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PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL Boaventura de Sousa Santos RESUMO Na primeira parte do ensaio, o autor argumenta que as linhas cartográficas “abissais” que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem estruturalmente no pen- samento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sis- tema mundial contemporâneo. A injustiça social global estaria portanto estritamente associada à injustiça cognitiva global, de modo que a luta por justiça social global requer a construção de um pensamento “pós-abissal”. PALAVRAS-CHAVE: emancipação social; exclusão social; epistemologia; colonialismo; globalização. SUMMARY In the first part of the essay,the author states that the “abys- sal” cartographical lines that used to demarcate the Old and the New World during colonial times are still alive in the structure of modern occidental thought and remain constitutive of the political and cultural relations held by the con- temporary world system. Global social iniquity would thus be strictly related to global cognitive iniquity, in such a way that the struggle for a global social justice requires the construction of a “post-abyssal” thought. KEYWORDS: social emancipation; social exclusion; epistemology; colonialism; globalization. 71 NOVOS ESTUDOS 79 ❙❙ NOVEMBRO 2007 [1] Este texto foi apresentado em diferentes versões no Fernand Brau- del Center (Binghamton, Nova York) e nas universidades de Glasgow, Vic- toria (Canadá), Wisconsin-Madison e Coimbra. Gostaria de agradecer os comentários de Gavin Anderson, Ali- son Phipps, Emilios Christodoulidis, David Schneiderman, Claire Cutler, Upendra Baxi, James Tully, Len Kaplan, Marc Galanter, Neil Kome- sar, Joseph Thome, Javier Couso, Jeremy Webber, Rebecca Johnson, John Harrington, Antonio Sousa Ribeiro,Joaquin Herrera Flores,Con- ceição Gomes e João Pedroso. Maria Paula Meneses, além de comentar o texto, auxiliou-me no trabalho de pesquisa, pelo que lhe sou muito grato. Este trabalho não teria sido possível sem a inspiração das longas conversas com Maria Irene Ramalho sobre as relações entre as ciências sociais e as ciências humanas. O pensamento moderno ocidental é um pensa- mento abissal 2 . Consiste num sistema de distinções visíveis e invisí- veis, sendo que estas últimas fundamentam as primeiras. As distin- ções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos:o “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha”.A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece como realidade,torna-se inexistente e é mesmo pro- duzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qual- quer modo de ser relevante ou compreensível 3 . Tudo aquilo que é pro- duzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusão considera como o “outro”.A característica fundamental do pensa- mento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha.O universo “deste lado da linha” só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética. Das linhas globais a uma ecologia de saberes 1

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PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL

Boaventura de Sousa Santos

RESUMO

Na primeira parte do ensaio, o autor argumenta que as linhas

cartográficas “abissais” que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem estruturalmente no pen-

samento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sis-

tema mundial contemporâneo. A injustiça social global estaria portanto estritamente associada à injustiça cognitiva

global, de modo que a luta por justiça social global requer a construção de um pensamento “pós-abissal”.

PALAVRAS-CHAVE: emancipação social; exclusão social; epistemologia;

colonialismo; globalização.

SUMMARY

In the first part of the essay, the author states that the “abys-

sal” cartographical lines that used to demarcate the Old and the New World during colonial times are still alive in the

structure of modern occidental thought and remain constitutive of the political and cultural relations held by the con-

temporary world system. Global social iniquity would thus be strictly related to global cognitive iniquity, in such a way

that the struggle for a global social justice requires the construction of a “post-abyssal” thought.

KEYWORDS: social emancipation; social exclusion; epistemology;

colonialism; globalization.

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[1] Este texto foi apresentado emdiferentes versões no Fernand Brau-del Center (Binghamton, Nova York)e nas universidades de Glasgow, Vic-toria (Canadá), Wisconsin-Madisone Coimbra. Gostaria de agradecer oscomentários de Gavin Anderson,Ali-son Phipps,Emilios Christodoulidis,David Schneiderman, Claire Cutler,Upendra Baxi, James Tully, LenKaplan, Marc Galanter, Neil Kome-sar, Joseph Thome, Javier Couso,Jeremy Webber, Rebecca Johnson,John Harrington, Antonio SousaRibeiro,Joaquin Herrera Flores,Con-ceição Gomes e João Pedroso. MariaPaula Meneses, além de comentar otexto, auxiliou-me no trabalho depesquisa, pelo que lhe sou muitograto. Este trabalho não teria sidopossível sem a inspiração das longasconversas com Maria Irene Ramalhosobre as relações entre as ciênciassociais e as ciências humanas.

O pensamento moderno ocidental é um pensa-mento abissal2. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisí-veis, sendo que estas últimas fundamentam as primeiras. As distin-ções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais quedividem a realidade social em dois universos distintos:o “deste lado dalinha” e o “do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado dalinha” desaparece como realidade,torna-se inexistente e é mesmo pro-duzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qual-quer modo de ser relevante ou compreensível3.Tudo aquilo que é pro-duzido como inexistente é excluído de forma radical porquepermanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusãoconsidera como o “outro”. A característica fundamental do pensa-mento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados dalinha.O universo “deste lado da linha” só prevalece na medida em queesgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenasinexistência, invisibilidade e ausência não-dialética.

Das linhas globais a uma ecologia de saberes1

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[2] Não pretendo que o pensa-mento moderno ocidental seja aúnica forma de pensamento abissal.Ao contrário, é muito provável queexistam ou tenham existido formasde pensamento abissal fora do Oci-dente. Não é meu propósito analisá-las neste texto. Defendo apenas que,abissais ou não, as formas de pensa-mento não-ocidentais têm sido trata-das de um modo abissal pelo pensa-mento moderno ocidental. Tambémnão trato aqui do pensamento pré-moderno ocidental nem das versõesdo pensamento moderno ocidentalmarginalizadas ou suprimidas por seoporem às versões hegemônicas, asúnicas de que me ocupo aqui.

[3] Sobre a sociologia das ausênciascomo crítica à produção de realidadeinexistente pelo pensamento hege-mônico, ver Santos, Boaventura de S.A crítica da razão indolente. São Paulo:Cortez, 2002; “A critique of lazy rea-son:against the waste of experience”.In: Wallerstein, Immanuel (org.). Themodern world-system in the longuedurée. Boulder: Paradigm, 2004, pp.157-97;A gramática do tempo: para umanova cultura política. São Paulo: Cor-tez, 2006.

[4] Essa tensão representa o outrolado da discrepância moderna entreas experiências atuais e as expectati-vas quanto ao futuro,também expres-sas no mote positivista “ordem e pro-gresso”. O pilar da regulação social éconstituído pelos princípios do Es-tado, da comunidade e do mercado,enquanto o pilar da emancipaçãoconsiste nas três lógicas da racionali-dade: a racionalidade estético-ex-pressiva das artes e da literatura, aracionalidade instrumental-cogni-tiva da ciência e da tecnologia e aracionalidade moral-prática da ética edo direito. Cf. Santos, Boaventura deS. Toward a new common sense. NovaYork: Routledge, 1995; A crítica darazão indolente, op. cit.

[5] Ainda que de formas muito dis-tintas, Pascal, Kierkegaard e Nietzs-che foram os filósofos que mais afundo analisaram, e viveram, as anti-nomias contidas nessa questão.Maisrecentemente, cabe mencionar KarlJaspers (Reason and anti-reason in ourtime. New Haven: Yale UniversityPress, 1952; Basic philosophical wri-tings. Athens: Ohio University Press,1986; The great philosophers. NovaYork: Harcourt Brace, 1995) e Ste-

Para dar um exemplo baseado em meu próprio trabalho, venhocaracterizando a modernidade ocidental como um paradigma fun-dado na tensão entre a regulação e a emancipação sociais4. Essa dis-tinção visível fundamenta todos os conflitos modernos,tanto em ter-mos de fatos substantivos como de procedimentos. Mas a essadistinção subjaz uma outra, invisível, na qual a anterior se funda: adistinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios colo-niais. De fato, a dicotomia “regulação/emancipação” se aplica apenasa sociedades metropolitanas. Seria impensável aplicá-la aos territó-rios coloniais, aos quais se aplica a dicotomia “apropriação/violên-cia”,por sua vez inconcebível de aplicar a este lado da linha.Contudo,a inaplicabilidade do paradigma “regulação/emancipação” aos terri-tórios coloniais não comprometeu sua universalidade. O pensa-mento abissal moderno se destaca pela capacidade de produzir e radi-calizar distinções. Por mais radicais que sejam essas distinções e pormais dramáticas que possam ser as conseqüências de estar em um ououtro de seus lados, elas pertencem a este lado da linha e se combi-nam para tornar invisível a linha abissal na qual estão fundadas. Asdistinções intensamente visíveis que estruturam a realidade socialdeste lado da linha se baseiam na invisibilidade das distinções entreeste e o outro lado da linha.

O conhecimento e o direito modernos representam as manifesta-ções mais cabais do pensamento abissal.Dão-nos conta das duas prin-cipais linhas abissais globais dos tempos modernos, as quais, emboradistintas e operando de modo diferenciado, são interdependentes.Cada uma cria um subsistema de distinções visíveis e invisíveis de talmodo que as últimas se tornam o fundamento das primeiras. Nocampo do conhecimento,o pensamento abissal consiste na concessãodo monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso à ciên-cia, em detrimento de dois conhecimentos alternativos: a filosofia e ateologia. Esse monopólio está no cerne da disputa epistemológicamoderna entre as formas de verdade científicas e não-científicas.Já quea validade universal da verdade científica sempre é reconhecidamentemuito relativa — pois só pode ser estabelecida em relação a certos tiposde objetos em determinadas circunstâncias e segundo determinadosmétodos —, de que modo ela se relaciona com outras verdades possí-veis que até podem reclamar um estatuto superior mas que não podemser estabelecidas conforme o método científico,como é o caso da razãocomo verdade filosófica e da fé como verdade religiosa5? Essas tensõesentre a ciência, de um lado, e a filosofia e a teologia, de outro, vieram ase tornar altamente visíveis, mas todas elas, como defendo, têm lugardeste lado da linha. Sua visibilidade assenta na invisibilidade de for-mas de conhecimento que não se encaixam em nenhuma dessas moda-lidades. Refiro-me aos conhecimentos populares, leigos, plebeus,

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phen Toulmin (Return to reason.Cambridge, MA: Harvard UniversityPress, 2001).

[6] Para uma visão geral dos debatesrecentes sobre as relações entre a ciên-cia e outros conhecimentos, ver San-tos,Boaventura de S.,Meneses,MariaPaula e Nunes, João A. “Introdução”.In: Santos, Boaventura de S. (org.).Semear outras soluções. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2005, pp. 21-121;Santos,Boaventura de S.Toward anew common sense,op.cit.,pp.7-55.

[7] Analiso em detalhe a naturezado direito moderno e a coexistênciade mais de um sistema jurídico nomesmo espaço geopolítico em San-tos, Boaventura de S. Toward a newlegal common sense. Londres: Butter-worths, 2002.

[8] Neste trabalho tomo por assen-te a ligação íntima entre capitalismo ecolonialismo. Ver, por exemplo, Wil-liams, Eric. Capitalism and slavery.Chapel Hill: University of NorthCarolina Press, 1994 [1944]; Arendt,Hannah. The origins of totalitarism.Nova York: Harcourt Brace, 1951;Fanon, Franz. Black skin, white masks.Nova York: Grove Press, 1967; Hor-kheimer, Max e Adorno, Theodor.Dialectic of Enlightenment. Nova York:Herde and Herder, 1972; Wallerstein,Immanuel M. The modern world-system. Nova York: Academic Press,1974; Dussel, Enrique. 1492: el encu-brimiento del otro. Bogotá:Anthropos,1992;Mignolo,Walter.The darker sideof Renaissance. Michigan: Universityof Michigan Press, 1995; Quijano,Anibal. “Colonialidad del poder yclassificación social”. Journal ofWorld-Systems Research, vol. 6, n. 2,2000, pp. 342-86.

[9] Assim, contrariamente àquiloque afirmam as teorias convencionaisdo direito internacional, o imperia-lismo é constitutivo do Estado mo-derno, e não um produto dele. OEstado moderno,o direito internacio-nal e o constitucionalismo nacional eglobal advêm do mesmo processo his-tórico imperial. Cf. Koskenniemi,Martti.The gentle civilizer of nations: therise and fall of international law, 1870-1960. Cambridge, UK: CambridgeUniversity Press, 2002; Anghie,Anthony. Imperialism, sovereignty andthe making of international law. Cam-bridge, UK: Cambridge UniversityPress, 2005; Tully, James. “The impe-

camponeses ou indígenas do outro lado da linha, que desaparecemcomo conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontra-rem para além do universo do verdadeiro e do falso. É inimaginávelaplicar-lhes não só a distinção científica entre verdadeiro e falso, mastambém as verdades inverificáveis da filosofia e da teologia, que cons-tituem o outro conhecimento aceitável deste lado da linha6. Do outrolado não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, ido-latria, entendimentos intuitivos ou subjetivos, que na melhor dashipóteses podem se tornar objeto ou matéria-prima de investigaçõescientíficas. Assim, a linha visível que separa a ciência de seus “outros”modernos está assente na linha abissal invisível que separa, de umlado, ciência, filosofia e teologia e, de outro, conhecimentos tornadosincomensuráveis e incompreensíveis por não obedecerem nem aos cri-térios científicos de verdade nem aos critérios dos conhecimentosreconhecidos como alternativos,da filosofia e da teologia.

No campo do direito moderno, este lado da linha é determinadopor aquilo que se reputa como legal ou ilegal de acordo com o direitooficial do Estado ou o direito internacional. Distinguidos como asduas únicas formas de existência relevantes perante a lei,o legal e o ile-gal acabam por constituir-se numa distinção universal. Tal distinçãocentral deixa de fora todo um território social onde essa dicotomiaseria impensável como princípio organizador, isto é, o território semlei, fora da lei, o território do a-legal, ou mesmo do legal e ilegal deacordo com direitos não reconhecidos oficialmente7. Assim, a linhaabissal invisível que separa o domínio do direito do domínio do não-direito fundamenta a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que destelado da linha organiza o domínio do direito.

Em cada um dos dois grandes domínios — a ciência e o direito —as divisões levadas a cabo pelas linhas globais são abissais no sentidode que eliminam definitivamente quaisquer realidades que se encon-trem do outro lado da linha. Essa negação radical de co-presença fun-damenta a afirmação da diferença radical que deste lado da linhasepara o verdadeiro do falso, o legal e o ilegal. O outro lado da linhacompreende uma vasta gama de experiências desperdiçadas,tornadasinvisíveis, assim como seus autores, e sem uma localização territorialfixa.Na verdade,como já apontei,existiu originalmente uma localiza-ção territorial, a qual coincidiu historicamente com um territóriosocial específico:a zona colonial8.Tudo o que não pudesse ser pensadoem termos de verdadeiro ou falso, de legal ou ilegal, ocorria na zonacolonial. A esse respeito, o direito moderno parece ter alguma prece-dência histórica sobre a ciência na criação do pensamento abissal. Defato, foi a linha global que separava o Velho Mundo do Novo Mundoque tornou possível a emergência, deste lado da linha, do direitomoderno e em particular do direito internacional moderno9.

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rialism of modern constitutionaldemocracy”. In: Loughlin, Martin eWalker,Neil (orgs.).Constituent powerand constitutional form. Oxford:Oxford University Press, no prelo.

[10] A definição das linhas globaisocorre gradualmente. Segundo CarlSchmitt (The nomos of the Earth in theinternational law of the jus publicumeuropaeum. Nova York: Telos Press,2003, p. 91), as linhas cartográficasdo século XV pressupunham aindauma ordem espiritual global vigentede ambos os lados da divisão:a Respu-blica Christiana, simbolizada pelopapa. Isso explica as dificuldadesenfrentadas por Francisco Vitoria, ogrande teólogo e jurista espanhol doséculo XVI, para justificar a ocupaçãode terras nas Américas. Vitoria ques-tiona se a descoberta é suficientecomo título jurídico de posse da terra.A sua resposta é muito complexa,nãosó por ser formulada em estilo aristo-télico, mas sobretudo porque Vitórianão concebe qualquer resposta con-vincente que não parta da premissada superioridade européia. Esse fato,contudo, não confere qualquer di-reito moral ou positivo sobre as ter-ras ocupadas. Segundo Vitoria, nemmesmo a superioridade civilizacionaldos europeus é suficiente como basede um direito moral. Para ele, a con-quista podia servir apenas de funda-mento a um direito reversível à terra,a jura contraria,nas suas palavras.Istoé, a questão da relação entre a con-quista e o direito à terra deve ser colo-cada inversamente:se os índios tives-sem descoberto e conquistado oseuropeus, teriam eles igual direito aocupar as terras? A justificação deVitoria para a ocupação de terrasassenta ainda na ordem cristã medie-val,na missão atribuída pelo papa aosreis espanhol e português e no con-ceito de guerra justa. Ver ibidem, pp.101-25; Anghie, op. cit., pp. 13-31; Pag-den,Anthony.Spanish imperialism andthe political imagination. New Haven:Yale University Press, 1990, p. 15.

[11] Com as amity lines — a primeiradas quais poderá ter surgido do Tra-tado de Cateau-Cambresis entreEspanha e França (1559) —,as linhascartográficas abandonam a idéia deuma ordem comum global e estabele-cem uma dualidade abissal entre osterritórios deste lado da linha, ondevigoram a verdade, a paz e a amizade,e do outro lado da linha, onde impe-ram a lei do mais forte, a violência e a

A primeira linha global moderna foi provavelmente a do Tratadode Tordesilhas entre Portugal e Espanha (1494)10,mas as verdadeiraslinhas abissais emergem em meados do século XVI com as amity lines(“linhas de amizade”)11. Seu caráter abissal se manifesta no elabo-rado trabalho cartográfico investido em sua definição, na extremaprecisão exigida a cartógrafos, fabricantes de globos terrestres e pilo-tos, no policiamento vigilante e nas duras punições às violações. Nasua constituição moderna, o colonial representa não o legal ou o ile-gal, mas o sem lei. Uma máxima que então se populariza, “Não hápecados ao sul do Equador”,ecoa na famosa passagem dos Pensamen-tos de Pascal, escritos em meados do século XVII: “Três graus de lati-tude subvertem toda a jurisprudência. Um meridiano determina averdade [...]. Singular justiça que um rio delimita! Verdade aquémdos Pirineus, errado além”12. De meados do século XVI em diante, odebate jurídico e político entre os Estados europeus acerca do NovoMundo concentra-se na linha global, isto é,na determinação do colo-nial, e não na ordenação interna do colonial. O colonial é o estado denatureza, onde as instituições da sociedade civil não têm lugar. Hob-bes refere-se explicitamente aos “povos selvagens em muitos lugaresda América” como exemplares do estado de natureza, e Locke pensada mesma forma ao escrever em Sobre o governo civil: “No princípiotodo o mundo foi América”13.

O colonial constitui o grau zero a partir do qual são construídas asconcepções modernas de conhecimento e direito. As teorias do con-trato social dos séculos XVII e XVIII são tão importantes por aquiloque dizem como por aquilo que silenciam.O que dizem é que os indi-víduos modernos,ou seja,os homens metropolitanos,entram no con-trato social abandonando o estado de natureza para formar a socie-dade civil14.O que silenciam é que com isso se cria uma vasta região domundo em estado de natureza — um estado de natureza a que são con-denados milhões de seres humanos sem quaisquer possibilidades deescapar por via da criação de uma sociedade civil. A modernidade oci-dental,em vez de significar o abandono do estado de natureza e a pas-sagem à sociedade civil, significa a coexistência de sociedade civil eestado de natureza separados por uma linha abissal com base na qualo olhar hegemônico, localizado na sociedade civil, deixa de ver edeclara efetivamente como não-existente o estado de natureza.O pre-sente que vai sendo criado do outro lado da linha é tornado invisível aoser reconceitualizado como o passado irreversível deste lado da linha.O contato hegemônico converte simultaneidade em não-contempo-raneidade, inventando passados para dar lugar a um futuro único ehomogêneo. Assim, o fato de que os princípios legais vigentes nasociedade civil deste lado da linha não se aplicam ao outro lado nãocompromete sua universalidade.

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pilhagem. O que quer que ocorra dooutro lado da linha não está sujeitoaos mesmos princípios éticos e jurídi-cos que se aplicam deste lado dalinha, de modo que não poderá darorigem ao tipo de conflitos que a vio-lação de tais princípios causaria seocorresse deste lado da linha. Essadualidade permitiu aos reis católicosda França, por exemplo, manter umaaliança com os reis católicos da Espa-nha deste lado da linha e ao mesmotempo aliar-se aos piratas que ataca-vam os barcos espanhóis do outrolado da linha.

[12] Pascal, Blaise. Pensées. Londres:Penguin Books, 1966, p. 46 [em tra-dução de Novos Estudos com base nofrancês].

[13] Hobbes, Thomas. Leviathan.Londres: Penguin Books, 1985[1651], p. 187; Locke, John. The secondtreatise of civil government and a letterconcerning toleration. Oxford: B.Blackwell, 1946 [1690], § 49 [em tra-dução do autor].

[14] Sobre as diferentes concepçõesdo contrato social, ver Santos, Boa-ventura de S. Toward a new legal com-mon sense, op. cit., pp. 30-39.

[15] De acordo com a bula,“os índioseram verdadeiros homens e [...] nãoeram capazes de entender a fé cató-lica, mas, de acordo com as nossasinformações, desejam ardentementerecebê-la” (Papa Paulo III. SublimisDeus, 1537 <www.papalencyclicals.net/Paul03/p3subli.htm, acessado em 22/9/2006>).

[16] Cf.,por exemplo,Emerson,Bar-bara. Leopold II of the Belgians: king ofcolonialism. Londres: Weidenfeld andNicolson, 1979; Hochschild, Adam.King Leopold’s ghost: a story of greed,terror, and heroism in colonial Africa.Boston: Houghton Mifflin, 1999.

A mesma cartografia abissal é constitutiva do conhecimentomoderno. Mais uma vez, a zona colonial é por excelência o universodas crenças e dos comportamentos incompreensíveis, que de formaalguma podem ser considerados como conhecimento e por isso estãopara além do verdadeiro e do falso. O outro lado da linha alberga ape-nas práticas mágicas ou idolátricas, cuja completa estranheza condu-ziu à própria negação da natureza humana de seus agentes. Com basenas suas refinadas concepções de humanidade e de dignidadehumana,os humanistas dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão deque os selvagens eram subumanos.A questão era:os índios têm alma?Quando o papa Paulo III respondeu afirmativamente em sua bulaSublimis Deus, de 1537, fê-lo concebendo a alma dos povos selvagenscomo um receptáculo vazio, uma anima nullius, muito semelhante àterra nullius15, o conceito de vazio jurídico que justificou a invasão e aocupação dos territórios indígenas. Com base nessas concepçõesabissais de epistemologia e legalidade, a universalidade da tensãoentre regulação e emancipação,aplicada a este lado da linha,não entraem contradição com a tensão entre apropriação e violência,aplicada aooutro lado da linha.

A apropriação e a violência assumem formas diferentes nas linhasabissais jurídica e epistemológica,mas em geral a apropriação envolveincorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência implicadestruição física,material,cultural e humana.Na prática,é profunda aligação entre a apropriação e a violência. No domínio do conheci-mento, a apropriação vai desde o uso de habitantes locais como guiase de mitos e cerimônias locais como instrumentos de conversão até apilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, aopasso que a violência é exercida mediante a proibição do uso das lín-guas próprias em espaços públicos, a adoção forçada de nomes cris-tãos, a conversão e a destruição de símbolos e lugares de culto e a prá-tica de todo tipo de discriminação cultural e racial.

No tocante ao direito, a tensão entre apropriação e violência é par-ticularmente complexa em virtude de sua relação direta com a extraçãode valor: tráfico de escravos e trabalho forçado, uso manipulador dodireito e das autoridades tradicionais por meio do governo indireto(indirect rule), pilhagem de recursos naturais, deslocação maciça depopulações, guerras e tratados desiguais, diferentes formas de apar-theid e assimilação forçada etc. Enquanto a lógica da regulação/eman-cipação é impensável sem a distinção matricial entre o direito das pes-soas e o direito das coisas,a lógica da apropriação/violência reconheceapenas o direito das coisas, sejam elas humanas ou não. A versãoextrema desse tipo de direito, irreconhecível deste lado da linha, é odireito de propriedade pessoal do Estado Livre do Congo pelo rei Leo-poldo II da Bélgica [a partir de 1885]16.

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[17] Essa negação da humanidade édenunciada com extrema lucidez porFranz Fanon ( Black skin, white masks,op.cit.;The wretched of the Earth. NovaYork: Grove Press, 1963). O radica-lismo da negação fundamenta suadefesa da violência como uma dimen-são intrínseca da revolta anticolonial,aspecto sobre o qual Fanon e Gandhidivergiram ainda que partilhassemuma luta comum.

[18] Sobre Guantánamo e tópicosrelacionados, ver, por exemplo,Amann, Diane M. “Guantánamo”.Columbia Journal of Transnational Law,vol.42,n.2,2004,pp.263-348;Steyn,Johan. “Guantanamo Bay: the legalblack hole”. International and Compa-rative Law Quarterly,vol.53,n.1,2004,pp. 1-15; Dickinson, Laura. “Tortureand contract” e Sadat,Leila N.“Ghostprisoners and black sites: extraordi-nary rendition under internationallaw”. Case Western Reserve Journal ofInternational Law, vol. 37, n. 2-3, 2005-06,pp.267-75 e 309-42.

Existe portanto uma cartografia moderna dual nos âmbitos episte-mológico e jurídico. A profunda dualidade do pensamento abissal e aincomensurabilidade entre os termos da dualidade foram implementa-das por meio das poderosas bases institucionais — universidades,cen-tros de pesquisa,escolas de direito e profissões jurídicas — e das sofis-ticadas linguagens técnicas da ciência e da jurisprudência.O outro ladoda linha abissal é um universo que se estende para além da legalidade eda ilegalidade e para além do verdade e da falsidade. Juntas, essas for-mas de negação radical produzem uma ausência radical: a ausência dehumanidade, a subumanidade moderna. Assim, a exclusão se tornasimultaneamente radical e inexistente, uma vez que seres subumanosnão são considerados sequer candidatos à inclusão social (a supostaexterioridade do outro lado da linha é na verdade a conseqüência de seupertencimento ao pensamento abissal como fundação e como negaçãoda fundação). A humanidade moderna não se concebe sem uma subu-manidade moderna17.A negação de uma parte da humanidade é sacrifi-cial, na medida em que constitui a condição para que a outra parte dahumanidade se afirme como universal (e essa negação fundamentalpermite,por um lado,que tudo o que é possível se transforme na possi-bilidade de tudo e,por outro,que a criatividade do pensamento abissalbanalize facilmente o preço da sua destrutividade).

Meu argumento é que essa realidade é tão verdadeira hoje quantoera no período colonial.O pensamento moderno ocidental continua aoperar mediante linhas abissais que separam o mundo humano domundo subumano, de tal modo que princípios de humanidade nãosão postos em causa por práticas desumanas. As colônias represen-tam um modelo de exclusão radical que permanece no pensamento enas práticas modernas ocidentais tal como no ciclo colonial. Hoje,como então,a criação e a negação do outro lado da linha fazem parte deprincípios e práticas hegemônicos. Atualmente, Guantánamo repre-senta uma das manifestações mais grotescas do pensamento jurídicoabissal,da criação do outro lado da fratura como um não-território emtermos jurídicos e políticos,um espaço impensável para o primado dalei, dos direitos humanos e da democracia18. Contudo, seria um erroconsiderá-la exceção. Existem muitas Guantánamos, desde o Iraqueaté a Palestina e Darfur.Mais do que isso,existem milhões de Guantá-namos nas discriminações sexuais e raciais, quer na esfera pública,quer na privada:nas zonas selvagens das megacidades,nos guetos,nasprisões, nas novas formas de escravidão, no tráfico ilegal de órgãoshumanos, no trabalho infantil, na exploração da prostituição.

Neste artigo,começo por argumentar que a tensão entre regulação eemancipação continua a coexistir com a tensão entre apropriação e vio-lência, e de tal maneira que a universalidade da primeira tensão não équestionada pela existência da segunda. Em seguida, sustento que as

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[19] Nas vésperas da II Guerra Mun-dial as colônias e ex-colônias cobriamcerca de 85% da superfície terrestre.

[20] Cf.Fanon,Black skin, white maskse The wretched of the Earth, op. cit.;Nkrumah,Kwame.Consciencism: philo-sophy and ideology for decolonization anddevelopment with particular reference tothe African revolution. Nova York:Monthly Review Press, 1965; Gandhi,Mahatma.Selected writings of MahatmaGandhi. Boston: Beacon, 1951; TheGandhi reader. Bloomington: IndianaUniversity Press, 1956; Cabral, Amíl-car. Unity and struggle: speeches and wri-tings of Amílcar Cabral. Nova York:Monthly Review Press,1979.

[21] Cf.Memmi,Albert.The colonizerand the colonized. Nova York: TheOrion Press,1965;Dos Santos,Theo-tonio. Socialismo o fascismo: el nuevocarácter de la dependencia... BuenosAires: Periferia, 1973; Cardoso, Fer-nando Henrique e Faletto, Enzo.Dependencia y desarrollo en AmericaLatina. Cidade do México: Siglo XXI,1969; Frank, Andre G. Latin America:underdevelopment or revolution. NovaYork:Monthly Review,1969;Rodney,Walter. How Europe underdevelopedAfrica. Londres: Bogle-L’Ouverture,1973; Wallerstein, Immanuel M.World-systems analysis: an introduc-tion. Durham: Duke University Press,2004; The modern world-system, op.cit.; Bambirra, Vania. Teoria de ladependencia: una anticritica.Cidade doMéxico: Era, 1978; Dussel, Enrique.The invention of the Americas. NovaYork: Continuum, 1995; Escobar,Arturo.Encountering development. Prin-ceton: Princeton University Press,1995; Chew, Sing C. e Denemark,Robert A. (orgs.). The underdevelop-ment of development: essays in honor ofAndre Gunder Frank. Thousand Oaks,CA:Sage,1996;Spivak,Gayatri Ch.Acritique of postcolonial reason. Cam-bridge, MA: Harvard UniversityPress, 1999; Césaire, Aimé. Discourseon colonialism. Nova York: New YorkUniversity Press, 2000; Mignolo,Walter. Local histories/global designs.Princeton: Princeton UniversityPress, 2000; Afzal-Khan, Fawzia eSheshadri-Crooks, Kalpana (orgs.).The pre-occupation of postcolonial stu-dies. Durham: Duke University Press,2000; Mbembe, Achille. On the pos-tcolony. Berkeley: University of Cali-fornia Press, 2001; Dean, Bartholo-mew e Levi, Jerome M. (orgs.). At therisk of being heard: identity, indigenous

linhas abissais ainda estruturam o conhecimento e o direito modernose são constitutivas das relações e interações políticas e culturais que oOcidente protagoniza no interior do sistema-mundo. Em suma, meuargumento é o de que a cartografia metafórica das linhas globais sobre-viveu à cartografia literal das linhas que separavam o Velho do NovoMundo. A injustiça social global está assim intimamente ligada à injus-tiça cognitiva global, de modo que a luta pela justiça social global tam-bém deve ser uma luta pela justiça cognitiva global.Para ser bem-suce-dida, essa luta exige um novo pensamento — um pensamentopós-abissal,cujas características apresento na parte final do artigo.

A DIVISÃO ABISSAL ENTRE REGULAÇÃO/EMANCIPAÇÃO

E APROPRIAÇÃO/VIOLÊNCIA

A permanência das linhas abissais globais ao longo de todo operíodo moderno não significa que elas tenham se mantido fixas, jáque historicamente sofreram deslocamentos. No entanto, em cadamomento histórico elas são fixas e sua posição é fortemente vigiada epreservada,assim como sucedia com as “linhas de amizade”.Nos últi-mos sessenta anos essas linhas sofreram dois grandes abalos. O pri-meiro teve lugar com as lutas anticoloniais e os processos de indepen-dência das antigas colônias19. O outro lado da linha sublevou-secontra a exclusão radical à medida que os povos que haviam sido sujei-tos ao paradigma da apropriação/violência se organizaram e reclama-ram o direito à inclusão no paradigma da regulação/emancipação20.Durante algum tempo o paradigma da apropriação/violência pareciaestar chegando ao fim, bem como a divisão abissal entre este lado dalinha e o outro lado da linha. Os deslocamentos das linhas globaisepistemológica e jurídica pareciam convergir para o encolhimento efinalmente para a eliminação do outro lado da linha,mas não foi isso oque aconteceu,como mostram a teoria da dependência,a teoria do sis-tema-mundo moderno e os estudos pós-coloniais21.

O segundo abalo das linhas abissais — no qual concentro minhaatenção neste texto —vem ocorrendo desde os anos 1970 e segue nadireção oposta.Desta feita,o movimento das linhas globais se dá de talforma que o outro lado da linha parece estar se expandindo enquantoeste lado da linha parece se encolher.A lógica da apropriação/violênciapassa a ganhar força em detrimento da lógica da regulação/emancipa-ção numa extensão tal que o domínio desta última não só se encolhe,como também se contamina internamente pela primeira.A complexi-dade desse movimento nos é difícil de divisar se não conseguimos nosabstrair do fato de que o estamos olhando desde este lado da linha.Para captar sua totalidade é necessário um grande esforço de descen-tramento,e nenhum estudioso pode fazê-lo sozinho,como indivíduo.

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rights, and postcolonial states. AnnArbor: University of Michigan Press,2003.

[22] Entre 1999 e 2002 realizei umprojeto internacional sobre a “Rein-venção da emancipação social”, queenvolveu sessenta pesquisadores deseis países (África do Sul, Brasil,Colômbia,Índia,Moçambique e Por-tugal) e cujos principais resultadosestão compilados numa coleção emsete volumes, dos quais já estãopublicados os cinco primeiros [San-tos, Boaventura de S. (org.). ColeçãoReinventar a Emancipação Social:para Novos Manifestos. Rio de Ja-neiro: Civilização Brasileira, 2002].Sobre as implicações epistemológi-cas desse projeto, ver Santos, Boa-ventura de S. (org.). Conhecimentoprudente para uma vida decente. SãoPaulo: Cortez, 2004; sobre as liga-ções entre o projeto e o Fórum SocialMundial, ver Idem. Fórum SocialMundial: manual de uso. São Paulo:Cortez, 2005.

[23] Para o caso do terrorista, ver porexemplo Scheppele, Kim L. “Otherpeople’s patriot acts: Europe’s res-ponse to September 11”. Loyola LawReview,vol.50,n.1,2004,pp.89-148;“Law in a time of emergency:states ofexception and the temptations of9/11”. University of Pennsylvania Jour-nal of Constitutional Law, vol. 6, n. 5,2004,pp.1.001-83;“North Americanemergencies: the use of emergencypowers in Canada and the UnitedStates”. International Journal of Cons-titutional Law, vol. 4, n. 2, 2006, pp.213-43. Sobre o imigrante indocu-mentado, ver Genova, Nicholas P. de.“Migrant ‘illegality’ and deportabi-lity in everyday life”. Annual Review ofAnthropology, n. 31, 2002, pp. 419-47;Hansen,Thomas B.e Stepputat,Finn(orgs.). Sovereign bodies: citizens,migrants, and states in the postcolonialworld. Princeton: Princeton Univer-sity Press, 2004; Silverstein, Paul A.“Immigrant racialization and thenew savage slot: race, migration, andimmigration in the new Europe”.Annual Review of Anthropology, n. 34,2005, pp. 363-84; Sassen, Saskia.Guests and aliens.Nova York:The NewPress, 1999. Sobre o refugiado, verAkram, Susan M. “Scheherezademeets Kafka: two dozen sordid talesof ideological exclusion”. GeorgetownImmigration Law Journal, n. 14, 1999,pp. 51-150; Menefee, Samuel P. “Thesmuggling of refugees by sea: a

Com base num esforço coletivo para desenvolver uma epistemologiadas regiões periféricas e semiperiféricas do sistema-mundo22, argu-mento que esse movimento é composto de um movimento principal,que designo como “regresso do colonial e do colonizador”, e por umcontramovimento que designo como “cosmopolitismo subalterno”.

Regresso do colonial e do colonizador Nesse movi-mento,o “colonial” é uma metáfora daqueles que entendem que suasexperiências de vida ocorrem do outro lado da linha e se rebelam con-tra isso. O regresso do colonial é a resposta abissal àquilo que é per-cebido como uma intromissão ameaçadora do colonial nas socieda-des metropolitanas. Esse regresso assume três formas principais: ado terrorista, a do imigrante indocumentado e a do refugiado23. Demaneiras distintas, cada um deles traz consigo a linha abissal globalque define a exclusão radical e a inexistência jurídica. A nova onda deleis de imigração e de legislação antiterrorismo,por exemplo,segue alógica reguladora do paradigma “apropriação/violência” em muitasde suas disposições24. O regresso do colonial não significa necessa-riamente sua presença física nas sociedades metropolitanas. Bastaque tenha uma ligação relevante com elas. No caso do terrorista, essaligação pode ser estabelecida pelos serviços secretos. No caso do tra-balhador imigrante indocumentado, basta que seja um subempre-gado numa das muitas centenas de sweatshops, as manufaturas sub-contratadas por corporações metropolitanas multinacionais queoperam no Sul global25. No caso dos refugiados, a ligação é estabele-cida mediante a solicitação do status de refugiado numa dada socie-dade metropolitana.

O colonial que regressa é de fato um novo colonial abissal. Destafeita, o colonial retorna não só aos antigos territórios coloniais mastambém às sociedades metropolitanas. Aqui reside a grande trans-gressão,pois o colonial do período colonial clássico não podia ingres-sar nas sociedades metropolitanas, a não ser por iniciativa do coloni-zador (como escravo, por exemplo). Os espaços metropolitanos quese encontravam demarcados desde o início da modernidade ocidentaldeste lado da linha estão sendo invadidos ou perpassados pelo colo-nial. Mais ainda, o colonial demonstra um nível de mobilidade imen-samente superior ao dos escravos fugidos26. Nessas circunstâncias, oabissal metropolitano se vê confinado a um espaço cada vez mais limi-tado e reage remarcando a linha abissal. Na sua perspectiva, a novaintromissão do colonial tem de ser confrontada com a lógica ordena-dora da “apropriação/violência”. Chegou ao fim o tempo de uma divi-são nítida entre o Velho e o Novo Mundo, entre o metropolitano e ocolonial.A linha tem de ser desenhada a uma distância curta o bastantepara garantir a segurança. O que costumava pertencer inequivoca-

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modern day maritime slave trade”.Regent Journal of International Law, n.2, 2004, pp. 1-28; Akram, Susan M. eKarmely, Maritza. “Immigration andconstitutional consequences of post-9/11 policies involving Arabs andMuslims in the United States”. U.C.Davis Law Review, vol. 38, n. 3, 2005,pp. 609-99. Com base na noção de“orientalismo” de Edward Said, Su-san Akram (“Orientalism revisited inasylum and refugee claims”. Interna-tional Journal of Refugee Law, vol. 12,n. 1, 2000, pp. 7-40) identifica umanova forma de estereótipo que chamade “neo-orientalismo”, a qual afeta aavaliação metropolitana dos pedidosde asilo e refúgio por parte de pessoasprovenientes do mundo árabe oumuçulmano.

[24] Sobre as implicações dessa onda,ver os títulos citados na nota anterior etambém os seguintes: ImmigrantRights Clinic (New York UniversitySchool of Law). “Indefinite detentionwithout probable cause...”. New YorkUniversity Review of Law & Social Chan-ge, vol. 26, n. 3, 2001, pp. 397-430;Chang, Nancy. “The USA PatriotAct...”. Guild Practitioner, vol. 58, n. 3,2001,pp.142-58;Lobel,Jules.“The waron terrorism and civil liberties”.Univer-sity of Pittsburgh Law Review,vol.63,n.4,2002,pp.767-90;Whitehead,John W.e Aden,Steven H.“Forfeiting enduringfreedom for homeland security...”.American University Law Review, vol. 51,n. 6, 2002, pp. 1.081-133; Zelman, Jos-hua D. “Recent developments in inter-national law:anti-terrorism legislation– part one: an overview”. Journal ofTransnational Law & Policy, vol. 11, n. 1,2002, pp. 183-200; Barr, Bob. “USAPatriot Act and progeny threaten thevery foundation of freedom”. George-town Journal of Law & Public Policy,vol.2,n.2,2004,pp.385-92.

[25] Refiro-me aqui aos países dasregiões periféricas e semiperiféricasdo sistema-mundo moderno, queapós a II Guerra Mundial foramdenominadas “Terceiro Mundo” (cf.Santos, Toward a new common sense,op. cit., pp. 506-19). Sobre as sweats-hops, ver Rodríguez-Garavito, CésarA. “Nike’s law: the anti-sweatshopmovement...”. In: Santos, Boaven-tura S. e Rodríguez-Garavito, CésarA. (orgs.). Law and globalization frombelow. Cambridge: Cambridge Uni-versity Press, 2005, pp. 64-91, bemcomo a bibliografia ali citada.

mente a este lado da linha é agora um território confuso, atravessadopor uma linha abissal sinuosa. O muro segregativo erguido por Israelna Palestina27 e a categoria “combatente inimigo ilegal”28, criada pelaadministração norte-americana após o 11 de Setembro,possivelmenteconstituem as metáforas mais adequadas da nova linha abissal e dacartografia confusa que ela gera.

Uma cartografia confusa não pode deixar de levar a práticas con-fusas. A “regulação/emancipação” é cada vez mais desfigurada pelapresença e pela crescente pressão da “apropriação/violência” em seuinterior. Mas nem a pressão nem a desfiguração podem ser percebi-das por inteiro,precisamente pelo fato de que o outro lado da linha foidesde sempre incompreensível em seu atributo de território subu-mano29. De formas distintas, o terrorista e o trabalhador imigranteindocumentado são ambos ilustrativos da pressão da lógica da apro-priação/violência e da inabilidade do pensamento abissal para seaperceber dessa pressão como algo estranho à “regulação/emancipa-ção”. Cada vez se torna mais evidente que as legislações antiterro-rismo promulgadas em muitos países — seguindo a Resolução 1.566do Conselho de Segurança da ONU, de 8/10/200430, e sob fortepressão de Washington — esvaziam o conteúdo civil e político dosdireitos e das garantias básicas das constituições nacionais.Visto quetudo isso ocorre sem que haja uma suspensão formal desses direitose garantias, estamos assistindo à escalada do estado de exceção, que,à diferença do estado de sítio ou do estado de emergência, restringeos direitos democráticos sob o pretexto da sua salvaguarda oumesmo expansão31.

De forma mais ampla, parece que a modernidade ocidental sópoderá se expandir globalmente na medida em que viole todos osprincípios sobre os quais fez assentar a legitimidade histórica do para-digma da regulação/emancipação deste lado da linha. Assim, direitoshumanos são violados para que possam ser defendidos, a democraciaé destruída para que se garanta sua salvaguarda e a vida é eliminada emnome da sua preservação. Linhas abissais são traçadas tanto no sen-tido literal quanto no metafórico. No sentido literal, são linhas quedemarcam fronteiras como vedações32 e campos de morte; dividemcidades em zonas civilizadas (condomínios fechados em profusão33) ezonas selvagens,e distinguem prisões como locais de detenção legal eà margem da lei34.

O outro lado do movimento em questão é o “regresso do coloniza-dor”, que implica o ressuscitamento de formas de governo colonialtanto nas sociedades metropolitanas — agora incidindo sobre a vidados cidadãos comuns — como naquelas anteriormente sujeitas aocolonialismo europeu. A expressão mais saliente desse movimentopode ser concebida como uma nova forma de governo indireto35, que

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[26] Cf. David, C. W. A. “The fugitiveslave law of 1793 and its antece-dents”. The Journal of Negro History,vol. 9, n. 1, 1924, pp. 18-25; Tushnet,Mark. The American law of slavery,1810-1860. Princeton:Princeton Uni-versity Press, 1981, pp. 169-88.

[27] Cf. International Court of Jus-tice. “Legal consequences of the cons-truction of a wall in the occupied Pales-tinian territory”.Israel Law Review,vol.38,nos 1-2,2005,pp.17-82.

[28] Cf. Dörmann, Knut. “The legalsituation of unlawful/unprivilegedcombatants”. International Review ofthe Red Cross, n. 849, 2003, pp. 45-74;Gill, Terry e Sliedgret, Elies van. “Areflection on the legal status andrights of ‘unlawful enemy com-batant’”. Utrecht Law Review, vol. 1, n.1, 2005, pp. 28-54.

[29] Assim, profissionais do direitosão solicitados a acomodar a pressãoproveniente da reorganização dadoutrina convencional, alterandoregras de interpretação e redefinindoo objetivo dos princípios e das hierar-quias entre eles. Um exemplo revela-dor é o debate entre Alan Dershowitze seus críticos. Ver Dershowitz, Alan.Why terrorism works: understanding thethreat, responding to the challenge. NewHaven: Yale University Press, 2002;“Reply: torture without visibility andaccountability is worse than with it”.University of Pennsylvania Journal ofConstitutional Law, n. 6, 2003, p. 326;“The torture warrant: a response toprofessor Strauss”. New York LawSchool Law Review, vol. n. 48, 2003,pp. 275-94; Posner, Richard. “Thebest offense”, New Republic, 2/9/2002;Strauss,Marcy.“Torture”.NewYork Law School Law Review, n. 48,2004, pp. 201-74.

[30] Essa resolução antiterrorismoveio na esteira da Resolução 1.373 de28/9/2001, que por sua vez foi ado-tada como resposta aos ataques de 11de Setembro. Para uma análise deta-lhada do processo de aprovação daResolução 1.566,ver Saul,Ben.“Defi-nition of ‘terrorism” in the UN Secu-rity Council: 1985-2004”. ChineseJournal of International Law,vol.4,n.1,2005, pp. 141-66.

[31] Ver Scheppele, “Law in a time ofemergency”, op. cit.; Agamben, Gior-gio. State of exception. Chicago: Uni-versity of Chicago Press, 2004.

emerge em diversas situações em que o Estado se retira da regulaçãosocial e os serviços públicos são privatizados, de modo que poderososatores não-estatais adquirem controle sobre a vida e o bem-estar devastas populações.A obrigação política que ligava o sujeito de direito aoRechtstaat, o Estado constitucional moderno, antes prevalecente nestelado da linha, passou a ser substituída por obrigações contratuais pri-vadas e despolitizadas,nas quais a parte mais fraca se encontra mais oumenos à mercê da parte mais forte. Essa forma de governo apresentaalgumas semelhanças perturbadoras com o governo da apropria-ção/violência que historicamente prevaleceu do outro lado da linha.

Tenho descrito essa situação como a ascensão do fascismo social,um regime social de relações de poder extremamente desiguais, queconcedem à parte mais forte poder de veto sobre a vida e o modo devida da parte mais fraca. Noutro lugar distingui cinco formas de fas-cismo social36. Aqui me refiro a três delas, que refletem mais clara-mente a pressão da lógica da apropriação/violência sobre a lógica daregulação/emancipação. A primeira forma é o fascismo do apartheidsocial.Trata-se da segregação social dos excluídos por meio de uma car-tografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas. Aszonas selvagens são as zonas do estado de natureza hobbesiano, aszonas de guerra civil interna existentes em muitas megacidades emtodo o Sul global.As zonas civilizadas são as zonas do contrato social,e vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens. Para se defende-rem, transformam-se em castelos neofeudais, os enclaves fortificadosque caracterizam as novas formas de segregação urbana (cidades pri-vadas ou condomínios fechados). A divisão entre zonas selvagens ecivilizadas está se transformando em um critério geral de sociabili-dade, em um novo espaço-tempo hegemônico que perpassa todas asrelações sociais, econômicas, políticas e culturais e que por isso écomum aos âmbitos estatal e não-estatal.

A segunda forma é o fascismo contratual. Ocorre nas situações emque a diferença de poder entre as partes do contrato de direito civil(seja ele um contrato de trabalho ou um contrato de fornecimento debens ou serviços) é de tal ordem que a parte mais fraca,vulnerabilizadapor não ter alternativa ao contrato, aceita as condições que lhe sãoimpostas pela parte mais poderosa, por mais onerosas e despóticasque sejam.O projeto neoliberal de transformar o contrato de trabalhonum contrato de direito civil como qualquer outro configura umasituação de fascismo contratual. Essa forma de fascismo ocorre hojefreqüentemente nas situações de privatização de serviços públicoscomo os de saúde,segurança social,abastecimento de água etc.37.Nes-ses casos,o contrato social que orientava a produção de serviços públi-cos no Estado-Providência e no Estado desenvolvimentista é redu-zido ao contrato individual do consumo de serviços privatizados. À

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[32] Um bom exemplo da lógica legalabissal subjacente à construção deuma vedação na fronteira entre Mé-xico e Estados Unidos encontra-seem Glon, Justin C. “Good fencesmake good neighbors: national secu-rity and terrorism – time to fence inour Southern border”. Indiana Inter-national & Comparative Law Review,vol. 15, n. 2, 2005, pp. 349-88.

[33] Cf.Atkinson,Rowland e Blandy,Sarah.“International perspectives onthe new enclavism and the rise ofgated communities”. Housing Studies,vol.20,n.2,2005,pp.177-86;Blakely,Edward J. e Snyder, Mary G. FortressAmerica: gated communities in the Uni-ted States. Cambridge, MA: BrookingsInstitution Press/Lincoln Institute ofLand Policy, 1999; Coy, Martin.“Gated communities and urban frag-mentation in Latin America: the Bra-zilian experience”. GeoJournal, vol.66,n.1-2,2006,pp.121-32.

[34] Como o caso de Guantánamo(cf. Amann, op. cit.). Um relatório doComitê Parlamentar TemporárioEuropeu de novembro de 2006sobre a atividade ilegal da CIA naEuropa mostra como os governoseuropeus têm atuado como facilita-dores dos abusos da CIA, tais como adetenção secreta e a tortura. Essasoperações à margem da lei envolve-ram 1.245 vôos e aterrissagens deaviões da CIA na Europa (algunsdeles para transporte de prisionei-ros) e a criação de centros de deten-ção secreta na Polônia, na Romênia eprovavelmente também na Bulgária,Ucrânia, Macedônia e em Kosovo.

[35] O governo indireto foi uma po-lítica praticada nas antigas colôniasbritânicas mediante a qual as estrutu-ras tradicionais de poder local foramem alguma medida incorporadas àadministração colonial. Cf. Lugard,Frederick D. The dual mandate in Bri-tish tropical Africa. Londres: W. Black-wood, 1929; Perham, Margery. “A re-statement of indirect rule”. Africa:Journal of the International African Ins-titute,vol.7,n.3,1934,pp.321-34;Mali-nowski,Bronislaw.“Indirect rule andits scientific planning”. In: Kaberry,Phyllis M. (org.). The dynamics of cul-ture change: an inquiry into race rela-tions in Africa. New Haven: Yale Uni-versity Press, 1945, pp. 138-50;Furnivall, John S. Colonial policy andpractice: a comparative study of Burmaand Netherlands India. Cambridge:

luz das deficiências da regulação pública,essa redução preconiza a eli-minação do âmbito contratual de aspectos decisivos para a proteçãodos consumidores, de modo que esses aspectos se tornam extracon-tratuais e ficam à mercê da benevolência das empresas.Ao assumirempoderes extracontratuais, as agências de serviços privadas ou paraes-tatais assumem as funções de regulação social anteriormente exerci-das pelo Estado.Este,implícita ou explicitamente,subcontrata a essasagências o desempenho dessas funções,e ao fazê-lo sem a participaçãoefetiva e mesmo o controle dos cidadãos torna-se conivente com a pro-dução social de fascismo contratual.

A terceira forma de fascismo social é o fascismo territorial. Ocorresempre que atores sociais com forte capital patrimonial tomam doEstado o controle do território onde atuam ou neutralizam esse con-trole, cooptando ou violentando as instituições estatais e exercendo aregulação social sobre os habitantes do território sem a participaçãodestes e contra os seus interesses. Na maioria dos casos, trata-se denovos territórios coloniais privados dentro de Estados que quasesempre estiveram sujeitos ao colonialismo europeu. Sob diferentesformas, a usurpação original de terras como prerrogativa do conquis-tador e a subseqüente “privatização” das colônias encontram-se pre-sentes na reprodução do fascismo territorial e, mais geralmente, nasrelações entre terratenentes e camponeses sem terra. As populaçõescivis residentes em zonas de conflitos armados também se encontramsubmetidas ao fascismo territorial38.

O fascismo social é a nova forma do estado de natureza, e prolifera àsombra do contrato social sob duas formas:pós-contratualismo e pré-contratualismo.O pós-contratualismo é o processo pelo qual grupos einteresses sociais são excluídos do contrato social sem nenhuma pers-pectiva de regresso:trabalhadores e membros das classes populares emgeral são expulsos do contrato social em virtude da eliminação dos seusdireitos econômicos e sociais,tornando-se assim populações descartá-veis.O pré-contratualismo consiste no bloqueamento do acesso à cida-dania a grupos sociais que tinham a expectativa fundamentada de nelaingressar: por exemplo, a juventude urbana dos guetos das megacida-des do Norte e do Sul globais39. Como regime social, o fascismo socialpode coexistir com a democracia política liberal.Ele a banaliza a pontode não ser necessário,nem sequer conveniente,sacrificar a democraciapara promover o capitalismo.Trata-se pois de um fascismo pluralista,epor isso de uma forma de fascismo inédita.De fato,creio que talvez este-jamos entrando num período em que as sociedades são politicamentedemocráticas e socialmente fascistas.

As novas formas de governo indireto constituem também asegunda grande transformação da propriedade e do direito de proprie-dade na era moderna.Como apontei de início,a propriedade dos terri-

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Cambridge University Press, 1948;Morris,Henry F.e Read,James S.Indi-rect rule and the search for justice: essaysin East African legal history. Oxford:Clarendon Press, 1972; Mamdani,Mahmood.Citizen and subject: contem-porary Africa and the legacy of late colo-nialism. Princeton: Princeton Univer-sity Press,1996;“Historicizing powerand responses to power: indirect ruleand its reform”. Social Research, vol.66,n.3,1999,pp.859-86.

[36] Analiso em detalhe a emergên-cia do fascismo social como conse-qüência da quebra da lógica do con-trato social em Santos, A gramática dotempo, op. cit., pp. 317-40.

[37] Sobre a privatização da água esuas dramáticas conseqüências so-ciais , ver Buhlungu, Sakhela e outros(orgs.). State of the nation: South Africa2005-2006. África do Sul: HSRCPress, 2006; Oliveira Filho, Abe-lardo. Brasil: luta e resistência contra aprivatização da água. Texto apresen-tado à PSI InterAmerican Water Con-ference, San José, julho de 2002<www.psiru.org/Others/BrasilLuta-port.doc, acessado em 23/5/ 2006>;Olivera, Oscar. Cochabamba! Waterwar in Bolivia. Cambridge,MA:SouthEnd Press, 2005; Flores, Carlos C. Laguerra del agua de Cochabamba: cincolecciones para las luchas anti neolibera-les en Bolivia <www.aguabolivia.org,acessado em 2/2/ 2005>; Bauer, CarlJ. Against the current: privatization,water markets, and the state in Chile.Londres: Kluwer Academic, 1998;Trawick, Paul B. The struggle for waterin Peru.Stanford:Stanford UniversityPress, 2003; Castro, José E. Water,power and citizenship: social struggle inthe Basin of Mexico. Basingstoke[Inglaterra]/ Nova York: PalgraveMacmillan,2006.Ver também Klare,Michael. Resource wars: the new lands-cape of global conflict. Nova York:Metropolitan Books, 2001; Hall,David, Lobina, Emanuele e De LaMotte, Robin. “Public resistance toprivatization in water and energy”.Development in Practice, vol. 15, n. 3-4,2005, pp. 286-301.

[38] Para o caso da Colômbia, verSantos, Boaventura de S. e Villegas,Mauricio G. El caleidoscopio de las jus-ticias en Colombia. Bogotá: Siglo delHombre, 2001.

[39] Uma análise eloqüente pode serencontrada em Wilson,William J.The

tórios do Novo Mundo fundamentou o estabelecimento das linhasabissais modernas. A primeira transformação teve lugar quando apropriedade sobre as coisas se expandiu, com o capitalismo, perantea propriedade sobre os meios de produção.Como bem descreveu KarlRenner, o proprietário das máquinas se tornou proprietário da forçade trabalho que nelas operava,de modo que o controle sobre as coisasse converteu em controle sobre as pessoas40.Evidentemente,Rennernegligenciou o fato de que essa transformação não ocorreu nas colô-nias, já que nelas o controle sobre as pessoas era a forma original docontrole sobre as coisas, compreendendo tanto as coisas não-huma-nas como as humanas. A segunda grande transformação da proprie-dade tem lugar muito além da produção, quando a propriedade deserviços se torna um meio de controlar as pessoas que deles necessi-tam para sobreviver. Recorrendo aqui à caracterização do governocolonial na África proposta por Mamdani, o novo governo indiretopromove um despotismo descentralizado41. O despotismo descen-tralizado não conflita com a democracia liberal; antes, torna-a cadavez mais irrelevante para a qualidade de vida de populações cada vezmais vastas.

Sob as condições do novo governo indireto, o pensamento abissalmoderno, mais do que regular os conflitos sociais entre cidadãos, ésolicitado a suprimir os conflitos sociais e a ratificar a impunidadedeste lado da linha,como sempre ocorreu do outro lado da linha.Pres-sionado pela lógica da apropriação/violência, o próprio conceito dedireito moderno — uma norma universalmente válida que emana doEstado e é por ele imposta coercitivamente caso necessário — encon-tra-se em transformação. Entre as mudanças conceituais em cursoverifica-se a proposição de uma modalidade de regulamentação eufe-misticamente denominada “lei branda” (soft law)42. Apresentadacomo a manifestação mais benevolente do ordenamento “regulação/emancipação”, essa forma de regulamentação traz consigo a lógica daapropriação/violência sempre que estejam em jogo relações de podermuito desiguais. Trata-se de uma lei cujo cumprimento é voluntário.Sem surpresa, vem sendo aplicada, em meio a outros âmbitos sociais,no campo das relações capital/trabalho,e sua versão mais cabal é a doscódigos de conduta recomendados às multinacionais metropolitanasna subcontratação de serviços às “suas” sweatshops em todo o mundo.Essa forma de lei — eufemisticamente denominada “branda” por serbranda com aqueles cujo comportamento empreendedor é conside-rado regular (empregadores) e dura com aqueles que sofrem as conse-qüências do seu não-cumprimento (trabalhadores) — apresentasemelhanças intrigantes com o direito colonial, cuja aplicação depen-dia mais da vontade do colonizador do que de qualquer outra coisa.Asrelações sociais que ela regula são,se não um novo estado de natureza,

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truly disadvantaged: the inner city, theunderclass and public policy. Chicago:University of Chicago Press, 1987.

[40] Renner, Karl. Die Rechtsinstitutedes Privatrechts und ihre soziale Funk-tion: ein Beitrag zur Kritik des Burgerli-chen Rechts. Stuttgart:Gustav Fischer,1965.

[41] Mamdani, Citizen and subject...,op. cit., cap. 2.

[42] Nos últimos anos vem-se pro-duzindo uma vasta literatura teórica eempírica sobre procedimentos insti-tucionais baseados na colaboraçãoentre atores não-estatais (firmas,associações civis, ONGs, sindicatosetc.), em lugar da regulação estatal.Em contraposição ao rigor e à imposi-ção, essa abordagem enfatiza a bran-dura e a obediência voluntária me-diante uma ampla variedade dedesignações: “regulação responsiva”(Ayres, Ian e Braithwaite, John. Res-ponsive regulation: transcending thederegulation debat. Nova York:OxfordUniversity Press, 1992), “lei pós-regulatória” (Teubner, Gunther.“Transnational politics: contentionand institutions in internationalpolitics”. Annual Review of PoliticalScience, vol. 4, 1986, pp. 1-20), “leibranda” (Snyder,Francis.Soft law andinstitutional practice in the EuropeanCommunity. Florença: European Uni-versity Institute, 1993 [EUI WorkingPaper Law no 93/5]; “Governing glo-balisation”. In: Likosky, Michael(org.). Transnational legal processes:globalisation and power disparities.Londres:Butterworths,2002,pp.65-97; Trubek, David e Moscher, James.“New governance, employmentpolicy, and the European socialmodel”. In: Teubner, Gunther (org.).Governing work and welfare in a neweconomy. Berlim: De Gruyter, 2003,pp. 33-58; Mörth, Ulrika (org.). Softlaw in governance and regulation. Chel-tenham, UK: E. Elgar, 2004; Trubek,David e Trubek, Louise G. “Hard andsoft law in the construction of socialEurope”. European Law Journal, vol.11, n. 3, 2005, pp. 343-64), “experi-mentalismo democrático” (Dorf,Michael e Sabel,Charles.“A constitu-tion of democratic experimenta-lism”. Columbia Law Review, vol. 98,n. 2, 1998, 267-473; Unger, RobertoM. Democracy realized. Londres:Verso, 1998), “governança coopera-tiva” (Freeman, Jody. “Collaborativegovernance in the administrative

uma zona intermédia entre o estado de natureza e a sociedade civil,onde o fascismo social prolifera e floresce.

Em suma, o pensamento abissal moderno, que deste lado da linhaera chamado a regular as relações entre cidadãos e entre estes e oEstado, é agora chamado, nos domínios sociais sujeitos a uma maiorpressão por parte da lógica da apropriação/violência, a lidar com oscidadãos como se fossem não-cidadãos e com os não-cidadãos comose fossem perigosos selvagens coloniais. Assim como o fascismosocial coexiste com a democracia liberal, o estado de exceção coexistecom a normalidade constitucional, a sociedade civil coexiste com oestado de natureza e o governo indireto coexiste com o primado dodireito. Longe de ser a perversão de alguma regra normal, fundadora,esse estado de coisas constitui o projeto original da epistemologia e dalegalidade modernas, ainda que a linha abissal entre o metropolitanoe o colonial tenha se deslocado, transformando o colonial numadimensão interna do metropolitano.

Cosmopolitismo subalterno À luz do que foi dito ante-riormente, ficamos com a idéia de que o pensamento abissal conti-nuará a auto-reproduzir-se — por mais excludentes que sejam as prá-ticas que origina — a menos que se defronte com uma resistênciaativa.Assim,a resistência política deve ter como postulado a resistên-cia epistemológica. Como foi dito de início, não existe justiça socialglobal sem justiça cognitiva global. Isso significa que a tarefa críticaque se avizinha não pode ficar limitada à geração de alternativas: elarequer um pensamento alternativo de alternativas.É preciso um novopensamento, um pensamento pós-abissal. Será isso possível? Existi-rão as condições que,se devidamente aproveitadas,poderão propiciarsua emergência? A investigação sobre essas condições explica minhaespecial atenção ao contramovimento acima mencionado, resultantedo abalo que as linhas abissais globais vêm sofrendo desde os anos1970 e o qual designei como “cosmopolitismo subalterno”43.

Apesar de seu caráter por ora claramente embrionário,o cosmopo-litismo subalterno contém uma promessa real.De fato,para captá-lo énecessário realizar aquilo que chamo de “sociologia das emergên-cias”44, a qual consiste numa amplificação simbólica de sinais, pistase tendências latentes que,embora dispersas,embrionárias e fragmen-tadas, apontam para novas constelações de sentido referentes tanto àcompreensão como à transformação do mundo. O cosmopolitismosubalterno se manifesta mediante os diversos movimentos e organi-zações que configuram a globalização contra-hegemônica, lutandocontra a exclusão social, econômica, política e cultural gerada pelamais recente encarnação do capitalismo global, conhecida como “glo-balização neoliberal”45.Tendo em mente que a exclusão social sempre

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state”. UCLA Law Review, vol. 45,1997, pp. 1-98), “regulação externali-zada” (O’Rourke, Dara. “Outsour-cing regulation: analysing non-governmental systems of laborstandards monitoring”. Policy StudiesJournal,vol.31,2003,pp.1-29) ou sim-plesmente “governança” (MacNeil,Michael, Sargent, Neil e Swan, Peter(orgs.). Law, regulation and gover-nance. Ontário: Oxford UniversityPress,2000;Nye,Joseph e Donahue,John (orgs.). Governance in a globali-zing world. Washington, DC: Broo-kings Institution, 2000). Para umacrítica, ver Santos, Fórum Social Mun-dial, op. cit., pp. 29-63.

[43] Não me ocupo aqui dos debatesatuais sobre cosmopolitismo.Na sualonga história, o cosmopolitismosignificou universalismo, tolerância,patriotismo,cidadania global,comu-nidade global de seres humanos,cul-turas globais etc. O que mais fre-qüentemente ocorre quando esseconceito é aplicado – como instru-mento para descrever uma realidadeou como instrumento em lutas polí-ticas – é que o caráter incondicional-mente inclusivo de sua formulaçãoabstrata é utilizado em nome de inte-resses excludentes de um gruposocial específico. De certo modo, ocosmopolitismo tem sido privilégiodaqueles que podem usufruí-lo. Aforma como retomo esse conceitoprevê a identificação dos grupos cu-jas aspirações são negadas ou torna-das invisíveis pelo uso hegemônicodo conceito, mas que podem serbeneficiados pelo uso alternativo doconceito. Parafraseando Stuart Hall,que levantou uma questão seme-lhante em relação ao conceito deidentidade (“Who needs identity?”.In:Hall Stuart e Du Gay,Paul (orgs.).Questions of cultural identity.Londres:Sage,1996,pp.1-17),pergunto:quemprecisa do cosmopolitismo? A res-posta é simples: todo aquele que forvítima de intolerância e discrimina-ção necessita de tolerância; todoaquele a quem seja negada a digni-dade humana básica necessita deuma comunidade de seres humanos;todo aquele que seja não-cidadãonecessita da cidadania numa dadacomunidade ou nação. Em suma, ossocialmente excluídos, vítimas daconcepção hegemônica de cosmopo-litismo, necessitam de um tipodiverso de cosmopolitismo. Assim, ocosmopolitismo subalterno consti-tui uma variante oposta. Da mesma

é produto de relações de poder desiguais, essas iniciativas são anima-das por um ethos redistributivo no sentido mais amplo da expressão —compreendendo a redistribuição de recursos materiais,sociais,políti-cos, culturais e simbólicos —, e como tal baseado simultaneamentenos princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença. Desdeo início deste século, o Fórum Social Mundial tem sido a expressãomais cabal da globalização contra-hegemônica e do cosmopolitismosubalterno46. Entre as entidades que dele participam, os movimentosindígenas são, do meu ponto de vista, aqueles cujas concepções e prá-ticas representam a mais convincente emergência do pensamentopós-abissal, o que é muito auspicioso para a possibilidade de um talpensamento, já que os povos indígenas são os habitantes paradigmá-ticos do outro lado da linha, o campo histórico do paradigma “apro-priação/violência”.

A novidade do cosmopolitismo subalterno reside acima de tudoem seu profundo sentido de incompletude, sem contudo ambicionara completude. Por um lado, defende que a compreensão do mundoexcede largamente a compreensão ocidental do mundo, e que a nossacompreensão da globalização,portanto,é muito menos global do quea própria globalização.Por outro lado,defende que quanto mais com-preensões não-ocidentais forem identificadas mais evidente se tor-nará o fato de que ainda restam muitas outras por identificar, e que ascompreensões híbridas — com elementos ocidentais e não-ociden-tais — são virtualmente infinitas.O pensamento pós-abissal parte daidéia de que a diversidade do mundo é inesgotável e continua despro-vida de uma epistemologia adequada,de modo que a diversidade epis-temológica do mundo está por ser construída.

A seguir apresento um esquema geral do pensamento pós-abissal.Concentro-me nas suas dimensões epistemológicas, deixando delado suas dimensões jurídicas.

PENSAMENTO PÓS-ABISSAL COMO UM SABER ECOLÓGICO

O pensamento pós-abissal parte do reconhecimento de que aexclusão social,no seu sentido mais amplo,assume diferentes formasconforme seja determinada por uma linha abissal ou não-abissal,e danoção de que enquanto persistir a exclusão definida abissalmente nãoserá possível qualquer alternativa pós-capitalista progressista. Du-rante um período de transição possivelmente longo, confrontar aexclusão abissal será um pré-requisito para abordar de modo eficienteas muitas formas de exclusão não-abissal que têm dividido o mundomoderno deste lado da linha. Uma concepção pós-abissal do mar-xismo (em si mesmo um bom exemplo de pensamento abissal) pre-tende que a emancipação dos trabalhadores seja conquistada em con-

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forma que a globalização neoliberalnão reconhece quaisquer formasalternativas de globalização, tam-bém o cosmopolitismo sem adjetivosnega a sua própria especificidade. Ocosmopolitismo subalterno de opo-sição é uma forma cultural e políticade globalização contra-hegemônica.É o nome dos projetos emancipató-rios cujas reivindicações e critériosde inclusão social vão além dos hori-zontes do capitalismo global. Ou-tros, com preocupações similares,também adjetivaram o cosmopoli-tismo: “cosmopolitismo enraizado”(Cohen, Mitchell. “Rooted cosmo-politanism: thoughts on the left,nationalism, and multiculturalism”.Dissent, vol. 39, n. 4, 1992, pp. 478-83), “cosmopolitismo patriótico”(Appiah, Kwame A. “Cosmopolitanpatriots”. In: Cheah, Pheng e Rob-bins, Bruce (orgs.). Cosmopolitics:thinking and feeling beyond the natio.Minneapolis: University of Minne-sota Press, 1998, pp. 91-116), “cos-mopolitismo vernacular” (Bhabha,Homi. “Unsatisfied: notes on verna-cular cosmopolitanism”. In: García-Moreno, Laura e Pfeifer, Peter C.(orgs.). Text and nation. Londres:Camden House, 1996, pp. 191-207;Diouf, Mamadou. “The SenegaleseMurid trade diaspora and themaking of a vernacular cosmopolita-nism”. Public Culture, vol. 12, n. 3,2000, pp. 679-702), “etnicidadecosmopolita” (Werbner, Richard.“Cosmopolitan ethnicity, entrepre-neurship and the nation: minorityelites in Botswana”. Journal of Sou-thern African Studies, vol. 28, n. 4,2002, 731-53), “cosmopolitismo dasclasses trabalhadoras” (Werbner,Pnina. “Global pathways: workingclass cosmopolitans and the creationof transnational ethnic worlds”.Social Anthropology, vol. 7, n. 1, 1999,pp. 17-37). Sobre as distintas formasde cosmopolitismo, ver Brecken-ridge, Carol e outros (orgs.). Cosmo-politanism.Durham:Duke UniversityPress, 2002.

[44] Santos, “A critique of lazy rea-son”, op. cit.; A gramática do tempo,op. cit., pp. 93-136.

[45] Cf. Santos, Boaventura de S.“Os processos da globalização”. In:idem (org.). Globalização e ciênciassociais. São Paulo: Cortez, 2002, pp.25-104; A gramática do tempo, op. cit.

junto com a emancipação de todas as populações descartáveis do Sulglobal, que são oprimidas mas não diretamente exploradas pelo capi-talismo global. Da mesma forma, reivindica que os direitos dos cida-dãos não estarão assegurados enquanto os não-cidadãos sofrerem umtratamento sub-humano47.

Assim, o reconhecimento da persistência do pensamento abissal écondição sine qua non para começar a pensar e a agir para além dele.Semesse reconhecimento, o pensamento crítico permanecerá um pensa-mento derivativo, que continuará a reproduzir as linhas abissais pormais antiabissal que se autoproclame. Pelo contrário, o pensamentopós-abissal é um pensamento não-derivativo, pois envolve uma rup-tura radical com as formas de pensamento e ação da modernidade oci-dental. No nosso tempo, pensar em termos não-derivativos significapensar a partir da perspectiva do outro lado da linha,precisamente por-que ele é o domínio do impensável no Ocidente moderno. A emergên-cia do ordenamento da apropriação/violência só poderá ser enfrentadase situarmos nossa perspectiva epistemológica na experiência social dooutro lado da linha,isto é,do Sul global,concebido como a metáfora dosofrimento humano sistêmico e injusto provocado pelo capitalismoglobal e pelo colonialismo48. O pensamento pós-abissal pode ser sin-tetizado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia doSul.Ele confronta a monocultura da ciência moderna com uma ecologiade saberes, na medida em que se funda no reconhecimento da plurali-dade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciênciamoderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem com-prometer sua autonomia.A ecologia de saberes se baseia na idéia de queo conhecimento é interconhecimento49.

Assim, a primeira condição para um pensamento pós-abissal é aco-presença radical.A co-presença radical significa que práticas e agen-tes de ambos os lados da linha são contemporâneos em termos iguali-tários.Implica conceber simultaneidade como contemporaneidade,oque requer abandonar a concepção linear de tempo50. Só assim serápossível ir além de Hegel,para quem ser membro da humanidade his-tórica — isto é,estar deste lado da linha — significava:no século V a.C.,ser um grego e não um bárbaro;nos primeiros séculos da era cristã,serum cidadão romano e não um grego; na Idade Média, ser um cristão enão um judeu; no século XVI, ser um europeu e não um selvagem doNovo Mundo;e no século XIX ser um europeu (incluindo os europeusdeslocados da América do Norte) e não um asiático,estagnado na his-tória,ou um africano,que sequer faz parte dela51.Além disso,a co-pre-sença radical pressupõe a abolição da guerra, que, juntamente com aintolerância, constitui a negação mais radical da co-presença.

Como ecologia de saberes,o pensamento pós-abissal tem por pre-missa a idéia da inesgotável diversidade epistemológica do mundo, o reco-

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[46] Sobre a dimensão cosmopolitado Fórum Social Mundial, ver Fisher,William F. e Ponniah, Thomas. Ano-ther world is possible: popular alternati-ves to globalization at the World SocialForum. Londres: Zed Books, 2003;Sen, Jai e outros (orgs.). World SocialForum: challenging empires. Nova Déli:Viveka Foundation, 2004; Santos,Fórum Social Mundial, op. cit.

[47] Gandhi provavelmente foi opensador-ativista dos tempos mo-dernos que mais consistentementepensou e atuou em termos não-abis-sais. Tendo experienciado as exclu-sões radicais típicas do pensamentoabissal, não se desviou do seu propó-sito de construir uma nova forma deuniversalidade capaz de libertar tan-to o opressor como a vítima, con-forme reafirma Ashis Nandy:“A visãogandhiana desafia a tentação de igua-lar o opressor na violência e de read-quirir uma auto-estima própria comocompetidor num mesmo sistema. Éuma visão assente numa identifi-cação com os oprimidos que exclui afantasia da superioridade do estilo devida do opressor, tão profundamenteenraizada na consciência daquelesque reclamam falar em nome das víti-mas da história” (Traditions, tyrann-yand utopias: essays in the politics ofawareness. Oxford:Oxford UniversityPress, 1987, p. 35).

[48] Cf. Santos, Toward a new com-mon sense, op. cit., pp. 506-19.

[49] Cf.Santos, A gramática do tempo,pp. 137-78.

[50] Imaginemos que um camponêsafricano e um funcionário do BancoMundial se encontrassem num cam-po africano: segundo o pensamentoabissal, esse encontro seria simultâ-neo (pleonasmo intencional) masnão contemporâneo; já de acordocom o pensamento pós-abissal oencontro é simultâneo e ocorre entredois indivíduos contemporâneos.

[51] Hegel, Georg W. F. Vorlesungenüber die Philosophie der Geschichte.Frankfurt am Main:Suhrkamp,1970.

[52] Esse reconhecimento da diver-sidade e da diferenciação é um doscomponentes fundamentais da Wel-tanschaung [visão de mundo] pormeio da qual podemos imaginar oséculo XXI. Essa Weltanschaung éradicalmente diferente daquela ado-

nhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conheci-mento além do conhecimento científico52. Isso implica renunciar aqualquer epistemologia geral.Existem em todo o mundo não só diver-sas formas de conhecimento da matéria, da sociedade, da vida e doespírito, mas também muitos e diversos conceitos e critérios sobre oque conta como conhecimento.No período de transição que se inicia,em que ainda persistem as perspectivas abissais de totalidade e uni-dade,provavelmente precisamos de uma epistemologia geral residualou negativa para seguir em frente:uma epistemologia geral da impos-sibilidade de uma epistemologia geral.

O contexto cultural em que se situa a ecologia de saberes é ambí-guo.Por um lado,a idéia da diversidade sociocultural do mundo se for-taleceu nas três últimas décadas, favorecendo o reconhecimento dapluralidade epistemológica como uma de suas dimensões. Por outrolado, se todas as epistemologias partilham as premissas culturais doseu tempo, uma das mais bem consolidadas premissas do pensa-mento abissal talvez seja,ainda hoje,a da crença na ciência como únicaforma de conhecimento válida e rigorosa.Ortega y Gasset propôs umadistinção radical entre crenças e idéias, entendendo por estas últimasa ciência ou a filosofia53. A distinção reside em que as crenças fazemparte de nossa identidade e subjetividade, enquanto as idéias nos sãoexteriores. Enquanto nossas idéias nascem da dúvida e permanecemnela,nossas crenças nascem da ausência de dúvida.No fundo,a distin-ção é entre ser e ter: somos as nossas crenças, temos idéias. O que écaracterístico do nosso tempo é o fato de a ciência moderna pertencersimultaneamente ao campo das idéias e ao campo das crenças. Acrença na ciência excede em muito o que as idéias científicas nos per-mitem realizar.Assim,a relativa perda de confiança epistemológica naciência durante a segunda metade do século XX ocorreu de par com acrescente crença popular na ciência. A relação entre crenças e idéiascomo duas entidades distintas passa a ser uma relação entre duasmaneiras de experienciar socialmente a ciência. Essa dualidade fazcom que o reconhecimento da diversidade cultural do mundo não sig-nifique necessariamente o reconhecimento da diversidade epistemo-lógica do mundo.

Nesse contexto, a ecologia de saberes é basicamente uma contra-epistemologia. O impulso básico para o seu avanço resulta de doisfatores.O primeiro consiste nas novas emergências políticas de povosdo outro lado da linha como parceiros da resistência ao capitalismoglobal: globalização contra-hegemônica. Em termos geopolíticos,trata-se de sociedades periféricas do sistema-mundo moderno onde acrença na ciência moderna é mais tênue, onde é mais visível a vincula-ção da ciência moderna aos desígnios da dominação colonial e impe-rial, onde conhecimentos não-científicos e não-ocidentais prevale-

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tada pelos países centrais no início doséculo XX,quando a imaginação epis-temológica estava dominada pelaidéia de unidade.

[53] Ortega y Gasset, Jose. Ideas ycreencias. Madri: Revista de Occi-dente, 1942.

[54] As epistemologias feministastêm sido centrais para a crítica dosdualismos “clássicos” da moderni-dade, tais como natureza/cultura, su-jeito/objeto e humano/não-humano,e da naturalização das hierarquias declasse, gênero e raça. Para algumascontribuições relevantes às críticasfeministas da ciência, ver Keller,Evelyn F. Reflections on gender andscience. New Haven: Yale UniversityPress, 1985; Harding, Sandra. Thescience question in feminism. Ithaca:Cornell University Press, 1986; Isscience multicultural? Postcolonialisms,feminisms, and epistemologies. Bloo-mington: Indiana University Press,1998; Idem (org.). The feminist stand-point theory reader. Nova York: Rou-tledge, 2003; Haraway, Donna J. Pri-mate visions: gender, race, and nature inthe world of modern science. Londres:Verso, 1992; Modest_witness [...]:feminism and technoscience.Nova York:Routledge, 1997. Uma panorâmicainteressante, ainda que centrada noNorte global, encontra-se em Crea-ger, Angela, Lunbeck, Elizabeth eSchiebinger, Londa (orgs.). Feminismin twentieth-century: science, techno-logy, and medicine. Chicago: Univer-sity of Chicago Press, 2001. Quantoàs epistemologias pós-coloniais, ver,entre muitos outros, Alvares, Claude.Science, development and violence: therevolt against modernity. Nova Déli:Oxford University Press, 1992; Dus-sel, The invention of the Americas, op.cit.; Guha, Ramachandra e Martínez-Allier, Juan. Varieties of environmenta-lism: essays North and South. Londres:Earthscan, 1997; Quijano, op. cit.;Mignolo,Local histories/global designs,op. cit.; Mbembe, op. cit.

cem nas práticas cotidianas das populações. O segundo fator é umaproliferação sem precedentes de alternativas, as quais porém nãopodem ser agrupadas sob a alçada de uma única alternativa global,visto que globalização contra-hegemônica se destaca pela ausência deuma alternativa no singular.A ecologia de saberes procura dar consis-tência epistemológica ao pensamento pluralista e propositivo.

Na ecologia de saberes cruzam-se conhecimentos e também igno-râncias. Não existe uma unidade de conhecimento, assim como nãoexiste uma unidade de ignorância. As formas de ignorância são tãoheterogêneas e interdependentes quanto as formas de conhecimento.Dada essa interdependência,a aprendizagem de certos conhecimentospode envolver o esquecimento e em última instância a ignorância deoutros.Desse modo,na ecologia de saberes a ignorância não é necessa-riamente um estado original ou ponto de partida.Pode ser um ponto dechegada.Pode ser o resultado do esquecimento ou da desaprendizagemimplícito num processo de aprendizagem recíproca. Assim, num pro-cesso de aprendizagem conduzido por uma ecologia de saberes é cruciala comparação entre o conhecimento que está sendo aprendido e oconhecimento que nesse processo é esquecido e desaprendido.A igno-rância só é uma forma desqualificada de ser e de fazer quando aquilo quese aprende vale mais do que aquilo que se esquece.A utopia do interco-nhecimento consiste em aprender outros conhecimentos sem esqueceros próprios.O princípio da prudência que subjaz à ecologia de saberes(do qual falaremos mais adiante) convida a uma reflexão mais pro-funda sobre a diferença entre a ciência como conhecimento monopo-lista e a ciência como parte de uma ecologia de saberes.

Como produto do pensamento abissal, o conhecimento científiconão se encontra distribuído socialmente de forma equitativa — nempoderia estar, uma vez que o seu desígnio original foi converter estelado da linha em sujeito do conhecimento e o outro lado em objeto deconhecimento. As intervenções no mundo real por ele propiciadastendem a servir aos grupos sociais que têm maior acesso a esse conhe-cimento. Enquanto as linhas abissais continuarem a ser traçadas, aluta por uma justiça cognitiva não terá êxito caso se apóie apenas naidéia de uma distribuição mais equitativa do conhecimento científico.Além do fato de que tal distribuição é impossível nas condições docapitalismo e do colonialismo, o conhecimento científico tem limitesintrínsecos quanto ao tipo de intervenção que promove no mundoreal. Na ecologia de saberes, a busca de credibilidade para os conheci-mentos não-científicos não implica o descrédito do conhecimentocientífico.Implica simplesmente a sua utilização contra-hegemônica.Trata-se,por um lado,de explorar a pluralidade interna da ciência,istoé, as práticas científicas alternativas que têm se tornado visíveis pormeio das epistemologias feministas e pós-coloniais54, e, por outro

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[55] Cf. Santos, Meneses e Nunes,op. cit.

lado, de promover a interação e a interdependência entre os saberescientíficos e outros saberes, não-científicos.

Uma das premissas básicas da ecologia de saberes é que todos osconhecimentos têm limites internos, referentes às intervenções noreal que eles permitem,e externos,decorrentes do reconhecimento deintervenções alternativas propiciadas por outras formas de conheci-mento. Por definição, as formas de conhecimento hegemônicas sóconhecem limites internos,de modo que o uso contra-hegemônico daciência moderna só é possível mediante a exploração paralela de seuslimites internos e externos como parte de uma concepção contra-hegemônica de ciência. É por isso que o uso contra-hegemônico daciência não pode se limitar à ciência. Só faz sentido no âmbito de umaecologia de saberes.

Para uma ecologia de saberes, o conhecimento como intervençãono real — não como representação do real — é a medida do realismo.A credibilidade da construção cognitiva é mensurada pelo tipo deintervenção no mundo que ela proporciona,auxilia ou impede.Comoa avaliação dessa intervenção sempre combina o cognitivo com oético-político, a ecologia de saberes distingue a objetividade analíticada neutralidade ético-política.Hoje em dia ninguém questiona o valorgeral das intervenções no real propiciadas pela ciência moderna pormeio de sua produtividade tecnológica. Mas isso não deve nos impe-dir de reconhecer intervenções propiciadas por outras formas deconhecimento. Em muitas áreas da vida social a ciência moderna temdemonstrado uma indiscutível superioridade em relação a outras for-mas de conhecimento, mas há outros modos de intervenção no realque hoje nos são valiosos e para os quais a ciência moderna em nadacontribuiu. É o caso, por exemplo, da preservação da biodiversidadepossibilitada por formas de conhecimento camponesas e indígenas,que se encontram ameaçadas justamente pela crescente intervençãoda ciência moderna55. E não deveria nos impressionar a riqueza dosconhecimentos que lograram preservar modos de vida,universos sim-bólicos e informações vitais para a sobrevivência em ambientes hostiscom base exclusivamente na tradição oral? Dirá algo sobre a ciência ofato de que por intermédio dela isso nunca teria sido possível?

Eis o impulso para a co-presença igualitária (como simultanei-dade e contemporaneidade) e para a incompletude. Dado que ne-nhuma forma de conhecimento pode responder por todas as inter-venções possíveis no mundo, todas as formas de conhecimento são,de diferentes maneiras, incompletas. A incompletude não pode sererradicada, porque qualquer descrição completa das variedades desaber não incluiria a forma de saber responsável pela própria descri-ção. Não há conhecimento que não seja conhecido por alguém paracertos objetivos.Todos os conhecimentos sustentam práticas e cons-

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[56] Cf. Santos, A crítica da razãoindolente, op. cit., pp. 225-53.

tituem sujeitos. Todos os conhecimentos são testemunhais porqueaquilo que conhecem sobre o real (sua dimensão ativa) é sempreduplicado por aquilo que dão a conhecer sobre o sujeito do conheci-mento (sua dimensão subjetiva). Ao questionar a distinção sujeito/objeto,as ciências da complexidade dão conta desse fenômeno mas oconfinam às práticas científicas. A ecologia de saberes expande ocaráter testemunhal dos conhecimentos de modo a abarcar igual-mente as relações entre o conhecimento científico e o não-científico,ampliando assim o alcance da intersubjetividade como interconheci-mento e vice-versa.

Num regime de ecologia de saberes, a busca de intersubjetividadeé tão importante quanto complexa.Uma vez que diferentes práticas deconhecimento têm lugar em diferentes escalas espaciais e com dife-rentes durações e ritmos,a intersubjetividade requer a disposição paraconhecer e agir em diferentes escalas (interescalaridade) e com dife-rentes durações (intertemporalidade).Muitas das experiências subal-ternas de resistência são locais ou foram localizadas e assim tornadasirrelevantes ou inexistentes pelo conhecimento abissal moderno, oúnico capaz de gerar experiências globais.Dado porém que a resistên-cia contra as linhas abissais precisa ocorrer em uma escala global, éimperativo desenvolver algum tipo de articulação entre as experiên-cias subalternas por meio de ligações entre o local e o global. Dessemodo, a ecologia de saberes tem de ser transescalar56.

Além disso, a coexistência de diferentes temporalidades ou dura-ções em diferentes práticas de conhecimento requer uma expansão damoldura temporal. Na medida em que as modernas tecnologias ten-dem a favorecer a moldura temporal e a duração da ação estatal,tanto naadministração pública como na política (o ciclo eleitoral,por exemplo),as experiências subalternas do Sul global têm sido forçadas a respondertanto à curta duração das necessidades imediatas de sobrevivênciacomo à longa duração do capitalismo e do colonialismo. Mesmo naslutas subalternas podem estar presentes diferentes durações. A lutapela terra empreendida pelos camponeses empobrecidos no Brasil,porexemplo, pode incluir: a duração do Estado moderno, quando o Movi-mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) luta pela reformaagrária; a duração da escravatura, quando os afro-descendentes lutampela recuperação dos quilombos; ou ainda a duração do colonialismo,quando os povos indígenas lutam para reaver seus territórios históri-cos,dos quais foram esbulhados pelos conquistadores.

A ecologia de saberes não concebe os conhecimentos em abstrato,mas como práticas de conhecimento que possibilitam ou impedemcertas intervenções no mundo real.Um pragmatismo epistemológicoé justificado acima de tudo pelo fato de que as experiências de vida dosoprimidos lhes são inteligíveis por via de uma epistemologia das con-

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[57] A prevalência dos juízos cogni-tivos ao efetuar determinada práticade conhecimento não conflita com aprevalência dos juízos ético-políticosna decisão a favor de um determinadotipo de intervenção real que esseconhecimento específico possibilitaem detrimento de intervenções alter-nativas possibilitadas por conheci-mentos alternativos.

seqüências. No mundo em que vivem, as conseqüências vêm sempreprimeiro que as causas.

A ecologia de saberes assenta na idéia pragmática de que é neces-sária uma reavaliação das intervenções e relações concretas na socie-dade e na natureza que os diferentes conhecimentos proporcionam.Centra-se pois nas relações entre saberes, nas hierarquias que segeram entre eles, uma vez que nenhuma prática concreta seria possí-vel sem essas hierarquias. No entanto, em vez de subscrever umahierarquia única,universal e abstrata entre os saberes,estabelece hie-rarquias em conformidade com o contexto, à luz dos resultados con-cretos pretendidos ou atingidos pelas diferentes formas de saber.Hierarquias concretas emergem do valor relativo de intervençõesalternativas no mundo real. Entre os diferentes tipos de intervençãopode existir complementaridade ou contradição57. Sempre que háintervenções no real que em princípio podem ser levadas a cabo pordiferentes sistemas de conhecimento, as escolhas concretas das for-mas de conhecimento a privilegiar devem ser informadas pelo princí-pio da prudência,que no contexto da ecologia de saberes consiste emdar preferência às formas de conhecimento que garantam a maiorparticipação possível dos grupos sociais envolvidos na concepção,execução, controle e fruição da intervenção.

O exemplo a seguir ilustra bem os perigos de substituir um tipo deconhecimento por outro com base em hierarquias abstratas. Nos anos1960,os milenares sistemas de irrigação dos campos de arroz da ilha deBali,na Indonésia,foram substituídos por sistemas científicos promo-vidos pelos prosélitos da Revolução Verde.Os sistemas tradicionais sebaseavam em conhecimentos hidrológicos, agrícolas e religiososancestrais e eram administrados por sacerdotes de um templo hindu-budista dedicado a Dewi-Danu, a deusa do lago. Foram substituídosprecisamente por serem considerados produtos da magia e da supers-tição, daquilo que foi depreciativamente designado como “culto doarroz”.Só que a substituição teve resultados desastrosos para a culturado arroz, cuja colheita decresceu drasticamente nos anos subseqüen-tes.Diante disso,os sistemas científicos tiveram de ser abandonados eos sistemas tradicionais restaurados.Esse caso ilustra a importância doprincípio da prudência quando lidamos com uma possível comple-mentaridade ou contradição entre diferentes tipos de conhecimento.Asuposta incompatibilidade entre dois sistemas de conhecimento (o re-ligioso e o científico) para a realização da mesma intervenção (a irriga-ção dos campos de arroz) resultou de uma má avaliação (má ciência)provocada precisamente por juízos abstratos, baseados na superiori-dade abstrata do conhecimento científico.Trinta anos depois da desas-trosa intervenção técnico-científica, a modelagem computacional —uma área das novas ciências ou ciências da complexidade — veio

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[58] Cf. Lansing, John S. “Balinese‘water temples’ and the managementof irrigation”. American Anthropolo-gist, vol. 89, n. 2, 1987, pp. 326-41;Priests and programmers: technologiesof power in the engineered landscape ofBali. Princeton: Princeton UniversityPress, 1991; Lansing, John S. e Kre-mer, James N. “Emergent propertiesof Balinese water temples: coadapta-tion on a rugged fitness landscape”.American Anthropologist, vol. 95, n. 1,1993, pp. 97-114.

[59] Cf. Eze, Emmanuel Ch. (org.).Postcolonial African philosophy: a criti-cal reader. Oxford: Blackwell Publis-hers, 1997; Karp, Ivan e Masolo, Dis-mas (orgs.). African philosophy ascultural inquiry. Bloomington: In-diana University Press,2000;Houn-tondji, Paulin J. The struggle for mea-ning: reflections on philosophy, culture,and democracy in Africa. Athens: OhioUniversity Center for InternationalStudies, 2002.

[60] Nessa área os problemas estãofreqüentemente associados à lingua-gem, a qual de fato é um instrumentoessencial para o desenvolvimento deuma ecologia de saberes. Desse mo-do, a tradução deve operar nos níveislingüístico e cultural. A tradução cul-tural representa uma das tarefas maisdesafiantes para filósofos, cientistassociais e ativistas no século XXI.Abordo esse tema com maior detalheem Santos, “A critique of lazy rea-son”, op. cit.; A gramática do tempo,op. cit.

demonstrar que as seqüências da água geridas pelos sacerdotes dadeusa Dewi-Danu eram as mais eficientes possíveis,portanto mais efi-cientes do que as do sistema científico de irrigação58.

Na perspectiva das epistemologias abissais do Norte global, opoliciamento das fronteiras do conhecimento relevante é de longemais decisivo do que as discussões sobre diferenças internas. Assim,em razão do “epistemicídio” em massa perpetrado nos últimos cincoséculos, desperdiçou-se uma imensa riqueza de experiências cogniti-vas. Para recuperar algumas dessas experiências, a ecologia de saberesrecorre ao seu atributo pós-abissal mais característico, a traduçãointercultural.Embebidas em diferentes culturas ocidentais e não-oci-dentais, essas experiências não só usam linguagens diferentes, mastambém diferentes categorias, universos simbólicos e aspirações auma vida melhor.

As profundas diferenças entre saberes levantam a questão daincomensurabilidade, questão utilizada pela epistemologia abissalpara desacreditar a mera possibilidade de uma ecologia de saberes.Um exemplo ajuda a ilustrar essa questão. Será possível estabelecerum diálogo entre a filosofia ocidental e a filosofia africana? Formu-lada assim,a pergunta parece só permitir uma resposta positiva,umavez que ambas são filosofia (o mesmo argumento pode ser usado emrelação a um diálogo entre religiões).No entanto,para muitos filóso-fos ocidentais e africanos não é possível referirmo-nos a uma filo-sofia africana porque existe apenas uma filosofia,cuja universalidadenão é posta em causa pelo fato de que até o momento seu desenvolvi-mento se deu sobretudo no Ocidente. Na África, tal é a posição dosfilósofos chamados “modernistas”.Já para os “tradicionalistas” há fi-losofia africana, mas como ela está embebida na cultura africana éincomensurável com a filosofia ocidental e deve seguir seu desenvol-vimento autônomo59. Mas, além dessas duas posições, há perspecti-vas para as quais existem muitas filosofias e é possível haver entreelas um diálogo, um enriquecimento mútuo. Essas perspectivas sevêem freqüentemente confrontadas com os problemas da incomen-surabilidade, da incompatibilidade e da ininteligibilidade recípro-cas,os quais procuram resolver explorando formas de complementa-ridade. Tudo depende do uso de procedimentos adequados detradução intercultural, mediante os quais é possível identificar preo-cupações comuns e aproximações complementares, assim como,está claro, contradições intransponíveis60.

O seguinte exemplo ilustra o que está em jogo.O filósofo ganenseKwasi Wiredu afirma que na língua akan (do grupo étnico a que per-tence) não é possível traduzir o preceito cartesiano “Cogito,ergo sum”,jáque nela não há palavras para exprimir tal idéia.Em akan,“pensar” sig-nifica “medir algo”,o que não faz sentido quando ligado à idéia de exis-

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[61] Wiredu,Kwasi.“Are there cultu-ral universals?”.Quest,vol.4,n.2,1990,pp. 5-19; Cultural universals and par-ticulars: an African perspective. Bloo-mington: Indiana University Press,1996.

[62] Sobre essa questão e o debateque ela suscita, ver Idem. “Africanphilosophy and inter-cultural dialo-gue”.Quest,vol.11,n.1/2,1997,pp.29-41; Osha, Sanya. “Kwasi Wiredu andthe problems of conceptual decoloni-zation”.Quest,vol.13,n.1/2,1999,pp.157-64.

[63] Bloch, Ernst. The principle ofhope.Cambridge,MA:The MIT Press,1995 [1947],p.241.Sobre a sociologiadas emergências, ver Santos, “A criti-que of lazy reason”, op. cit.; A gramá-tica do tempo, op. cit., pp. 93-136.

[64] De uma perspectiva distinta, aecologia dos saberes procura a mesmacomplementaridade que Paracelsoidentificou entre “Archeus”, a von-tade elementar na semente e nocorpo, e “Vulcanus”, a força naturalda matéria. Cf. Paracelsus. Mikrokos-mos und Makrokosmos. Munique:Eugen Diedrichs Verlag, 1989, p. 33;ver também Idem. The hermetic andalchemical writings. Nova York: Uni-versity Books, 1967.

[65] Cf. Santos, Boaventura de S.Reinventar a democracia. Lisboa: Gra-diva, 1998.

[66] Cf. Epicurus. Epicurus’s morals:collected and faithfully englished. Lon-dres: Peter Davies, 1926; Lucretius.Lucretius on the nature of things. NewBrunswick: Rutgers University Press,1950. O conceito de clinamen entrouna teoria literária pela mão de HaroldBloom,que em A angústia da influênciase serve da noção para explicar a cria-tividade poética como uma “treslei-tura” que é antes “transleitura” (otermo original é “misreading”,um ler-mal que é também ler-mais-do-que-bem, ou corrigir). Diz Bloom: “Umpoeta desvia-se do poema do seu pre-cursor executando um clinamen emrelação a ele” (The anxiety of influence.Oxford: Oxford University Press,1973, p. 14 [em tradução do autor]).

tir. E o “existo” é igualmente dificílimo de exprimir, porque o equiva-lente mais próximo é algo semelhante a “estou aí”. O locativo “aí”,segundo Wiredu,seria suicida tanto do ponto de vista da epistemolo-gia como da metafísica do cogito61. Ou seja, a língua permite exprimircertas idéias e não outras. Mas isso não significa que a relação entre afilosofia africana e a filosofia ocidental tenha de ficar por aqui. ComoWiredu tenta demonstrar,é possível desenvolver argumentos autôno-mos com base na filosofia africana não só sobre o motivo pelo qual elanão poder exprimir o cogito, mas também sobre as muitas idéias alter-nativas que ela pode exprimir e a filosofia ocidental não pode62.

A ecologia de saberes não ocorre apenas no nível do lógos,mas tam-bém no nível do mythos. A idéia de “emergência” ou a noção do “ainda-não-ser” de Bloch lhe são essenciais63. A intensificação da vontaderesulta de uma leitura potencializadora de tendências objetivas, queempresta força a uma possibilidade auspiciosa, mas frágil, medianteuma compreensão mais profunda das possibilidades humanas combase em saberes que, ao contrário do científico, privilegiam a forçainterior em vez da força exterior,a natura naturans em vez da natura natu-rata64. Por meio desses saberes é possível alimentar o valor intensifi-cado de um empenho, o que é incompreensível do ponto de vista domecanicismo positivista e funcionalista da ciência moderna. Desseempenho surgirá uma capacidade nova de inquirição e indignação,capaz de fundamentar teorias e práticas novas, umas e outras incon-formistas, desestabilizadoras e mesmo rebeldes. O que está em jogo éa criação de uma previsão ativa baseada na riqueza da diversidade não-canônica do mundo e de um grau de espontaneidade baseado narecusa a deduzir o potencial do factual.Dessa forma,os poderes cons-tituídos deixam de ser destino, podendo ser realisticamente confron-tados com os poderes constituintes. O que importa, pois, é desfami-liarizar a tradição canônica das monoculturas do saber sem parar aí,como se essa desfamiliarização fosse a única familiaridade possível.

A ecologia de saberes é uma epistemologia desestabilizadora namedida em que se empenha numa crítica radical da política do possí-vel, sem ceder a uma política impossível. Central a uma ecologia desaberes não é a distinção entre estrutura e agência, mas a distinçãoentre ação conformista e aquilo que denomino “ação-com-clina-men”65.A ação conformista é uma prática rotineira,reprodutiva e repe-titiva que reduz o realismo àquilo que existe e apenas porque existe.Para a minha noção de ação-com-clinamen tomo de Epicuro e Lucrécioo conceito de clinamen,entendido como o quiddam inexplicável que per-turba a relação entre causa e efeito, ou seja, como a capacidade de des-vio que Epicuro atribuiu aos átomos de Demócrito:o clinamen é aquiloque faz com que os átomos deixem de parecer inertes e revelem umpoder de inclinação,de movimento espontâneo66.Ao contrário do que

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[67] Cf.o ensaio introdutório de Fre-deric Manning em Epicurus, op. cit.,pp. xxxiv.

se dá na ação revolucionária, a criatividade da ação-com-clinamen nãoassenta numa ruptura dramática,mas num ligeiro desvio cujos efeitoscumulativos promovem complexas e criativas combinações entreindivíduos e grupos sociais, assim como ocorre entre os átomos67. Oclinamen não recusa o passado; pelo contrário, assume-o e redime-opelo modo como dele se desvia.Seu potencial para o pensamento pós-abissal decorre de sua capacidade de atravessar as linhas abissais.

A ocorrência de ação-com-clinamen é em si mesma inexplicável. Opapel de uma ecologia de saberes a esse respeito será somente o de iden-tificar as condições que maximizam a probabilidade de uma tal ocorrên-cia e definir o horizonte de possibilidades em que o desvio virá a “ope-rar”. A ecologia de saberes é ao mesmo tempo constituída por sujeitosdesestabilizadores — individuais ou coletivos — e constitutiva deles.Asubjetividade capaz da ecologia de saberes é uma subjetividade especial-mente dotada de capacidade,energia e vontade para agir com clinamen.Aprópria construção social de uma tal subjetividade necessariamenteimplica recorrer a formas excêntricas ou marginais de sociabilidade ousubjetividade dentro ou fora da modernidade ocidental, formas que serecusaram a ser definidas de acordo com os critérios abissais.

CONCLUSÃO

A construção epistemológica de uma ecologia de saberes não étarefa fácil.A título de conclusão,proponho um programa de pesquisano qual podemos identificar três conjuntos principais de questões.

O primeiro conjunto se refere à identificação de saberes e levantauma série de questões que têm sido ignoradas pelas epistemologias doNorte global.A partir de qual perspectiva é possível identificar diferen-tes conhecimentos? Como se pode distinguir o conhecimento cientí-fico do não-científico? Como distinguir entre os vários conhecimentosnão-científicos? Como se distingue o conhecimento não-ocidental doocidental? Se existem vários conhecimentos ocidentais e váriosconhecimentos não-ocidentais, como distingui-los entre si? Qual aconfiguração dos conhecimentos que agregam tanto componentesocidentais como não-ocidentais?

O segundo conjunto levanta questões referentes aos procedimen-tos que permitem relacionar os diferentes saberes entre si. Como dis-tinguir incomensurabilidade, contradição, incompatibilidade e com-plementaridade? De onde provém a vontade de traduzir? Quem são ostradutores? Como escolher os parceiros e tópicos de tradução? Comoformar decisões partilhadas e distingui-las das impostas? Como asse-gurar que a tradução intercultural não se transforme numa versãorenovada do pensamento abissal, numa versão “suavizada” de impe-rialismo e colonialismo?

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O terceiro questionamento diz respeito à natureza e à avaliação dasintervenções no mundo real possibilitadas pelos saberes. Como sepode traduzir tal perspectiva em práticas de conhecimento? Na buscade alternativas à dominação e à opressão, como distinguir entre alter-nativas ao sistema de opressão e dominação e alternativas dentro dosistema? Mais especificamente, como distinguir alternativas ao capi-talismo de alternativas dentro do capitalismo?

Em suma, como combater as linhas abissais usando instrumen-tos conceituais e políticos que as não reproduzam? E por fim umaquestão com especial interesse para educadores:qual seria o impactode uma concepção de conhecimento pós-abissal (como uma ecologiade saberes) sobre as instituições educativas? Nenhuma dessas per-guntas tem respostas definitivas, mas a tentativa de dar-lhes respos-tas — decerto um esforço coletivo e civilizacional — provavelmente éa única forma de confrontar a nova e mais insidiosa versão do pensa-mento abissal tal como identificada neste ensaio: a constante ascen-são do paradigma da apropriação/violência no interior do paradigmada regulação/emancipação.

É próprio da natureza da ecologia de saberes constituir-semediante perguntas constantes e respostas incompletas.Aí reside suacaracterística de conhecimento prudente. A ecologia de saberes noscapacita a uma visão mais abrangente tanto daquilo que conhecemoscomo daquilo que desconhecemos, e também nos previne de queaquilo que não sabemos é ignorância nossa e não ignorância em geral.

A vigilância epistemológica requerida pela ecologia de saberes trans-forma o pensamento pós-abissal num profundo exercício de auto-refle-xividade.Requer que os pensadores e atores pós-abissais se vejam numcontexto semelhante àquele em que Santo Agostinho se encontrava aoescrever suas Confissões, o qual expressou eloqüentemente desta forma:“Converti-me numa questão para mim”. A diferença é que o tópico dei-xou de ser a confissão dos erros passados para ser a participação solidá-ria na construção de um futuro pessoal e coletivo,sem nunca ter a certezade não repetir os erros cometidos no passado.

Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universi-

dade de Coimbra (Portugal) e da Universidade de Warwick (Inglaterra). É autor, entre outros livros,

de A gramática do tempo: para uma nova cultura política (Cortez, 2006) e Para uma revolução democrática da

justiça (Cortez, 2007).

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Recebido para publicação em 14 de agosto de 2007.

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