Os trabalhadores da educação e a construção política da profissão docente no Brasil

19
Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR 17 Os trabalhadores da educação e a construção política da profissão docente no Brasil 1 Workers in education and political construction of the teaching profession in Brazil Dalila Andrade Oliveira 2 RESUMO Este artigo analisa a constituição da profissão docente no Brasil, partindo do reconhecimento de que a profissionalização cresce na educação na proporção em que são ampliados os sistemas escolares. Analisando que os estudos sobre a profissão docente advêm de vertentes distintas (peda gógica, humanista e sociológica) e dos desdobramentos dessas concepções e estudos, a autora mostra a dimensão do problema da ambiguidade entre o profissionalismo e a proletarização na constituição da identidade profis sional docente. O trabalho destaca que a profissão docente tem sido posta a pressões e câmbios advindos das novas regulações nos marcos das reformas educacionais dos anos 1990, de sorte que os padrões de organização edu cacional e escolar decorrentes dessas mudanças podem estar constituindo um novo perfil de trabalhador docente e uma nova identidade. O texto conclui analisando os impactos daquelas mudanças na profissionalização do magistério, que podem ser responsáveis pela alteração de duas faces 1 Este artigo foi desenvolvido a partir de conferência proferida no Seminário Internacional sobre Política Educativa y Territorios do IIPE/UNESCO (Instituto Internacional de Planejamento Educacional United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization), realizado em Buenos Aires, nos dias 2 e 3 de outubro de 2008. 2 Professora do Programa de PósGraduação e da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora da Rede Latinoamericana de Estudos Sobre Trabalho Do cente e do Grupo de Trabalho (RedEstrado). Presidente da Associação Nacional de PósGraduação Pesquisa em Educação – ANPEd. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil. Email: [email protected].

description

Este artigo analisa a constituição da profissão docente no Brasil, partindo do reconhecimento de que a profissionalização cresce na educação na proporção em que são ampliados os sistemas escolares. Analisando que os estudos sobre a profissão docente advêm de vertentes distintas (pedagógica, humanista e sociológica) e dos desdobramentos dessas concepções e estudos, a autora mostra a dimensão do problema da ambiguidade entre o profissionalismo e a proletarização na constituição da identidade profissional docente. O trabalho destaca que a profissão docente tem sido posta a pressões e câmbios advindos das novas regulações nos marcos das reformas educacionais dos anos 1990, de sorte que os padrões de organização educacional e escolar decorrentes dessas mudanças podem estar constituindo um novo perfil de trabalhador docente e uma nova identidade. O texto conclui analisando os impactos daquelas mudanças na profissionalização

Transcript of Os trabalhadores da educação e a construção política da profissão docente no Brasil

  • Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR 17

    Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no

    Brasil1

    Workers in education and political construction of the teaching profession in

    Brazil

    Dalila Andrade Oliveira2

    RESUMO

    Este artigo analisa a constituio da profisso docente no Brasil, partindo do reconhecimento de que a profissionalizao cresce na educao na proporo em que so ampliados os sistemas escolares. Analisando que os estudos sobre a profisso docente advm de vertentes distintas (pedaggica, humanista e sociolgica) e dos desdobramentos dessas concepes e estudos, a autora mostra a dimenso do problema da ambiguidade entre o profissionalismo e a proletarizao na constituio da identidade profissional docente. O trabalho destaca que a profisso docente tem sido posta a presses e cmbios advindos das novas regulaes nos marcos das reformas educacionais dos anos 1990, de sorte que os padres de organizao educacional e escolar decorrentes dessas mudanas podem estar constituindo um novo perfil de trabalhador docente e uma nova identidade. O texto conclui analisando os impactos daquelas mudanas na profissionalizao do magistrio, que podem ser responsveis pela alterao de duas faces

    1 Este artigo foi desenvolvido a partir de conferncia proferida no Seminrio Internacional sobre Poltica Educativa y Territorios do IIPE/UNESCO (Instituto Internacional de Planejamento Educacional United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization), realizado em Buenos Aires, nos dias 2 e 3 de outubro de 2008.

    2 Professora do Programa de PsGraduao e da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora da Rede Latinoamericana de Estudos Sobre Trabalho Docente e do Grupo de Trabalho (RedEstrado). Presidente da Associao Nacional de PsGraduao Pesquisa em Educao ANPEd. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CNPq Brasil. Email: [email protected].

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR18

    importantes do trabalho docente: no que concerne ao objeto do trabalho e no que tange organizao do trabalho.Palavras-chave: Trabalho docente; profisso docente; reformas educacionais.

    ABSTRACT

    This paper examines the teaching profession in Brazil, based on the recognition that the growing professionalism in education is connected to the extension of school systems. Analyzing that the studies on the teaching profession come from different aspects (pedagogical, humanistic and sociologic) and from the development of these concepts and studies, the author shows the extent of the ambiguity problem between professionalism and proletarian mode in the constitution of professional identity. The paper highlights that the profession has been submitted to pressure and exchanges that are consequences of new regulations within the framework of the educational reforms of the 1990s, so that patterns of educational organization and school organization may be due to those changes as well as constituting a new profile of teachers, and a new identity. This work concludes by analyzing the impacts of those transformations in the professionalization of teaching, which can be the reason for a variation of two important faces of teaching: in relation to the object of work and with regard to work organization.Keywords: Teacher work; teaching profession, educational reforms.

    Este artigo pretende discutir o movimento de construo da profisso docente presente nos movimentos de organizao dos trabalhadores de Educao no Brasil nas ltimas dcadas. Parte da ideia de que a noo de profissionalizao esteve presente na organizao dos trabalhadores de educao a partir da organizao e expanso dos sistemas escolares. Muitos autores se ocuparam desta discusso em diferentes contextos nacionais3, apresentando algumas semelhanas nas anlises que apresentaram sobre diferentes contextos. De modo geral, observase relativa aceitao de que o magistrio constituise como um corpo de trabalhadores que historicamente tem se orientado rumo profissionalizao. Em suas origens, os sujeitos que se ocupavam do ato de ensinar o faziam por vocao ou sacerdcio. Com o desenvolvimento da sociedade moderna, o ma

    3 Apple (1995); Hargreaves (1998), Nvoa (1991, 1993), Lessard e Tardif (2004), Contreras (2002), Tenti Fanfani (2005, 2007), entre outros.

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR 19

    gistrio passou a constituirse como um ofcio em busca da profissionalizao. Esta uma tese que encontra bastante acolhida na literatura pertinente ao tema.

    Tomando o conceito genrico de profisso como um termo que se refere a atividades especializadas, que possuem um corpo de saberes especfico e acessvel apenas a certo grupo profissional, com cdigos e normas prprias e que se inserem em determinado lugar na diviso social do trabalho, podese indagar at que ponto o magistrio obteve ou obtm condies de se definir como tal. Talvez a profissionalizao, compreendida como o ato de buscar transformar em profissional algo que se faz de maneira amadora, no caso do magistrio, pudesse melhor designar o movimento de organizao e busca de um lugar, no sentido do reconhecimento social e do valor econmico de um determinado grupo profissional que comporta no seu interior distines e complexidades que no lhe permitem identificarse como profisso no seu sentido mais estrito. Assim, a profissionalizao do magistrio pode ser compreendida como um processo de construo histrica que varia com o contexto socioeconmico a que est submetida, mas que, sobretudo, tem definido tipos de formao e especializao, de carreira e remunerao para um determinado grupo social que vem crescendo e consolidandose.

    Compreendese que o desenvolvimento da noo de profissionalizao resultado de uma forma especfica de organizao do Estado, a forma racionalburocrtica de estruturao dos servios pblicos, que traz consigo a instituio de um corpo funcional. Os estudos de Max Weber sobre a burocracia nos trazem importantes elementos para compreender como se estrutura e se mantm em funcionamento uma organizao de carter racional, em que a impessoalidade e a autoridade conferida ao cargo tiveram assuno no Estado moderno, conferindo eficincia e legitimidade ao mesmo e, por estas razes, mantevese predominante por tanto tempo. Os sistemas escolares modernos emergem da organizao deste aparato estatal e se organizam como parte dependente dele. Assim, a primeira grande luta pela profissionalizao do magistrio esbarra no estatuto funcional que, por meio da converso dos professores em servidores pblicos e, portanto, funcionrios do Estado, retiralhe a autonomia e autocontrole sobre seu ofcio. Como afirma Tenti Fanfani (2007), referindose a esse processo, nesse esquema organizacional os docentes ocuparam um status ambguo:

    Por una parte su actividad era definida como una misin cuya dignidad derivaba de la elevada funcin social que se le asignaba a la escuela (la conformacin del ciudadano de la repblica moderna, el transmisin de valores universales que estaban ms all de toda discusin, la construccin de la idea de Patria, etc.). Pero por la otra el maestro era tambin un

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR20

    funcionario con un lugar muy preciso en una estructura jerrquica dominada por un conjunto de regulaciones y normas que definan con precisin sus responsabilidades, tareas e incumbencias. En pocas palabras, el docente era un apstol y al mismo tiempo un funcionario, es decir, alguien a quien se le ha asignado una funcin claramente establecida en los marcos legales, formativos y regulativos que estructuran su actividad. A su vez, el trabajo del maestro era supervisado por una serie de superiores jerrquicos (el vice director, el director de escuela, el supervisor, etc.). Su actividad no slo era regulada, sino tambin supervisada de cerca y en forma continua por una serie de agentes especializados.

    Assim, talvez pudssemos compreender a histria dos trabalhadores da educao como um movimento resultante desta ambiguidade, de luta pela obteno de um status profissional, mas usufruindose da condio de servidores pblicos. Ou, ainda, como a histria de pretensos profissionais que foram se tornando funcionrios pblicos e que passaram a organizarse na defesa de seus interesses, lutando contra alguns obstculos que se interpuseram condio de maior liberdade e autonomia no exerccio do seu trabalho.

    Segundo Rodrigues (2002), o conceito de profisso pode ser aceito como uma ocupao que exerce autoridade e jurisdio exclusiva, simultaneamente, sobre uma rea de atividade e de formao ou conhecimento, tendo convencido o pblico de que os seus servios so os nicos aceitveis. Podese considerar, ento, que a histria de organizao e constituio do magistrio esteve marcada pela luta por constituirse como profisso, mas que esta luta encontrou muitos obstculos ao seu intento, sobretudo pelos corolrios correspondentes a essa condio: autonomia, controle sobre o recrutamento, monoplio, estatuto nico, entre outros. A insistncia na construo dessa noo de profissionalizao resultou em grandes debates acerca do tema nos estudos sobre a constituio do magistrio.

    Podese considerar que os estudos sobre a profisso docente so oriundos basicamente de duas vertentes. Uma primeira poderia ser descrita como aquela que se situa na tradio pedaggica humanista, que centra seu foco na formao docente, compreendida como um processo de constituio do sujeito no seu fazer pedaggico, atribuindo grande nfase aos saberes adquiridos na experincia, prtica pedaggica e aos processos formativos. Essa vertente levada ao extremo acaba por atribuir demasiado peso formao como elemento central da profissionalizao. Nvoa (2000), analisando as tendncias atuais nos estudos sobre profisso docente, identifica a existncia de uma literatura que reduz a profisso docente a um conjunto de competncias e capacidades, realando essencialmente a dimenso tcnica da ao pedaggica.

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR 21

    A segunda vertente pode ser identificada nas anlises sobre a profisso docente trazidas pela perspectiva sociolgica, em que a identidade profissional compreendida na relao com suas atividades laborais, com a insero desses sujeitos na diviso social do trabalho. As profisses constituemse em importante objeto da sociologia desde seu nascedouro. Nas lies de Sociologia de mile Durkheim as corporaes profissionais so consideradas importantes mediaes entre o Estado e os indivduos. A organizao dos grupos profissionais seria vital coeso social e ao equilbrio e harmonia nas relaes entre sociedade poltica e Estado, j que por meio da diviso do trabalho que se realiza a integrao social.

    Na vertente sociolgica destacamse duas distintas abordagens: estudos que se situam nos referenciais trazidos pela sociologia do trabalho, sobretudo, nas relaes de trabalho, com preponderncia na matriz marxista; e outra que se orienta pelas referncias oferecidas pela sociologia das profisses. As teses sobre a proletarizao, a desvalorizao e a desqualificao do trabalho docente foram elaboradas a partir das referncias da primeira orientao e/ou da confluncia entre ambas. A ameaa proletarizao, caracterizada pela perda do controle do trabalhador da educao, em particular do professor, sobre o seu processo de trabalho, contrapunhase profissionalizao como condio de preservao e garantia de um estatuto profissional que levasse em conta a autoregulao, a competncia especfica, rendimentos, licena para atuao, vantagens e benefcios prprios, independncia etc. A discusso acerca da autonomia e do controle sobre o trabalho, nesta abordagem, o ponto essencial.

    As anlises crticas que se produziram nesse contexto, no mbito da educao, tendem a interpretar as relaes de trabalho na escola como uma reproduo das relaes de trabalho fabril. Apontavam nessa direo e traziam como principal elemento a ameaa ou perda efetiva de autonomia vivida pelos professores ante as reformas educacionais mais recentes. Tais reformas, resultantes da busca de adequao dos sistemas escolares expanso da cobertura escolar, traziam novas normas de organizao do ensino que tendiam padronizao de importantes processos, tais como o livro didtico, as propostas curriculares centralizadas, as avaliaes externas, entre outras. A padronizao de tais procedimentos foi duramente criticada nessa abordagem por revelar uma tendncia crescente massificao da educao, com prejuzos nas condies de trabalho para os professores, trazendo consigo processos de desqualificao e desvalorizao do corpo docente4.

    No caso brasileiro, contraditoriamente, esta discusso surge em um momento (final dos anos 1970 e comeo dos 1980) em que a histria do movimento docente foi profundamente marcada pela luta pela profissionalizao do

    4 Carnoy e Levin (1993), Costa (1995), Popkewitz (1997), Apple (1995), Hargreaves (1998).

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR22

    magistrio e reconhecimento de seus direitos. Talvez por esta razo, no contexto brasileiro, a ambiguidade, referida por Tenti Fanfani (2007), fosse mais flagrante, pois ao mesmo tempo em que, por um lado, se contestava a proletarizao do magistrio, por outro, a explorava na dimenso da luta de classes, da possibilidade de organizao sindical desses trabalhadores como categoria profissional que se organiza por ramo de atividade econmica. A positividade ideolgica posta pela proletarizao, no sentido de promover o reconhecimento e autorreconhecimento do magistrio como classe trabalhadora e de unir esforos a outras classes em uma dimenso polticotransformadora, foi explorada pelas lideranas polticas e sindicais e por autores crticos5.

    Mas, sem dvida, a maior ambiguidade situavase entre o profissionalismo e a proletarizao, como advertia Enguita (1991). O autor chamou a ateno para o fato de que a profissionalizao no seria sinnimo de capacitao, qualificao, conhecimento, formao, mas a expresso de uma posio social e ocupacional, da insero em um tipo determinado de relaes sociais de produo e de processo de trabalho. Descreveu um grupo profissional como uma categoria autorregulada de pessoas que trabalham diretamente para o mercado numa situao de privilgio e monoplio, ressaltando que os profissionais so plenamente autnomos em seu processo de trabalho, no tendo de submeteremse regulao alheia. J a proletarizao descrita pelo mesmo autor no sentido oposto ao que correntemente era dado profissionalizao.

    A tese da proletarizao aparece ento como um processo irreversvel em que os professores esto submetidos medida que os sistemas escolares expandem sua cobertura e tal processo compreendido como uma mazela da democratizao do ensino. A discusso que se colocava poca est relacionada, ento, busca de autoproteo pelos professores e demais trabalhadores da educao por meio da luta pela profissionalizao, pois a proletarizao vinha acompanhada de um processo de desqualificao. Apple (1995) identificava a desqualificao sofrida pelos professores como uma tendncia crescente ante a imposio de procedimentos de controle tcnico sobre o currculo das escolas.

    O paradigma central dessas anlises repousa sobre a organizao do trabalho fabril. Nesse sentido, o livro de Braverman, Trabalho e capital mono-polista, que descreve o processo de expropriao histrica do saber operrio ao longo das primeiras dcadas do sculo XX, com a introduo da chamada Administrao Cientfica do Trabalho, uma referncia essencial. A perda de autonomia e controle sobre o processo de trabalho est no centro dessas anlises, tendo como referncia o trabalho artesanal. Sustentam a tese de que cada trabalhador historicamente expropriado de seu saber, controle, ritmo e produto

    5 Arroyo (1985); Bittar e Ferreira Jnior (2006).

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR 23

    de seu trabalho, gerando um processo de alienao e degradao do trabalho, resultante do capitalismo monopolista.

    Assim, a profissionalizao aparece nesse contexto como uma sada defensiva dos trabalhadores da educao aos processos de perda de autonomia no trabalho e de desqualificao, no sentido apontado por Braverman (1985), ou seja, o trabalhador que perde o controle sobre o processo de trabalho, perde a noo de integridade do processo, passando a executar apenas uma parte das tarefas e alienandose de sua concepo. Por outro lado, a profissionalizao parece indicar o contrrio: ganho de status social, maior proteo, reserva de mercado, entre outros benefcios.

    Nos dizeres de Nvoa (1993, p. 23),

    A profissionalizao um processo atravs do qual os trabalhadores melhoram o seu estatuto, elevam os seus rendimentos e aumentam o seu poder/autonomia. Ao invs, a proletarizao provoca uma degradao do estatuto, dos rendimentos e do poder/autonomia; til sublinhar quatro elementos deste ltimo processo: a separao entre a concepo e a execuo, a estandardizao das tarefas, a reduo dos custos necessrios aquisio da fora de trabalho e a intensificao das exigncias em relao actividade laboral.

    Deste modo, a profissionalizao constituise em verdadeiro instrumento de defesa contra o carter normativo do Estado, j que como nos mostra Rodrigues (2002, p. 73):

    o aumento do assalariamento e a entrada dos profissionais em organizaes teriam como principal conseqncia a proletarizao tcnica perda do controlo sobre o processo e produto do seu trabalho e/ou a proletarizao ideolgica que significa a expropriao de valores a partir da perda de controlo sobre o produto do trabalho e da relao com a comunidade.

    A confluncia das teses da profissionalizao e da proletarizao coloca em evidncia o problema da identidade do magistrio. So trabalhadores que no se veem plenamente como tal, pela herana e tradio que tem o magistrio na noo de vocao e sacerdcio. A identificao como trabalhadores os remetem condio economicamente determinada de que esto inseridos em relaes objetivas e so contratados para executarem suas atividades ao longo de uma

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR24

    jornada, de forma subordinada, recebem um salrio e do seu trabalho retirado maisvalor. Esta identificao objeto de fortes resistncias, possivelmente por retirar esses trabalhadores do seu lugar tradicional.

    Por outro lado, a identidade como profissionais tampouco atende exatamente ao reconhecimento que se busca. Os professores so em geral funcionrios pblicos ou empregados de instituies privadas que cada vez mais trabalham submetidos a orientaes e controles exteriores. Segundo Nvoa (2008), a crise de identidade dos professores, objeto de inmeros debates ao longo dos ltimos pelo menos vinte anos, relacionase com uma evoluo que foi impondo a separao entre o eu pessoal e o eu profissional desses sujeitos. Para esse autor, a transposio dessa atitude do plano cientfico para o plano institucional contribuiu para intensificar o controle sobre os professores, favorecendo o seu processo de desprofissionalizao.

    nesse contexto que a tese da tendncia desprofissionalizao surge com bastante fora, a despeito da profissionalizao em si no ter sido sanada. Rodrigues (2002), em reviso de literatura sobre a produo na sociologia das profisses, explica que essa tendncia observada em algumas profisses na atualidade se deve a diversos fatores, tais como: a emergncia de consumidores menos passivos e com maiores expectativas de participao; a escolarizao generalizada e universal, implicando melhoria nos nveis educativos e informacionais dos indivduos, e, ainda; o aumento da especializao. Tudo isso teria como consequncia a perda, por parte dos profissionais, da confiana dos clientes, o que resultaria em perda da autonomia, do poder e da autoridade.

    O professor, diante das variadas funes que a escola pblica assume, tem de responder a exigncias para as quais no se sente preparado. Muitas vezes os trabalhadores docentes so obrigados a desempenharem funes de agente pblico, assistente social, enfermeiro, psiclogo, entre outras. Tais exigncias contribuem para um sentimento de desprofissionalizao, de perda de identidade, da constatao de que ensinar s vezes no o mais importante6. Tal situao contribui ainda para a desvalorizao e suspeita por parte da populao de que o mais importante na atividade educativa est por fazer ou no realizado com a competncia esperada. Os exames externos promovidos pelos sistemas nacionais de avaliao, a busca permanente de mensurao do desempenho educacional dos alunos e a participao da famlia na gesto da escola traz muitas vezes o sentimento para os docentes de estarem sob suspeita. Por parte desses outros agentes, como se fossem reforados permanentemente a fiscalizar a escola e o trabalho dos professores, manter uma vigilncia prxima e permanente junto ao corpo docente.

    6 Noronha (2001); Assuno e Oliveira (2009).

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR 25

    Os professores e a profissionalizao

    Nvoa (2000, p. 16) afirma que A identidade um lugar de lutas e conflitos, um espao de construo de maneiras de ser e estar na profisso. Esta acepo est fundada na ideia de que na construo dessa identidade a ao poltica est presente. A identidade uma construo antes de tudo poltica.

    No caso especfico dos professores, esse autor observa certa indisponibilidade dos mesmos mudana. Lembra que cada professor tem o seu modo prprio de organizar as aulas, de se movimentar na sala, de dirigirse aos alunos, de utilizar os meios pedaggicos, um modo que constitui uma segunda pele profissional (NVOA, 2000, p. 16). Para o autor, os professores so um grupo profissional particularmente sensvel ao efeito da moda e, ao mesmo tempo, que resiste moda, o que denomina rigidez e plasticidade. Segundo ele, a adeso aos modismos levou certos pedagogos a criarem ortodoxias como a defesa contra o abastardamento dos seus mtodos ou tcnicas: Uma vez na praa pblica, as tcnicas e os mtodos pedaggicos so rapidamente assimilados, perdendose de imediato o controle sobre a forma como so utilizados (NVOA, 2000, p. 17)

    Depois de serem tomados como insumos e de terem sido ignorados pela primeira onda de reformas que marcou os anos 1950 e 1960 na Amrica Latina, no seio do nacionaldesenvolvimentismo, orientados pela Teoria do Capital Humano, os professores ressurgem nas reformas iniciadas nos anos 1990 como agentes centrais nos programas de mudana7. Eles passam agora ao outro extremo: so considerados os principais responsveis pelo desempenho dos alunos, da escola e do sistema, tendo sobre suas costas a responsabilidade pelo xito ou fracasso dos programas.

    A participao dos profissionais docentes e da comunidade na elaborao, deciso e execuo de determinadas polticas pblicas para a educao passa a ser uma exigncia no mbito da gesto escolar, refletida na necessidade de se criarem mecanismos mais coletivos e participativos na escola. A gesto democrtica da educao, com maior autonomia administrativa, financeira e pedaggica; a participao da comunidade na escola so exigncias dos tempos atuais. Esses mecanismos, ao mesmo tempo em que buscam democratizar a escola, representam grande ameaa a esses profissionais no que se refere s supostas garantias de exclusividade sobre determinados terrenos, como a conhecida dificuldade em se pautarem discusses sobre contedos pedaggicos e prticas de avaliao nos conselhos escolares em que esto envolvidos alunos e pais.

    7 Apple (1995); Hypolito (1997); Shiroma (2003); Oliveira (2004a, 2004b); Nvoa (2008).

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR26

    Muitos professores se veem ameaados quando nesses espaos se busca abrir a chamada caixapreta da sala de aula e, em geral, reagem duramente a essas tentativas. Abrir os contedos e prticas do seu fazer cotidiano tomado por muitos professores como um atentado sua condio profissional. Por outro lado, no extremo oposto, observase tambm, sobretudo, nos meios de comunicao de massa, a veiculao de uma ideia de que o que se faz na escola no assunto de especialista, no exige um conhecimento especfico e, portanto, pode ser discutido por leigos e praticado por voluntrios. Esses dois extremos esto presentes no movimento de profissionalizao docente e, se podemos entender o primeiro como uma defesa corporativa, o segundo tem sido interpretado, especialmente pelos prprios docentes como um processo de desprofissionalizao.

    Segundo Rodrigues (2002, p. 71): A tendncia para a desprofissionalizao assenta naquilo a que se pode chamar mecanismos de desqualificao dos profissionais, de perda ou transferncia de conhecimentos e saberes, seja para os consumidores, o pblico em geral, os computadores ou os manuais. Nessa perspectiva, os trabalhadores da educao estariam sofrendo processos de desprofissionalizao por diversos fatores que variam desde a padronizao dos meios de trabalho e introduo de tecnologias educativas em larga escala nas escolas at a deslegitimao dos seus saberes especficos resultante dos efeitos produzidos pelas avaliaes externas que do publicidade aos resultados vinculando o baixo rendimento dos alunos com o desempenho profissional dos docentes. Mas tal processo comporta uma complexidade que deve considerar mudanas na relao entre educao e sociedade e mesmo no papel que a escola desempenha na atualidade.

    A principal crtica atribuda s profisses, de acordo com Rodrigues (2002), relacionase ao fato de o poder acumulado e as prerrogativas especiais de que usufruem serem utilizados em proveito prprio e no da coletividade, o que constituiria um obstculo, impedindo a maioria da populao de ter normal acesso aos servios que prestam. Nesse sentido, a autora adverte que a sociologia das profisses, ao transformar esta doutrina em teoria, cumpriu uma funo ideolgica, ajudando a legitimar e perpetuar o status quo.

    A autonomia e o controle sobre o recrutamento, a formao, os ttulos e o monoplio seriam prerrogativas de poder extensivas s profisses estabelecidas. Observase que os professores reagem muitas vezes com grande indignao s mudanas que lhes so impostas por meio da atuao de especialistas que no so da rea. Outro fator que d origem a resistncias por parte dos professores a abertura das escolas aos voluntrios. As variadas campanhas em prol da educao para todos que apelam com frequncia ao voluntariado tm promovido a desprofissionalizao do espao escolar no sentido apontado no incio deste

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR 27

    texto. Ou seja, caminham na contramo do movimento que tem por objetivo tornar o trabalho escolar profissional, abrindoo constantemente aos amadores, aos que no foram formados e recrutados para este fim.

    Rodrigues (2002, p. 42) observa que na ideologia do profissionalismo est presente a possibilidade de o conhecimento ser manipulado e modificado a fim de melhor servir s necessidades dos membros da profisso, como meio de defesa, exclusividade e autoperpetuao em face de ameaas de inovao e racionalizao de tarefas e ocupao e tambm como instrumento nas lutas entre grupos ocupacionais disputando a mesma rea. Nesse sentido as observaes de Nvoa sobre o carter refratrio s mudanas observado junto aos docentes poderiam estar revelando esta tentativa de autoproteo. Algumas evidncias nesse sentido podem ser encontradas em pesquisas realizadas com colegiados escolares.

    Para Popkewitz (1997) o rtulo profisso , normalmente, utilizado para identificar um grupo especializado, altamente formado, competente e digno de confiana pblica. Todavia, frequentemente, a profisso faz dos seus servios uma forma de obteno de prestgio, de poder e de status econmico, ou seja, desenvolve uma autoridade cultural e social. O argumento contrrio aos processos de desprofissionalizao do espao escolar, trazidos pelas campanhas que apelam ao voluntariado, embasase na necessidade de titulao acadmica, como a licena para o exerccio do profissional responsvel. A profissionalizao passa a ser cada vez mais uma outorga do Estado, por meio de diplomas mais do que pelo reconhecimento de um saber obtido na experincia, no desempenho de um ofcio. A certificao para o exerccio do magistrio tem sido um tema recorrente nos debates sobre a formao dos professores no Brasil.

    A valorizao da educao escolar, dos centros de formao universitrios como loci de obteno do licenciamento para o exerccio das profisses uma tendncia observada na maioria das profisses reconhecidas e regulamentadas. No caso especfico do Brasil, a constituio de suas universidades tem razes histricas plantadas no ideal da profissionalizao8, no sentido de outorgar, com seus diplomas, a licena profissional.

    Segundo Giddens (1991), a confiana depositada pelos indivduos nos sistemas peritos responsvel pela natureza das instituies modernas, o carter contratual, orientado para o futuro da modernidade amplamente estruturado pela confiana conferida aos sistemas abstratos que pela prpria natureza filtrada pela confiabilidade da percia estabelecida (GIDDENS, 1991, p. 87). Para o autor, isso envolve a fidedignidade atribuda pelos leigos aos sistemas

    8 Sobre este carter profissional das universidades brasileiras, ver: Durham (1998).

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR28

    peritos. a confiana no conhecimento e habilidades s quais o indivduo leigo no tem acesso efetivo. Assim; a confiana em sistemas assume a forma de compromissos sem rosto, nos quais mantida a f no funcionamento do conhecimento em relao ao qual a pessoa leiga amplamente ignorante (GIDDENS, 1991, p. 91, grifos do autor). O autor chama a ateno para o fato de que a cincia procura manter uma imagem de conhecimento fidedigno, que se expressa numa atitude de respeito para com a maioria das formas de especialidade tcnica e, ao fazlo, ignora toda improvisao que se sabe presente no desempenho de qualquer ofcio.

    Antecedentes histricos do caso brasileiro9

    A discusso sobre a identidade docente foi pautada no Brasil nos anos 1980, tanto do ponto de vista poltico quanto acadmico. No final da dcada de 1970 e incio dos anos 1980, o movimento sindical ganhou proeminncia na cena poltica brasileira (SADER, 1981), constituindose em importante sujeito poltico que contribuiu para o desgaste do regime militar e a abertura poltica. Dentre as categorias que se mobilizaram neste perodo, o magistrio figurou como um importante sujeito. A discusso sobre a identidade e o profissionalismo do magistrio emergiu no debate em torno da organizao dos sindicatos10. Constitudo na sua imensa maioria por professores de escolas pblicas, o magistrio estava impossibilitado de se organizar em sindicatos, j que os funcionrios pblicos eram impedidos de fazlo.

    A insistncia na contituio de uma identidade de trabalhadores em educao por parte dos sindicatos docentes tinha como referncia no o estatuto profissional, de acordo com o que se define como uma profisso, mas com a orientao classista trazida pelo novo sindicalismo pressupondo a organizao horizontal dos trabalhadores por ramos e categorias econmicas. A busca de construo de uma identidade nica que congregasse todos os trabalhadores

    9 Alguns argumentos utilizados nesse item foram tratados em artigo anterior (ver: OLIVEIRA,2006).

    10 Esse perodo foi marcado por luta intensa pelo reconhecimento do direito de organizao sindical no contexto do novo sindicalismo brasileiro, bastante influenciado pelo princpio de organizao classista que resultou criao da Central nica dos Trabalhadores (CUT). A Constituio Federal de 1988 autorizou a organizao sindical de servidores pblicos, que at ento era vedada.

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR 29

    da educao de professores, especialistas aos funcionrios administrativos e de apoio orientou as lutas sindicais das duas dcadas seguintes, refletindo no nome e estatutos das instituies sindicais criadas nessa poca. Tal defesa por parte dos sindicatos persiste at hoje, tendo como sua mais recente expresso a aprovao da Lei no 12.014 de 06 de agosto de 2009, que altera o art. 61 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, com a finalidade de discriminar as categorias de trabalhadores que se devem considerar profissionais da educao. A nova redao dada ao artigo 61 da LDB 9394/96 atribui carter bastante amplo ao que se define como profissionais da educao escolar bsica, como se pode observar na sua nova redao:

    Art.61 : Consideramse profissionais da educao escolar bsica os que, nela estando em efetivo exerccio e tendo sido formados em cursos reconhecidos, so:

    I professores habilitados em nvel mdio ou superior para a docncia na educao infantil e nos ensinos fundamental e mdio;

    II trabalhadores em educao portadores de diploma de pedagogia, com habilitao em administrao, planejamento, superviso, inspeo e orientao educacional, bem como com ttulos de mestrado ou doutorado nas mesmas reas;

    III trabalhadores em educao, portadores de diploma de curso tcnico ou superior em rea pedaggica ou afim.

    Apesar da amplitude observada na definio do que a lei 12.014 estabelece como profissionas da educao, observase que, na prtica, permanece uma ntida separao entre professores e funcionrios dentro das escolas, sendo que os processos de terceirizao dos servios de apoio escolar, tais como: vigilncia, limpeza e, em alguns casos, at mesmo funes administrativas, tm reforado ainda mais tal distino.

    A separao entre professores e especialistas e os demais trabalhadores da escola pode ser atribuda ao fato dos primeiros possurem maior titulao e perceberem melhor remunerao. Alm disso, so os especialistas e os professores, em geral, os responsveis pela atividadefim da escola, o que nos leva a indagar se de fato possvel pensar em uma identidade docente que inclua os que no esto diretamente envolvidos com os processos de ensino e aprendizagem.

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR30

    Outra diviso importante dentro da escola que reflete alguns obstculos em relao a uma identidade docente a que se observa entre professores e especialistas. Nesse caso, a diviso se revela de outra maneira. Os especialistas, que sempre ocuparam lugar de destaque na hierarquia escolar como superiores ao corpo de professores, foram alvo de fortes crticas e tiveram seu papel contestado nas lutas sindicais. Essas crticas acabaram por desautorizar, em grande medida, os especialistas em relao ao seu status e domnio profissionais. Durante os anos 1980, as crticas Administrao Escolar de orientao empresarial engendraram um novo paradigma de gesto escolar no Brasil que teve como resultado maior autonomia e participao democrtica (OLIVEIRA, 2004a). As crticas hierarquizao, centralizao da administrao escolar e ao modelo burocrtico e centrado nas especializaes levou consolidao de outras referncias de gesto educacional, inscrita na Constituio Federal de 1988, Art. 206, Inciso VI. O princpio constitucional da gesto democrtica do ensino pblico acabou por ser regulamentado em muitas redes pela escolha direta do diretor escolar pela comunidade, o que contribuiu para que a funo do administrador escolar fosse se extinguindo em muitas redes de ensino. Alm dos diretores, os coordenadores escolares surgem nesse contexto ocupando, em algumas redes, o papel que outrora ocupavam os especialistas nas escolas. Assim, algumas redes passaram a eleger ou contratar coordenadores pedaggicos em substituio s funes de superviso e orientao escolares. Tais mudanas repercutiram na formao do Pedagogo.

    As diretrizes curriculares para os cursos de pedagogia aprovadas em maio de 2006 centram a formao do pedagogo na docncia, alm de atribuir grande nfase gesto. Os cursos de graduao em Pedagogia no Brasil foram se constituindo no principal locus da formao docente para atuar na educao bsica, na Educao Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Durante os anos 1990 houve intenso movimento de discusso e elaborao das Diretrizes para os cursos de Pedagogia envolvendo algumas entidades da rea, tais como: a Associao Nacional de PsGraduao e Pesquisa em Educao (ANPed), a Associao Nacional pela Formao de Profissionais da Educao (ANFOPE), o Frum Nacional de Diretores de Faculdades de Educao (FORUMDIR), a Associao Nacional de Poltica e Administrao da Educao (ANPAE), O Centro de Estudos Educao e Sociedade (CEDES) e a Executiva Nacional dos Estudantes de Pedagogia. O resultado desse processo foi a elaborao do Documento das Diretrizes e seu encaminhamento ao Conselho Nacional de Educao, em 1999. Esse movimento se posicionava contrrio tentativa por parte do governo, poca, de consolidar a formao dos docentes de Educao Bsica (para os anos iniciais) por meio do Curso Normal Superior.

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR 31

    Feldfeber e Imen (2003), com base na realidade argentina, observam que as propostas de mudana para a formao docente centradas na ideia da profissionalizao se inscrevem entre os novos mecanismos de regulao social estabelecidos pelo Estado que, ao mesmo tempo em que os interpelam como profissionais, estabelecem mecanismos que limitam a possibilidade de exerccio autnomo da profisso submetendoos lgica tecnocrtica e instrumentalizao do nico modelo de reforma.

    No caso brasileiro, as diretrizes buscaram regulamentar a formao do pedagogo adequandoa tendncia crescente de os professores passarem a ocupar, por meio de escolha livre e direta de seus pares e da comunidade, as funes antes designadas aos especialistas e a capacitaremse para uma organizao mais flexvel do trabalho escolar, exigente de elaborao coletiva. Mas as crticas que tais Diretrizes recebem no sentido de transformarem o pedagogo em professor expressam uma das faces corporativas da escola e isso demonstra que, ao contrrio do que propugnavam os sindicatos nos finais dos anos 1970 e incio dos 1980, e do que determina, na atualidade, a Lei 12.014, a construo de uma identidade profissional que implique na aceitao da condio de serem todos docentes e de poderem se organizar de forma horizontal nas escolas encontra vivas resistncias por parte de setores do magistrio.

    A profisso docente ante uma nova regulao: consideraes finais

    As reformas educacionais dos anos 1990 foram implementadas em um perodo de relativa estabilizao da luta polticosindical, marcada por fraca mobilizao de base e burocratizao das direes sindicais. Observase relativo distanciamento entre o sindicato e o cotidiano escolar, no sentido de que h dificuldades em acompanhar as mudanas mais recentes que atingem a escola, assim como repercusses dessas sobre a subjetividade dos professores (TENTI FANFANI, 2005; OLIVEIRA; MELO, 2004). Ao mesmo tempo, essas reformas trazem consigo uma forte retrica que valoriza aspectos da luta por uma educao mais democrtica. As noes de coletividade, autonomia e participao so fortemente evocadas nos documentos das reformas educativas atuais (UNESCO/CEPAL, 2005), porm compreendidas dentro de uma abordagem que privilegia o elemento da flexibilidade. possvel observar que essa maior flexibilidade, tanto nas estruturas curriculares quanto nos processos de avaliao, corrobora com a ideia de que estamos diante de novos padres de organizao tambm do trabalho escolar que podem estar forjando um novo perfil de trabalhadores

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR32

    docentes e uma nova identidade, o que incide sobre o movimento de profissionalizao do magistrio.

    No h como negar que as mudanas que o mundo passou a viver nas ltimas dcadas do sculo XX apontam para novas formas de organizao da produo, do trabalho, da vida econmica e, claro, a escola no est imune a tais processos. Observase uma regulao social que no est mais fundada no trabalho regulamentado, na sociedade do pleno emprego, no Estado provedor. A reestruturao produtiva traz um novo modelo de acumulao denominado flexvel e enseja com ele novas formas de organizao do trabalho, menos fragmentadas, menos rgidas, sob orientao mais flexvel, exigindo maior plurifuncionalidade e polivalncia (CORIAT, 1994). As profisses, em geral, tendem a perder fora nesse contexto incidindo sobre a identidade dos que trabalham (BAUMAN, 2005). Os trabalhadores passam a buscar novas formas de ocupao e, consequentemente, de formao, para adaptaremse s novas exigncias. Esse carter flexvel das ocupaes chega escola de duas formas: no objeto dos docentes eles tero que adequar seu trabalho s exigncias atuais, j que formam a fora de trabalho para esse mundo em mudana; e na organizao do seu prprio trabalho que tambm tende a adotar cada vez mais o carter de maior flexibilidade e autonomia que o trabalho em geral assume.

    Os professores se encontram assim diante de uma nova ambivalncia. Se por um lado as formas mais flexveis e autnomas de organizao do trabalho lhes trazem ganhos de autonomia e maior controle sobre suas atividades, por outro lado essa mesma organizao lhes retira poder e controle como um grupo profissional, medida que os demais sujeitos que participam da escola e do sistema se encontram agora investidos do poder de cobrar e exigir prestao de contas do que realizado no espao escolar.

    Se como afirma Nvoa, a identidade um espao de permanente conflito, ser no espao dessa ambiguidade vivida no cotidiano escolar que certamente novas identidades podero ser forjadas e novos sentidos podero ser atribudos ao movimento de profissionalizao docente.

    REFERNCIAS

    ASSUNO, A.A.; OLIVEIRA, D.A. Intensificao do trabalho e sade dos professores. Revista Educao & Sociedade, Campinas: CEDES/UNICAMP, v. 30, n. 107, maio/ago. 2009.

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR 33

    APPLE, M. W.. Trabalho docente e textos: economia poltica das relaes de classe e de gnero em educao. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1995.

    ARROYO, M. Mestre, educador e trabalhador: organizao do trabalho e profissionalizao. Tese (Concurso de Professor Titular) FAE/UFMG, Belo Horizonte, 1985.

    BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2005.

    BITTAR, M.; FERREIRA JNIOR, A. Proletarizao e sindicalismo de professores na ditadura militar (1964-1985). 1. ed. So Paulo: Pulsar, 2006.

    BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. 18. ed., atualizada e ampliada. So Paulo: Saraiva, 1998.

    BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional. Lei n. 9.394 de 20 dez.1996.

    BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista: a degradao do trabalho no sculo XX. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985.

    CARNOY, M.; LEVIN, H. Escola e trabalho no Estado capitalista. So Paulo: Cortez, 1993.

    CONTRERAS, J. Autonomia de professores. So Paulo: Cortez, 2002.

    CORIAT, B. Pensar pelo avesso: o modelo japons de trabalho e organizao. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994.

    COSTA, M. C. V. Trabalho docente e profissionalismo. Porto Alegre: Sulina, 1995.

    DURKHEIM, E. Lies de sociologia: a moral, o direito e o Estado. So Paulo: T. A. Queiroz: Ed. da USP, 1983, 206p. (da quarta nona lio)

    DURHAM, E. O ensino superior na Amrica Latina: tradies e tendncias. Revista Novos Estudos, So Paulo, CEBRAP, n. 51, jul. 1998.

    ENGUITA, M. F. A ambigidade da docncia: entre o profissionalismo e a proletarizao. Revista Teoria & Educao, n. 4, 1991.

    FELDFEBER, M.; IMEN, P. A formao continuada dos docentes: os imperativos da profissionalizao em contexto de reforma. In: CARAPETO, N. (Org.). Formao continuada e gesto da educao. So Paulo: Cortez, 2003.

    GIDDENS, A. As conseqncias da modernidade. So Paulo: Editora UNESP, 1991.

    GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002.

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR34

    HARGREAVES, A. Os professores em tempos de mudana: o trabalho e a cultura na Idade PsModerna. Editora McGrawHill de Portugal. AlfragidePortugal. 1998.

    HYPLITO, A. L. M. Trabalho docente, classe social e relaes de gnero. Campinas: Papirus, 1997.

    LESSARD, C. ; TARDIF, M. Les transformations actuelles de lenseignement: trois scnarios possibles dans lvolution de la profession enseignante? In: LESSARD, C. ; TARDIF, M. La profession denseignant aujourdhui: volutions, perspectives et enjeux internationaux. Montral (Canad): La Presses de LUniversit Laval, 2004.

    NORONHA, M. M. B. Condies do exerccio profissional da professora e os seus possveis efeitos sobre a sade: estudo de casos das professoras do ensino fundamental em uma escola pblica de Montes Claros, Minas Gerais. Dissertao (Mestrado) Programa de Psgraduao em Sade Pblica, Mestrado Interinstitucional UFMG / UNIMONTES Belo Horizonte, Montes Claros, 2001. ).

    NVOA, A. Os professores e o novo espao pblico da educao. In: TARDIF, M.; LESSARD, C. Ofcio de professor: histria, perspectivas e desafios internacionais. Petrpolis: Vozes, 2008.

    NVOA, A. Os professores e a histria da sua vida. In: NVOA, A. (Org.). Vida de professores. 2. ed. Porto: Porto Editora, 2000.

    NVOA, A. (Org.). Os professores e a sua formao. Lisboa: Publicaes D. Quixote, 1993.

    NVOA, A. (Org.). Profisso professor. Porto: Porto Editora, 1991.

    OLIVEIRA, D. A. A reestruturao do trabalho docente: precarizao e flexibilizao. Educ. Soc., v. 25, n.89, p.11271144, dez. 2004a.

    OLIVEIRA, D. A. A reestruturao do trabalho docente: precarizao e flexibilizao. Educ. Soc., v. 25, n.89, dez. 2004b.

    OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores docentes no contexto de nova regulao das polticas educacionais na Amrica Latina. Belo Horizonte: Faculdade de Educao / UFMG, 2006. (Relatrio de Pesquisa Capes).

    OLIVEIRA, D. A.; MELO, S. D. Estudio de los conflitos en los sistemas educativos de la regin: agendas, actores, evolucion, manejo e desenlaces. Santiago: LPP / UERJ / OREALC / UNESCO, 2004. (Relatrio de estudo de caso do Brasil).

    POPKEWITZ, T. S. Reforma Educacional: uma poltica sociolgica. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1997.

  • OLIVEIRA, D. A. Os trabalhadores da educao e a construo poltica da profisso docente no Brasil

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR 35

    RODRIGUES, M. L. Sociologia das profisses. Oeiras (Portugal): Celta Editora, 2002.

    SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena: Experincias e lutas dos trabalhadores da grande So Paulo 1970 1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

    SHIROMA, E. O. O eufemismo da profissionalizao. In: MORAES, M. C. M. (Org.). Iluminismo s avessas: produo de conhecimento e polticas de formao docente. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

    TENTI FANFANI, E. Consideraciones sociologicas sobre profesionalizacin docente. Educ. Soc., Campinas, v. 28, n. 99, maio/ago. 2007.

    TENTI FANFANI, E. La condicin docente. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2005.

    TORRES, M. G.; MOUTA, C.; MENESES, A. L. Investigao, profisso, profissionalidade e profissionalizao dos educadores de infncia. Cadernos de Educao de Infncia, jan./mar. 2002.

    UNESCOCEPAL. Invertir mejor para invertir ms: financiamiento y gestin de la educacin en Amrica Latina y el Caribe. Santiago: OREALC/UNESCOCEPAL, 2005.

    VIEIRA, S. R. Diretrizes curriculares para o curso de pedagogia: pedagogo, docente ou professor? 2008. Disponvel em: .

    WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1991.

    Texto recebido em maro de 2010.

    Texto aprovado em junho de 2010.