Patricia Cornwell doutora Scarpetta 08 Contágio Perverso

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Contgio criminoso PATRCIA D. CORNWELLIncio da contracapa um cadaver apareceu no meio do lixo, num aterro sanitrio da Virgnia. Detalhes como a amputao habilidosa da cabea e dos membros lembram casos que a dra. Kay Scarpetta examinou na Irlanda, onde esteve recentemente para pronunciar uma srie de conferncias. As vtimas, ali, eram de vrias raas e idade estimada entre dezoito e 35 anos; em nenhum dos casos a cabea foi encontrada. A investigao se tornar um verdadeiro inferno, um jogo macabro em que o assassino far contato pela internet e assinar as mensagens com um apelido adequado: Deadoc Doutor Morte. Na tela do computador da mdica-legista surgiro imagens nauseantes: fotos tiradas por Deadoc para mostrar at que ponto dotado da mais alta competncia para o assassinato. Scarpetta descobre que pode ter sido contaminada por um vrus, pois a vtima sofria de varola ou algo similar. O homicida que est enfrentando, diferente de todos, certamente um psicopata com acesso a armas biolgicas letais e altamente sofisticadas. E Deadoc parece disposto a fazer o que for preciso para v-la sofrer - como se fosse impulsionado por motivos muito pessoais. Considerado um dos livros mais eletrizantes de Patricia D. Cornwell, Contgio criminoso desenvolve-se num ritmo preciso, tensionado ao mximo, com detalhes intrincados e personagens meticulosamente construdas. A dra. Kay Scarpetta, como sempre, d um verdadeiro show como especialista em medicina legal, mostrando tudo o que sua cincia pode oferecer quando se trata de solucionar um crime.Mas Kay Scarpetta muito mais do que uma excelente legista e uma detetive de inteligncia finssima. Patricia Cornwell lhe deu uma humanidade que faz o leitor virar as pginas no apenas para descobrir o assassino, mas para acompanhar, fascinado, os conflitos dessa mulher corajosa e, a seu modo, extremamente feminina. A jornalista americana Patricia D. Cornwell deixou a reportagem policial para se tornar escritora e, a partir da, especializou-se em acumular prmios e freqentar listas de best-sellers. Dela a Companhia das Letras j lanou Post-mortem, Corpo de delito, Restos mortais, Desumano e degradante, Lavoura de corpos, Cemitrio de indigentes e Causa mortis. fim da contracapaCONTGIO CRIMINOSO Traduo: CELSO NOGUEIRA reimpresso COMPANHIA Das LetrasCopyright - 1997 by Patrcia D. Cornwell Proibida a venda em Portugal Ttulo original: Unnatural exposure Capa: Joo Baptista da Costa Aguiar Foto da capa: BSIP/Keystock Preparao: Otaclio Nunes Jr. Reviso: Isabel Jorge Cury Alexandra Costa da FonsecaDados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip) (Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Cornwell, Patrcia DanielsContgio criminoso / Patrcia D. Cornwell ; traduo de Celso Nogueira. - So Paulo : Companhia das Letras, 2001. Ttulo original: Unnatural exposure ISBN 85-359-0167-11. Fico policial e de mistrio (Literatura norte-americana) 2. Romance norte-americano i. Ttulo. CDD-813.0872 ndice para catlogo sistemtico: 1. Fico policial e de mistrio : Literatura norte-americana 813.0872 2001 Todos os direitos desta edio reservados EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 So Paulo sp Telefone: (11) 3846-0801 Fax: (11)3846-0814 www.companhiadasletras.com.brPara Esther Newberg Viso, Sem MedoVeio, depois, um dos sete anjos que tinham as sete ampolas, cheias dos sete ltimos flagelos... Apocalipse 21:9** IA noite fria e lmpida envolvia Dublin; l fora o vento gemia como um milho de gaitas de fole a tocar no firmamento. Rajadas chacoalhavam as folhas da janela do quarto ancestral, como se espritos alados o sobrevoassemenquanto eu ajeitava os travesseiros outra vez at encontrar uma posio confortvel, deitada de costas entre os lenis de linho da cama revirada. Mas o sono no queria vir e as imagens do dia retornavam. Via corpos sem cabea nem membros e me sentei na cama, suando. Acendi a luz e de repente o hotel Shelburne me recebeu com seu brilho aconchegante de madeira velha e xadrez vermelho-escuro. Vesti o robe e olhei para o telefone ao lado do leito onde mal dormira. Quase duas da madrugada. Em Richmond, Virgnia, eram cinco horas mais cedo. Pete Marino, comandante da diviso de homicdios da polcia local, ainda devia estar acordado. Provavelmente assistia televiso e fumava, comendo alguma porcaria. Isso, caso no tivesse sado. Disquei o nmero e ele atendeu o telefone na hora, como se esperasse a ligao. "Gostosuras ou travessuras?" Dava para perceber que estava meio alto. "Ainda faltam duas semanas para o Dia das Bruxas", falei, j arrependida de ter ligado. "Doutora?" Ele fez uma pausa, confuso. " voc? J voltou para Richmond?" "Continuo em Dublin. Resolveu dar uma festa?" 9 "Estou com uns amigos to feios que aqui todo dia Dia das Bruxas, e eles nem precisam de mscaras. Ei! Bubba est blefando!" "Voc sempre acha que todo mundo blefa", respondeu uma voz ao fundo. "Passou tempo demais na polcia." "Deixa de falar besteira! O Marino no consegue detectar nem o prprio budum." Gargalhadas tlicas entremeavam comentrios debochados, ao fundo. "Estamos jogando pquer", Marino explicou. "Mas, afinal, que horas so a?""Nem queira saber", respondi. "Tenho notcias desagradveis, mas acho melhor no tocar no assunto agora." "Nada disso. Pode contar. Espere s at eu levar o telefone para o outro lado. Droga, odeio quando o fio fica todo enrolado, entende? Puxa vida." Ouvi passos pesados e uma cadeira sendo arrastada. "Pronto, doutora. Ento, mas que diacho aconteceu a?" "Passei a maior parte do dia discutindo os casos dos aterros sanitrios com o patologista forense do governo. Marino, cada vez suspeito mais que os esquartejamentos em srie na Irlanda so obra da mesma pessoa que andou atacando na Virgnia." Ele levantou a voz. "Ei, vocs, esperem um pouco que eu j volto." Marino afastou-se mais dos amigos, notei pelo barulho, enquanto eu me cobria melhor com a colcha. Tomei o ltimo gole do Black Bush que levara para a cama. "A doutora Foley cuidou dos cinco casos de Dublin", prossegui. "Repassei todos eles. Torsos. Colunas seccionadas horizontalmente no lado posterior da quinta vrtebra cervical. Braos e pernas cortados nas juntas, o que inusitado, como j ressaltei. Vtimas de vrias raas, idades estimadas entre dezoito e trinta e cinco. Todas no-identificadas e registradas como homicdios por meios inespecficos. Em nenhum dos casos a cabea foi encontrada, os restos 10 mortais estavam sempre em aterros sanitrios pertencentes a particulares." "Caramba, isso me parece bem familiar", ele disse. "H outros detalhes. Mas as semelhanas so mesmo profundas." "Quer dizer que o manaco pode estar nos Estados Unidos, a esta altura", ele disse. "Acho que foi uma boa idia voc ter ido at a, afinal de contas."Sua opinio inicial no fora essa. Na verdade, ningum me apoiara. Eu chefiava o Departamento de Medicina Legal da Virgnia, e quando o Royal College of Surgeons me convidou para uma srie de conferncias na faculdade de medicina de Trinity, no pude deixar escapar a oportunidade de investigar os crimes de Dublin. Marino achou que era perda de tempo, enquanto o fbi considerou a pesquisa valiosa somente do ponto de vista estatstico. As dvidas eram compreensveis. Mais de dez anos se passaram desde os homicdios na Irlanda, e, como nos casos da Virgnia, havia rarssimas pistas. Nada de impresses digitais, dentio, conformao craniana ou testemunhas para identificar cadveres. No tnhamos amostras biolgicas das pessoas desaparecidas para comparar com o dna das vtimas. Desconhecamos a causa da morte. Portanto, seria muito difcil afirmar qualquer coisa a respeito do assassino, exceto que em minha opinio ele tinha experincia com serra de cortar carne e provavelmente usava uma profissionalmente, ou pelo menos usara durante algum tempo. "O ltimo caso conhecido na Irlanda ocorreu h uma dcada", falei a Marino. "Nos ltimos dois anos tivemos quatro na Virgnia." "Ento voc acha que ele passou oito anos inativo?", ele disse. "Por qu? Estaria cumprindo pena por algum outro crime?" "No sei. Talvez tenha matado em outro lugar e ningum tenha sido capaz de relacionar os casos", retruquei enquanto ouvia os sons sobrenaturais do vento. 11 "Houve mortes em srie na frica do Sul", ele pensou em voz alta, pastosa. "E tambm em Florena, na Alemanha, na Rssia e na Austrlia. Merda, se a gente comea a pensar, crimes assim esto acontecendo em qualquer lugar. Ei!" Elecobriu o bocal do telefone. "Por que voc no fuma seu prprio cigarro? Est pensando que isto aqui a casa-da-me-joana?" Vozes masculinas urraram ao fundo; algum ps um disco de Randy Travis. "Pelo jeito vocs esto se divertindo bastante", falei secamente. "Por favor, no me convide no ano que vem." "Bando de animais", ele resmungou. "No me pergunte por que fao essas coisas. Eles sempre bebem tudo o que eu tenho em casa e trapaceiam com o baralho." "O modus operandi nesses casos bem especfico." Usei um tom de voz duro, para ver se ele ficava mais sbrio. "Concordo", Marino disse. "Ento se o cara comeou em Dublin, talvez seja bom procurar um irlands. Acho melhor voc voltar logo para casa." Ele arrotou. "A gente precisa ir a Quantico e discutir tudo isso. J falou com Benton?" Benton Wesley comandava a Unidade de Investigao de Crimes em Srie e Sequestros de Crianas, conhecida como casku. Marino e eu ramos consultores. "Ainda no tive oportunidade", respondi hesitante. "Talvez seja melhor voc passar as informaes a ele. Voltarei para casa assim que for possvel." "Amanh seria uma boa idia." "Ainda no terminei a srie de conferncias aqui", falei. "Querem conferncias suas no mundo inteiro. Aposto que voc poderia passar o resto da vida fazendo isso", ele disse, e intu que pretendia me dar um sermo. "Exportamos nossa violncia para outros pases", falei. "O mnimo que podemos fazer contar a todos o que sabemos, o que aprendemos em muitos anos investigando esse tipo de crime..." 12 "As conferncias no so o motivo para sua demora na terra dos duendes, doutora", ele me interrompeu enquanto abria um mao de cigarro. "Noso, e voc sabe disso muito bem." "Marino", preveni, "no comece." Mas ele insistiu. "Desde o divrcio de Wesley voc arranja uma desculpa atrs da outra para cair fora, sair da cidade. E no quer voltar para casa agora, d para perceber pelo seu tom de voz, porque no consegue enfrentar a situao, usar seu cacife e correr o risco. Se voc quer mesmo saber, tem hora em que a gente precisa pr as fichas na mesa..." "J entendi." Fui gentil ao cortar seus conselhos bemintencionados e inconvenientes. "Marino, no passe a noite em claro." A repartio da legista situava-se no nmero 3 de Store Street, na frente da Alfndega e da estao rodoviria central, perto das docas e do rio Liffey. O prdio de tijolo era antigo e baixo, havia um porto preto e pesado, de chapa de ferro, fechando o beco que dava para os fundos, com a palavra morgue pintada em letras brancas e garrafais. Galguei os degraus at a entrada georgiana, toquei a campainha e aguardei na neblina. As rvores comeavam a amarelar, quase outonais naquela manh fria de tera-feira. Tendo dormido mal, eu sentia o corpo pesado. Os olhos ardiam, a cabea doa e o que Marino me dissera antes de eu quase bater o telefone na cara dele me afligia. "Bom dia." O administrador me cumprimentou animado, ao abrir a porta. "Est tudo bem com a senhora, doutora Scarpetta?" Chamava-se Jimmy Shaw aquele jovem bem irlands de cabelo vermelho como o fogo e olhos azuis como o cu. "Na medida do possvel", confessei. 13"Chegou bem na hora, eu estava fazendo ch", ele disse, fechando a porta antes de seguir pelo corredor estreito e mal iluminado que conduzia a sua sala. "Pelo jeito, uma xcara vai lhe fazer muito bem." "Seria timo, Jimmy", falei. "A doutora est terminando um inqurito." Ele consultou o relgio enquanto entrvamos em seu escritrio diminuto e lotado. "Chegar a qualquer momento." Cobrindo a mesa vi o grande livro preto destinado aos relatrios do legista, encadernado em couro grosso. Antes de eu chegar ele estava lendo uma biografia de Steve McQueen e comendo torradas. Logo me ofereceu uma caneca de ch, sem perguntar como eu gostava, pois quela altura j sabia. "Quer uma torrada com gelia?", perguntou, como fazia todas as manhs. "J comi no hotel, obrigada", eu disse, dando a resposta de sempre. Ele se sentou na escrivaninha. "Isso nunca me impediu de comer de novo." Ele sorriu, pondo os culos. "Vamos repassar sua agenda. A primeira conferncia comea s onze da manh, depois temos outra uma da tarde. Ambas na faculdade, no prdio antigo da patologia. Calculo cerca de setenta e cinco estudantes em cada uma, mas pode haver mais. No sei. A senhora muito popular por aqui, doutora Kay Scarpetta", ele disse, simptico. "Ou talvez a violncia norte-americana seja algo extico para ns." "Seria o mesmo que chamar uma praga de extica", falei. "Bem, no podemos negar o fascnio pelas coisas que a senhora v." "Acho que isso me incomoda", falei de modo amigvel mas sombrio. "Vocs no deveriam se fascinar demais." Fomos interrompidos pelo telefone, que ele atendeu com a impacincia de quem faz isso com freqncia excessiva.14 Aps ouvir um pouco, ele retrucou bruscamente: "Est certo. Bem, no podemos fazer uma encomenda desse porte por enquanto. Ligo para voc mais tarde". "Estamos esperando um computador h anos", ele se queixou para mim aps desligar. "O dinheiro difcil de sair quando se tem um governo socialista." "Nossas verbas sero sempre insuficientes. Mortos no votam." " mesmo. Que azar. Bem, qual ser o assunto do dia?", ele quis saber. "Homicdios sexuais", respondi. "Especificamente, o papel desempenhado pelo dna." "E os esquartejamentos que a interessam tanto?" Ele bebeu um pouco de ch. "A senhora acha que tm um carter sexual? Quero dizer, seria essa a motivao de quem cometeu os crimes?" Seus olhos brilhavam de curiosidade. "Sem dvida esse um dos elementos", respondi. "Mas como a senhora pode saber disso, se nenhuma das vtimas foi identificada? No poderia ser algum que mata apenas por esporte? Como o Filho de Sam, por exemplo?" "Os atos do Filho de Sam tinham uma conotao sexual", falei, olhando em torno procura de minha amiga patologista. "Voc acha que ela ainda vai demorar muito? Estou com muita pressa, infelizmente." Shaw consultou o relgio outra vez. "Pode procurla. Suponho que tenha ido ao necrotrio, acabamos de receber um corpo. Rapaz jovem, suspeita de suicdio." "Vou ver se consigo encontr-la." Levantei-me. Perto da entrada, na ponta do corredor, ficava a sala de audincias onde se realizavam os inquritos sobre mortes no-naturais. Isso inclua acidentesde trabalho e de trnsito, homicdios e suicdios. Corria tudo em segredo, in camera, pois a imprensa irlandesa era proibida de divulgar muitos detalhes. Entrei num salo austero, frio, onde entre bancos envernizados e paredes nuas alguns homens guardavam documentos em suas maletas. 15 "Estou procurando a legista", falei. "Ela saiu h uns vinte minutos. Creio que surgiu um caso", um deles explicou. Deixei o prdio pela porta dos fundos. Atravessei o pequeno ptio do estacionamento e me dirigi ao necrotrio, de onde saa um senhor idoso. Parecia desorientado, quase cambaleava enquanto olhava para um lado e para outro, confuso. Por um instante ele me encarou como se eu tivesse alguma resposta e meu corao se condoeu. O assunto que o trouxera ali no poderia ser agradvel. Observei-o cruzar apressado o porto enquanto a dra. Margaret Foley surgiu subitamente, correndo atrs dele com os cabelos grisalhos despenteados. "Meu Deus!" Ela quase trombou comigo. "Foi s eu lhe dar as costas por um minuto e ele fugiu." O homem saiu, deixando o porto escancarado na fuga. Foley atravessou o estacionamento correndo para passar o trinco no porto. Quando se aproximou de mim novamente estava sem flego e quase tropeou numa salincia do piso. "Kay, voc chegou muito cedo", ela disse. "Parente?", perguntei. "O pai. Saiu sem identific-lo, antes mesmo que eu pudesse cobrir o corpo com o lenol outra vez. Isso vai me ocupar o dia todo."Ela me levou at o pequeno prdio de tijolo do necrotrio, com mesas de autpsia de porcelana que estariam melhor num museu de medicina e um antigo aquecedor de ferro que no esquentava nada. O ar era gelado e no existiam equipamentos modernos, com exceo das serras eltricas para autpsia. Uma luz cinzenta e fraca entrava pelas clarabias leitosas, mal iluminando o lenol branco a cobrir o corpo que o pai no suportara ver. "Esta sempre a pior parte", ela dizia. "Ningum deveria ter de olhar para os corpos que esto aqui." Segui-a at o pequeno depsito e a ajudei a carregar caixas de seringas, mscaras e luvas novas. 16 "Enforcou-se na viga do celeiro", continuou contando enquanto trabalhava. "Sofria de alcoolismo e depresso, mas estava fazendo terapia. O de sempre. Desemprego, mulheres, drogas. Ou eles se enforcam ou pulam da ponte." Ela me olhou de relance enquanto recarregvamos um carrinho hospitalar. "Graas a Deus no h muitas armas de fogo. No possumos nem aparelho de raios X aqui." Foley era uma mulher esguia, usava culos de aro grosso antiquados e adorava tweed. Conhecramo-nos alguns anos antes em Viena, num congresso internacional de medicina forense, na poca em que patologistas forenses do sexo feminino eram raridade, especialmente na Europa. Rapidamente nos tornamos amigas. "Margaret, vou ter de voltar aos Estados Unidos antes do que imaginava", falei, respirando fundo, olhando em volta, constrangida. "No consegui pregar o olho na noite passada." Enquanto acendia o cigarro ela me observava atentamente. "Posso conseguircpias de todo o material que voc precisar. Qual a urgncia? As fotografias demoram uns dias, mas posso mand-las pelo correio." "Sempre h uma certa urgncia quando algum assim est solto por a", falei. "No me agradaria nada saber que ele se tornou um problema seu, agora. Eu esperava que ele tivesse desistido, depois de tantos anos." Ela bateu a cinza do cigarro, irritada, exalando a fumaa forte do tabaco popular ingls. "Vamos parar um pouco. J sinto os sapatos apertados, meus ps incharam. duro envelhecer caminhando neste piso duro." No saguo havia duas poltronas baixas de madeira, num canto, e uma maca, onde Foley apoiava o cinzeiro. Colocou os ps sobre uma caixa e deleitou-se com o vcio. "Nunca vou me esquecer daqueles pobres coitados." Ela voltou a comentar a srie de assassinatos. "Quando o primeiro chegou aqui, pensei que fosse coisa do ira. 17 Nunca vira gente retalhada daquele jeito, exceto em atentados a bomba." O comentrio me fez lembrar de Mark de um modo que eu no queria. Minha mente divagou para o tempo em que ele ainda vivia e ns nos amvamos. De repente, ele invadiu meus pensamentos, sorrindo com seus olhos radiantes e maliciosos, olhos eletrizantes que valorizavam ainda mais seu riso solto. Foi quase o tempo todo assim durante o curso de direito em Georgetown, farras e rusgas, noites em claro, impossvel saciar a sede de um pelo outro. Com o tempo, casamos com outras pessoas, nos divorciamos e tentamos ficar juntos outra vez. Ele marcava o ritmo daminha vida; vinha, ia, depois telefonava ou batia na porta para partir meu corao e quebrar minha cama. Eu no conseguia tir-lo da cabea. Ainda no me parecia possvel que uma bomba numa estao de trem em Londres tivesse posto fim ao nosso tempestuoso relacionamento. No conseguia imagin-lo morto. No era possvel visualiz-lo, faltava uma ltima imagem capaz de me apaziguar. Eu no vira o corpo, fugira de qualquer contato, como o velho dublinense que no quis olhar o filho. Percebi que Foley estava me falando alguma coisa. "Lamento", ela repetiu com tristeza no olhar, pois conhecia bem meu passado. "Eu no pretendia evocar recordaes dolorosas. Voc j parece estar sofrendo muito, esta manh." "Voc levantou uma questo interessante." Tentei bancar a corajosa. "Suspeito que o assassino que procuramos tenha muito a ver com um terrorista que usa bombas. No se importa com quem morre. As vtimas so pessoas sem rosto nem nome. So apenas smbolos em sua maligna crena pessoal." "Voc ficaria muito sentida se eu fizesse uma pergunta a respeito de Mark?", ela disse. "Pergunte o que quiser", sorri. "Voc faria isso de qualquer jeito." 18 "Voc j esteve l, onde tudo aconteceu? Visitou o lugar em que ele morreu?" "No sei onde foi", respondi imediatamente. Ela me encarou, fumando."Quero dizer, no sei qual foi o local exato, na estao ferroviria." Quase gaguejei, na evasiva. Ainda sem dizer nada, ela esmagou o cigarro com o sapato. "Na verdade", prossegui, "no me lembro de ter ido a Victoria algum dia, depois da morte dele. Acho que no passei por aquela estao especfica, no precisei pegar nenhum trem que sasse de l. Nem que chegasse. Pelo que me recordo, na ltima vez desci em Waterloo." "A nica cena de crime que a grande doutora Kay Scarpetta se recusa a visitar." Ela tirou outro Consulate do mao. "Quer um?" "S Deus sabe quanto. Mas no posso." Ela suspirou. "Eu me lembro de Viena. Aquele monte de homens e ns duas fumando mais do que eles." "Provavelmente o motivo para fumarmos tanto fosse aquele monte de homens." "Talvez fosse a causa, mas para mim duvido que haja cura. Isso apenas prova que as coisas que fazemos no guardam relao com o que sabemos, pois os sentimentos no possuem crebro." Ela acendeu o fsforo. "J vi pulmes de fumantes. E um bocado de fgados cheios de gordura." "Meu pulmo melhorou desde que parei. Mas no posso garantir nada sobre o fgado", falei. "Ainda no larguei o usque." "No faa isso, pelo amor de Deus. Voc ia virar uma chata", ela fez uma pausa e acrescentou, enftica, "mas claro que os sentimentos podem ser orientados, educados para no conspirarem contra ns." "Provavelmente vou embora amanh." Retomei a questo. 19xxx "Voc precisar ir a Londres primeiro, trocar de avio." Ela me encarou. "Passe um dia l." "Como?""A histria no terminou, Kay. Sinto isso h muito tempo. Voc precisa enterrar Mark James." "Margaret, por que voc resolveu insistir nisso de repente?" As palavras me traram novamente. "Sei quando algum est fugindo de alguma coisa. o que acontece com voc, assim como com esse assassino." "Puxa, que reconfortante saber disso", retruquei, irnica, pois no queria continuar a conversa. Mas ela no pretendia deixar que eu escapasse, dessa vez. "Por motivos muito diferentes e muito semelhantes. Ele mau, voc no. Mas nenhum dos dois quer ser apanhado." Eu estava encurralada, e ela sabia disso. "E quem ou o que est tentando me pegar, na sua opinio?" Adotei um tom leve, mas sentia os olhos midos. "A esta altura, calculo que seja Benton Wesley." Desviei a vista para alm da maca e do p plido que saa para fora do lenol, com uma etiqueta de identificao pendente. A luz do teto mudava conforme as nuvens passavam pelo sol, e o cheiro de morte nos ladrilhos e pedras datava de um sculo. "Kay, o que voc quer fazer?", ela perguntou carinhosamente, enquanto eu enxugava os olhos. "Ele quer casar comigo", falei. Tomei o avio de volta para Richmond, os dias formaram semanas e o tempo esfriou. A geada embranquecia as manhs e eu passava as noites na frente da lareira, pensando e remoendo. Tanta coisa a ser dita e resolvida, mas eu me comportava comosempre, mergulhando cada vez mais fundo no labirinto do trabalho, at no achar mais a sada. Estava deixando minha secretria louca. 20 "Doutora Scarpetta?", ela chamou; seus passos ressoavam estridentes no piso frio da sala de autpsia. "Aqui", respondi, elevando a voz acima do rudo da gua corrente. Eu me lavava com sabonete anti-sptico no vestirio da morgue, naquele dia 30 de outubro. "Por onde voc andou?", Rose perguntou ao entrar. "Trabalhando num crebro. A morte sbita do outro dia." Ela consultava minha agenda, virando as pginas. Usava o cabelo grisalho cuidadosamente preso atrs e um conjunto bordo que parecia apropriado a seu estado de esprito. Rose andava furiosa comigo desde que eu viajara a Dublin sem me despedir. Depois de voltar me esqueci de seu aniversrio. Fechei a torneira e enxuguei as mos. "Inchao, com aumento da salincia sinuosa na superfcie cerebral e estreitamento das cissuras, tudo compatvel com encefalopatia isqumica provocada pela aguda hipotenso sistmica", citei. "Estive sua procura", ela disse, prestes a perder a pacincia. "O que foi que eu aprontei desta vez?", perguntei, erguendo as mos. "Voc deveria ter ido almoar com Jon no Skull and Bons." "Minha nossa." Sofri ao pensar nele e nos outros residentes mdicos com quem raramente conversava, por falta de tempo. "Eu a lembrei do compromisso, hoje de manh. Voc se esqueceu dele na semanapassada, tambm. Ele precisa muito conversar sobre a residncia, sobre a Clnica Cleveland." "Eu sei, eu sei." Consultei o relgio, sentindo uma culpa enorme. "Uma e meia. Talvez ele ainda possa passar na minha sala para tomar um caf." "Voc tem depoimento s duas, conferncia telefnica s trs sobre o caso Norfolk-Southern. Preleo a respei21 #r "Voc precisar ir a Londres primeiro, trocar de avio." Ela me encarou. "Passe um dia l." "Como?" "A histria no terminou, Kay. Sinto isso h muito tempo. Voc precisa enterrar Mark James." "Margaret, por que voc resolveu insistir nisso de repente?" As palavras me traram novamente. "Sei quando algum est fugindo de alguma coisa. o que acontece com voc, assim como com esse assassino." "Puxa, que reconfortante saber disso", retruquei, irnica, pois no queria continuar a conversa. Mas ela no pretendia deixar que eu escapasse, dessa vez. "Por motivos muito diferentes e muito semelhantes. Ele mau, voc no. Mas nenhum dos dois quer ser apanhado." Eu estava encurralada, e ela sabia disso. "E quem ou o que est tentando me pegar, na sua opinio?" Adotei um tom leve, mas sentia os olhos midos. "A esta altura, calculo que seja Benton Wesley." Desviei a vista para alm da maca e do p plido que saa para fora do lenol, com uma etiqueta de identificao pendente. A luz do teto mudavaconforme as nuvens passavam pelo sol, e o cheiro de morte nos ladrilhos e pedras datava de um sculo. "Kay, o que voc quer fazer?", ela perguntou carinhosamente, enquanto eu enxugava os olhos. "Ele quer casar comigo", falei. Tomei o avio de volta para Richmond, os dias formaram semanas e o tempo esfriou. A geada embranquecia as manhs e eu passava as noites na frente da lareira, pensando e remoendo. Tanta coisa a ser dita e resolvida, mas eu me comportava como sempre, mergulhando cada vez mais fundo no labirinto do trabalho, at no achar mais a sada. Estava deixando minha secretria louca. 20 "Doutora Scarpetta?", ela chamou; seus passos ressoavam estridentes no piso frio da sala de autpsia. "Aqui", respondi, elevando a voz acima do rudo da gua corrente. Eu me lavava com sabonete anti-sptico no vestirio da morgue, naquele dia 30 de outubro. "Por onde voc andou?", Rose perguntou ao entrar. "Trabalhando num crebro. A morte sbita do outro dia." Ela consultava minha agenda, virando as pginas. Usava o cabelo grisalho cuidadosamente preso atrs e um conjunto bordo que parecia apropriado a seu estado de esprito. Rose andava furiosa comigo desde que eu viajara a Dublin sem me despedir. Depois de voltar me esqueci de seu aniversrio. Fechei a torneira e enxuguei asmos. "Inchao, com aumento da salincia sinuosa na superfcie cerebral e estreitamento das cissuras, tudo compatvel com encefalopatia isqumica provocada pela aguda hipotenso sistmica", citei. "Estive sua procura", ela disse, prestes a perder a pacincia. "O que foi que eu aprontei desta vez?", perguntei, erguendo as mos. "Voc deveria ter ido almoar com Jon no Skull and Bons." "Minha nossa." Sofri ao pensar nele e nos outros residentes mdicos com quem raramente conversava, por falta de tempo. "Eu a lembrei do compromisso, hoje de manh. Voc se esqueceu dele na semana passada, tambm. Ele precisa muito conversar sobre a residncia, sobre a Clnica Cleveland." "Eu sei, eu sei." Consultei o relgio, sentindo uma culpa enorme. "Uma e meia. Talvez ele ainda possa passar na minha sala para tomar um caf." "Voc tem depoimento s duas, conferncia telefnica s trs sobre o caso Norfolk-Southern. Preleo a respei21 #to de ferimentos por arma de fogo na Academia de Cincia Forense s quatro e reunio s cinco com o investigador Ring, da polcia estadual." Rose prosseguiu com a lista. Eu no gostava de Ring e muito menos do seu modo agressivo de tratar os casos policiais. Quando o segundo torso foi encontrado, ele se meteu na investigao e parecia pensar que sabia mais do que o fbi. "Posso dispensar Ring", falei secamente.Minha secretria estudou meu rosto por um longo tempo, enquanto ouvamos o barulho da gua e das esponjas na sala de autpsia vizinha. "Vou cancelar o encontro com ele, assim voc poder receber Jon." Ela me olhou por cima dos culos, como uma professora severa. "Depois, v para casa descansar. Isso uma ordem. Amanh, doutora Scarpetta, no me aparea por aqui. No quero ver nem sua sombra passar pela porta." Tentei protestar, mas ela me cortou. "E nem adianta argumentar", prosseguiu com firmeza. "Voc precisa de uma folga por uma questo de sanidade mental. Um fim de semana prolongado. Eu no sugeriria isso se no fosse indispensvel." Ela tinha razo, e a idia de passar um dia cuidando de mim melhorou meu nimo. "No h nada que no possa ser adiado", acrescentou. "Alm disso", disse sorrindo, "o tempo melhorou e vai fazer calor, mais de vinte graus, com direito a cu azul e tudo o mais. As folhas esto lindas, os lamos atingiram o tom de amarelo mais perfeito. Os bordos parecem ter pegado fogo. Alm do mais, Dia das Bruxas. Voc pode recortar uma careta na abbora." Peguei o casaco e os sapatos no armrio. "Voc deveria ter sido advogada", falei. 22 2 Acordei animada no dia seguinte, com o tempo bom previsto por Rose. Assim que as lojas abriram sa para comprar balas e doces para as crianas e os ingredientesdo jantar, seguindo depois de carro at Hull Street, meu centro de jardinagem predileto. As plantas de vero haviam secado no jardim e eu no suportava a viso dos talos ressequidos nos vasos. Almocei e fui para a frente da casa, carregando sacos de terra vegetal, caixotes de mudas e regador. Abri a porta para permitir que o som de Mozart me alcanasse e cuidadosamente plantei os amores-perfeitos nos canteiros bem adubados. A massa de po crescia, um ensopado caseiro cozinhava no fogo e o odor de alho, vinho e terra mida penetrava minhas narinas enquanto eu trabalhava. Marino vinha jantar comigo, depois distribuiramos barras de chocolate s crianas fantasiadas da vizinhana. O mundo foi um lugar agradvel de se viver at as trs e trinta e cinco, quando o pager vibrou em minha cintura. "Droga", resmunguei, vendo o nmero de meu servio de mensagens. Corri para dentro, lavei as mos e peguei o telefone. O servio me deu o nmero do detetive Grigg no departamento de polcia da comarca de Sussex. Liguei imediatamente. "Grigg", respondeu um sujeito de voz grave. "Aqui a doutora Scarpetta", falei, olhando desanimada atravs da janela para os grandes vasos de barro que continham hibiscos mortos. 23 #"Que bom. Obrigado por ligar to depressa. Estou aqui, no telefone celular, no posso contar muita coisa." Ele falava no ritmo do antigo Sul, sem pressa. "Onde exatamente voc est?", perguntei."No aterro sanitrio Atlantic, em Reeves Road, perto da 460 East. Encontraram uma coisa em que a senhora vai querer dar uma espiada, acho." " o mesmo tipo de coisa que j apareceu antes, em locais semelhantes?", perguntei, mantendo o tom obscuro conforme o dia parecia escurecer. "Infelizmente, leva jeito", ele disse. "Explique como se chega a, estou a caminho." Eu estava de cala comprida suja de terra e com uma camiseta do fbi que minha sobrinha Lucy me dera, mas no daria tempo de trocar de roupa. Se eu no examinasse o corpo antes de escurecer ele teria de permanecer onde estava at o dia seguinte, o que seria inaceitvel. Peguei a valise mdica e corri para a porta, deixando sacos de terra, mudas e gernios espalhados pela entrada. Claro, o tanque do meu Mercedes preto estava quase vazio. Primeiro parei no posto Amoco e pus gasolina, depois fui para o local. O percurso deveria exigir uma hora, mas eu pisei fundo. A luz diminua, refletindo na face inferior das folhas, e as roas de milho j estavam amarelo-escuras nos quintais e stios. Os campos eram mares verdes encrespados de soja, cabras pastavam soltas nos quintais de casas descuidadas. Havia pra-raios espalhafatosos enfeitados com bolas coloridas em esquinas e elevaes. Eu sempre pensava no vendedor que passara por ali feito um vendaval, usando o medo alheio para empurrar o equipamento. Avistei os silos de gros para os quais deveria estar atenta, segundo as instrues de Grigg. Entrei em Reeves Road, passei por casinhas de tijolo aparente, trailerscom caminhonetes velhas e ces sem coleira. As placas anunciavam Mountain Dew e Virgnia Diner, atravessei trilhos ferrovirios e levantei poeira vermelha como se fosse fu24 maa. Na frente, os urubus bicavam animais atropelados e o lugar parecia pleno de maus pressgios. Reduzi a marcha na entrada do aterro sanitrio Atlantic e parei, olhando a paisagem lunar desolada, onde o sol se punha como um planeta pegando fogo. Caminhes de lixo refletiam a luz nas partes cromadas enquanto se arrastavam morro acima, rumo ao topo da montanha de lixo. Escavadeiras Caterpillar amarelas pareciam escorpies prontos a dar o bote. Vi uma nuvem de poeira vindo na minha direo, do depsito de lixo, e quando se aproximou em alta velocidade reconheci um Ford Explorer vermelho e sujo a chacoalhar no caminho esburacado. O jovem que o dirigia parecia se sentir em casa naquele lugar. "Em que posso ajud-la, senhora?", ele disse, com sotaque sulista carregado, traindo ansiedade e excitao. "Sou a doutora Kay Scarpetta", esclareci, mostrando o distintivo dourado na carteirinha de couro preto que sempre exibia nas cenas de crime onde no conhecia ningum. Ele examinou a credencial e seus olhos se fixaram nos meus, sombrios. Sua camisa de brim estava encharcada de suor, o cabelo molhado na nuca e nas tmporas. "Disseram que o legista estava a caminho, e que era para eu esper-lo", ele medisse. "Pois bem, sou eu mesma", respondi delicadamente. "Sim, senhora. No quis insinuar nada..." Sua voz sumiu enquanto seus olhos se desviavam para o Mercedes, completamente coberto por uma camada fina e persistente de poeira. "Sugiro que deixe o carro aqui e venha comigo", acrescentou. Percorri com a vista o depsito de lixo, vi as escavadeiras com suas ps e caambas imveis ao crepsculo. Dois carros de polcia sem identificao e uma ambulncia me esperavam no local da ocorrncia, os policiais parecendo bonequinhos perto da traseira de um caminho um pouco menor do que os outros. Algum cutucava o solo com uma vara, ao lado, e eu sentia crescer a impacincia de ver logo o corpo. 25 #"Tudo bem", falei. "Vamos l." Estacionei o carro, apanhei a valise mdica e o traje usado nas cenas de crimes no porta-malas. O rapaz me observava em curioso silncio. Senteime no banco do motorista com a porta escancarada, calcei as botas de borracha marcadas e foscas de anos de servio em florestas e brejos, atrs de pessoas assassinadas e afogadas. Vesti a camisa de brim confiscada de meu ex-marido, Tony, durante um casamento que presentemente no me parecia real. Depois entrei no Explorer e protegi as mos com duas camadas de luvas. Enfiei a mscara cirrgica na cabea, deixando-a pender emvolta do pescoo. "Acho que faz muito bem em usar isso", o motorista falou. "O cheiro aqui terrvel. Eu que o diga." "No por causa do cheiro", expliquei. "Os microorganismos me preocupam muito mais." " mesmo", ele disse, inquieto. "Talvez eu devesse usar uma mscara, tambm." "Voc provavelmente no chegar perto o bastante para correr risco de contaminao." Ele no respondeu, mas no tive dvida de que j se aproximara mais do que o indicado. Resistir tentao de olhar estava alm da capacidade da maioria das pessoas. Quanto mais repugnante o caso, mais isso era verdade. "Peo desculpas pela poeira", ele disse, quando passamos por um laguinho rodeado de varas de ouro floridas, no qual alguns patos nadavam. "Sabe, espalhamos lascas de pneu por todo lado, para manter a poeira baixa, e um caminho-tanque esguicha gua por cima. Mas no fundo no resolve muito." Nervoso, ele fez uma pausa antes de continuar. "Recebemos trs mil toneladas de lixo por dia, aqui." "De onde?" "Littleton, Carolina do Norte, Chicago." "E quanto a Boston?", perguntei, pois os quatro primeiros casos poderiam ter origem em locais mais distantes. 26 "No, senhora." Ele balanou a cabea. "No futuro, pode ser. Cobramos muito menos por tonelada, aqui. Vinte e cinco dlares, enquanto em Nova Jersey cobram sessentae nove e em Nova York, oitenta. Alm disso, fazemos reciclagem, teste de resduos txicos e coletamos gs metano do lixo em decomposio." "Funciona o dia inteiro?" "Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana", declarou, orgulhoso. "Existe alguma maneira de saber de onde vm os caminhes?" "Sim, pelas coordenadas do sistema de localizao por satlite que usamos. No mnimo, d para dizer quais caminhes descarregaram o lixo durante um determinado perodo, na rea onde o corpo foi encontrado." Passamos por uma poa funda perto de Porta-Johns e pelo lava-rpido, onde os caminhes eram limpos com mangueiras possantes antes de retornar s vias e auto-estradas do mundo normal. "Acho que nunca tivemos nada do gnero por aqui", ele disse. "Bem, ouvi dizer que encontraram pedaos de gente no lixo de Shoosmith. Pelo menos, o que corre por a." Ele me olhou de esguelha, achando que eu poderia confirmar a veracidade do boato. Mas no comentei suas palavras enquanto a Explorer enfrentava a lama misturada s lascas de pneu e o cheiro acre do lixo em decomposio tomava conta de tudo. Minha ateno se concentrava num caminho pequeno que eu vinha observando desde que chegara ali, enquanto meus pensamentos voavam em mil direes diferentes. "Sabe, meu nome Keith Pleasants." Ele limpou a mo na cala e a estendeu para mim. "Prazer em conhec-la."Cumprimentei-o com a mo enluvada num ngulo esquisito, enquanto sujeitos com os narizes tapados por lenos e panos observavam nossa aproximao. Contei quatro homens reunidos em volta de um equipamento que 27 #agora eu reconhecia, um compactador hidrulico usado para esvaziar caminhes e comprimir o lixo. Na porta haviam pintado os dizeres Cole's Trucking Co. "Aquele ali, que est revirando o lixo com uma vara, o investigador de Sussex", Pleasants me disse. Era um sujeito de meia-idade, em mangas de camisa, que usava o revlver na cintura. Achei que j o conhecia de algum lugar. "Grigg?", tentei adivinhar, lembrando o nome do detetive com quem conversara pelo telefone. "O prprio." O suor escorria pela cara de Pleasants, que parecia cada vez mais tenso. "Sabe, nunca tivemos problemas com a polcia por aqui, nem mesmo uma multa por excesso de velocidade." Reduzimos a marcha e paramos. Eu mal enxergava atravs da poeira espessa. Pleasants segurou a maaneta da porta. "Espere um instante antes de sair", eu disse a ele. Aguardei at a poeira baixar, olhando pelo pra-brisa, examinando os arredores do local como costumava fazer ao me aproximar de onde jazia um cadver. A p da escavadeira parara no ar, a meio caminho do alto, o compactador sob ela quase lotado. Por todos os lados do aterro sanitrio sons e cheiros dos motores a diesel mostravamque o servio no parava nunca. S ali o trabalho fora interrompido. Por um momento, observei os caminhes brancos a subir a ladeira, as mquinas removendo o lixo das caambas, os compactadores comprimindo o solo com seus rolos dentados. O corpo seria transportado pela ambulncia, e os paramdicos me olhavam pelas janelas empoeiradas, protegidos pelo ar condicionado no interior do veculo, esperando para ver o que eu ia fazer. Quando me viram posicionar a mscara cirrgica sobre o nariz e a boca e abrir a porta, resolveram descer tambm. As portas foram fechadas com estrondo. O detetive veio imediatamente em minha direo. 28 "Detetive Grigg, do Departamento de Polcia de Sussex", ele se apresentou. "Liguei para a senhora." "Voc esteve aqui o tempo todo?", perguntei. "Desde que recebemos o aviso, por volta da uma e meia. Fiquei aqui para garantir que ningum mexesse em nada, doutora." "Com licena", disse um dos paramdicos. "Vai precisar de ns agora?" "S daqui a uns quinze minutos. Algum ir chamlos", falei. Eles resolveram no perder tempo voltando ambulncia. "Preciso de espao para trabalhar", avisei aos restantes. Os ps rangeram quando eles se afastaram para abrir caminho, revelando o que estavam observando boquiabertos. A pele parecia anormalmente plida na luz fraca da tarde outonal, o torso no passava de uma salincia medonha que rolara de uma pilha de lixo e parara de costas. Calculei que fosse caucasiano, mas notinha certeza, e os vermes que cobriam a rea genital dificultavam determinar o sexo de imediato. No poderia nem afirmar com certeza se a vtima era adolescente ou adulta. A quantidade de gordura no corpo era anormalmente reduzida, as costelas se projetavam na pele lisa do peito chato, que poderia ou no ser feminino. Agachei-me ao lado do corpo e abri a valise mdica. Recolhi vermes com a pina e os guardei num jarro para que o entomologista os examinasse depois. Inspecionando melhor a vtima, conclu que se tratava de uma mulher. Fora decapitada no incio da espinha dorsal e tivera braos e pernas amputados. Os tocos haviam escurecido e secado com o passar do tempo, e vi logo de cara que havia uma diferena entre aquele caso e os outros. Aquela mulher fora desmembrada por cortes retos diretamente atravs dos ossos fortes do mero e do fmur, e no nas juntas. Peguei o bisturi e notei que os homens me olhavam fixamente enquanto eu fazia uma inciso de um centmetro no lado direito do torso para inserir um ter29 #mmetro clnico comprido. Posicionei o segundo termmetro em cima da maleta. "O que voc est fazendo?", perguntou um homem de camisa xadrez e bon de beisebol que parecia a ponto de vomitar. "Preciso saber a temperatura do corpo para determinar a hora da morte. A temperatura interna do fgado a mais precisa", expliquei com pacincia. "Alm disso, precisosaber a temperatura ambiente, para efeito de clculo." "Faz calor, disso eu sei", falou outro homem. "Parece que uma mulher." "Seria prematuro afirmar isso", retruquei. "Aquele compactador seu?" "Sim." Era jovem, de olhos escuros e dentes muito brancos, com tatuagens nos dedos que eu normalmente associo a ex-presidirios. Usava uma bandana suada em volta da testa, amarrada atrs. No conseguia manter os olhos no torso por muito tempo sem desvi-los. "No lugar errado e na hora errada", ele acrescentou, balanando a cabea numa demonstrao de hostilidade. "O que voc quer dizer com isso?" Grigg pregara os olhos nele. "No veio no meu caminho. Tenho certeza", o motorista afirmou, como se essa fosse a questo mais importante de sua vida. "A escavadeira o tirou do fundo, quando estava espalhando a minha carga." "Ento no sabemos quando o corpo foi jogado aqui?", perguntei, perscrutando os rostos que me rodeavam. Pleasants se encarregou de responder: "Vinte e trs caminhes descarregaram neste local desde as dez da manh, sem contar este ltimo aqui". Ele olhou para o veculo. "Por que dez da manh?", perguntei, considerando a hora um tanto arbitrria para iniciar a contagem dos caminhes. "Porque foi quando pusemos a ltima camada de lascas de pneu. Seria impossvel o corpo estar a antes dis-30 o u> f