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MIGUEL ATTIE FILHO OS SETIDOS ITEROS EM IB Sºª ( AVICEA ) MESTRADO EM FILOSOFIA PUC - SP 1999 MIGUEL ATTIE FILHO

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MIGUEL ATTIE FILHO

OS SE�TIDOS I�TER�OS

EM IB� Sºººº�ªªªª

( AVICE�A )

MESTRADO EM FILOSOFIA

PUC - SP

1999

MIGUEL ATTIE FILHO

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

2

OS SE�TIDOS I�TER�OS

EM IB� Sºººº�ªªªª

( AVICE�A )

Dissertação apresentada como requisito

parcial para a obtenção do tí tulo de Mestre

em Filosofia à Banca Examinadora do

Programa de Estudos Pós-graduados em

Filosofia da Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr.

Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento.

PUC - SP

1999

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

3

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

Prof. Dr. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento - PUCSP

_________________________________________

Prof. Dr. Jamil Ibrahim Iskandar - PUCPR

_________________________________________

Prof. Dr. José Carlos Estevão - USP

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

4

Ao Prof. Carlos Arthur,

por me auxiliar a encontrar o caminho de volta

para casa.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

5

Todos os agradecimentos:

Ao Prof. Ênio José da Costa Brito porque acreditou em mim e me trouxe de volta para a PUCSP; ao Prof. Porphírio Aguiar pela iniciação filosófica; à Irmã Maria Helena que viu o futuro; a todos os colegas, professores e funcionários da FAI; à Profª Mônica Galliano pelo indizível, je vous remercie vivement; ao Prof. Jamil Ibrahim Iskandar pela fidalga generosidade; ao Prof. José Carlos Estevão pela elegância filosófica e pelas dicas em Paris; em Paris ao Prof. Michel Patty que lá me recebeu; ao Prof. Ahmed Hassnaoui e ao Prof. e amigo Maroun Aouad do CNRS por todas as dicas e textos; ao Prof. Moacyr Novaes que me recebeu cordialmente no CEPAME, a todos os colegas do CEPAME; ao Tadeu, meu amigo de valorosas horas; à Rosalie que me forneceu o primeiro De anima; ao “Grupo das arábias”; à Natália pelo alto astral; à Profª Safa Jubran que me levantou num momento difícil e ao Prof. Mohamed Jarouche pela força; à Profª Jeanne Marie pela confiança em meu trabalho; à Profª Rachel Gazzola pelas preciosas oportunidades; ao Prof. Ivo Assad Ibri por não me cobrar as ‘esfihas’ que devo; ao Prof. Edélcio, pelo mesmo motivo; ao Prof. Marcelo Perini pelo incentivo inicial; à Cida da secretaria do pós que sempre me recebeu com um sorriso; a todos os professores, colegas e funcionários da PUCSP; a todos que me tiraram xerox; ao CNPQ pela bolsa para tirar os xerox; à Marisa, por tudo; à Paula e ao Mateus por olharem um ao outro; à Sonia, à Solange e à Maria pelo brilho nos olhos e ao ‘bayu’ Miguel (in memoriam) pela presença constante; a todos os amigos que me incentivaram ou me criticaram; aos que não me conhecem e que eu não conheço e que nunca saberei que me ajudaram; aos que atrapalharam; a todos que esqueci de citar... ao professor, amigo e mestre Carlos Arthur por ter tornado tudo isto possível. MUITO OBRIGADO!

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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RESUMO A primeira parte deste trabalho se ocupa em fornecer alguns

dados básicos sobre a vida e a obra de Ibn S»n« -Avicena-(980-1037).

Em seguida, no Capítulo I, são apresentadas as principais

características de sua obra Al-Šif«’ (A Cura), sua divisão, e como o Livro

VI (Kit«b al- afs) se insere nesta enciclopédia. Além disso, é apresentada

a importância histórica dessa obra na formação do pensamento ocidental a

partir de sua tradução do árabe para o latim em meados do século XII d.C.

No Capítulo II, após a indicação de um itinerário da estrutura

geral do Kit«b al- afs, são apresentadas as principais teses de Ibn S»n« a

respeito da alma nesta obra. Em seguida, o tema dos sentidos internos é

exposto de modo mais detido, percorrendo sua classificação, a definição de

cada faculdade e a dinâmica de seus movimentos.

O Capítulo III se inicia com um breve histórico das

transformações de tratamento que as faculdades pós-sensoriais sofreram

através dos autores anteriores a Ibn S»n« e como o filósofo árabe chegou à

sua própria classificação. Em seguida são indicadas algumas variações

sobre o tema fornecida pelo próprio Ibn S»n« em outras obras e como o

tema dos sentidos internos atingiu alto grau de excelência em sua filosofia

podendo ser considerado um dos pontos altos de sua psicologia. Ao final,

focaliza-se a repercussão das classificações dos sentidos internos de Ibn

S»n« em autores posteriores a ele tanto no Oriente quanto no Ocidente.

Ao final, procura-se mostrar como este tema se torna relevante

nos dias de hoje tanto nas discussões filosóficas de caráter mais geral

quanto nos temas de psicologia e de epistemologia de modo mais particular

e como, nessa medida, a presença das teses de Ibn S»n« se mostra de grande

importância.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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SUMÁRIO

Apresentação .................................................................................................................. 01

Introdução ........................................................................................................................ 03

1) Alguns dados biográficos ............................................................................................ 03

2) Alguns dados bibliográficos ........................................................................................ 08

Capítulo I : A Al-Šif«’ e o Kit«b al- afs. ........................................................................ 10

Capítulo II: Os sentidos internos no Kit«b al- afs. ......................................................... 23

1) Prolegômenos: o quadro geral do Kit«b al- afs (Cap. I) ........................................... 23

2) Os sentidos internos no Kit«b al- afs (Cap. IV) ........................................................ 54

Capítulo III: Ainda os sentidos internos .......................................................................... 78

1) As fontes de Ibn S»n« .................................................................................................. 78

2) As classificações de Ibn S»n« ...................................................................................... 85

3) A posteridade na trilha de Ibn S»n« ............................................................................. 90

Conclusão ........................................................................................................................ 97

Bibliografia .................................................................................................................... 105

Anexos

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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APRESE�TAÇÃO:

O precípuo objetivo deste trabalho é apresentar a estrutura geral do Livro

VI da parte da Física da enciclopédia Al-Šif«’, denominado Kit«b al- afs, que ficou

conhecido no ocidente medieval como o De anima de Avicena ou a Psicologia de

Avicena. A Física, nesse caso, entendida como o conjunto das ciências naturais,

justifica porque a Idade Média denominou-o Liber De Anima - Sextus de aturalibus.

Sem dúvida, como veremos a seguir, as linhas gerais adotadas por Ibn

S»n« nesta obra, baseiam-se no estudo ΠΕΡΙ ΨΥΧΗΣ − Sobre a alma - de Aristóteles, o

que nos leva naturalmente a situar algumas idéias de Ibn S»n« em relação às do filósofo

grego. Não obstante o fato de que uma comparação de idéias pareça se dar quase que

naturalmente, visto a proximidade estrutural e conceitual das duas obras, não é nossa

intenção, nesta pesquisa, avaliar de maneira mais sistemática e detalhada as relações

entre as posturas adotadas por Ibn S»n« diante daquelas adotadas anteriormente por

Aristóteles, mesmo porque, devemos lembrar que existem outras fontes das idéias

avicenianas além dos escritos aristotélicos, tais como as obras de Al-F«r«b», Plotino,

Galeno, o Alcorão, etc. A isto devemos, ainda, somar a sua própria experiência como

médico.

A nossa prioridade é apresentar as principais idéias de Ibn S»n« dentro da

própria estrutura de sua obra, até onde nos seja possível, procurando situá-lo em relação

a Aristóteles apenas em algumas passagens que consideramos mais relevantes, evitando,

assim, um paralelismo constante. Entendemos, desse modo, que dados os limites deste

trabalho, deveríamos priorizar a doutrina de nosso filósofo, procurando

simultaneamente afastar a idéia, muitas vezes errônea, de tomá-lo simplesmente como

um comentador de Aristóteles. Na verdade, o Kit«b al- afs não é um comentário ao

texto de Aristóteles. O leitor acostumado à tradição de comentários à obra do mestre

grego como, por exemplo, alguns escritos de Ibn Rušd (Averróes), não encontrará nesta

obra de Ibn S»n« qualquer semelhança. Neste caso, trata-se de uma outra abordagem em

que o filósofo árabe não se contenta apenas com os princípios aristotélicos,

acrescentando a estes uma série de novos elementos. Um dos pontos mais altos do

tratado é o entrelaçamento entre a psicologia e a fisiologia, principalmente no que tange

aos sentidos internos. Ao longo deste trabalho poderemos verificar que, para dizer o

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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menos, o Kit«b al- afs é uma “refundição” do De Anima de Aristóteles, se

configurando numa nova síntese: a síntese de Ibn S»n«.

Sendo assim, nos propomos seguir de modo esquemático, o seguinte

desenvolvimento :

Na Introdução apresentaremos, resumidamente, alguns dados sobre a

vida de Ibn S»n«, além de fornecermos um quadro geral a respeito de sua obra. No

capítulo I explicaremos, em seus princípios fundamentais, o que é a enciclopédia Al-

Šif«’, visto que isso se torna necessário na medida em que nos permite situar com mais

clareza como o Livro VI da parte da Física - Kit«b al- afs - se localiza e se articula no

conjunto desta enciclopédia. No capítulo II apresentaremos, de modo sintético, os

assuntos que Ibn S»n« aborda sequencialmente dentro desta obra, destacando e

explicando as principais posições do autor. Sem dúvida, ao investigarmos o tema dos

sentidos internos, privilegiamos as seções e passagens que a estes se referem. No

entanto, na medida do possível, procuramos indicar o conjunto de assuntos analisados

por Ibn S»n« procurando manter a visão geral do tratado. No capitulo III estabelecemos

as fontes de Ibn S»n« e outras considerações sobre as suas classificações, apontando a

presença destas em autores posteriores tanto do oriente quanto do ocidente. Na última

parte, finalmente, apresentaremos nossas conclusões, apontando como esse tema pode

ser relevante atualmente na medida em que se insere em inúmeros pontos de interesse

da discussão e do estudo psicológico e epistemológico em particular e da própria

filosofia em seu caráter mais geral.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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I�TRODUÇÃO:

Alguns dados biográficos:

Abu ‘Ali Al-Hussein Ibn 'Abd All«h Ibn Al-®assan Ibn ‘Ali Ibn S»n«,

nasceu em Bukhara1 em 980 d.C. e faleceu em Hamadan2 em 1037. Uma boa parte de

sua vida nos é conhecida através de suas próprias palavras, numa curta auto-biografia3,

“transmitida e completada pelo seu mais fiel discípulo ‘Abu ‘Ubaid Al-J−zj«n»”.4 Seu

pai era um administrador da província de Bukhara5, onde Ibn S»n« iniciou seus

primeiros estudos. Aos dez anos, já sabia o Alcorão de cor "de modo que era objeto de

imensa admiração."

Iniciou, em seguida, seus primeiros estudos em filosofia, geometria,

aritmética, jurisprudência e lógica sob a orientação de um professor chamado Al-Nat»l»,

a quem Ibn S»n« logo iria superar. Passou a estudar por si mesmo a Isagoge de Porfírio,

os Elementos de Euclides e o Almagesto de Ptolomeu, tendo em seguida se iniciado nos

estudos de fisica e de metafisica. Particularmente, a metafisica de Aristóteles, no início

mostrou-se bastante obscura, mas a partir da leitura de um comentário de Al-F«r«b»,

tornou-se perfeitamente clara. Este é um episódio da vida intelectual de Ibn S»n«

frequentemente citado:

“Eu reli o livro da Metafísica (de Aristóteles) por quarenta vezes, de

modo que o aprendi de cor. Porém, não podia ainda compreender o que

havia em seu interior, e nem o intuito de seu autor.”6 Estando num

mercado de livros, pela insistência de um vendedor, acabou adquirindo,

1Esta cidade está situada numa região da antiga Pérsia, dominada já nesse período pelo Islam. Atualmente, faz parte do Uzbequistão que, estabelecido em 1924 como república da União Soviética, tornou-se um estado independente desde 1991. Atlas Geográfico Mundial - Folha de São Paulo -. São Paulo: Folha da Manhã, 1993 pp. 66 e 166 . 2 Esta cidade situa-se no atual Irã. Ibid pp. 69 e 166. 3 Esta autobiografia, com a continuação feita por Al-Jūzj«n» foi traduzida para o inglês em ARBERRY, .J. Avicenna on Theology, London: Hyperion Press, 1951, pp. 9-24. Uma edição crítica, acompanhada de tradução inglesa, foi feita por GOHLMAN, W. E.: The Life of Ibn Sina. New York: State university of New York Press, 1974. BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, pp. 595-602 apresenta também a parte que foi escrita pelo próprio Ibn S»n«. 4 BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 595. 5 As passagens a seguir foram baseadas na tradução da autobiografia por BADAWI, A. 6É possível supor que tais dificuldades se referissem, por um lado, à tradução do grego para o árabe que implicou na adaptação de termos desconhecidos nesta língua e, por outro lado, ao conteúdo da própria obra que divergia em alguns casos das concepções do Alcorão. Cf. - ISKANDAR, J. I. Avicena - A origem e o retorno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 18.

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por uma bagatela, a obra de Al-F«r«b» Do intuito do livro da Metafísica

(de Aristóteles). “Entrei em casa e me apressei em lê-lo; e logo seu

propósito se revelou a mim, visto que eu conhecia o livro de cor. Me

alegrei. No dia seguinte dei muitas esmolas aos pobres, em sinal de

agradecimento ao Deus Altíssimo.”7

Na mesma época passou a ler os livros de medicina, pois além de querer

se dedicar à arte médica verificara que "a medicina não era uma ciência difícil". Em

pouco tempo os médicos vieram aprender a arte médica com o jovem Ibn S»n« , que

tinha, então, apenas dezesseis anos.

Quando foi chamado para curar o príncipe Nu¯ Ibn Man·ur, teve a

oportunidade de frequentar a riquíssima biblioteca deste, e nela pôde entrar em contato

com grande parte do conhecimento de sua época. Este fato coloca em cena três aspectos

importantes que estarão sempre presentes em toda sua vida: a medicina, a filosofia e a

política. Nessa época tinha dezoito anos e já havia entrado em contato com

praticamente todas as mais importantes ciências conhecidas.

Atendendo à solicitação dos que o acompanhavam, aos vinte e um anos

passou a compor as sua primeiras obras. Nesse período, ocupava algumas funções

administrativas em Bukhara mas, com a morte do pai, iniciou um período de viagens a

cidades próximas.8Dentre essas viagens, destaca-se a estada de Ibn S»n« em Jurjan, onde

um amante da filosofia chamado Al-Šir«zi instalou o mestre numa casa ao lado da sua.

Aí Ibn S»n« escreve a primeira parte do Canon de medicina. Sua última estada antes de

se fixar de modo mais permanente em Hamadan é uma outra cidade próxima chamada

Al-Ray.

Em Hamadan, aceita o cargo de vizir9 (ministro) do príncipe Šams Al-

Dawlah. Nessa época Al-Jūzj«n» pediu ao mestre que compusesse comentários sobre as

obras de Aristóteles, mas Ibn S»n« se recusou, preferindo compor uma obra de grande

envergadura, expondo os principais conhecimentos científicos e filosóficos de seu

tempo.

7 BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 598. 8Até este ponto todo o relato foi feito pelo próprio Ibn S»n«. O que vem a seguir foi registrado pelo seu discípulo Al-Jūzj«n». 9O significado literal de‘Wazir’ é ‘aquele que carrega o fardo’. A sua raiz é o verbo ‘wazara’ que significa ‘carregar um fardo’ Cf. - REIG, D. Dictionaire Larousse arabe-français. Paris: Larousse, 1987, verbete ‘wazara’, p. 770 e DE LIBERA, A. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998, p. 118.

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Assim, começou a redigir a enciclopédia Al-Šif«’, cuja tradução é 'A

Cura', iniciando-a pela fisica. Al-J−zj«n», afirma que Ibn S»n« acumulava, nesse período,

as funções de vizir ao mesmo tempo em que escrevia, aproximadamente, cinquenta

páginas por dia. É bastante interessante o relato de Al- J−zj«n» que parece testemunhar

a grande energia e capacidade de trabalho de Ibn S»n«:

“Ele havia escrito o primeiro livro do Canon (da medicina), e todas as

noites seus discípulos se reuniam em sua casa. Alternávamos na leitura:

enquanto eu lia a Al- Šif«’, algum outro lia o Canon. Quando

terminávamos, diferentes classes de cantores se faziam presentes e a

sessão de bebidas com seus utensílios era preparada da qual

participávamos. A instrução tinha lugar à noite, devido à escassez de

tempo livre durante o dia por causa do serviço do mestre ao príncipe.” 10

Al- J−zj«n» relata também que Ibn S»n«, embora não tendo se casado,

não podia ver um ‘rabo de saia’: “ O mestre era vigoroso em todas as suas faculdades,

sendo a sexual a mais vigorosa e dominante de suas faculdades concupiscíveis, e ele a

exercia frequentemente”.11

Depois da morte de Šams Al-Dawlah, o novo príncipe, seu filho Taj Al-

Mulk encarcerou Ibn S»n« por quatro meses por questões políticas, acusando-o de ter se

correspondido secretamente com o príncipe ‘Ala’ Al-Dawlah, em Isfahan 12. Na prisão,

compõe algumas obras, dentre elas o tratado ®ay Ibn Yaqzan, escrito em linguagem

simbólica.13

Depois de solto Ibn S»n« transferiu-se para Isfahan, sob os serviços do

príncipe ‘Ala’ Al-Dawlah. Aí se afirmou como mestre incontestável em todas as

ciências. Nessa época compôs a parte da lógica, geografia e astronomia da Al-Šif«’

tendo praticamente terminado esta obra. Outras obras importantes foram escritas

também nesse mesmo período, como por exemplo a Al- ajat (A salvação) que era um

10GOHLMAN, W. E. The life of Ibn Sina. New York: State university of New York press, 1974, pp. 55 - 56. 11Ibid, pp. 82-83. 12 Esta cidade fica no atual Irã. Atlas Geográfico Mundial - Folha de São Paulo-. São Paulo: Folha da Manhã, 1993 p. 69 e 167 . 13Remetemos a PEREIRA, R. H. S. Avicena: a viagem da alma ( uma leitura gnóstico-hermética de Hay Ibn Yaqzân). Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, parte III.

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extrato da Al- Šif«’ e o Danesh- ama ( O Livro das ciências); tendo sido esta última

uma das obras que escreveu em persa e não em árabe. 14

Durante uma viagem em companhia do príncipe ‘Ala’ Al-Dawlah, Ibn

S»n« é acometido de fortes cólicas, sendo obrigado a voltar a Isfahan onde procurou se

curar. Numa nova viagem, com o príncipe, é atacado novamente por cólicas e, depois de

tentar várias vezes um auto tratamento, acaba por se render dizendo: "O governador que

governa o meu corpo, já é incapaz de governar e agora o tratamento não beneficia

mais".15

Ibn S»n« permaneceu doente durante alguns dias e morreu em Hamadan

com a idade de 58 anos. Sua tumba se encontra junto ao muro sul da cidade.

A vida de Ibn S»n« foi, portanto, muito movimentada, tendo-a

aproveitado plena e intensamente; nesta, o vinho, a música e os amores tiveram grande

presença. Foi ministro ao menos duas vezes, mas o exercício desta função não

prejudicou seus estudos de filosofia. Ao contrário, compôs grande parte de sua obra

maior -a Al- Šif«’- enquanto era ministro. Além disso, sua autobiografia também

testemunha sua piedade: “Todas as vezes que um problema me embaraçava, e que eu

não podia encontrar o termo médio de um silogismo, me retirava à mesquita, orando, e

invocava o criador de tudo até que ele me revelasse a solução daquele fato difícil e

obscuro.”16

A dedicação a várias áreas de conhecimento, aliada a uma vida agitada e

plurifacetada, não retiram a unidade a esta e a sua obra; ao contrário, lhes conferem

uma envergadura filosófica e científica difícil de ser encontrada em um só homem. Mas,

como já ficou indicado, Ibn S»n« não partiu de zero.

Na filosofia seus principais pontos de partida foram as obras de

Aristóteles e o sistema de Al- F«r«b». Além disso há nele uma grande presença do

pensamento neo-platônico, principalmente de Plotino17. Esta influência já estava

14 Praticamente toda a sua extensa produção foi escrita em árabe mas há algumas exceções escritas em persa como esta que apontamos. BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 606 apresenta uma relação das obras escritas em persa. 15GOHLMAN,W. E. The life of Ibn Sina. New York: State university of New York Press, 1974, p. 89. 16BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 597. 17BADAWI, A. La transmission de la philosophie grecque au monde arabe. Paris: J. Vrin, 1987 fornece um catálogo completo das obras que foram traduzidas para o árabe. Não entraremos em detalhes sobre a influência da chamada Teologia de Aristóteles, ( na verdade, um extrato das Enéadas de Plotino que teve um papel determinante na filosofia árabe, mesclando o aristotelismo ao neoplatonismo) indicando, a título introdutório ao assunto, FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique.Paris: Les éditions du Cerf, 1989, Cap.I.

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presente em Al-F«r«b» de quem podemos citar principalmente a doutrina cosmológica

caracterizada por uma vasta descrição metafísica e sistemática do mundo, religando o

pensamento plotiniano da emanação à doutrina aristotélica do intelecto. A hierarquia

das inteligências e da emanação das esferas do ser necessário até o mundo sublunar, se

conforma como uma reunião de elementos da filosofia de Aristóteles e do

neoplatonismo.

Quanto à medicina, Ibn S»n« pertence à tradição médica herdada dos

gregos. A teoria dos humores de Hipócrates, por exemplo, e as teorias de Galeno foram

amplamente difundidas dentro da tradição médica árabe, onde juntamente com Al-R«zi

(865-925 d.C. -Rhazes no ocidente-) Ibn S»n« figura entre os maiores médicos.

Tanto na filosofia como na medicina, suas obras foram de suma

importância para a formação do pensamento e das ciências ocidentais.18 Os ocidentais

conheceram Aristóteles em boa parte por intermédio de Ibn S»n«, sendo que

inicialmente o que prevaleceu, até que fossem traduzidas as obras de filosofia natural do

mestre grego eram, na verdade, muito mais as idéias de Ibn S»n« do que as do próprio

Aristóteles.

Na medicina, também, sua presença foi marcante. A obra Al-Qanūn fi Al-

²ib (o Cânon da medicina) foi adotada nas universidades européias até o séc. XVI como

texto de base para o ensino médico, sendo uma síntese dos conhecimentos médicos de

sua época e de suas próprias experiências .19

Particularmente, a simultaneidade nas duas áreas do conhecimento,

medicina e filosofia, parece ter atingido alto grau de excelência em Ibn S»n«, tanto pelo

que produziu quanto pela influência posterior de suas obras. Esta dupla referência se

configura de suma relevância, na medida em que se quer compreender as relações que

Ibn S»n« estabelece entre as teorias médicas e as filosóficas. Isto se torna bastante claro

quando nos propomos estudar uma obra como o Kit«b al- afs, visto o constante

paralelismo e apoio das teorias fisiológicas para reforçar os conceitos filósoficos sobre a

'alma' praticados por Ibn S»n«.

18Quanto à influência do pensamento de Ibn S»n« no ocidente medieval remetemos a GOICHON, A.M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient, 1940. 19SAID, H. M. "O Cânon da Medicina". Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, pp. 13-17. Cf. também PEREIRA, R. H. S. Avicena: a viagem da alma. Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, pp. 1- 63 para outros detalhes a respeito da vida e obra de Ibn S»n«.

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Alguns dados bibliográficos20:

Seguindo a classificação das obras de Ibn S»n«, segundo Georges C.

Anawati 21 contamos 276 títulos. A divisão mais geral apresenta :

24 títulos de filosofia geral, dentre os quais a enciclopédia Al- Šif«’;

22 títulos de lógica,

3 títulos de linguística,

1 título de poesia,

26 títulos de fisica,

33 títulos de psicologia,

43 títulos de medicina,

6 titulos sobre química e magia;

15 títulos sobre matemática, música e astronomia;

32 títulos de metafisica,

6 títulos de exegese do Alcorão,

32 títulos de tratados místicos,

11 títulos de moral, economia, política e profecia;

e 22 cartas pessoais.

Uma classificação cronólogica aproximada dessas obras é possível,

graças à autobiografia de Ibn S»n« posteriormente completada por seu discípulo Al-

J−zj«n». A partir das indicações desta, pode-se reconstruir, ao menos em parte, as datas

aproximadas em que as obras foram escritas, inserindo-as dentro de uma divisão da vida

de Ibn S»n« em seis grandes períodos. A divisão proposta por Anawati é a seguinte:

Iº Período: estada em Bukhara

IIº Período: viagens

IIIº Período: estada em Jurjan

20 BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam Paris: J. Vrin, 1972, apresenta indicações sumárias das obras de Ibn Sina, remetendo (nota à p. 602) à Bibliographie d'Ibn Sina, por Y. Mehdawi, Teheran, 1954, na qual se baseara e que julga ser mais completa e precisa que a de G.C. Anawati no Essai de Bibliographie avicennienne, na qual nos baseamos. No entanto, as indicações sumárias dadas por Badawi são suficientes para confirmar os dados que nos eram necessários e que havíamos encontrado na classificação de Anawati. 21 ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne" . Revue Thomiste. Paris: vol. 51, pp. 407-440, 1951. Retomada em ANAWATI, G.C. Études de philosophie musulmane. Paris: J. Vrin, 1974, pp. 229-262. Lembramos que JANSSENS L. J. An annotated bibliography on Ibn Sina.Leuven: University Press, 1991 segue, em linhas gerais, a classificação de Anawati mas traz informações complementares e mais atuais no que tange às edições e às traduções das obras elencadas.

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IVº Período: estada em Al-Ray

Vº Período: estada em Hamadan

VIº Período: estada em Isfahan

Será de acordo com essa divisão que procuraremos indicar em que época

e em que condições foi escrita a enciclopédia Al- Šif«’, que na parte da física contém o

Kit«b al- afs, objeto de nosso estudo. Passemos, portanto, a nos deter no que concerne

à Al- Šif«’.

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CAPÍTULO I

A AL- ŠIFªŠIFªŠIFªŠIFª’ E O KITªªªªB AL-AFS

A Al -Šif«’ :

A Al- Šif«’ pode ser considerada "a mais importante obra de Avicena". 22

O seu título significa "A Cura". Esta obra foi escrita em árabe. De acordo com a divisão

da vida de Ibn S»n« nos seis grandes períodos, citados anteriormente, esta obra estaria

situada nos dois últimos períodos, isto é, nas suas estadas em Hamadan e posteriormente

em Isfahan."A obra, iniciada em Hamadan, foi terminada 10 anos depois em Isfahan,

quando Ibn S»n« tinha 50 anos."23 Neste caso, esta seria, portanto, uma das obras da sua

maturidade.

Ibn S»n« declara que a intenção da Al-Šif«’ é reunir todos os

conhecimentos mais significativos da filosofia e das ciências antigas que tornaram-se-

lhe conhecidos:

"Nosso objetivo neste livro - esperamos que nos seja concedido tempo

suficiente para terminá-lo e que a ajuda de Deus nos acompanhe para

compô-lo - é registrar nele a quintessência dos fundamentos que

verificamos nas ciências filosóficas atribuídas aos antigos, fundadas na

especulação ordenada e comprovada, e os fundamentos descobertos pelas

inteligências que se ajudam entre si para perceber a verdade (...)Procurei

registrar nele uma grande parte da arte (da filosofia) (...) Esforcei-me em

ser muito breve e me esquivar absolutamente das repetições. (...) Nos

livros dos antigos não se encontra nada que não tenhamos levado em

conta e não tenhamos incorporado neste nosso livro. Se não se encontrar

no lugar em que usualmente os estabelecemos, será encontrado em outro

lugar que me pareceu mais conveniente." 24

A Al- Šif«’ é uma obra enciclopédica, apresentando-se como um conjunto

ordenado que agrupa grande parte das ciências racionais da época. Ibn S»n« introduz

22- ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, p. 417, 1951. 23MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22. 24Al Shifa, Lógica, 1, Introdução, ed. árabe, pp. 9-10 in GUERRERO, R. R. Avicena Madrid: Ediciones del Orto. 1994, pp.53-54. Há também uma tradução deste trecho in MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

18

nesta obra suas próprias pesquisas e hipóteses pessoais, aceitando certas posições de

seus predecessores e rejeitando outras, não se tratando, pois, de um comentário aos

antigos, mas antes, de uma nova síntese dos conhecimentos e das ciências da época.

A envergadura dessa obra, com tal soma de assuntos filosóficos, permite

que Madkur afirme que "não encontramos nenhum livro de filosofia que se assemelhe a

ela"25 e ainda que "...poucos livros exerceram em determinado período da história uma

influência tão grande quanto a Al- Šif«’. Nessa obra-prima de Avicena aparece o duplo

aspecto da personalidade do autor: influência recebida e reação pessoal; simples

assimilação e contribuição original."26

Apesar de algumas controvérsias devidas ao fato de o próprio Ibn S»n«

declarar no prólogo de uma obra posterior denominada Mantiq Al-Masriqiyn 27 ( A

lógica da filosofia oriental)28 que as idéias da Al-Šif«’ não exprimiriam mais o seu

próprio pensamento,29 isto não representaria de modo algum qualquer diminuição que

fosse de seu valor. Incontestavelmente, segundo Bakós, não obstante esse debate, a Al-

Šif«’ marca o apogeu da obra de Ibn S»n« e "representa uma contribuição

importantíssima para a história da cultura da humanidade."30 Acrescente-se a isto o fato

de ter sido precisamente esta obra, ainda que apenas parcialmente, e não uma outra, que

irá posteriormente influenciar o pensamento, a ciência e a cultura ocidentais.

Poderíamos talvez dizer, até mesmo, que a Al- Šif«’ é , em certa medida,

um marco da história da ciência e do pensamento no qual há um certo afunilamento,

uma reunião, na qual tudo o que fôra produzido nesse âmbito tende a repousar, como

25MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22. 26Ibid, p. 28. 27GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médievale. Paris: Librarie d'Amérique et d'orient. Paris, 1940, p.18. 28ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, p. 421, 1951. 29Para a discussão desta questão tão controversa que divide em boa parte os analistas de Ibn S»n«, remetemos a GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médievale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient. Paris, 1940, pp. 1-53; CORBIN, H. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Gallimard,1986, Cap. V, item 4-Avicenne et le avicennisme-, pp. 238-247; e BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J.Vrin, 1972, p. 609-610. Na própria introdução da Al-Šif«’, Ibn S»n« refere-se a isso: “ Além desses dois livros tenho outro.(...) é o meu livro sobre A Filosofia Oriental. Por outro lado este outro livro (Al-Šif«’) é mais detalhado e está mais de acordo com os companheiros peripatéticos. Quem quiser a verdade sem rodeios deverá se dirigir àquele outro livro; quem quiser a verdade de maneira que se produza uma certa satisfação aos companheiros(...) não necessita do outro livro, então que se dirija a este (Al- Šif«’)”. Cf. GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ediciones del Orto, 1994, p.55 e PEREIRA, R. H. S. Avicena: a viagem da alma. Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, pp. 23-41. 30BAKOS, J. Psychologie d'Ibn Sina. Praga: Academie Tchécoslovaque des Sciences, 1956, p. VIII.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

19

síntese dentro de seus limites e, por outro lado, muito do que veio a ser realizado depois,

parte, também, dessa síntese, então realizada. Passemos, pois, a apresentar sua estrutura

interna.

Seguindo a classificação proposta por Anawati,31 encontramos a Al-Šif«’

catalogada entre as obras de filosofia geral, sob o título de nº 14. Há, ainda, uma

indicação lateral que menciona a existência de 105 manuscritos .

A Al-Šif«’ comporta quatro partes:

I) -Lógica,

II) -Física,

III) -Matemática,

IV) -Metafísica.

A Lógica compreende 9 livros:

1) Isagoge, 2) Categorias,

3) Perihermeneas, 4) Primeiros Analíticos,

5) Segundos Analíticos, 6) Dialética,

7) Sofística, 8) Retórica

9) Poética,

A Física compreende 8 livros:

1) A Física propriamente dita, 2) O Céu e o Mundo,

3) A Geração e a Corrupção, 4) As Ações e Paixões,

5) Os Meteoros 6) A Alma, o Kit«b al- afs, objeto

de nosso estudo

7) As Plantas, 8) Os Animais

A Matemática é disposta em quatro livros:

1) Geometria, 2) Aritmética,

3) Música, 4) Astronomia.

31ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, p. 417, 1951.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

20

E finalmente a Metafisica., em 10 livros.32

Importância histórica

As primeiras traduções, de algumas partes da obra de Ibn S»n«,33 foram

feitas primeiramente para o latim, tendo sido parte de um movimento mais amplo, que

objetivava fazer conhecer ao mundo cristão as principais obras gregas e árabes, ocorrido

nos séculos XII e XIII notadamente na Espanha34 na época do bispo Raimundo de

Toledo e posteriormente, tendo nesta cidade um importante centro. Estas traduções

representaram muito pouco do total da obra de Ibn S»n«, e não seria demais afirmar que

a Idade Média ocidental traduziu apenas uma pequena parte da Al-Šif«’, sendo que a

parte da lógica, por exemplo, representa apenas 1/14 do texto original árabe. 35

No caso específico da tradução latina do Kit«b al- afs a própria

dedicatória da tradução se tornou uma fonte histórica importante ao fornecer alguns

detalhes de como, quando e onde foi realizado este trabalho. Esta dedicatória,36

encontrada em mais de quarenta manuscritos,37 se faz em nome de um arcebispo de

Toledo de nome João: “ Johanni Reverentissimo Toletanae sedis Archiepiscopo et

Hispaniarum Primati”. Os dados deste documento revelam, ainda, algumas

circunstâncias da tradução, seu método e seus tradutores. Não se pode determinar com

32Não nos deteremos em fornecer a relação de edições que existem atualmente. Para as respectivas partes da Al-Šif«’ que foram editadas em árabe ou então traduzidas para outros idiomas, ver a relação fornecida por JANSSENS, J. L. An Annotated Bibliography on Ibn Sina (1970-1989). Leuven: University Press, 1991, pp. 3 - 13 . 33Não cabe aqui determo-nos nas condições específicas em que se deram as traduções das obras de Ibn S»n«. Nos limitamos a uma apresentação de caráter introdutório, notadamente do De Anima. Remetemos à coletânea de artigos sobre as traduções de Avicena no ocidente em D’ALVERNY, M.T. Avicenne en occident. Paris: J.Vrin, 1993; ao artigo de Danielle Jacquart, “ A escola de tradutores” em CARDILLAC, L. (org). Toledo, séculos XII-XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. pp. 155-167; e a AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus IV-V “Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction doctrinale par G. Verbeke.1972, pp.92-136. (As citações posteriores seguirão o seguinte formato: VERBEKE. Introd. IV-V, pp. 92-136). 34O meio toledano, neste período, compunha-se de muçulmanos, judeus e cristãos arabizados (moçárabes). Estes últimos, às vezes possuíam dois nomes: um árabe e um latino. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.92. 35ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, p. 417, 1951. 36O texto integral da dedicatória é reproduzido em VERBEKE. Introd. IV-V, pp.103-104. 37O texto do De Anima de Ibn S»n« nos é transmitido por 50 manuscritos: dezessete encontram-se na Itália (oito em Roma); treze na França (dez em Paris); seis na Inglaterra (três em Oxford); cinco na Alemanha; três na Bélgica; dois na Espanha (mas nenhum em Toledo); um em Leiden; um na Suíça; um na Suécia e um na Iugoslávia. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.105.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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certeza qual a real intervenção dos arcebispos ou de outros personagens conhecidos no

conjunto de traduções que teve Toledo como centro. O Bispo Raimundo é geralmente

considerado um mecenas cuja intervenção foi decisiva para a elaboração de traduções

do árabe para o latim, mas parece não ter havido, nesta época, uma “célebre escola dos

tradutores de Toledo”. Nessa medida a dedicatória do De Anima assume relevância ao

indicar algumas dessas condições. Mesmo assim, “os enigmas e as contradições”38 que

ela apresenta divide as opiniões, deixando ainda muitas lacunas abertas. De todo modo,

pela menção do nome do arcebispo citado na dedicatória como “João” sucessor de

Raimundo, é possível situar a elaboração da tradução do De Anima entre 1152, data da

morte de Raimundo e 1166, data da morte de João.

O método de tradução é apresentado na própria dedicatória como um

trabalho de equipe: “Eis, pois, este livro, traduzido do árabe conforme vossa orientação,

eu dizendo cada palavra em língua vulgar39 e o arquediácono Domenico a transferindo

e convertendo em latim.” No entanto, em que medida esta etapa oral era realizada, isto é

algo que não se esclareceu e não se sabe se o tradutor arabofone conhecia ou não o latim

e, se o tradutor latinista conhecia ou não o árabe. O que se confirma é que a tradução

contém muitos equívocos. A confrontação entre o texto árabe e o latino mostra inúmeras

distorções, dentre elas, confusões entre raízes árabes e erros de sintaxe devido à

estrutura maleável da língua árabe. O latinista da equipe é nomeado como Domenico

(Domingos) embora nenhum dos manuscritos forneça o seu nome completo. Apesar

disso, normalmente este nome é identificado com o de “Domenico Gundissalinus” ou

“Domenico Gundissalvi”, falecido em 1190 e que, na sua juventude entre 1152 e 1160,

talvez pudesse ter realizado este trabalho. Tal identificação , no entanto, não põe fim a

uma série de questões que ainda permanecem abertas em torno do latinista da equipe.

Depois do nome e dos títulos do arcebispo de Toledo, a dedicatória traz o nome do

personagem que escreve a própria carta e que se identifica como o arabofone da equipe:

“Avendauth Israelita Philosophus”.40 Há muitas hipóteses em torno de seu nome mas a

verdade é que não se sabe ao certo quem era o sábio “Avendauth” de Toledo por volta

de 1150. Uma das hipótese é que Avendauth seria “Abraham Ibn Daud”, sábio judeu

38VERBEKE. Introd. IV-V, p.94. 39 A língua vulgar era a língua românica. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 98. 40Há alguns manuscritos que citam o nome de Gerardo de Cremona como o tradutor do De Anima. No entanto, esta atribuição parece ter pouca credibilidade pois na mesma época, Gerardo estava traduzindo o Canon de Ibn Sina. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.102.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

22

que viveu em Toledo nessa época e que era conhecido por um tratado filosófico escrito

em árabe. No entanto, a afirmação de Verbeke mantém o tema na obscuridade: “Em

torno da personalidade de Avendauth, o mistério permanece”.41

Não obstante as inúmeras dificuldades de identificação dos tradutores e

até mesmo os vários equívocos nas traduções da obra de Ibn S»n«, estas foram

suficientes para despertar o espírito dos ocidentais medievais para novas considerações

de toda ordem, tornando-as referência praticamente presente em todas as formulações

medievais posteriores, tendo sido, pois, de suma importância no desenvolvimento do

pensamento ocidental .

Fundamentalmente a filosofia de Ibn S»n« foi conhecida pela Metafísica,

os tratados Do Céu, Dos Animais, Sobre a Geração e a Corrupção e o Livro VI dos

Estudos da Natureza (Sextus de aturalibus -Da Alma- Kit«b al- afs-). Além disso

foram traduzidos importantes fragmentos de lógica e das ciências naturais (Física). Este

grupo de escritos, mesmo que fragmentários, se comportou como o "primeiro conjunto

de doutrinas verdadeiramente constituído que chegava ao ocidente" 42 No caso do De

anima, considerado como o primeiro tratado de psicologia racional que penetrou no

Ocidente, seu impacto é verificado não só pelo seu próprio conteúdo mas também

porque apresentava, pela primeira vez, uma síntese do De Anima de Aristóteles.43

O choque, causado sobre a teologia cristã será enorme.44 Todos os nomes

da escolástica universitária cristã ( Boaventura, Alberto Magno, Rogério Bacon, Tomás

de Aquino, João Duns Scot, etc) não só se referem a Ibn S»n« e o citam, mas se apoiam

nele. E mesmo quando dele discordam, dão-se ao trabalho de discutir detalhadamente

suas teses. Para ficar num único exemplo, Tomás de Aquino o cita na Suma de Teologia

mais de 250 vezes.45 Provavelmente as bases da metafísica de Duns Scot seriam

impossíveis sem as concepções avicenianas sobre o ente e a essência.46 Teremos

41VERBEKE. Introd. IV-V, p.101. 42GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient, 1940, p.90. 43 Houve também uma tradução de Nemésio (De atura hominis) que também foi feita à mesma época, talvez alguns anos antes. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.102. 44A respeito de aspectos importantes da repercussão do pensamento de Ibn S»n« no ocidente veja-se GOICHON, A.M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient, 1940, cap. III p. 89 - 133. e DE LIBERA, A. La philosophie médiévale. Paris: P.U.F., 1993, p. 117 -120. 45Cf. FOREST, A. La structure métaphysique du concret selon Saint Thomas d’Aquin. Paris: J.Vrin, 1956, 2ª ed., pp 331-360: tabela de citações de Avicena por Tomás de Aquino. 46Cf. GILSON, E. “Avicenne et le point de départ de Duns Scot”, Archives d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge, 1927, pp. 89-149, V.2.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

23

oportunidade, mais adiante, de particularizar estas indicações no que se refere ao De

anima ou Liber Sextus de aturalibus, o Livro VI dos Tratados sobre a atureza,

o Kit«b al- afs.

O Kit««««b Al-afs.

Características Gerais:

Como havíamos alertado na apresentação deste trabalho, o Kit«b al- afs

não é um comentário ao texto de Aristóteles sobre o mesmo assunto, mas é antes uma

exposição sistemática das próprias idéias de Ibn S»n«. A intenção de Ibn S»n« é, antes

de mais nada, encontrar explicações para as realidades observáveis, o que lhe confere,

em certa medida, um perfil ‘empírico’ com raízes e inspirações aristotélicas. De modo

geral, os contornos do tratado acompanham os do mestre grego em seu De Anima mas

se desenvolvem em dois sentidos: no primeiro, aquilo que em Aristóteles está dito de

modo embrionário ou apenas potencial, adquire em Ibn S»n« contornos mais definidos e

classificações mais precisas; no segundo, Ibn S»n« se distancia do aristotelismo,

acrescentando elementos de outras fontes para assegurar suas posições a respeito da

alma. Além disso, é notável o desenvolvimento dado à parte fisiológica, aliando de

forma acentuada a tradição médica à tradição filosófica.

Entendemos que para termos uma noção melhor de como se apresenta

esta exposição de Ibn S»n«, diríamos que este, indubitavelmente, utiliza-se de teorias e

de idéias já consagradas, mas apenas na medida em que estas tenham uma função clara

para compor com o seu sistema e partilhar de suas convicções como um todo. Se, por

outro lado, tais idéias não se articularem com suas premissas, com certeza serão

criticadas e negadas em seu valor de verdade. Por essa razão, mesmo possuindo um

declarado respeito pela sabedoria dos antigos, e principalmente pela de Aristóteles, Ibn

S»n« parece se colocar numa postura que o possibilita ir além de tudo o que já fôra dito.

Nessas condições lhe é possível discutir com todos os que o antecederam,

concordar com eles e eventualmente discordar deles baseado fundamentalmente em suas

experiências ou conclusões que o amparam de maneira vigorosa. É nessa medida que

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

24

entendemos que Ibn S»n« pode se utilizar de inúmeras teorias consagradas tanto na

filosofia, como por exemplo, a doutrina da alma como forma do corpo, quanto na

medicina, como por exemplo, a doutrina do pneuma, procurando articulá-las com

elementos de sua fé muçulmana, como no caso da profecia, que constitui o ápice do

conhecimento. A articulação desses diversos elementos refletem a sua síntese própria.

Isso permite que se identifique a personalidade do autor de modo a diferenciá-lo

absolutamente de seus antecessores, sejam eles árabes ou gregos.

Importância histórica:

Talvez não seja despropositado começar relembrando que a questão

medieval a respeito da alma possui uma unidade de fundo que se desdobra em dois

momentos teóricos: um greco-latino ( agostiniano e boeciano) e outro peripatético ou

greco-árabe. Segundo Alain De Libera "Na tradição greco-latina que precede a difusão

dos textos peripatéticos, dominam: o modelo trinitário do pensamento e da alma,

produzido por Agostinho; a teoria da natureza e do funcionamento da intelecção

elaborada nos comentários lógicos de Boécio e o conjunto das proposições psicológicas

tiradas da exegese teológica cristã do Timeu. A teoria aristotélica da alma é

desconhecida ou negligenciada. O desenrolar integral da teoria medieval do pensamento

começa com a leitura de Ibn S»n« e dos escritos naturais de Aristóteles." 47

Ainda, indicando a importância do texto de Ibn S»n«, declara:

"Conhecido antes do De anima de Aristóteles, o De anima de Avicena fornece o âmbito

quase definitivo da teoria peripatética da alma.(...) A organicidade estabelecida entre

biologia, psicologia e teologia explica o sucesso do modelo aviceniano" 48

Segundo G. Verbeke,49 "o tratado de Avicena representou uma etapa

original e importante da reflexão sobre o homem". Diferentemente dos inúmeros

comentários medievais sobre o De Anima de Aristóteles existentes, que não estão

editados porque sequer valem a pena, o tratado de Ibn S»n« destaca-se destes pela

originalidade e por sua contribuição na evolução do pensamento filosófico e científico.

47DE LIBERA, A. A flosofia medieval. Rio de Janeiro: J.Zahar,1990, p. 83. 48Ibid, p.86 49VERBEKE Introd. I-III p.1.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

25

O De Anima de Ibn S»n« não é um comentário, mas uma exposição sistemática e uma

nova síntese. 50

Ibn S»n« repensa o homem a partir do desenvolvimento das ciências,

particularmente da medicina. O âmbito do tratado procura lidar com duas visões

aparentemente excludentes, mas que na obra de Ibn S»n« se harmonizam: a

materialidade e a imaterialidade do homem. Por um lado, desenvolve uma visão de alma

muito mais espiritualista que a de Aristóteles;51 por outro lado, fornece elementos que

possibilitam a articulação dos elementos fisiológicos tanto da anatomia do cérebro, da

estrutura dos órgãos, das funções do coração e fígado, do papel do sistema nervoso e

inúmeras outras caracterísiticas do homem visto como organismo corporal.

O aspecto espiritualista ao qual o homem está vinculado neste tratado de

Ibn S»n«, possibilitou, que ele fosse acolhido com simpatia pelo ocidente cristão,52 ao

menos num primeiro momento. O momento seguinte, foi menos favorável, a partir do

início dos debates a respeito da transcendência do intelecto agente, que ameaçaria,

segundo a visão dos teólogos cristãos, a integridade da pessoa humana.53 No entanto, a

maioria dos teólogos e filósofos da Idade Média latina frequentemente se apoiou sobre a

autoridade de Ibn S»n« para justificar as suas próprias doutrinas.54

Estes são alguns dos traços que indicam a importância da introdução do

De Anima de Ibn S»n« no ocidente medieval. Os desdobramentos posteriores dessa

influência, com muita probabilidade, estarão presentes nas teorias psicológicas que

adentraram o pensamento moderno, visto que os modernos, mesmo tentando uma

ruptura, se apoiaram ainda nos medievais.

Desse modo, ainda que de forma indireta, muitas formulações do

pensamento moderno podem encontrar sua mais longínqua inspiração nas teorias de Ibn

S»n«. Das formulações da teoria das idéias do empirismo inglês até o limite de algumas

intuições cartesianas, pode-se avaliar o quanto o pensamento de Ibn S»n« foi abrangente,

trazendo ao despertar do ocidente a sabedoria dos antigos de modo renovado e

consistente. Influenciou cientistas, teólogos e médicos, numa obra de amplos horizontes,

um dos pilares do impulso verificado na Europa no seu período de despertar e de maior

efervescência.

50Ibid, p.3. 51Ibid, p.1. 52Ibid, p.1. 53Ibid, p.1. 54Ibid, p.1.

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As edições:

Na classificação bibliográfica de Badawi encontra-se anotado que a

Física da Al-Šif«’ foi editada (em litografia) em Teerã em 1886. Particularmente no que

se refere ao Livro VI -Kit«b al- afs- pudemos identificar as seguintes edições:

1) RAHMAN, F. Avicenna's De Anima, Being the Psychological

part of Kitab Al-Shifa. London: Oxford University Press, 1960 ;

2) BAKÓS, J. Psychologie d'Ibn Sina. Praga: Académie

Tchecoslovaque des Sciences, 1956. (Acompanhada de uma tradução francesa)55;

3) AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus I-II-

III.”Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par

G. Verbeke.1972; AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus IV-

V.”Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G.

Verbeke.1968;

5) De anima et Philosophia Prima. Veneza, 1508. (Primeira edição

latina);

6) BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin,

1972, p. 672-674 e 678-679. (Tradução parcial, confrontada com a tradução de Bakós).

55Esta é a edição que, em princípio, utilizamos para realizar a maior parte desta pesquisa. Entretanto, recorremos frequentemente ao texto latino para dirimirmos dúvidas.

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A Divisão :

O Kit«b al- afs constitui-se de uma introdução e de cinco capítulos ,

sendo que cada capítulo é dividido em seções, variando seu número, conforme o

capítulo, de quatro a oito. Os capítulos possuem aproximadamente a mesma extensão,

exceto o capítulo III, que tem praticamente o dobro da extensão dos outros e é dedicado

exclusivamente ao estudo da luz e da visão.

Na Introdução, Ibn S»n« apresenta a posição deste livro em relação ao

conjunto da enciclopédia Al-Šif«’.

O Capítulo I é dividido em cinco seções.56 É dedicado principalmente a

definir a alma, refutar as doutrinas que Ibn S»n« considera falsas, estabelecê-la como

uma substância e iniciar a enumeração das diversas faculdades que a alma possui.

Primeira seção: Constatação da existência da alma e sua definição;

Segunda seção: Opiniões dos antigos e refutação;

Terceira seção: A alma como substância;

Quarta seção: A diversidade das faculdades;

Quinta seção: Enumeração das faculdades.

O Capitulo II trata da alma vegetal e dos sentidos externos de que é

dotado o animal.

Primeira seção: Determinação das faculdades da alma vegetal;

Segunda seção: Dos modos de percepção que possuímos;

Terceira seção: Do tato;

Quarta seção: Do paladar e do olfato;

Quinta seção: Da audição.

O Capitulo III, como dissemos, é o mais longo e se refere apenas à luz e

ao sentido da visão.

Primeira seção: Da luz, da diafanidade e da cor;

Segunda seção: Da claridade e do raio luminoso;

Terceira seção: Refutação de doutrinas sobre a claridade;

Quarta seção: Reflexão sobre as doutrinas enunciadas sobre as cores;

56Os títulos das seções foram adaptados, indicando apenas o tema principal.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

28

Quinta seção: Das doutrinas sobre a visão;

Sexta seção: Refutação de doutrinas sobre a visão;

Sétima seção: Solução das dúvidas enunciadas;

Oitava seção: Da causa pela qual uma coisa é vista como duas coisas.

O Capitulo IV, o que mais nos interessa neste trabalho, trata dos sentidos

internos.

Primeira seção: Enunciado universal sobre os sentidos internos no

animal;

Segunda seção: Da faculdade formativa e cogitativa;

Terceira seção: Da faculdade que se lembra e da estimativa;

Quarta seção: Das faculdades motoras.

O Capítulo V apresenta fundamentalmente as faculdades da alma

racional, terminando com a explicação dos orgãos que pertencem à alma.

Primeira seção: Ações e paixões da alma humana;

Segunda seção: Prova da subsistência da alma racional;

Terceira seção: Relação da alma humana com os sentidos e o início do

ser da alma;

Quarta seção: De que a alma humana não se corrompe nem se transmite;

Quinta seção: Do intelecto agente e paciente;

Sexta seção: Dos graus de inteligência e o intelecto santo;

Sétima seção: Doutrinas herdadas dos antigos;

Oitava seção: Explicação dos órgãos que pertencem à alma.

Passaremos, em seguida, a apresentar as principais teses de Ibn S»n« no

que se refere aos sentidos internos. Para fazer isto é, no entanto, necessário situá-lo no

conjunto da obra, seguindo o próprio encadeamento dado pelo autor. Não pretendemos

apresentar por igual todos os capítulos e seções, sendo o que não diz respeito

diretamente aos sentidos internos mencionado apenas a título de melhor localização e

compreensão destes. Na realidade, apresentamos uma leitura do Cap. I, como

preparação para a exposição da doutrina acerca dos sentidos internos (Cap. IV). Este

será acompanhado de maneira mais detalhada.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

29

CAPÍTULO II:

OS SE�TIDOS I�TER�OS �O KITªªªªB AL-AFS

Prolegômenos: o quadro geral do Kit««««b al-afs (Cap.I)

Introdução:

A abertura do Livro VI se dá com a frase:

“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.”57

Em sua introdução, Ibn S»n« fornece um quadro geral dos livros que já

foram escritos na parte da Física58, assim como dos demais livros que serão sucessivos a

este.59A hierarquia dos seres físicos pode ser verificada através da própria forma

ascencional com que são divididos e apresentados os livros e seus respectivos temas.

No primeiro livro tratou das coisas comuns às coisas naturais (Física); 60

em seguida, no segundo livro tratou a respeito do céu e do mundo sublunar, dos corpos

e dos movimentos primeiros no mundo da natureza (De Caelo et Mundo). Indica que

nos livros três e quatro, falou-se sobre a geração e a corrupção dos corpos e dos

elementos dos corpos (De Generatione et Corruptione e De Actionibus et Passionibus

universalibus quae fiunt ex qualitatibus elementorum) e sobre as qualidades primeiras e

suas paixões e sobre as misturas que nascem disso. O livro quinto, trata das coisas

engendradas, tendo como objeto as coisas sólidas e o que não tem nem sensibilidade

nem movimento voluntário visto serem as mais antigas dentre elas e as mais próximas

delas, enquanto engendradas a partir dos elementos (De Mineralibus). Ora, da ciência

natural restou o estudo relativo aos vegetais e aos animais sendo, estes, coisas

engendradas que possuem, não apenas a simples combinação dos elementos, mas uma

combinação tal que nos permite diferenciá-los dos outros corpos. Isto se dá porque

possuem não só matéria, mas também alma, que lhes confere essencial diferença na

57Int, p. 3. As citações do texto original seguirão o seguinte formato: I, 2, 35, significando respectivamente Capítulo I, Seção 2, página 35 da edição de Jan Bakós. 58A filosofia da natureza (scientia naturalis), na Al-Šif«’, compreende oito tratados. O De Anima é o sexto. 59Não são citados os 9 livros da primeira divisão da Lógica. A sequência, iniciada pelos Livros da parte da Física, da parte da Matemática e terminando com os da Metafisica e a ciência dos costumes confirma, de modo geral, a divisão de Anawati (Cf. supra pp. 16-17). Esta divisão não é original, visto que a encontramos em Aristóteles nos Meteorológicos (338ª -339ª). No entanto, no que se refere à Física, Ibn Sina insere alguns tratados pseudo-aristotélicos. 60Isto é, a física propriamente dita em que estuda sobretudo o movimento, o tempo e outras questões relativas ao mundo material. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.9.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

30

medida em que são dotados de sensibilidade e movimento, nascimento, crescimento e

geracão. Portanto, o livro sexto (Sextus de naturalibus) tratará da alma. Assim, Ibn S»n«,

como Aristóteles, classifica a psicologia entre as ciências naturais, sendo ela um ramo

da física, tendo por objeto a alma do ser animado, do ζωον εµψυχον. Ibn S»n« não faz

referência aos dois últimos livros depois do De Anima mas, são eles: o estudo das

plantas (De Vegetabilibus) e dos animais (De Animalibus)61 O estudo da vida,

começando no sexto livro, se inicia pela análise da alma naquilo em que há de comum

no homem, nos animais e nas plantas. Por isso os tratados sobre os vegetais e animais

vêm depois do Livro VI. Assim como o estudo da Física introduz o estudo do mundo

material, este tratado introduz o estudo do mundo biológico.62

Αpós explicar os procedimentos adotados para dividir o estudo da alma

no que concerne ao vegetal, ao animal e à alma humana, Ibn S»n« indica que irá iniciar

este estudo primeiramente pelas informações relativas à alma, e depois pelas

informações relativas ao corpo, visto que considera essa sequência melhor para o

ensinamento do que o contrário.

Na medida em que o conhecimento de toda coisa é primeiramente o que

se refere à sua forma, justificar-se-ia o porquê de se falar primeiramente da alma e

depois do corpo. No entanto, Ibn S»n« não considera que essa sequência seja necessária,

afirmando que não entrará em disputa se alguém decidir inverter a sequência proposta.

No nosso caso estamos totalmente isentos de tal disputa com Ibn S»n«, pois optamos por

seguir o quanto possível a sua sequência, procurando relatar passo a passo as suas

principais considerações.

61Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.9. 62Ibid. p.9.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

31

CAPÍTULO PRIMEIRO:

Da ciência da alma em cinco seções

Primeira seção: Constatação63 da alma e sua definição enquanto alma.

Esta primeira seção apresenta duas considerações básicas para o estudo

da alma: a constatação da existência da alma e sua definição como alma.

A primeira coisa de que é preciso falar é a constatação da existência da

alma. Isso pode ser feito a partir do fato de que observamos não apenas corpos, mas

determinados corpos que sentem e se movem espontaneamente, se nutrem, crescem e

engendram semelhantes. Ora, esses corpos não podem ser o que são, apenas pela sua

corporeidade, pois se assim fosse, a simples corporeidade seria suficiente para os dotar

dessas características de sensibilidade e movimento espontâneo, nutrição, crescimento e

geração; o que, na verdade, não é observado, visto que há corpos que não possuem essas

particularidades.64 Resta, pois, que existem princípios outros que a própria corporeidade

dos corpos que lhes garantam as características mencionadas. É justamente isso, que é o

princípio do qual procedem essas ações espontâneas, que chamamos alma.

Isto a que chamamos alma é parte da constituição das coisas que

afirmamos possuí-la. Pois, sendo as coisas, que afirmamos possuírem alma, corpos e sua

existência enquanto vegetal ou animal só se perfazendo em razão da existência dessa

nelas, é forçoso que esta seja parte inerente de sua constituição.

Mas é necessário definir como ela participa dessa constituição, visto que

as partes da constituição de uma coisa podem ser de duas categorias: ato e potência. Se

a alma fosse da segunda categoria, isto é, potência como é o corpo, seria necessário

algum outro tipo de ato que realizasse a perfeição do animal e do vegetal. Mas tal

perfeição é justamente a alma, que realiza este acabamento. Desse modo, a alma é isso

pelo que o vegetal e o animal tornam-se vegetal e animal em ato. É forçoso que ela seja

63 O termo a\_f[ - itb«t - encontra sua melhor tradução como ‘constatação’, ‘afirmação’. (Cf. REIG, D.

Dictionaire Larousse arabe-français. Paris: Larousse, 1987, p. 74 ). A tradução latina adotou o termo ‘afirmação’ (Cf. AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus I-II-III , p. 14 e Léxique arabo-

latin, p. 299). Bakós adotou o termo ‘preuve’ - prova, mas este cabe melhor ao termo ²\·z^ - burh«n -

(Cf. ISKANDAR, J. I. Avicena - A origem e o retorno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 198 e GOICHON, A. M. Lexique de la langue philosophique d’Ibn Sina. Paris: Desclée de Brouve, 1938, p. 21, n. 47.) Além disso a argumentação de Ibn S»n«, nesta seção, confirma tratar-se mais de constatação do que de prova. 64Como há seres corpóreos que são inanimados, o corpo enquanto tal não pode ser o princípio da vida. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p.23.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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uma forma e não um corpo, pois se assim fosse, o próprio corpo seria sua forma, o que

não se pode sustentar. Assim sendo, pode-se afirmar que: “ (...) é claro que a essência da

alma não é um corpo, mas parte do animal e do vegetal; ela é uma forma, ou como

forma ou como perfeição .” 65 A partir dessas análises parciais, podemos estabelecer em

que sentido, podemos chamar a alma de faculdade, forma ou perfeição.

Podemos denominar a alma como sendo uma faculdade em vista dos atos

que dela procedem, o que significa tanto as ações de crescimento, geração e nutrição,

quanto do próprio movimento e da sensibilidade. Do mesmo modo, ainda, podemos

chamá-la faculdade, mas num outro sentido, que não se refere propriamente a esse tipo

de atos que mencionamos, mas a certas formas sensíveis e inteligíveis que se

aproximam dela. Nesse segundo caso, então, estaríamos diante não só da simples

animalidade, mas de outras funções próprias dos processos de sensação em conexão

com a intelecção.

Podemos também chamá-la forma relativamente à matéria que ela tomou

por receptáculo, sendo que, desse modo, o composto matéria e forma se torna uma

substância 66 vegetal ou animal.

A alma pode ser chamada também de perfeição relativamente ao

acabamento do gênero em espécie realizado por ela, visto ser a natureza do gênero

incompleta e indeterminada enquanto a natureza da diferença não a colocar em ato

reunindo-se a ela; sendo que a espécie é acabada somente quando a diferença é assim

reunida.67 Ora, se a espécie é ato em relação ao gênero, se a perfeição é o acabamento

do gênero pela atualização da espécie através dos seres particulares, e se a alma , como

forma, é esse acabamento, logo, a alma é perfeição, no sentido de que, como forma em

relação à matéria, aperfeiçoa o gênero, atualizando-o na espécie, pelos particulares.

Dessa maneira, temos então quais os sentidos que podem ser atribuídos à

denominação de alma. Num primeiro sentido pode ser chamada de princípio eficiente e

faculdade motora em relação ao movimento; num segundo sentido, pode ser

65I,1,6. A tradução literal do árabe é “ como forma ou como perfeição” - − \°¨«\§ ¼[ ºy½ˆ«\¨ . O

texto latino traduziu este final como “quase forma ou quase perfeição” entendendo a partícula ‘¨‘, antes

do substantivo, como uma comparação (“ como se fosse uma forma ou como se fosse uma perfeição ” ) permitindo, nesse caso, que se entenda forma não no mesmo sentido aristotélico, mas com uma leve nuance, visto que, para Ibn Sina, sendo a alma uma substância imaterial como pode ser considerada a forma do vivente que é o homem? Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p.23. 66Trata-se do συνολον de Aristóteles. Cf. Bakós n. 2. 67Pode-se dizer que a alma é uma perfeição, pois o gênero recebe dela sua determinação, enquanto que a espécie é constituída por ela. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 24.

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denominada forma em relação à matéria; e ainda pode ser chamada de perfeição e fim

em relação ao todo. Portanto, deve-se considerar que, quando dizemos que a alma é

forma, isto decorre do fato de que sua existência está em relação com a matéria, ao

passo que a perfeição exige uma relação com a coisa completa da qual procedem os

atos. Assim, quando dizemos perfeição estamos afirmando que a alma é perfeição

quanto à sua relação com a espécie. Sendo, pois, preferível referir-se à alma como

perfeição, pois, quando dizemos perfeição, isto inclui as duas idéias, isto é, forma e

faculdade. Pois a alma, sob o aspecto da faculdade, pela qual se conclui a percepção do

animal é uma perfeição e sob o aspecto da faculdade da qual procedem os atos do

animal, ela é ainda uma perfeição; a alma isolada é uma perfeição e a alma que não é

isolada é uma perfeição. Assim, pode-se estabelecer a perfeição como o conceito mais

próprio para a alma. Ao dizer que a alma é perfeição, Ibn S»n« quer dizer que a

fisionomia característica e as atividades particulares do ser vivo vêm do princípio

psíquico: este não é somente uma fonte de movimento ou de atividade cognitiva, é

simultaneamente os dois e está na raiz que constitui a estrutura própria dos seres

vivos.68

Resta ainda, no entanto, verificar que, não obstante o fato de chamá-la de

perfeição ser o mais apropriado, ainda assim isto não se dá em um só sentido apenas,

mas ao menos em dois níveis, porque existem duas espécies de perfeição: uma perfeição

primeira que é aquela pela qual a espécie se torna espécie em ato; e uma perfeição

segunda que ocorre a partir das ações e das paixões da primeira perfeição. Portanto, a

alma, em vista da atualização da espécie é uma perfeição primeira; e tratando-se do

exercício, das paixões e ações vindas da espécie dessa coisa, é uma perfeição segunda.

Mas como a perfeição segunda não pode existir sem a primeira, podemos afirmar,

finalmente, que o que mais caracteriza a alma, visto ser a definição mais geral, que

abarca todas as outras é, ser perfeição primeira: “ A alma que encontramos é, então,

perfeição primeira de um corpo natural, provido de órgãos, que pode realizar os atos da

vida.” 69

Indica-se, ainda nesta seção o tema da substancialidade da alma. Apesar

da definição da alma como perfeição, com isto não conhecemos se ela é ou não uma

68 Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 24. 69I,1,10. Esta definição aproxima-se bastante da de Aristóteles no De anima II 412 a 20, na qual afirma a alma como a forma de um corpo natural tendo a vida em potência, e II 412b5 em que afirma a alma como enteléquia primeira de um corpo natural organizado.

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substância, porque a idéia da perfeição indica aquilo pelo que o animal se torna animal

em ato e o vegetal, vegetal em ato. Esse tema, embora mencionado nesta seção, será

desenvolvido apenas na seção seguinte.

Ao final desta seção, encontra-se um outro meio pelo qual o homem pode

constatar a existência da alma, que fôra anunciada na sua primeira frase: “ Dizemos que

a primeira coisa que devemos falar é a constatatação da existência disso que se chama

alma.” 70 Embora esta constatação tenha sido realizada através da observação dos

corpos animados, Ibn S»n« fornece uma nova via para esta constatação. De todo modo,

parece claro que a preocupação que precede todas as outras é justamente a de

estabelecer, de modo irrefutável, a constatação da existência daquilo que se vai estudar:

a alma.

Esta via de constatação ficou conhecida como a alegoria do “homem

suspenso no espaço” 71 e apresenta-se da seguinte maneira:

“É preciso que um de nós conceba que foi criado de uma só vez, e criado

perfeito, mas que sua vista foi velada, privada da intuição sensível das

coisas exteriores; que ele foi criado caindo de cima para baixo no ar ou

no vácuo, de modo que a constituição do ar não o atingisse de tal maneira

que ele devesse senti-la; que seus membros estivessem separados, não se

encontrassem nem se tocassem. Em seguida ele refletirá: pode ele afirmar

a existência de sua essência sem duvidar da afirmação de que ele próprio

existe e não afirmar, malgrado isto, nem a extremidade de seus

membros, nem o interior de suas entranhas, nem o coração, nem o

cérebro, nem nada de exterior ? Melhor: ele afirmará sua essência, mas

não afirmará nela nem comprimento, nem largura, nem profundidade. E

se neste estado lhe fosse possível imaginar-se uma mão ou um outro

membro, não o imaginaria como parte de sua essência nem condição em

sua essência. Ora, tu sabes que o que é afirmado é distinto do que não é

afirmado e que o que o deduz é distinto do que não o deduz. Logo, a

essência cuja existência foi afirmada possui uma propriedade, na medida

70 I, 1, 5. 71 Esta também é referida como a “alegoria do homem voador ” ou o “Cogito” de Ibn S»n«, no qual o homem, sem a intermediação do corpo, se percebe existente e pensante. Além disso, leve-se em consideração que essa alegoria era muito conhecida na Idade Média. Cf. Bakós n. 58. Ver a respeito: GILSON, E. 'Les sources greco-arabes de l'augustinisme avicennisant', pp. 39-53. Segundo GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, p. 42 a base do argumento é neoplatônica.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

35

que esse homem é nele mesmo distinto de seu corpo e de seus membros

que não eram afirmados. Então, aquele que afirma, possui um meio para

o afirmar, em virtude da existência da alma, como algo distinto do corpo,

ou melhor, sem corpo. Certamente esse homem o conhece e o percebe, e

se ele o tivesse esquecido, teria necessidade de ser advertido.” 72

Pode-se considerar que esta seria uma visão bastante original de Ibn S»n«, na medida em

que não se confunde nem com a doutrina de Aristóteles e nem com a de Platão e dos

neoplatônicos. Para Aristóteles, por um lado, a alma não seria independente do corpo,

não tendo uma vida própria e, por outro lado, não seria dotada de preexistência

conforme Platão e os neoplatônicos; para Ibn S»n« a alma tem o começo de seu ser

juntamente com o corpo e a partir de então não está sujeita à corrupção.

Com essa alegoria encerram-se as três considerações importantes e

fundamentais para o estudo da alma: a constatação de sua existência, sua definição, e o

uso do termo alma em suas diversas aplicações.

Segunda seção: Menção do que os antigos 73 disseram da alma e de sua substância e

refutação.

Assim como Aristóteles, Ibn S»n« dedica uma seção especial para expor e

refutar o que os antigos disseram da alma e de sua substância. No entanto, em referência

ao conjunto da obra, a colocação dessa seção difere daquela adotada por Aristóteles. O

Estagirita inicia a sua obra, apresentando primeiramente, um pequeno estudo sobre o

método e as dificuldades metodológicas de se estudar a alma. 74 Após esse prefácio

metodológico, passa a apresentar e a criticar as teorias anteriores sobre a alma 75 sendo

que, só depois de todo esse trajeto, apresenta a sua própria definição de alma.

No caso de Ibn S»n«, encontramos diferentemente, como vimos, uma

definição categórica já na primeira seção, não havendo nenhum tipo de preocupação em

discutir qualquer tipo de questão metodológica. Só depois de fornecer sua própria

definição de alma, passa então a se ocupar com o exame da doutrina dos antigos.

Os nomes que estão, direta ou indiretamente, envolvidos nessa relação de

opiniões e posições adotadas entre os antigos, podem ser reduzidos a dois principais

blocos: por um lado, o dos que consideravam a alma como um princípio incorpóreo e,

72I, 1, 12-13. 73 Os antigos são os predecessores de Aristóteles. 74 De anima, Livro I, 1.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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por outro lado, os representantes da posição que sustentava que a alma seria um

princípio corpóreo. Sem considerações mais específicas sobre tais posições, poderíamos

enumerar os principais nomes como sendo os de Tales, Anaximandro, Anaxímenes,

Heráclito, Demócrito, Empédocles, os pitagóricos, Platão e Xenócrates. 76

O conjunto deste exame das doutrinas dos antigos é bastante breve, 77 o

que somado ao que disséramos no início desta seção, indicaria uma clara preeminência

em Ibn S»n« de estabelecer muito mais as suas próprias convicções do que de abrir uma

discussão mais detalhada com outras posições filosóficas. Indica também uma postura

metodológica diferenciada, pois Aristóteles começa apresentando as aporias ao passo

que Ibn Sina procede mais de modo expositivo.

Mesmo assim, inicia o exame a partir de um roteiro geral, afirmando que

as opiniões dos antigos divergiram consideravelmente sobre a maneira de definir a

alma, tendo se diferenciado segundo a via que tomaram. Alguns, por exemplo,

tomaram a via, em direção à ciência da alma, do ponto de vista do movimento; outros

procuraram estabelecer a prevalência de uma análise a partir da percepção; outros,

ainda, procuraram aproximar as duas vias e, além desses, houve outros que

identificaram o estudo da alma com o estudo da vida. Algumas dessas inúmeras

posições adotadas pelos antigos,78 passam, então, a ser apresentadas de modo sumário,

procurando-se destacar suas características mais distintivas.

Dentre as principais posições, destacamos, a dos que consideraram a

alma como móvel por si mesma, sendo um motor primeiro;79 ou então a dos que

afirmaram que ela seria uma substância incorpórea, preexistente; ou ainda a dos que

defenderam a posição de que a alma poderia ser reduzida a um dos elementos, como

por exemplo o fogo ou a água; ou então, dos que disseram que a alma seria um

75 De anima, Livro I, 2 a 5. 76Cf. Bakós n. 66. 77 Ocupa apenas uma seção ( 7 pp. na tradução de Bakós); Aristóteles dedica a esta questão a maior parte do Livro I do De Anima. 78Para um estudo mais detalhados da discussão que se estabelece vide VERBEKE. Introd. I-III, pp. 15-22. 79O autor ao qual Ibn S»n« se refere é manifestamente Platão que no Fedro define a alma como um princípio que se move perpetuamente a si mesmo. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 16.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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corpo80; além dos que sustentaram a opinião de que a alma seria o resultado de uma

mera composição dos elementos; ou então dos que asseveraram que a alma seria uma

espécie de harmonia. Ibn S»n« deixa claro o que pensa acerca dessas doutrinas:

“Estas são, em relação ao tema da alma, as doutrinas referentes aos

filósofos mais antigos, mas todas são falsas. Quanto aos que se

apegavam ao movimento, o primeiro absurdo que os acompanha é que

esqueceram o repouso.” 81

A explícita afirmação da falsidade dessas doutrinas perpassa toda a seção. Ibn S»n«

apresenta as refutações a partir de duas vias: as contradições internas que essas

doutrinas apresentam, ou então as suas próprias conclusões e formulações, sejam elas

empíricas ou lógicas que , ao se confrontarem com as doutrinas então criticadas, acabam

prevalecendo e derrubando-as.

Ainda assim, parece haver uma preferência de Ibn Sina em demonstrar a

falsidade e a fragilidade dessas opiniões dos antigos a partir da apresentação da sua

própria doutrina, que será exposta ao longo dos capítulos seguintes. É o que se

depreende da passagem final da seção:

“A falsidade de todas essas opiniões será em breve manifesta de outros

modos, nas suas falhas, pelo que conheceremos quanto ao estudo da

alma.” 82

Terceira seção: De que a alma é intrínseca ao predicamento da substância. 83

"Certamente, tu sabes pelo que precedeu para ti, que a alma não é corpo,

e se fosse estabelecido para ti que a uma certa alma convém o estado

separado com a subsistência de sua essência, não te ocorreria uma dúvida

sobre o fato de que ela fosse uma substância." 84

Com esta frase, na abertura da seção, introduz-se a questão principal que será colocada,

isto é, a determinação da substancialidade da alma.

80Certamente Demócrito e Leucipo, que asseveraram que a alma seria composta de átomos esféricos que estariam em perpétuo movimento e que se renovam sem cessar graças à respiração, sendo que, estando em contínuo movimento, esses átomos são capazes de mover outra coisa. CF. VERBEKE. Introd. I-III, p. 16. 81 I, 2,15. Acerca dos que partiram da percepção, ver p. 16. 82 I, 2, 19. 83 Pode-se dizer que esta seção apresenta-se como uma continuação direta da primeira, a qual fôra interrompida pela refutação das doutrinas dos antigos. 84 I, 3, 20.

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É próprio da substância não subsistir em nenhum sujeito de inerência. Ao

contrário, é próprio do acidente inerir a uma dada substância. O que está ligado

necessariamente a um sujeito de inerência não pode existir por si mesmo, sendo privado

da independência necessária que caracteriza uma substância; existindo, portanto, de um

modo acidental, isto é, necessariamente ligado a uma dada substância.

Assim, torna-se necessário distinguir o modo pelo qual a alma faz parte

do composto vivente, visto que há inúmeras propriedades que fazem parte do

equipamento do vivente mas não pertencem de modo algum a sua estrutura substancial,

sendo apenas acidentais. É preciso verificar se a alma é tambem uma dessas

propriedades acidentais do corpo, que não poderia subsistir quando da ausência deste;

ou se, ao contrário, ela existe por si mesma, não tendo inerido no corpo, mas tendo sido

uma substância dada conjuntamente com o corpo, podendo, desse modo, caracterizar-se

pela independência da da matéria corpórea, em certos casos.

A simples afirmação de que ela é uma parte do composto vivente,

portanto, não descarta, ainda, a possibilidade de que ela estivesse ligada ao corpo de

modo acidental, isto é, tendo sido reunida à matéria corporal como o acidente se reúne a

um sujeito de inerência previamente dado. Uma das consequências dessa hipótese, seria

que, após a dissolução do sujeito de inerência da alma, isto é, a matéria corpórea, não

seria possível que este acidente, nesse caso hipotético, a alma, pudesse subsistir. Definir

de modo mais preciso as relações que se estabelecem no composto corpo e alma é, nessa

medida, fundamental para estabelecer a alma como substância. Afirmar que a alma é

uma substância seria, então, ir além da afirmação anterior de que ela é perfeição

primeira, pois:

"...quando dizemos perfeição, não sabemos ainda se a alma é uma

substância ou não, porque a idéia da perfeição é a coisa pela existência da

qual o animal se torna animal em ato e o vegetal se torna vegetal em

ato."85

Desse modo, já se preludia, a intenção de ultrapassar a definição da alma

como perfeição no sentido da forma atualizada do corpo, o que não seria suficiente para

a estruturação básica de sua teoria. É necessário insistir na alma como a perfeição

primeira, não como simples parte do composto matéria e forma, mas algo além disso,

isto é, a alma como a artesã da matéria, o que só poderia ser possível se ela fosse uma

85 I, 1, 7-8.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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substância, algo além da forma do composto matéria e forma. Algo que vem com o

composto, mas que é além dele. Algo que é forma mas que também é alguma coisa além

disso.

Para iniciar a argumentação deve-se partir da constatação básica de que a

formação dos corpos origina-se da mistura dos elementos. Visto que dessas misturas

resultam corpos orgânicos e inorgânicos, é sómente graças à presença da alma que um

corpo tornar-se-á o corpo de um ser vivo. Trata-se, portanto, sempre de corpos naturais,

de organismos. Não haveria sentido em se falar de alma em corpos artificiais,

inanimados, pois isso resultaria numa clara contradição, visto que “sem a alma, o

sujeito de inerência não seria mais um ser vivo, mas um sólido que não possuiria a

vida". 86

Em última análise deve-se dizer que "a alma constitui o seu sujeito de

inerência próximo e o faz existir em ato ".87 Isso importa na medida em que se

estabelece que a alma não é a perfeição primeira de qualquer corpo, mas precisamente

de um corpo natural vivo, provido de órgãos, capaz de realizar, graças a ela, os atos da

vida, sendo que a própria alma é o princípio dessa geração, como vemos nesta

passagem:

" (...) a alma é causa da geração do vegetal e do animal, segundo a

mistura que eles possuem. (...) ela é o princípio da geração e do

crescimento, sendo absurdo para ela que o sujeito de inerência próximo

seja o que está em ato, se isso não for pela alma. A alma é, pois, a causa

de sua maneira de ser assim." 88

Pode-se, então, atestar que “a existência da alma no corpo não é como a existência do

acidente no sujeito de inerência.” 89 Por essa razão “a alma é perfeição como

substância, e não como acidente." 90

Sob esse aspecto, a alma não é, de modo algum, uma consequência da

mistura, não sendo, pois, acidental. Ela tem o início no ser juntamente com o corpo mas

não é causada por ele. Com isso pode-se entender que não se trata de haver algo já

constituído que recebe a alma como um acidente, porque é justamente a alma que

86Cf. Bakós, n. 127. 87 I, 3, 20. 88 I, 3, 20. 89 I, 3, 21. 90 I, 3, 23.

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constitui esse algo, atualizando-o. Desse modo descarta-se a possibilidade de que o

princípio da alma seja o corpo.

Assim, o equipamento do corpo também provém da alma. Não é o corpo

com seu equipamento que é simplesmente dado à alma sem que essa intervenha em sua

constituição, 91 porque a alma não organiza algo que lhe fôra dado anteriormente. O

corpo não lhe é "dado" com a organização que lhe é própria. O organismo corporal só é

o que é graças à alma; se ele é equipado para servir de instrumento no exercício das

atividades da vida, ele o deve à alma. Por isso pode-se dizer que esta constitui o seu

próprio sujeito de inerência em ato e por isso é a perfeição de um sujeito que é

constituído por ela, pois, do contrário, deveria ter havido uma outra perfeição primeira

que o tivesse atualizado, o que não pode ser, pois isso foi realizado justamente por ela.

Se assim não fosse, a alma sobreviria a um sujeito já formado e ela só poderia ser uma

propriedade acidental. 92

Um dos conceitos mais determinantes para que isso se torne mais claro é

o conceito da alma como artesã. Pois ela, ao realizar na mistura que ela tomou por

receptáculo, a confecção de todos os seus elementos vitais, é a artesã da espécie,

atualizando o gênero naquela matéria específica, tornando-a animada:

"Logo, a alma é então a perfeição de um sujeito de inerência, e esse

sujeito subsiste pela perfeição. A alma é , além disso a que aperfeiçoa a

espécie, ela é a artesã desta." 93

Ibn Sina crê poder demonstrar a substancialidade da alma pelo que se passa com o ser

vivo quando de sua morte: se a alma se separa do corpo, este não permanece mais da

mesma espécie, revestindo-se de uma outra forma; se a alma não intervisse na

organização do corpo, não haveria razão para que essa estrutura se perdesse depois da

morte; não tendo sido produzida pela alma, ela poderia se manter mesmo ao se separar

dela, 94 mas isto não ocorre justamente porque

"(...) a matéria animada só é o que é por uma mistura própria e por uma

disposição própria, sendo que a matéria só resta existente em ato nessa

91 VERBEKE. Introd I-III, p. 30. 92 Ibid., p.30. 93 I, 3, 23. 94 VERBEKE. Introd I-III, p. 30

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mistura própria enquanto a alma permanece nela, pois é a alma que a

coloca nessa mistura." 95

No que se refere à inspiração aristotélica, 96 a afirmação da alma como substância se

afasta da doutrina de Aristóteles no De Anima: 97

"A alma é, para Aristóteles, substância somente enquanto é a enteléchia

de um corpo natural que possui a vida em potência, não sendo separável

do corpo, nem sendo imortal, mas em conjunção com o corpo é o

princípio formador do organismo." 98

Não há dúvida de que Ibn S»n«, apesar de iniciar por uma definição aristotélica, termina

por lhe atribuir este novo sentido, no qual “a alma não é só a forma do corpo , mas uma

substância em si mesma, porque não existe no corpo como em um sujeito, mas subsite

por si mesma”. 99

Talvez por essa razão, acentuando mais a distinção entre corpo e alma,

ele se sirva mais da noção de perfeição do que da noção de forma, insistindo sobre o

caráter substancial da alma.100 Ibn S»n« insere-se num desenvolvimento na linha dos

neoplatônicos, dando um significado original e sensivelmente mais espiritualista 101 à

alma, na medida em que afirma a subsistência da alma (racional) após a dissolução do

corpo. Desse modo, Ibn S»n« passa gradativamente da unidade do homem aristotélico do

De Anima, como composto de corpo e alma, à dualidade do homem neoplatônico, na

qual a sua verdadeira substância e realidade é a alma. 102

Não obstante não haver, ainda, definido os três tipos de alma (vegetal,

animal e racional), ao final desta seção Ibn S»n« explica que a definição nominal de

alma pode se dar de modo absoluto ou por analogia. Tomado em sentido absoluto o

termo “alma vegetal”, “alma animal” e “alma racional” indica a unicidade do ente

concreto que a possui. A partir desta afirmação, apresentam-se dois objetivos: o

primeiro é mostrar que o animal não vem do vegetal, mas é a mistura diferenciada que é

a responsável por isso; o segundo é mostrar que a alma é uma unidade, não sendo

95 I, 3, 20. 96 "Sobre a posição de Aristóteles no que concerne às relações da alma em geral com o corpo, ver Rodier, II, 27-30. Cf. ARISTOTE. De L'ame. Trad. par J. Tricot. Paris: J. Vrin, 1965, p.9, n.1. 97Para a questão da evolução de Aristóteles neste ponto ver GAUTHIER, R. A. Introdução à Moral de Aristóteles.Lisboa: Europa-América, 1992, pp 10-21. 98 JAEGER, W. Aristóteles. México: Fondo de Cultura Econômica. México, 1995, pp. 58-59. 99 GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, p. 43. 100 VERBEKE. Introd. I-III p. 33. 101 Ibid. p. 27. 102 GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, p.43.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

42

possível que haja coabitação de almas no ente concreto. Em relação ao primeiro

objetivo destacamos a seguinte passagem:

"Quanto ao corpo que possui os órgaos da sensibilidade, da distinção e

do movimento voluntário, esse corpo não provém da alma vegetal

enquanto ela é alma vegetal, mas enquanto uma outra diferença lhe é

reunida, pela qual nasce uma outra natureza, e isso só se produz se essa

natureza se torna alma animal." 103

Desse modo, é o próprio caráter da mistura que propicia que o vivente seja vegetal ou

animal, não havendo uma ligação de causa e consequência que determine o segundo

através do primeiro. Quanto ao segundo objetivo, é estabelecido que a alma é una, pois

dizer que a alma vegetal está no animal e que a animal estaria no homem poderia dar a

idéia de várias almas num mesmo ente concreto.

Para desfazer este possível equívoco, deve-se considerar que há dois

modos de se compreender a idéia dos três tipos de alma, e que às vezes a utilização dos

termos se dá por um modo de analogia :

“(...) por alma vegetal, ou entende-se a alma específica, particular ao

vegetal, à exclusão do animal, ou entende-se a idéia comum, que se

estende à alma vegetal e à alma animal sob o aspecto do que nutre,

engendra e cresce. Certamente, às vezes, chama-se a isso alma vegetal.

Mas é uma expressão figurada do enunciado. Pois a alma vegetal só

existe no vegetal." 104

Desse modo, quando conceituamos alma vegetal em referência ao animal estamos, na

verdade, utilizando apenas um modo de expressão, visto que a alma é una. Esse modo

de expressão refere-se às faculdades da alma vegetal que estão presentes no animal

porque nesse caso, " por alma vegetal, entende-se, entre as faculdades da alma animal,

a faculdade da qual provêm os atos da nutrição, do crescimento e da geração." 105

Assim, num sentido estrito, o termo “alma vegetal“ refere-se apenas ao

vegetal, assim como “alma animal” refere-se apenas ao animal e, por fim, o termo

“alma racional” tem relação apenas com o homem. Num outro sentido, entretanto, pode-

se usar o termo alma vegetal quando nos referimos aos animais, querendo dizer as

103 I, 3, 21. 104 I, 3, 21. 105 I, 3, 21.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

43

faculdades da alma vegetal que estão presentes na alma animal. Do mesmo modo

podemos nos referir ao homem utilizando os termos alma vegetal ou alma animal,

indicando as faculdades da alma animal ou da alma vegetal que estão presentes no

homem. Isto não significa que haja a coabitação de almas num determinado ente

concreto, mas que nesse caso a referência será sempre em relação às faculdades que

essas almas possuem.

Conclui-se, assim, que há dois modos de referência, que serão utilizados

ao longo de toda a obra: um sentido absoluto e um sentido relativo. Alma vegetal, em

sentido absoluto, é apenas em relação ao vegetal, e quando o dizemos em relação ao

animal ou ao homem, referimo-nos à faculdade da alma do animal ou do homem, que

tem as três funções características da alma vegetal. Isso permite afirmar,

categoricamente, a unidade da alma e suas múltiplas faculdades:

"Será bem evidente mais tarde que a alma é una, e que estas faculdades

derivam nos membros." 106

Quarta seção: Demonstração de que a diversidade dos atos da alma tem por causa

a diversidade de suas faculdades.

Esta seção é uma primeira abordagem condensada sobre as faculdades

que a alma possui. 107 O conceito de faculdade implica em que ela seja essencialmente

faculdade para uma certa coisa, sendo o princípio desta. As faculdades enquanto são

faculdades são princípios de ações determinadas pela intenção primeira. Às vezes,

porém, é admissível que a faculdade seja , por uma intenção secundária, princípio de

outras ações, sendo que estas outras ações seriam como que ramificações, não sendo a

faculdade primariamente o princípio destas. 108

Com isso, fica estabelecido, por um lado, que cada uma das faculdades

tem ações e princípios bem definidos que não se misturam entre si, e, por outro lado,

que elas são dinâmicas e suas ações se combinam de inúmeros modos. Esta

106 I, 3, 22. 107 O próprio Ibn S»n« indica, ao final da seção 3, que as seções 4 e 5 serão respectivamente um estudo condensado e aprofundado das faculdades da alma e de seus atos: “Indiquemos, pois, agora de uma maneira condensada as faculdades da alma e seus atos, depois, na sequência, por um estudo aprofundado”. ( I, 3, 23.) Cf. VERBEKE. Introd. I-III p. 34 - 48. 108 I, 4, 25.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

44

diferenciação é importante na medida em que isto será um dos pilares fundamentais

para a articulação das faculdades que será discutida e apresentada posteriormente.

A primeira premissa para se poder falar dessas faculdades, é verificar

que os atos da alma diferem entre si, sendo que é só a partir da constatação dos diversos

atos observados que se torna possível estabelecer as diversas faculdades

respectivamente correspondentes a esses atos. As faculdades da alma são identificadas

pelos modos como as ações se manifestam:

“A alma possui atos que diferem de maneiras múltiplas. Uns diferem pela

intensidade e pela fraqueza, outros pela rapidez e pela lentidão. Com

certeza, o conhecimento presumido é uma crença que difere do

conhecimento certo, em certeza e intensidade, e a intuição intelectual

difere do conhecimento certo pela rapidez do entendimento."109

Como a observação das manifestações dos atos da alma constata que são inúmeros e

variáveis, não resta dúvida de que existem muitas questões e dificuldades para

estabelecer quais seriam, na verdade, essas faculdades, como funcionam, quantas são,

como se relacionam, enfim, sua definição mais precisa. O papel dessa seção é

justamente esse, pois,

"(...) é preciso preparar a solução dessas dúvidas para que nos seja

possível proceder ao estabelecimento das faculdades da alma e

estabelecer que seu número é tal e que umas diferem das outras pois, na

nossa opinião, isso é a verdade." 110

A partir desse ponto é possível, então, que Ibn S»n« estabeleça a primeira caracterização

das faculdades da alma tal como indicado no início desta seção. Fala, ele, em seguida,

da divisão das mesmas:

"Dizemos pois agora que , na primeira das divisões, as ações da alma são

em número de três: ações nas quais participam o animal e o vegetal, por

exemplo, a nutrição, o crescimento e a geração; ações nas quais

participam os animais, a maior parte dentre eles, ou os grandes, não

havendo traço pertencente ao vegetal, por exemplo, a sensação, a

imaginação e o movimento voluntário. Ações particulares aos homens,

por exemplo, a intelecção dos inteligíveis, a invenção das artes, o

109 I, 4, 23. 110 I, 4, 25.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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conhecimento dos seres engendrados e o discernimento entre o belo e o

feio" 111

Além dessa primeira divisão, já se encontra nesta seção, também, uma das diferenças

mais importantes em relação à faculdade humana, que será desenvolvida

posteriormente:

"Quanto à faculdade humana, explicaremos em breve que sua essência é

liberada de ser impressa na matéria, e explicaremos que em todas as

ações que se referem ao animal, há a necessidade de um órgão." 112

Quinta seção: Enumeração das faculdades da alma por meio do estabelecimento

das variedades. 113

Esta seção, que encerra o capítulo I, é a mais explicativa em relação à

classificação das faculdades da alma. Além disso, ela fornece um quadro sintético que

permite uma visão de conjunto da obra. A sequência dos assuntos apresenta-se dentro da

seguinte ordem: estabelecimento da divisão das três espécies de alma, isto é, vegetal,

animal e humana; apresentação das faculdades relativas à alma vegetal, à alma animal e

à alma racional humana; resumo da hierarquia das faculdades e suas relações.

Segundo a primeira divisão, as faculdades da alma são classificadas em

três espécies. A primeira delas é a alma vegetal, definida como perfeição primeira de

um corpo natural munido de órgãos, enquanto nasce, cresce e se nutre. A segunda é a

alma animal, definida como perfeição primeira de um corpo natural munido de órgãos,

enquanto ele apreende as coisas particulares e se move voluntariamente. A terceira é a

alma humana, definida como perfeição primeira de um corpo natural munido de órgãos,

enquanto se lhe atribui a execução dos atos que se fazem por escolha refletida e por

invenção efetuada com discernimento, e também enquanto apreende as coisas

universais. 114

Depois de estabelecida essa primeira divisão, podemos enumerar as

faculdades de cada uma das três espécies de alma, iniciando pelas faculdades da alma

111 I, 4, 26. 112 I, 4, 27. 113 As variedades poderiam ser entendidas como variedades de ações ou dos tipos de alma. Bakós interpreta como variedade de almas. Cf. n.174. 114 I, 5, 27-28.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

46

vegetal, depois da alma animal e, finalmente, da alma humana. A alma vegetal possui

três faculdades, sendo a primeira delas a faculdade nutritiva. Esta é uma faculdade que

assimila um corpo distinto daquele no qual ela está; ela o transforma em algo

semelhante ao seu próprio corpo em troca do que foi dissolvido deste. A segunda é a

faculdade de crescimento. É uma faculdade que, através daquele corpo que foi

assimilado, e se transformou em algo semelhante ao seu próprio corpo, faz crescer as

dimensões deste último proporcionalmente em altura, largura e profundidade, de modo

que esta faculdade chega à perfeição do crescimento no corpo em que ela está. A

terceira, e última faculdade da alma vegetal, é a faculdade da geração. É definida como

a que, a partir do corpo em que está, toma uma parte potencialmente semelhante a esse

corpo e realiza, nessa parte, com o auxílio de outros corpos que foram assimilados a ela,

a ação de criar e de fazer a mistura que resulta num outro corpo semelhante, em ato, ao

seu. 115

No caso da alma animal, além de possuir as faculdades da alma vegetal,

ela possui também outras faculdades. A primeira divisão que se estabelece é que a alma

animal possui uma ramificação básica em duas faculdades: a motora e a da percepção.

A faculdade motora, por sua vez, divide-se em duas categorias: primeiro, considerada

como a que excita o movimento, e segundo como a que age efetivamente. No primeiro

caso, isto é, a que excita o movimento, é a faculdade do desejo e do apetite. Isso ocorre,

por exemplo, quando uma forma desejável ou a evitar se imprime na imaginação e

excita ao movimento uma outra faculdade motora a agir. Esta faculdade que excita tem

dois ramos.

O primeiro ramo chama-se faculdade concupiscível, por excitar a um

movimento de aproximação daquelas coisas que forem estimadas necessárias ou úteis.

O outro ramo chama-se faculdade irascível, excitando a um movimento pelo qual ela

repele a coisa estimada como prejudicial ou destrutora, procurando a vitória. Essas duas

fauldades motoras têm apenas a função de estimar, de algum modo, o que se lhe

apresenta, funcionando por atração e repulsa, excitando as outras faculdades, de que

falaremos a seguir, a realizar em ato, o movimento que foi desejado. 116

Quanto à faculdade motora, enquanto a que realiza efetivamente a ação,

ela é excitada nos nervos e nos músculos. As faculdades motoras irascível e

115 I, 5, 28. 116 I, 5, 28-29. Note-se que estas faculdades não foram localizadas, ainda, em nenhum órgão.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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concupiscível são as responsáveis em colocar em movimento esta que age, a partir da

movimentação do conjunto anatômico apropriado. Os movimentos acompanham as duas

direções básicas estabelecidas pela irascível e concupiscível, isto é, de aproximação ou

de afastamento. No caso da aproximação, provinda da excitação da concupiscível, pode

haver, por exemplo, contração de músculos, puxamento de tendões e de ligamentos dos

membros na direção do princípio ou do objetivo em questão. No caso de afastamento,

provindo da irascível, os músculos podem se relaxar e os nervos se esticar em

comprimento, colocando os tendões e os ligamentos em oposição à direção do princípio

em questão. 117 Com isto encerra-se a divisão das faculdades motoras do animal, sendo

que agora, serão apresentadas as classificações das faculdades animais relativas à

percepção, isto é, os sentidos externos e internos no animal.

A primeira divisão a ser estabelecida, quanto à faculdade da percepção, é

que ela é de duas categorias:

“uma delas é a faculdade que percebe de fora; a outra, a faculdade que

percebe de dentro. O que percebe de fora são os cinco ou os oito

sentidos.” 118

Entre os sentidos externos está, em primeiro lugar, a visão. Esta faculdade está

localizada no nervo 119 ótico e percebe as formas impressas no humor cristalino,

oriundas das imagens dos corpos coloridos que, pelos corpos diáfanos em ato, chegam

às superfícies dos corpos polidos. 120

A audição, por sua vez, é uma faculdade estabelecida nos nervos

dispersos na superficie do canal auditivo. Esta faculdade percebe uma forma qualquer

que chegue à rede nervosa da agitação do ar fortemente comprimido entre o que golpeia

e o que é golpeado, resistindo este ao ar com violência, donde nasce o som. A agitação

chega, em seguida, ao ar que está retido, tranquilo, na concavidade do canal auditivo e o

117 I, 5, 29. 118I, 5, 29. O que percebe de dentro são os sentidos internos (Cf. I, 5, 30, ll. 3-5) apesar de Bakós ter afirmado que seria a faculdade intelectual desprovida de órgãos sensoriais ( Cf. Bakós n.181). Há pelo menos dois modos de se entender o fato de Ibn S»n« referir-se a oito sentidos: o primeiro, que consideramos correto, é admitir o tato, não como um, mas como quatro sentidos, (Cf. I, 5, 29, ll. 36-39) de acordo com a natureza do objeto ( Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p. 48). O segundo, que nos parece equivocado, é afirmado por Bakós (n. 182). Neste, os oito sentidos resultariam da soma dos cinco sentidos externos ( visão, audição, olfato, paladar e tato) com três internos ( sentido comum, imaginativa e estimativa) sendo que os outros dois sentidos internos ( memória e imaginação) seriam entendidos apenas como depósitos e não propriamente como sentidos. 119

Note-se que todas as localizações nervosas das faculdades não se encontram em Aristóteles, visto que ele não tinha conhecimento algum da existência dos nervos. ( Cf. Bakós n.183). 120

Ibn S»n« desenvolve a teoria do meio diáfano e da cor no terceiro capítulo de sua obra.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

48

move por um movimento semelhante ao seu. As ondas desse movimento relativo ao

nervo, se tocam e, então, escuta-se.

O olfato é o terceiro sentido a ser tratado, sendo uma faculdade

estabelecida nas duas protuberâncias da parte anterior do cérebro, semelhante aos dois

mamilos da mama.121 Tem percepção daquilo que o ar aspirado faz chegar ao cérebro

dos odores que se encontram na exalação misturada ao ar ou do odor impresso no ar

pela alteração de um corpo dotado de odor.

Em seguida, temos o sentido do paladar que é uma faculdade

estabelecida no nervo estendido sobre o corpo da língua. Esta faculdade percebe os

gostos dissolvidos dos corpos quando estão contíguos à língua, misturados ao humor

agradável de ser engolido no qual se encontra uma mistura transformante, isto é, aquilo

que é dissolvido de um determinado corpo sápido, estando em contato com a língua, é

misturado com um humor próprio da faculdade do paladar, antes de ser engolido. 122

E finalmente, o sentido do tato, que é uma faculdade estabelecida nos

nervos da pele e da carne de todo o corpo, tendo por função perceber tudo o que toca o

corpo, e tem uma influência sobre ele pela contrariedade que transforma a compleição

ou a disposição da composição. Ibn S»n« alude ao fato de que para alguns o tato não

seria uma faculdade única, mas um gênero que englobaria no mínimo quatro faculdades

que estariam difundidas em conjunto sobre toda a pele. Uma delas seria responsável por

discernir o contraste entre o quente e o frio; a segunda discerniria o contraste entre o

úmido e o seco; a terceira discerniria o contraste entre o duro e o mole; e a quarta

discerniria o contraste entre o rugoso e o polido. Apenas a sua reunião num único órgão

faria pensar numa única faculdade essencialmente a mesma. 123

Passa-se, em seguida, à primeira apresentação dos sentidos internos que o

animal possui, isto é, as faculdades dos sentidos internos próprias do equipamento vital

da alma animal.

Antes de iniciar propriamente esta primeira classificação dos sentidos

internos, são esclarecidos alguns pontos básicos. A primeira explicação é em relação à

121 Apesar da localização não estar muito clara, ela será retomada mais à frente. Esta passagem não é aristotélica; Aristóteles, no De anima, nada diz sobre o órgão olfativo.( Cf. Bakós n.190 e 193). Além disso, a idéia de que o cérebro é órgão central da sensação também não é aristotélica, pois Aristóteles afirma que é o coração, sendo que o cérebro tem apenas uma função subalterna. ( Cf. Bakós n. 192). 122 I, 5, 29. 123 I, 5, 29-30.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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diferença entre percepção de formas e percepção de idéias124 pois "quanto às faculdades

que percebem interiormente, algumas são faculdades que percebem as formas das coisas

sensíveis, e outras percebem as idéias das coisas sensíveis.” 125 A diferença entre esses

dois modos de percepção é que a percepção da forma é realizada em conjunto, isto é

pelo sentido externo e interno, sendo que necessariamente uma forma dada passa pelo

sentido externo sendo levada até o sentido interno. A percepção da idéia,

diferentemente, é realizada de modo imediato pelo sentido interno.

Por exemplo, a ovelha percebe a forma do lobo, isto é, sua configuração,

seu aspecto e sua cor; com certeza o sentido interno da ovelha também percebe essa

forma do lobo, mas primeiramente ela é percebida somente pelo seu sentido externo.

Por outro lado, a idéia é a coisa que a alma percebe do sensível sem que o sentido

externo a tenha percebido anteriormente. Por exemplo: a ovelha percebe no lobo a idéia

de inimigo ou a idéia que torna necessário o medo e a fuga para longe dele sem que o

sentido externo perceba isso de modo algum; logo, isso que o sentido externo percebe

primeiramente, depois o sentido interno percebe do lobo, chama-se propriamente de

forma; e isso que a faculdade interna percebe à exclusão dos sentidos externos, chama-

se idéia. 126

Uma outra diferença relevante para podermos entender como os sentidos

internos funcionam, e para compreendermos mais precisamente como a faculdade

imaginativa se comporta, é saber que algumas faculdades internas percebem e agem em

conjunto, e outra percebem, mas não agem.

A diferença entre um tipo de percepção com ação e um tipo de

percepção sem ação, refere-se ao fato de que certas faculdades internas atuam, ora

compondo formas e idéias percebidas com outras, ora as separando umas das outras;

sendo que outras faculdades apenas apreendem. Assim sendo, é possível que, após ter

percebido, elas ajam nisso que perceberam. No caso das percepções sem ação, ocorre

apenas a simples impressão da forma ou da idéia sem que se faça sobre elas nenhum

tipo de ato em virtude de uma escolha. A diferença entre a percepção primeira e a

percepção segunda, é que a percepção primeira consiste na atualização da forma de

qualquer modo que seja, sendo tal atualização reclamada diretamente pela própria

124Vide nota 171 sobre o termo “idéia” no Capítulo IV “Sentidos internos” Seção terceira, abaixo p. 57. 125 I, 5, 30. 126 I, 5, 30.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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coisa. A percepção segunda consiste na atualização da forma da coisa em referência a

uma outra coisa que faz chegar a ela. 127

Após estas considerações gerais, Ibn S»n« passa a enumerar os sentidos

internos, fornecendo uma primeira explicação, contendo um esquema básico e geral,

que será aprofundado no quarto capítulo.

"Dentre as faculdades animais que percebem internamente uma é a

fantasia ou sentido comum, estabelecida no primeiro ventrículo do

cérebro, que recebe por si mesma todas as formas impressas nos cinco

sentidos e que chegam ao ventrículo.” 128

Em seguida está a imaginação ou faculdade formativa. Esta faculdade também está

estabelecida na extremidade do ventrículo anterior do cérebro. Sua função é a de

conservar o que o sentido comum recebeu dos cinco sentidos particulares e que

permanece na extremidade do ventrículo após o distanciamento das coisas sensíveis. 129

Com isso, já se estabelece como se processa a continuidade dos sentidos

externos até os sentido internos. Num primeiro estágio, a recepção do que é sentido

exteriormente é efetuada pelo sentido comum ou fantasia. Num segundo estágio, o que

foi recebido é armazenado pela faculdade formativa ou imaginação.

Ibn S»n« acentua a diferença entre a função receptiva e a conservativa: a

recepção pertence a uma faculdade e a conservação a outra. Esta distinção é ilustrada

pelo exemplo da água que tem a capacidade de receber a impressão e o traçado (a

figura) mas não tem capacidade de conservar. Ibn Sina usa também de exemplos (da

gota de chuva e de algo reto que gira) para explicar a distinção entre a ação do sentido

externo, do sentido interno e da faculdade formativa. Os exemplos consistem no

seguinte: uma gota que cai é percebida descrevendo uma linha reta; e se tomamos uma

linha reta e movermos sua extremidade a partir de um centro fixo, apreendemos uma

127 I, 5, 30. 128 I, 5, 30. É preciso prestar atenção aos nomes das faculdades e a suas respectivas funções, visto a proximidade com as denominações dadas por Aristóteles, embora com outras funções. No presente caso, por exemplo, “em Aristóteles são duas faculdades distintas: uma é o sentido comum que é a faculdade que enuncia e julga a diferença de duas coisas apresentadas simultaneamente; outra é a ‘fantasia’ -imaginação- distinta ao mesmo tempo da sensação e do pensamento e que julga no que concerne às imagens.” ( Cf. Bakós n.204). Ver em anexo uma representação das localizações cerebrais. 129 Aqui temos o mesmo caso de homonímia em relação à Aristóteles. Esta imaginação , em Ibn S»n«, tem certos traços em comum com a ‘fantasia’ em Aristóteles. Nenhuma das duas é idêntica nem à sensação nem ao pensamento; elas dependem da sensação e são um tipo de prolongamento desta. As imagens dos objetos sentidos permanecem nelas, mesmo quando estes se afastam. (Cf. Bakós n. 205). No entanto, há diferenças mais específicas que trataremos mais adiante.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

51

figura circular. Ora, os sentidos externos, nesse caso, não podem nos fornecer nem o

conhecimento de uma linha reta nem de um círculo, pois eles apreendem sempre o que é

dado num determinado instante. Quando o sentido externo apreende a gota de chuva a

cada instante, segundo a posição que ela ocupa, não pode apreender a continuidade

entre uma posição e as posições anteriores sendo que para poder apreendê-la como uma

linha reta é necessário a conservação das posições anteriores no momento da apreensão

da posição atual. Portanto, nesses casos, o conhecimento de uma linha reta ou de uma

figura circular requer a intervenção dos sentidos internos. 130

Em seguida está a faculdade chamada imaginativa em relação à alma

animal e cogitativa em relação à alma humana. Está estabelecida no ventrículo médio do

cérebro perto do verme.131 Ela tem a propriedade de compor certas coisas que estão na

imaginação com outras, assim como de separá-las à vontade.132

Além dessas, há também a faculdade estimativa, estabelecida na

extremidade do ventrículo médio do cérebro, ela percebe as idéas não sensíveis que se

encontram nas coisas sensíveis particulares, como a faculdade que se encontra na

ovelha, quando ela julga que deve fugir deste lobo e ter afabilidade para com este

cordeiro. As ações desta faculdade estão intimamente ligadas à faculdade imaginativa,

indo além da simples apreensão, pois “parece que ela é, além disso, uma faculdade

livre na ação de compor e de separar as coisas imaginativas”. 133

Finalmente, nos é apresentada a faculdade que conserva e se lembra. Está

estabelecida no ventrículo posterior do cérebro. Sua função é conservar o que a

faculdade estimativa percebeu das idéias não sensíveis nas coisas sensíveis particulares.

A relação da faculdade que conserva com a estimativa é como a relação da imaginação

com o sentido comum e a relação da estimativa com as idéias é como a relação da

imaginação com as formas sensíveis. A faculdade que conserva e se lembra e a

130 I, 5, 31 e VERBEKE. Introd. IV-V, p. 50-51. 131Cf. Bakós (n. 208) remete a Galeno. Em anatomia o termo “verme do cerebelo” é o nome dado ao lóbulo médio do cerebelo entre ambos os hemisférios. (Cf. AULETE, C. Dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Delta, 1958, p. 5268). Assim é chamado por sua forma ser semelhante à de uma larva. ( Cf. LABOR, Biologia humana. Barcelona: Ed. Labor. 1961, vol.3 p.789 e cf. ilustração em SPALTEHOLZ,W. Atlas de anatomia humana. Barcelona: Ed. Labor. 1959, tomo 3, 2ª ed. 132 A imaginação, na obra de Ibn S»n«, tem importância não só em sua psicologia mas também em outras áreas como, por exemplo, em sua cosmologia, metafísica e nos seus escritos simbólicos. Para uma visão mais panorâmica sobre o papel da imaginação em sua obra remetemos a MAHLOUBI, B. La notion d’imagination chez Avicenne. Tese de doutorado. Paris: Université de Paris I Panthéon-Sorbonne, 1991. 133 I, 5, 31.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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imaginação são depósitos (faculdades de conservação). A estimativa e o sentido comum

são faculdades de recepção.

O objetivo desse primeiro esquema é apenas o de situar os sentidos

internos dentro da complexa estrutura das três espécies de alma. Não nos deteremos,

agora, na articulação e na dinâmica dos sentidos internos; no entanto algumas coisas já

podem ser estabelecidas como, por exemplo, que o funcionamento específico de cada

atributo das faculdades internas é bastante claro. De modo sucinto, podemos dizer que

há três sentidos e duas memórias. O sentido comum recolhe as formas, e a faculdade

formativa as conserva. A estimativa recolhe as idéias e a memória as conserva. E, por

fim, a imaginativa compõe e separa as formas e, em alguns casos, as idéias. 134

Em seguida, Ibn S»n« apresenta as faculdades da alma racional humana:

“Quanto à alma racional humana, suas faculdades dividem-se em

faculdade que age e faculdade que conhece sendo que cada uma das duas

faculdades chama-se inteligência por homonímia ou equivocidade.” 135

Também podem ser chamadas de faculdade prática e faculdade especulativa, ou ainda,

inteligência prática e inteligência especulativa. Esta breve apresentação, fornece

algumas características de ambas, sendo que a melhor imagem da alma humana que Ibn

Sina nos dá é a de que ela tem duas faces. 136

Como vimos, a alma é uma substância una, mas ela tem uma relação

dupla, em direção a dois lados: um que está abaixo dela e o outro que está acima dela.

Conforme cada lado, ela possui uma faculdade pela qual é organizada a conexão entre

ela e esse lado. “Assim, do lado inferior nascem os hábitos morais, do lado superior

nascem as ciências”. 137 Nessa medida o que se chama de faculdade prática é a

faculdade que a alma possui em razão da conexão com o lado que é mais baixo que ela,

e que é o corpo e o governo deste, sendo preciso que esta face não receba de modo

algum qualquer impressão de um gênero exigido pela natureza do corpo. No caso da

134 Note-se que Ibn S»n« usa várias denominações para uma mesma faculdade: sentido comum ou fantasia; imaginação ou formativa; imaginativa (no animal) e cogitativa (no homem); estimativa e memória. 135 I, 5, 31. Em Aristóteles são o intelecto teórico e o intelecto prático. O fim do intelecto prático é a ação, dirigida ao bem prático e o contingente; enquanto o fim do intelecto teórico é o necessário, isto é, o verdadeiro e o falso. O verdadeiro sendo absoluto, o bem relativo. (Cf. Bakós n.210) . Note-se, ainda, que sendo faculdades da alma humana, não há uma localização fisica. 136 I, 5, 32-33. 137 I, 5, 33.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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faculdade especulativa, ela é uma faculdade que a alma possui em razão da conexão

com o lado que está acima dela, sendo preciso que esta face receba e adquira

constantemente o efeito disso que está acima. Por essa razão é que se pode dizer que “a

nossa alma possui, então, duas faces138: uma em direção ao corpo (...) e uma em direção

aos princípios supremos” . 139

A faculdade prática está, portanto, ligada aos atos particulares, tanto no

âmbito do próprio corpo quanto no âmbito da ação moral e consequentemente política,

assim como na criação das artes (entre elas a arte médica) e de todas as ações humanas

realizadas em sociedade. É a partir da estrutura da faculdade prática que são possíveis as

atividades humanas concretas, pois a inteligência especulativa é contemplativa,

buscando a aquisição do conhecimento e das verdades supremas. No entanto, é sob os

influxos e os princípios da faculdade especulativa que a faculdade prática deve se guiar.

A inteligência prática não é totalmente independente da inteligência teórica. 140 Em

outras palavras, a ação humana deve se guiar pela verdade, em vista do bem.

A dinâmica das faculdades implica que a faculdade prática esteja em

relação com as outras. Ela tem uma relação com a faculdade animal apetitiva, isto é,

concupiscível e irascível, uma relação com a faculdade animal imaginativa e estimativa,

e uma relação consigo mesma. Sua relação com a concupiscível e com a irascível está

ligada à ocorrência das “disposições que são próprias ao homem, pelas quais ele está

disposto a agir e a sofrer rapidamente , como a vergonha e o pudor, o riso e as lágrimas,

e o que se assemelha a isso”. 141 Trata-se da relação da inteligência prática com as

paixões ou emoções ou sentimentos.

Sua relação com a faculdade imaginativa e estimativa, está relacionada

com a condução das coisas que podem ser produzidas ou destruídas e com a invenção

das artes humanas. Sua relação consigo mesma está relacionada às opiniões que

dependem das ações e desbordam tornando-se comuns e bem conhecidas como, por

exemplo, que a mentira e a injustiça são detestáveis. A isso é que podemos chamar de

sabedoria prática, caracterizada por estar entre a inteligência prática e a inteligência

especulativa, não pelo estabelecimento de uma prova ou de demonstrações nem ao que

138 Literalmente, “duas faces” - µÀ¸k¼ . 139

I, 5, 33. 140Cf. Bakós n.214. 141

I, 5, 32.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

54

se assemelhe a premissas determinadas, mas que procedendo da repetição de

determinadas ações, gera um outro tipo de conhecimento.

É importante destacar que a posição de contato desta faculdade com duas

esferas distintas, a corporal e a intelectual, caracteriza o perfil do homem no

pensamento de Ibn S»n«. Apesar de esta dicotomia estar sempre presente, a função da

faculdade prática, no conjunto das faculdades, é que ela seja , em última análise, a

condutora por excelência do corpo e das ações humanas. Por essa razão ela “deve

dominar os resto das faculdades do corpo, mas isto segundo as normas de uma outra

faculdade142”, isto é, a inteligência especulativa. A sua correta constituição exige que

ela não sofra de modo algum a direção das outras faculdades que estão abaixo dela, mas

que ela as conduza na criação de hábitos morais excelentes. Do contrário criar-se-iam o

que chamamos de habitos morais vis, fruto de uma inversão das influências na

hierarquia das faculdades.

Terminada a exposição da faculdade prática, Ibn S»n« passa à faculdade

especulativa. A primeira definição que encontramos é que “ela é uma faculdade com a

função de receber a impressão das formas universais abstraídas da matéria.” 143

A faculdade especulativa possui diversas relações com essas formas, e

isso porque a coisa que tem por função receber algo, recebe-o tanto em potência, como

em ato. Isso faz com que se estabeleçam níveis diferentes nessas relações. A apreensão

das formas não é, portanto, unívoca mas pode ser identificada segundo os níveis nos

quais se configura. Por essa razão, para poder explicar a faculdade especulativa, Ibn

Sina distuingue, antes, a existência de distintos níveis de potencialidade para, em

seguida, relacioná-los com os graus da faculdade especulativa.

No primeiro caso, a potência seria a aptidão absoluta da qual nada resulta

em ato, bem como não se realiza aquilo pelo que algo resulta, como a faculdade de

escrever de uma criança de tenra idade. No segundo caso pode-se chamar potência essa

aptidão, já mais desenvolvida, isto é, quando não se realiza senão aquilo pelo que é

possível chegar a adquirir a ação sem intermediário, por exemplo, quando a faculdade

de escrever se encontra num jovem que já conhece a pena e o tinteiro e é iniciado nas

letras. Em terceiro lugar chama-se potência, essa mesma aptidão quando ela já está

completa, quando já começou a ser a perfeição da aptidão de tal modo que possa agir

142

I, 5, 32.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

55

quando quiser sem ter necessidade da aquisição, bastando que se decida a agir. Por

exemplo, a faculdade do escriba perfeito na arte, quando não escreve.

“A primeira potência chama-se absoluta e material; a segunda, potência

possível; e a terceira perfeição da potência.” 144

Os distintos níveis de potencialidade, assinalados por Ibn S»n«, são a base para que ele

explique a faculdade intelectiva. As relações da faculdade especulativa na apreensão das

formas se dão, de forma análoga, dentro dessa classificação sendo possível então

distinguir, três níveis da intelecção, como se fossem três intelectos ou três faculdades

intelectivas, ou ainda graus diferenciados de apreensão da inteligência especulativa.145

No primeiro caso a relação da faculdade especulativa em vista das formas

abstratas é estabelecida nos parâmetros do que está em potência absoluta: “este

primeiro intelecto se encontra frente aos inteligíveis em um estado de potencialidade

absoluta”. 146 Isso se dá quando a faculdade especulativa não recebeu nada ainda da

perfeição que existe em relação a ela, chamando-se então inteligência material, por sua

semelhanca com a matéria prima que não possui por si mesma uma certa forma, sendo

sujeito para toda forma. Esta faculdade pertence a cada indivíduo da espécie.

Às vezes, a relação se dá aos moldes do segundo caso, isto é, da potência

possível. O que ocorre, nesse caso, é que, na potência material, já chegaram ao ato

inteligíveis primeiros, isto é, os primeiros princípios, como , por exemplo, que o todo é

maior que a parte, que duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si, dos quais e

pelos quais se chega aos inteligiveis segundos. Este segundo intelecto se chama

inteligência hábito, e pode se dizer em ato em relação ao primeiro.

Num terceiro caso, a relação se dá conforme o que se chamou de

perfeição da potência que consiste em que nela são colocados em ato os inteligíveis

segundos, sem que a inteligência hábito os considere e se volte para eles em ato, mas

antes como se estivessem armazenados e, quando quiser, ela considera essas formas em

143

I, 5, 33. Aristóteles também distingue as formas, isto é, os inteligíveis, como sendo realidades imateriais, indivisíveis, em ato, das formas realizadas em matérias apropriadas, sendo inteligíveis em potência que, pela ação do ‘nous’, se tornam inteligíveis em ato. ( Cf. Bakós n. 223). 144 I, 5, 33. 145 No que se refere às divisões do intelecto, deve-se ter em mente as fontes de Ibn S»n«, notadamente Al- Farabi que no De Intellectu já havia estabelecido a base da divisão adotada por Ibn S»n«. Cf. GILSON, E. “Les sources gréco-arabes de l’augustinisme avicennisant”, pp- 126-141. 146 GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, p. 46.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

56

ato. Esta inteligência denomina-se inteligência em ato, porque ela é uma inteligência

que conhece quando quer sem se dar ao trabalho de uma aquisição. 147

Esta primeira descrição dos graus da faculdade especulativa encerra-se

com um prelúdio ao intelecto agente:

"Às vezes a relação é uma relação do que está em ato absoluto. Isso

consiste em que a forma inteligível está presente na inteligência enquanto

esta a considera em ato; então ela conhece em ato e sabe que a conhece

em ato. O que veio então ao ato nela chama-se inteligência adquirida; e

ela só se chama inteligência adquirida porque nos será claro em breve

que a inteligência em potência só passa ao ato por causa de uma

inteligência que está sempre em ato, e quando a inteligência em potência

se une por um certo modo de junção a esta inteligência que está em ato,

uma espécie das formas que são adquiridas do exterior se imprime nela.

Estes são ainda os graus das faculdades que se chamam inteligências

especulativas e, na inteligência adquirida está completado o gênero

animal e a espécie humana que pertence a ele; e aí a inteligência humana

já está assimilada aos princípios primeiros de toda existência.” 148

Terminada, pois, esta primeira caracterização de todas as faculdades das três espécies de

alma, é apresentada a hierarquia que se estabelece entre elas na medida em que “umas

comandam as outras e umas servem as outras.” 149

No topo da hierarquia encontra-se, como chefe, a inteligência adquirida.

O todo a serve e ela é o extremo limite. Depois, a inteligência em ato é servida pela

inteligência hábito; e a inteligência material, enquanto houver aptidão nela, serve a

inteligência hábito. Em seguida, a inteligência prática as serve todas visto que a conexão

corporal existe em razão da ação de aperfeiçoar a inteligência especulativa e da ação de

a purificar, e é a inteligência prática que rege essa conexão. Depois, a inteligência

prática é servida pela faculdade estimativa e esta é servida por duas faculdades: a

memória, que está depois dela e o conjunto das faculdades animais que está antes dela.

Em seguida, a imaginativa é servida por duas faculdades de diversas maneiras: a

147 I, 5, 34. 148 I, 5, 34. 149 I, 5, 34.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

57

apetitiva a serve pela consulta porque a imaginação a excita ao movimento e a

imaginação150 a serve pela apresentação das formas armazenadas nela. A imaginação e a

apetitiva são chefes de dois grupos: a imaginação é servida pela fantasia e esta pelos

cinco sentidos; a apetitiva é servida pela concupiscência e pela irascível e estas duas

últimas são servidas pela faculdade motriz nos músculos.

Todas estas faculdades animais são servidas pelas vegetativas. No topo

encontra-se a faculdade de geração; a de cresimento serve a de geração e a nutritiva

serve-as todas. Em seguida as quatro forças naturais as servem. Dentre elas, a digestiva

é servida, de um lado pela assimilativa, de outro pela atrativa; e a repulsiva as serve

todas. Depois as quatro qualidades servem todas estas: o calor é servido pelo frio, pois o

frio ou prepara uma matéria para o calor ou conserva o que o calor preparou. E elas

todas são servidas pela secura e pela umidade. 151

Desse modo, termina a descrição da hierarquia das faculdades, e também

o primeiro capítulo. No segundo capítulo, Ibn S»n« trata das faculdades da alma vegetal

, do modo de percepção das faculdades da alma animal e dos quatro sentidos externos,

excluindo-se a visão que será tratada no capítulo terceiro. Não nos propomos apresentar

o conteúdo destes capítulos. Destacamos apenas alguns elementos do que Ibn Sina diz

na segunda seção do Capítulo 2 sobre a percepção.

Nesta seção Ibn S»n« apresenta quais são e como se efetuam os diferentes

modos de percepção. O motivo que o leva a falar primeiramente da percepção, de modo

geral, é que ela é mais abrangente do que o sentido externo, visto que se estende à ação

dos sentidos internos e do intelecto. 152 A abstração que se realiza a partir desses

elementos é diversa, configurando graus diferentes. A percepção é analisada, então,

através dos sentidos externos, da imaginação, da estimativa, além de indicar o modo

pela razão. Isso se configura como uma introdução para o desenvolvimento posterior

dos outros capítulos, em que se analisa a percepção pelos sentidos externos e internos,

pela intelecção, terminando no mais alto grau de abstração pelo intelecto agente.

150Estas passagens caracterizam-se por um texto embrulhado por causa dos nomes das faculdades. A tradução latina foi prejudicada por isso (Cf. AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus aturalibus I -III . “Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G. Verbeke.1968, p. 100, nota às linhas 95-96). A tradução de Bakós também apresenta dificuldades principalmente por usar nestas passagens o termo “imaginativa” tanto para a imaginação, que conserva as formas, quanto para a imaginativa propriamente dita que age por reunião e separação das formas. 151 I, 5, 35 152 Cf. Bakós n. 308.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

58

Em primeiro lugar parece que toda percepção é apenas a apreensão de

um certo modo da coisa percebida. Se for a percepção de uma coisa material, é a

apreensão da forma dessa coisa, abstraída da matéria de uma certa maneira.

“O primeiro sentido é, na verdade, o que é impresso no órgão do sentido

e este o percebe. Quando se diz: senti a coisa (extrínseca) parece que a

idéia é diferente da idéia de: senti na alma.” 153 Assim, se estabelece um primeiro nível de percepção imediata realizado pelos sentidos.

No entanto os sentidos não abstraem perfeitamente a forma da matéria. É necessário que

esta forma seja interiorizada na alma, o que só pode ser feito pelos sentidos internos.

A imaginação, ao receber a forma e gravá-la, mesmo depois que a coisa

sensível se distanciou ou desapareceu, vai mais além extraindo a forma da matéria de

modo mais intenso, rompendo de uma maneira mais perfeita a conexão entre a forma e a

matéria. Mas, mesmo assim, ela ainda não abstrai a forma de todas as características que

a ligam à matéria, pois a forma que está na imaginação é ainda segundo a medida da

forma sensível e segundo a determinação de uma certa quantidade, qualidade e posição.

Portanto, é ainda impossível que na imaginação seja representada uma forma tal que

todos os indivíduos desta espécie possam dela participar. Por exemplo, não é possível

que o homem imaginado não esteja imerso, de algum modo, nas determinações citadas,

de uma certa quantidade, qualidade e posição.

O outro sentido interno, a faculdade estimativa, que percebe não as

formas mas as idéias, ultrapassa esse grau de abstração. A razão disto é que ela

apreende idéias que não são materiais, como por exemplo, o bem e o mal, o conveniente

e o inconveniente. Apesar de ela se utilizar da matéria para isso, ela percebe coisas

imateriais. Esse tipo de abstração já é mais forte que as realizadas pela imaginação e

pelos sentidos. Entretanto, ainda assim, ela não abstrai a forma totalmente da matéria

porque ainda essa percepção é particular. A percepção das formas totalmente despojadas

da matéria só será realizada pela inteligência especulativa, no homem, pela intervenção

necessária do intelecto agente.

Assim, temos apresentados os quatro tipos de percepção admitidos por

Ibn Sina , isto é, a percepção pelos sentidos externos; pelos sentidos internos sob suas

153 II, 2, 43.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

59

duas formas através da imaginação 154 e da estimativa e ; enfim, pela razão. Baseado

nessa diferenciação dos modos de percepção, estabelece que cada uma delas emite um

tipo de julgamento próprio e específico. Entende-se que não poderia haver qualquer tipo

de apreensão sensível, formal, ideal ou intelectual, se não houvesse um juízo específico

em cada um desses graus, que possibilitasse a própria percepção da coisa determinada.

Assim, temos: a percepção através do julgamento sensível, do julgamento imaginativo

ou formativo, do julgamento estimativo e do julgamento intelectual. 155

154 Bakós (n.270) diz imaginativa, mas trata-se certamente da imaginação (formativa) pois é ela que retém o que está no sentido comum, isto é a forma, em contraposição à idéia da estimativa. Na p.41 (linhas 26-32) a passagem é clara: “ quanto à imaginação como faculdade e como ato, ela libera a forma abstraída da matéria de um modo mais intenso, e isto, pela razão de que ela a apreende da matéria, a forma não tendo para sua existência na imaginação necessidade da existência de sua matéria visto que, ainda que a matéria seja distanciada do sentido ou reduzida a nada, a forma permanece existente de modo estável na imaginação.” Na p.118 (linha 6) também encontra-se ‘faculdade imaginativa’ sendo que se trata, na verdade, da imaginação (formativa). Mesmo considerando que o julgamento, como procedimento ativo, só possa ser exercido pela imaginativa, o processo de abstração da forma da coisa já se encontra estabilizado na imaginação para a emissão do juízo. 155 II, 2, 42-43.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

60

Os Sentidos Internos no Kit««««b al-afs ( Cap. IV)

Primeira seção: Ela encerra um enunciado universal sobre os sentidos internos que

o animal possui.

Esta seção, inicialmente, retoma as principais características dos sentidos

internos. No que se refere ao sentido comum, a primeira sentença confirma que Ibn S»n«

quer se distanciar dos que consideram os sensíveis comuns como percebidos por cada

um dos sentidos externos ou por uma faculdade que teria, neles, especificamente esta

função. Em sua análise, o sentido comum tem outro papel:

"Quanto ao sentido que é o sentido comum, ele é, na verdade, diferente

do que se pensou, isto é, que os sensíveis comuns possuem um sentido

comum; mas, o sentido comum é a faculdade à qual chegam todas as

coisas sensíveis." 156

Se não existisse uma faculdade única que percebesse o que é colorido e o que é tátil, não

poderíamos distinguir um do outro, dizendo que este não é aquele. Se nos é possível

distinguir uma cor e um odor, isso não é graças à visão ou ao olfato, mas graças a uma

faculdade capaz de apreender simultaneamente os objetos de diferentes potências

sensitivas.157 Essa função, antes de ser própria da inteligência, está presente no sentido

comum pois os animais também são capazes de fazer essas distinções. 158 Afirma Ibn

S»n« que “se não houvesse no animal isto em que são reunidas as formas das coisas

sensíveis, a vida dos animais seria difícil.” 159

Se, por exemplo, o odor e o som não fossem para os animais um

indicador do sabor, e se a forma de um pedaço de madeira não lhes fizesse lembrar a

dor, de modo que fugissem; ora, isto não seria possível se não se admitisse a

necessidade de essas formas estarem reunidas no interior dos animais num único lugar.

156 IV, 1, 115. Wolfson in WOLFSON, H.A. “ The internal senses in latin, arabic and hebrew philosophic texts”, in Studies in the history of philosophy and religion. London: Harvard University Press, 1979, vol.I afirma que “ o primeiro a incluir especificamente o sentido comum em sua classificação dos sentidos internos é Avicena”. Segundo Goichon, Livre des Directives et remarques, p. 318 teria sido Al-F«r«b». (Cf. VERBEKE Introd. IV-V, p. 49). 157VERBEKE. Introd. IV-V, p.49. 158 Mais à frente ( IV, 1, 117), ao tratar da imaginação, Ibn S»n« afirma que “quanto ao sentido comum e aos sentidos externos, certamente, eles julgam sob um certo aspecto, ou por um certo julgamento.” 159 IV, 1, 115.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

61

A consideração das próprias coisas160 nos indica a existência desta faculdade,

mostrando, sobretudo, que ela possui um órgão diferente dos órgãos dos sentidos

externos. 161"Esta faculdade é, pois, a que se chama sentido comum, e ela é o centro dos

sentidos, e dela se ramificam os ramos e a ela são conduzidos os sentidos, e ela é na

verdade aquela que sente." 162

Não obstante o sentido comum receber as formas, ele não tem a

propriedade de retê-las; isto é função de outra faculdade, a imaginação:

"Mas a ação de reter o que este (o sentido comum) percebe pertence à

faculdade que se chama imaginação, e ela se chama faculdade formativa,

e se chama faculdade imaginativa. 163 Algumas vezes distingue-se entre a

imaginação e a faculdade imaginativa, em relação ao significado

convencional da palavra. Somos dos que distinguem isso das formas que

estão no sentido comum. O sentido comum e a imaginação são como se

fossem uma só faculdade; é como se os dois não diferissem quanto ao

sujeito de inerência, mas quanto à forma. Isto é porque ‘que ele recebe’

não significa ‘que ele conserva’. Pois a forma do sensível é conservada

pela faculdade que se chama formativa e imaginação, mas ela não possui

de modo algum um julgamento, 164 ao contrário uma conservação.

Quanto ao sentido comum e aos sentidos externos, certamente, eles

julgam sob um certo aspecto ou por um certo julgamento." 165

Depois da imaginação, Ibn S»n« discorre sobre a faculdade propriamente denominada

imaginativa (no animal), e cogitativa (no homem):

160Ibn Sina introduz aqui a consideração de uma série de casos ( semelhantes aos que indicamos acima pp. 44-45 ) que apoiariam a necessidade de afirmar a existência do sentido comum, afirmação esta que aparece como resultante dessa consideração. Cf. IV, 1,116. 161 IV, 1, 115 -116. 162 IV, 1, 116. 163 Ao longo do texto, Ibn S»n« utiliza mais as duas primeiras denominações. No entanto, às vezes utiliza o termo imaginativa. É preciso atenção, pois este último termo será usado de modo mais próprio para a faculdade que compõe as formas. 164 Segundo Bakós, (nn. 588, 270), Ibn S»n« admite quatro modos de percepção: pelos sentidos externos, pela faculdade imaginativa, pela estimativa e pela razão; afirma, ainda que Aristóteles também reconhece que a sensação, a imaginação e a intelecção emitem um certo tipo de julgamento. Indica Aristóteles, De Anima, III, 2, 426b8. Cf. supra pp. 52-53 e abaixo n. 221. 165 IV, 1, 117. Aqui intervém um exemplo para apoiar esta distinção entre o papel do sentido comum e da imaginação: “Diz-se que este móvel é negro e que este vermelho é ácido. Mas pelo que conserva, não é emitido um julgamento sobre algo que pertence ao que existe; ao contrário, sobre o que está em si mesmo, isto é, que nele está uma forma de tal modo.”

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

62

"Em seguida, sabemos às vezes, de maneira indubitável, que está na

nossa natureza compôr certas coisas sensíveis com outras, e separar

certas delas de outras, não segundo as formas que encontramos nessas

coisas sensíveis no exterior nem pela mediação de um assentimento dado

à existência de uma coisa pertencente a elas ou à sua não existência. É

preciso, pois, que em nós haja uma faculdade pela qual fazemos isso, e

essa é a que é chamada de cogitativa, quando a inteligência a emprega, e

de imaginativa quando a emprega uma faculdade animal" 166

Quanto à faculdade estimativa, Ibn S»n« explica que às vezes fazemos um julgamento

sobre as coisas sensíveis por idéias que não percebemos pelos sentidos, ou porque essas

idéias, em sua natureza, não são de modo algum sensíveis, ou porque elas são sensíveis

mas não as sentimos no momento do julgamento. Quanto às idéias que, em sua

natureza, não são sensíveis temos, por exemplo, a inimizade, a maldade, a aversão que

a ovelha percebe na forma do lobo, isto é, a idéia que a faz fugir do lobo e a concórdia

que ela percebe de sua companheira, a saber, a idéia que a torna familiar com ela. Essas

são coisas que a alma animal percebe sem que os sentidos externos indiquem algo a

respeito delas. 167 Assim, conclui Ibn S»n«: “A faculdade pela qual se as percebe é uma

outra faculdade, e ela é chamada de estimativa.” 168

Quanto às idéias sensíveis, Ibn S»n« dá o seguinte exemplo: “(...) nós

vemos algo amarelo e emitimos o julgamento de que se trata de mel e que é doce. Não é

o sentido que faz isto chegar à estimativa no momento do julgamento pois o julgamento

em si não é sensível, embora se refira a algo do domínio do sensível.” 169 Algumas vezes

há um erro nesse julgamento na medida em que isso também pertence a esta faculdade.

Esta faculdade, embora se ocupe dos julgamentos particulares, encontra-se em nós,

superior, e no animal cumpre um tipo de julgamento que não é uma diferença específica

como o julgamento intelectual, mas um julgamento imaginário, unido à particularidade

e à forma sensível e do qual procedem a maior parte das ações dos animais. 170

166 IV, 1, 117. 167 IV, 1, 117. 168 IV, 1, 117. 169 Cf. IV, 1, 117. 170

IV, 1, 117-118.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

63

Ibn S»n«, retoma ainda a diferença da apreensão pela forma e pela idéia: “

É habitual chamar-se forma, o objeto de percepção do sentido comum, e idéia o objeto

de percepção da estimativa.” 171

Em seguida, relaciona o depósito das formas do sentido comum ao

depósito das idéias da estimativa. Cada uma das duas faculdades possui um depósito

próprio. O depósito do sentido comum é a imaginação localizada na parte anterior do

cérebro. É por essa razão que quando ocorre um dano nessa região, esta categoria da

concepção se corrompe, sendo que são imaginadas formas que não existem, ou então, o

que existe é difícil de ser fixado nela. 172 O depósito da faculdade estimativa é a

faculdade que conserva: “O depósito do que percebe à idéia é a faculdade chamada

faculdade que conserva, e seu lugar próprio é a parte posterior do cérebro.” 173 É por

essa razão que quando há um dano nessa região, é corrompida esta capacidade particular

de conservar as idéias. Esta faculdade é ainda chamada de faculdade que se lembra. 174

A última parte desta seção exemplifica alguns movimentos da estimativa

em relação às outras faculdades:

“A faculdade que conserva é assim chamada visto que ela preserva o que

está nela, e também é chamada faculdade que se lembra em razão da sua

rapidez na aptidão de fixar e conceber recuperando-o quando o perdeu.

171 IV, 1, 118. O termo que Ibn S»n« usa é Å´˜¯ - ma‘na - ( Cf. edição árabe do texto por Bakós p. 161).

A tradução latina adotou o termo “intentio” (Cf. léxico p.419). Os dicionários geralmente traduzem “ma‘na” por conceito, noção, sentido, significado (Cf. - REIG, D. Dictionaire Larousse arabe-français. Paris: Larousse, 1987, p. 458); acepção, sentido, significado (Cf. SABBAGH, A.N. Dicionário árabe-

português-árabe. RJ: Ed. da UFRJ, 1988, p. 211). Esta palavra é o particípio passado de Å´— - ‘na - que

é traduzido geralmente como significar, querer dizer, concernir (Cf. KAPLANIAN, M.G. Diccionario Alhambra arabe-español. Barcelona: Ed. Ramon Sopena, 1974, p. 314 parte árabe- espanhol); significar (Cf. SABBAGH, A.N., op. cit., p.153, parte árabe-português) significar, querer dizer (Cf. - CORRIENTE, F. Diccionario arabe-español. Barcelona: Ed. herder, 1991, p.539). Logo, a melhor tradução de “ma‘na” seria “significado”. Goichon, ( Cf. léxico item 469) traduz por “idéia” e afirma que este termo quase

sempre designa o inteligível mas que este convém mais a ª½¤˜° “ma‘qūl”, enquanto “ma‘na” é

empregado algumas vezes para um grau de abstração inferior ao intelectual; em seu mais baixo grau, significando a idéia particular apreendida pela estimativa. O termo idéia, no sentido de conceito, encontra

em árabe sua melhor tradução em ºz¨Ÿ - fikra - ( Cf. KAPLANIAN, M.G. op. cit., p. 347, parte

espanhol-árabe; cf. SABBAGH, A.N., op. cit., parte árabe-português, p. 165). Não é demais lembrar que o termo “idéia” adotado por Bakós não deve ser confundido com o sentido mais conceitual que este termo adquiriu na filosofia moderna. Visto que em nosso idioma parece não haver um termo adequado, optamos por manter o termo ‘idéia’ desde que se leve em conta o acima exposto, considerando afinal este termo como indicando uma espécie de juízo avaliativo, não deliberado. 172 IV, 1, 118. 173 IV, 1, 118. Ibn Sina localizou-a mais exatamente no ventrículo posterior do cérebro. (Cf. I, V, 31.). 174 IV, 1, 118.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

64

Isso ocorre quando a estimativa volta a sua imaginativa175 para a frente, e

começa a apresentar uma a uma as formas presentes na imaginação, para

que se faça como se ela visse as coisas que têm essas formas. E quando

lhe chega a forma com a qual foi percebida a idéia que foi apagada, então

esta idéia aparecerá como se houvesse aparecido no exterior, e a

faculdade que conserva a reforçará nela mesma, como havia feito

anteriormente, havendo assim reminiscência. Ocorre, algumas vezes, o

contrário, isto é, que da idéia chega-se à forma. Desse modo, a relação do

objeto da lembrança buscado com o que está no depósito da memória não

existe, sendo sua relação, antes com o que está no depósito da

imaginação. Assim, sua repetição se faz ou sob o aspecto do retorno a

essas idéias que estão na memória, de modo que a idéia chega com a

aparição da forma, pois a relação retorna uma segunda vez ao que está na

imaginação, ou pelo retorno ao sentido.” 176

Seguem-se dois exemplos ilustrando as duas possibilidades apontadas. Ibn S»n« propõe

uma síntese ao final desta primeira seção:

“O centro do cérebro foi colocado como lugar da faculdade estimativa177

para lhe ser uma junção com os dois depósitos da idéia e da forma. E

parece que a faculdade estimativa é aquela que é por ela mesma

cogitativa e imaginativa e memorativa; ela é por si mesma a que emite

um julgamento, pois ela emite um julgamento por sua essência, ao passo

que pelos seus movimentos e suas ações ela é imaginativa e memorativa;

pois ela é imaginativa pelo fato de que ela age sobre as formas e sobre as

idéias, e ela é memorativa por aquilo em que resulta sua ação.” 178

A estimativa pelo seu movimento age como se tivesse uma imaginativa em sua

estrutura, pois, do contrário, não poderia julgar e nem mover. Para que ela possa

funcionar e julgar é necessário uma comparação de formas e idéias, por isso ela atua

175 Note-se que, em princípio, a faculdade imaginativa só tem acesso às formas armazenadas na imaginação. O fato de haver composição e separação com as idéias armazenadas na memória só é possível porque a estimativa está no comando dessa ação e age, por analogia, como se fosse imaginativa; ou dito de outro modo, usa a sua própria imaginativa para compor e separar as formas da imaginação com as idéias da memória. 176 IV, 1, 118. 177 Em seu Livre de Directives e Remarques, Ibn S»n« escreve que a estimativa está situada no cérebro todo, mas sobretudo na parte mediana (trad. Goichon, p. 322) (Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.51). 178 IV, 1, 119.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

65

como se fosse imaginativa. Assim como a denominação de alma vegetal, animal e

humana se faz ou de modo absoluto ou por analogia, aqui se dá o mesmo. A faculdade

imaginativa, em sentido absoluto é a que compõe as formas da imaginação e está

localizada no ventrículo médio do cérebro.179 Mas, por analogia, a estimativa por ser

superior e por seus movimentos, tem em si uma imaginativa; do mesmo modo que

ocorre quando dizemos, por analogia, que a alma animal tem uma alma vegetal, sem

que com isto estejamos dizendo que existem duas almas, mas uma só alma com funções

tanto de uma quanto de outra. A estimativa tem acesso aos dois depósitos, das formas e

das idéias, podendo confrontá-las e relacioná-las, o que caracteriza o movimento de

composição próprio da imaginativa. Do lado externo ela associa a forma vinda do

exterior com a intenção apreendida; do lado interno, ela pode fazer essa associação

apenas com as formas já existentes na imaginação e com as intenções armazenadas na

memória. Essas associações são guardadas, por isso ela é também memorativa. Por

exemplo, se à estimativa da ovelha for apresentada a forma do lobo que está na

imaginação, a intenção associada a esta forma ser-lhe-á igualmente apresentada e, por

fim, a sensação de medo se repetirá. Verbeke observa que “é interessante notar que a

estimativa não se detém no que é percebido propriamente: o que é percebido nos

exemplos dados, é um lobo ou uma ovelha. Os ‘julgamentos’ de que de um se deve

fugir e de outro se deve ter compaixão ultrapassam os dados da percepção. No nível da

estimativa, como da cogitativa, há um modo de composição e divisão: no exemplo dado,

associa-se ‘lobo’ e ‘ fugir’, ‘ovelha’ e ‘ ter compaixão’; encontramo-nos cada vez diante

de uma espécie de julgamento associativo.”180

Segunda seção: Dos atos da faculdade formativa e cogitativa, dentre os sentidos

internos. Esta seção contém um discurso sobre o sono, a vigília, o sonho verdadeiro

e enganador e uma espécie das propriedades da profecia.181

179Cf. I, 5, 31. Não há contradição entre esta localização da imaginativa e a da estimativa citada acima (p. 80 n. 177), pois a estimativa ocupa a “extremidade do ventrículo médio do cérebro” (I, 5, 31). (Cf. anexo). 180Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.51. 181 Para uma análise mais detida sobre o tema da profecia em Ibn S»n« remetemos à ELAMRAJNI-JAMAL, A. “De la multiplicité des modes de la prophétie chez Ibn S»n«” in Etudes sur Avicenne. Collection sciences et philosophie arabes. Paris: Les Belles Lettres, 1984, pp. 125-142 e MAHLOUBI, B. La notion d’imagination chez Avicenne. Tese de doutorado. Paris: Université de Paris I Panthéon-Sorbonne, 1991, pp. 147 - 172. .

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

66

Ibn S»n« inicia esta seção afirmando que a faculdade formativa que é a

imaginação é a última faculdade em que se estabelecem as formas das coisas sensíveis,

e que a sua direção182 para com as coisas sensíveis é o sentido comum. Este, não só faz

chegar à imaginação, mas também deposita nela, tudo o que os sentidos externos lhe

trazem. Mas a faculdade formativa armazena também, às vezes, o que não é extraído

dos sentidos.183 Com efeito, a cogitativa ao compor e decompor formas retiradas da

imaginação, acaba produzindo novas formas, guardando-as novamente na imaginação.

Para a ação de compor e de analisar, a faculdade cogitativa emprega, às vezes, as formas

que estão na faculdade formativa porque estas lhe estão submissas. Quando a faculdade

cogitativa compõe uma forma com outra ou a separa dela, é possível que procure

também conservá-la na formativa, pois nesse caso a formativa é um depósito para esta

forma não porque esta se refere a algo e lhe chega do interior ou exterior, mas porque se

torna o que é por esse modo de abstração empregado pela cogitativa. 184

Em seguida, Ibn S»n« mostra como pode acontecer que tais formas

resultantes das composições ou divisões podem ser impressas não só na imaginação mas

mesmo no sentido comum, ocorrendo que essas formas são tomadas, nesse caso, como

realidades externas. 185Mas um outro caso também se apresenta:

"(...) se por uma certa causa, ocorresse acidentalmente, seja por

imaginação e reflexão, 186 seja em razão de uma certa configuração

celeste, 187 que uma forma se representasse na faculdade formativa,

enquanto o espírito estivesse ausente ou em repouso fora de sua

consideração, seria possível que isso se imprimisse por si mesmo no

182 “Direção”- a edição latina optou pel tradução literal que é “face” - facies - \¸¸k¼. (Cf. Vol. 2, p.12,

l. 57) 183 IV, 2, 119. 184 IV, 2, 119. Podemos dizer que a imaginativa (cogitativa) e a estimativa são faculdades ativas, agindo sobre os dados armazenados, ao passo que o sentido comum, a memória e a imaginação são faculdades passivas, pois não têm esse tipo de movimento, sendo apenas receptáculos: a primeira, dos dados trazidos pelos sentidos externos e de algumas formas internas que se imprimem nela; a segunda, das “intenções” ou “idéias”; e a terceira das formas que chegam ao sentido comum. No caso do sentido comum talvez se pudesse considerar a distinção dos sensíveis comuns como uma espécie de atividade mas não do mesmo modo que se dá na estimativa e na imaginativa (cogitativa). (Cf. p. 61). 185 Com isto, pode-se afirmar que o sentido comum não recebe exclusivamente os dados trazidos pelos sentidos externos, mas também pode ser afetado pelo movimento de composição da imaginativa, sendo que ele não tem a função de distinguir entre essas formas imaginadas das que lhe chegam do exterior. 186 Aqui refere-se à imaginação como o movimento da imaginativa e um modo de reflexão pela cogitativa. 187 Este tipo de ação é explicado ao final da seção.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

67

sentido comum segundo as disposições deste. Então, escutar-se-ia sons e

ver-se-ia cores sem que eles tivessem uma existência exterior, nem suas

causas no exterior.” 188

Isso ocorre frequentemente quando as faculdades intelectuais estão em repouso ou

então pelo descuido da estimativa. Quando isso acontece, as faculdades formativa e

imaginativa ganham força para realizarem suas ações próprias, de modo que o que elas

apresentam é representado como formas que tivessem sido percebidas pelos sentidos

externos.

Deve-se levar em conta que a dinâmica das faculdades é um movimento

próprio da alma. Todas as faculdades existem para servi-la e todas elas pertencem a uma

alma única. Assim sendo, as faculdades realizam suas funções e as apresentam

constantemente à alma. Ocorre, no entanto, que a alma, voltando-se constantemente às

suas diversas funções, é afetada de modo diferente, em relação à intensidade das ações

das faculdades:

“(...) quando a alma se ocupa com as coisas internas, ela negligencia a

investigação das coisas exteriores, e não faz investigações das coisas

sentidas como deveria fazer. E quando está ocupada com as coisas

exteriores, negligencia o emprego das faculdades internas” 189

Por essa razão quando a alma está atenta aos sensíveis exteriores, no momento em que

ela se inclinou na direção deles, sua imaginação e reminiscência são fracas. Quando ela

tende às ações da faculdade concupiscível, cessam as ações da irascível e vice-versa.

“Em resumo, quando ela se inclina a realizar as ações do movimento, as ações relativas

à percepção tornam-se fracas e vice- versa”.190 Desse modo, quando a alma está

tranquila como se estivesse separada e não se ocupa com as ações das faculdades em

geral, e nem de uma delas em particular, a faculdade mais forte e mais atuante acaba

dominando e fazendo prevalecer as suas ações, apresentando-as à alma. 191

“Isso que acontece acidentalmente à alma pelo fato de que ela não se

ocupa com a ação de uma faculdade ou com as faculdades, existe, por

188 IV, 2, 120. 189 IV, 2, 120. 190 IV, 2, 120. 191 IV, 2, 120. Analogamente aos sentidos externos que, depois de serem constituídos pela alma, realizam suas funções de modo ininterrupto (por exemplo, o ouvido não cessa de ouvir, o olfato de cheirar, etc, a não ser que a alma intervenha e os impeça), assim também se dá com os sentidos internos, notadamente com as duas faculdades que chamamos ativas, isto é, a imaginativa ( cogitativa) e a estimativa.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

68

vezes, em razão de um dano ou de uma fraqueza que desvia a realização

perfeita, como ocorre nas doenças, e como ocorre no medo; ou existe em

razão de um certo repouso, como ocorre no sono; ou existe em razão da

tendência múltipla do esforço (da alma) para empregar a faculdade em

direção da qual se produz a tendência, afastando-se de uma (faculdade)

diferente dela.” 192

Estabelecidas as funções da imaginativa, Ibn S»n« explica que a alma, às vezes, a desvia

de sua ação própria. Isto se dá de dois modos: primeiro quando a alma se ocupa com o

exterior, voltando a faculdade formativa em direção aos sentidos externos; segundo,

quando a alma emprega a imaginativa em suas ações, devidas à distinção e à reflexão,

que estão unidas à imaginativa. Este último caso é subdividido em dois:

"Isso se produz, também, de duas maneiras, das quais uma é quando a

alma se apodera da imaginativa e se faz servir por ela, enquanto o sentido

comum está com ela, na composição das formas com suas essências

concretas e na análise delas, sob um aspecto que a alma tem, e no qual há

um verdadeiro objetivo, e é por essa razão que a imaginativa não se

apodera do ato submetido à sua escolha a respeito do que, por sua

natureza, ela deveria ter a livre ação; ao contrário ela é arrastada de um

certo modo quando a alma racional dispõe dela. A segunda é que a alma

a desvia das imaginações que não coincidem com os seres existentes no

exterior; então, a alma os repele, declarando-os falsos. Assim, a

imaginativa não é capaz de reproduzi-los em imagem e de representá-los

com intensidade. E se a imaginativa é desviada de ambos os lados, sua

ação é fraca." 193

Em todos esses movimentos apresentados por Ibn S»n«, deve-se ter presente que a alma

é uma primeira perfeição que estrutura o corpo, atualizando todas as suas faculdades

para realizar os atos da vida. Ao colocá-las em funcionamento, estas passam a exercer

as suas funções sem cessar. O que está em questão é a intensidade com que isto se dá.

Desse modo, há duas situações diferentes que são apresentadas por Ibn S»n«: a primeira

acontece, quando a alma não está empenhada em nenhum objetivo específico e, na

192 IV, 2, 121. 193 IV, 2, 121.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

69

medida em que as faculdades agem de modo intermitente, ocorre que as ações de uma

determinada faculdade são realizadas de modo mais livre e passam a dominar; o

segundo caso se dá quando a alma está empenhada num objetivo específico e passa a

utilizar os instrumentos que ela tem para auxiliá-la, ocorrendo, nesse caso, que as

características das faculdades em uso não dominam porque a alma como um todo

comanda este procedimento.

Em seguida, Ibn S»n« mostra quando é que a imaginativa ganha mais

força. Isto se dá quando ela não é desviada, ocorrendo que suas ações passam a ser mais

livres e irrestritas. Se a imaginativa cessa de ser ocupada de ambos os lados, isto é, pela

inteligência e pela comparação com as coisas existentes no exterior, como ocorre no

estado de sono; ou ainda, de apenas um dos lados, como ocorre nas doenças que tornam

o corpo fraco, ou em situações de medo, ou em qualquer situação na qual ela abandona

a inteligência e a sua condução, é possível que a apreensão imaginativa se torne forte, e

que ela se dirija à formativa, empregando-a, sendo que a reunião das duas se torna

igualmente forte, e a forma que está na formativa aparece no sentido comum. 194

“Desse modo, ela (a forma) é vista como se fosse existente fora, porque

a impressão percebida do que vem de fora e do que vem de dentro é o

que é representado na formativa, e só há diferença pela relação.”195

É por essa razão, explica, que aquilo que o homem louco, medroso, fraco e sonolento vê

como imagens subsistentes, se dá como ele as vê realmente no estado sadio, do mesmo

modo como ouve sons. Assim, o imaginado toma forma e dimensões de realidade

exterior. No entanto, quando a inteligência impede algo disto e atrai a influência da

imaginativa, os fantasmas desaparecem.

Ibn S»n« expõe um modo particular de profecia associado à imaginativa.

Segundo ele, em certos homens a faculdade imaginativa é criada extremamente forte de

tal modo que não é dominada pelos sentidos e nem a faculdade formativa (imaginação)

lhe resiste. Também a alma de tais homens é forte, de tal modo que a contemplação do

intelecto e do que está acima deste não destrói sua inclinação para os sentidos.Tais

homens possuem em estado de vigília o que outros possuem no sono, isto é, a

capacidade de ter visões que lhes aparecem ou como são ou através de imagens; o que

194 IV, 2, 121. 195 IV, 2, 122.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

70

explica que eles estejam ausentes das coisas sensíveis ou cheguem até a desmaiar. Há

outros tipos de profecias que serão tratados adiante. 196

Quanto ao mecanismo próprio da imaginativa de reunir e de separar

formas encontra-mo-lo descrito do seguinte modo:

"Mas é próprio desta faculdade imaginativa inclinar-se constantemente

sobre os dois tesouros da faculdade formativa e da memória e apresentar

constantemente a forma começando por uma forma sentida ou da qual

nos lembramos, passando dela a um contrário ou a um semelhante, ou a

algo que vem dela por uma causa, e esta forma sentida ou da qual nos

lembramos será a natureza da forma." 197

O movimento da imaginativa, de uma coisa a seu contrário, excluindo seu semelhante e

de uma coisa a seu semelhante , excluindo-se o seu contrário, tem inúmeras causas. De

um modo geral, pode se dizer que a alma, ao considerar simultaneamente as “idéias”198

e as “formas” passa da “idéia” à “forma” que está mais próxima, ou de modo absoluto,

ou porque aconteceu que pouco antes viu a conjunção desta “forma” e de tal “idéia”,

seja pelo sentido, seja pela estimativa e, por isso, passa da “forma” à “idéia”. Além dos

sentidos e da estimativa, podem intervir, como fatores que particularizam uma “forma”

e uma “idéia”, a inteligência ou ainda uma causa celeste.

A reflexão racional é experimentada pela imaginativa e isso decorre de

sua natureza quando ela está sendo ocupada de maneira urgente. Quando, para uma

certa forma, a alma emprega a imaginativa em vista de um determinado objetivo, a alma

passa rapidamente a outra coisa que não está relacionada com o objetivo e, desta, a uma

terceira, e a imaginativa faz com que a alma esqueça a primeira coisa da qual havia

começado, de modo que a alma tem necessidade de se lembrar, passando a analisar no

sentido inverso para voltar ao princípio. 199

Segue-se a explicação da interferência da imaginativa na fixação de algo

na memória, seja na vigília, seja no sono. Caso a imaginativa o permita (porque está

tranquila ou porque não desvia a alma) a fixação será firme e não haverá necessidade

nem de reminiscência (na vigília), nem de interpretação (nos sonhos), nem de exegese

196 IV, 2, 122. Estas passagens sobre as profecias guardam relações com o caráter profético da religião muçulmana. (Cf. p. 72 sobre o modo de profecia associado às faculdades motoras). 197 IV, 2, 123. 198Vide, sobre a diferença entre forma e idéia, a p.57 n. 171. 199 IV, 2, 123. Voltar ao princípio significa retornar à memória. (Cf. Bakós n. 597).

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

71

(na revelação por audição). É de se notar a aproximação da exegese e da interpretação

em relação à reminiscência.200 Mas, se a imaginativa interfere com o que a alma viu em

sonhos opondo-lhe imagens distintas ou até opostas, o que foi visto não se fixa bem na

memória e sim algo proveniente da imaginação e que imita o que foi visto. Pode

acontecer também que o que foi visto das coisas celestes seja como que “a cabeça e o

princípio” mas depois a imaginação prevalece, lançando-se numa agitação contínua.

Este tipo de sonho não tem muita importância: trata-se de um sonho incoerente e ele é

uma ilusão. Nos sonhos em que prevalece a imaginação, é necessária a interpretação. Às

vezes, alguém vê a interpretação de seu sonho no próprio sonho. Isto é uma

reminiscência. Ibn Sina detalha esta última afirmação:

“Pois como a faculdade cogitativa passou primeiramente do princípio à

conformação, em razão de uma relação entre os dois, do mesmo modo

pouco é necessário para que ela passe da conformação ao princípio.

Então frequentemente ocorre à faculdade cogitativa que tal ação (que é)

sua seja imaginada uma outra vez; então ela é vista como se alguém que

fala dirigisse, por intermédio disso, a palavra à faculdade cogitativa. E

frequentemente não acontece desse modo e sim como se ela visse com

seus próprios olhos a coisa de uma maneira perfeita, sem que a alma

estivesse ligada ao mundo insensível, ou melhor, uma conformação

proveniente da faculdade imaginativa torna-se a conformação, então,

compreendida no princípio. E este modo de sonho verdadeiro é, às vezes,

proveniente da imaginação sem o recurso de uma outra faculdade, apesar

de que isso seja o princípio no qual a conformação se encontra; então, ela

está aí compreendida. Às vezes (a imaginação) representa esta

conformação por uma outra conformação; então, ela precisa uma outra

vez da interpretação do intérprete dos sonhos. Mas isso são coisas e

disposições que não são conhecidas a fundo.”201

Tal tipo de visão não se dá apenas no sonho, mas também em vigília:

"Dentre os que vêem essas coisas no estado de vigília, há o que vê isso

em razão da nobreza e da força de sua alma, e em razão da força de sua

200Cf. AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus aturalibus IV-V . “Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G. Verbeke.1968, p. 23, nota às linhas 10-12. 201 IV, 2, 124-125.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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faculdade imaginativa e de sua faculdade que se lembra, sendo que as

coisas sensíveis não distraem a alma de suas acões próprias." 202

Para que ocorram tais fenômenos, é necessária uma relação entre o invisível, a alma e a

faculdade interna imaginativa, 203 bem como uma relação entre a alma e a imaginativa.

O princípio de todos esses movimentos é remetido à metafísica:

“ E como, da apreensão imaginativa, nosso discurso já tratou da matéria

do sonho, não há obstáculo algum para que indiquemos um pouco do

princípio de onde provêm as predições no sono, pelas coisas que

sustentamos de um certo modo, e que só nos são explicadas na disciplina

que é a filosofia primeira. Dizemos, pois, que as idéias de todas as coisas

engendradas no mundo dentre as que foram e são no presente, e se

preparam para ser, são existentes de uma maneira no saber do Criador e

dos anjos intelectuais, e são existentes de uma outra maneira nas almas

dos anjos celestes. As duas maneiras te serão claras em breve num outro

lugar e, também, que as almas humanas combinam mais com estas

substâncias angélicas do que com os anjos intelectuais por causa dos

corpos sensíveis.” 204

Ibn S»n« distingue as representações da imaginativa que provêm do que é mais próximo

da alma, seja isto natural ou voluntário, e as representações que provêm do mundo

invisível. O que é natural é o que resulta do pneuma, veículo da faculdade formativa e

imaginativa, devido à combinação das forças dos humores. São relacionadas com este

tipo de representação as que se ligam a alguma afecção do corpo como a fome, a

emissão de esperma ou a necessidade de defecar. O que é voluntário se liga às

preocupações em vigília, sendo como um resíduo de reflexão no sonho. Tudo isto são

sonhos incoerentes.

202 IV, 2, 125. Verbeke destaca que tais homens, possuindo uma potência psíquica excepcional, são capazes de entrar em contato com o mundo superior mesmo em estado de vigília, abstraindo-se das realidades sensíveis nas quais se encontram. Mas esse dom profético nada tem que ultrapasse a natureza humana, sendo devido apenas ao fato de que tais homens têm a faculdade imaginativa mais potente que a de outros. (Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.56.) 203As representações da imaginativa não pertencem todas unicamente ao que desborda do mundo invisível sobre a alma. (Cf. IV, 2, 126.). 204 IV, 2, 126. Bakós (n.31) explica que as almas das esferas são almas das esferas celestes ou almas angélicas, sendo que acima delas há inteligências separadas. As almas das esferas e as inteligências separadas não entram em composição com a matéria. Indica, ainda que Aristóteles também admite substâncias eternas e motores dos astros que têm movimentos particulares ( Cf. Metafísica 12, 8.).

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

73

Um outro modo pelo qual a imaginativa é afetada pelo exterior é através

dos sonhos provocados por influência dos corpos celestes. Estes provocam, segundo

suas relações e segundo as relações de suas almas, formas na imaginação, sem que estas

venham, de algum modo do mundo invisível ou da predição.

“É por isso que , em sua maior parte, não é verdadeiro o sonho do poeta,

do impostor, do maldoso, do beberrão, do doente, do aflito, e daquele em

quem domina uma compleição ruim ou inquietações. É por isso também,

na maior parte, que o sonho só é verdadeiro se ele tem lugar no momento

da aurora, porque nesse momento, todas as intenções estão em repouso, e

os movimentos das imagens já se apaziguaram." 205

As composições da imaginativa estão relacionadas com o tipo de caráter do homem e

com aquilo que ele cultiva em sua alma, isto é, com o que está armazenado em sua

imaginação, visto que a imaginativa, nesse caso, age a partir de um conjunto de dados

previamente existente. Neste sentido: “os homens que têm os sonhos mais verdadeiros

são os cuja compleição é a mais moderada”.206

As ações da faculdade imaginativa também são influenciadas pelos

hábitos intelectuais do homem. O hábito da falsidade e das cogitações viciosas deteriora

a imaginação quanto a seus movimentos, e esta passa a não assistir corretamente à ação

da razão em direção ao que é justo . Esse tipo de disposição é característico daquele que

tem a compleição da imaginação corrompida e em desordem. 207

Ibn S»n« encerra esta seção com uma breve exposição sobre o sono e a

vigília. 208 A frase final sugere que a seção, no seu conjunto, acabou tendo o caráter de

“uma coisa puxa a outra”: o estudo da imaginativa acarretou o do sonho e este o do sono

e da vigília. Ibn S»n« de fato diz:

“Isto entrou por acidente no assunto aqui tratado, embora seja essencial

falar do sono e da vigília ao se falar do que acontece ao que possui

sensibilidade”.209

205 Aos sonhos desse tipo não se deve atribuir credibilidade porque esses homens manifestam um desequilíbrio no organismo corporal. (Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.57). 206 IV, 2, 127. 207 IV, 2, 128. 208 IV, 2, 127 - 128. 209 IV, 3, 128. Algumas referências sobre o sonho em outras obras de Ibn S»n« encontra-se, ainda que de modo bastante breve, em MAHLOUBI, B. La notion d’imagination chez Avicenne, pp. 93 -101, assim como algumas indicações mais gerais sobre o sonho em Ibn S»n«, Al-Kind» e Aristóteles.

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74

Terceira seção: Das ações da faculdade que se lembra e da estimativa,210 e de que

todas as ações destas faculdades se fazem por órgãos corporais.

Esta seção se inicia com uma referência ao que foi tratado na seção

anterior e o anúncio do tema da presente seção; segue-se uma primeira e fundamental

caracterização da estimativa:

“Depois de termos esgotado nosso discurso sobre a disposição da

(faculdade) imaginativa e formativa, nos é necessário falar da disposição

da (faculdade) que se lembra, e disso que está entre ela e a (faculdade)

cogitativa, e da disposição da (faculdade) estimativa. Dizemos, pois, que

a estimativa é o grande juiz no animal, e ela julga por meio de uma

excitação relacionada à apreensão imaginativa, sem que isso seja

verificado." 211

Isto é parecido com o que ocorre quando o homem acha que o mel é repugnante em

razão de sua semelhança com o fel.212 Este julgamento é feito pela estimativa, e a alma

segue esta avaliação, embora o intelecto a declare falsa. A estimativa possui este tipo de

julgamento mas não possui a distinção racional ; ao contrário, tal julgamento se realiza

apenas por um certo tipo de excitação. Mas, pelo fato da estreita vizinhança da

estimativa com a razão, pode se considerar que no homem, as faculdades internas

estejam a ponto de se tornarem intelectuais, diferentemente dos animais. 213Isso se dá

porque

“a luz da razão parece desbordar, fluir sobre estas faculdades e , além

disso, porque esta imaginativa que o homem tem, já se tornou sujeito de

inerência para a razão, depois de ter sido sujeito de inerência para a

estimativa nos animais, de modo que o homem aproveita da imaginativa

nas ciências.” 214

Ibn Sina destaca algumas características distintivas da estimativa:

210

“Segundo RAHMAN. A History of Muslim Philosophy, Cap. XXV, p. 494, a doutrina aviceniana sobre a estimativa é a mais original de sua psicologia.”; Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.51, n.177. 211

IV, 3, 129. 212

O texto árabe traz o termo y[z°«[ que é fel, mas indica ¶y[z°«[ (bílis) como uma variante existente

no manuscrito T (Litografia de Teerã, 1303) , a qual foi adotada na tradução francesa por Bakós. 213

IV, 3, 129. 214 IV, 3, 129. Apesar dos sentidos internos estarem presentes tanto no animal quanto no homem, a conjunção com a razão faz com que, no homem, os sentidos internos tenham características distintas em relação ao animal. A citação foi corrigida de acordo com a tradução latina. Cf. Van Riet, p. 36.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

75

“Dizemos, pois, que pertencem à estimativa várias modalidades; entre

elas estão os instintos que desbordam da misericórdia divina sobre o

universo; por exemplo, o estado da criança assim que nasce, quanto à sua

dependência da mama; e, por exemplo, o estado da criança que é erguida

e colocada em pé, e que está em via de cair, por sua ação de acorrer para

se agarrar em quem a segura, em razão de uma natureza na alma que a

inspiração divina colocou nela.” 215

Do mesmo modo os animais possuem instintos ou cuidados naturais. A causa disto são

as relações entre eles e o fato de que os princípios de tais relações são constantes e não

intermitentes como, por exemplo, considerar com o intelecto. A estimativa apreende as

“idéias” que estão unidas ao sensível e dizem respeito ao nocivo e ao útil. Assim, toda

ovelha se protege do lobo, sem que jamais o tenha visto, assim como muitos animais se

protegem do leão. Os pássaros se protegem das aves de rapina e, os pássaros frágeis

têm, sem experiência, repulsa por elas. 216 As características inatas, no entanto, não

esgotam as modalidades da estimativa: “ Isto é uma categoria, enquanto que uma outra

categoria existe em razão de algo como a experiência” 217

A diferença entre o que é estimado de maneira inata e o que é estimado

através da experiência decorre do fato de que esta última se dá, por exemplo, quando

uma dor ou um prazer atingem o animal, ou quando lhe chega algo de útil ou inútil

sensível e que isto esteja unido a uma forma sensível. Nesse caso, a forma da coisa e a

forma do que lhe está reunido são impressas na formativa e, a idéia da relação entre as

duas, assim como o julgamento sobre esta relação são impressos na memória graças à

natureza desta última. Quando esta forma aparece do exterior à imaginativa, ela se move

na formativa, mas com ela se move o que lhe foi unido das

idéias úteis ou nocivas, isto é, a idéia que está na memória. Esse processo

se dá à maneira da translação e da apresentação que estão na natureza da faculdade

imaginativa. 218

215 IV, 3, 130. É mencionado ainda o caso da pupila incomodada por um cisco: a criança procura automaticamente fechar a pálpebra. Os dados inatos são, assim, uma nota distintiva da faculdade estimativa em vista dos objetos dos sentidos externos assim como os do processo intelectivo. Não há aí escolha deliberada. 216 IV, 3, 130. 217 IV, 3, 130. 218 IV, 3, 130.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

76

“Então a estimativa sente tudo isto em conjunto e vê a idéia com a forma.

Mas isto se produz pelo motivo de que a experiência foi acrescentada. É

por isso que os cães têm medo das pedras, dos paus e coisas

assemelhadas. Às vezes, sobrevêm na estimativa outros julgamentos a

modo de comparação porque a coisa possui uma forma unida a uma idéia

da estimativa, quanto a certas coisas sensíveis, mas não lhe está unida

sempre com todas estas formas. Então, a estimativa prestará atenção à

idéia desta forma, ao se apresentar esta última. Portanto, a estimativa

sendo o juiz no animal, tem necessidade em seus atos, da obediência

dessas faculdades que ele possui. O de que ela tem mais frequentemente

necessidade é da memória e dos sentidos. Quanto à formativa, a

estimativa tem necessidade dela por causa da memória e da

reminiscência.” 219

Em seguida, Ibn S»n« apresenta uma longa exposição das diferenças entre memória e

reminiscência. Considera que a memória se encontra em todos os animais mas, quanto à

reminiscência, que é o artifício de fazer voltar o que foi apagado, esta só se encontra no

homem. A reminiscência é mais caracterizada no homem, na medida em que há uma

ligação da memória com os atos intelectivos e o estabelecimento de objetivos futuros

nesse processo, ao passo que nos mecanismos puramente memorativos, característicos

do animal, isso não ocorre. Ambos os procedimentos e suas decorrências envolvem os

julgamentos da faculdade estimativa. 220 Ibn S»n« compara a reminiscência e o

aprendizado, estabelecendo sua semelhança e diferença. Detem-se também sobre a

diferença da memória na criança, no adulto e no velho.

Segue-se uma análise das características do modo de abstração pelos

sentidos externos e internos, afirmando a necessidade de órgão corporais nesse

processo.

“Limitemo-nos, agora, ao que dissemos a respeito das faculdades animais

que percebem, e demonstremos que todas fazem atos com órgãos,

dizendo: quanto ao que, dentre as faculdades, percebe as formas

219 IV, 3, 130-131. 220 IV, 3, 131- 132. Cf. também o artigo de Elamrani-Jamal “De la multiplicité des modes de la prophétie chez Ibn Sina” em Etudes sur Avicenne.Paris: Les Belles Lettres, 1984, pp. 129-131 em relação a alguns movimentos da estimativa no processo de memória e reminiscência.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

77

particulares exteriores, segundo uma disposição que não é perfeita quanto

à ação de abstrair e quanto à separação da matéria, e que não é de modo

algum livre das relações com a matéria, como o que percebem os

sentidos externos, é bem evidente, fácil de compreender que a percepção

disso que percebe tem necessidade de órgãos corporais. E isto se dá,

porque estas formas só são percebidas enquanto as matérias estão

presentes, existentes. Ora, o corpo presente, existente, não está presente,

existente, senão de acordo com um corpo, e ele não está às vezes presente

e às vezes ausente de acordo com o que não é um corpo.” 221

Em seguida, é explicado através do exemplo da figura de um quadrilátero, como a

imaginação, ao fixar a forma deste em si, não é capaz de destituir esta forma da

particularidade exterior que lhe foi dada, isto é, a imaginação não desvincula os

acidentes deste quadrado particular para chegar ao conceito universal de sua forma. A

definição, o inteligível universal é algo que só pode ser alcançado pelo intelecto. 222

O mesmo se dá também pelo fato de não podermos imaginar a negrura e

a brancura numa imagem imaginativa, 223 única, fundindo as duas cores nesta imagem.

Mas isso nos é possível desde que haja duas partes da imagem imaginativa, que a

imaginação observa como separadas:

“Mas se as duas partes não fossem distintas quanto à posição, melhor, se

as duas imagens fossem impressas em uma coisa indivisível, a coisa em

questão, não se distinguiria no que é impossível e no que é possível.

Logo, as duas partes são distintas quanto à posição e a imaginação

imagina as duas distintas em duas partes. E se alguém disser: o mesmo

221

IV, 3, 132. A hierarquização da composição dos corpos animados, desde os elementos que os compõem até o mais alto grau de abstração, realizado pelo intelecto agente em nossas almas destituído das notas materiais, encontra nos sentidos internos um desses graus de abstração, no qual já existe um início deste processo. Mas como este modo de abstração é efetuado através de órgão corporais, ele não é tão perfeito quanto o que é feito pelo intelecto que não está impresso em nenhum órgão corporal. Verbeke explica os graus de abstração tomando o caso da visão em que a abstração não é perfeita porque o objeto necessita estar presente para que sua forma seja apreendida. No nível da imaginação, o objeto não necessita mais estar presente, mas a abstração é feita somente da matéria e não dos caracteres materiais do objeto representado. No caso da estimativa, a abstração é mais perfeita porque seu objeto de percepção é imaterial mas, mesmo assim, ainda esta abstração é realizada em relação a um objeto particular. Nem no caso dos sentidos externos, nem dos internos a abstração é perfeita, isto é, uma abstração da matéria e dos caracteres materiais. Disto resulta que a atividade dos sentidos internos só é possível pela intervenção de um órgão corporal. (Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.52-53). 222

IV, 3, 133-136. 223

Este exemplo encontra-se ao final da seção. “A imagem imaginativa única resulta de um objeto visto no exterior, e a brancura e a negrura não podem estar simultaneamente num mesmo substrato”. (Cf. Bakós n. 608).

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

78

ocorre com a inteligência, responderíamos dizendo que a inteligência

conhece a negrura e a brancura juntas a um só e mesmo tempo, enquanto

conceito ou enquanto assentimento. É, então, impossível que o sujeito de

inerência das duas cores seja um, mas quanto à imaginação ela não

imagina as duas juntas, não à maneira do conceito e nem do

assentimento, se bem que a ação da imaginação só se faça à maneira do

conceito, não de outro modo e que ela não tenha nenhuma ação em algo a

não ser ela.” 224

A seção se encerra com a justificativa do porquê de se ter analisado os processo de

funcionamento da imaginação, com a seguinte sentença:

“E após ter conhecido isto da imaginação, já o conheceis da estimativa

que, segundo o que explicamos, aquele que percebe só percebe seus

objetos de percepção tendo relação com uma forma particular,

imaginativa.” 225

Vale notar que a estimativa, em suas ações, recorre não só aos dados armazenados na

memória, que é o seu depósito próprio, mas também às formas armazenadas na

imaginação, que é o depósito próprio do sentido comum; a partir disso, nesse caso,

agindo como se fosse imaginativa, estabelece relações entre as formas e as idéias para

chegar ao seu julgamento próprio.

Quarta seção: Das disposições das faculdades motoras e de um modo de profecia

que depende delas.

As faculdades motoras são de uma ordem diferente em relação às

faculdades que percebem. O animal, enquanto nada deseja, não é excitado a buscar pelo

movimento. Este desejo não pertence a uma das faculdades que percebem, pois estas só

possuem o julgamento e a percepção, o que, por sua vez, não implica o desejo daquilo

que percebem.

“Pois as pessoas concordam sobre a percepção do que sentem e

imaginam enquanto sentem ou imaginam; porém, diferem sobre o que

desejam do que sentem e imaginam." 226

224 IV, 3, 137. 225 IV, 3, 137. 226 IV, 4, 137.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

79

Este tipo de disposição, isto é, a de desejar, não pertence somente ao homem, mas

também a todos os animais. Ibn S»n« explica que não é sempre que o desejo leva ao

movimento, pois, às vezes, a resolução não é possivel. Mas, quando a resolução é

possível, as faculdades motrizes obedecem tal resolução, mediante suas características

próprias, isto é, a contração e a extensão dos músculos.

Em seguida, chama a faculdade que deseja de “faculdade apetitiva”,

apresentando-a com suas duas ramificações:

"E dentre os ramos desta faculdade apetitiva estão a faculdade irascível e

a faculdade concupiscível. Assim, aquela que, desejando o deleitável e o

que se estima util, é excitada a procurá-los, é a concupiscível; ao passo

que, aquela que, desejando vencer e repelir o que se estima incompatível,

é excitada a repelí-lo, é a irascível." 227

Cabe à faculdade deliberativa 228 resolver quando deve mover os órgãos, por exemplo,

como no caso da concupiscível e da irascível, e também do que é belo dentre os

inteligíveis. Por exemplo, à concupiscível pertence a intensidade do desejo para o

deleitável, enquanto que à apetitiva cabe a resolução; assim como à irascível pertence a

intensidade do desejo de vencer, enquanto à apetitiva cabe a resolução para isto.229 Ibn

Sina segue explicando como a combinação das faculdades motoras com as faculdades

que percebem pode gerar novas afecções da alma.

“Mas o medo, o desgosto, a tristeza, são provenientes dos acidentes da

faculdade irascível por uma associação das faculdades que percebem,

pois quando ela se move e está fraca após uma concepção imaginativa ou

intelectual, esses acidentes começam a ser; quando ela se move em

seguida a uma concepção intelectual ou imaginativa, nasce o medo. Mas

quando ela não faz nascer o medo, ela torna-se forte e lhe sobrevém o

desgosto do qual torna-se necessária a cólera, quando o desgosto não

consegue repelir a cólera, a menos que a chegada do desgosto não faça

227 IV, 4, 138. Bakós (n. 612) diz que, em Aristóteles, a doutrina sobre as faculdades da alma, nesse aspecto, corresponde ao desenvolvimento da vida segundo seus quatro graus: 1- crescimento e nutrição, 2- percepção, 3- desejo e movimento, 4- pensamento. (Cf. De anima III, 10, 433a). Bakós (n. 613) destaca também a importância da faculdade concupiscível e irascível na psicologia antiga e medieval, notadamente no que concerne às afecções. 228 A deliberativa é a própria apetitiva em sua função de resolver-se ou não à ação. 229 IV, 4, 138.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

80

nascer o medo. E a alegria , que é do domínio da vitória, e também fim

desta faculdade.” 230

Ibn Sina explica, ainda, que:

“A avidez, a voracidade, a volúpia, a lubricidade e o que a isto se

assemelha, pertencem à faculdade bestial concupiscível, a amabilidade e

a alegria vêm dos acidentes das faculdades que percebem.” 231

Com isto se diferenciam dois graus das afecções das faculdades motoras: as que lhes

pertencem propriamente e as que, em combinação com as faculdades que percebem,

especialmente a imaginativa e a estimativa, lhes pertencem de modo acidental. As

faculdades motoras seguem-se à estimativa, pois um desejo não existe de modo algum,

senão depois da apreensão pela estimativa do objeto desejado. Assim como a faculdade

estimativa possui, nos animais, a autoridade no âmbito das faculdades que percebem, a

concupiscível e a irascível possuem a autoridade no âmbito das faculdades motrizes; e a

faculdade deliberativa segue-se às duas, vindo, em seguida, as faculdades motrizes que

estão nos músculos. 232

A sequência do movimento é a seguinte: primeiramente algo é estimado

ou avaliado (estimativa), em seguida há o impulso para um movimento de aproximação

(concupiscível) ou afastamento (irascível). Este impulso antes de ser atualizado, passa

pelo julgamento da deliberativa que, assentindo, atualiza as faculdades motoras dos

músculos e assim, ocorre o movimento do corpo. As ações e os acidentes vêm dos

caracteres acidentais que sobrevêm à alma enquanto ela está no corpo, não ocorrendo

sem a participação deste. Ibn S»n« chega a afirmar que as compleições corporais

inclinam a aptidão da própria alma. Assim, por exemplo há homens que, segundo sua

compleição, são inclinados a uma natureza irascível ou concupiscível. A tristeza, a

angústia, a dor, a fome e o apetite, por exemplo, também são afecções só tornadas

possíveis pelo corpo. No entanto, os movimentos próprios do corpo são também

influenciados pelos movimentos próprios da alma, como por exemplo:

“E, reflitas no estado do doente que se imagina já curado e, no saudável

que se imagina ser doente. (...) quando a forma se firmou em sua alma e

230

IV, 4, 138. 231

IV, 4, 139. 232

IV, 4, 139.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

81

sua faculdade estimativa, seu elemento-receptáculo233 sofre pela forma,

havendo, então saúde ou doença. E isso é mais eficaz do que o que faz o

médico por meio de instrumentos e recursos e intermediários” 234

A ação da imaginativa nos movimentos se dá também quando, por exemplo, um homem

corre sobre um tronco de palmeira atirado sobre um caminho batido e quando o mesmo

tronco é colocado como uma ponte sobre um abismo, fazendo com que ele rasteje

devagar e temeroso. Tal alteração nos movimentos corporais se dá em vista de que em

sua alma é imaginada, no segundo caso, de modo extremamente forte, a forma de

cair. 235

A explanação segue com o objetivo de mostrar um modo de profecia

provindo das faculdades motoras:

“Então, quando a existência das formas é consolidada na alma, e as

crenças nessas formas, é necessário que elas existam. Então pode ocorrer

frequentemente que a matéria que tem por propriedade de sofrer pelas

formas, sofra por elas, e que elas existam. Se isso existisse para a alma

universal que pertence ao Céu e ao mundo, pode ser que influísse sobre a

natureza do universo, e se isso existisse para uma alma particular, pode

ser que influísse sobre a natureza particular. Mas a alma influi

frequentemente num outro corpo como ela influi sobre seu próprio corpo,

à maneira pela qual influem o mal-olhado e a estimativa que age” 236

Estabelecido que a alma sofre afecções do corpo, que o corpo sofre afecções da alma

que ele porta, e que, além disso, pode ocorrer uma afecção num segundo corpo, é

possível que haja alterações materiais segundo esse modo de influência. Quando a alma

é forte e nobre, semelhante aos princípios, o elemento-receptáculo que está no mundo a

obedece.

“Então esta alma cura os doentes, torna doentes os maldosos e segue-se à

sua ordem que naturezas são arruinadas e naturezas são fortalecidas e que

ela transforma por si mesma os elementos. Então o que não é fogo torna-

233Entende-se tratar do receptáculo corporal, vindo da mistura adequada dos elementos, no qual a alma, como artesã, desenvolveu suas aptidões, em suma, o corpo. 234 IV, 4, 141. Para todas essas afecções da alma cf. JOURNET, C. “Les maladies des sens internes”. Revue Thomiste. Paris: 1924, pp. 36-50, vol. 29 em vista das relações com a psicologia moderna e a psicanálise. 235 IV, 4, 141. 236 IV, 4, 141.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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se fogo, e o que não é a terra torna-se terra e, além disso, por sua vontade

sobrevêm chuvas e uma fertilidade, do mesmo modo que sobrevém uma

penúria e uma epidemia, tudo de acordo com o necessário inteligível; em

resumo, à ordem de sua vontade pode sobrevir a existência do que tem

relação com a alteração do elemento-receptáculo nos contrários. Com

certeza, o elemento receptáculo obedece, por sua natureza, ao necessário

inteligível, e nele é engendrado o que está representado na vontade do

necessário inteligível; pois o elemento-receptáculo é totalmente submisso

à alma, e sua sujeição a ela é mais numerosa que sua sujeição aos

contrários que influem sobre as qualidades. Mas isto é também uma das

propriedades das faculdades relativas à profecia (...) que tem relação com

as faculdades animais motoras, 237 deliberativas da alma do profeta

majestoso em profecia.” 238

Terminada a exposição quanto à este modo de profecia, Ibn S»n« retorna à questão da

localização corporal das faculdades reafirmando que todas as faculdades animais só

agem pelo corpo. Além disso, essas faculdades só existem enquanto agem, e sua

existência só se dá enquanto houver corpo. Quanto à sobrevivência das faculdades

animais após o desaparecimento do corpo, Ibn S»n« é claro: “Elas não possuem

sobrevivência depois do corpo.” 239

Com esta frase encerra-se esta seção e o Capítulo IV, mas Ibn S»n«

acrescenta uma observação, remetendo o leitor para os escritos de medicina, onde

encontrará um estudo “das causas das aptidões dos indivíduos diferentes por sua

natureza e pela diversidade de suas disposições, à alegria, ao desgosto, à cólera, à raiva,

237 Na segunda seção foi apresentada um modo de profecia provindo dos movimentos da imaginativa. 238 IV, 4, 142. Não nos deteremos nas interpretações desta passagem. Aludimos, apenas, à observação de Verbeke na qual afirma que “Avicena não se admira: a alma humana pode tornar-se de tal modo vigorosa e potente que a matéria lhe seja submissa e lhe obedeça totalmente. Não se trata, pois, de uma intervenção especial da Divindade no curso da história, mas de um poder que a alma adquiriu pelo seu próprio desenvolvimento”. (Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.59). 239 IV, 4, 142.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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à inveja, à benignidade e demais da mesma ordem”240 estudo inexistente, segundo o

próprio Ibn S»n«, nos seus predecessores.241

240Alegria ( mzŸ - fara ̄); desgosto ( ±› - ¿am ); cólera ( ̀ Œ› - ¿a±ab ); raiva ( v¤n- ̄ aqad ); inveja

( v�n - ̄ asad ) e benignidade ( »¯Ø� - sal«ma ). 241 Vide AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus aturalibus IV-V . “Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G. Verbeke.1968, anexo, pp. 187-210. Não adentraremos no último capítulo (Capítulo V), mas destacamos que, neste, Avicena trata da alma racional e de suas ações e paixões. A maior parte é um estudo dedicado à analise do processo da aquisição dos inteligíveis, os graus de inteligência e sobre o intelecto agente. Neste capítulo também é afirmada a subsistência da alma racional humana. O tratato termina com uma explicação detalhada dos órgãos que pertencem à alma e como se dá o seu funcionamento.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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CAPÍTULO III - AI�DA OS SE�TIDOS I�TER�OS

1) As fontes de Ibn S»»»»n«««« : Embora cônscios de que há inúmeras fontes às quais Ibn S»n« recorreu

em toda a sua obra, nesta análise não pretendemos chegar aos limites da exaustão, o que

desbordaria do propósito deste trabalho; ao contrário, procuraremos apenas indicar um

itinerário básico do desenvolvimento dos sentidos internos através dos principais

autores anteriores à Ibn S»n«, segundo o que a literatura242 nos oferece.

Como assinaláramos de início, Ibn S»n« não partiu do zero para chegar à

sua própria definição, estruturação e funcionamento dos sentidos internos. Sua fonte

mais próxima é Al-F«r«b», como veremos, mas podemos nos distanciar deste

procurando estabelecer uma origem mais longínqua no tempo que remete a Galeno e ao

próprio Aristóteles, particularmente ao seu De Anima que é a base geral do Kit«b-al

afs. No entanto, no que se refere especificamente ao tratamento dado aos sentidos

internos, Ibn S»n« se distancia do mestre grego, como relembra Bakós:

“A teoria dos sentidos internos é pós-aristotélica. Aristóteles admite

somente o sentido comum, a φαντασια (imaginação) e a

µνηµη (memória), mas não como sentidos internos (...) .Philopon

reconhece dois modos de fantasia, um recebe e reúne as impressões, a

outra as combina (...) Avicena aborda o campo de explicação dos

sentidos internos que Aristóteles não conheceu; apesar de encontrar-se

nele certos elementos rudimentares sem localização no cérebro.” 243

Inicialmente, em Ibn S»n«, já há um conjunto determinado de sentidos que são

estudados numa parte específica de sua obra, isto é, o Capítulo IV, ao passo que não se

verifica no De Anima do Estagirita uma seção específica que trate das faculdades pós-

sensoriais.

“Em Aristóteles não há um termo geral para as faculdades da alma

tratadas no livro III do De Anima e no De Memoria et Reminiscentia para

242As linhas gerais deste capítulo têm como base o trabalho de WOLFSON, H.A. “The internal senses in latin, arabic and hebrew philosophic texts”, in Studie in the history of philosophy and religion.London: Harvard University Press, 1979, pp. 250 -314. 243Cf. Bakós n. 182.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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diferenciá-los dos cinco sentidos que ele trata no livro II do De

Anima.”244

Entretanto, não foi Ibn S»n« quem diferenciou tais faculdades pela primeira vez com a

denominação “sentidos internos”. Desse modo, da inexistência da expressão “sentidos

internos”, verificada em Aristóteles, até a complexa sistematização encontrada em Ibn

S»n« há um itinerário que envolve outros autores.

A expressão “sentidos internos”245 é encontrada tanto nos textos árabes

como nos textos hebraicos e latinos medievais anteriores a Ibn S»n«.246 O significado

dessa expressão é variável segundo a determinação de uma ou mais faculdades247 pós-

sensoriais dada pelos diversos autores. No entanto, todas guardam a característica mais

importante que é a de serem faculdades distintas dos cinco sentidos externos.248 Nos

primevos textos filosóficos latinos, Agostinho parece ter sido o primeiro a usar a

expressão “sentidos internos”.249 Nesse caso, porém, esta designação tem a função de

denominar simplesmente uma faculdade pós-sensorial da alma. Sua caracterização não

comporta distinção numérica e nem o detalhamento encontrado em Ibn S»n«.250 Além do

mais, não foi através da literatura filosófica latina que Ibn S»n« herdou uma série de

traços constitutivos de sua classificação dos sentidos internos. Neste assunto, assim

como em muitos outros, a tradição filosófica árabe, incluindo Ibn S»n«, além da notória

herança da filosofia dos gregos (mais precisamente de Aristóteles) deve muito também à

tradição galênica no que concerne ao arranjo entre a filosofia e a fisiologia médica.

Muitos dos chamados médicos-filósofos como Al-F«r«b», Ibn S»n«, Al-R«zi, Maimon

244

Cf. Wolfson, art. cit., p. 250. 245Às vezes ao invés de “interno” encontram-se os termos “espiritual”, “separável” e “ cerebral”, o que se explica pelo fato de que as faculdades às quais eles são aplicados residem “dentro do cérebro” e operam sem os órgãos corporais externos. (Ibid. p. 250). 246Na filosofia grega porterior a Aristóteles, sobretudo sob a influência da filosofia médica grega, a questão dos sentidos internos tornou-se importante, assim como na psicologia patrística (Agostinho, O Livre arbítrio, I, 4, 10), depois na filosofia árabe e sobretudo na filosofia e na psicologia escolástica da Europa, o número dos sentidos internos chega, ao fim da evolução, a cinco. (Cf. Bakós nn. 200 e 208). 247Às vezes, também, o termo “faculdades” ou “apreensões” é usado ao invés de “sentidos”. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 250). 248Algumas vezes ao invés de “externo” são usados os termos “corporal” e “passivo”. (Ibid. p. 250). 249O próprio Wolfson afirma: “Fui incapaz de encontrar o uso de ‘sentidos internos’ antes de Agostinho.” (Ibid. p. 252, n.12). 250 Não nos debruçaremos sobre a análise dos sentidos internos na tradição latina, mas apenas para que fiquem alguns exemplos destacamos que Agostinho usa tanto “sentido interno” (interior sensus) como “faculdade interna” (interior vis). (Cf. As Confissões, I, 20; VII, 17; O livre arbítrio, I,4,10; II, 3-5). Estes termos são empregados como sinônimos do sentido comum de Aristóteles, guardando traços das funções assinaladas pelo filósofo grego. De modo similar ocorre também em Gregório Magno. Em Erígena, o sentido descrito como interior é identificado com o termo grego διανοια, situando-se antes da ratio (λογοσ) e intellectus (νουσ) e depois dos cinco sentidos externos e da imaginação. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 252).

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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(Maimônides), Ibn Rušd e outros aí se inserem. Vejamos, pois as relações que este fato

encerra.

Na literatura filosófica árabe e hebraica, de modo geral, a expressão

“sentidos internos” aparece desde o começo como uma designação genérica que inclui

uma variedade de faculdades pós-sensoriais. Em sua forma mais simples é usada

incluindo três faculdades: imaginação (φανταστικον), cogitação (διανοετικον) e

memória (µνηµονευτικον). Vale lembrar, contudo, que esta tríade já é encontrada na

discussão de Aristóteles a respeito das faculdades que estão além dos sentidos.251 Desse

modo, é possível remeter ao próprio mestre grego, se não a sistematização, ao menos a

indicação da estrutura básica como condição possível do desenvolvimento

posteriormente verificado. Nessa medida, o próprio Galeno não poderia ser tomado

como a origem das classificações dos sentidos internos:

“Não se pode concordar com o ponto de vista de que a classificação

tríplice dos sentidos internos é de origem galênica ou de que há algo

peculiarmente galênico nela. A enumeração de Galeno destas três

faculdades pós-sensoriais, precisamente como sua enumeração dos cinco

sentidos que a precede, nada mais é do que uma análise do De Anima e

do De Memoria et Reminiscentia de Aristóteles.”252

Do mesmo modo que Aristóteles, Galeno não usa o termo “sentidos internos” para essas

faculdades, embora os filósofos árabes ao reproduzir sua classificação das faculdades

pós-sensoriais, a descreva pelo título de “sentidos internos”.

Em relação às passagens na literatura árabe e hebraica que contêm a

classificação dos sentidos internos em três verifica-se que elas não são homogêneas nem

quanto à enumeração, nem quanto à terminologia. Podem ser identificados dois grupos

básicos: no primeiro estão Hunayn ben Isaq, Al-R«zi, Isaac Israeli e Pseudo Bahya.253

Em todas estas listas os termos usados são acuradas traduções dos três termos usados

por Galeno. Hunayn e Al-R«zi em suas classificações das faculdades pós-sensoriais em

251No De Anima, III,3; III, 4-6 e no De Memoria et Reminiscentia, respectivamente. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 253). 252Cf. Wolfson, art. cit., p. 253. 253 A respeito da vida e obra dos filósfos judeus remetemos à MUNK, S. Mélanges de philosophie juive et arabe. Paris: J.Vrin, 1988. Quanto aos árabes remetemos à FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Les éditions du cerf: 1989 e BADAWI, A. A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972. Ressaltamos apenas que Hunayn ben Isaq (809-873) foi “de longe a maior personagem na história da tradução da filosofia e das ciências gregas (...) fundando a arte de tradução árabe sobre bases científicas.” (Cf. FAKHRY cit. supra, p. 36).

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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três, referem-se explicitamente a isto. O segundo grupo é representado pelas listas dadas

por Ibn Gabirol, Abraham Ibn Ezra e Maimônides. Nestes, os termos diferem dos

usados por Galeno. Ao invés de “memória” usam “compreensão”, por exemplo, ou ao

invés de “imaginação”, “criação”. Mesmo assim em suas raízes “estas três listas são

também traduções da classificação de Galeno.”254 De modo geral, nestas classificações

não há descrições precisas das funções das várias faculdades mencionadas nelas. O que

se tem é uma correspondência com os três termos gregos φαντασια, διανοια, µνησισ,

e as suas respectivas localizações nas concavidades anterior, média e posterior do

cérebro.255 Uma classificação diferenciada pode ser encontrada nos chamados Iĥwan

Al-¶afa256. Além de reproduzir a mesma classificação com a mesma localização, são

acrescentadas duas faculdades incluindo, ainda, uma descrição das funções de cada uma

das cinco. São chamadas de “sentidos espirituais” em oposição aos “corporais”. Sua

classificação é a seguinte:

1- imaginação, que recebe e retém as impressões dos sentidos;

2- cogitação, que distingue as impressões umas das outras e sabe o que é

verdadeiro ou falso, certo ou errado;

3- memória, que preserva os julgamentos da cogitação;

4- faculdade da fala, localizada na garganta e na língua tendo por função

comunicar o conteúdo de uma mente a outra;

5- faculdade produtiva, localizada nas mãos e nos dedos tendo como

função produzir a arte da escrita e as outras artes.257

Nesse caso, parece seguro que as três primeiras são de origem

aristotélica. Quanto às outras, pode se supor duas vias: a primeira é que esta

classificação seria uma combinação de duas classificações tríplices, a saber, a de Galeno

e a dos estóicos. A estóica é a seguinte: φωνητικον, διανοητικον, γεννητικον. No

caso dos Iĥwan Al-¶afa as três primeiras faculdades seriam as de Galeno, a quarta seria

a primeira dos estóicos e a quinta seria a terceira dos estóicos. Nesta última, o conceito

254Cf. Wolfson, art. cit., p. 255. 255 Ibid. p. 258. 256A tradução geralmente é feita por “Irmãos da Pureza”. Para tanto remetemos à FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Les Editions du Cerf: 1989, pp. 185-188 e CORBIN, H. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Gallimard, 1989, pp-193-197. “Os irmãos da Pureza” podem ser caracterizados como uma sociedade filosófico-religiosa secreta descrita como comunitária e fraterna. Intitulam-se membros na pesquisa da verdade, reunidos pelo menosprezo ao mundo e seus atrativos e pela sua devoção à verdade, sendo a teologia ou “ciência divina” a sua principal preocupação. (Cf. FAKHRY cit. supra, pp. 186-187). 257Cf. Wolfson, art.cit. p. 258.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

88

específico da geração (produção) de crianças teria sido tomado no sentido geral de

produção. A segunda sugestão é de que os dois últimos termos teriam derivado do

intelecto teórico e prático de Aristóteles.258 Desse modo, a idéia de que “a história da

classificação dos sentidos internos consiste na elevação das três faculdades galênicas

originais a cinco pela adição do “sentido comum” e do que os escolásticos chamam

‘aestimatio’ ”259 não é válida em todos os casos, como mostra a classificação dos Iĥwan

Al-¶afa. Na verdade, a adição destas duas últimas resultou num total de sete faculdades,

visto o desdobramento que elas implicaram. Este número final poderá ser combinado de

modo diferente pelos diversos autores, como veremos.

No caso da estimativa parece que o primeiro a introduzi-la na lista de

classificação foi Al-F«r«b». Em Aristóteles não há nenhuma menção de uma faculdade

denominada “estimativa”. Alguns autores quiseram identificá-la com a

δοξα aristotélica, mas o próprio Arsitóteles diz que esta não existe nos animais.260 “A

descrição característica da faculdade estimativa como a dos medos e preferências dos

animais não corresponde às descrições características da δοξα que se encontra em

Aristóteles."261 Mesmo assim, pode se inferir das obras do mestre grego traços que

permitem indicações que talvez tenham levado os autores posteriores a desenvolvê-la ao

ponto de ser sistematizada e nomeada como “estimativa”.

A indicação de que uma tal faculdade existe no animal parece ter sido

feita pelo próprio Aristóteles em passagens em que ele diz que esta faculdade é

comparável à inteligência (διανοια) no homem, estando presente no animal como algo

equivalente à sagacidade (συνεσισ),262 ou uma faculdade equivalente à arte (τεκνε),

sabedoria (σοφια)263 e sagacidade. Em outro lugar ele descreve os animais como

prudentes (φρονιµοσ)264 ou como sagazes ( συνετοσ)265. Labarriérre também afirma

que Aristóteles classifica frequentemente, senão todos, ao menos um certo número

dentre os animais de “phronimoi” havendo uma hierarquia deste tipo de “inteligência

258Há uma relação das passagens de Aristóteles com os Iĥwan Al-¶afa via João Damasceno. Este, na discussão da dianóia, reproduz Aristóteles. Faz referência também a uma classificação siríaca: pensamento, reflexão, inteligência, espírito, julgamento. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 261-266). 259Cf. Wolfson, art. cit. p.267. 260 Ibid. p. 268 n. 3 remetendo ao De Anima, III, 3, 428a19-22. 261Ibid.p.269. 262Historia animalium, VIII, 1, 588a,23 (Cf. Wolfson, art. cit., p. 271, n.9). 263Cf. Wolfson, art. cit., p. 271, n.10. 264De Partibus Animalium, II,2, 6481, 5-8 (Cf. Wolfson, art. cit., p. 271, n.11). 265Cf. Wolfson, art. cit., p. 271, n.12.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

89

animal” nas diversas espécies.266 Estas denominações fazem referência a um tipo de

“inteligência” animal que permite, por exemplo, que a aranha faça a sua teia. Essa

produção é realizada por um tipo de arte (τεκνε) que não é dada propriamente pela

inteligência mas por natureza.267Se todas as faculdades da alma animal estão no homem

e se é possível verificar esse tipo de estimação existente primariamente nos animais,

tomando neles o lugar da razão no homem, é possível dizer, também, que esse tipo de

estimação existe no homem, sendo usada frequentemente em alguns julgamentos que

não são afetados diretamente pela razão.268

No caso de Al-Kind»,269 considerado o primeiro filósofo árabe, não se

encontra um conjunto de sentidos que sejam denominados “internos”. A sua teoria da

alma, inspirada tanto em Platão quanto em Aristóteles, já indica o cérebro como a sede

das faculdades da alma270 mas parece não ultrapassar os limites das faculdades que

estão entre a sensação e o intelecto estabelecidas pelo Estagirita em seu De Anima. Ao

estudar os sonhos, Al-Kind» chega a tratar da imaginação e de seus movimentos tanto na

vigília quanto no sono, afirmando que, neste último, a sua ação é mais forte. Mesmo

assim, não parece haver uma classificação que se assemelhe àquela que encontramos,

logo em seguida, em Al-F«r«b». Este, aliás, parece ter sido “o primeiro a introduzir a

estimativa (wahm) na classificação dos sentidos internos”271 tendo alterado o

significado da cogitativa (mufakira), terminando por acrescentar uma outra espécie de

imaginação (mutaĥa»la). Em Al-F«r«b» teríamos duas classificações básicas diferentes:

1- imaginação - somente com a função de reter as imagens dos objetos

sensíveis;

2- estimativa;

3- memória- função de reter as formas da estimativa;

4- imaginação compositiva humana;

266LABARRIÉRRE, J.L.”De la phronesis animale”. Biologie, logique et métaphysique chez Aristote. Séminaire du CNRS, 1987. Paris: Ed. du CNRS, 1990, pp. 405 - 428. 267"Esta faculdade de sagacidade, prudência, ou previsão, que Aristóteles atribui aos animais, correspondente ao intelecto no homem, corresponde exatamente à descrição do árabe “wahm” e do escolástico “aestimatio". (Cf. Wolfson, art. cit., p. 271). 268Cf. Wolfson, art. cit., p. 272, n.16 indicando que Ibn S»n« refere-se a isso no Cânon. 269Cf. BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 427 e 450. 270Ibid. p. 451. 271Cf. Wolfson, art. cit., p. 274

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

90

5- imaginação compositiva animal.272.

Na outra classificação, Al-F«r«b» parece mencionar somente quatro

termos sendo que, a ausência da imaginação compositiva animal talvez se dê pelo fato

de estar subentendida:

1- imaginação;

2- estimativa;

3- memória;

4- imaginação compositiva humana. 273

Há, ainda, uma outra descrição, fornecida por Badawi,274 que indica mais

precisamente as funções de cada faculdade:

1- formativa, encontrada na parte anterior do cérebro, que fixa as

imagens após a separação das coisas sensíveis dos sentidos;

2- intuição, que percebe do sensível o que não é sentido, por exemplo, a

capacidade da ovelha de apreender o perigo do lobo275, sendo o sentido externo incapaz

de apreender tal periculosidade;

3- memória, que armazena o que a intuição percebe assim como a

formativa armazena o que os sentidos externos percebem;

4- imaginativa que tem acesso aos dois depósitos ( da memória e da

formativa ) para unir ou separar as formas que lá estão; esta última quando empregada

pelo homem denomina-se pensamento discursivo.

Estas classificações de Al-F«r«bi constituem-se seguramente numa das

fontes mais próximas nas quais Ibn S»n« se inspirou. Duas diferenças são notadas: a

primeira, de que não se tratou até aqui do sentido comum e tampouco da diferença entre

a memória e a reminiscência. Estas duas características serão apresentadas por Ibn S»n«,

elevando o número de faculdades e de combinações destas como veremos a seguir.

272 Wolfson adverte que Al-F«r«b» provavelmente não pretendeu dar uma classificação quíntupla, mas ao contrário, como outros depois dele, contou as compositivas animal e humana como uma só, somando quatro sentidos internos. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 275, n. 23, indicando esta classificação no Risalat fu·us Al-®ikma em tradução alemã - Preciosidades da Sabedoria Cf. ISKANDAR, J. I. Avicena a origem e o retorno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p.17-18). 273A ausência da compositiva animal significa que está subentendida. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 275, n. 24, indicando esta classificação no ‘Uyun Al-Masa’il - As fontes do problema - tradução alemã). 274Cf. BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 546. 275 Este exemplo de Badawi indica que o exemplo tão repetido pelos medievais, parece já estar presente antes do próprio Ibn S»n«.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

91

2) As classificações de Ibn S»»»»n«««« :

Dando continuidade à herança do conjunto de sentidos internos que o

antecedeu, Ibn S»n« pode ser lembrado, antes de tudo, pelo amplo tratamento que dedica

à explicação das potências de cada faculdade e suas detalhadas articulações. Mas,

restringindo-nos apenas ao aspecto das funções e da classificação das faculdades, pode

se apontar duas contribuições principais. A primeira é a inclusão do sentido comum,

como o registrou bem Wolfson:

“O primeiro a incluir especificamente o sentido comum em sua

classificação dos sentidos internos é Avicena. A descrição característica

do sentido comum que ocorre em seus escritos é análoga à caracterização

aristotélica como a faculdade que distingue e compara os dados da

percepção sensorial.276 (...) Sua localização, em concordância mais

propriamente com Galeno do que com Aristóteles, é como a da

imaginação retentiva, na cavidade anterior do cérebro." 277

Devemos lembrar, no entanto, que apesar da descrição da função do sentido comum em

Ibn S»n« aproximar-se da de Aristóteles, a caracterização do sentido comum como uma

faculdade separada dos sentidos externos, assim como a sua localização cerebral não se

encontra no mestre grego. A segunda contiribuição é o estabelecimento da diferenciação

entre a memória e a reminiscência.278 Com a introdução do sentido comum e da

reminiscência, a classificação dos sentidos internos se completa, tendo no total sete

funções ou sete faculdades:

1- sentido comum;

2- imaginação retentiva;

3- imaginação compositiva animal;

4- imaginação compositiva humana;

276 Não nos deteremos nesta discussão mas destacamos que há divergência sobre o pioneirismo de Ibn S»n«. Apesar de Wolfson afirmar que “ o primeiro a incluir especificamente o sentido comum em sua classificação dos sentidos internos é Avicena” (Cf. Wolfson, art. cit., p. 276), Goichon, após citar a referida sentença de Wolfson, escreve: “ Acreditamos, no entanto, que o primeiro foi Al-F«r«b»” , cf. Livre des Directives e remarques, p. 318. Ver também Verbeke Introd. III-IV, p. 49, que segue a opinião de Wolfson, da qual partilhamos. 277Cf. Wolfson, art.cit. p.277. 278 Esta diferenciação não é original visto que o próprio Aristóteles escreveu um pequeno tratado com o título de Sobre a memória e a reminiscência. Referimo-nos, aqui, a contribuição de Ibn S»n« em relação aos seus predecessores mais próximos.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

92

5- estimativa;

6- memória;

7- reminiscência.

De modo geral, o que mais caracteriza cada uma dessas funções é o

seguinte:

1- sentido comum - o centro para o qual todos os sentidos convergem; ele

distingue entre as qualidades dos diferentes sentidos, acrescentando o elemento de

consciência à sensação; no entanto não retém as impressões que recebe;

2- imaginação retentiva - retém as impressões das coisas sensíveis

recebidas pelo sentido comum depois que as coisas desapareceram;

3 e 4- imaginação compositiva animal e humana - consiste na

construção de novas imagens reais ou irreais;

5- estimativa - percebe as formas insensíveis conectadas aos objetos

sensíveis, sabendo o que se deve seguir e o que se deve evitar;

6- memória - retém as formas da estimativa, assim como a imaginação

retentiva retém as formas dos objetos sensíveis;

7- reminiscência - é a restauração de algo à memória depois de ter sido

esquecido.279

As combinações feitas por Ibn S»n« em outras obras parecem não ser tão

completas quanto a do Kit«b al- afs. Em relação ao sentido comum e à imaginação, no

Canon, Ibn S»n« teria registrado duas definições: de acordo com os filósofos, o sentido

comum e a imaginação seriam faculdades distintas sendo a primeira o recipiente das

imagens e a segunda o retentor das imagens; por outro lado, de acordo com os médicos,

as duas constituiriam uma faculdade simples, embora observe-se nela a distinção entre a

força retentiva e a receptiva.280 A referência aos médicos não parece estar ligada a

nenhum nome específico visto que em Galeno sequer ocorre o termo sentido comum; a

enumeração dos sentidos internos, por ele apresentada, logo após os sentidos externos,

comporta apenas: φαντασια, διανοητικον, µνηµονικον. Vale lembrar, no entanto,

que no caso das localizações cerebrais a doutrina de Ibn S»n« talvez tenha mais

proximidade com a “dinâmica da doutrina celular ” relativa às funções cerebrais e que

foi introduzida por Qusta b. Luqa. Nesta teoria, a cada “célula” ( ou concavidade ) do

279Cf. Wolfson, art. cit. p. 277. 280Ibid. p.278.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

93

cérebro é associada uma função específica.281 Mesmo assim, a posição mais aceita

parece ser a de que Ibn S»n« teria procurado indicar duas posturas em relação aos

sentidos internos mais do que entrar em discussão com alguma linha médica específica.

Em sua dupla formação de médico e filósofo ele procura harmonizar as

duas posições sem considerá-las excludentes, combinando essas duas vias em seus

escritos. Do ponto de vista médico, as faculdades da alma seriam classificadas segundo

o órgão que ocupam, ao passo que, para a filosofia, referir-se-iam a várias funções:282

“Do ponto de vista filosófico uma faculdade é a que tem uma função distintiva,

independente do lugar que ocupa no cérebro.”283 Considerado desse modo, na Al- ajat

e na Al-Šif«’ Ibn S»n« teria seguido mais os filósofos e "curiosamente reproduz a

palavra grega fantasia na transliteração árabe como sinônimo de sentido comum."284 No

Risalat fi al- afs (Epístola da alma) ele parece ter seguido mais os médicos não só

tratando as duas faculdades como uma mas até mesmo as identificando, definindo

ambas em termos de sentido comum e não fazendo nenhuma distinção entre retenção e

recepção.285

No que concerne à imaginativa animal e humana e à estimativa, Ibn S»n«

as teria tratado no Canon como uma só faculdade. Na Al- ajat nenhum número é dado

mas, pelo contexto supõe-se que a compositiva humana e a imaginação animal são

tratadas como uma faculdade e a estimativa como outra286. Quanto à memória, Ibn S»n«

se refere no Canon à discussão entre os filósofos sobre se ela é uma ou duas faculdades.

Na Al- ajat e no Risalat fi al- afs ele não faz distinção entre as duas. Segundo essa

variedade de combinações, Ibn S»n« teria no Canon três espécies de classificação. Uma

primeira com três membros:

1- a- sentido comum;

b- imaginação (definida nos termos do sentido comum);

2- compositiva a - humana;

b- animal;

c- estimativa;

3- a- memória;

281 DELIBERA, A. A Filosofia medieval. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. 282Cf. Wolfson, art.cit. p .279. 283Ibid. p. 280. 284Ibid. p. 278. 285Ibid. p. 278. 286Ibid. p. 280.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

94

b- reminiscência.

Em seguida, haveria uma classificação quádrupla contando o sentido

comum e a imaginação como duas faculdades, e uma quíntupla, contando a memória e a

reminiscência como duas.

No Risalat fi al- afs a classificação seria a seguinte:

1- sentido comum e imaginação;

2- compositiva animal;

3- estimativa;

4- memória e reminiscência;

5- compositiva humana.

Ao considerar tais variações, Wolfson afirma que "Avicena não parece

decidir quais destas sete faculdades devem se combinar e, consequentemente, várias

combinações são encontradas em seu Canon, na Al-Šif«’,287 na Al- ajat, e no Risalat fi

al- afs.”288 Esta afirmação, no entanto, não parece ser adequada na medida em que

admitimos que uma das chaves que permite compreender a dinâmica, as localizaçãoes e

as diversas classificações dos sentidos internos em Ibn S»n«, segundo o Kit«b al- afs, é

que, na verdade, a preeminência não é quanto ao número e à combinação dos sentidos

internos, mas quanto às suas funções.

O fato de se chegar a sete faculdades ou funções não implica para Ibn

S»n« que o número de sentidos internos deva ser sete ou ter uma combinação rígida. Isso

se deve ao fato de que ele considera que um sentido interno pode ter mais do que uma

função, o que pode reduzir o seu número para cinco em alguns casos e, em outros, até

para quatro. Pode se observar que Ibn S»n« ao mesmo tempo em que estabelece com

rigor as funções das faculdades não as combina com rigidez. Ao longo do Kit«b al- afs

isto pode ser verificado com frequência como, por exemplo, no caso da estimativa em

que, após a definição da função básica desta faculdade, Ibn S»n« passa a apresentar as

variantes compreendidas em sua dinâmica e em seus movimentos levando-a a ser

também imaginativa e também memorativa. Tais variações de combinação não parecem

ser, no Kit«b al- afs, uma indecisão do autor mas uma amostra da maleabilidade das

combinações segundo o imperativo das funções das faculdades.

287Cf. Wolfson, art.cit. pp. 277-278, n.32, esclarecendo que não se baseou no texto árabe mas que o esquema de classificação e a terminologia usados é o mesmo da Al- ajat. 288Ibid. p. 278.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

95

Desse modo, a questão de encontrarmos no Kit«b al- afs cinco sentidos

internos deriva justamente do fato de que, não obstante serem consideradas sete funções

distintas, isto não implica que elas sejam sete faculdades distintas. Assim, a combinação

final, nesta obra, resulta em cinco sentidos internos com sete funções básicas. Aí, não se

encontra, também, a alusão de Wolfson, quanto ao problema da dupla classificação

médica e filosófica. Além disso, Ibn S»n« parece também não ter dúvida quanto à

combinação básica que deve ser feita289, sendo que a classificação final do Kit«b al- afs

com os nomes que o próprio Ibn S»n« fornece é a seguinte:

1- sentido comum ou fantasia;

2- imaginação, imaginativa ou formativa;

3- imaginativa ( no animal ) e cogitativa ( no homem );

4- estimativa;

5- faculdade que conserva e se lembra.

289Deve se ter em conta, também, que segundo o relato de Al-Jūzj«ni, a Al-Šif«’ e o Canon foram escritos na mesma época. Cf. GOHLMAN, W. E. The life of Ibn Sina. New York: State University of New York Press, 1974, p. 55 - 56. (Vide supra, p. 5).

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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3 ) A posteridade na trilha de Ibn S»»»»n««««:

A tradição posterior árabe e judaica seguiu no geral o exemplo de Ibn

S»n«, passando a incluir o sentido comum em suas classificações. Assim, por exemplo,

Šarastani reproduz a classificação da Al- ajat. Al-¾azal», mesmo diferindo em seus

escritos quanto à combinação e, por vezes, quanto à localização, segue em linhas gerais

o estabelecido por Ibn S»n«.290 A influência da classificação de Ibn S»n« pode ser

encontrada também nos escritos de Juda-ha levi, Bahya Ibn Pakuda e Abraham Ibn

Daud.291 Um afastamento desse tipo de classificação é encontrado em Ibn Rušd. Em seu

Epítome da Memória e Reminiscência, ele fornece uma classificação quádrupla do que

denomina “sentidos espirituais”:

1- sentido comum,

2- imaginativa

3- cogitativa ou descriminativa

4- memorativa. 292

Ibn Rušd parece omitir a compositiva animal e a estimativa por

considerá-las sub-funções da imaginação. Em seu comentário ao De anima de

Aristóteles diz que este apresenta quatro estágios das faculdades imateriais: sentido

comum, imaginação, cogitação e memória. No Epítome da Memória e Reminiscência

afirma que aquilo que o homem realiza por “pensamento e deliberação” os animais

fazem por “natureza” . Mas “natureza,” diz ele, não tem um nome especial. Ibn S»n«, no

entanto, a chama de estimativa. De acordo com Ibn S»n« esta é uma faculdade separada;

de acordo com Ibn Rušd, seria uma sub-função da imaginação.293

Quanto ao ocidente, pode se verificar que por intermédio das traduções

dos escritos árabes para o latim nos séculos XII e XIII, tanto a classificação dos sentidos

internos de Ibn S»n«, como a de Ibn Rušd, tornaram-se conhecidas dos escolásticos.294 A

penetração da psicologia de Ibn S»n«, além dessa via direta da tradução de suas obras,

também ocorreu por uma outra via, indireta, tanto pela tradução latina do Maq«sid al-

290Cf. Wolfson, art. cit. pp. 282-283, apresentando algumas varições na classificação de Al-¾azal». 291Ibid. pp.285-287, fornecendo as suas classificações. 292Ibid. p.289. 293Ibid. pp.289-290. 294Ver nossa introdução no que se refere à importãncia histórica da Al-Šif«’.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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fal«sifah (As intenções dos filósofos) de Al-¾azal»295 que apresentava algumas teses de

Ibn S»n«, quanto por tratados apócrifos que levavam o seu nome, como por exemplo, o

anônimo Liber Avicenne, in primis e secundis substantiis et de fluxu entis.296A presença

das teses de Ibn S»n« pode ser detectada imediatamente através dos primeiros

pensadores latinos que tiveram acesso às suas obras. Isto pode ser notado desde o final

do do século XII, em que há a presença da filosofia de Ibn S»n« nos “agostinistas”, até o

início do século XIV, em que o filósofo árabe foi tido por Gilson como “ o ponto de

partida de Duns Escoto ”.297 Esta presença, considerada como uma primeira etapa do

pensamento de Ibn S»n« na filosofia ocidental, é marcada também pela classificação dos

sentidos internos. Apenas para registrar alguns nomes de peso que no ocidente se

referiram a Ibn S»n« nessa área, ora aceitando ora divergindo de suas teses, citamos

Alberto Magno, Tomás de Aquino e Rogério Bacon. Alberto Magno menciona o VI

aturalibus, Tomás de Aquino o De Anima de Ibn S»n« e Rogério Bacon o De Anima e

o De Animalibus, referindo-se indiretamente ao Canon.298 Retomemos rapidamente as

classificações destes autores.

Em Alberto Magno encontramos quatro tipos de classificação. A

primeira,299 na qual cita explicitamente Ibn S»n« (Avicena)300 é a que se segue:

1- sentido comum ;

2- imaginação retentiva;

3- imaginação compositiva animal e humana;

4- estimativa;

5- memória e reminiscência.

Na segunda classificação301 os nomes se conservam, mas há uma

inversão de ordem em relação à imaginação compositiva e a estimativa:

1- sentido comum;

2- imaginação retentiva;

3- estimativa;

295 A respeito dos termos latinos para os sentidos internos em Al-¾azal» e Ibn S»n« Cf. GILSON, E. “ Les sources gréco-arabes de l’augustinisme avicennisant” pp. 74-78. 296Cf. BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 692 - 693. 297Ibid. p. 693 298Cf. Wolfson, art. cit. p.296. 299Ibid. pp. 297-298; esta classificação está na Isagoge in Libros de Anima, Cap. XIV-XIX. 300Não é demais lembrar que todas as referências dos latinos a Ibn S»n« se encontram sob a forma de seu nome latino, isto é, ‘Avicenna’; assim como as de Ibn Rušd encontram-se sob a forma de ‘Averroes’. 301Cf. Wolfson, art. cit. p.297; esta classificação está em De apprehensione, Partes III, IV.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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4- imaginação compositiva animal e humana;

5- memória e reminiscência.

A terceira classificação302 é basicamente como a segunda mas o termo

reminiscência, que aparecia juntamente com a memória, é retirado e há uma inversão da

ordem das duas últimas faculdades, isto é, a memória aparece antes da imaginação

compositiva:

1- sentido comum;

2- imaginação retentiva;

3- estimativa;

4- memória;

5- imaginação compositiva animal e humana.

Finalmente na quarta classificação303 verifica-se a separação entre a

memória e a reminiscência, tomadas como duas faculdades distintas. Nota-se também a

ausência do sentido comum o qual, neste caso, teria sido explicitamente colocado sob os

sentidos externos. Vejamos :

1- imaginação retentiva;

2- imaginação compositiva animal e humana;

3- estimativa;

4- memória;

5- reminiscência.

Tais diferenças talvez possam ser explicadas pela diversidade das fontes

que Alberto usou: nas primeiras três deve ter seguido a ordem do Kit«b al- afs, na

última a do Maq«sid Al-Fal«sifah de Al-¾azal».304 Observa-se, ainda, que nos casos em

que Alberto Magno reproduz exatamente as classificações de Ibn S»n«, ele por vezes

não interpreta fielmente alguns termos usados pelo filósofo árabe.305Isto talvez se deva

ao fato de que, apesar da reprodução dos termos seguir Ibn S»n«, no conjunto, a

influência da psicologia deste sobre Alberto parece não ter sido pura, mas um tanto

matizada .306

302Ibid. p. 298; esta classificação está em De Anima, Lib II, Trat. IV, Cap. VII. 303 Ibid. p. 298; esta classificação está na Summa de Creaturis, Parte II: De Homine. 304Cf. Wolfson, art. cit. pp. 297-299. 305Ibid. p. 305. 306Cf. BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 694.

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Em relação a Tomás de Aquino podemos constatar, na Suma de

Teologia,307 um tratamento específico dos sentidos internos. Baseando-se numa

exposição dos requisitos de um animal perfeito, Tomás, como que “deduz” os sentidos

internos, em número de quatro:

1) sentido comum - associado aos sentidos próprios e tido como a “raiz

e o princípio destes”;

2) fantasia ou imaginação - caracterizada como “um tesouro das formas

recebidas pelos sentidos” ;

3) estimativa - que apreende as “intenções” não recebidas pelo sentido;

4) memorativa - “que é um tesouro destas ‘intenções’ ”.

Tomás apresenta a cogitativa e a reminiscência como as formas humanas

do que nos animais aparece respectivamente como estimativa e memória. A diferença

entre a cogitativa e a estimativa é que os outros animais “percebem as intenções apenas

por um certo instinto natural ” ao passo que “o homem as percebe também por um modo

de comparação”. Daí receber o nome de razão particular, por descobrir tais intenções

por um modo de comparação das intenções individuais, tal como a razão descobre as

intenções universais por meio também de uma comparação. O mesmo tipo de diferença

se verifica em relação à reminiscência comparada com a memória. O homem não tem

apenas memória como súbita recordação do que passou; ele é dotado também de

“reminiscência, como que inferindo silogisticamente, de acordo com as intenções

individuais, a memória do que passou”. Ao final do corpo do artigo, Tomás critica

explicitamente a distinção aviceniana entre imaginação (retentiva) e imaginativa (a

imaginação compositiva). Rejeita ele, assim “uma quinta potência, intermediária entre a

estimativa e a imaginativa”. Sua razão para isso é que tal operação é exclusiva do

homem ( não existindo nos outros animais ) e neste para tal basta a imaginação. É, aliás,

a esta que Ibn Rušd atribui tal operação.

Vemos, pois, que Tomás segue de preferência a classificação dos

sentidos internos de Ibn Rušd. 308 Seu texto revela, no entanto, um bom conhecimento

307AQUINO,T. Suma teológica, Iª, q.78, a.4. Rio Grande do Sul: Est.Sulina.UCS, 1980, pp. 690-693 . Ver também IVANOV, A. A cogitativa em Tomás de Aquino. Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, onde se encontra uma boa bibliografia. 308 Cf. supra p.110. Em seu artigo, Wolfson afirma que “enquanto Alberto Magno em suas quatro espécies de classificações dos sentidos internos reproduz a classificação de Ibn Sina com estrita exatidão, a mesma exatidão não é encontrada em Tomás de Aquino.” (Cf. Wolfson art. cit. p. 301). Talvez a impressão de pouca exatidão na reprodução da classificação de Ibn S»n«, sentida por Wolfson, derive do fato de que Tomás, assim como outros escolásticos latinos, não pretendiam reproduzir as classificações anteriores dos árabes, mas utilizá-las como meio de formular seu próprio pensamento.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

100

de Ibn S»n«: em primeiro lugar a crítica precisa acima mencionada; além disso, o

exemplo da ovelha que foge do lobo e do pássaro que recolhe palhas para fazer o ninho,

mencionados no corpo do artigo; a “dedução” dos sentidos internos e a distinção entre

memória (animal) e reminiscência (humana).309

Em Rogério Bacon também podemos comprovar a presença da

classificação dos sentidos internos de Ibn S»n«. Especificamente na Perspectiva (5ª

parte do Opus Majus) a identificação das fontes de Bacon não se mostra problemática

pois ele mesmo se incumbe de citá-las explicitamente. Dentre os nomes mais

importantes destacamos Ptolomeu, Euclides, Ibn Al-Haytham (Al-Hazen), Aristóteles,

Ibn Rušd, Boécio, Sêneca, S. Agostinho e o próprio Ibn S»n«.310 A título de comparação

podemos verificar que Aristóteles tem um lugar de destaque. Bacon cita 14 obras do

mestre grego sendo o De anima a mais citada (20 vezes). No caso de Ibn S»n«, de

acordo com o número de citações encontradas, pode se afirmar que o nosso filósofo é

uma fonte importante para Bacon notadamente no que se refere aos dados fisiológicos e

psicológicos. O De anima de Ibn S»n« é referido por 14 vezes, o De animalibus por 12

vezes e os livros de medicina por 9 vezes.311 Afirma Vescovini: “Na elaboração de sua

Perspectiva, Bacon se serviu largamente da doutrina biológica e psicológica da

sensação visual contida no De anima ou Liber sextus naturalium de Avicena que teve

grande influencia na idade média.”312

Bacon, ao discutir as faculdades sensíveis internas, cita expressamente o

nome “Avicena” por nove vezes num trecho que ocupa menos de oito páginas. Apenas

para tomarmos um exemplo, reproduzimos o início do capítulo, no qual é apresentado o

sentido comum e a imaginação:

“(...) portanto, em vista de descobrir o que é requerido para a visão,

devemos começar com as partes do cérebro e as forças da alma (...) E o

cérebro tem três seções, chamadas ‘câmaras’, ‘celas’, ‘partes’ ou’

divisões’. Duas faculdades têm lugar na primeira cela. Uma delas é o

309Seria necessário um estudo comparativo mais acurado, pois Tomás teve acesso direto aos textos de Ibn S»n«, Ibn Rušd e escolásticos anteriores a ele (Alexandre de Hales, por exemplo). O nosso objetivo, por enquanto, é apenas apontar através da trajetória dos textos escolásticos latinos que Ibn S»n« continua presente. 310Cf. BACON, R. Perspectiva. in Roger Bacon and the Origins of Perspectiva in the Middle Ages. A critical edition and english translation of Bacon’s Perspectiva with Introduction and notes by David C. Lindberg. Oxford: Clarendon Press, 1996, Index. 311Cf. NASCIMENTO, C. A. “A perspectiva de Bacon”. Manuscrito, p. 6. 312 Cf. Vescovini, Studi, p. 77; cf.pp. 89-90. Citado em NASCIMENTO,C.A. “A perspectiva de Bacon”. Mimeografado, p. 8.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

101

sentido comum, situado em sua parte anterior, como Avicena diz em seu

De Anima, Livro I. (...) A operação final do sentido comum é receber as

espécies vindas dos sentidos particulares e completar o julgamento a

respeito delas. No entanto, pela extrema instabilidade de seu órgão ele

não as retém, de acordo com Avicena, De Anima, Livro I.

Consequentemente, deve haver outra faculdade da alma na parte final da

primeira câmara (do cérebro) que se incumbe de reter as espécies vindas

dos sentidos particulares, tendo secura e umidade moderadas, e sendo

chamada de ‘imaginação’.”313

Rogério Bacon também parece estar correto do ponto de vista histórico na medida em

que sabe que Aristóteles não fez menção explícita dos sentidos internos mas,

equivocadamente, supõe que os tradutores das obras de Ibn S»n« (De Anima, De

Animalibus e Canon) não usaram um vocabulário uniforme.314 Bacon nos dá neste

capítulo 315 uma boa visão de conjunto da classificação dos sentidos internos. Estes são

os mesmos apresentados por Ibn S»n« em seu De Anima: sensus communis, imaginatio,

cogitativa, aestimatio, memoria. A localização dos sentidos internos no cérebro,

fornecida por Bacon, traz o sentido comum na parte anterior do cérebro vindo em

seguida a imaginação, a cogitativa e a estimativa em direção à parte posterior do cérebro

onde está a memória.316 Esta localização segue exatamente a de Ibn S»n« conforme

apresentamos em anexo:

1- sensus comunis e phantasia

2- imaginação retentiva (imaginatio)

3- estimativa (aestimativa)

4- memória (memorativa)

5- imaginação compositiva humana e animal (cogitativa, logística,

rationalis).317

Nesta classificação, Bacon não reproduz Ibn Rušd, mas antes Ibn S»n«,

revelando, entretanto, também um uso diverso do termo cogitativa, embora não do

313 Cf. BACON, R. Perspectiva. in Roger Bacon and the Origins of Perspectiva in the Middle Ages. A critical edition and english translation of Bacon’s Perspectiva with Introduction and notes by David C. Lindberg. Oxford: Clarendon Press, 1996, pp. 7 e 9. 314Ibid. Cap. V, p. 17. 315Ibid. Cap. V, pp. 17-18. 316Cf. NASCIMENTO,C.A. “A perspectiva de Bacon”. Mimeografado, pp.18-19. 317 Wolfson indica as mesmas faculdades apresentando-as, no entanto, em outra ordem: Cf. Wolfson, art. cit. pp. 303-304, n. 43 indicando Opus majus, V: perspectiva, Pars I, Dist. I, Cap II-IV.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

102

mesmo tipo do que ocorre em Tomás. Wolfson chega a afirmar que “esses três filósofos

(Alberto, Tomás e Bacon) falharam ao reproduzir com exatidão o uso do termo

cogitativa tanto em Avicena quanto em Averróes.” 318 Esta mesma característica

aparecerá nos filósofos latinos posteriores, adentrando já as raias da modernidade. Mas,

para o nosso desiderato, as breves passagens que citamos nos parecem suficientes para

indicar a notável presença da classificação e das determinações conceituais dos sentidos

internos formuladas por Ibn S»n«.

318 Wolfson, em seu comentário, acrescenta que Tomás interpretou mal a classificação de Ibn S»n« ao reproduzí-la, principalmente no uso do termo cogitativa e que, sua reprodução da classificação de Ibn Rušd revela um deslocamento do termo estimativa. (Cf. Wolfson, art. cit. pp. 310-305). Talvez a inexatidão venha do fato de que estes escolásticos não pretendiam reproduzir nem Ibn S»n« nem Ibn Rušd, mas apoiar-se neles para propor, por conta própria, uma classificação dos sentidos internos, como já observamos.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

103

CO�CLUSÃO

Ao final deste percurso gostaríamos apenas de reiterar a importância do

estudo de Ibn S»n« sob os dois aspectos principais que procuramos expor em nosso

trabalho: o primeiro refere-se ao próprio conteúdo do Kit«b al- afs e o segundo refere-

se à sua contribuição na formação do pensamento ocidental. Para tal, não seremos

exaustivos e apresentaremos, em linhas gerais, apenas alguns comentários que acentuem

isto e que justifiquem a sua presença nas discussões atuais tanto no que tange à

psicologia e à epistemologia, quanto à própria filosofia em seu caráter mais geral.

Um dos aspectos singulares que podemos observar e que pode estar

contido no que dissemos acima é o procedimento de Ibn S»n« em procurar contemplar a

análise das realidades externas e internas do homem de modo que isto resulte numa

unidade de compreensão deste. Isto pode ser verificado se tomarmos, por exemplo, as

duas vias de constatação da existência da alma propostas na abertura e no encerramento

da Seção 1 do Capítulo I. As sentenças que abrem essa seção se detêm em um exame

atento das realidades externas observáveis nos levando a verificar, através dos sentidos,

que o diferencial dos puros corpos em relação aos corpos animados confirma a presença

de um princípio incorpóreo denominado alma. De modo diverso, ao final da seção, Ibn

S»n« propõe uma via diametralmente oposta à primeira, pois destitui o sujeito da

percepção de todos os caracteres sensíveis em que este poderia estar imerso: tal homem

teria os olhos velados, estaria no vácuo e não poderia sequer tocar o próprio corpo.

Neste segundo caso, a constatação da existência da alma é alcançada por uma via

interna, não mediada pela experiência exterior e nem por qualquer um dos sentidos; ou

seja, esta segunda via é uma consciência imediata da existência da alma que mesmo

parecendo contrária à primeira, na qual o homem estava revestido de toda a

sensibilidade e de seus caracteres materiais, no caso de Ibn S»n«, resulta por completá-

la.

Naturalmente poderíamos, no primeiro caso, aproximá-lo tanto de

Aristóteles quanto da ciência moderna, na medida em que realiza um exame através da

experiência sensível para explicar a realidade. Por outro lado, no segundo caso,

poderíamos aproximá-lo tanto de Plotino como de Agostinho e do próprio modo como

os monoteístas leram Platão, na medida em que as constatações são alcançadas sem a

mediação dos sentidos externos. No entanto, justamente o que queremos ressaltar é a

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

104

impossibilidade de reduzir a psicologia de Ibn S»n« a um destes perfis, impossibilidade

esta que justifica, dentre outras coisas, a sua originalidade.

O modo como Ibn S»n« procura contemplar ao longo do Kit«b al- afs

estas duas realidades: externa e interna; sensível e não sensível; material e imaterial,

estabelece uma unidade e uma complementação tal que se distancia, em alguns casos,

do modo pelo qual ela é tratada por outros autores. Nunca é demais lembrar, por

exemplo, que na modernidade a concepção de Descartes, por um lado, e dos empiristas,

por outro, acentuaram uma das duas vias em relação à outra, ocorrendo geralmente, que

ao se privilegiar a externa, a interna tornou-se-lhe subordinada e vice-versa.

No caso de Ibn S»n« as esferas do externo e do interno parecem

apresentar-se muito mais como realidades que se completam do que como realidades

que se subordinam. O homem, unidade, se apresenta em meio a dois mundos. Uma boa

imagem disto, que consideramos uma das matrizes de seu pensamento, é a da alma

humana como sendo aquela que possui duas faces, uma voltada para a matéria e outra

voltada para o imaterial. O homem, nesse caso, é um ente não somente capaz de tocar

as duas realidades mas é, também, tocado por elas. Pode se atestar isto, por exemplo,

pelas passagens em que o movimento dos astros influencia os sonhos através da

faculdade imaginativa, assim como, de modo oposto, pelas passagens em que se afirma

que as almas fortes e nobres são capazes de “tornar fogo o que não é fogo” e dirigir a

matéria à sua vontade. Entendido deste modo, Ibn S»n« se apresentaria, nos debates

atuais, como um agregador do homem, procurando lhe dar a medida certa de suas duas

realidades: - o que é o corpo e a alma - e, além disso, como elas deveriam se inserir

harmoniosamente na sociedade e no cosmos.

Por essa razão, entendemos que é através deste princípio agregador de

sua psicologia, presente no Kit«b al- afs, que podemos tomar sua filosofia como um

todo. O próprio Ibn S»n« não nos autoriza a fazermos o contrário, pois ele mesmo não

foi, historicamente, um divisor de conhecimentos mas, ao contrário, um agregador

destes em um sistema próprio. Por essa razão, parece nos que, para compreendermos o

seu pensamento nesta obra, é mister ter em mente que se, por um lado, tomarmos o

Kit«b al- afs com os olhos da ciência moderna nos decepcionaríamos com afirmações

no campo do não verificável e se, ao contrário, quisermos lê-lo com olhos místicos,

procurando nesta obra uma poesia da alma, teríamos dificuldade em manejar o caráter

científico que ele propõe. O erro certamente não é dele mas é nosso, na medida em que

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

105

geralmente podemos querer acentuar apenas uma dessas características. A unidade a que

nos referimos é aludida por Goichon319 que atribui, além disso, o estudo fragmentário

que pode ser feito de sua obra justamente à amplitude e ao modo como trata os diversos

aspectos do conhecimento.

Uma outra característica que justifica a sua presença nas questões

contemporâneas e que confirma a sua originalidade no estudo da alma é a afirmação

desta como uma substância que, no caso da alma racional humana, possui sobrevivência

após o desaparecimento do corpo por não estar ligada a nenhum órgão corporal e ser

capaz de apreender os inteligíveis. É de se notar que nesse caso, a doutrina de Ibn Sina

encontra um meio de não aceitar a preexistência da alma e nem a sua transmigração, ao

mesmo tempo em que não desautoriza a sua permanência. Assim, a alma individual tem

início no ser mas jamais cessa. Esta teoria não é encontrada em toda a sua extensão em

nenhum de seus predecessores. Novamente, algumas características podem se

aproximar de Aristóteles; outras de Platão; outras da religião monoteísta de um modo

geral e do islamismo em particular; e outras até mesmo de Agostinho, o que lhe

proporcionou um acolhimento generoso, inicialmente, no Ocidente cristão. No entanto,

mesmo se constatando a miríade de fontes e inspirações de outros filósofos com os

quais Ibn S»n« tem afinidade, ainda assim a sua psicologia parece continuar irredutível a

qualquer um dos seus antecessores, sejam eles árabes ou não árabes. Não há dúvida de

que um dos traços de sua filosofia é a sistematização do conjunto dos conhecimentos

científicos e filosóficos que lhe chegaram como herança. Mas, nem por isso poderíamos

entender sua filosofia como uma mera sobreposição de conceitos e teorias passadas, o

que resultaria numa desfiguração de seu pensamento. Na verdade, o que parece dirigir a

filosofia de Ibn S»n« é menos um simples recolhimento de dados existentes e mais uma

convicção íntima, uma segurança primeira, que se utiliza dos elementos disponíveis

para auxiliá-lo em suas afirmações, as quais estão sempre amparadas pela arte da

lógica. A constante retomada das mesmas afirmações em diversas obras parece atribuir

à sua filosofia um perfil mais constante, diferentemente do que se observa em outros

autores em quem é mais visível a evolução do pensamento através dos seus escritos.

Certamente não foi tudo que chegou às mãos de Ibn S»n« que ele acolheu, mas parece

319 GOICHON, A.M. “ L’unité de la pensée avicennienne”. Archives Internationales d’Histoire des Sciences. Paris: nº 20 - 21, 1952, pp. 290 - 308.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

106

que foi segundo esta direção primeira que os argumentos foram aceitos ou refutados e

desenvolvidos através de sua própria experiência e reflexão, tornando-se, ao final, uma

estrutura personalíssima de grande envergadura. Assim, devemos acentuar que a

filosofia de Ibn S»n« é, afinal, a filosofia de Ibn S»n«.

Com estes poucos exemplos queremos justificar, além da originalidade

de sua teoria da alma, que um dos pontos altos deste tratado é o estabelecimento de uma

continuidade que permeia os diversos aspectos da realidade aos quais o homem está

vinculado: o corpo, a alma, a sociedade e o cosmos. Os inúmeros assuntos procuram

repousar em uma coesão não somente formal mas com grande desenvolvimento e

profundidade seja na fisiologia, na metafísica, na psicologia ou na física. Para ele, tais

abordagens estão de tal modo entrelaçadas umas às outras que o estudo detido de cada

uma delas separadamente resulta sempre numa unidade de conhecimento que envolve as

outras, resultado este que dificilmente encontraremos após a divisão e especialização

que se verificou na modernidade e que, em muitos casos, perduram até os dias de hoje.

Certamente, podemos argumentar que suas bases científicas não são mais

sustentáveis, como o geocentrismo, a teoria do pneuma e dos quatro humores. Mas o

mesmo não aconteceria com a unidade que ele procura estabelecer. Por esta razão,

mesmo que troquemos o geocentirsmo pelo heliocentrismo, a teoria do pneuma pela

transmissão de impulsos elétricos, ainda assim manter-se-ia a intenção de tal unidade.

Por outro lado, se argumentarmos que atualmente não nos é possível estabelecer uma

unidade objetiva de todos os conhecimentos, ao menos podemos entender esta intenção

de unidade no próprio homem, procurando a medida e o sentido da existência humana, o

que parece ser, para dizer o mínimo, uma das tarefas da filosofia. Aliás, talvez seja a

isso que Platão, ao final do Livro IX da República, se refira, ao afirmar a respeito da

cidade criada em lógos:

“ Mas talvez haja um modelo no céu, para quem quiser contemplá-la e,

contemplando-a, fundar uma para si mesmo. De resto, nada importa que

a cidade exista em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto é pelas

suas normas, e pelas de mais nenhuma outra, que ele pautará o seu

comportamento.”320

320PLATÃO, A República X, 592 b.. Trad. e notas de Maria Helena R. Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 450.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

107

Assim, na medida em que não se considere a filosofia como sendo apenas

a sua história mas um encontro com respostas aos problemas tanto práticos quanto

teóricos com os quais nos deparamos, o estudo de Ibn S»n« se alinha no mesmo patamar

e importância que atribuímos aos filósofos do passado pois parece que uma das razões

pelas quais voltamos aos antigos gregos, aos medievais cristãos, árabes ou judeus e aos

modernos, é justamente para discutirmos, entre outras coisas, questões filosóficas

contemporâneas a respeito do homem, da sociedade e do mundo. Muitas vezes,

principalmente na tradição ocidental, tomamos o passado como o que ficou para trás

sendo, na verdade, o ultrapassado. Há, porém, uma outra imagem, mais presente no

Oriente, na qual o passado não está atrás mas está embaixo, assim como o futuro não

está à frente mas está em cima, pois o passado é raiz que nos sustenta e o futuro é onde

se encontram as realidades primeiras e últimas às quais o homem retornará. Tomando a

segunda imagem, o sentido de voltarmos ao passado seria, portanto, o de verificarmos

onde estamos apoiados.

Desse modo, ao nos voltarmos para o passado, testificamos que os

antigos propuseram alguns caminhos e, invariavelmente, damos a palavra a eles, na

medida em que suas filosofias tenham relação com a formação do nosso pensamento. É

sob este mesmo argumento que queremos acentuar que, do mesmo modo que a palavra

é dada aos antigos gregos, aos medievais cristãos e aos modernos, a palavra deve ser

dada aos filósofos árabes deste período da história que fizeram a ‘falsafa’ 321, ou seja, a

filosofia árabe helenizada. Mesmo considerando que muito do que afirmamos sobre Ibn

S»n« valha para outros pensadores, devemos lembrar que ele está mais próximo da

ciência moderna do que Aristóteles, e viveu após o estabelecimento da tríade monoteísta

judaico-cristã-islâmica, possuindo, assim, elementos e desafios a superar, em alguns

casos, mais próximos de nós do que aqueles dos antigos gregos, ao mesmo tempo em

que trata a filosofia de modo diverso do que o fez a tradição medieval cristã no

ocidente. Assim, a síntese de Ibn S»n« ao mesmo tempo em que ilumina os textos

gregos, se faz presente nos medievais e avança nos modernos, chamando-nos a um

retorno para contemplarmos as suas propostas que, reunidas sob uma mesma pena, se

configuraram num novo sistema, uma cosmovisão diferenciada de tudo o que o

321 »Ÿ�¬Ÿ

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

108

antecedeu, uma síntese que não é nenhuma das que encontramos alhures. Por essa razão,

contemporaneamente devemos ouví-lo não meramente por um sentido histórico, mas

por causa da relevância com que trata questões sempre atuais do homem. Afora isto,

talvez a importância de estudá-lo, hoje em dia, seja simplesmente a mesma de que

revestimos os antigos ao voltarmos a eles, ou seja: encontrar algo precioso que lá está,

pois “tudo o que se manifestou certa vez ao homem na luz da verdade pode tornar a se

manifestar verdadeiro, se se encontra uma alma que aí se redescubra, e o redescubra ”322

É, portanto, no âmbito de uma contribuição efetiva através da presença

de sua psicologia e de sua epistemologia nas discussões atuais que podemos ressaltar,

mais precisamente, a importância do estudo dos sentidos internos que são, em última

análise, um ponto alto de sua psicologia. Lembremo-nos que é através da dinâmica

interna destes sentidos aliada, em alguns casos, com outras faculdades anímicas que ele

crê poder explicar inúmeras ocorrências que são atualmente estudadas pela psicologia

moderna como, por exemplo, os sonhos, os sentimentos de alegria, tristeza, raiva, os

desejos e as emoções em geral.

Quanto ao caráter histórico, como vimos, a penetração das classificações

dos sentidos internos de Ibn S»n« foi uma das vias pelas quais o Kit«b al- afs participou

da formação do pensamento Ocidental, tendo sido parcialmente utilizado por outros

autores formando novos sistemas. Recordemos que a trajetória dos sentidos internos

desde as indicações dadas por Aristóteles até a chegada aos pensadores latinos dos

séculos XII e XIII passsou praticamente desapercebida pelos primeiros pensadores

latinos nos quais este termo indicava apenas uma faculdade pós-sensorial. Na tradição

árabe, assim como na hebraica, apesar das classificações anteriores a Al-F«r«b» serem

diversas, a tradição que perdurou foi a adotada a partir deste último com a inclusão da

estimativa e da divisão da imaginação entre retentiva e compositiva animal e humana.

Mas foi somente com Ibn S»n« que a estrutura dos sentidos internos atingiu o mais alto

grau de sistematização com a inclusão do sentido comum e o estabelecimento da divisão

entre a memória e a reminiscência. Além disso, lembremos a análise detalhada da

articulação de todas as funções das faculdades, elevando as funções a sete, combinando-

as para chegar, no Kit«b al- afs, ao número de cinco faculdades. A adoção da

sistematização dos sentidos internos, como expusemos, se deu tanto no Oriente com

322Palavras do historiador e filósofo francês Henri-Irénée Marrou citadas em NASCIMENTO, C.A. O que é filosofia medieval. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1992, p. 80.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

109

Al-¾azal» quanto no Ocidente com Ibn Rušd e onde os pensadores tardios da filosofia

latina herdaram tais classificações .

Os ecos da posteridade de Ibn S»n« talvez tenham sido escutados na

modernidade, apesar de que muitas vezes, os próprios autores sequer soubessem de

onde provinham algumas idéias que circulavam na época. Podemos entender que há

indicações de que o Kit«b al- afs tenha tido dois modos de inserção no ocidente: uma

direta e imediata como observamos nos escritos de Tomás e de Bacon; outra indireta e

mediata, que talvez tenha tocado os modernos. Wolfson não deixa de indicar a

importância dos sentidos internos de Ibn S»n« na filosofia posterior:

“Nos textos tardios da filosofia latina, começando com a tradução dos

textos de Avicena e Averróes no século XII, todas as classificações dos

sentidos internos são dominadas pela influência de Avicena e

Averróes.”323

E numa outra afirmação podemos presentir a presença de seus escritos, ainda que de

forma indireta, na modernidade num vislumbre de até onde podem ter chegado os ecos

tardios dos sentidos internos de Ibn S»n«:

“Finalmente quando terminarmos com os textos latinos devemos mostrar

como essas várias classificações na literatura árabe deu início a um

ulterior desenvolvimento que continuou até o tempo de Kant.”324

Um dos traços marcantes do ingresso dos sentidos internos na modernidade parece ter

sido a redução de seu número. Descartes325e Leibniz referem-se aos sentidos internos,

assim como Kant. Mas um dos pontos altos desse tema talvez possa ser encontrado

também no emprirismo inglês, mais precisamente nos escritos de John Locke.

Entretanto, esta é uma outra discussão e tais indagações não poderão ser desenvolvidas

aqui. Talvez num outro momento e num outro trabalho.

Em todo este trajeto também pudemos observar que não é do nosso

conhecimento que tenha havido um autor que tivesse se ocupado tanto com a questão

dos sentidos internos como Ibn S»n«. Nem os anteriores e, seguramente, nem os

323Cf. Wolfson, art. cit. p. 311. 324Ibid. p. 268. 325Wolfson apresenta algumas referências de Descartes a dois sentidos internos (sensus interni), descrevendo um deles como nossos apetites naturais e o outro como as emoções da mente ou paixões. Em outro lugar, sem mencionar explicitamente os sentidos internos, Descartes refere-se a eles ao tratar da imaginação e memória. Em outra passagem a imaginação é identificada ao sentido comum e confrontada com os sentidos externos. Há também indicações mais sumárias sobre Leibniz e Kant. (Cf.Wolfson, art. cit.pp 307-309 e notas).

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

110

posteriores, o que, por si só, também justifica a sua relevância nos estudos filosóficos

em geral e nos psicológicos e epistemológicos em particular.

Devemos justificar, além de tudo, que o caráter mais expositivo deste

trabalho foi uma opção que fizemos e talvez fosse despropositado se tratássemos de

filósofos que já possuem uma tradição de estudo mais avançada em nossas

universidades. No caso de Ibn S»n«, entretanto, este procedimento nos pareceu

preferível visto que entendemos que os trabalhos em filosofia árabe tem para nós,

ainda, um caráter seminal, o que nos levou, por bom senso, a um desenvolvimento deste

tipo. Entendemos, assim, que bases colocadas de modo simples e sólido terão mais

utilidade para o desenvolvimento futuro de outras pesquisas.

Para encerrar, ao final desta jornada, lembramos que na apresentação

deste trabalho disséramos que o nosso objetivo era apresentar a estrutura geral do Kit«b

al- afs. Por este ponto de vista entendemos que cumprimos o nosso objetivo. Por outro

lado, contudo, durante o nosso trajeto nos deparamos com temas que gostaríamos de ter

desenvolvido mas que não nos foi possível. Do mesmo modo houve detalhes e

pormenores que nos acompanharam durante todo o percurso e que ainda permanecem

como interrogações em nossas mentes. Por essas razões, não podemos considerar este

trabalho concluído, na medida em que há muitos aspectos que gostaríamos de

desenvolver posteriormente se assim nos for permitido e, como disse Ibn S»n« no

prólogo da Al-Šif«’, “esperamos que nos seja concedido tempo suficiente para terminá-

lo e que a ajuda de Deus nos acompanhe”.

Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho

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p.66 e 166 .

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ANEXOS

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LOCALIZAÇÃO DOS SENTIDOS INTERNOSLOCALIZAÇÃO DOS SENTIDOS INTERNOSLOCALIZAÇÃO DOS SENTIDOS INTERNOSLOCALIZAÇÃO DOS SENTIDOS INTERNOS Nome em Bakós Nome árabe Bakós (texto árabe)

Sentido comumSentido comumSentido comumSentido comum I, 5, 30, l. 35 ©zc„°«[ �o«[ SS (p. 44, l. 14) IV, 1, 116, l. 34 Al-¯as al-muštarak

ou ¼[

FantasiaFantasiaFantasiaFantasia I, 5, 30, l. 35 \À� \�´^326 SS (p. 44, l. 14) Ban³as»a Definição e localização: “(...) fantasia ou sentido comum,fantasia ou sentido comum,fantasia ou sentido comum,fantasia ou sentido comum, estabelecida no primeiro ventrículo do cérebrono primeiro ventrículo do cérebrono primeiro ventrículo do cérebrono primeiro ventrículo do cérebro que recebe por si mesma todas as formas impressas nos cinco sentidos e que chegam ao ventrículo.” (Cf. I, 5, 30, l. 35) “(...) ela é o centro dos sentidos, e dela se ramificam os ramos e a ela são conduzidos os sentidos, e ela é , na verdade, a que sente.” (Cf. IV, 1, 116, l. 34). Nome em Bakós Nome árabe Bakós (texto árabe)

ImaginaçãoImaginaçãoImaginaçãoImaginação I, 5, 30, l. 38 ª\Às«[ SS(p. 44, l. 16) IV, 1, 116, l. 37 Al-ĥi«l

ou ¼[

FormativaFormativaFormativaFormativa I, V, 30, l. 38 ºy½ˆ°«[ SS(p. 44, l. 16) IV, 1, 116, l. 37 Al-masūra Definição e localização: “(...) imaginação ou faculdade formativaimaginação ou faculdade formativaimaginação ou faculdade formativaimaginação ou faculdade formativa; faculdade estabelecida também na extremidade do ventrículo anterior do cérebro, extremidade do ventrículo anterior do cérebro, extremidade do ventrículo anterior do cérebro, extremidade do ventrículo anterior do cérebro, ela conserva o que o sentido comum recebeu dos cinco sentidos particulares e que permanece na extremidade do ventrículo depois do distanciamento destas coisas sensíveis.” (Cf. I, 5, 30, l. 38). “(...) mas a ação de reter o que é percebido pertence à faculdade que se chama imaginação, e ela se chama faculdade formativa, e se chama faculdade imaginativa. Às vezes se distingue entre a imaginação e a imaginativa, em relação à significação convencional da palavra.” (IV, 1, 116 l. 37).

326

O termo mais corrente, que o próprio Ibn S»n« adota em outras obras, é \~\�´Ÿ ‘fan³as»a’

(Cf. Goichon, Léxico, pp. 69-71, n.150), mas nesta obra a transliteração do termo grego ‘fantasia’ aparece com a substituição da primeira letra por um ‘b’ tanto na edição de Bakós ( p.44, l.14) quanto na edição de F. Rahman ( p. 44, l. 4) e é empregada apenas nesta passagem.

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“(...) O sentido comum e a imaginação são ambos como se fossem uma só faculdade, é como se os dois só diferissem quanto ao sujeito de inerência. Isso, porque, “que ele receba” não significa que “ele conserva”. (IV, 1, 116, l. 41). Nome em Bakós Nome árabe Bakós (texto árabe)

ImaginativaImaginativaImaginativaImaginativa I, 5, 31, l. 19 »¬Àsc°«[ ST(p.45, l. 12) IV, 1, 117, l.18 Al-mutaĥa»la

e ¼

CogitativaCogitativaCogitativaCogitativa I, 5, 31, l. 19 ºz¨Ÿ°«[ ST(p. 45, l. 12) IV, 1, 117, l. 17 Al-mufakira Definição e localização: “(...) a faculdade que se chama imaginativa faculdade que se chama imaginativa faculdade que se chama imaginativa faculdade que se chama imaginativa em relação à alma animal e cogitativa cogitativa cogitativa cogitativa em relação à alma humana; faculdade estabelecida no ventrículo médio do cérebro ventrículo médio do cérebro ventrículo médio do cérebro ventrículo médio do cérebro junto ao verme, ela tem a propriedade de compor certas coisas que estão na imaginação com outras, e de separar outras à vontade.” ( I, 5, 31, l. 19) “(...) é de nossa natureza compor certas coisas sensíveis com outras e de separar algumas delas de outras, não segundo as formas que encontramos nessas coisas sensíveis no exterior (...) É preciso que esteja em nós uma faculdade pela qual fazemos isso, e esta é a que se chama cogitativacogitativacogitativacogitativa, quando a inteligência a emprega, e imaginativaimaginativaimaginativaimaginativa, quando a emprega uma faculdade animal.” ( IV, 1, 117, l.18). Nome em Bakós Nome árabe Bakós ( texto árabe)

EstimativaEstimativaEstimativaEstimativa I, 5, 31, l.19 ±·½«[ ST(p. 45, l. 15) IV, 1, 117, l. 28 Al-wahm

Definição e localização: “ (...) faculdade estimativa; faculdade estimativa; faculdade estimativa; faculdade estimativa; faculdade estabelecida na extremidade do ventrículo médio extremidade do ventrículo médio extremidade do ventrículo médio extremidade do ventrículo médio do cérebrodo cérebrodo cérebrodo cérebro; ela percebe as idéias não sensíveis que se encontram nas coisas sensíveis particulares, como a faculdade que se encontra na ovelha, quando ela julga que deve fugir deste lobo e ter afabilidade por este cordeiro. Parece que ela é , além disso, a faculdade que tem a livre ação de compor e separar as coisas imaginativas.” ( I, 5, 31, l. 19). “(...) Quanto às coisas que em suas naturezas não são sensíveis, são, por exemplo, a inimizade, a maldade, a aversão que a ovelha percebe na forma do lobo(...) Essas são coisas que a alma animal percebe, enquanto o sentido nada indica a respeito delas. Então, a faculdade pela qual (essas coisas) são percebidas é uma outra faculdade, e ela é chamada estimativa.” (IV, 1, 117, l. 30)

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Nome em Bakós Nome árabe Bakós (texto árabe)

Fac. que conservaFac. que conservaFac. que conservaFac. que conserva I, 5, 31 l. 29 »”Ÿ\o«[ SU (p. 46, l. 2) e se lembrae se lembrae se lembrae se lembra IV, 1, 118, l. 11 Al-h«fµa

½ (Memória e e

Reminiscência) ºz§xc°«[ *

Al-mutadakira Definição e localização: “(...) faculdade que conserva e se lembra; faculdade que conserva e se lembra; faculdade que conserva e se lembra; faculdade que conserva e se lembra; faculdade estabelecida no ventrículo posterior ventrículo posterior ventrículo posterior ventrículo posterior do cérebro, do cérebro, do cérebro, do cérebro, ela conserva o que a estimativa percebeu das idéias não sensíveis, nas coisas sensíveis particulares.” (I, 5, 31, l. 29). “ O depósito do que percebe a idéia, é a faculdade que se chama (faculdadefaculdadefaculdadefaculdade) que que que que conserva, conserva, conserva, conserva, e seu lugar próprio é a parte posterior do cérebro.” ( IV, 1, 118, l. 11) * nota: JAMAL, A. E. in Etudes sur Avicenne. Paris: Les Belles Lettres, 1984, p.130

Ibn S»n« apresenta também uma localização geral dos sentidos internos ao tratar dos órgãos que pertencem à alma: “ Quanto à faculdade formativa e ao sentido comum, os dois vêm da parte anterior do cérebro, estando num pneuma que preenche esse ventrículo. E os dois estão lá somente para olhar os sentidos cuja maior parte provém apenas da parte anterior do cérebro. Nos dois outros ventrículos estão o pensamento* e a reminiscência; no entanto, o lugar da reminiscência é posterior, para que a sede do pneuma cogitativo seja intermediária entre o depósito da forma e o depósito da idéia (intentio), e que a sua distâcia dos dois seja idêntica. A faculdade estimativa governa todo o cérebro, mas seu poder está no centro.” (Cf. V, 8, 190-191) * entendido como o ato da imaginativa no homem, isto é, a cogitativa.

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* Nota sobre a transliteração de nome de pessoas:* Nota sobre a transliteração de nome de pessoas:* Nota sobre a transliteração de nome de pessoas:* Nota sobre a transliteração de nome de pessoas:

Os nomes próprios dos árabes foram transliterados segundo o original da própria língua,

assim \´À� µ^[, manteve-se como Ibn S»n«, e assim entendemos por este estudo não tratar principalmente do “Avicena latino”. No entanto, mantivemos o nome “Avicena” quando ele assim foi citado por outros autores.

Tabela de transliteração das letras árabesTabela de transliteração das letras árabesTabela de transliteração das letras árabesTabela de transliteração das letras árabes

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