Para Além Da Palavra

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Para além da palavra Olavo de Carvalho O Globo, 5 de novembro de 2004 O brasileiro rico é hoje um sujeito que explica a sociedade pela luta de classes, odeia os EUA, jura que a China é o futuro da humanidade, vota nos candidatos do Foro de São Paulo, contribui para o MST e sonha em ser convidado para ir a Cuba numa comitiva presidencial -- mas, se lhe dizemos que há em tudo isso algo de comunista, lança-nos um olhar de desprezo desde o alto da sua infinita superioridade. Às vezes tem um arroubo de piedade e nos explica paternalmente que a Guerra Fria acabou, que um brilhante futuro capitalista resultará das invasões de terras, do controle oficial sobre os meios de comunicação, do Fórum Social Mundial e da doutrinação anticapitalista da juventude nas escolas. Se lhe perguntamos como se operará essa mágica, responde que somos fanáticos de direita, e vai para casa com a alma tranqüila de quem sabe tudo. Tão profunda é a impregnação dos chavões comunistas na mente das nossas classes altas, que elas já não os percebem como tais e os entendem como opiniões equilibradas, até um tanto conservadoras. E não encarariam com maus olhos a idéia de proibir toda contestação. Estão longe de imaginar quanto os comunistas as desprezam por deixar-se levar assim tão docilmente para a lata de lixo da História. *** O novo livro de Paulo Mercadante terá decerto o mesmo destino do anterior. A Coerência das

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Olavo de Carvalho

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Para alm da palavraOlavo de CarvalhoO Globo, 5 de novembro de 2004

O brasileiro rico hoje um sujeito que explica a sociedade pela luta de classes, odeia os EUA, jura que a China o futuro da humanidade, vota nos candidatos do Foro de So Paulo, contribui para o MST e sonha em ser convidado para ir a Cuba numa comitiva presidencial -- mas, se lhe dizemos que h em tudo isso algo de comunista, lana-nos um olhar de desprezo desde o alto da sua infinita superioridade. s vezes tem um arroubo de piedade e nos explica paternalmente que a Guerra Fria acabou, que um brilhante futuro capitalista resultar das invases de terras, do controle oficial sobre os meios de comunicao, do Frum Social Mundial e da doutrinao anticapitalista da juventude nas escolas. Se lhe perguntamos como se operar essa mgica, responde que somos fanticos de direita, e vai para casa com a alma tranqila de quem sabe tudo.

To profunda a impregnao dos chaves comunistas na mente das nossas classes altas, que elas j no os percebem como tais e os entendem como opinies equilibradas, at um tanto conservadoras. E no encarariam com maus olhos a idia de proibir toda contestao. Esto longe de imaginar quanto os comunistas as desprezam por deixar-se levar assim to docilmente para a lata de lixo da Histria.

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O novo livro de Paulo Mercadante ter decerto o mesmo destino do anterior. A Coerncia das Incertezas ( Realizaes, 2003) no mereceu da nossa grande mdia a ateno de uma notinha, ainda que logo depois de lanado fosse objeto de um congresso acadmico em Portugal. Mas como esperar que algum no nosso jornalismo cultural estivesse habilitado a entender um livro que passa do gnosticismo fsica quntica, dos simbolismos templrios filosofia de Eric Voegelin?

Das Casernas Redao (UniverCidade-Topbooks, 2004) no exige tanta cabea, mas rejeitado por outro motivo. Conta a histria de geraes de brasileiros que tinham honra e coragem, duas coisas que hoje em dia ofendem a delicada sensibilidade de muitos leitores. Para estes, no h virtude maior do que a covardia ilusoriamente oportunista, a acomodao aos estados de coisas mais aviltantes na esperana louca de lucrar com a prpria degradao. Chamam maturidade e realismo a essa tica de trombadinhas, sem reparar que trombadinhas, em geral, morrem antes de amadurecer.

Perto disso, os personagens de Das Casernas Redao tornaram-se esquisitos e impensveis como ETs. Como entender hoje um Siqueira Campos, um Juarez Tvora, um Irineu Marinho, um Juracy Magalhes, um Cordeiro de Farias? No tinham uma ideologia, um sistema, uma frmula. Tinham um vago ideal sem traduo poltica concreta. Tinham sentimentos morais, e em nome deles jogavam pela janela interesses, cargos, comodidades, a vida mesma.

Esses sentimentos saram da moda, tornaram-se objeto de chacota, se no de escndalo. O que possa restar deles, mesmo entre os homens de farda, a cultura dominante trata de eliminar o mais rpido possvel. O que se espera de um militar, hoje, que seja um pequeno burocrata cabisbaixo e intimidado, colocando as veleidades do partido governante acima do Estado, da ptria, do prprio Deus. Seu mais alto dever moral espalhar mentiras contra as Foras Armadas em troca de quinze minutos de aplauso do dos bem-pensantes. Os heris militares dos novos tempos so Srgio Macaco e o Cabo Firmino.

Paulo Mercadante interrompe sua narrativa na era Geisel, marcada pela dissoluo do ideal tenentista. Faz bem. No vale a pena contar os captulos seguintes. Mas, se algum quiser escrev-los, tenho uma sugesto de epgrafe. de Antonio Machado:

Cun dificil escuando todo baja,no bajar tambin.***

Contra George W. Bush armou-se a maior campanha mundial de difamao que j se viu. Custou oceanos de dinheiro. S a campanha de Kerry gastou cinco vezes mais que a do adversrio. E quantos brasileiros no acreditam piamente que tudo isso foi uma convergncia espontnea de idealismos sublimes, uma revolta dos pobres e oprimidos contra o poder dos tubares imperialistas? Desisto de explicar o que se passa na cabea dessa gente. A inconscincia no pode ser expressa em palavras.