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www.lusosofia.net COMUNICAÇÃO DAS CONSCIÊNCIAS E CONTÁGIO DE SENTIMENTOS Ana Paula Rosendo 2012

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COMUNICAÇÃO DASCONSCIÊNCIAS E

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FICHA TÉCNICA

Título: Comunicação das consciências e contágio de sentimentosAutor: Ana Paula RosendoColecção: Artigos LUSOSOFIA

Design da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: José Maria Silva RosaUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2012

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Índice

Arquipassibilidade: o chão comum do conhecimento do Ou-tro e a possibilidade de fundação de uma Sociologia Trans-cendental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4Enunciação de Problemas e de Linhas de trabalho . . . . . . 9Uma conclusão provisória sobre a Auto- afeção e o contágiode sentimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

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Arquipassibilidade: o chão comum doconhecimento do Outro e a possibilidade defundação de uma Sociologia Transcendental

Qual é a possibilidade de a passividade radical comum ou Arqui-passibilidade poder constituir-se como o lugar privilegiado da re-lação entre os seres humanos e de a partir dela termos fundamen-tos para a elaboração de uma Sociologia Transcendental como aproposta por Michel Henry? Poderá a auto-afeção ser o prolon-gamento natural do sentir do outro? Na resposta a estas questõestentaremos perceber qual o mecanismo inerente ao tão constatadocontágio de sentimentos e qual o modo como este se processa, coma finalidade de melhor lhes responder. O pleno desenvolvimentodas interrogações enunciadas e o modo como propomos resolvê-lasrequer uma investigação mais longa e aprofundada que se inicia apartir deste artigo.

O que é, então, a Arquipassibilidade? A Arquipassibilidade éa essência da vida afetiva e esta resulta de uma pré-doação pas-siva na qual todo o existente participa pelo simples facto de viver.Em termos práticos de vivência quotidiana, deriva do facto de queaquilo que nos acontece, na maior parte das vezes, nos transcen-der, isto é, os factos modificam e alteram o nosso sentir indepen-dentemente da nossa vontade/atividade, porque é este o efeito daabertura ao mundo que a vida absoluta engendra em nós. Tambémnão é difícil constatar que a transcendência do facto, normalmente,envolve quase sempre outrem/o outro. Ora, é esta passividade ra-dical comum que origina a atividade permanecendo-lhe intrínsecae este processo é anterior a todo o conhecimento representativo. A

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Arquipassibilidade é o resultado de uma pré-doação e constitui-secomo o fundamento ontológico de todo o existente porque a vidaabsoluta outorga-nos1 a existência que é um dom por nos ser dada,sem nenhuma condição, ou pré-requisito. A Vida como um domé portadora de um logos ou de um conatus no dizer de Espinosa.Na ideia de dom também se encontra presente a ideia de um sen-tido e de um significado a serem desvelados. Parece-nos que otrabalho de desvelamento deste logos se apresenta sempre incom-pleto, apesar da extraordinária aproximação que a fenomenologiada vida lhe faz. Assim, a arquipassibilidade torna-se na essênciada vida afetiva e inclui os princípios ativo e passivo sobre os quaisa nossa vida anímica oscila permanentemente. Portanto, a nossavida afetiva é composta, na sua essência, por uma Arquipassibili-dade que encerra simultaneamente um princípio passivo e um ativoque se constituem como o fundamento de todo o sentir e cuja di-nâmica consiste na possibilidade de transformação do prazer emdor e vice-versa. Este movimento é o que colora as nossas sensa-ções, tornando-as nossas e é fundamento da Ipseidade. A dinâmicapolar da afetividade é sentimento de si, porque constitui a nossaabertura ao mundo que mais não é do que esta capacidade de sen-tir sentindo-se ou auto afeção. Na obra Essência da ManifestaçãoMichel Henry considera “a afetividade como a essência originá-ria da revelação”2, uma espécie de a priori da consciência que ésempre consciência de si. Partindo do pressuposto de que toda aafeção é auto afeção, consideramo-la como o fundamento de todaa experiência possível3 porque é nela que reside a possibilidade daconsciência reflexa que, num primeiro momento, se organiza pas-sivamente. Os afetos encontram-se na origem da nossa vida aní-mica como seres sencientes e conscientes que somos. Por isso, é

1 No dicionário de F. Torrinha outorgar significa o beneplácito de consentir(com-sentimento) algo em favor de outrem. Porque não somos a vida absolutacomo tal.

2 Henry, M., E.M., IV Parte, “A Afetividade”, Paris, P.U.F. p. 563 a 8623 Cf. P. 602

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importante considerarmos a sensação não como uma sensação me-ramente empírica e desligada do sujeito que a sente “Uma sensaçãocomo algo de estranho a si mesmo, situada num mundo qualquerou no nosso corpo compreendido como exterioridade”4. Porque asensação tem as suas raízes mais profundas num Eu, num Eu quesente e que pensa. Deste modo, consideramos a possibilidade deque o sentido interno que nos liga ao mundo e a nós mesmos é o“Eu Sinto” da 2a Meditação cartesiana. Como é que se poderá, en-tão, definir-se o cogito pelo “Eu sinto?” Do modo como Descarteso fez dizendo-nos: “Mas que sou eu então? Uma coisa pensante.O que é que isto quer dizer? Quer dizer: uma coisa que duvida,que compreende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, quetambém imagina e que sente”5. O Eu Sinto aqui presente não é em-pírico nem representativo, não é um reflexo assumindo a forma deum sintoma,6 o sintoma da minha vida porque eu o sinto em mim.Quando Descartes afirma que sonhar ou estar acordado se equiva-lem, lança para fora da sua esfera quer as intuições sensíveis, queras representações da consciência, inaugurando “a substancialidadefenomenológica no seu estado mais puro”7, a saber, o sujeito quese sente a si mesmo ou o sujeito afectivo, sendo esta a sua únicacerteza. Ora, “Com isto constata-se que a revelação que se cum-pre na cogitatio é uma revelação dela própria e não de outra coisa,de uma alteridade qualquer, de uma objectividade qualquer, de umqualquer cogitatio, é a essência de todas as cogitationes, é a ideiaou ainda, o espírito”.

Partindo deste pressuposto, concluímos da indistinção entre sen-

4 Henry, M., O Começo Cartesiano e a Ideia de Fenomenologia, trad. Ade-lino Cardoso, in Phainomenon, no13, 2006, p.186

5 Descartes, R., Meditações sobre a Filosofia Primeira, trad. Gustavo Fraga,Almedina, Coimbra 1976, p.124

6 A ideia da Vida como sintoma está a ser desenvolvida nos trabalhos maisrecentes da Professora Florinda Martins

7 Henry, M, O Começo Cartesiano e a Ideia de Fenomenologia, trad. Ade-lino Cardoso, in Phainomenon, No 13, 2006, p.185

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tir e pensar, assim como da supremacia do “primeiro tempo” rela-tivamente ao segundo porque é o modo essencial de ser do ente,fundamento da ipseidade e essência da manifestação. Se sentir nãoé mais do que pensar, é também importante não esquecer que hásempre mais no ser que pensa do que o pensar porque também e defacto, o cogito é sempre particular, é sempre um Eu Penso.

Este trabalho sobre o contágio dos sentimentos pretende tentarperceber o mecanismo inerente ao processo de contágio de sen-timentos pela fenomenologia da Vida, pressupondo que este con-tágio é “propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto,tomado assim, por precisão, não é mais do que pensar”.8 Ora estecom-sentir ou este pensar enraíza na experiência do outro, na pos-sibilidade de existência de uma experiência intersubjetiva.

Encontramos na fenomenologia, porque de inspiração cartesi-ana, a existência de uma propensão para o solipsismo, porque hásempre uma distância fenomenológica entre o Eu e o Outro. OOutro sente-se a si mesmo, assim como eu me sinto a mim e asexperiências são irreversivelmente singulares e subjetivas porqueexperiências mais ou menos fortes de si. Somos seres singularesportanto diferentes e a Ipseidade é o conceito que melhor defineesta diferença. Mas poderá esta diferença constituir-se como umabismo intransponível? Estaremos, por este motivo, condenados àmais completa solidão? Será a comunicação um puro monólogo?A esta questão clássica da metafísica Henry responde dizendo-nosque a solidão é uma realidade ôntica e não uma realidade ontoló-gica. Isto significa que enquanto seres no mundo o problema dasolidão é incontornável, mas enquanto seres transcendentais tal so-lidão não existe porque nos é possível com-sentir a experiência dooutro. Sentindo-a não em termos de conteúdo, mas quanto ao seumodo de experimentar. Quando alguém próximo sofre, não sintoo conteúdo concreto das suas dores, mas percebo o ato formal e

8 Descartes, R., Meditações sobre a Filosofia Primeira, trad. Gustavo Fraga,Almedina, Coimbra, 1976,p.126

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transcendental do seu sofrer e, por isso, emociono-me e comovo-me com as suas dores apesar de não serem concretamente as mi-nhas. É, precisamente, por haver esta distância fenomenológicaentre o Eu e o Outro que podemos percebê-lo como Outro. Im-porta sublinhar que este processo não se faz através de uma apre-ensão analógica do outro, mas pela existência de um fundo comumque é operador de uma síntese entre conteúdo e forma, porque aapreensão do outro por analogia é insuficiente para o seu verda-deiro conhecimento. Esta síntese entre conteúdo e forma tem asua possibilidade na Arquipassibilidade, pois esta é a raiz da vidaafetiva comum. Portanto, em Michel Henry o conhecimento dooutro não é como o de um alter-ego como eu, pois o nosso enrai-zamento comum permite-nos que se estabeleça com o outro “umaespécie de telepatia” na qual forma e conteúdo se fundem no maispuro ato de consentimento. Deste modo, a auto-afeção, o senti-mento de si, podem considerar-se como a porta de abertura para ocom-sentimento e para a comunicação intersubjetiva, contrariandoo aparente pressuposto do autismo narcísico ou do solipsismo on-tológico presente na fenomenologia de raiz cartesiana. Tambémnos conduz à afirmação de que a consciência ou sentimento de sié, simultaneamente, consciência do outro porque este se torna umprolongamento de mim, do meu sentir que é com-sentido. A Vidaque é o nosso chão comum permite-nos aceder diretamente ao ou-tro, sem qualquer tipo de mediação. A experiência do outro faz-sena minha própria vida, isto é, em mim porque o outro faz parte daminha experiência e deve encontrar-se, necessariamente, em mim.9

É sobre este chão comum da intersubjetividade viva que consi-deramos a possibilidade de fundação de uma Sociologia transcen-dental de inspiração henriana possibilitadora da abertura de novosrumos para a investigação do mundo da vida.

9 Henry, M., P.M., Paris, P.U.F.., 2008, p.140

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Enunciação de Problemas e de Linhas detrabalho

No ano académico de 1953/1954 Michel Henry ministrou um cursoem Aix-en-Provence com o título sugestivo de “La communicationdes consciences et les relations avec autrui”.10 Há, de facto, uma“espécie de telepatia” na comunicação de consciências, no conhe-cimento do outro, na medida em que o conhecimento que dele faze-mos é, nesta ótica, algo de imanente e não mediatizado pelo mundoexterior, uma experiência na qual a perceção não intervém. A ideiade “comunicação de consciências” pode induzir-nos na considera-ção errónea da possibilidade de existir uma completa e total fusãocom o outro, uma anulação da ipseidade fundadora. Este tema érelevante pois iremos tentar perceber o funcionamento do contágiode sentimentos “facto há muito verificado, mas ainda pouco estu-dado”11 e seus mecanismos, nomeadamente, em educação. Comoé que funciona o contágio de sentimentos? Quais os mecanismosque lhe estão na origem?

É na interioridade que se dá o com-sentimento do qual decorreum sentir imanente e a priori apenas possível pelo fundo comumpresente em tudo, a vida absoluta. O conceito de comunidade pro-posto por Henry no último capítulo da sua obra PhénoménologieMatérielle ilustra bem a asserção anterior e inspira-nos para as con-siderações subsequentes:

“ Les membres de la communauté ne sont donc pas, par rap-port a son essence, quelque chose d’extrinsèque, une addition quel-quonque, l’effet de circonstances étrangères ou empiriques. Ce ne

10 Henry, M.; La communication des consciences et les relations avec autruiin Revue Internationale M. Henry, no2, U.C.L., 2010

11 Freud, S., Psicologia de las Massas y Analisis del Yo, in Obras Completas,Vol.III, trad. Luis Lopez Ballesteros, Madrid, Biblioteca Nueva, 1981, 4a ed.

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sont précisément pas des éléments empiriques qui, mis par hasardensemble, formeraient soudain une communauté”.12

Portanto, a apreensão intencional representativa, noemática etranscendente do outro não é o primeiro modo do seu aparecer emmim, porque apesar de também ser intencional, isto é, de o outrotambém aparecer como um objeto na minha esfera de pertença, asua presença é, sobretudo, uma experiência não mediatizada de co-munhão. É feita de com-sentimento e não de plena fusão, porque aexperiência do outro se faz no meu Eu originário, no mais fundo daminha ipseidade, não se prestando, de modo algum, a com-fusões.Na experiência do outro, segundo Henry, não há uma fundaçãonem um momento originário na medida em que esta é um pressu-posto, algo que se processa de modo imanente, contemporâneo enão reflexivo; um a priori. De que modo funciona o mecanismode contágio de sentimentos? O que mantém unidas as comunida-des de qualquer tipo? Ou, ainda, de que modo os grupos sociais semantém unidos, qual o elemento fusor desta união?

Tentaremos encontrar uma resposta na obra do sociólogo fran-cês Gabriel Tarde e complementaremos a nossa explicação para ofenómeno do contágio de sentimentos com outros autores, a saber,Sigmund Freud, Gustave le Bon, Jacques Lacan e René Girard.

Michel Henry considera urgente uma retoma dos pressupostosde Gabriel Tarde, sugerindo-nos o seu estudo:

“A realização desta tarefa (perceber que as leis da sociedadenão são diferentes das dos indivíduos que a compõem) é o traba-lho do sociólogo Tarde, que através de uma elucidação do fenó-meno crucial da imitação, soube mergulhar até ao processo trans-cendental da auto-constituição de toda a intersubjectividade con-creta.”13Assim, Michel Henry crítica as perspectivas sociológicascujo paradigma fundador são as conceções do indivíduo como pro-duto social. A sociologia científica abstrai da intersubjectividade,

12 Henry, M., P.M., Paris, P.U.F., 208, p. 16213 Henry, M., La barbárie, P.U.F., Paris, 1987, p. 233

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assim como a psicologia científica abstrai da subjetividade humana.Ao considerarmos o sujeito como produto de uma sociedade ede uma circunstância qualquer rebaixamo-lo como Pessoa, poistornamo-lo num produto. Ilustra Henry as anteriores asserçõesdizendo-nos de modo assertivo e crítico: “a sociologia objetivistacom pretensões científicas transformou-se, entre outras coisas, nomarxismo que tornado em leninismo é de uma ética contestável.”14Assim,as relações Sociedade/Indivíduo são, na realidade, o mesmo pois asubstância é a mesma, não devendo ser pensadas como uma rela-ção externa de causalidade entre duas entidades separadas em queuma se transforma em causa e a outra em efeito. O risco de indig-nidade agudiza-se se pensarmos o sujeito como mero efeito de umaqualquer causa.

Assim, “a teoria da imitação de Tarde é a explicação que, apesarde gregária do indivíduo, é positiva das relações intersubjectivas,dando figura e unidade a toda a sociedade.”15 Portanto, partiremosdos pressupostos da obra Les Lois de l’ Imitation para a considera-ção da importância do contágio de sentimentos.

Porque é que sou contagiado pelos sentimentos de outrem?Como é que esta sensação se dá em mim? Porque é que a imitaçãoresulta deste contágio de sentimentos?

O facto é que constatamos, permanentemente, que o nosso apa-rente autismo narcísico é sempre superado pelo processo transcen-dental do acontecimento no qual o outro tem sempre um papel rele-vante, talvez porque a constituição deste e a minha sejam, até certoponto, indistintas. Muito daquilo que nos acontece, transcende-nos. O que nos sucede está muito para além da nossa vontade, nãoé controlável, o que releva a importância da consideração henrianada alma como arquipassibilidade, como uma passividade comum.A ideologia moral vigente baseada nos pressupostos objetivistasda modernidade tende, pela pedagogia, a transmitir-nos a ideia de

14 Idem, ibidem, p.23415 Henry, M., Entretiens, Sulliver, 2007, p. 76

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um voluntarismo ingénuo assente no paradigma clássico “querer époder” centrado unicamente na dimensão ativa e externa dos indi-víduos. Este é o legado ideológico que recebemos das gerações an-teriores, difícil de contrariar porque a reprodução social, que maisnão é do que uma mimésis do legado herdado, assim o determina.Neste ponto partilhamos da ótica de G. Tarde, quando consideraque a reprodução biológica obedece às leis da natureza, enquanto areprodução social se faz pelas leis da imitação. A passividade ori-ginária comum tende a ser ignorada fruto, como constata Henry, dasua imanência, da sua invisibilidade numa cultura que privilegia ovisível e a externalidade. O conceito de intersubjetividade propostopor Henry e que é desenvolvido no pensamento do sociólogo Tardeconsidera haver pouca distinção entre alma individual e coletiva,assim como pouca distinção entre os aspetos biológicos e os psico-lógicos/sociológicos, o que nos remete para a ideia de um transcen-dental concreto, porque o Eu não é empírico nem representativo, éum transcendental concreto cuja essência é sentir-se. Este sentir-seé consciência de si, auto-afeção e pressupõe uma indistinção entrealma e corpo que é a ideia de transcendental concreto. O senti-mento de si não é equiparável a uma sensação empírica, porquea ultrapassa em larga medida, embora também coincida com ela.Este modo de ver recebe grande acolhimento no pensamento de Es-pinosa, para quem a ideia de alma coincide com a de um corpo emacto. Michel Henry, leitor de Espinosa, revela em partes cruciaisdo seu pensamento, a sua influência. Segundo Espinosa, os seresfinitos participam em graus diversos do dinamismo causal da natu-reza e esta participação fundamenta a ideia de alma sendo esta, porsua vez, indissociável de uma teoria dos afectos. Encontramos emEspinosa e a partir da sua Física, “uma dedução genética da almaa partir da ideia de corpo”.16 Espinosa retira substância à finitude,porque a finitude é um modo finito do Logos infinito. A alma hu-

16 Gleizer, A.G., Espinosa e a Afetividade Humana, Zahar, Rio de Janeiro,2005, P.21

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mana e o corpo tornam-se, assim, coincidentes. Na segunda parteda Ética encontra-se a ideia de que a alma e o corpo são a ex-pressão da mesma realidade de duas maneiras diferentes “uma sóe a mesma coisa expressa de duas maneiras diferentes”.17Espinosaconcorda com a tese de um pan-psiquismo a partir do qual todosos seres são animados em diversos graus. Assim, não podemos co-nhecer a natureza da alma sem conhecermos a natureza do corpo.Conhecer a alma é conhecê-la como a ideia do corpo e há várioscorpos, mais e menos complexos. A tese clássica da simplicidadeda alma não é acolhida no pensamento de Espinosa. Considera quequanto mais complexo é um corpo, maior a sua possibilidade deser afectado, das mais diversas maneiras, por factores que lhe sãoexteriores.

Como a afecção provoca modificação, perguntamo-nos sobreo modo como afectamos e somos afetados, regressando à questãodo porquê da inevitabilidade do contágio de sentimentos. De quemodo é que o outro inevitavelmente me afecta, porque é que o meuaparente autismo narcísico é sempre superado pela transcendenta-lidade do acontecimento que forçosamente envolve outrem?

Na sua obra Voir l’invisible sur Kandinsky Michel Henry aponta-nos um caminho, similar ao espinosiano e também ao Kiekegäardi-ano, quando nos descreve o “mundo inteiro como uma composiçãocósmica completa, composta por um número infinito de composi-ções autónomas cada vez mais pequenas”.18

Todos os elementos cósmicos têm a sua sonoridade própria eo cosmos inteiro é vivo, constituindo-se como uma imensa com-posição subjectiva. A afecção é uma vibração que ressoa na nossasensibilidade não cessando de a fazer vibrar. O contexto precisodesta acção constante da natureza sobre a alma é aquilo que nospermite apreciar a cor de um objecto ou a sua forma. Portanto,

17 Spinoza, B., De la Natureza y del origen del Alma in Ética, Globus, Madrid,s.d., p. 75 e ss.

18 Henry, M. Voir l’Invisible sur Kandinsky, P.U.F., Paris, 2005, p. 239

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todo o ser natural é ressonante, só que a ressonância no homem éconsciente de si.19 A ressonância no Homem é afeto e este tambémé co-moção e a co-moção dá-se em mim por ressonância. Assim,“fazer ouvir a sonoridade dos elementos é realizar a revelação daVida, segundo a sua vontade própria.”20

No que concerne ao contágio de sentimentos, constata-se umparalelismo entre o ser humano e o animal e a única diferença éa existência de uma maior capacidade de afecção por parte do Eusinto, isto é, há uma ressonância maior das afeções em nós. Naótica de Espinosa, quanto mais complexo é um corpo, mais pos-sibilidades tem de vir a ser afetado. Porém, constata-se que “lesémotions, les sentiments et les croyances possèdent un pouvoircontagieux aussi intense que celui des microbes”21. O contágioé uma afeção e também uma co-moção, constituindo-se como oresultado da ressonância que “a estranha acústica do mundo espi-ritual”22 provoca em mim/nós. Esta “estranha acústica do mundoespiritual” é engendradora de co-moção e dela resultam os com-portamentos miméticos como seus derivados.

A solução dada por Sigmund Freud ao mecanismo do contá-gio de sentimentos é muito consistente e em termos mais práti-cos explica bem este fenómeno, na medida em que não se con-tenta com uma mera descrição onto-poética ou meramente factualdo processo. As suas considerações não se limitam à externali-dade, procurando ir à raiz do problema do contágio de sentimen-tos. Neste aspeto, acreditamos que consegue oferecer uma solu-ção mais fundante do que a dos sociólogos G. Tarde e Gustavele Bon que, no caso do primeiro, estabelece uma analogia entre arepetição e a reprodução biológica e a repetição desta vez comomimésis e como reprodução social. O segundo autor faz uma des-

19 Idem, ibidem, p. 14020 Idem, ibidem, p. 14021 Le Bon G., La Psychologie des Foules, Félix Alcan, Paris, 1905, p. 7722 “A estranha acústica do mundo espiritual” é uma expressão de S. Kier-

kegäard que M. Henry utiliza nas suas obras P.M. e VISK.

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crição do procedimento das massas acéfalas movidas apenas pelaemoção sem qualquer intervenção do intelecto, descrevendo o seucomportamento e a melhor maneira de lidar com ele. Contudo,procedem a uma grande descrição e a um enorme levantamento defactos e de sentimentos concretos como o de prestígio, curiosidadeou medo/pânico que são inegavelmente importantes numa investi-gação posterior. Os desenvolvimentos do freudismo com JacquesLacan e René Girard ainda aprofundaram mais, ampliando o pro-blema que, de mero contágio de sentimentos nos autores de finaisdo XIX princípios do XX, ganha foros de uma ontologia porque aquestão que se pretende ver respondida passa a ser a da constitui-ção do Eu e das suas fronteiras com o Outro. O que, por exemplo,em Jacques Lacan não é nada claro que as haja. Na obra de HenryGénéalogie de la Psychanalyse23 Freud é considerado como “o her-deiro tardio do pensamento ocidental” e também como “fundadorde novos pressupostos ontológicos inaugurados pelo cogito cartesi-ano”24. Partiremos do pressuposto comum a Freud e aos estudiososda Psicologia/Sociologia25 de Massas de que o comportamento in-dividual e o comportamento em grupo podem variar consideravel-mente. Segundo Freud e Gustave le Bon26, quando um indivíduose encontra inserido num grupo (a não ser que seja ermita, este éo facto da maior parte do tempo da sua vida), a emoção é grande-mente intensificada e a intelecção é reduzida, dando-se uma espé-cie de desinibição que provoca um abrandamento dos mecanismos

23 Henry, M., Généalogie de la Psychanalyse, Paris, P.U.F., 200324 Cf.p. 6 e ss.25 Partimos do pressuposto henriano comum a G. Tarde de que as leis que

regem o indivíduo não são distintas das leis que regem o todo social. Este pontode vista é também partilhado por Sigmund Freud que estabelece uma analogiaentre o organismo como o todo social e os indivíduos como as células que o com-põem. Assim, parece-nos indiferente a utilização da designação de Sociologiaou de Psicologia no estudo da vida comunitária.

26 Convém referir que a obra de Freud Psicologia das Massas e Análise do Euse inspira nos trabalhos de G. le Bon pelo qual nutre uma profunda admiração.Esta consideração é bem clara para quem já tiver lido a obra em questão.

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de recalcamento e de censura, assim como uma alteração mentaltraduzida por uma sobreposição das emoções em detrimento do in-telecto.27

Esta sobreposição das emoções origina um estado de “suges-tão”, uma abertura incomum provocada por uma influência semfundamento lógico adequado e que para Freud continua a ser umenigma. Classifica-a como “o mais primitivo de todos os senti-mentos” e afirma sentir “uma hostilidade surda contra esta tiraniada sugestão”.28

Contudo, é a sugestão que propicia o estado de hipnose queoriginará a identificação seguida da imitação. A sugestão é o sen-timento primordial que resulta da necessidade intrínseca que o serhumano tem de se harmonizar com o grupo no qual se encontrainserido. É um sentimento que, a par de outros, urge ser desenvol-vido de per se em investigações posteriores. Porque é que o modoprimordial da nossa relação com o outro é a sugestão? A suges-tão é o sentimento que se encontra na origem da vida comunitáriaporque “é o modo de criar harmonia com o grupo”.29Segundo S.Freud, tendemos a criar harmonia com o grupo no qual nos integra-mos porque temos uma profunda necessidade “de amar e de sermosamados”30. Portanto, nesta perspetiva é a líbido que se encontra naorigem de toda a vida comunitária. Freud considera que a líbidoe o amor são a mesma realidade porque ambas enraízam no eros edefine líbido do seguinte modo: “Libido é uma expressão extraídada teoria das emoções. Damos esse nome à energia consideradacomo uma magnitude quantitativa (embora na realidade não sejapresentemente mensurável), daqueles instintos que têm a ver comtudo o que pode ser abrangido sob a palavra “amor”” (. . . ) “em

27 Freud, S., Psicologia de las Massas y Analisis del Yo in Obras Completas,vol.III, trad. Luis Lopez Ballesteros, Madrid, Biblioteca Nueva, 1981, 4a edp.112

28 Cf. P.113 e 11429 Cf. p. 11530 Cf. p. 114

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qualquer caso, tem parte no nome “amor”, por um lado o amor-próprio, e, por outro, o amor pelos pais e pelos filhos, a amizadee o amor pela humanidade em geral”.31 Por este facto consideraque as línguas modernas ao terem sintetizado o conceito de amornum só termo é positivo, porque mais consentâneo com a sua re-alidade pouco diferenciada e omnipresente. Insurge-se contra asacusações que lhe fazem de pan-sexualismo, pois considera que oseu conceito de líbido se aproxima bastante do amor platónico oudo amor paulino.32

Esta pulsão libidinal que se encontra na origem da vida comu-nitária desperta nos sujeitos o estado de sugestão que antecede oda hipnose e esta, por sua vez, pode ser uma auto-hipnose ou umaalter-hipnose. Há psiquiatras que consideram que a hipnose é sem-pre uma auto-hipnose e parece-nos ser esta a perspetiva mais con-sentânea com a da fenomenologia. O momento que se sucede ao dahipnose é o da identificação. Freud considera que a identificaçãoé o laço emocional “mais difícil de descrever” e “a mais remotaexpressão de um laço emocional”33. Portanto, o estabelecimentode laços emocionais tem a sua origem no processo de identifica-ção. É no tratamento deste tema que retoma o complexo de Édipo(considerado como laço emocional essencial), pois a criança noseu desejo da mãe, acaba por se identificar com o pai tomando-ocomo modelo e identificando-se com ele. Assim, a identificação éa forma originária de desenvolvimento de um laço emocional e é apartir dela que se dá o contágio de sentimentos. O contágio de sen-timentos resulta de uma plena identificação com o objeto amadoque despertou em nós um estado de hipnose. É interessante cons-tatar que para qualquer um dos autores referenciados neste artigo,a simpatia é sempre o resultado de um processo de identificaçãoanterior e nunca o primeiro momento na criação do laço afetivo.

31 Cf. p. 11432 Cf. p. 11533 Cf.122

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Ainda relativamente à questão da identificação, consideramos queo pensamento de Jacques Lacan levou as suas consequências maislonge, considerando que esta se encontra na origem do Eu. Na ca-racterização que faz do estádio do espelho diz-nos: “há um estádioanterior ao estádio do espelho que é revelador da insuficiência or-gânica da nossa realidade natural.”34 (. . . ) “O estádio do espelhoé um “drama” a partir do qual se parte de uma conceção divididado corpo para uma conceção unitária do mesmo e o desenvolvi-mento mental nasce desta identificação alienante”.35 Portanto, paraJ. Lacan o mimetismo resulta da identificação e esta identificaçãoheteromórfica é tão essencial que, inclusivamente, funda a signi-ficação do espaço e do movimento para o organismo vivo. Consi-dera o mimetismo como a “lei mestra da adaptação” e neste sentidoassemelha-se a G. Tarde, quando este nos diz que “o ser social éimitador na sua essência e o papel da imitação na reprodução so-cial é análogo ao da hereditariedade genética na reprodução dosorganismos vivos”.36

O aprofundamento do problema de uma mimesis do desejo éfeito por René Girard. Consideramos uma investigação mais apro-fundada deste autor, a par dos restantes, como indispensável por-que o seu fito é o de perceber os mecanismos sociais originadoresda violência cuja origem se encontra na rivalidade mimética, as-sim como a importância da utilização da figura do bode expiatóriona reposição da ordem e da paz social através de um processo decatarsis coletiva. Reforçamos a ideia de que este artigo consiste,sobretudo, num enunciar de problemas para posterior desenvolvi-mento.

Na obra Psicologia das Massas e Análise do Eu Freud analisadois grupos artificiais que são a Igreja e o Exército, a partir da

34 Lacan, J., Le stade du mirroir comme formateur de la fonction du Je inÉcrits I, Paris, Seuil, 1966, p.94

35 Cf. 9736 Tarde, G. Les Lois de l’Imitation, Paris, Félix Alcan, 1905, p.88

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constatação da sua imensa duração no espaço e no tempo. Con-clui da importância da existência de um líder que desempenha afunção de pai e que ama por igual todos os seus membros. Porsua vez, os membros destes grupos identificam-se com o líder/paie tendem a estabelecer laços emotivos fortes entre si. Contudo, oslaços com o líder tendem a ser mais dominantes do que os esta-belecidos entre os restantes membros. Nos grupos mais duráveisas relações são menos intimas, o que dificulta mais o sentimentode oscilação entre o amor e a hostilidade presente em grupos maisíntimos, de que a família se constitui como um exemplo. Contudo,Freud considera que a existência de um líder é indispensável namanutenção de qualquer tipo de grupo seja ele mais institucionalou mais íntimo. O líder é o grande hipnotizador, o elemento como máximo prestígio porque todos os elementos se identificam comele e imitam-no pois este é a sua imago37,o seu modelo. Conside-ramos que a metodologia de análise deste tema proposta por Freud,pode ser facilmente transposta para a análise de outras instituiçõessólidas e duráveis, de que a escola se constitui como um importanteexemplo.

Uma conclusão provisória sobre a Auto- afeção eo contágio de sentimentos

Regressamos à primeira questão levantada, a da arquipassividadese poder constituir como o lugar da relação e a auto afeção se cons-tituir como um prolongamento natural do sentir do outro, confian-tes de que um estudo mais aprofundado dos mecanismos do contá-gio de sentimentos nos possibilite uma maior fundamentação des-tas asserções.

37 A questão da importância da imago na mimesis é largamente desenvolvidana obra de J. Lacan.

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Cremos que um dos erros fundamentais na interpretação do le-gado cartesiano passou pela consideração do primado da consci-ência reflexa de si relativamente a tudo o resto. Esta ideia quepassou rapidamente a ideologia fundadora da modernidade, consi-dera a consciência representativa como uma realidade primeira ede facto, fazendo com que a constatação de uma imanência “nãoconsciente” passe a ser encarada como assunto da religião ou dapsicanálise. Embora haja tendência para uma mudança de pontode vista a partir, inclusivamente, dos novos desenvolvimentos daciência nos seus vários ramos, a ideologia do primado da consci-ência representativa parece prevalecer e conduzir à ilusão de que oconhecimento do outro se processa nos mesmos moldes do conhe-cimento de um objeto externo.

Pelo que nos é dado perceber através do contágio de sentimen-tos, concluímos que a perceção dos estados psíquicos do outro sefaz diretamente, sem fusões e com com-sentimento porque as nos-sas identidades são completamente distintas e a ipseidade é fun-dadora do sujeito. No conceito de comunidade desenvolvido porM. Henry considerado como um dos nossos paradigmas, está bempatente a ideia de que há algo anterior ao Eu e de que esta anteriori-dade é um Nós fundado na Vida, transformando-nos numa grandecomunidade psíquica. É ao mesmo tempo e num mesmo ato queeu me apercebo dos meus estados e dos estados dos outros, nãohavendo um primado da consciência de si. A consciência de si ea consciência do outro são contemporâneas. Contudo, o meu sen-timento e o do outro não se confundem porque a minha Ipseidadefaz com que, por exemplo, o meu sentimento amoroso e o do meuparceiro se distingam, embora o sentimento seja o mesmo. Pro-vavelmente aquilo que me torna espiritualmente distinto do outro,apesar de a priori sermos um Nós, uma comunidade psíquica, é onosso corpo que nos possibilita a modificação das sensações con-soante os seus estados e permitindo a afirmação Eu sinto isto. Por-

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que, como já disse Espinosa, “não podemos conhecer a natureza daalma sem primeiro conhecemos a natureza do corpo.”

Portanto, o contágio de sentimentos prova que não há raciocí-nio nem projeto no conhecimento do outro pois este é ante predi-cativo, não supõe o projeto, mas é o fundador de todos os projetose constitui-se como comunidade patética. A proposta henriana dese avançar por uma Sociologia transcendental a partir do sujeito étentadora porque encerra um imenso e indispensável potencial deum verdadeiro humanismo.

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