PALAFITAS, PARENTESCO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL NA … Do Egito...2 ele as lembranças e histórias de...

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PALAFITAS, PARENTESCO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL NA VIDA COTIDIANA DOS MORADORES DE JENIPAPO. Adriano do Egito Vieira* 1 Eneida Correa de Assis* 2 Este texto é dedicado a Antropóloga Eneida Correa Assis, que na disciplina Organização Social e Parentes come incentivou a escrever sobre o lugar que deu origem a minha família. RESUMO A Vila de Jenipapo, objeto de estudo deste trabalho,pertence ao município de Santa Cruz do Arari, no Arquipélago do Marajó, Estado do Pará. Neste estudo, apresento a organização familiar e social da Vila de Jenipapo que se deu através da chegada de duas famílias na região: a Gemaque e a Pamplona. A família Gemaque se estruturou no povoado de Jenipapo e deu início aos primeiros comércios através da pesca artesanal. A família Pamplona se dedicou à criação de gado e passou a controlar a vida política local.Falo ainda da arquitetura e construção das casas de madeiras em palafitas, com estilos variados, fachadas decoradas e lambrequins, cada qual com características peculiares, que as diferenciam umas das outras, criando uma identidade própria para a moradia, permitindo diferenciá-la das demais. Palavras-chave: Cotidiano, Marajó, Organização social, Arquitetura. APRESENTAÇÃO O arquipélago do Marajó chama atenção pela diversidade geográfica presente em suas ilhas, nas quais o viajante se depara com praias encantadoras, campos naturais, lagos, rios que entrecortam os terrenos mais altos contribuindo para a construção de uma paisagem urbana na qual as ruas de madeira são características. A culinária traduz essa diversidade de ambientes na qual o peixe, como prato principal de seus habitantes, espalha seu perfume pelo ambiente. Ali, o vinho de açaí complementa o almoço, acolá o leite e o queijo de búfala estão presentes no café da manhã. Lembrando Lévi-Strauss, os alimentos e seu preparo, a cozinha, são linguagens da vida social. Os encantos deste lugar se intensificam, ainda mais, pela alegria e hospitalidade de seus moradores que acolhem o visitante e fazem questão de relatar a 1 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC/SP, Graduado em Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia pela UFPA. Desenvolve pesquisas com Povos Tradicionais na região do Arari, Ilha de Marajó. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará

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PALAFITAS, PARENTESCO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL NA VIDA

COTIDIANA DOS MORADORES DE JENIPAPO.

Adriano do Egito Vieira*1

Eneida Correa de Assis*2

Este texto é dedicado a Antropóloga Eneida Correa Assis, que na

disciplina Organização Social e Parentes come incentivou a escrever

sobre o lugar que deu origem a minha família.

RESUMO

A Vila de Jenipapo, objeto de estudo deste trabalho,pertence ao município de Santa Cruz do

Arari, no Arquipélago do Marajó, Estado do Pará. Neste estudo, apresento a organização

familiar e social da Vila de Jenipapo que se deu através da chegada de duas famílias na

região: a Gemaque e a Pamplona. A família Gemaque se estruturou no povoado de Jenipapo e

deu início aos primeiros comércios através da pesca artesanal. A família Pamplona se dedicou

à criação de gado e passou a controlar a vida política local.Falo ainda da arquitetura e

construção das casas de madeiras em palafitas, com estilos variados, fachadas decoradas e

lambrequins, cada qual com características peculiares, que as diferenciam umas das outras,

criando uma identidade própria para a moradia, permitindo diferenciá-la das demais.

Palavras-chave: Cotidiano, Marajó, Organização social, Arquitetura.

APRESENTAÇÃO

O arquipélago do Marajó chama atenção pela diversidade geográfica presente em

suas ilhas, nas quais o viajante se depara com praias encantadoras, campos naturais, lagos,

rios que entrecortam os terrenos mais altos contribuindo para a construção de uma paisagem

urbana na qual as ruas de madeira são características. A culinária traduz essa diversidade de

ambientes na qual o peixe, como prato principal de seus habitantes, espalha seu perfume pelo

ambiente. Ali, o vinho de açaí complementa o almoço, acolá o leite e o queijo de búfala estão

presentes no café da manhã. Lembrando Lévi-Strauss, os alimentos e seu preparo, a cozinha,

são linguagens da vida social. Os encantos deste lugar se intensificam, ainda mais, pela

alegria e hospitalidade de seus moradores que acolhem o visitante e fazem questão de relatar a

1 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC/SP, Graduado em Ciências

Sociais, com ênfase em Antropologia pela UFPA. Desenvolve pesquisas com Povos Tradicionais na

região do Arari, Ilha de Marajó. 2Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará

2

ele as lembranças e histórias de seus familiares além das lendas do lugar. É esse Marajó, dos

campos e lagos descrito no romance Chove nos campos de cachoeira, de Dalcídio Jurandir,

e no livro Marajó: a ditadura das águas, no qual o padre Giovanni Gallo relata suas

memórias. E é este, ainda, o Marajó de tantos homens e mulheres que escreveram suas

histórias nesse lugar todo especial no Estado do Pará. É nesse arquipélago que fica localizada

uma vila que tem como característica as casas construídas sobre palafitas, pintadas com cores

vivas e adornadas por lambrequins e que tem suas ruas construídas por tábuas para que, no

período das cheias, seus moradores possam caminhar sobre as águas que inundam as terras

baixas. Essa é a Vila de Jenipapo, pertencente ao município de Santa Cruz do Arari, objeto de

estudo deste trabalho.

A Vila de Jenipapo não está nos roteiros turísticos do arquipélago do Marajó. Quem

conhece a região, sabe que a vila só fica movimentada em alguns momentos do ano: no

Festival do Tamuatá, que acontece no final do mês de julho e marca o início da safra do peixe;

e no Círio de Nossa Senhora de Nazaré, padroeira do município, que ocorre no segundo

domingo de novembro. Nas duas festas, os moradores que saíram da vila para morar em

outros lugares retornam para a casa de seus familiares ou amigos para participarem desses

festejos. Poucos são os turistas que se aventuram por lá, por ser um lugar desconhecido.

Diante deste quadro, meu objetivo neste artigo é fazer uma pequena descrição do

cotidiano da Vila de Jenipapo, aponto a localização da Vila de Jenipapo no arquipélago

marajoara e sua importância para a região do Arari, às margens do lago e do rio Arari, o maior

e mais produtivo polo pesqueiro do Marajó. Exponho, ainda, um breve histórico da formação

do município de Santa Cruz e do povoado de Jenipapo, além de aspectos socioculturais.

Apresento a organização social da Vila de Jenipapo, que se deu através da chegada

de duas famílias na região: a família Gemaque, que se estruturou no povoado de Jenipapo e

deu início aos primeiros comércios através da pesca artesanal; e a família Pamplona, que se

dedicou à criação de gado e passou a controlar a vida política local. Assim, o parentesco passa

a ser importantíssimo na vila, seja na relação de compra e venda, seja na construção de novas

casas, pois os moradores mais antigos se dizem “herdeiros” daquelas terras.

Falo ainda da arquitetura, à construção das casas nas terras baixas, às técnicas que

enobrecem a matéria prima da qual são feitas, as madeiras nobres e estilo variado com

fachadas decoradas com lambrequins, favorecendo características peculiares que as

diferenciam umas das outras, como se o proprietário criasse uma identidade própria para a

moradia, permitindo diferenciá-la das demais. As cores, adornos e varandas das casas

iluminadas pelo sol e em contraste com o verde da paisagem criam uma imagem inesquecível

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para o visitante, principalmente no período da cheia, quando as casas são iluminadas pelo rio

e têm sua imagem refletida na água.

A VILA DE JENIPAPO

O processo histórico de ocupação da Vila de Jenipapo pelos portugueses teve início

em 1700 com a formação das fazendas de gado e das missões jesuítas que detinham as

maiores propriedades de terras da época. Conforme afirmação de Souza Júnior (2012, p. 11),

“[os jesuítas] só no Rio Arari possuíam quatro fazendas com 132 mil cabeças de gado e 1450

cavalos”. Esse domínio se estendeu até 1904, segundo dados históricos do catálogo das

sesmarias do autor Arthur Vianna. Segundo ele, o Imperador D. Pedro II, já em 1868, doou

sesmarias a 21 famílias com o objetivo de iniciar o processo de ocupação da região. Uma

dessas sesmarias é hoje o município de Santa Cruz do Arari, que foi uma antiga fazenda de

gado e em 1956 passou a ser considerada vila do município de Ponta de Pedras. Em 08 de

abril 1962, com a Lei Estadual nº 2.460, publicada no Diário Oficial nº 19.759, o vilarejo foi

emancipado. Hoje, o município tem uma população de 8.155 habitantes, em uma área de

1.075 km2, no bioma Amazônia, segundo os dados do IBGE em 2010. Santa Cruz fica

localizada em um dos maiores e mais importantes lagos da região com cerca de 1900km de

área e 80km de extensão, o lago Arari.

A Vila de Jenipapo é distrito do município de Santa Cruz do Arari. Caracteriza-se

por ser uma comunidade lacustre construída sobre palafitas por causa dos movimentos das

águas do Rio Arari. Como descreve Miranda Neto, em seu livro Marajó: desafios da

Amazônia (2005), “tem o rio Arari: rio bonito, sinuoso, cheio de meandros [...] em suas

margens, encontram-se fazendas de gado e colônias de pescadores. Sua área considerável não

pode ser precisa, pois varia com a época do ano”. Essa é algumas das características das

populações do arquipélago do Marajó que dependem dos rios e lagos para viverem, pois na

maioria das vezes são os únicos meios de comunicação e transportes entre as cidade e vilas. O

povoado de Jenipapo, município de Santa Cruz do Arari, surgiu como espaços de abrigo de

pequenos criadores de gado que perderam tudo pelas constantes inundações. Os grandes

proprietários também perderam suas propriedades pela falta de mão de obra, apesar de

incorporarem pequenas propriedades às suas terras. Dessa forma, a vila é constituída por

moradores que abandonaram a pecuária.

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Imagem 1. Fonte: Ibama/Siscom 2006 e Prodes Digital 2009

Como podemos observar no mapa da região, a Vila de Jenipapo fica localizada

geograficamente às margens do lago Arari, como afirma Almeida “justamente no tênue

interstício ou linha imaginária de demarcação que separa a diminuta região de incidência dos

pequenos criadores daquela dos grandes imóveis rurais que a circulam e envolvem” (ano 2006

p. 20). Portanto, o povoado de Jenipapo ergue-se fora dos domínios das fazendas de gados e

se desenvolve economicamente desde o século passado com a pesca artesanal incentivada por

interesses dos portugueses, pois que essa atividade abastecia a capital. Como afirma a

antropóloga Lourdes Gonçalves Furtado:

Nos séculos XVII e XVIII, no intuito de assegurar a preservação durável dos

recursos halieuticos, o governo colonial na Amazônia criou os pesqueiros

Real (FURTADO, 1981) de onde saíram os recursos financeiros que a

fazenda Real pagava à tropa, os bispos católicos em missão e os serviços

públicos. Estes Pesqueiros ou Zonas de Pesca Reais, encontravam-se na ilha

do Marajó e no litoral do nordeste do Pará e Amapá, eram geridos pela

Fazenda Real, um tipo de secretaria de economia para administrar a

exploração e o controle dos recursos. Índios e caboclos locais participavam

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efetivamente das pescarias fundadas em seus conhecimentos e habilidades

em navegação e artes de pescar. A exploração destas Zonas de pesca Reais

asseguravam fonte de dinheiro para o orçamento oficial e o abastecimento da

oficialidade. (p. 316)

A Vila de Jenipapo faz parte da microrregião do Arari no Arquipélago Marajoara.

Sua principal atividade econômica é a pesca artesanal que “se caracteriza pela simplicidade da

tecnologia e pelo baixo custo da produção – formados por referências de parentesco, sem

vinculo empregatício” (MALDONADO, 1986, p. 15). Segundo FURTADO (2011) em seu

artigo “Bases para uma gestão durável das pescarias Amazônicas: O caso da pesca tradicional

na Amazônia, a partir de uma visão antropológica”, descreve sobre os diversos domínios

aquáticos da Amazônia e suas particularidades pesqueiras, sejam elas marítimas, fluviais ou

lacustres, cada uma com técnicas e instrumentos próprios e diferentes entre si. Mas as

pescarias também possuem semelhanças, na organização social, onde podemos perceber a

predominância da mão de obra familiar. “Esse tipo de pescador tem na pesca a sua principal

fonte de renda, e a produção volta-se para o mercado, sem perder, contudo o seu caráter

alternativo, podendo destinar tanto ao consumo doméstico como a comercialização”

(MALDONADO, 1986, p. 15).

O ato de produzir seus próprios instrumentos de trabalho, como embarcações, anzóis,

linhas e redes, são bases das relações sociais e culturais da tradição do homem ribeirinho tanto

no contato com a natureza, quanto no ato de narrar suas histórias e transmitir suas tradições

para as futuras gerações, ou ainda, no ato de ensinar as técnicas de trabalho, nesse caso a

pesca artesanal, e também no modo de se organizar como comunidade. Nessas relações de

ajuda comunitária e familiar, o pescador também desenvolve técnicas e passa a conhecer

melhor e dominar o meio em que vive.

No que diz respeito à estrutura administrativa da Vila de Jenipapo, o primeiro

aspecto que me chamou a atenção no período das visitas de campo foi a estrutura da educação

escolar. Na vila, o sistema educacional é composto por uma creche, escolas de educação

básica que funcionam por módulos e duas escolas de ensino médio que funcionam na sede do

município. Em Santa Cruz não há educação de ensino superior e quando os jovens terminam

o ensino básico não têm como ingressar em uma universidade, a não ser que se mudem para

Ponta de Pedras, localizada a seis horas de barco da Vila de Jenipapo, ou para Belém.

Segundo os moradores, para um jovem poder estudar teria que ir para uma destas cidades e,

conforme a situação financeira dependeria da disponibilidade de algum parente ou amigo da

família para acolhê-lo em sua casa. Além do ensino formal, a Vila tem um núcleo da Escola

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de Música do município com aulas de cantos e instrumentos que funcionam como espaço de

educação, de lazer e sociabilidade dos filhos dos pescadores da Vila de Jenipapo.

Outro aspecto que observei foi em relação à saúde. Há apenas um posto de saúde

funcionando de segunda a sexta, nos horários de 08h às 12h e de 14h às 18h. O posto foi

construído pelo padre Giovanni Gallo, que contou com a ajuda financeira de amigos italianos.

O posto de saúde funciona de forma precária;não tem médicos, somente enfermeiras que

tratam apenas de procedimentos relacionados à sua profissão. Quando uma pessoa adoece,

tem que ir para sede do município, Santa Cruz, ou Cachoeira do Arari, município vizinho que

dispõe de médicos e hospital com atendimento 24 horas. Outra opção é fazer uma longa

viagem de barco até Belém, e nesse meio tempo entre a partida e o destino final “só resta

rezar a Deus para que dê tudo certo e que a pessoa consiga atendimento a tempo”, conforme o

testemunho de um dos moradores da vila.

A distribuição de água potável ocorre por meio de uma caixa d’água que funciona a

óleo diesel, das 05h às 21h. Segundo os moradores, isso já é uma vitória, visto que há pouco

tempo as casas não tinham água encanada e era necessário buscar água no rio todos os dias

para tomar banho, preparar os alimentos e para beber. Isso provocava um índice alto de

doenças pela falta de tratamento da água. . Ainda em relação ao saneamento básico, não há

redes de esgotos, falta que ocorre na maioria dos municípios brasileiros, e os dejetos são

despejados diretamente nas águas do lago Arari, assim como o lixo, que quando não é lançado

no rio é queimado.

No contexto religioso, a vila tem igrejas cristãs como a Assembleia de Deus, a

Quadrangular, a Deus é Amor, a Igreja de São Pedro Pescador. A igreja católica se destaca

mais por ser a do padroeiro da vila e da maioria dos pescadores. As festividades do Santo

ocorrem no mês de setembro, período em que tem início a pesca. Essa festa já foi muito

grande, mas, hoje, pela proibição da venda de bebidas alcoólicas, por ordem dos padres

jesuítas, perdeu um pouco de sua importância.

O acesso à Vila de Jenipapo é feito pelo barco “Presidente Lula”, que pertence à

prefeitura de Santa Cruz do Arari. Tem capacidade para cem passageiros e o percurso tem

duração aproximada de oito horas no inverno e, no verão, chega a até 24 horas, por conta dos

bancos de areia. O barco parte do porto Brilhante, localizado na parte antiga de Belém, às dez

horas da manhã e, por não ter assentos, os viajantes precisam levar redes para se acomodarem.

Além disso, a embarcação também não fornece refeições.

Durante uma das viagens que fiz para coletar material para minha pesquisa, foi

possível observar vários encontros entre parentes e amigos que não se viam há muito tempo.

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Esses encontros se devem, talvez, pela ausência de assentos no barco, o que permite a maior

circulação entre as pessoas e propicia esses momentos. Além disso, por serem moradores de

uma vila pequena, é característico o fato de todos se conhecerem e terem algum tipo de

parentesco. Foi-nos possível constatar este fato pelas conversas entre os viajantes, que tinham

como tema as histórias do passado: festas e lembranças de pessoas já falecidas. Uma

característica intrigante é que os diálogos entre os desconhecidos eram iniciados com a

identificação mútua a partir dos sobrenomes.Caso o sobrenome fosse o mesmo, passavam a se

tratar por “parente” ou “primo”. Essa abordagem também aconteceu comigo: o fato de meus

pais e avós serem naturais da Vila de Jenipapo facilitou o meu contato com os ocupantes do

barco que vinham me dar boas vindas e listavam a minha genealogia desde meu bisavô até

meus pais. O assunto atual abordado pelos ocupantes do barco são questões políticas e

econômicas da cidade de Santa Cruz do Arari e do Jenipapo. Porém, a temática mais

constante é a violência, que está aumentando muito no município por causa do consumo de

drogas.

Durante as viagens é possível observar dois momentos de solidariedade e

sociabilidade entre os ocupantes da embarcação: o primeiro nos períodos das refeições em que

as pessoas dividiam os alimentos entre si; e o segundo, no momento em que uns deram

auxílio aos outros no ato de atar as redes nos ferros da embarcação.

AQUI NO JENIPAPO, MEU FILHO, “TODO MUNDO É PARENTE”

Além da beleza dos campos e dos rios, o que faz dessa vila um espaço agradável é a

hospitalidade dos moradores. No meu caso o fato de meus pais terem as origens no local

propiciou a facilidade para obter informações. Além de ser bem acolhido, fui recebido como

membro da família e em cada casa me era oferecida uma xícara de café e outras formas de

hospitalidade que se costuma dar a um parente. Tive, ainda, a oportunidade de conhecer

primos; afilhados de algum parente próximo. Isso expressa não só um parentesco por

consanguinidade, mas de caráter socialmente construído e estabelecido como nos lembra

Auge (1975): “no sentido lato, família, ao contrário de grupos domésticos, não implica

necessariamente a coabitação; continua a existir mesmo que os seus membros residam

separadamente.” (AUGE, 1975, p. 44).

O parentesco é um ponto importantíssimo na vida dos moradores da vila seja na

relação de compra e venda, seja na construção de novas casas, pois os moradores mais antigos

se dizem herdeiros daquela terra. Segundo o relato de uma das moradoras mais antigas do

Jenipapo, houve um tempo em que pessoas vindas de muitos lugares do arquipélago

chegavam à vila e iam construindo casas e abrindo comércio, estabelecendo, assim, uma nova

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ordem social no lugar. Na visão dessa narradora, isso é errado, pois essas terras pertencem às

famílias dos moradores mais antigos, por estes serem os filhos da terra; as histórias de suas

vidas estarem enraizadas ali, na Vila de Jenipapo. Por isso, eles têm mais direito àquela terra

do que os forasteiros que lá se estabeleceram. De acordo com Elias (2006 apud leitão 2000)

as pessoas que pertencem a um círculo de famílias antigas são providas de

um código comum por seus vínculos afetivos específicos: uma certa união

das sensibilidades subjaz a todas as suas diferenças. Neste aspecto, elas

sabem onde se situar em relação umas às outras e o que esperar umas das

outras, e o sabem instintivamente melhor, como se costuma dizer, do que

onde se situar em relação aos outsiders e que esperar deles. Ademais, numa

rede de velhas famílias as pessoas geralmente sabem quem são em termos

sociais. Em última instância, é isso que significa o termo ‘velhas’ quando

referido as famílias; significa famílias conhecidas em sua localidade e que se

conhecem há várias gerações; significa que quem pertence a uma família

antiga não apenas tem pais, avós e bisavós são conhecidos em sua

comunidade, em seu meio social, e são geralmente conhecidos como pessoas

de bem, que aderem ao código social aceito deste meio (LEITÃO . apud

ELIAS, 2000, p. 171).

Nesse sentido, a Vila de Jenipapo, segundo observei, é dividida entre famílias que

estão há mais tempo e mantêm o controle dos recursos básicos, e as famílias que chegaram

depois. Podemos, assim, nesses aspectos, fazer uma comparação com o estudo feito pela

antropóloga Wilma Leitão sobre a ilha de Paquetá (2003), quando a autora relata a vinda de

nordestinos para a região o que, de acordo com ela, modificou o cotidiano dos moradores: “a

presença de numerosas famílias com hábitos, costumes e perspectivas com relação a Paquetá

tão diferentes das até então verificadas, instaurou uma nova ordem sociológica na ilha” Na

Vila de Jenipapo a vinda de famílias de outras partes do arquipélago marajoara também

provocou mudanças profundas na economia e na política, pois, até então, as famílias dos

pescadores seguiam uma ordem já estabelecida pelos laços de parentesco e vizinhança.

A vila é dividida em “núcleos”, terminologia que os locais utilizam para identificar

os espaços sociais, visto que na vila não se nomeia os grupos de casas e ruas como bairros.

Essa classificação feita no Jenipapo é de suma importância para a pesquisa etnográfica, pois

descreve no seu espaço a distribuição da pesca. Essa organização espacial na ilha foi se dando

conforme a chegada das primeiras famílias na região do Arari no século XIX, os chamados

contemplados sesmeiros, no caso, os integrantes da família Gemaque, que se instalou no

povoado de Jenipapo e deu início aos primeiros comércios através da pesca artesanal; já a

família Pamplona foi contemplada com a fazenda denominada Santa Cruz, que, por estar às

margens do rio Arari, ficou conhecida como Santa Cruz do Arari. Esta família se dedicou

exclusivamente à criação de gado e também passou a controlar a vida política local.

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Como já foi relatado, a Vila de Jenipapo pertence oficialmente ao município de Santa

Cruz do Arari, mas podemos perceber, na fala dos moradores, uma divisão espacial de

pertencimento: uns se auto identificam como “eu sou do Jenipapo” ou “eu sou filho de Santa

Cruz”, como se houvessem duas cidades no mesmo lugar. Com isso, criou-se uma dualidade

entre a Vila e a sede do município.

Essa rivalidade entre os moradores da Vila de Jenipapo e de Santa Cruz nos remete

aos fatos narrados por Leitão (2003) sobre os moradores de Paquetá, que também tinham essa

divisão espacial de pertencimento, conforme é relatado em sua tese de doutorado, no quarto

capítulo, em que a autora escreve sobre o cotidiano da ilha entre o Campo e a Ponte:

Igualmente atraente para o investigador é o elemento estrutural básico da

organização social que vincula todos os moradores e veranistas de Paquetá.

No âmbito da antropologia local, i.e, a interpretação que o paquetaense faz

do seu lugar, está a dicotomia tradicionalmente observada, que se expressa

na dualidade Campo e Ponte. O visitante de fim de semana, preocupado com

as muitas voltas na ilha, sequer percebe o fenômeno, tão exíguo é o

território. Mas, diante da indubitável participação reconhecida em Paquetá,

há quem tente explicar o que ocorre, citando, por exemplo, que é “como se

fossem dois bairros dentro da ilha”. Esta ideia, no entanto, pode surgir uma

divisão estaque entre dois “setores”, quando, na realidade, o que fundamenta

e organiza todas relações sociais do lugar é mais que isso. A representação

da ilha que tem toda e qualquer pessoa, que tenha um mínimo de vivencia

em Paquetá, configura-se em termos da oposição por contrariedade dos seus

dois lados. (LEITÃO, p. 55 2003).

Esse fenômeno de dualidade e divisão social que ocorre tanto em Paquetá quanto em

Santa Cruz do Arari, permite fazer uma comparação social entre as duas ilhas e seu processo

de ocupação. Em Paquetá, essa divisão, segundo Leitão (2003), “se deu justamente no

momento em que uma linha arbitraria separou a ilha em duas sesmarias; cada uma delas

destinadas a diferentes sesmeiros que, por sua vez eram vinculados a distintas freguesias”

(LEITÃO, 2003, p.142). Em Santa Cruz, D. Pedro II doou as terras onde fica localizada a

sede municipal para Plácido José Pamplona, alferes da infantaria do regimento de Macapá,

que fundou a fazenda de gado, dando inicio à atividade pecuária. Já a Vila de Jenipapo foi se

estruturando em terras alagadas na península do rio Arari, fora dos domínios das fazendas de

gado, por outras famílias de sesmeiros, como a família Gemaque, que desenvolveram a

atividade de pesca artesanal.

Esse processo de ocupação gerou uma dualidade entre os fazendeiros chamados de

“Brancos” e os pescadores que Almeida e Sprandel (2006) descrevem como os descendentes

dos “antigos povoados da ilha do Marajó” [...] “índios desaldeados, que ficaram dispersos a

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parti do confisco pelo poder real das fazendas das ordens religiosas, e escravos fugidos”,

(ALMEIDA; SPRANDEL, 2006, p.32). A origem desses indivíduos que ocuparam esse

espaço acabou estabelecendo uma relação antagônica na história do lugar e na memória dos

moradores.

Descendendo dos índios que cruzaram a ilha em todos os sentidos, que

plasmaram no barro a história [...], o pescador de hoje ainda guarda no sague

o ódio que nheengaíba acumulou desde o instante em que o branco foi

surpreendê-lo na mansidão de suas malocas felizes. O pescador tem a mágoa

do índio e a revolta do africano. (ALMEIDA apud LAGE, 1944, p. 181,).

Mas o conflito maior entre o “povo de Jenipapo” e o “povo de Santa Cruz” se dá pela

disputa do uso das águas do rio e do lago Arari. Os fazendeiros acusam os pescadores de

entrarem em suas terras e roubarem o gado, reclamando para si o controle do rio e criando

tapagens, muitas vezes sem autorização do poder público e fazendo os pescadores se

subordinarem ao seu controle. Esses conflitos são bastante visíveis na fala dos moradores da

região, uma vez que foi idealizada uma intervenção do Estado durante o regime militar: o

remanejamento do povoado para outra região do arquipélago marajoara.

Foi no tempo do Alacid. Ele queria levar o Jenipapo para Santana. Nós não

aceitamos. E não havia condições de localizar o povo e fazer a despesa de

dois anos. La caboclo faz e roça, mas é pequeno e cheio de morador lá

também. E lá é terra de fome, que eu conheço. Caboclo já tá acostumado a

tapar o igarapé e pegar quatro peixe, tomar açaí e ficar satisfeito. Aqui se

come muito. Sei que é terra de fome lá mesmo(informação verbal)3.

Há outros relatos que contam que o governador da época queria apenas remover os

pescadores para a outra margem do rio sem, contudo, consultar o desejo da população local.

Essa proposta causou desconfiança e desconforto na população da vila, pois elessabiam que

os proprietários da terra não permitiriam a ocupação. Pelos relatos de moradores mais antigos,

o acordo do governo com os fazendeiros não deu certo.

Do lado de lá não tem casa. Os donos não consentem. É gente rica e do lado

de cá é gente pobre. A dona não deixa. Para lá a terra é mais alta. Quiseram

levar o Jenipapo para lá, mas não entraram em acordo. Acho que deveria

ficar aqui mesmo. Essas casas novas poderiam fazer lá, mas as antigas deixa

aqui memo. (informação verbal)4.

Em ambos os relatos, podemos perceber a não aceitação do remanejamento do

povoado para outra região, uma vez que suas memórias, costumes e tradição estavam

3 Informação fornecida por um pescador, da Vila na pesquisa feita por ALMEIDA em 2006. 4 Narrativa colida na pesquisa feita por ALMEIDA em 2006.

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enraizados naquele lugar, como sinônimo de pertencimento. Foi às margens do rio Arari que

o morador do Jenipapo teceu sua história seus conflitos e alegrias, criou laços com a natureza

e todo o meio ambiente, essa relação é comum entre as comunidades ribeirinhas. Com afirma

Fraxe (2011):

Os homens anfíbios conseguem não só retirar os meios de sobrevivência

necessários, mesmo que escassos, da terra e da água como também

constroem uma rede de relações sociais de troca e de complementaridade no

“mundo do trabalho”. (FRAXE, 2011, p. 22).

Essas redes de relações sociais de troca e de complementaridade que o povoado do

Jenipapo criou, não só com o rio, mas entre os próprios moradores, nas construir as casas na

fabricação e distribuição dos recursos naturais em um sistema de parceria, demonstra a

sociabilidade da qual Simmel falava: “o sentimento de estar se relacionando com outras

pessoas e estar tendo prazer com esse relacionamento” (SIMMEL, 1983, p. 168). Portanto, o

caboclo tem um pertencimento e um prazer pelo lugar que é bem maior que todo conflito que

há entre as duas partes na ilha.

Os primeiros moradores ocuparam os principais pontos do rio, onde o peixe e os

outros recursos naturais se obtinham com mais facilidade. As famílias que migraram anos

mais tarde já foram ficando com a parte menos favorecida da ilha:

O ritual de permissão funcionava para legitimar a presença dos adversários e

o seu acesso aos recursos básicos. Os chamados herdeiros assumiram, por

meio de consentimento, a responsabilidade pelos recém-chegados,

legitimando-os enquanto vizinhos e membros das equipes de pesca.

(ALMEIDA;SPRANDEL, 2006, p. 39).

Assim, os núcleos mais antigos que formam a Vila de Jenipapo são: Vila Nova, Boca

do Lago, Rua da Matriz. Esses núcleos são considerados população local como os espaços

mais importantes na Vila, que tem como diferencial as casas mais bonitas, com ornamentos

nas fachadas e as pinturas com mais detalhes. Eles são compostos por famílias que moram ali

por mais de cinco gerações: as famílias Gemaque de Albuquerque e a Oliveira. Já os outros

núcleos, Beco do Sapo, Bom Sossego, Beira Mar, São Benedito e o Canto do Rio são

formados por famílias que chegaram à ilha recentemente, ou filhos de antigos moradores que

foram casando-se e constituindo famílias. Suas casas são mais simples e sem adornos.

Com isso, a organização social da Vila de Jenipapo foi se estruturando por núcleos

familiares dos antigos sesmeiros ou pessoas que receberam as propriedades por conta de laços

de parentesco, os chamados herdeiros que, “mediante regras de descendência socialmente

construídas e sacramentadas [...] asseguram historicamente, o direito de moradia e de uso dos

recursos naturais aos que se empenham no exercício da pesca” (ALMEIDA; SPRANDEL,

12

2006).Assim, a divisão dos bens naturais, como o peixe e a água. Os espaços onde eram

construídas as casas eram repassados e divididos entre os familiares: por sucessão em linha

direta ascendente, ou por concessão. No relato do pescador sobre a localização de sua casa

ficou bem clara essa relação de permissão dos espaços da ilha:

Aqui onde eu moro era da tua família eles que deram pra minha família,

pergunta para tua avó, ela sabe dessa historia. Hoje tenho minha casa e meu

motor, tenho três filhos que me ajudam na pesca e nos outros afazeres

(informação verbal).

Para Almeida e Sprandel, os chamados herdeiros constituem o elo que viabiliza o

acesso legítimo às águas e aos campos e outros meios de sobrevivência, num contexto em que

as atividades pecuárias de base familiar encontram-se numa certa transição para a pesca:

[...] aqui tinha uma porção de tiras de terra. Tinha um negócio de parte de

herdeiros, muitos. Uma tira dum, outra tira do outro, outra tira do outro.

Quem chegava pedia ao proprietário para fazer uma casa. Um lugar de casa.

Aí ele dava. Não cobrava, só dava para morar, mesmo. Já depois é que a

prefeitura foi comprando. Comprando uma parte, comprando, comprando,

até que cresceu (informação verbal).

Outro dado que podemos encontrar no estudo feito por Almeida e Sprandel, na

região do Arari é que o povoado de Jenipapo apenas desenvolveu-se na margem direita do

alto Arari, às margens das grandes fazendas de bovinos e bubalinos (fazendas Tuiuiú,

Severino, São Miguel e Diamantina) é que os fazendeiros estão cada vez mais controlando o

rio uma vez que estão diante de uma pecuária que não se modernizou “assim as fazendas

passam a explorar mais intensamente lagos e igarapés.

A ARQUITETURA EM PALAFITAS COM SEUS LAMBREQUINS E SUA

SIMBOLOGIA

Nos dias que vivenciei o cotidiano da vila, observei que as casas têm em comum o

mesmo material de construção, constituído por madeiras nobres, como cedro, pau-amarelo,

acapu ou maçaranduba, muito utilizadas na fabricação das fachadas das casas. Embora não

sejam encontradas na região do Arari, elas são trazidas de outras partes do arquipélago, na

maioria das vezes, de Breves, por embarcações. As casas decoradas com lambrequins têm

adornos e detalhes nos entalhes que se diferenciam umas das outras, como se o proprietário

criasse uma identidade própria para a moradia. Algo que o distingue das demais. O que nos

fez levantar esta hipótese foi a observação do cuidado de cada proprietário nos detalhes dos

desenhos das fachadas como se essa busca de diferenciação das demais fosse resultado de

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uma competição na vila de quem teria a casa mais bonita e adornada, logo, afirmar o status do

morador. As cores, adornos e varandas das casas iluminadas pelo sol, em contraste com o

verde da paisagem, criam uma imagem de “íntima relação, definindo um complexo jogo de

permutas energéticas e sígnicas entre si, engendrando, assim, um sinergismo dinâmico entre

natureza e cultura”

As edificações características do Jenipapo são construídas em madeira e

erguidas sobre longas estacas, que as elevam acima das águas móveis,

crescidas na estação chuvosa. Um dos princípios mais observados nessas

construções determina que as casa sejam colocadas de frente para o

nascente, sendo bem iluminadas pelos raios de sol da manhã. Elas exibem

então suas fachadas com ornamentos em lambrequins às beiras das incertas

do rio Arari, deixando aos que ali navegam a impressão predominante de um

casario que se debruça a pique sobre o espelho das águas turvas.

(ALMEIDA;SPRANDEL, 2006, p. 39).

Dessa maneira, a Vila de Jenipapo se apresenta para aqueles que navegam o rio Arari

com suas casas em palafitas e adornadas com lambrequins, suspensas por, aproximadamente,

três metros acima do solo para ficarem acima das águas na época da cheia do rio. Elas são

construídas pelos mestres da carpintaria, como são conhecidos na região os homens que

constroem as casas. O nome é justo, pois eles sabem como levantar essas construções sem que

as casas corram o risco de serem levadas pela correnteza na época das cheias, além de serem

também eles os criadores dos lambrequins. Esses ornamentos são talhados na madeira com

uma técnica apropriada que reproduz verdadeiros bordados nas madeiras das fachadas das

casas. Essa arquitetura presente na ilha representa uma forma do pescador de se afirma

enquanto sujeito autônomo e produtor da beira diante das “casas-grandes” dos fazendeiros

criadores de gados;

Muitos anos viram correr aquelas águas diante da vila de Jenipapo, num

preguiçoso semicírculo povoado de casas de madeira plantadas em altos

esteios que davam a impressão de pernas-de-pau, pernas que sustentam o

ventre das casas, todas elas contornadas por úteis varandas [...] quase todas

as casas estavam ligadas entre si por esguias pontes de comunicação, como

um passadiço, no verão, com mais de três metros de altura, e no inverno,

como numa embarcação, sobre as águas ( ALMEIDA; SPRANDEL ano

2006, p. 35 apud LUXARDO, 1977, p. 93-94).

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Os lambrequins, além de embelezar as casas, possuem uma simbologia específica.

Conforme a representação talhada na madeira, pode trazer a proteção pretendida pelo

morador. Na vila, encontramos um tipo específico de lambrequins: os desenhos que se

relacionam com a água, lembrando o movimento das águas do rio ou gotas de chuva, ou ainda

com formato de peixes. Com isso, podemos perceber a relação de pertencimento dos

moradores com o meio ambiente, como afirma Mallon (2000)

Um lambrequim pode ter vários formatos, cachos de uvas, flores, animais.

Mas cada forma pode ter um significado diferente conforme a tradição.

Cachos de uvas servem para proteger a casa da miséria e atraem fartura e

muita comida. Flores protegem contra as discórdias, trazendo harmonia e

paz. Animais trazem sorte na pecuária. (MALLON, ano, p.)

Assim, na Vila de Jenipapo, esses ornamentos representam uma hierarquia social e

econômica uma vez que nem todos podem fazer uso dessas técnicas de decoração. Outra

questão é que os lambrequins simbolizam um tempo de muita prosperidade na região e estão

relacionados com a fartura do peixe, que vem diminuindo a cada ano.

Em relação ao uso desse adorno arquitetônico no Brasil, tem início no século XIX e

foi introduzido no país por imigrantes europeus. Até então as casas brasileiras possuíam um

Imagem 18.Casas da Vila Nova. Fonte EGITO, Adriano. Març de 2011.

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só formato e com a chegada desses imigrantes, novas técnicas e formatos de casas foram

aparecendo. Segundo Goulart (2010):

[...] As mudanças sócio-econômicas e tecnológicas ocorridas durante a

segunda metade do século XIX implicaram, no Brasil, em profundas

transformações nos modos de habitar e construir(...). Como consequência

dessas transformações deve ser reconhecido o chalé. Com esse modelo,

pretendia-se adotar as características das residências rurais, construídas em

madeira, de algumas regiões europeias, especialmente a Suíça, o que é,

indiscutivelmente, uma solução de sentido romântico. (...) Alguns telhados e

alpendres eram assim enfeitados com verdadeiras guirlandas, chamadas

lambrequins, feitas de peças de madeira recortada. O ponto mais visado era a

empena voltada para a rua, onde se compunha, geralmente, uma espécie de

frontão, ao qual se associava um óculo central. A composição, apoiada nos

arremates dos beirais, formava um triângulo em cada extremidade, –

ocultando as calhas – e um outro no vértice, junto a cumeeira, arrematada em

geral por um mastro torneado. (GOULART, 2010,P. 155).

Essas mudanças ocorridas na arquitetura brasileira, como vimos, estão presentes na

ilha, pois os moradores também designam suas casas como chalés, fazendo referência ao

modelo de casa europeia característica da Suíça. Como o processo de ocupação desse espaço

foi realizado por imigrantes. Temos, então, um processo no qual através de formas originadas

pela natureza em conformação com as ações do “animal humano”, emergiriam certas

dimensões morfológicas que abarcam pelo menos três níveis: o “funcional”, o “histórico” e

uma dimensão “simbólica”. Portanto, teríamos nestes termos, a cultura aparecendo como um

agente modelador de um determinado meio – “área natural” ou o “ecossistema”–, onde a

“paisagem cultural” resultaria como o produto complexo de tal interação. (LEONEL, 2009. p.

71). Assim, a cultura atua sobre a natureza, modelando-a, não se restringindo, porém, à sua

dimensão física.

As madeiras recortadas, como uma fita de rendas estendidas sobre os caibros

que compõem o beiral das edificações, emolduram as fachadas das casas,

distinguindo-as entre si. Os contornos simetricamente ondulados dos

lambrequins configuram uma paisagem arquitetônica singular, que denota,

não exatamente, o ’recanto miserável das palafitas’ das versões

estigmatizadas daqueles interesses hostis que, de fora, se referem

depreciativamente ao Jenipapo, mas os elementos de cultura material

distintivos de um povoado centenário, de pescadores e de artesãos.

Para SILVEIRA (2009), o trabalho sobre as paisagens está em paralelo às noções de

natureza presentes entre as diversas sociedades, pois toda ação humana em relação ao meio

implica em certas categorias de pensamento compartilhadas pelo grupo étnico. Ou seja,

envolver determinadas visões e sentidos atribuídos aos naturais que são comuns a uma

sociedade em particular, considerando, obviamente, suas complexidade internas (divisões de

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classe, hierarquias, etc.) refletem a dinâmica transformadora das características primitivas,

mediante o modelamento de determinada paisagem a partir do trabalho contínuo de

domesticação da mesma através de ações técnico-culturais sobre o meio.

Nesse contexto, o homem ribeirinho vem modelando e modificando a natureza nas

margens do Rio Arari com suas casas sobre palafitas e escrevendo sua história na paisagem do

lugar ao qual pertence com formas simbólicas de representação de sua identidade. Segundo

Leonel, “as paisagens como fenômenos culturais são dinâmicas e transformam-se com o

passar do tempo” (SILVEIRA, 2009, p.77). Assim, temos a clareza de que o “animal

humano”, através de suas ações, altera o meio social e natural, o que resultaria em uma

“paisagem cultural”.

Além dos lambrequins que ornamentam as varandas das casas e diferenciam uma das

outras, alguns moradores pintam nomes nas fachadas, demonstrando certa hierarquização

social nas edificações. Perguntei para um antigo morador o porquê desses nomes e ele

explicou que quando não tinha telefone fixo e nem celular, o único meio de comunicação era

o rádio que servia para informar o nascimento ou a morte. Então, quando alguém se dirigia até

a estação de rádio e pedia para anunciar alguma ocorrência dizia o nome da casa; por

exemplo, a casa “Nossa Senhora do Bom Remédio”, visto que as casas não são numeradas e

as ruas também não têm nomes. Alguns são de cunho religioso, enquanto outras são batizadas

com o sobrenome da família para poder, assim, marcar o seu espaço na ilha.

Além do espaço externo, que projeta o povoado para fora, é importante falar dos

espaços internos, da importância da casa para o pescador. Segundo Bachelard, “a casa é nosso

canto do mundo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do terno”

(BACHELARD, 1993 p.24). Portanto, os moradores assumem uma relação de pertencimento

com o lugar em que vive. Nesse sentido, cada casa apresenta sua história não só através dos

nomes, das pinturas e das várias formas de lambrequins, mas nos coloca sua cultura, sua

identidade. Para Geertz (1989,p. 15), o homem é um animal amarrado às teias de significado

que ele mesmo teceu. Assim, o povo do Jenipapo tece sua cultura nas construções das casas e

estão entrelaçados por pontes que as interligam.

A divisão das casas na maioria das vezes é bem simples: se a casa for de um pavilhão

ou até mesmo de dois é composta pela sala que nas casas mais humilde não possuem móveis,

se os moradores forem católicos, colocam imagem de santos ao lado de cartaz de políticos; os

quartos, em muitas casas, não têm cama, quando tem é pouco usado porque o homem

ribeirinho dorme nas redes; há ainda guarda-roupa nas casas mais abastadas, e nas mais

humildes não há, elas são colocadas em algum tipo de lugar para pôr as roupas. A cozinha é o

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lugar em que é feito o preparo dos alimentos. Como o peixe é o principal alimento, é comum

encontrar além do fogão tradicional uma espécie de assadeira. Mas é no giral, uma espécie de

varanda que é utilizada para fazer refeições e na secagem do peixe, que podemos também

chamar de pátio que as refeições são feitas, e se chegar uma visita e for convidada a compor a

roda é sinal que o convidado já faz parte da família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo dessa pesquisa sobre a Vila de Jenipapo enfoquei o cotidiano de seus

moradores e seus significados que estão presente em sua organização social e espacial, e em

sua arquitetura. Através de suas narrativas e do contato direto foi possível fazer uma

etnografia das famílias e sua relação com a casa, o rio e os laços de parentesco e vizinhança

na formação de sua cultura e paisagem.

As leituras de obras como Argonautas do Pacífico, de Malinowski (1976), e da tese

da pesquisadora Wilma Leitão sobre a ilha de Paquetá, ajudaram na construção da minha

etnografia, porque através desses estudos pude analisar o contato direto com o objeto

pesquisado e a relação do olhar de dentro e fora. As entrevistas participantes foram de suma

importância na pesquisa antropológica por ter permitido a aproximação do objeto pesquisado.

Nas questões referentes ao parentesco pude perceber a dominação de duas famílias

(Gemaque e Pamplona) na divisão espacial da Vila de Jenipapo e nos âmbitos político e

comercial. Os chamados “herdeiros” dos sesmeiros organizaram a vila em núcleos, de modo

que o controle do rio e do lago Arari ficou com os moradores mais antigos. Essas relações de

poder, representadas através de laços de parentesco do tipo consanguíneo ou por afinidade, ou

ainda por compadrio, está muito presente na organização social e na distribuição dos recursos

naturais nesta vila marajoara.

Em relação à paisagem pude concluir que a vila foi construída respeitando os

movimentos de cheia e vazante do rio, adaptando os moradores a essas mudanças. O rio é

importante no fornecimento do alimento bem como no lazer, e ainda se constitui como

estrada, permitindo o trânsito de pessoas e mercadorias. Talvez isso justifique o fato dos

lambrequins representarem a água, seja no formato de gotas, seja no formato de ondas,

adaptando a prática européia aos símbolos locais. As casas em palafitas de madeira

representam uma hierarquia social no povoado, visto que as casa mais ornamentadas com

lambrequins e pintadas com cores bem coloridas e fortes pertencem aos moradores mais

antigos do Jenipapo. Assim, os moradores representam através das casas sua identidade, seja

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nos nomes das famílias ou seja nas citações bíblicas, mostrando seu lugar de pertencimento na

ilha.

Esta pesquisa buscou levantar algumas questões sobre a Vila de Jenipapo e espero

que possam ser úteis a pesquisadores das diversas áreas em suas investigações sobre este

espaço tão rico do Arquipélago do Marajó. O histórico de ocupação do território e distribuição

do povoado possuem lacunas que precisam ser preenchidas. Seria muito interessante, por

exemplo, aprofundar as pesquisas sobre os lambrequins encontrados na ilha e como esse

modelo de arquitetura chegou na região e, ainda, as relações de parentesco dos habitantes de

Jenipapo.

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