PB-Novas Metas Curriculares Para Portugues Vao Criar Novas Dificuldades de Aprendizagem

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Quantas palavras lêem por minuto? A B C D E F G H I J L M N O P Q R S Fonte: Maria Dulce Gonçalves Velocidade de leitura observada nos mesmos alunos em dois anos distintos 0 20 40 60 80 100 120 140 palavras 2010 2011 Meta no 4.º ano: Ler um texto com articulação e entoação correctas e uma velocidade de leitura de, no mínimo, 125 palavras por minuto Meta no 5.º ano: Ler um texto com articulação e entoação correctas e uma velocidade de leitura de, no mínimo, 140 palavras por minuto Num primeiro momento, a psicó- loga educacional e professora da Universidade de Lisboa Dulce Gon- çalves, especialista em dificuldades de aprendizagem, regozijou-se. Fi- nalmente ia chegar, já este ano, às escolas portuguesas o que descreve como “uma técnica maravilhosa” — medir a afluência da leitura — para ajudar as crianças com dificuldades a acreditar que também elas são ca- pazes. Mas a euforia esgotou-se mal começou a ler o documento das no- vas metas curriculares de Português para o ensino básico, já em vigor, e concluiu que afinal aquela técnica chegará às escolas portuguesas “da pior das formas”. Dulce Gonçalves sabe do que fala. Nos últimos três anos tem co- ordenado o projecto Investigação das Dificuldades para a Evolução da Aprendizagem (IDEA) da Universida- de de Lisboa, no âmbito do qual tem acompanhado várias escolas, tendo na base a avaliação e o acompanha- mento da evolução precisamente em fluência da leitura, embora não só. Os resultados foram apresenta- dos em Junho, em Avis. Na terça-feira, o IDEA voltou a promover novo seminário naque- la vila alentejana, agora já na posse das novas metas curriculares, cujo aplicação este ano é já “fortemente recomendada” pelo Ministério da Educação e Ciência e que passarão a ser obrigatórias no próximo. No 1.º ano todos os alunos terão de conseguir ler 55 palavras por minutos; no 2.º ano 65; no 3.º 80; no 4.º 125 e por aí fora. Dulce Gon- çalves não tem dúvidas de que tal é “impossível” e aponta como exem- plo os resultados apresentados esta semana em Avis. Aterradores. O mé- todo de medição proposto pelo mi- nistério é o mesmo que tem sido uti- lizado pelos investigadores do IDEA. Mas bastou sobrepor uma linha aos gráficos que davam conta das ava- liações feitas nas escolas parceiras do projecto para ver o que poderá acontecer: com os novos indicado- res impostos aos alunos, pelo menos mais de metade dos estudantes de todas as turmas e escolas avaliadas Novas metas curriculares para Português vão criar “novas dificuldades de aprendizagem” não conseguiriam alcançar os des- critores de desempenho em fluên- cia de leitura que o MEC dá como obrigatórios em cada ano de esco- laridade. Há mesmo casos, como o descrito no gráfico que acompanha este texto, em que nenhum alcança- ria o objectivo. Dulce Gonçalves frisa que entre os alunos avaliados não figura nenhum com necessidades educativas espe- ciais e que nenhuma das escolas par- ceiras do IDEA se pode descrever como sendo problemática. Em vez de melhorar a qualidade do ensino e as aprendizagens dos alunos con- forme anunciado, este tipo de des- critores de desempenho incluídos nas metas curriculares vão levar a que “surjam novas dificuldades de aprendizagem”, alerta a psicóloga, que desafia os pais a experimenta- rem fazer o que irá agora ser pedido aos filhos. Não obedecer O susto levou-a a abdicar do mês de férias para escrever um livro Metas, Mitos e Desafios — onde aplica o que é proposto pelo MEC aos resultados da sua longa inves- tigação. Considera que esta “é uma obrigação moral” para quem andou “tantos anos a estudar” estas maté- rias e alarga o desafio. Fê-lo, aliás, já em Avis, frente a uma plateia de professores: um documento como o das metas curriculares de Portu- guês “devia suscitar uma resposta de não-obediência por parte dos professores”. Segundo a psicóloga, o que irá passar a ser obrigatório, ao impor um critério único para todos, ignora “que o que caracteriza a escolarida- de obrigatória é a diversidade e não o contrário”. “Em vez de apontar uma faca, o ministério devia ter op- tado por fixar intervalos de valores”, defende, lembrando que é isso que se faz, por exemplo, nos EUA, de onde vem precisamente esta técnica e onde “a medida de fluência de lei- tura é utilizada para perceber como os alunos estão a evoluir”. Mas há mais perigos, adverte. Não foram fixados os momentos em que a avaliação da fluência da leitura é feita, nem sobretudo quais os textos que serão propostos para esta ava- liação. O que significa que “a com- plexidade dos textos propostos po- derá ficar totalmente dependente do critério de cada professor”, alerta. E finalmente, frisa, continua também sem se saber o que irá acontecer aos alunos que não atinjam as metas curriculares. Chumbam? A avaliar pelo que se indica repe- tidamente no documento das metas curriculares de Português, talvez se- ja esse o destino. Ali se indica que os objectivos e descritores de desem- penho “indicados em cada ano de escolaridade são obrigatórios”. No seu livro refere, a propósito, que “a sanha do redactor das me- tas curriculares de Português foi tal que, para cada ano de escolaridade, se repete sempre a reafirmação des- ta obrigatoriedade”. Uma imposi- ção que, nota Dulce Gonçalves, não se encontra expressa, por exemplo, nas metas curriculares de Matemá- tica. Educação Clara Viana A maioria dos alunos não conseguirá alcançar o que vai ser obrigatório em fluência da leitura, adverte investigadora 55 É o número de palavras por minuto que um aluno do 1.º ano terá obrigatoriamente de conseguir ler. No 4.º ano o número aumenta para 125.

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Page 1: PB-Novas Metas Curriculares Para Portugues Vao Criar Novas Dificuldades de Aprendizagem

Tiragem: 44837

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 16

Cores: Cor

Área: 15,87 x 30,32 cm²

Corte: 1 de 2ID: 43749278 14-09-2012

Quantas palavras lêem por minuto?

A B C D E F G H I J L M N O P Q R S

Fonte: Maria Dulce Gonçalves

Velocidade de leitura observada nos mesmos alunos em dois anos distintos

0

20

4060

80

100

120

140 palavras

2010 2011

Meta no 4.º ano: Ler um texto com articulação e entoação correctas e uma velocidade de leitura de, no mínimo, 125 palavras por minuto

Meta no 5.º ano: Ler um texto com articulação e entoação correctas e uma velocidade de leitura de, no mínimo, 140 palavras por minuto

Num primeiro momento, a psicó-

loga educacional e professora da

Universidade de Lisboa Dulce Gon-

çalves, especialista em difi culdades

de aprendizagem, regozijou-se. Fi-

nalmente ia chegar, já este ano, às

escolas portuguesas o que descreve

como “uma técnica maravilhosa” —

medir a afl uência da leitura — para

ajudar as crianças com difi culdades

a acreditar que também elas são ca-

pazes. Mas a euforia esgotou-se mal

começou a ler o documento das no-

vas metas curriculares de Português

para o ensino básico, já em vigor, e

concluiu que afi nal aquela técnica

chegará às escolas portuguesas “da

pior das formas”.

Dulce Gonçalves sabe do que

fala. Nos últimos três anos tem co-

ordenado o projecto Investigação

das Difi culdades para a Evolução da

Aprendizagem (IDEA) da Universida-

de de Lisboa, no âmbito do qual tem

acompanhado várias escolas, tendo

na base a avaliação e o acompanha-

mento da evolução precisamente

em fl uência da leitura, embora não

só. Os resultados foram apresenta-

dos em Junho, em Avis.

Na terça-feira, o IDEA voltou a

promover novo seminário naque-

la vila alentejana, agora já na posse

das novas metas curriculares, cujo

aplicação este ano é já “fortemente

recomendada” pelo Ministério da

Educação e Ciência e que passarão

a ser obrigatórias no próximo.

No 1.º ano todos os alunos terão

de conseguir ler 55 palavras por

minutos; no 2.º ano 65; no 3.º 80;

no 4.º 125 e por aí fora. Dulce Gon-

çalves não tem dúvidas de que tal é

“impossível” e aponta como exem-

plo os resultados apresentados esta

semana em Avis. Aterradores. O mé-

todo de medição proposto pelo mi-

nistério é o mesmo que tem sido uti-

lizado pelos investigadores do IDEA.

Mas bastou sobrepor uma linha aos

gráfi cos que davam conta das ava-

liações feitas nas escolas parceiras

do projecto para ver o que poderá

acontecer: com os novos indicado-

res impostos aos alunos, pelo menos

mais de metade dos estudantes de

todas as turmas e escolas avaliadas

Novas metas curriculares para Português vão criar “novas dificuldades de aprendizagem”

não conseguiriam alcançar os des-

critores de desempenho em fl uên-

cia de leitura que o MEC dá como

obrigatórios em cada ano de esco-

laridade. Há mesmo casos, como o

descrito no gráfi co que acompanha

este texto, em que nenhum alcança-

ria o objectivo.

Dulce Gonçalves frisa que entre os

alunos avaliados não fi gura nenhum

com necessidades educativas espe-

ciais e que nenhuma das escolas par-

ceiras do IDEA se pode descrever

como sendo problemática. Em vez

de melhorar a qualidade do ensino

e as aprendizagens dos alunos con-

forme anunciado, este tipo de des-

critores de desempenho incluídos

nas metas curriculares vão levar a

que “surjam novas difi culdades de

aprendizagem”, alerta a psicóloga,

que desafi a os pais a experimenta-

rem fazer o que irá agora ser pedido

aos fi lhos.

Não obedecerO susto levou-a a abdicar do mês

de férias para escrever um livro

— Metas, Mitos e Desafi os — onde

aplica o que é proposto pelo MEC

aos resultados da sua longa inves-

tigação. Considera que esta “é uma

obrigação moral” para quem andou

“tantos anos a estudar” estas maté-

rias e alarga o desafi o. Fê-lo, aliás,

já em Avis, frente a uma plateia de

professores: um documento como

o das metas curriculares de Portu-

guês “devia suscitar uma resposta

de não-obediência por parte dos

professores”.

Segundo a psicóloga, o que irá

passar a ser obrigatório, ao impor

um critério único para todos, ignora

“que o que caracteriza a escolarida-

de obrigatória é a diversidade e não

o contrário”. “Em vez de apontar

uma faca, o ministério devia ter op-

tado por fi xar intervalos de valores”,

defende, lembrando que é isso que

se faz, por exemplo, nos EUA, de

onde vem precisamente esta técnica

e onde “a medida de fl uência de lei-

tura é utilizada para perceber como

os alunos estão a evoluir”.

Mas há mais perigos, adverte. Não

foram fi xados os momentos em que

a avaliação da fl uência da leitura é

feita, nem sobretudo quais os textos

que serão propostos para esta ava-

liação. O que signifi ca que “a com-

plexidade dos textos propostos po-

derá fi car totalmente dependente do

critério de cada professor”, alerta. E

fi nalmente, frisa, continua também

sem se saber o que irá acontecer aos

alunos que não atinjam as metas

curriculares. Chumbam?

A avaliar pelo que se indica repe-

tidamente no documento das metas

curriculares de Português, talvez se-

ja esse o destino. Ali se indica que os

objectivos e descritores de desem-

penho “indicados em cada ano de

escolaridade são obrigatórios”.

No seu livro refere, a propósito,

que “a sanha do redactor das me-

tas curriculares de Português foi tal

que, para cada ano de escolaridade,

se repete sempre a reafi rmação des-

ta obrigatoriedade”. Uma imposi-

ção que, nota Dulce Gonçalves, não

se encontra expressa, por exemplo,

nas metas curriculares de Matemá-

tica.

EducaçãoClara Viana

A maioria dos alunos não conseguirá alcançar o que vai ser obrigatório em fluência da leitura, adverte investigadora

55É o número de palavras por minuto que um aluno do 1.º ano terá obrigatoriamente de conseguir ler. No 4.º ano o número aumenta para 125.

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Tiragem: 44837

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 1

Cores: Preto e Branco

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A maioria dos alunos não conseguirá alcançar o que vai ser obrigatório em fl uência da leitura, adverte investigadora. E dá vários exemplos concretos p16

Metas no Português criam “problemas de aprendizagem”