases da rea do euro, constatamos que entre 1997 e 2008, a dvida das empresas no financeiras passou de 250% para 280% do PIB, o endividamento dos bancos aumentou de 190% para 250% do PIB e o endividamento das famlias aumentou em quase 50%.

    Aps o colapso do Lehman Brothers, o setor privado nos pases desenvolvidos iniciou um processo de deflao de dvidas, no qual a propenso a poupar dos agentes privados aumentada com o intui-to de permitir uma reduo do estoque de endividamento. Esse au-mento da propenso a poupar do setor privado atuou no sentido de

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    Origem, causas e impacto da crise

    Jos Luis Oreiro

    anular (parcialmente) o efeito sobre a produo e o emprego do au-mento dos dficits fiscais.

    O resultado combinado do aumento da propenso a poupar do setor privado e reduo da poupana do setor pblico foi uma peque-na recuperao do nvel de atividade econmica e uma socializao na prtica de parcela considervel da dvida privada, transferida ago-ra para o setor pblico. Essa socializao das dvidas privadas uma das causas da crise fiscal da rea do euro, a qual, na ausncia de uma monetizao parcial do endividamento do setor pblico dos pases por ela afetados, ir resultar em vrios anos de contrao fiscal, retardan-do assim a recuperao econmica do mundo desenvolvido. A pers-pectiva para os pases da rea do euro (e em menor medida para os Estados Unidos) de vrios anos de estagnao econmica.

    Em suma, a crise financeira de 2008 foi o resultado do modus ope-randi do capitalismo neoliberal implantado no final da dcada de 1970 e os seus efeitos sobre o nvel de produo e de emprego nos pases desenvolvidos sero duradouros devido ao elevado endivida-mento do setor privado, gerado por um regime de crescimento do tipo finance-led.

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    Como respostas bonitas, mas erradas, colocaram o mundo

    em crise novamente

    Jos Carneiro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso

    Precedentes

    Ao longo dos anos 1990, o governo do presidente Bill Clinton intro-duziu importantes alteraes no Community Reinvestment Act e em boa parte da estrutura de financiamento hipotecrio americana. As mudanas tinham como foco principal a nobre ideia de permitir o acesso dos mais pobres ao financiamento imobilirio e impuseram ao Fannie Mae e Freddie Mac, ento principais agncias hipotecrias americanas, a obrigao de financiar hipotecas para a populao de baixa renda.

    Para captar os recursos necessrios ao financiamento, as agncias securitizavam os contratos hipotecrios. Tal operao permitia, teori-camente, a diluio de parte do risco dos emprstimos e aumentava a base de captao para as agncias. Essa til estrutura de financia-mento apresentava um problema para a poltica habitacional do go-verno Clinton. Os ttulos lastreados em hipotecas de famlias de baixa renda (os famosos subprime) eram, em virtude de seu elevado risco relativo, pesadamente descontados pelo mercado. Como soluo, foi permitida a segregao desses papis em duas categorias: ttulos com prioridade de recebimento, os quais equivaliam a 20% do valor da hi-poteca, por isso, eram bem classificados; e, ttulos ordinrios, que, em caso de inadimplncia, receberiam apenas a diferena entre o valor apurado na venda do ativo colateral ao contrato (o imvel) e os 20% originais do contrato que resgatam os papis prioritrios.

    Tal estratgia permitiu uma considervel expanso na capacidade de captao de financiamento habitacional para a populao de baixa renda. O que no se imaginou poca era que essa estrutura apresen-ta grande fragilidade a riscos sistemticos, os quais afetam a econo-mia como um todo. A ciranda de riscos que afetam esses papis pas-sava pela perda de transparncia que a segregao provocava, o que limitava a capacidade daqueles que compravam os ttulos securitiza-

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    Como respostas bonitas, mas erradas, colocaram o mundo em crise novamente

    Jos Carneiro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso

    dos em gerenciar suas exposies ao risco; pela endogenia entre crises no mercado imobilirio e o nvel de emprego da populao de baixa renda, em regra direta ou indiretamente ligada a esse mercado; e, pela natural baixa disposio do governo em restringir booms econmicos, mesmo que baseados em nveis de endividamento insustentveis no longo prazo. til destacar que a baixa sustentabilidade de uma bo-lha facilmente diagnosticada depois de sua exploso, mas de difcil avaliao ao longo de sua existncia.

    As alteraes legais e normativas no provocaram impactos ime-diatos nos preos dos imveis, no entanto, ao menos parcialmente, atingiram os objetivos iniciais do governo Clinton e facilitaram o aces-so dos mais pobres ao financiamento imobilirio.

    Em meados de 1996, o ento presidente do Federal Reserve, FED, Alan Greespan, preocupado com o impressionante desempenho acio-nrio de empresas de tecnologia, proferiu seu famoso discurso sobre a exuberncia irracional presente no mercado ponto-com. Para ele, esse novo mercado, cuja origem remontava abertura de capital da Netscape em 1995, apresentava fortes indcios de valorao exagera-da, pois as companhias em questo no produziam lucros coerentes com seus valores de mercado (GREENSPAN, 2008). Fosse isso fato ou no, era para esse novo mercado que parte considervel da popula-o americana direcionava suas aplicaes.

    No comeo dos anos 2000, as preocupaes de Greenspan se tor-naram realidade, o mercado ponto-com implodiu. A resposta do FED foi rpida e, na poca, pareceu eficiente. Com uma forte contrao nos juros, a desacelerao da economia, consequncia natural da implo-so da bolha, foi remediada.

    O que no se percebeu foi o tipo de incentivo gerado por essa respos-ta combinada com as alteraes nas normas hipotecrias. Com taxas de juros extremamente baixas e regras flexveis para a concesso de hipotecas, a populao americana antecipou consumo com base em fi-nanciamento imobilirio. Alguns compraram casas novas, outros re-hipotecaram suas casas para adquirir outros bens ou servios.

    O crescimento do mercado imobilirio gerou o que pareceu no pri-meiro momento um ciclo virtuoso. Como a populao de baixa renda tem seu emprego fortemente ligado a esse setor, os nveis de emprego melhoraram. Dado a sensao de maior riqueza, fruto da valorizao de seu patrimnio imobilirio, o americano comum foi s compras e assumiu posies cada vez mais endividadas, que pela nova rodada de valorizao de seu patrimnio imobilirio, era sustentada por novos contratos hipotecrios.

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    Tema de capa: A crise mundial

    Poltica Democrtica N 31

    Como em quase todas as outras crises financeiras, o excesso de alavancagem cobrou seu preo e, em meados de 2007, aps uma srie de aumentos nos juros promovidos pelo novo presidente do FED, Ben Bernanke (REINHART; ROGOFF, 2009), a nova bolha entrou em co-lapso. Um cuidado til: no foi Bernanke quem provocou a crise, o presidente do FED tinha motivos slidos para elevar os juros naquele momento, pois postergar tal ajuste s pioraria a situao.

    Com a desacelerao do mercado imobilirio, o desemprego entre os clientes subprime disparou, novas rodadas de inadimplncia am-pliaram ainda mais a oferta de imveis em um mercado j estagnado, o que provocou novas quedas no preo dessa classe de ativo. Vrios americanos de classe mdia que haviam contratado hipotecas para investir em novas casas perceberam que o valor dos imveis era infe-rior s obrigaes hipotecrias e entregaram o colateral para liquida-o da dvida. Sem liquidez, as agncias hipotecrias tiveram como honrar suas dvidas com as instituies que haviam adquirido os ttu-los securitizados e entraram em falncia.

    A complexa e nebulosa estrutura de securitizao que havia viabi-lizado a expanso do crdito para as famlias de baixa renda entrou em colapso, a difcil mensurao de seus desdobramentos prolongou a agonia do sistema financeiro internacional que, por cerca de duas semanas, literalmente deixou de funcionar, o mercado interfinanceiro mundial estava falido.

    Em muitos casos, a crise se alastrou para outros pases e empre-sas pelo mercado de crdito. Por vezes, pelos prejuzos que alguns bancos locais sofreram ao investirem em ttulos subprime, em outros casos por simples receio dos bancos em emprestar. Em Braslia, uma grande rede de farmcias, mesmo sendo cliente de um banco que pou-co ou nada sofreu com a crise, teve seus limites de crdito cortados pela metade e no foi mais capaz de financiar suas despesas operacio-nais. Esta fechou diversas lojas e por pouco no cessa completamente suas operaes. No resto do planeta, no foi diferente.

    As respostasDiante do risco de depresso, diversos governos iniciaram aes

    contracclicas. Estados Unidos e Unio Europeia atuaram em conjunto para reiniciar o mercado interfinanceiro internacional, e uma srie de medidas fiscais e monetrias foi desencadeada ao redor do mundo.

    Um forte e recorrente discurso sobre a necessidade de regulamen-tao mais rgida do mercado financeiro ganhou fora e a viso de maior necessidade de interveno governamental no sistema econmi-

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    Como respostas bonitas, mas erradas, colocaram o mundo em crise novamente

    Jos Carneiro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso

    co obteve um renascer vigoroso frente dominao tcita do menor intervencionismo neoclssico, razoavelmente hegemnico no pensa-mento econmico desde a dcada de 1970.

    Keynes, com sua justificativa econmica para a interveno esta-tal, e Roubini, com sua crise em L, ganharam os noticirios e as rodas de debate governamental. A necessidade de interveno mais ativa estava dada, faltava apenas determinar o que deveria ser feito.

    No h consenso sobre quais seriam as respostas apropriadas, mas aos que evocaram Keynes ou denunciaram o liberalismo econ-mico, seria til uma breve leitura da Teoria Geral e da histria institu-cional da crise subprime.

    Com a desculpa de estimular a demanda agregada, o que para gra-duandos em economia seria deslocar a curva IS para a direita, gover-nos de todo o mundo adotaram uma poltica fiscal fortemente expan-sionista baseada em novos endividamentos ou na assuno de compromissos financeiros de difcil reverso, tais como aumento dos gastos com salrios e outros encargos correntes.

    No af de consolidar sua maior participao na economia, a polti-ca deixou algumas questes bsicas de lado. Ao ingressar em uma poltica de gastos para reativar a economia, fundamental que o governo tenha claro sua dotao financeira inicial e por quanto tempo os estmulos sero necessrios. Como bem destacou Krugman em seu blog, polticas keynesianas exigem mais responsabilidade fiscal que polticas neoclssicas. Isso ocorre, segundo Krugman, pois enquanto a ltima prega pelo eterno equilbrio oramentrio, a primeira deman-da controle rgido nas fases de crescimento, preferencialmente com gerao de poupana pblica, para que os dficits no momento de cri-se sejam sustentveis, caso contrrio o governo quebra antes de sal-var a economia. Um segundo ponto relevante o verdadeiro potencial do multiplicador do investimento, o gasto deve ser direcionado para investimentos que tenham o maior multiplicador potencial. Dadas eventuais restries na dotao inicial do governo, esse ponto passa a ser ainda mais importante.

    Em complemento poltica fiscal, muitos governos reduziram ju-ros, deslocaram a LM para a direita, com a economia em recesso, teoricamente com vasta capacidade ociosa. Reza a cartilha que as combinaes dessas medidas no deveriam ser inflacionrias. A mag-nitude da expanso monetria variou de nao para nao, em todo caso torcia-se para que os resultados da crise ponto-com fossem repetidos. Novamente, a leitura da Teoria Geral poderia ter sido til, pois Keynes em pessoa argumenta que tal curso de aes incuo quando os investimentos so inelsticos aos juros, e esse era exata-mente o caso do setor imobilirio americano no ps-subprime.

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    Tema de capa: A crise mundial

    Poltica Democrtica N 31

    As consequnciasA atual crise um desdobramento inevitvel da ao irresponsvel

    de polticos que mais queriam uma justificativa para maior interven-o do governo e, consequentemente, aumento do poder da classe po-ltica diante do restante da sociedade, do que encontrar solues du-rveis e sustentveis para os problemas advindos da crise 2007/2008.

    As polticas fiscais de ajuda financeira para empresas e os investi-mentos/gastos diretos do governo se mostram no s ineficazes para reativar a economia, como cobraram um forte preo em termos de en-dividamento do setor pblico. Grcia, Portugal, Espanha, Frana, Es-tados Unidos, Brasil, entre outros, enfrentam agora grandes dificulda-des para lidar com os compromissos que foram assumidos pelos programas governamentais de auxlio.

    No caso especfico do Brasil, soma-se ao endividamento j gerado para enfrentar a crise, que segundo o governo teria sido apenas uma marolinha, mas serviu para justificar vultosos gastos pblicos, a necessidade brutal de recursos para investimentos direcionados Copa do Mundo e Olimpadas, recursos esses que o governo brasileiro claramente no dispe.

    Ainda sobre o Brasil, a acelerao inflacionria ganha corpo como soluo governamental para resolver seus problemas com gastos correntes e dvidas no indexadas. Desde o reajuste da tabela do Im-posto de Renda at s negociaes salariais, o governo utiliza a pol-tica de metas para fixar reajustes em torno de 4% (esse argumento s no vlido quando o reajuste se refere a salrios de ministros, de-putados, senadores e presidente), porm sinaliza claramente que a poltica de metas centrada no quesito credibilidade j foi abando-nada. O controle da inflao feito a baixo custo pelo fato de as pes-soas acreditarem que o Banco Central far tudo o que seja necess-rio para manter a inflao sob controle. Quebrada essa crena na ao do Banco Central, o custo da poltica de metas cresce tanto que ela se torna invivel.

    Entre os dias 30 e 31 de agosto de 2011, o Comit de Poltica Mo-netria, do Banco Central do Brasil, esteve reunido para definir a nova taxa Selic. Para surpresa geral, o Copom optou por reduzir a taxa em 0,5%, para 12% ao ano (em outubro, baixou em mais 0,5%). A surpresa tem fontes distintas e se aprofunda quando da leitura da ata da reunio.

    Dado a acelerao inflacionria e o erro de diagnstico das ltimas reunies, seria de se esperar um aumento da taxa, que chegaria a 13%. Porm, o Copom no s foi na direo contrria, como repetiu o mesmo tipo de diagnstico que dito desde que a inflao se descolou

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    Como respostas bonitas, mas erradas, colocaram o mundo em crise novamente

    Jos Carneiro da Cunha Oliveira Neto, Amanda Almeida Paiva e Gustavo Gomes Basso

    sistematicamente do centro da meta: o mais grave j passou, a infla-o est desacelerando.

    Dada a ascenso desenvolvimentista ocorrida durante a crise, fica a dvida se o governo Dilma no busca um novo efeito Bacha (quan-do os direitos do governo so reajustados pela inflao, mas suas obri-gaes no) para enfrentar o atual problema de dvida interna/gasto corrente e investimento Copa/Olimpada.

    O problema com esse modelo, alm do fato dele j no ter dado certo, que a crena no cumprimento da meta est muito mais na ao de fato do Banco Central do que nas negociaes salariais e tri-butrias do governo, principalmente quando presidente e ministros no atrelam seus prprios ganhos meta, mas se esforam enorme-mente para atrel-la a outros gastos do governo.

    A crise subprime comeou com um problema sistemtico de endi-vidamento pessoal em nveis insustentveis no longo prazo, a forma como governos atuaram para enfrent-la criou um problema de traje-tria de dvida e gastos pblicos insustentveis no longo prazo. As aes escolhidas apenas alteraram o foco da crise, mas no foram efi-cazes para resolv-la. Resta saber se agora que a reduo do gasto pblico e a melhoria de sua qualidade se fazem fundamentais para a superao do novo problema, os governos tero a mesma disposio, agilidade, patriotismo e compromisso com a populao que tiveram na hora de aument-lo. Ou ser que iro escolher a inflao e todos seus efeitos danosos como rota de fuga, trocando a nova crise de dvida por uma futura crise inflacionria?

    RefernciasBRASIL (BancoCentral). Ata da 160 Reunio do Copom, 2011.

    ______. Ata da 161 Reunio do Copom, 2011.

    ______. Ata da 162 Reunio do Copom, 2011.

    GREENSPAN, A. The Age of Turbulence: adventures in a new word. Ed. Penguin Books, 2008.

    KEYNES, J. M. Teoria Geral do emprego, do juro e da moeda. Ed. Atlas, 1992.

    KRUGMAN, P. Krugman Blog, em: .

    REINHART, C. M.; KENNETH, S. R. This Time is Different: eight centuries of financial folly. Ed. Princeton University Press, 2009.

  • 36

    Crise econmica internacional: desdobramentos

    Sergio Augusto de Moraes

    Nos ltimos decnios, depois do fim da URSS e do campo so-cialista, o neoliberalismo imperou de forma quase absoluta, colocando o mercado como um Deus que deveria regular no somente a economia, mas todas as outras relaes sociais, aqui in-cluda a tica poltica. Assim, no de estranhar o mar de corrupo que inundou os governos no mundo. E a inundao continuar, a menos que os povos resolvam indignar-se e intervir, como, alis, co-mea a acontecer em vrios pases.

    A crise no uma questo do neoliberalismo, mas sim uma mani-festao intrnseca e peridica do sistema capitalista, porque ele tem como princpio e como fim a busca do lucro mximo e no a satisfao das necessidades humanas. A crise uma forma de resolver seus pro-blemas, destruindo meios de produo, reduzindo ativos financeiros a p, ceifando vidas.

    Os dados a seguir mostram como a crise se armava: tomando como referncia as quinhentas maiores corporaes listadas na revista For-tune, observamos que a taxa de lucro mdia das mesmas foi de: 7,15%, entre 1960 e 1969; 5,30%, entre 1980 e 1990; 2,29%, entre 1990 e 1999; e 1,32%, entre 2000 e 2002.1

    Aqui cumpre observar que (...) a taxa de lucro diminui no porque o operrio seja menos explorado mas porque se emprega cada vez me-nor quantidade de trabalho para o capital investido.2

    O professor de economia da Universidade de Nova York, Nouriel Roubini, entende que: As corporaes motivam-se pelos custos m-nimos, para economizar e fazer caixa, mas isso implica menos di-nheiro nas mos dos empregados, o que significa que eles tero me-nos dinheiro para gastar, o que repercute na diminuio da receita das companhias.3

    1 Le Monde Diplomatique, edio brasileira, jun. 2009, p. 9.2 K. Marx, O Capital. V. III, Ed. La Habana,1973, p. 268.3 Entrevista ao Wall Street Journal, 11/08/2011.

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    Crise econmica internacional: desdobramentos

    Sergio Augusto de Moraes

    Para Paul Krugman, Nobel de Economia, o que est em curso ago-ra uma tentativa de consolidar e ampliar o processo de concentrao de renda vivido entre 1973 e 2010. No perodo, a renda de 90% das famlias norte-americanas cresceu apenas 10%, em termos reais, en-quanto o 1% dos mais ricos triplicou de renda e a diferena entre os salrios dos executivos-chefes das grandes corporaes e o rendimen-to mediano dos trabalhadores passou de 26 para 300 vezes.4

    Entretanto, esta crise, diferentemente das anteriores, caracteriza-se tambm:

    a) pela destruio dos limites poltico-econmicos colocados ao movimento do capital aps a crise de 1929;

    b) pelo aumento avassalador de capital fictcio atingindo volumes que superam os das outras formas de capital, (segundo o BIS Bank of International Settlements, o mercado de derivativos atingiu US$543 trilhes no final de 2008, quase 15 PIBs dos EUA);

    c) pela expanso exponencial das foras produtivas mundiais ori-ginadas no cruzamento das conquistas da revoluo cientfico-tecnolgica com a incorporao da China e da ex-URSS ao cir-cuito do capital globalizado;

    d) pela brutal agresso ao meio ambiente praticada, nos ltimos decnios, atingindo propores que constituem uma ameaa ao futuro da humanidade.

    A reao dos governos capitalistas crise, em particular os dos pases mais ricos, foi, por um lado, liberar centenas de bilhes de d-lares para os bancos e as grandes corporaes e, por outro, atacar os direitos dos trabalhadores. Reduo de empregos, aumento da idade para aposentadoria, reduo do seguro desemprego etc. etc. Milhes de jovens trabalhadores no conseguem trabalho. Nos EUA, o nmero de pobres cresce e chega hoje a 46 milhes de pessoas, enquanto o pas gasta bilhes de dlares nas guerras do Afeganisto, Iraque e L-bia. A destruio de meios de produo e de vidas humanas aparece aqui com toda sua crueza.

    A desigualdade aumenta, no s dentro dos pases, mas tambm entre pases. A Grcia j iniciou sua moratria, o PIB da Irlanda caiu 10%, Portugal, Espanha e Itlia pedem socorro. Os ativos financeiros esto virando p.

    4 Citado no site Outras Palavras, 12/09/11.

  • 3838

    Tema de capa: A crise mundial

    Poltica Democrtica N 31

    O insuspeito jornal O Globo, em sua edio de 4 de setembro lti-mo, abre uma manchete significativa: Bancos ricos, Governos pobres e assinala que o lucro total dos bancos americanos cresceu 40,71% entre 2009 e 2010, enquanto no mesmo perodo a dvida bruta dos pases do G-7, os mais ricos do mundo, passou de US$35,3 trilhes para US$41,2 trilhes.

    A situao to escandalosa que Warren Buffett, um dos dez homens mais ricos do mundo, apelou para que parem de mimar os ricos e explicou: no ano passado a conta dos meus impostos fede-rais... foi de US$6,9 milhes. Parece um bocado de dinheiro. Mas foi apenas 17,4% do meu rendimento tributvel... enquanto a carga fiscal mdia das 20 pessoas que trabalham em meu escritrio ficou em 36%.5

    Warren Buffett no bobo. Ele percebe que para continuar ga-nhando no pode matar a galinha dos ovos de ouro, isto , os traba-lhadores. Seguindo a sugesto de Buffett, o presidente Obama enviou um projeto ao Congresso aumentando a carga fiscal dos ricos. Mas a oposio republicana, que maioria, j declarou que o projeto no passa. Ela continua refm do Tea Party, sua ala mais reacionria, uma ameaa democracia.

    Por algumas caractersticas de sua economia, os pases ditos emergentes, dentre eles o Brasil, pouco sofreram at agora com a crise. Isto os colocou numa posio vantajosa com relao aos pases do G-7, levando-os a reivindicar maior poder de deciso nos organis-mos de governana global. Este um movimento que pode democra-tizar tais organismos.

    No entanto, inevitvel que a recesso no mundo rico acabe afe-tando o mundo mais pobre e o Brasil vai sofrer com isso. J se anun-cia aumento dos estoques de ao, frias coletivas nas indstrias do ABC etc.

    A reao dos povos em todo o mundo significativa e diversa. En-tretanto, cumpre assinalar algumas de suas caractersticas:

    no mundo rabe, ela marcada pela presena massiva de jo-vens, em boa parte desempregados. A bandeira poltica mais aparente a derrubada dos ditadores, mas existe um vnculo forte com a luta por emprego;

    na Espanha, milhares de jovens acamparam nas praas du-rante semanas, exigindo emprego e criticando o governo. No

    5 Entrevista ao The New York Times, 14/08/2011.

  • 3939

    Crise econmica internacional: desdobramentos

    Sergio Augusto de Moraes

    maior dos acampamentos, o da Puerta Del Sol, em Madrid, eles no aceitavam manifestaes de partidos polticos;

    na Itlia, realizou-se uma greve geral contra as medidas de arrocho do governo Berlusconi; os partidos de oposio tive-ram participao destacada;

    no Chile, um movimento estudantil pela escola pblica ga-nhou tal fora que o governo teve que sentar-se mesa com seus lderes para discutir suas propostas. A lder deste movi-mento uma jovem do Partido Comunista do Chile;

    nos EUA, presenciamos um movimento pleno de potencialida-des, liderado pelos jovens, o Occupy Wall Street. Suas rei-vindicaes atingem o cerne do capital financeiro.

    Deparamo-nos com uma crise global que pe novamente mostra a incapacidade do sistema capitalista de resolver os problemas bsi-cos da humanidade. Entretanto, os movimentos de massa contra os efeitos desta crise ainda no colocam como bandeira a ultrapassagem deste modo de produo. Com certeza, uma razo para isso que ain-da no foi formulada uma alternativa ao capitalismo do sculo XXI que incorpore os ensinamentos das tentativas anteriores de constru-o do socialismo e, ao mesmo tempo, consiga indicar caminhos que evitem os erros cometidos nas mesmas.

  • II. Observatrio

  • Autores

    Washington BonfimProfessor do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal do Piau (UFPI).

    Raul JungmannEx-ministro do Desenvolvimento Agrrio, ex-presidente do Ibama, ex-deputado federal e atual presidente do PPS de Pernambuco.

    Ludmila Caminha BarrosAdvogada pernambucana especializada em Direito Urbano, Direito Ambiental e Direito Agrrio.

    Cndido GryzbowskiSocilogo e diretor do Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas (Ibase).

  • 43

    Crises e referncias republicanas

    Washington Bonfim

    tanto maior a responsabilidade dos homens de pensamento quanto mais intenso o proces-

    so de transformao da sociedade em que vivem. Nessas sociedades, em rpida mudana,

    que se torna possvel a tomada de conscincia dos grandes problemas sociais, abrindo-se

    para os trabalhadores do pensamento a oportunidade nica de cooperar conscientemente no

    aperfeioamento da cultura e de contribuir para o desenvolvimento do homem como ser social.

    (Celso Furtado)

    Numa outra passagem, desta feita de Milton Santos, em Por Uma Outra Globalizao, o papel dos intelectuais ainda mais ressaltado:

    O terrvel que, nesse mundo de hoje, aumenta o nmero de letrados e di-minui o de intelectuais. No este um dos dramas atuais da sociedade bra-sileira? Tais letrados, equivocadamente assimilados aos intelectuais, ou no

    pensam para encontrar a verdade, ou, encontrando a verdade, no a dizem. Nesse caso, no se podem encontrar com o futuro, renegando a funo prin-cipal da intelectualidade, isto o casamento permanente com o porvir, por meio da busca incansada da verdade.

    Um terceiro grande intelectual, ainda vivo, Eric Hobsbawm, em entrevista para o jornal O Estado de S. Paulo, em 11 de setembro de 2011, quando perguntado sobre a sensao de falta de rumos que as-sombra o mundo contemporneo, afirma: [...] notamos a mesma sen-sao de desorientao ao vermos como os Estados Unidos mergulha-ram numa crise econmica que at parece ver o breakdown (quebra) do capitalismo liberal [...]. No entreguerras, a escolha principal de um modelo se dava entre o capitalismo reformado e o socialismo com forte

  • 4444

    Observatrio

    Poltica Democrtica N 31

    planejamento econmico [...]. Hoje, esses marcos sinalizadores desa-pareceram e os pilotos que guiariam nossos destinos, tambm.

    Sem nenhuma dvida, citamos trs grandes intelectuais, de en-vergadura internacional. Nos dois primeiros que no viveram o su-ficiente para alcanar esta fase da histria mundial em que, desde 2008, vivemos enredados numa teia profunda de problemas deriva-dos de uma crise econmica gerada nas principais economias mun-diais , surge o ideal da funo dos intelectuais. Mais do que isto, o debate gira em torno da necessidade de que se coloquem claramente diante do mundo, a partir de suas ideias e, principalmente, de sua postura corajosa.

    Hobsbawm, nesta entrevista e num livro recm-lanado nos EUA e Inglaterra, procura cumprir um papel ainda mais importante: recolo-car os termos da discusso a partir da qual poderamos visualizar sadas efetivas para o conjunto de problemas que estamos vivendo. O que assusta, no caso brasileiro, que parece haver poucas referncias intelectuais capazes de aglutinar reflexes profundas sobre a situao mundial e seus impactos sobre a vida, a sociedade e a economia na-cionais, e a principal delas, veremos, est no conceito de repblica.

    O individualismo, a liberdade, o consumo e a tecnologia tornaram nosso mundo praticamente ininteligvel, em funo das inmeras fa-cetas que passa a produzir. A poltica, como atividade de agregao de interesses, perde vigor e legitimidade, e o grande debate intelectual contemporneo se d na fronteira da sua crise, segundo concepes que remetem legitimidade do Poder Judicirio de interferir em questes, at bem pouco tempo, exclusivas do domnio da representao popular.

    De fato, esta crise da poltica se afigura de inmeras maneiras. Por um lado, est personificada na falta de lderes polticos de enver-gadura mundial, capazes de aglutinar pensamento e musculatura po-ltica para conduzir processos de mudana de mdio e longo prazos. Pode-se tambm not-la na enorme perplexidade diante da necessida-de de lidarmos com novas potncias econmicas mundiais, os chama-dos Brics, que renem pases to distintos quanto frica do Sul, Bra-sil, China, ndia e Rssia.

    A crise da poltica tambm aparece configurada na incapacida-de de os mecanismos de representao cumprirem seus mandatos, seja pelos desvios de conduta dos que foram eleitos, seja pela deficin-cia dos processos de oxigenao das ideias e percepo dos interes-ses dos representados. Na realidade, a internet, atravs das redes sociais, agrava a percepo deste problema, pois descortina uma

  • 4545

    Crises e referncias republicanas

    Washington Bonfim

    contradio pulsante da vida contempornea: vigor reivindicatrio de carter individual e falncia cooperativa e/ou corporativa dos or-ganismos de representao.

    Diante dessas circunstncias, a sada est nos valores, na compre-enso clara de quais valores nossas sociedades podem e devem profes-sar. Creio, sem profundo conhecimento jurdico, que poderamos tra-duzir esta noo numa mxima que assimilaria valores aos direitos. Neste caso, Norberto Bobbio que nos d a senha para que se colo-quem parmetros discusso, no seu clssico A era dos direitos, pu-blicado pela primeira vez no Brasil em 1992.

    No caso brasileiro, avanamos muito na busca da consolidao dos direitos, em todas as esferas, inclusive a dos direitos sociais, mas, novamente, na poltica estamos deixando a desejar. Nossa democracia no convive com mtodos republicanos, e esta separao sumamen-te danosa para o tecido social, em termos ticos, econmicos e sociais. Nas palavras de Walzer: O interesse pelas questes pblicas e a devo-o s causas pblicas so os principais sinais da virtude cvica.

    Talvez este seja o maior desafio contemporneo, no apenas brasi-leiro, aliar democracia e repblica, participao com responsabiliza-o pblica de gestores e cidados. Novamente abusando um pouco das palavras de outro autor, cito Gabriel Cohn: Os atores sociais e polticos podem orientar suas aes por regras de eficcia que envol-vem interesses ou por valores que envolvem subordinao de inte-resses prprios a outros alvos de carter mais universalizante. No pri-meiro caso, satisfazem as exigncias democrticas; no segundo, entram no campo republicano.

    Em todas as esferas de nossa vida social, urge a necessidade de preservao das liberdades e dos direitos, que s se concretizam na vida coletiva, a qual no prescinde, em nenhum momento, das chama-das virtudes pblicas. Desta necessidade de convivncia coletiva surge, igualmente, a necessidade de reconhecimento da pluralidade, algo cada vez mais raro em nossos sistemas polticos.

    Repblica e pluralidade podem operar conceitos econmicos e fornecer compreenso para a reforma de nossas sociedades? Est a um grande desafio intelectual!

  • 46

    O 11 de Setembro e ns

    Raul Jungmann

    Os atentados de dez anos atrs, s torres gmeas do World Trade Center, tiveram o condo de introduzir trs mudanas visveis ainda hoje, dentre outras.A primeira delas, e mais duradoura, foi a subida do tema seguran-

    a ao topo da agenda internacional, com todo seu corolrio de resolu-es da ONU, reforos dos aparatos de defesa, protocolos adicionais de controle de comrcio entre pases etc.

    Hoje, vivemos todos num universo muito mais invasivo, com a pre-sena do Estado bem maior que antes nas nossas vidas, em especial nos EUA e Europa. Direitos foram podados e estendidos ao mximo os mandatos das novas agncias de controle e segurana.

    O segundo dos impactos se deu na ordem internacional, mediante o apogeu do unilateralismo americano, cujo exemplo mximo se con-substanciou na invaso do Iraque, dissipando o capital amealhado pelos norte-americanos quando da reao inicial ao 11 de Setembro e a invaso compartilhada do Afeganisto.

    Como corolrio, os EUA, revertendo a tendncia do segundo gover-no Clinton, passaram a enfrentar dficits fiscais crescentes, que hoje, ps crise de 2008, foram ampliados e, no presente, exaurem, do ponto de vista fiscal, a maior economia do planeta.

    Por ltimo, a governana internacional e o multilateralismo foram duramente atingidos pela opo de respostas unilaterais por parte dos Estados Unidos e seus aliados, sem o respaldo da ONU.

    E ns com isso, relativamente ao mundo que emergiu no ps 11 de Setembro de 2001?

    De l para c, o Brasil avanou a passos largos para um protago-nismo global, na esteira do seu sucesso econmico, avano na redu-o da pobreza e estabilidade democrtica.

    Entretanto, fizemos isso sem que debate algum fosse travado pelo lado dos riscos inerentes ao novo patamar que atingimos e s novas tarefas que nos esperam, e quanto aos objetivos que perseguimos, como o assento no Conselho de Segurana da ONU.

  • 4747

    O 11 de Setembro e ns

    Raul Jungmann

    Nossa elite ambiciona e discute apenas o bnus decorrente da nos-sa projeo, na mais completa desateno para a sua outra face, a exemplo dos nossos riscos crescentes quanto a um ataque terrorista.

    Nossas fragilidades so vrias e se concentram na:

    a) Inexistncia de um marco legal que tipifique penalmente o ter-rorismo. Dispomos apenas de legislao conexa, o que obvia-mente ser um embarao atuao do Judicirio e do Minist-rio Pblico, como tambm s foras de segurana.

    b) Desestruturao do aparato de Estado, dado que a Autoridade Antiterrorismo at hoje no saiu do papel e a linha de coman-do, tarefas e hierarquia permanecem ambguas.

    c) Inexistncia de um Plano Nacional Antiterrorismo, com linhas de ao definidas, planos de contingncia para equipamentos de massa e infraestruturas crticas etc.

    d) Negacionismo estatal, isto , a sistemtica ocultao dos fa-tos e realidades por parte do governo federal, temendo a intru-so dos americanos e a reao por parte dos rabes, pela ado-o das medidas antiterror. Essa atitude liderada, no mbito do governo, pelos ministrios das Relaes Exteriores, da Defe-sa e da Justia.

    e) Interdio do debate, que a contraparte da sociedade, de uma forma to autoritria, a ponto de tachar a quem prope discutir to importante tema de jogar contra o interesse nacional.

    f) Poltica externa brasileira, que perdeu o seu equilbrio histrico vis--vis os conflitos no Oriente Mdio e que, somada frouxido interna no combate ao terrorismo, tornam o Brasil uma friendly house para o trnsito e homizio de redes internacionais.

    Tudo isso somado leva a que o nosso pas, desgraadamente, venha um dia a repetir o feito da Argentina, a qual, golpeada em 1992 e 1994 por atentados que mataram cem pessoas, no dispunha de instrumen-tos, legislao ou estrutura adequada de preveno e/ou resposta.

    Eles l, antes dos episdios, como ns aqui hoje, achavam tolos e inverossmeis os que alertavam para os riscos de um ataque de uma rede internacional terrorista...

    Aos que acham que Deus brasileiro, ns somos o pas do samba, futebol e da alegria, no custa nada lembrar que para o prximo ano teremos a Rio+20 e, em seguida, a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpadas, em 2016...

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    O processo de modificao do Cdigo Florestal brasileiro

    Ludmila Caminha Barros

    O modelo de desenvolvimento rural hegemnico no Brasil des-de os primrdios da colonizao a monocultura exporta-dora. Valendo-se da superexplorao da mo de obra, da apropriao ilegal de terras pblicas e da destruio das florestas, o Brasil tornou-se forte no mercado global de commodities agrcolas, as-segurando o equilbrio do seu balano de pagamentos. Esta posio tambm deve muito abundncia de polticas pblicas de suporte: a monocultura exportadora se apropria da maior parte dos investimen-tos pblicos para a agricultura, recebendo em face da agricultura familiar que quem produz os alimentos que o povo consome a maioria dos investimentos para infraestrutura produtiva, financia-mento produo, assistncia tcnica e extenso rural, pesquisa e desenvolvimento, associativismo e cooperativismo etc. Isso no se consegue sem hegemonia poltica a assegurar o controle de governos locais e dos poderes legislativos nos trs nveis da Federao.

    Apesar de representantes do agronegcio reconhecerem que possvel aumentar a produo de alimentos sem a necessidade de abdicar das reas de proteo ambiental, s com investimentos para aumentar a produtividade e de um ex-ministro da Agricultura fazer coro aos que afirmam que hoje as reas degradadas de pasto ocu-pam o mesmo espao das culturas de gros, no falta quem insista que a preservao das florestas no Brasil obsta a produo de ali-mentos no pas. Se, no final do sculo XIX, os fazendeiros argumen-tavam que era impossvel abolir a escravido sem tirar a competitivi-dade da produo agrcola brasileira, hoje acusam as florestas de obstar a produo de alimentos!

    Assim, em bases irracionais e equivocadas, est ocorrendo a modi-ficao do Cdigo Florestal brasileiro. Nada adiantou uma pesquisa do Instituto Datafolha mostrar que a imensa maioria da sociedade civil brasileira contra a mudana do Cdigo Florestal. Todo ano, durante a estao das chuvas, enchentes inundam as cidades beira dos rios e deslizamentos de terras nas colinas urbanas matam milhares de pessoas. Mas, essas mortes repetidas no convencem da necessidade

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    O processo de modificao do Cdigo Florestal brasileiro

    Ludmila Caminha Barros

    de proteger a vegetao cuja integridade as impediria: o projeto de lei substitutivo permite a supresso de 50% dessa vegetao.

    Em uma v tentativa de trazer racionalidade cientfica ao debate, um estudo conjunto da Academia Brasileira de Cincias e da Socieda-de Brasileira para o Progresso da Cincia argumentou a importncia da reverso da degradao ambiental e da manuteno da vegetao nativa s margens dos corpos dgua e nas encostas dos morros para o controle da eroso. O trabalho das principais instituies de pesqui-sa brasileiras foi desmerecido pelo deputado relator do projeto, que o acusou de ter sido financiado pelo lobby ambientalista formado pelo Greenpeace e WWF. Para piorar, o novo texto legal no apenas reduz o tamanho da rea sob proteo, como tambm facilita a obteno das licenas para o seu desmatamento.

    Foi em vo tambm que o subprocurador geral da Repblica, em audincia pblica no Senado, realizada em 13 de setembro com juris-tas, afirmou que essas mudanas impedem o Brasil de cumprir com seus compromissos internacionais em matria ambiental, principal-mente no que se refere estabilizao do clima. A observncia dos compromissos internacionais do Brasil exige no apenas que se man-tenham os nveis atuais de proteo, mas tambm que se recupere o passivo ambiental resultante da degradao das reas hoje protegidas n