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Paul B. Preciado

TRANSFEMINISMO

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O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.

Gilles Deleuze e Félix Guattari

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TRANSFEMINISMO [2015]

Olivier me manda um e-mail, perguntando se eu gostaria de escrever algo sobre o feminismo. Eu acho que não fiz outra coisa desde que aprendi a escrever. “Estou de saco cheio do feminismo”, digo. Fui feminista quando o femi-nismo não era assunto da moda. Eu me tornei queer quando a crise da aids começou a matar os melhores de nós. Mudei para o movimento transgênero quando os hormônios se tornaram código político. Nos últimos oito anos, transi-cionei lentamente, usando testosterona em gel em pequenas doses para modular meu gênero transmasculino. Mas, nos últimos seis meses, decidi me aventurar em uma velocidade dife-rente. Estou injetando testosterona em mim

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mesmo a cada dez dias. Também mudei meu nome para Paul. Crescem pelos nas minhas pernas. Enquanto isso, meu rosto está se transformando no rosto de Paul. Entre lingua-gem e moléculas bioquímicas, fabrica-se uma subjetividade política. Mas apenas quando os outros começam a me chamar de Paul que eu me torno Paul: eu devo a eles o meu nome. Eu devo a eles a possibilidade de tirar o gênero dos trilhos.

Gênero é algo que fazemos, não algo que somos – algo que fazemos juntos. Uma rela-ção entre nós, não uma essência. O gênero pode ser usado como uma máquina, com uma única diferença: em relação ao gênero, você (corpo e alma) é o usuário e a máquina ao mesmo tempo. Gênero não é uma máquina

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que você possui. Pelo contrário, é uma máquina viva que você incorpora e usa sem possuí-la. Gênero não é uma questão de pro-priedade individual. O gênero nos é imposto em uma rede de relações sociais, políticas e econômicas, e é apenas dentro dessa mesma rede que ele pode ser renegociado. Eu sinto essa negociação ocorrendo na minha pele, em situações de visibilidade e invisibilidade, entre os enunciados dos outros e os nomes que me dão. Estou pleno de graça política.

Uma revolução está acontecendo. Não ape-nas dentro de mim, mas em todo o mundo. Essa revolução não aconteceu nos anos 1960, glamorosos e hippies. Não vai acontecer den-tro de mil anos. A revolução está acontecendo agora, na sua frente. Você está no meio dela

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6e, consciente ou não, você faz parte dela.

“Transfeminismo” é o nome dessa revolução. Se você está cheio do seu gênero, cansado de binários (menino-menina, hetero-homo, bran-co-não branco, animal-humano, norte-sul), além do modelo “casal romântico”, perdendo as esperanças no capitalismo e vive verdadei-ramente a utopia de se tornar outra pessoa, você é transfeminista. Transfeminismo não é pós-feminismo. Transfeminismo é o feminismo do século XXI reloaded.

Não que o feminismo tenha acabado ou que possamos viver sem ele; ele apenas não é sufi-ciente. Feminismo como um movimento per-tence à paisagem cultural e política do século XIX. Para não agir de maneira estúpida, deve-mos olhar para trás, rever a história. Talvez você

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não saiba que “feminismo” foi o nome que o médico francês Faneau de la Cour deu em 1871 para uma doença que ele acreditava afetar os homens que sofriam de tuberculose. Segundo ele, a tuberculose impedia os homens de desenvolverem os atributos espirituais e físicos masculinos e portanto os tornava “feministas”. Um ano mais tarde, o filho de Alexandre Dumas usou o adjetivo “feminista” para insultar os homens que apoiavam a luta pelo voto feminino.

Alguns anos depois, mulheres eleitoras e anticolonialistas se apropriaram do insulto para se referirem à sua própria luta. Elas diziam que eram feministas quando reivindica-vam igualdade legal e social nas democracias emergentes. Reivindicavam o direito de votar, trabalhar, ganhar seu próprio dinheiro, escrever

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8e publicar. Afirmavam que eram capazes de cuidar de si próprias e de tomarem decisões sobre seus próprios corpos e sexualidades.

Mulheres reivindicando o direito de governar a si mesmas pareciam tão bizarras em 1848 quanto parecem hoje as transfeministas rei-vindicando um Parlamento mundial de que participem os símios. O feminismo do final do século XIX objetivava restringir o poder patriar-cal masculino e exigia que as mulheres fossem reconhecidas como sujeitos plenamente legais na esfera democrática.

Durante o século XX, o feminismo prolife-rou em um campo heterogêneo, com diver-sas teorias e estratégias: feminismo direitista, feminismo socialista, feminismo liberal, femi-nismo cristão. Mas, se juntássemos todos na

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mesma sala, eles acabariam se matando uns aos outros. Eles têm um problema político em comum: todos operam sob a lógica de polí-ticas identitárias. Eles naturalizam a noção de “mulheres” e, enquanto brigam pelo seu reconhecimento na esfera pública, tendem a normatizar o sujeito que querem liberar. O feminismo cria seus próprios excluídos: mulhe-res não brancas, trabalhadoras sexuais, lésbi-cas, usuárias de drogas, chicanas, mulheres transexuais e transgêneras, mulheres deficien-tes, imigrantes. Todos esses sujeitos subalter-nos ao feminismo produziram os seus próprios movimentos durante o século XX. Mas, embora a luta pelo reconhecimento das mulheres seja ainda necessária, ela não pode ser feita sob a égide da política de identidade feminista.

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10O projeto transfeminista: resgatar o “femi-

nismo” de suas próprias amarras para que ele deixe de ser apenas uma tarefa de mulheres brancas heterossexuais colonizadoras boazi-nhas e humanistas. Deslocar-se do feminismo como política identitária para uma extensiva política de desidentificação. Para resistir às identificações normativas, em vez de brigar para produzir identidades. Se o feminismo foi uma resposta às configurações de poder do século XIX, o transfeminismo busca desfazer o poder neoliberal contemporâneo. Depois do movimento feminista negro, depois das lutas de 1969, depois da crise da aids e do manifesto ciborgue, vivemos no tempo transfeminista. Se o feminismo pensava que o poder estava nas leis e instituições, o

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transfeminismo sugere que o poder está nas logísticas, infraestruturas, redes e técnicas culturais. Nosso acesso às pílulas e o uso que fazemos delas –Viagra, testosterona, Prozac, Truvada, Facebook, Google, representações em vídeo etc. – são mais importantes que as leis do casamento. O sujeito do transfemi-nismo não são as “mulheres”, mas os usuários críticos das tecnologias de produção da subje-tividade. Esta é uma revolução somatopolítica: o surgimento de todos os corpos vulneráveis contra as tecnologias de opressão. A figu-ra-chave do transfeminismo, inspirada pelo manifesto de Haraway, não é nem um homem, nem uma mulher, mas um hacker mutante. A questão não é: o que eu sou? Qual sexo ou qual sexualidade? Mas: como isto funciona?

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12Como podemos interferir no seu funciona-mento? E, mais importante ainda: como isso pode funcionar de outro modo? Vamos entrar na caixa-preta e abrir as pílulas.

Em tempos de extensão global do biopoder e de técnicas farmacopornográficas de produ-ção de subjetividades sexuais, faz-se necessá-ria uma nova aliança de movimentos críticos. Nós, os trabalhadores farmacopornográficos da terra, trans, migrantes, animais, indígenas, genderqueers, crips e trabalhadores do sexo, estamos inventando novas tecnologias de pro-dução de vida e subjetividade. Nós recusamos a posição estritamente especializada da ong igualdade de gênero, como se os domínios de produção de vida econômica e política fossem extrapolar as políticas de gênero. Nós somos

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a força de trabalho somática e sexualizada do pós-fordismo global. Política-de-gênero é Política-da-Terra! Contra a expansão do Estado de Guerra, nós produzimos resistência nas redes comuns de afeto, música, sementes, ecstasy, água, palavras, micróbios, moléculas...

O inglês, que tem palavras para o ódio ao desconhecido e para a rejeição ao que é alie-nígena, ainda não tem palavras para a revo-lução transfeminista. Essas palavras estão por serem inventadas. Mas não precisamos apenas de uma nova língua, como reivindi-cava Virgínia Woolf, e sim de uma “nova hie-rarquia das paixões”: o amor romântico deve ser deixado de lado, em favor do amor terreno; mundialidade faz as vezes de nacionalidade; e sexualidade se torna heterogênese.

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14Nós somos o Parlamento pós-pornô que

está por vir. Eles dizem “representar”. Nós dize-mos “experimentar”. Eles dizem “identidade”. Nós dizemos “multitude”. Eles dizem “dívida”. Nós dizemos “cooperação sexual e interdepen-dência somática”. Eles dizem “capital humano”. Nós dizemos “aliança multiespécies”. Eles dizem “crise”. Nós dizemos “revolução”.

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A CORAGEM DE SER VOCÊ MESMO [2014]

Quando eu recebi este convite para falar da coragem de ser eu mesmo, meu ego ronronou, como se estivessem propondo a ele uma pági-na de publicidade da qual ele seria ao mesmo tempo objeto e consumidor. Eu já me via con-decorado, heroico... mas não tardou para que a lembrança dos subalternos me invadisse e defizesse qualquer concessão.

Hoje vocês me concedem o privilégio de evocar a “minha” coragem de ser eu mesmo, depois de me terem feito carregar o fardo da exclusão e da vergonha por toda a infân-cia. Vocês me oferecem esse privilégio como quem dá um trago a um cirrótico, negando ao

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16mesmo tempo meus direitos fundamentais em nome da natureza e da nação, confiscando mi-nhas células e meus órgãos para a sua gestão política delirante. Vocês me concedem essa coragem como quem dá umas fichas de cas-sino a um viciado em jogo, mas continuam se recusando a me chamar pelo meu nome mas-culino ou a concordar meu nome com os adje-tivos não femininos, simplesmente porque eu não tenho os documentos oficiais necessários nem a barba.

Vocês nos reúnem aqui como a um grupo de escravos que souberam esticar seus grilhões, mas que continuam mais ou menos dóceis, que obtiveram seus diplomas e aceitam falar a língua dos senhores: aqui estamos nós, dian-te de vocês, corpos declarados mulheres no

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nascimento, Catherine Millet, Cécile Guibert, Hélène Cixous, as vagabundas, as bissexuais, as mulheres de voz rouca, as argelinas, as ju-dias, as estereotipadas, as machonas, as es-panholas. Quando vocês vão se cansar de as-sistir à nossa “coragem” como quem se posta diante de uma atração? Quando vocês vão se cansar de nos tratar como alteridade para se tornar vocês mesmos?

Vocês me concedem a coragem, imagino, porque militei ao lado das putas, dos aidéti-cos e dos deficientes, porque falei nos meus livros das minhas práticas sexuais com dildos e próteses, contei sobre minha relação com a testosterona. Esse é o meu mundo. Essa é a minha vida, e eu não a vivi com coragem, se-não com entusiasmo e júbilo. Mas vocês não

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18sabem nada da minha alegria. Vocês preferem lamentar por mim e me conceder a coragem porque no nosso regime político-sexual, no capitalismo farmacopornográfico reinante, negar a diferença do sexo equivale a negar a encarnação de Cristo na Idade Média. Vocês me oferecem uma bela e grande coragem por-que, diante dos teoremas genéticos e dos do-cumentos administrativos, negar a diferença sexual hoje é comparável a cuspir na cara do rei no século XV.

E vocês me dizem: “Fale-nos da coragem de ser você”, como os juízes do tribunal da Inquisição disseram a Giordano Bruno durante oito anos: “Fale-nos do heliocentrismo, da im-possibilidade da Santíssima Trindade”, prepa-rando a lenha para fazer uma grande fogueira.

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De fato, como Giordano Bruno, ainda que eu já veja as chamas, acredito que uma pequena mudança de opinião não bastará. Será neces-sário destruir tudo. Explodir o campo semânti-co e o domínio pragmático. Abandonar o sonho coletivo da verdade do sexo, como foi neces-sário abandonar a ideia de que o Sol girava em torno da Terra. Para falar de sexo, de gênero e de sexualidade, é necessário começar por um ato de ruptura epistemológica, uma negação categórica, a quebra de um pilar conceitual, dando lugar às premissas de uma emancipa-ção cognitiva: é necessário abandonar total-mente a linguagem da diferença sexual e da identidade sexual (até mesmo a linguagem da identidade estratégica, proposta por Spivak, ou da identidade nômade, proposta por Rossi

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20Braidotti). O sexo e a sexualidade não são propriedade essencial do sujeito, mas, sim, produto de diversas tecnologias sociais e dis-cursivas, de práticas políticas de gestão da verdade e da vida. O produto da coragem de vocês. Não há sexos e sexualidades, mas usos dos corpos reconhecidos como naturais ou ta-xados de desviantes. E não vale a pena sacar sua última carta transcendental: a maternida-de como diferença essencial. A maternidade não é nada mais que um uso possível do corpo, dentre outros, não é garantia de diferença se-xual nem de feminilidade.

Portanto, fiquem com a coragem para vocês. Para os seus casamentos e divórcios, para suas traições e mentiras, para as suas famílias, sua maternidade, seus filhos e seus netos. Fi-

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quem com a coragem de que vocês precisam para manter a norma. O sangue-frio de prestar seus corpos ao processo incessante de repeti-ção regulada. A coragem, como a violência e o silêncio, como a força e a ordem, estão do seu lado. Eu, ao contrário, reivindico hoje a lendária falta de coragem de Virginia Woolf e de Klaus Mann, de Audre Lorde e de Adrienne Rich, de Angela Davis e de Fred Moten, de Kathy Acker e de Annie Sprinkle, de June Jordan e de Pedro Lemebel, de Eve Kosofsky Sedgwick e de Gregg Bordowitz, de Guillaume Dustan e de Amelia Baggs, de Judith Butler e de Dean Spade.

Mas porque eu amo vocês, meus pares cora-josos, desejo que lhes falte a coragem. Desejo que vocês não tenham mais força para repro-duzir a norma, que não tenham mais energia

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22para fabricar a identidade, que percam a fé no que os seus documentos dizem sobre vocês. E uma vez perdida toda a sua coragem, frouxos de alegria, eu desejo que vocês inventem um modo de usar para seus corpos. Porque eu os amo, desejo-os fracos e desprezíveis. Pois é pela fragilidade que a revolução opera.

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A VIAGEM É MINHA AMANTE [2015]

Perambulação pós-capitalista pelas ruas de Palermo,

Atenas ou Buenos Aires, com “Orlando” de Virgínia

Woolf debaixo do braço. 9 de julho de 2015, às 19h06

Quando viajo, levo sempre um livro comigo, que folheio a cada noite, buscando o sono. O livro é uma cama idiomática sobre a qual dormir. Jabès e Semprún diziam que a lin-guagem era sua única pátria. Eu também me sinto um estrangeiro com um pequeno livro debaixo do braço.

O livro é uma pirâmide portátil, escrevia Derrida a propósito do povo judeu que, fugindo do Egito, havia transformado a arquitetura em papiro para poder levá-la consigo.

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Foi assim que, na minha viagem, a obra de Virgínia Woolf tornou-se meu quarto de papel.

Por causa da relação ambivalente que tenho com a autora (eu a amo, ainda que às vezes ela seja homofóbica, sempre classista, incan-savelmente pretensiosa e impertinente), sua escrita é para mim um lugar inóspito.

Leio o diário que Virgínia Woolf escreveu enquanto redigia Orlando. Compreender como ela fazia a construção narrativa de Orlando me ajuda a pensar na fabricação de Paul. O que acontece na narrativa de uma vida quando é possível modificar o sexo da personagem principal? Virgínia qualifica o efeito que essa escrita produz nela de extas. Não escondo que às vezes sinto uma emoção parecida. Virgínia ousa chamar seu

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Orlando de biografia. Uma biografia inumana e pré-pessoal, fragmentada no espaço e no tempo: uma viagem.

Descubro com surpresa uma Virgínia mais preocupada com o feltro de suas boinas e com a renda de seus vestidos do que com as gre-ves dos mineradores que agitavam a Inglaterra; mais atenta ao volume das vendas de seu Mrs. Dalloway (250 exemplares era um verdadeiro best-seller na época) do que com a violência com a qual a polícia londrina dispersava os tra-balhadores ferroviários; mergulhada na depres-são porque Vita Sackville-West havia dito que ela não era bonita, obcecada pela sua própria morte mas definitivamente incapaz de imaginar a guerra, inicialmente econômica e em seguida política, que devastaria o Ocidente alguns anos

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mais tarde. Sua alma é mais sensível quando ela observa os bisões no zoológico de Londres do que quando observa Nelly, sua governanta, que ela trata como escrava. Por que é tão difícil estar presente diante do que acontece?

“A solidão é minha noiva”, escreve ela. E eu respondo: “A viagem é minha amante”. Um antídoto à solidão woolfiana, ao sonho domés-tico que nos ameaça a cada momento para nos afastar do que está acontecendo.

Cercada pelos mortos (Virgínia, Vita...), tomo consciência da dificuldade de estar vivo. Eu poderia enganar a mim mesmo e dar mais atenção às minhas doses de testosterona do que à minha transformação subjetiva; às tra-duções dos meus livros do que ao devir necro-político do planeta.

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Aterrisso em Palermo com Orlando embaixo do braço. Para ir do aeroporto à universidade pegamos a autoestrada na qual a máfia sici-liana matou o juiz Falcone em 1992 deto-nando seiscentos quilos de explosivos que estavam enterrados sob o asfalto quando seu carro passou na estrada em que estou agora. Os restos do veículo expostos no seu memorial são uma imagem condensada das instituições democráticas europeias. Mais tarde, caminhando por entre os prédios em ruínas e os vendedores ambulantes de peixe no centro de Palermo, eu teria a intuição de que existe uma cidade escondida sob a car-tografia oficial: um mapa traçado pela máfia com sangue, esperma, cocaína e dinheiro. O novo capitalismo.

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28Alguns dias depois, em Buenos Aires, no

bairro La Boca, mas também em Corrientes, eu tenho dificuldade em acreditar que esse terri-tório ainda pertença às formas de produção que nós chamamos de capitalismo. Um dólar pode custar oito pesos no câmbio do banco ou doze nas ruas do microcentro, ou dezoito, ou ainda uma cabeça de animal ou de homem no La Boca. O mercado é uma roleta-russa. O capital deixa de ser o referente abstrato de equivalência entre trabalho e bens para se tornar referencial de risco e criminalidade, de desapropriação e violência.

Viajo da Argentina para a Grécia passando por Barcelona, onde, de modo quase ines-perado, os cidadãos e o movimento dos Indignados conseguiram, pelas mãos de Ada

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Colau, escalar as urnas até chegar aos espa-ços institucionais de gestão da cidade. No dia seguinte, em Exárchia, bairro anarquista de Atenas, os habitantes se reúnem para trocar informações sobre a dívida. A rua se trans-forma em universidade pública. Uma semana depois eles constroem a possibilidade de um OXI [não, em grego] e com ele um novo para-digma ético-estético da revolta, uma micropo-lítica de cooperação somática e cognitiva.

Nas ruas de Palermo, Atenas ou Buenos Aires, onde os Estados-nações herdados da geopolítica da Guerra Fria se afundam e onde prolifera uma nova governamentalidade supraestatal tecnopatriarcal gerida pelas máfias financeiras, emergem as práticas experimentais de coletivização do saber e da

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produção. É assim que, no meio de uma guerra sem nome, os fundamentos sociais e políticos de uma vida pós-capitalista se inventam sob nossos olhos.

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Paul B. Preciado, nascido na Espanha, é um dos mais originais pensadores da atualidade sobre a questão do gênero, o pós-feminismo e a teoria queer. Com sólida formação filosófica, inspirado em autores como Derrida, Foucault, Deleuze, Negri, e em vivo debate com figuras como Judith Butler, Preciado renovou inteiramente a perspectiva sobre a construção social e política do sexo. Com sua escrita cáustica e pro-vocativa, radical tanto na teoria quanto na prática, é leitura obrigatória para repensar a subjetividade e as novas figuras da sexualidade contemporânea.

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