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    Parentesco e famlia

    Cynthia Andersen Sarti

    A marca do pensamento de Lvi-Strauss, no que se refere famlia e ao parentesco, foifazer a discusso entrar definitivamente no terreno da cultura. Sua concepo modificatoda a ideia corrente que identifica a famlia com a unidade biol!ica " pai, me efil#os. $ara Lvi-Strauss, a famlia, em seu fundamento natural, ou se%a, a famliaconsan!unea, precisa se desfazer para que e&ista a sociedade, ao mesmo tempo em quea sociedade " !rupos dispostos a recon#ecer seus limites e a se abrir ao outro " condio da e&ist'ncia da famlia. () que diferencia verdadeiramente o mundo #umanodo mundo animal que, na #umanidade, uma famlia no poderia e&istir sem e&istir asociedade, isto , uma pluralidade de famlias dispostas a recon#ecer que e&istem outroslaos para alm dos consan!uneos e que o processo natural de descend'ncia s pode

    levar-se a cabo atravs do processo social da afinidade*, diz Lvi-Strauss +/, p. 012.

    A famlia funda o social, mas no nos termos funcionais da biolo!ia #umana. Aocontr3rio, na e&ist'ncia da famlia, concebida como aliana entre !rupos, est3 a

    possibilidade do ser #umano se fazer social, comunicando-se e, assim, romper com oque o autor define como o isolamento a que nos condena a consan!uinidade. ) ser#umano , por e&cel'ncia, comunicante, e a troca est3 na base de toda forma de relaosocial. 4esse sentido, as rela5es familiares, pensadas como rela5es de troca, so umadas formas de manifestao de um sistema !lobal, os sistemas de comunicao, que,se!undo sua concepo, constituem a sociedade #umana, (feita de indivduos e de!rupos que se comunicam entre si*, afirma Lvi-Strauss +67, p. 0062.

    ) autor desenvolve o tema da famlia a partir da an3lise da separao entre 4atureza e8ultura, que se d3 com a instituio do tabu do incesto, a primeira re!ra, a (re!ra* pore&cel'ncia, que faz #umano o ser #umano, uma vez que a aus'ncia de re!ras

    precisamente o que delimita o mundo da natureza, em oposio ao da cultura, (universode re!ras*. 9ntre suas ob%e5es s interpreta5es correntes sobre o tabu do incesto,Lvi-Strauss afirma que nada #3 de instintivo no #orror ao incesto, porque no #averiarazo para proibir o que, sem proibio, no #averia risco de acontecer. Lvi-Strausscoincide com :reud na interpretao do tabu do incesto como instituinte do #umano.;ais do que uma forma de interveno, constitui o que Lvi-Strauss c#ama de (ainterveno* +, p. 072.

    ) autor ar!umenta que a primeira re!ra, que funda o car3ter social das rela5es entre osseres #umanos, incide sobre a vida se&ual porque a se insinua a troca, uma vez que,entre todos os instintos, o se&ual o

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    sociedade*, conclui Lvi-Strauss +/, p. 112. A famlia impens3vel sem a noo detroca e de reciprocidade, como veremos adiante. >ei&ar a famlia consan!unea, re!raque se imp5e com o tabu do incesto, si!nifica a abertura para a troca e a comunicaocom o outro, possibilidade da #umanidade desenvolver-se culturalmente. 9ssa troca quefunda a famlia , ao mesmo tempo, o ato fundador da sociedade #umana. >evemos a

    Lvi-Strauss um ol#ar sobre a famlia sob um ?n!ulo que permite v'-la para alm desuas prprias fronteiras biol!icas e, para os estudos sobre famlia e parentesco, essepasso adiante, o da desnaturalizao da famlia, foi decisivo.

    O tomo do parentesco

    ) passo decisivo para a desnaturalizao da famlia ocorreu, pela primeira vez naantropolo!ia, ao se buscar uma e&plicao para a famlia que deslocou a ateno da

    prpria famlia, como unidade, diri!indo-a para o sistema de parentesco como um todo.At ento, ela tin#a sido identificada com a famlia biol!ica. A (unidade mnima* quecontin#a as tr's rela5es b3sicas do parentesco " entre marido-mul#er +afinidade2, entre

    pais e fil#os +filiao2 e entre irmos +consan!uinidade2 " correspondia unidadebiol!ica2. Ao retirar dessa unidade mnima o foco principal e voltar a ateno para osistema de parentesco, a famlia passou a ser vista como atualizao de um sistema maisamplo e a redefinio da unidade elementar do parentesco, a que Lvi-Strauss c#amoude (3tomo* do parentesco, si!nificou um verdadeiro ponto de infle&o nos estudossobre parentesco. 8omo ressaltou >a ;atta +02, foi preciso esse movimento dedeslocar o foco da (unidade mnima* para o sistema como um todo, como fez Lvi-Strauss, para e&plicar cientificamente a import?ncia da aliana na constituio dafamlia.

    A unidade elementar que envolve as rela5es que constituem os sistemas de parentescocorresponde, na formulao de Lvi-Strauss, no a um sistema trian!ular de rela5es,mas quadran!ular@ entre marido e mul#er, pai e fil#o, irmo e irm e tio materno esobrin#o. So quatro pares de rela5es +e no apenas as tr's@ marido-mul#er, pai-fil#o,irmo-irm2 que constituem o (3tomo do parentesco*, o que pressup5e a e&ist'ncia

    prvia de dois !rupos, um que recebeu e outro que deu a mul#er em casamento.

    A ideia do 3tomo do parentesco de Lvi-Strauss pressup5e sua an3lise do tabu doincesto, porque este nela est3 implcito. $ara que #a%a o marido e a mul#er, al!um#omem teve que renunciar sua irm e d3-la a outro #omem. em que #aver o irmo.Assim, Lvi-Strauss +672 introduz a noo de que o irmo da me no um

    (elemento e&trnseco*, mas (um dado imediato da estrutura familial mais simples* +p.6B2. Sua incluso no 3tomo evidencia a e&ist'ncia de dois !rupos em comunicao,atravs da aliana. Se!undo a afirmao do autor, (o que verdadeiramente elementarno so as famlias, termos isolados, mas a relao entre esses termos* +p. 62. $ara ele,nen#uma outra interpretao pode e&plicar a universalidade do tabu do incesto que vemda imposio da troca como forma de comunicao entre os seres #umanos.

    A (cl3ssica demonstrao* de Lvi-Strauss do 3tomo do parentesco (reformulacientificamente o nosso mito de Ado e 9va, verdadeiro arqutipo que informava toda aconcepo de famlia e parentesco desenvolvida no )cidente. $ois temos um casalori!inal de onde sur!e toda a #umanidade e todo o parentesco entre os #omens, frmula

    perfeita da criao do todo pelas partes individuais*, comenta >a ;atta +0, p. C2.(;as o ponto b3sico, implcito da demonstrao de Lvi-Strauss que o nosso

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    pensamento sobre a famlia +e o parentesco2 como uma unidade individualizada e auto-suficiente etnoc'ntrico*, completa.

    O tabu do incesto: proibi!o e prescri!o

    A e&plicao de Lvi-Strauss para a e&ist'ncia da famlia resulta de sua inda!ao sobrea recorr'ncia de um fenDmeno, que est3 em todas as sociedades, em todas as pocas,ainda que sob diferentes formas de or!anizao, e cu%as raz5es naturais no o e&plicam@, ento, na artificialidade da famlia, nas re!ras que a re!ulam, que Lvi-Strauss vai

    buscar a e&plicao para sua e&ist'ncia. ) fundamento de sua e&plicao est3 na an3lisedo tabu do incesto, esta re!ra severa e sa!rada, que est3 no limiar entre a 4atureza e a8ultura, revelando seu car3ter natural em sua universalidade e, ao mesmo tempo, suamarca cultural, como re!ra. 8onstitui a passa!em do fato natural da consan!uinidade

    para o fato cultural da aliana. ) autor inda!a, ento, quais so as (causas profundas eonipresentes* que fizeram com que em todas as sociedades, em todas as pocas, e&istamre!ras que re!ulamentam a relao entre os se&os +, p. C72. ) que torna o incesto

    peri!oso para a ordem socialE

    A resposta aparece na dualidade da re!ra. 4a interpretao do autor, o tabu do incestoconstitui no apenas uma re!ra ne!ativa, uma proibio, mas uma re!ra, ao mesmotempo, positiva. ) (no* contm um (sim*. A proibio de casar define,simultaneamente, re!ras de obri!a5es. Fm #omem no s no pode casar-se com suairm, como tem que dar sua irm em casamento a outro #omem, com quem criarela5es, ao mesmo tempo em que recebe de outro #omem, em troca, sua irm, criando,a partir da, rela5es. A proibio encerra em si, ento, a reciprocidade. Se!uindo aformulao de ;arcel ;auss +712, a proibio constitui, assim, uma re!ra da d3diva,

    porque pressup5e receber em troca e, assim, implica re!ras recprocas. As famliaspodem casar entre si, mas no dentro de si mesmas. A ren

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    outro que recebe a mul#er. ) casamento, na aborda!em estruturalista, pensado comoum sistema de comunicao entre !rupos. A aliana entre dois !rupos e, assim, ocasamento a tr's, constitui a (estrutura* da famlia. 9strutura que no est3 dada naobservao das sociedades, que no da ordem dos fatos observ3veis, como pretendeuKadcliffe-roMn, autor criticado por Lvi-Strauss +62#, mas est3 oculta, referindo-se

    no realidade emprica, mas l!ica inconsciente que l#e d3 si!nificado. Assim, asraz5es invocadas para e&plicar um ato ou um fato so muito diferentes das raz5es que ose&plicam.

    A estrutura corresponde a um sistema de re!ras inconsciente a ser apreendido edecifrado pelo trabal#o do etn!rafo, de acordo com a posio anti-empiricista quecaracterizou o estruturalismo$. $ara este, os fatos isolados no t'm si!nificado, por isso,

    precisam ser vistos em suas rela5es, ou mel#or, nas re!ras que estabelecem essasrela5es. Assim, as rela5es de parentesco no derivam de famlias isoladas, mas seconstituem um sistema de re!ras, confi!urando um sistema de comunicao.

    A famlia, como sistema de comunicao, tem na troca e na reciprocidade sua estruturafundante. ) ob%etivo das rela5es de parentesco, como de qualquer sistema social, instituir a comunicao, na qual o su%eito s se define em relao a um outro. )selementos no so pensados por suas propriedades intrnsecas +no interessa a famliaindividualizada2, mas pelas rela5es nas quais esto situados. 4esse ponto, clara aanalo!ia entre a antropolo!ia e a lin!ustica. Ambas operam a partir da ideia da trocacomo uma estrutura fundante. As rela5es de parentesco so, assim, uma lin!ua!em,se!undo Lvi-Strauss +672.

    $ara o autor, possuir uma ln!ua, portanto, comunicar-se, uma qualidadeespecificamente #umana. 9ssa qualidade est3 na base de tudo o que #umano, inclusiveda famlia. A ln!ua condio de possibilidade do pensamento, na medida em que

    precisamos cate!orizar o meio ambiente e, depois, representar essas cate!orias porsmbolos +elementos da lin!ua!em, palavras2, para depois pensarmos sobre elas. )sseres #umanos comunicam-se atravs de tr's tipos de rela5es de troca@ as palavras+lin!ua!em2, as mercadorias +sistema econDmico2 e as mul#eres +rela5es de

    parentesco2, que constituem (%o!os de comunicao*. A sociedade or!aniza-se emre!ras como em um (%o!o*. 9sse %o!o, por sua vez, consiste no con%unto de re!ras que odescrevem, sendo indiferente natureza dos %o!adores, e&plica Lvi-Strauss +672. Afamlia, como a sociedade, vista como um sistema de rela5es e a an3lise atenta paraas re!ras que re!em essas rela5es.

    9mbora incidam sobre diferentes aspectos, esses (%o!os* obedecem s mesmas (re!ras*,porque a comunicao entre os seres #umanos tem princpios estruturais. A famlia#umana obedece, portanto, tambm a princpios estruturais@ o casamento comoinstituio a tr's. 9ntretanto, os su%eitos no t'm consci'ncia do princpio que !overnaessas trocas, assim como o su%eito falante no precisa da an3lise lin!ustica para falar. Aestrutura, que est3 sob a si!nificao especfica, praticada pelos su%eitos como bvia.A estrutura (tem os #omens* mais do que eles (a t'm*, diz Lvi-Strauss +672.

    A noo de estrutura, se!undo Lvi-Strauss, no depende de uma definio indutiva,fundada na comparao e na abstrao dos elementos comuns a todas as acep5es do

    termo, tal como !eralmente acontece em muitos autores +como o caso de Kadcliffe

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    roMn2. A estrutura confi!ura um sistema de rela5es. usca-se apreender a l!icasub%acente aos fatos, para depois !eneralizar e aplicar aos casos observados.

    (Se, como cremos, a atividade inconsciente do esprito consiste em impor formas a umconteurO#eim, seu tio e

    predecessor, inte!rando a sub%etividade na an3lise sociol!ica, ao pressupor o car3terinconsciente dos costumes. A vida social para ;auss pensada, se!undo Lvi-Strauss,

    como (um mundo de rela5es simblicas* +p. 62. ;auss articula, assim, a dimensosocial e a individual, mostrando que e&iste uma operao que se d3 no su%eito. Acate!oria inconsciente, prpria dos costumes, torna possvel a comunicao entre osub%etivo e o ob%etivo, entre mim e o outro.

    A noo de estrutura pressup5e a noo de inconsciente como a forma fundamental doesprito #umano. Ketm de :reud a ideia de inconsciente como o centro dosmecanismos estruturais, cu%a funo dar um sentido realidade. ) inconsciente (est3sempre vazioP ele to estran#o s ima!ens quanto o estDma!o aos alimentos que oatravessam*, diz Lvi-Strauss +67, p. C01-B2. $ara ele, contrariando a ideia dearqutipos de Qun!, no e&istem smbolos +com conteentro desse quadro terico de refer'ncias, a famlia, como a lin!ua!em,constitui uma estrutura fundada no princpio da aliana, uma das formas fundamentais

    pelas quais os #omens se comunicam.

    A teoria da aliana% ontem e ho&e

    Ao se pensar a teoria da aliana levistraussiana como possibilidade de an3lise da famliano mundo moderno, al!umas dificuldades imp5em-se. Louis >umont +02 menciona

    o valor e&plicativo das no5es de troca e reciprocidade como um dos pontos maiscontrovertidos de sua an3lise. Sobre este ponto recai uma (ob%eo radical*, na medida

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    em que a teoria da aliana foi formulada a partir da an3lise do casamento prescrito+entre primos cruzados2, e no se pode aplicar as no5es de troca, com base nocasamento prescrito entre !rupos, para a sociedade moderna individualista, semressalvas, onde no e&iste essa prescrio.

    >umont +0, p. B2, entretanto, abre pistas importantes, ao ressaltar que (a proibiodo incesto manifesta a e&ist'ncia sempre presente de um certo !rau deincompatibilidade e, por conse!uinte, de complementaridade entre consan!uinidade eafinidade*. A an3lise do tabu do incesto de Lvi-Strauss, ao atribuir re!ra um car3ter,ao mesmo tempo, positivo e ne!ativo, estabelece um conflito fundante entreconsan!uinidade e afinidade. :ala de uma questo intrnseca famlia, em todos ostempos, em todas as sociedades. A se insinua a sin!ularidade da famlia em sua an3lise.

    Assim, ainda que Lvi-Strauss formule a teoria da aliana a partir da an3lise de(estruturas elementares do parentesco*, +em que o cDn%u!e prescrito2, no se e&clui a

    possibilidade de pensar o fundamento da troca e da reciprocidade que sustenta essa

    teoria, tambm nos casos de (estruturas comple&as* +abarcando toda a diversidade decasos de cDn%u!e no prescrito pelo !rupo, o que inclui nosso sistema de parentesco2como fundamento para se pensar as rela5es familiares naquilo que as funda@ anecessidade de romper os laos da consan!uinidade, que condenam ao isolamento, elanar-se no camin#o da abertura ao outro.

    Sua interpretao do tabu do incesto, como re!ra que institui a comunicao, dizrespeito a uma questo intrnseca famlia@ a tenso entre consan!uinidade e afinidade.A radicalidade da proposta de Lvi-Strauss, no sentido de romper com o fundamento

    biol!ico e (naturalizante* da famlia, tornando insustent3vel a ideia da famliacomocelula mater da sociedade, no encontrou paralelo em qualquer outra teoria. $oresta razo, a teoria da aliana de Lvi-Strauss tornou-se uma refer'ncia fundamental

    para quem estuda o tema.

    Cynthia Andersen Sarti antroploga e professora titular do curso de cincias sociais

    da Universidade ederal de S!o "aulo #Unifesp$ % Campus &uarulhos'

    'otas

    1radu5es feitas por mim.

    29sta identificao que aparece no pensamento evolucionista, persiste tanto em;alinoMsOi +702, quanto em Kadcliff-roMn +C2.

    #9m sua crtica a Kadcliffe-roMn, afirmava que a estrutura social no se confundecom as rela5es sociais, no correspondendo ao fenDmeno emprico +Lvi-Strauss,62.

    $Lvi-Strauss +72, nos (ristes trpicos,fala das teorias que o influenciaram,c#amando-as de (min#as tr's professoras*@ a !eolo!ia, a psican3lise e o mar&ismo, namedida em que as tr's postulam uma descontinuidade entre o (vivido* e o (real*, nemque se%a para reinte!r3-los mais tarde numa sntese +p. BC-02. 9mAntropologia

    estrutural,Lvi-Strauss +672 adverte que a estrutura no uma ideia platDnica.Se!undo o autor, fi&ar conceitualmente estruturas como realidades no-empricas e

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    construir modelos com cu%o au&lio se possa compreender as sociedades e&istentes nosi!nifica substituir o real por um modelo. 4o e&iste a separao entre a realidade e omundo das ideias.