Para uma caracterização da psicologia social brasileira

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    Para uma Caracterizao da

    Psicologia Social Brasileira

    Characterization Of Brazilian Social Psychology

    Para Una Caracterizacin De La Psicologa Social Brasilea

    Art

    igo

    124

    Leonardo Pinto de Almeida

    Universidade Federal Fluminense

    PSICOLOGIA: CINCIA E PROFISSO, 2012, 32 (num. esp.), 124-137

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    Para uma Caracterizao da Psicologia Social Brasileira

    Leonardo Pinto de Almeida

    Resumo: O presente artigo tem como objetivo construir um esboo panormico da histria da psicologia social brasileira. Inicialmente, partimos da intuio de Farr sobre a diferena conceitual entre psicologias sociais sociolgicas e psicolgicas para com isso estabelecer pontos de comparaes entre as diversas perspectivas em Psicologia social. Analisamos diversos grupos tericos para tentar construir um modo de compreenso sobre as implicaes polticas, metodolgicas e prticas de suas respectivas posies. Em nosso horizonte de reflexo, tomamos as psicologias sociais associadas ao behaviorismo, Psicologia comparativa e ao cognitivismo, em solo norte-americano. Traamos as influncias da Psicologia cognitivista em solo brasileiro, mostrando que estava ligada busca de variveis dotadas de estabilidade, ao postulado da neutralidade do investigador e s noes de adaptabilidade e produtividade. Aps a crise dessa perspectiva, observamos a influncia da teoria das representaes sociais e da teoria crtica em relao Psicologia socio- histrica. Esta fundamenta uma ideia de homem associada ao materialismo dialtico, historicidade e transformao social. Alm da perspectiva socio-histrica, refletimos ainda sobre a Psicologia social relacionada ao problema das instituies para assim traarmos as implicaes crticas dessa perspectiva e da socio-histrica em relao ao pensamento norte-americano. Palavras-chave: Psicologia social-Histria. Psicologia-Teoria. Teorias. Metodologia.

    Abstract: This article aims to build a panoramic sketch of the history of Brazilian social psychology. Initially, we start from the intuition of Farr about the conceptual difference between psychological and social psychology to establish the comparisons between the various perspectives in social psychology. We analyzed various theoretical groups to try to build an understanding of the implications of policies, guidelines and practices in their respective positions. In our reflection, we take the social psychology associated with behaviorism, cognitivism and comparative psychology in the USA. We trace the influences of cognitivist psychology in Brazil, showing that it was linked to the pursuit of stability, neutrality of the investigator and the concepts of resiliency and productivity. After the crisis of that perspective, we see the influence of the theory of social representations and critical theory in relation to socio-historical psychology. The socio-historical psychology had an idea of man associated with dialectical materialism, historicity and social transformation. We also reflect on the social psychology related to the institutions problems to think over the critical implications of this perspective and the socio-historical psychology in relation to the American thought.Keywords: Social psychology-History. Psychology-Theory. Theories. Methodology.

    Resumen: El presente artculo tiene como objetivo construir un esbozo panormico de la historia de la psicologa social brasilea. Inicialmente, partimos de la intuicin de Farr sobre la diferencia conceptual entre psicologas sociales sociolgicas y psicolgicas para con eso establecer puntos de comparaciones entre las diversas perspectivas en Psicologa social. Analizamos diversos grupos tericos para intentar construir un modo de comprensin sobre las implicaciones polticas, metodolgicas y prcticas de sus respectivas posiciones. En nuestro horizonte de reflexin, tomamos las psicologas sociales asociadas al behaviorismo, a la Psicologa comparativa y al cognitivismo, en suelo norteamericano. Trazamos las influencias de la Psicologa cognitivista en suelo brasileo, mostrando que estaba relacionada a la bsqueda de variables dotadas de estabilidad, al postulado de la neutralidad del investigador y a las nociones de adaptabilidad y productividad. Despus la crisis de esa perspectiva, observamos la influencia de la teora de las representaciones sociales y de la teora crtica en relacin a la Psicologa socio-histrica. sta fundamenta una idea de hombre asociada al materialismo dialctico, a la historicidad y a la transformacin social. Adems de la perspectiva socio-histrica, reflexionamos asimismo sobre la Psicologa social relacionada al problema de las instituciones para que as tracemos las implicaciones crticas de esa perspectiva y de la socio-histrica en relacin al pensamiento norte-americano.

    Palabras clave: Psicologa social-Historia. Psicologa-Teora. Teoras. Metodologa.

    A Psicologia social teve sua emergncia em solo norte-americano no sculo XX. O behaviorismo tornou-se hegemnico por volta dos anos 30, e proporcionou o surgimento de uma compreenso individualizante do socius, por entender que a psicologia dos indivduos serviria para compreender a sociedade.

    A imigrao dos pensadores gestaltistas, em decorrncia da ascenso de Hitler, foi o estopim para o surgimento de uma psicologia social cognitivista que, como a behaviorista, mantinha uma postura individualizante, experimentalista e a-histrica, mantendo uma distino entre indivduo e sociedade. A

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    debruar-nos-emos sobre alguns desses grupos tericos, com o intuito de examinar suas implicaes polticas, metodolgicas e prticas, fundamentando nossa viso histrica.

    Nessa fundamentao argumentativa, partiremos de caracterizaes tericas e metodolgicas de acordo com o movimento histrico da Psicologia social, examinando as peculiaridades do behaviorismo, do cognitivismo, da Psicologia comparada, das representaes sociais, da Psicologia socio-histrica e da Psicologia social ligada ao problema das instituies.

    Robert Farr (1998), em seu livro sobre as razes da Psicologia social, aponta o embate entre as perspectivas psicolgica e sociolgica. Ele argumenta que a Psicologia social moderna floresceu em solo norte-americano no perodo posterior Segunda Guerra Mundial, sendo que a perspectiva hegemnica passou a ser a psicolgica devido individualizao do social, implementada tanto pelo behaviorismo (entre as duas guerras) quanto pelo cognitivismo no perodo que se sucedeu Segunda Guerra Mundial.

    No entanto, antes da instalao da perspectiva individualista em solo norte-americano, vemos o surgimento de uma psicologia social comparativa, baseada em uma perspectiva evolucionista fundamentada no Handbook of Social Psychology, de Murchison, de 1935. Esse trabalho, segundo Farr (1998), revela uma perspectiva sociolgica da Psicologia social por se fundamentar em uma analtica histrica dos fenmenos filogenticos e na histria social, em uma forma de considerar o social com metodologia multidisciplinar de anlise dos fatos e fenmenos sociais.

    Entretanto, podemos ver que, com o fortalecimento hegemnico do behaviorismo entre as duas guerras, essa perspectiva foi sobrepujada em solo norte-americano. A vitria do behaviorismo sobre a Psicologia

    Robert Farr (1998), em seu livro

    sobre as razes da Psicologia

    social, aponta o embate entre as perspectivas

    psicolgica e sociolgica. Ele

    argumenta que a Psicologia social

    moderna floresceu em solo norte-americano no

    perodo posterior Segunda Guerra

    Mundial, sendo que a perspectiva

    hegemnica passou a ser a

    psicolgica devido individualizao

    do social, implementada

    tanto pelo behaviorismo

    (entre as duas guerras) quanto

    pelo cognitivismo no perodo que

    se sucedeu Segunda Guerra

    Mundial.

    Psicologia social passou a ser compreendida como o estudo das interaes humanas e debruou-se sobre os problemas relativos s atitudes e aos valores, que podiam ser negativos, como o preconceito, ou positivos, como a liderana. Outro foco bastante abordado pela psicologia social norte-americana foi o funcionamento do grupo como dispositivo de produtividade, seguindo as demandas do capitalismo avanado daquele pas.

    Essa teoria tornou-se hegemnica aps a Segunda Guerra Mundial, devido aos planos de reestruturao das universidades europeias e japonesas e pelo amplo desenvolvimento das pesquisas nos Estados Unidos. No entanto, nos anos 70, essa hegemonia comeou a ser abalada pelos questionamentos de psiclogos latino-americanos, ao afirmarem que os modelos tericos estadunidenses no condiziam com a realidade dos povos de seus pases. No Brasil, tal abalo desencadeou uma crise de paradigmas que acabou por firmar na Psicologia social do Pas a perspectiva sociolgica, que primava pelo compromisso com a populao e com suas respectivas mazelas. Como consequncia, observamos hoje um quadro bastante influenciado pela teoria crtica, pela representao social e pelas teorias das instituies, que caracterizam algumas diferenas e semelhanas na rea. Neste artigo, pretendemos traar um panorama histrico da Psicologia social no Brasil a partir da ideia de Robert Farr sobre a existncia de formas sociolgicas e psicolgicas em psicologia social, com o intuito de marcar as posies tomadas nessa disciplina em nosso pas e assim melhor caracteriz-la em suas peculiaridades.

    Um esboo panormico

    Ao analisarmos a histria da Psicologia social, observamos o embate entre perspectivas psicolgicas e sociolgicas ao longo de seu desenvolvimento. No presente texto,

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    social comparativa se deu pelo declnio do evolucionismo e pela separao entre as disciplinas.

    interessante observarmos como a separao entre indivduo e sociedade foi resolvida com uma ferramenta implementada pela psicologia social norte-americana: o conceito de grupo, entendido como elo intermedirio entre os dois. Em Grupo: a Afirmao de um Simulacro (2007), Barros mostra que o trabalho de Mayo, em 1924, na Western Eletric Company, foi o estopim para o entendimento do grupo como dispositivo de melhor produtividade que ter seu avano nas duas perspectivas psicolgicas, fundadas em solo norte-americano.

    A vitria do behaviorismo contra o funcionalismo e a Psicologia comparada1 marcou a derrota da perspectiva histrica na anlise do comportamento, dando lugar a uma perspectiva a-histrica que se fundamentava na busca de leis que regem as interaes sociais. A viso de que a pesquisa deveria servir para a depurao precisa das variveis, pelo meio de pesquisas ex post facto e experimentais,2 foi tomando espao at tornar-se hegemnica com o advento do cognitivismo.

    Assim, F. H. Allport (1924), em seu livro Social Psychology, fundamenta a Psicologia social como cincia comportamental e experimental. Ele parte da ideia de que a Psicologia social no seria uma Geisteswissenschaft (cincia do esprito), como trataremos adiante em Wundt, mas uma Naturwissenschaft (cincia natural). Desse modo, para compreender a relao entre o indivduo e a sociedade, a Psicologia social deveria se valer de formas analticas provindas das cincias da natureza. interessante observarmos com Foucault (1957/1999), em seu texto A Psicologia de 1850 a 1950, que h, no incio da Psicologia assim como nos objetivos traados pelos behavioristas e cognitivistas e

    tambm na Psicologia social , uma vontade de verdade que busca as naturezas, as essncias depuradas do homem por meio de experimentos que retiram a sua histria. Ser somente mais tarde, na histria da Psicologia e da Psicologia social que a compreenso do homem como sujeito histrico ir tomar corpo em oposio a essa subjetividade naturalizada pelas psicologias que se declaram provindas das cincias naturais.

    Se retornarmos um pouco mais na Histria, podemos observar esse dilema entre as formas psicolgicas e sociolgicas da Psicologia social, conforme os fundamentos tericos levantados por Wundt no incio da Psicologia.

    Wundt formulou a base de duas perspectivas psicolgicas, uma relacionada Psicologia experimental e outra fundamentadora de uma psicologia dos povos. A primeira estaria associada ao que os alemes chamavam de Naturwissenschaft (cincia natural), e a segunda, Geisteswissenschaft (cincia do esprito). Essa dicotomia fundamenta duas psicologias com objetos e mtodos de anlises diferentes. A Psicologia experimental se baseava na introspeco como mtodo de anlise usado no laboratrio para analisar certos comportamentos do indivduo e da dinmica da conscincia, enquanto a segunda se fundamentaria na anlise de religies, mitos e produtos culturais em geral. Wundt estabeleceu essa diferena por acreditar que os processos mais profundos do psiquismo e suas produes culturais decorrentes no poderiam ser analisados experimentalmente. Sobre esse fato, Schultz e Schultz afirmam o seguinte:

    A Psicologia cultural tinha que ver com a investigao de vrios estgios do desenvolvimento mental, manifestos na linguagem, na arte, nos mitos, nos costumes sociais, nas leis e na moral. As implicaes dessa obra para a Psicologia tm um significado maior do que seu contedo; ela serviu para dividir a nova cincia em duas partes, a experimental e a social (Schultz &

    Schultz, 2001, p. 80)

    1 Para melhor aprofundamento

    da ascenso do behaviorismo nos

    Estados Unidos, cf. Schultz e Schultz

    (2001).

    2 As pesquisas ex post facto contam

    com pesquisas de levantamento

    e pesquisas de campo, observam

    um fenmeno j ocorrido para

    inferir suas causas e as pesquisas

    experimentais, divididas em experimento

    de campo e de laboratrio, em

    que o pesquisador manipula

    previamente as variveis a

    serem analisadas (Rodrigues, 1979).

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    Ass im, Wundt u t i l i zava o mtodo experimental, pelo meio da interferncia e da manipulao do pesquisador em relao ao objeto analisado, em sua psicologia experimental, fundando assim uma psicologia da experincia, enquanto usava o mtodo de observao, fundado na apreenso dos fenmenos, por meio de investigaes indiretas atravs de relatos e de estudos etnolgicos, dentre outros.

    Como indicado anteriormente, Wundt afirmou veementemente a impossibilidade de se estudar os processos psquicos superiores por meio do experimento. No entanto, podemos ver, ao longo da histria da Psicologia, crticas diretas a essa ideia, como nos trabalhos de Ebbinghaus sobre o estudo experimental da aprendizagem e da memria, e de Klpe sobre o pensamento sem imagens (Schultz & Schultz, 2001).

    As crticas da vertente positivista a essa recusa, da possibilidade de anlise experimental de fenmenos psicolgico-culturais, deu origem ao esquecimento, ou melhor, obliterao do desenvolvimento de uma Volkrpsychologie (psicologia dos povos). Esse repdio positivista de Wundt, para usar a feliz expresso de Danziger, possibilitou o fortalecimento de uma perspectiva em Psicologia social, fundamentada no experimentalismo e no positivismo, apontando uma individualizao do social, percebida em seu desenvolvimento posterior com o behaviorismo e com o cognitivismo (Farr, 1998).

    O repdio fundamentou em solo norte-americano a substituio do psiquismo pelo organismo como objeto e da transio da Filosofia, como disciplina-me, para a biologia. Esse movimento de recusa positivista da psicologia social de Wundt foi um passo importante para a Psicologia social se tornar, aos olhos norte-americanos, uma cincia natural, da a afirmao de Robert Farr que o que era uma Geisteswissenschaft em Wundt

    se tornou uma Naturwissenschaft em Floyd Allport.

    Assim, voltemos ao solo norte-americano, com o fortalecimento do behaviorismo e o desaparecimento, nas Amricas, da Psicologia comparativa, no perodo entre as duas guerras. Em seu livro Social Psychology, Floyd Allport (1924) classifica a Psicologia social como cincia comportamental e experimental. Essa forma de ver a Psicologia social uma forma psicolgica, que individualizou e rebateu o aspecto social sobre a anlise do comportamento. Outra perspectiva psicolgica em Psicologia social surgida em solo norte-americano a Psicologia social cognitiva, que, mesmo sendo diferente em sua base terica em relao anterior, tem algumas consequncias polticas e metodolgicas semelhantes em sua individualizao do mbito social.

    Cartwright, em sua anlise histrica da Psicologia social, sustenta a grande importncia da figura de Hitler para o surgimento da Psicologia social moderna, fundamentada em solo norte-americano no perodo posterior Segunda Guerra Mundial. Essa afirmao se sustenta na anlise histrica das consequncias das perseguies aos povos judeus, implementadas pelo dio nazista. Devido a esse fato, muitos intelectuais europeus migraram para a Amrica para fugir do dio nazista. Dentre esses intelectuais, estavam os tericos da Gestalt, como Kurt Lewin, Heider, Khler, Koffka e Wertheimer, dentre outros.

    A ascenso do nazismo na Alemanha, com seu anti-intelectualismo e seu anti-semitismo, resultou como se sabe na migrao para Amrica de vrios professores, cientistas e artistas. Embora esse grande deslocamento de talentos intelectuais teve seus efeitos observados em todas as dimenses da cincia e da cultura, ele foi especialmente crtico para a Psicologia social. difcil imaginar como o campo seria hoje se pessoas como Lewin, Heider, Khler, Wertheimer, Katona, Lazarsfield e Brunswiks no tivessem vindo aos Estados Unidos, como o fizeram (Cartwright, 1979, p. 85)

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    Dessa migrao forada, surgiu o confronto entre duas perspectivas psicolgicas: o behaviorismo e o gestaltismo, o primeiro baseado no positivismo e na anlise do comportamento, e o segundo fundado em uma perspectiva fenomenolgica e no exame da percepo.

    Segundo Farr (1998), muitos tericos da Gestalt no haviam se defrontado com o behaviorismo antes, e foi justamente esse entrechoque de ideias que possibilitou o surgimento da psicologia social moderna, a cognitivista. No entanto, podemos observar que ambas as teorias (behaviorismo e gestaltismo) individualizaram o social, cada uma de seu jeito, e se constituram como formas psicolgicas de Psicologia social, a primeira rebatendo o aspecto social sobre o comportamento do indivduo e o segundo, em termos de percepo. Ambas as formas psicolgicas de Psicologia social norte-americana se definem como o estudo das interaes sociais que procuram relacionar fatores ou variveis dotadas de estabilidade, da a afirmao de Aroldo Rodrigues de que a Psicologia social uma cincia neutra, por buscar relaes estveis3 (Bock, Ferreira, Gonalves, & Furtado, 2007).

    A anlise das interaes sociais se baseia na tentativa de construo terica de leis sobre o comportamento ou a percepo dos indivduos na sociedade, apostando na ideia de que a psicologia do indivduo explica a psicologia da sociedade. Poderamos acrescentar reflexo de Cartwright (1979) que no foi to somente a imigrao dos gestaltistas que aponta a marca das consequncias da Segunda Guerra na psicologia social moderna, pois tambm muitos de seus objetos de anlise decorrem de preocupaes sublinhadas socialmente pela ascenso do nazismo, como o exame do papel da obedincia autoridade, do poder social, do conformismo e da agresso. No entanto, podemos assinalar que a anlise

    das atitudes se tornou um dos focos principais da psicologia social norte-americana (Reich & Adcock, 1976; Rodrigues, 1979).

    A psicologia social norte-americana, dentro desses moldes, revela uma forma psicolgica de Psicologia social. Ela tem, segundo Helmut Krger (1986), como principais aspectos: 1) o individualismo preocupao em formular leis psicolgicas relativas ao indivduo em suas relaes sociais4, 2) o experimentalismo, 3) a microteorizao, 4) o etnocentrismo generalizao terica de experimentos norte-americanos para a aplicao em outras culturas, 5) o cognitivismo devido prevalncia dessa concepo em relao ao behaviorismo e psicanlise e 6) o a-historicismo devido busca de formulao terica de leis generalizveis para o comportamento do indivduo em sociedade, em que se essencializa o indivduo e sua relao com a sociedade retirando seu componente histrico criador.

    Dentre algumas das principais teorias formuladas pela Psicologia social norte-americana, esto: a dissonncia cognitiva e a de comparao social de Festinger, o princpio do equilbrio e a teoria da atribuio da causalidade de Heider, a teoria da direo simetria de Newcomb e a teoria da reatncia psicolgica de Brehm, dentre outras5.

    interessante observarmos, com Barros, como a psicologia social norte-americana abandonou as noes europeias de massa e de coletivo para usar o grupo. Na Europa, vemos, no sculo XIX, uma postura reacionria das massas por ser supostamente descontrolada e irracional em Le Bon e uma viso libertria associada revoluo em Marx (Silva, 2005; Barros, 2007). A psicologia social norte-americana baseia suas anlises em grupos ou microgrupos, como salienta Krger (1986), com o intuito de melhor adaptar os indivduos, visando tambm a um aumento de produtividade e, em consequncia, de controle. Assim, adaptao e produtividade

    3 Em Silvia Lane

    e o Projeto do Compromisso Social

    da Psicologia, os autores contrapem

    as ideias de Rodrigues de que a Psicologia

    social uma cincia neutra, e as de Lane,

    ao afirmar que ela no neutra, mas

    poltica.

    4 Aqui, ressoa a afirmao de F. H. Allport (1924) de

    que a psicologia do indivduo explica a

    psicologia social.

    5 Para uma explicitao das

    premissas de cada uma destas teorias,

    cf. Rodrigues (1979), Reich e Adcock (1976) e Krger

    (1986).

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    sero os principais objetivos dessa psicologia, que, de certa forma, naturaliza o social.

    A metodologia dominante baseada no positivismo e utilizada por essa perspectiva experimental, que se apoia em um controle e planejamento estatstico da pesquisa e na anlise de hipteses construdas. Ela era fundamentada ou em anlises em laboratrio ou em pesquisas de campo, e dava mais importncia primeira em muitos dos casos (Krger, 1986).

    A psicologia social norte-americana se tornou hegemnica depois da guerra, devido tanto reconstruo das universidades europeias e japonesas no perodo ps-guerra quanto colonizao cultural das Amricas nos anos que antecederam a crise da Psicologia social, nos anos 70.

    No entanto, antes de aportarmos na problemtica latino-americana, faremos um breve adendo para apresentar uma perspectiva sociolgica em Psicologia social apontada por Farr em seu livro, surgida no perodo do ps-guerra em solo europeu, a teoria das representaes sociais, de Moscovici. Essa perspectiva mostra um movimento dialgico entre indivduo e sociedade.

    A teoria das representaes sociais fundamenta a anlise do conjunto de saberes que circulam hodiernamente em nossa sociedade, constituindo focos principais de construo social de identidades. Essa teoria ser recuperada nos estudos latino-americanos em Psicologia social em seu embate terico contra as perspectivas psicolgicas hegemnicas.

    Diferentemente de Allport em sua anlise positivista da histria da Psicologia social que aponta Comte como antecessor, Moscovici sublinha Durkheim como antecessor da Psicologia social, com sua distino entre representaes coletivas e representaes individuais. Essa distino de Durkheim muito

    se assemelha apontada por Wundt entre a Psicologia experimental e a social (Moscovici, 2003).

    As representaes individuais, segundo Durkheim, seriam o objeto da Psicologia, pois representaram as vicissitudes do indivduo, enquanto as representaes coletivas marcariam o objeto da Sociologia, sendo os produtos representacionais de uma dada cultura, como religio, mitos, representaes simblicas da sociedade.

    As representaes sociais se assemelham s representaes coletivas, como formas representacionais de determinada cultura. No entanto, o carter esttico das representaes coletivas trocado por um carter dinmico e de transformao que fundamenta a nomeao conceitual diferenciada (Spink, 1993). Moscovici est interessado no dinamismo das representaes em sua construo da sociedade contempornea e das identidades fundadas nessas representaes.

    As representaes sociais so mais dinmicas que as representaes coletivas. Sperber (citado por Alexandre, 2004), quando analisa essa distino, apropria-se de uma metfora mdica, ao afirmar que as representaes coletivas, devido ao seu carter esttico, se assemelham endemia, j que as endemias so as doenas reinantes em um ambiente social, enquanto as representaes sociais so dinmicas como as epidemias, j que surgem to rapidamente quanto desaparecem, assemelhando-se a modismos.

    Quando Moscovici (2003) se pergunta como surgem as representaes sociais, conclui que elas aparecem em um movimento de familiarizao do desconhecido. Quando surge o novo, o estranho, o movimento recorrente dos homens o de torn-lo familiar. desse modo que as representaes sociais surgem, atravs de um movimento dinmico

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    de familiarizao do estranho em categorias e representaes, que revelam dimenses afetivas e cognitivas. Para Moscovici, esse movimento surge cognitivamente atravs de dois processos: o de ancoragem e o de objetivao (Moscovici, 2003; S, 2002).

    O processo de ancoragem se caracteriza pelo encaixe do desconhecido em categorias pr-existentes. A ancoragem consiste na integrao cognitiva do objeto representado a um sistema de pensamento social pr-existente e nas transformaes implicadas em tal processo (S, 2002, p. 46), como no caso da AIDS, que, quando surgiu, como doena desconhecida, foi logo classificada de peste gay. A ancoragem sinnimo de classificao e denominao. Ela est do lado da categorizao do desconhecido que se torna familiar, enquanto a objetivao se fundamenta na construo de imagens naturalizadas que tomam o lugar do desconhecido e assim o explicam.

    Essa teoria foi usada por muitos dos tericos latino-americanos em sua luta por uma psicologia social comprometida com os problemas de seus respectivos pases e em uma tentativa de possibilitar a conscientizao dos povos, subjugado por foras ideolgicas. Assim, seu uso buscava conscientizar os sujeitos que so acometidos por representaes sociais a servio de foras ideolgicas hegemnicas.

    Esse problema das relaes sociais (RS) com a ideologia pode ser visto de duas formas: primeira, as RS e a ideologia diferem se pensarmos que as RS so dinmicas, re lacionadas com a t ransformao, e a ideologia esttica, e, segunda, e mais interessante, as RS e a ideologia se assemelham, pois ambas so formas simblicas. No entanto, a ideologia se caracteriza por ser uma forma simblica a servio de relaes de dominao, logo, nem toda RS ideolgica, mas devemos verificar

    se ela fundamenta ou no uma relao de dominao (Guareschi, 2004). Os psiclogos sociais latino-americanos se debruaram, em muito dos casos, nas representaes sociais com o intuito de apontar o seu carter ideolgico.

    Relacionando essa questo ao ponto em nossa argumentao sobre as consequncias do desenvolvimento da Psicologia social em solo latino-americano, vemos claramente, em nossa histria, como marcante a colonizao cultural sofrida pelos povos de nosso continente, e, com a Psicologia social, no foi diferente, como podemos observar no artigo Sobre a Psicologia Social no Brasil, entre Memrias Histricas e Pessoais, de Celso Pereira de S (2007).

    Vemos no Brasil um desenvolvimento de uma nova postura em relao Psicologia social surgida com a crise que a perspectiva at ento vigente sofreu nos anos 70. No entanto, podemos observar dois momentos especiais para a Psicologia social que antecedem o surgimento da ABRAPSO (Associao Brasileira de Psicologia Social), que fundamenta as premissas do surgimento da Psicologia socio-histrica: os cursos de Psicologia social ministrados e seus livros correspondentes na dcada de 30-40, de Ramos e Bricquet, que mostravam uma perspectiva sociolgica inspirada na multidisciplinaridade, como o Handbook of Social Psychology, de Murchison (Bonfim, 2004).

    Porm, no ps-guerra, principalmente, nas dcadas de 60 e 70, h um fortalecimento da perspectiva psicolgica em Psicologia social derivada do pensamento positivista norte-americano, devido formao de psiclogos sociais brasileiros nos EUA e exploso bibliogrfica de tradues de autores consagrados dessa perspectiva, como Festinger e Heider, dentre outros, como salienta S (2007).

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    No entanto, em plena ditadura no nosso pas, crticas provindas da Inglaterra e da Frana instalam uma crise nesses modelos hegemnicos norte-americanos em Psicologia social, o que traz a perda do privilgio da teoria de Festinger (dissonncia cognitiva) para o carter falseador da distino entre indivduo e sociedade, para a caracterstica essencializante, naturalizante e a-histrica, uma crise que se instaurou inicialmente nas discusses no Congresso Interamericano em Miami, no ano 1976.

    No entanto, foi apenas no encontro no Peru, em 1979, que se apresentaram crticas mais precisas e propostas de reformulao paradigmtica para a psicologia social latino-americana. Uma das crticas mais ferozes perspectiva norte-americana tem a ver com a neutralidade do pesquisador, a perda do humano em seu tratamento a-histrico, a falsa dicotomia entre indivduo e sociedade, e, principalmente, com o fato de que esses modelos importados no condizem com nossa realidade (Lane, 1981, 1982).

    Poderamos parafrasear a reflexo de Cartwright sobre a importncia de Hitler para o nascimento da psicologia social moderna e dizer que o surgimento da psicologia social latino-americana deve muito s figuras ditatoriais instaladas em suas fronteiras, j que tanto a represso das ditaduras quanto a imposio da hegemonia norte-americana impuseram a valorizao do indivduo em relao ao social. O individualismo importante para ambas, porque sustenta a despolitizao do social, como afirma Bourdieu (1998) em Contrafogos. Represso e individualismo fizeram surgir, em contrapartida, uma psicologia social comprometida com a realidade social de nosso continente em contraposio ao movimento de despolitizao.

    Essa psicologia social, que uma forma sociolgica, teve como influncias marcantes

    a teoria das representaes sociais, a teoria crtica e a prxis marxista. No Brasil, temos Silvia Lane como uma de suas figuras fundamentais.

    Enquanto a Psicologia social cognitiva se baseava em uma perspectiva naturalizante e dicotmica, valendo-se do mtodo exper imental e da neutra l idade do investigador em suas anlises das relaes interpessoais e dos fatores sociais no indivduo, a psicologia social brasileira (socio-histrica) se fundamentava no mtodo do materialismo dialtico, visando ao compromisso social.

    Em Mtodo Histrico Social na Psicologia Social (2005), diversos autores fundamentam as premissas tericas e metodolgicas dessa teoria, que foi chamada comumente de Psicologia scio-histrica, em contraposio psicologia social psicolgica norte-americana. Eles afirmam que o materialismo positivista da psicologia social norte-americana se fundava na neutralidade, em um entendimento de que a psicologia do indivduo explicaria a psicologia da sociedade, e que sua caracterstica naturalizante se baseava na compreenso de uma cognio abstrata e descontextualizada e, por consequncia, a-histrica. O materialismo histrico-dialtico usado pelos psiclogos scio-histricos, por outro lado, produzia uma viso comprometida com a realidade da populao, j que defendiam o resgate da historicidade e a produo de conhecimento comprometido com a transformao social.

    Como podemos observar, a Psicologia socio-histrica apostou principalmente no carter histrico das relaes sociais. Seu foco de anlise recai sobre as realidades concretas do homem brasileiro e se vale da conceitualizao da ideologia como fundamentadora das relaes de dominao e da possvel conscientizao, mediante trabalhos em grupos, para permitir que os homens se desvencilhem dos poderes hegemnicos.

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    curioso observarmos a importncia de dois conceitos usados por esses autores: o conceito de relao e da linguagem como mediador simblico das relaes humanas. Em Psicologia Social Crtica, Guareschi (2004) sustenta que o conceito-chave da Psicologia social seria o conceito de relao. Essa afirmao revela uma contraposio psicologia social norte-americana, que busca valores universais que regiriam as interaes humanas. Os valores universais esto do lado das naturalizaes que sustentam certas relaes de poder. O conceito de relao se ope s ideias de natureza humana, pois, para um pensamento histrico, as essncias so construes representativas precrias fundadas pelo medo da transformao.

    Assim, Guareschi une os conceitos de relao, de histria e de crtica para se contrapor s naturezas impostas pelas relaes de dominao, fundadas nas diversas ideologias que circundam a sociedade. O homem histrico e suas relaes o constroem. Ele produto e produtor da Histria. No entanto, sem o pensamento crtico, ele deixa de lado sua potencialidade de criador de sua prpria histria e reproduz as palavras hegemnicas regidas pelas ideologias dominantes.

    Lane mostra bem que a relao estabelecida entre o homem e o mundo se d pela mediao simblica da linguagem. A palavra um instrumento de comunicao entre os homens. No entanto, quando a palavra tem um significado congelado, nico e naturalizado, ela se torna uma arma de poder, associada a formas de dominao.

    Quando o nosso pensamento no confrontar as nossas aes e experincias com o nosso falar, (...) estaremos apenas reproduzindo as relaes sociais necessrias para a manuteno das relaes de produo da vida material em nossa sociedade (Lane, 1981, p. 37)

    Como podemos ver, a Psicologia scio-histrica se fundamenta na ideia do homem como ser histrico e na possibilidade

    de transformao social. A compreenso da ideologia como dominao aponta o entendimento de uma psicologia social crtica que tende ao compromisso social e conscientizao. Assim, sua maior preocupao no est em formular leis gerais sobre o comportamento social, mas sim, no entendimento das relaes de dominao ideolgicas e de sua possvel sada, atravs da conscientizao.

    A metodologia dessa forma sociolgica de Psicologia social critica veementemente a neutralidade da psicologia social norte-americana e aposta no trabalho com grupos atravs de mtodos como a pesquisa-ao e a pesquisa-participao.6

    Essas duas formas de pesquisa se assemelham pela participao do investigador em pesquisa, sendo que pesquisa-ao se acrescentaria o carter participativo, o interesse na transformao social do grupo, pela conscientizao. Aqui podemos observar que, enquanto a psicologia social norte-americana usava o grupo como dispositivo de adaptao e de produtividade, a Psicologia soci-histrica o toma como dispositivo de conscientizao.

    Assim, poderamos exemplificar com a diferena no trato da comunidade em duas formas tericas distintas: na perspectiva norte-americana, o trabalho do psiclogo comunitrio visa ao assistencialismo, e, no trabalho comunitrio sob a perspectiva soci-histrica, visar-se-ia autonomia do grupo, sendo este a base do compromisso social de transformao (Campos, 1998). interessante observar que a teoria das representaes sociais usada pelos psiclogos sociais brasileiros com o intuito de traar panoramas da realidade brasileira. O grau de comprometimento com a transformao social tambm permanece como uma de suas premissas nos estudos da vida cotidiana,

    6 Para um aprofundamento

    das premissas metodolgicas dessas formas de pesquisa,

    cf. Guareschi e Campos (2000), Jacques (2002),

    Lane (1985) e Abrantes (2005).

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    como nos trabalhos desenvolvidos em Textos em Representaes Sociais (1999) e O Conhecimento do Cotidiano (2006). Alguns dos autores desses livros unem a perspectiva soci-histrica teoria das RS. No entanto, gostaramos de frisar que um dos objetivos do presente artigo a construo do entendimento da psicologia social brasileira que possibilite apontar as diferenas e as semelhanas entre essas duas formas tericas.

    Podemos ainda indicar mais uma teoria de Psicologia social sociolgica que muito exercida em nosso pas: a psicologia que gira em torno de questes relativas s instituies e ao poder, baseadas nas obras de Foucault, Deleuze, Guattari, e de autores da anlise institucional que se debruam sobre o recrudescimento da verdade instaurada em nossas instituies.

    Em Instintos e Instituies, Deleuze afirma que os homens diferem dos animais por no haver um padro para o seu comportamento, como no caso dos animais, mas sublinha que, no lugar do padro instintivo, inventam as instituies que intermedeiam as relaes entre os homens.

    Qual o sentido do social com relao s tendncias? Integrar as circunstncias em um sistema de antecipao, e integrar os fatores internos em um sistema que regra sua apario, substituindo a espcie. bem esse o caso da instituio. (...) Toda instituio impe ao nosso corpo, mesmo em suas estruturas involuntrias, uma srie de modelos, e d nossa inteligncia um saber, uma possibilidade de prever e de

    projetar (Deleuze, 2006, p. 31)

    Ento, instituies intermedeiam as relaes humanas. Dessa maneira ampla de ver as instituies, poderamos dizer que, quando bebo cerveja com os amigos, a cerveja, o bar, as cadeiras, a mesa disponibilizam instituies que intermedeiam nossas relaes, e a mesma coisa acontece quando leciono: a sala, o ttulo de professor, a disposio dos alunos em suas cadeiras institucionalizam as relaes estabelecidas nesse espao.

    Dentre os tericos que se debruam sobre as relaes de poder e as instituies, as definies no so de todo homogneas. Mas podemos notar que o grande problema para essas teorias est relacionado ao recrudescimento das verdades e s naturalizaes dos comportamentos apresentadas no seio tanto dessas instituies que intermedeiam nossas relaes quanto s instituies que governam nossos comportamentos atravs de diretrizes estatais, como as prises e os hospitais psiquitricos.

    Em Nietzsche, la Gnalogie, lHistoire (1994) e A Verdade e Formas Jurdicas (1996), Foucault ressalta que sua preocupao est ligada a um questionamento da verdade, entendendo que as verdades so invenes fundadas por relaes de fora no seio da Histria.

    Paul Veyne, em seu livro sobre Foucault, assinala o carter revolucionrio do mtodo genealgico, por ele se fundar na ideia de que no h objeto natural. Sua crtica s noes de essncia e de origem suscita o entendimento de que as prticas, surgidas em um determinado tempo histrico, causam o aparecimento dos objetos, e no o contrrio. Assim, ele compreende que toda verdade fabricada em um determinado tecido soci-histrico, inserindo o problema da verdade no tempo.

    Foucault pensa que no existem verdades gerais, trans-histricas, porque os fatos humanos, atos ou palavras, no provm de uma natureza, de uma razo que seria sua origem, nem refletem o objeto ao qual eles

    remetem (Veyne, 2008, p. 22)

    Utilizando esse mtodo, Foucault produz uma reflexo que indaga por uma histria das verdades. Em Histria da Sexualidade 2 (1985), mostra como, atravs da unio dos mtodos arqueolgico e genealgico, ele questionou, ao longo de sua obra, as prticas mdicas, sociais, discursivas, epistmicas,

    Em Nietzsche, la Gnalogie, lHistoire (1994) e A Verdade e

    Formas Jurdicas (1996), Foucault ressalta que sua

    preocupao est ligada a um questionamento

    da verdade, entendendo

    que as verdades so invenes fundadas por

    relaes de fora no seio da

    Histria.

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    punitivas e de si, sempre permeando a problematizao das verdades institudas pela dinmica do poder.

    Atravs de sua pesquisa, Foucault pensou sobre as relaes entre as instituies e os modos de existncia produzidos por elas, indagando sobre as cronificaes interpretativas que produziram a verdade sobre o louco, o criminoso, a cincia, a crtica e seus modos de existir correlatos. Essas cronificaes so verdades que impem regras de condutas comportamentais, mentais, institucionais e sociais.

    O problema do poder e das instituies se instaura no congelamento do potencial criativo da palavra. Onde h congelamento da palavra, h recrudescimento de verdades e reificao de comportamento. No entanto, diferentemente da perspectiva soci-histrica, o problema do poder no ideolgico, pois o poder visto aqui como multifacetado e positivado. Ele est em toda parte e em todas as relaes. Ele no negativo em si. A negatividade do poder se instaura na relao recrudescida. Aqui, o problema no a ideologia que domina e oblitera a viso dos homens, e sim, algo ao mesmo tempo mais abrangente e mais sutil, a verdade (Foucault, 1995).

    Assim, metodologicamente, essa busca do questionamento das verdades instauradas nas instituies se valer da pesquisa-ao, mas tambm apontar a importncia das anlises das implicaes do investigador com seu saber, com a instituio e com o grupo analisado (Kamkhagi & Saidon, 2002). Desse modo, essa perspectiva sociolgica da Psicologia social critica veementemente tambm a noo da neutralidade. Como vimos, a psicologia social norte-americana, apostando na neutralidade do investigador, sustenta a construo terica de leis que explicam as interaes sociais fundamentando-se no indivduo.

    E observamos tambm que as formas sociolgicas em Psicologia social na teoria das RS, na Psicologia soci-histrica e na psicologia social das instituies incluem uma crtica forma psicolgica da psicologia social norte-americana. Ambas apostam na anlise dos grupos como possibilidade de compreenso da dinmica das relaes sociais, sendo que as RS se debruam no conjunto de saberes que constituem e constroem as identidades dos sujeitos e dos grupos. A Psicologia soci-histrica aposta na historicidade, no compromisso social de transformao da realidade, fundamentando uma crtica das relaes ideolgicas (de dominao) que sublinha a importncia da conscientizao dos sujeitos e dos grupos. J a terceira entende a dinmica do poder relacionado a um funcionamento microfsico do poder nas instituies e em suas relaes. Ela tem como objetivo a circulao de palavras para quebrar o congelamento das vias de expresso instauradas nas relaes estabelecidas nas instituies analisadas.

    Por caracterizarem-se pela anlise das relaes, e no por uma busca de essncias e de leis encontradas nas perspectivas psicolgicas, as psicologias sociais sociolgicas brasileiras, aqui analisadas, revelam um comprometimento poltico, cada uma sua maneira, tendo como foco de semelhana a crtica ao positivismo, assepsia experimental, a-historicidade e neutralidade do investigador.

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    Leonardo Pinto de AlmeidaPs-doutorado em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro RJ Brasil.E-mail: [email protected]

    Endereo para envio de correspondncia:Rua Oswaldo Cruz, 28/701, Icara, Niteri, Rio de Janeiro, RJ Brasil. CEP: 24230-210

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