OS SE TIDOS I TER OS EM IB S ºººº...
Transcript of OS SE TIDOS I TER OS EM IB S ºººº...
MIGUEL ATTIE FILHO
OS SE�TIDOS I�TER�OS
EM IB� Sºººº�ªªªª
( AVICE�A )
MESTRADO EM FILOSOFIA
PUC - SP
1999
MIGUEL ATTIE FILHO
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
2
OS SE�TIDOS I�TER�OS
EM IB� Sºººº�ªªªª
( AVICE�A )
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do tí tulo de Mestre
em Filosofia à Banca Examinadora do
Programa de Estudos Pós-graduados em
Filosofia da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr.
Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento.
PUC - SP
1999
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
3
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Prof. Dr. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento - PUCSP
_________________________________________
Prof. Dr. Jamil Ibrahim Iskandar - PUCPR
_________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Estevão - USP
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
4
Ao Prof. Carlos Arthur,
por me auxiliar a encontrar o caminho de volta
para casa.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
5
Todos os agradecimentos:
Ao Prof. Ênio José da Costa Brito porque acreditou em mim e me trouxe de volta para a PUCSP; ao Prof. Porphírio Aguiar pela iniciação filosófica; à Irmã Maria Helena que viu o futuro; a todos os colegas, professores e funcionários da FAI; à Profª Mônica Galliano pelo indizível, je vous remercie vivement; ao Prof. Jamil Ibrahim Iskandar pela fidalga generosidade; ao Prof. José Carlos Estevão pela elegância filosófica e pelas dicas em Paris; em Paris ao Prof. Michel Patty que lá me recebeu; ao Prof. Ahmed Hassnaoui e ao Prof. e amigo Maroun Aouad do CNRS por todas as dicas e textos; ao Prof. Moacyr Novaes que me recebeu cordialmente no CEPAME, a todos os colegas do CEPAME; ao Tadeu, meu amigo de valorosas horas; à Rosalie que me forneceu o primeiro De anima; ao “Grupo das arábias”; à Natália pelo alto astral; à Profª Safa Jubran que me levantou num momento difícil e ao Prof. Mohamed Jarouche pela força; à Profª Jeanne Marie pela confiança em meu trabalho; à Profª Rachel Gazzola pelas preciosas oportunidades; ao Prof. Ivo Assad Ibri por não me cobrar as ‘esfihas’ que devo; ao Prof. Edélcio, pelo mesmo motivo; ao Prof. Marcelo Perini pelo incentivo inicial; à Cida da secretaria do pós que sempre me recebeu com um sorriso; a todos os professores, colegas e funcionários da PUCSP; a todos que me tiraram xerox; ao CNPQ pela bolsa para tirar os xerox; à Marisa, por tudo; à Paula e ao Mateus por olharem um ao outro; à Sonia, à Solange e à Maria pelo brilho nos olhos e ao ‘bayu’ Miguel (in memoriam) pela presença constante; a todos os amigos que me incentivaram ou me criticaram; aos que não me conhecem e que eu não conheço e que nunca saberei que me ajudaram; aos que atrapalharam; a todos que esqueci de citar... ao professor, amigo e mestre Carlos Arthur por ter tornado tudo isto possível. MUITO OBRIGADO!
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
6
RESUMO A primeira parte deste trabalho se ocupa em fornecer alguns
dados básicos sobre a vida e a obra de Ibn S»n« -Avicena-(980-1037).
Em seguida, no Capítulo I, são apresentadas as principais
características de sua obra Al-Šif«’ (A Cura), sua divisão, e como o Livro
VI (Kit«b al- afs) se insere nesta enciclopédia. Além disso, é apresentada
a importância histórica dessa obra na formação do pensamento ocidental a
partir de sua tradução do árabe para o latim em meados do século XII d.C.
No Capítulo II, após a indicação de um itinerário da estrutura
geral do Kit«b al- afs, são apresentadas as principais teses de Ibn S»n« a
respeito da alma nesta obra. Em seguida, o tema dos sentidos internos é
exposto de modo mais detido, percorrendo sua classificação, a definição de
cada faculdade e a dinâmica de seus movimentos.
O Capítulo III se inicia com um breve histórico das
transformações de tratamento que as faculdades pós-sensoriais sofreram
através dos autores anteriores a Ibn S»n« e como o filósofo árabe chegou à
sua própria classificação. Em seguida são indicadas algumas variações
sobre o tema fornecida pelo próprio Ibn S»n« em outras obras e como o
tema dos sentidos internos atingiu alto grau de excelência em sua filosofia
podendo ser considerado um dos pontos altos de sua psicologia. Ao final,
focaliza-se a repercussão das classificações dos sentidos internos de Ibn
S»n« em autores posteriores a ele tanto no Oriente quanto no Ocidente.
Ao final, procura-se mostrar como este tema se torna relevante
nos dias de hoje tanto nas discussões filosóficas de caráter mais geral
quanto nos temas de psicologia e de epistemologia de modo mais particular
e como, nessa medida, a presença das teses de Ibn S»n« se mostra de grande
importância.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
7
SUMÁRIO
Apresentação .................................................................................................................. 01
Introdução ........................................................................................................................ 03
1) Alguns dados biográficos ............................................................................................ 03
2) Alguns dados bibliográficos ........................................................................................ 08
Capítulo I : A Al-Šif«’ e o Kit«b al- afs. ........................................................................ 10
Capítulo II: Os sentidos internos no Kit«b al- afs. ......................................................... 23
1) Prolegômenos: o quadro geral do Kit«b al- afs (Cap. I) ........................................... 23
2) Os sentidos internos no Kit«b al- afs (Cap. IV) ........................................................ 54
Capítulo III: Ainda os sentidos internos .......................................................................... 78
1) As fontes de Ibn S»n« .................................................................................................. 78
2) As classificações de Ibn S»n« ...................................................................................... 85
3) A posteridade na trilha de Ibn S»n« ............................................................................. 90
Conclusão ........................................................................................................................ 97
Bibliografia .................................................................................................................... 105
Anexos
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
8
APRESE�TAÇÃO:
O precípuo objetivo deste trabalho é apresentar a estrutura geral do Livro
VI da parte da Física da enciclopédia Al-Šif«’, denominado Kit«b al- afs, que ficou
conhecido no ocidente medieval como o De anima de Avicena ou a Psicologia de
Avicena. A Física, nesse caso, entendida como o conjunto das ciências naturais,
justifica porque a Idade Média denominou-o Liber De Anima - Sextus de aturalibus.
Sem dúvida, como veremos a seguir, as linhas gerais adotadas por Ibn
S»n« nesta obra, baseiam-se no estudo ΠΕΡΙ ΨΥΧΗΣ − Sobre a alma - de Aristóteles, o
que nos leva naturalmente a situar algumas idéias de Ibn S»n« em relação às do filósofo
grego. Não obstante o fato de que uma comparação de idéias pareça se dar quase que
naturalmente, visto a proximidade estrutural e conceitual das duas obras, não é nossa
intenção, nesta pesquisa, avaliar de maneira mais sistemática e detalhada as relações
entre as posturas adotadas por Ibn S»n« diante daquelas adotadas anteriormente por
Aristóteles, mesmo porque, devemos lembrar que existem outras fontes das idéias
avicenianas além dos escritos aristotélicos, tais como as obras de Al-F«r«b», Plotino,
Galeno, o Alcorão, etc. A isto devemos, ainda, somar a sua própria experiência como
médico.
A nossa prioridade é apresentar as principais idéias de Ibn S»n« dentro da
própria estrutura de sua obra, até onde nos seja possível, procurando situá-lo em relação
a Aristóteles apenas em algumas passagens que consideramos mais relevantes, evitando,
assim, um paralelismo constante. Entendemos, desse modo, que dados os limites deste
trabalho, deveríamos priorizar a doutrina de nosso filósofo, procurando
simultaneamente afastar a idéia, muitas vezes errônea, de tomá-lo simplesmente como
um comentador de Aristóteles. Na verdade, o Kit«b al- afs não é um comentário ao
texto de Aristóteles. O leitor acostumado à tradição de comentários à obra do mestre
grego como, por exemplo, alguns escritos de Ibn Rušd (Averróes), não encontrará nesta
obra de Ibn S»n« qualquer semelhança. Neste caso, trata-se de uma outra abordagem em
que o filósofo árabe não se contenta apenas com os princípios aristotélicos,
acrescentando a estes uma série de novos elementos. Um dos pontos mais altos do
tratado é o entrelaçamento entre a psicologia e a fisiologia, principalmente no que tange
aos sentidos internos. Ao longo deste trabalho poderemos verificar que, para dizer o
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
9
menos, o Kit«b al- afs é uma “refundição” do De Anima de Aristóteles, se
configurando numa nova síntese: a síntese de Ibn S»n«.
Sendo assim, nos propomos seguir de modo esquemático, o seguinte
desenvolvimento :
Na Introdução apresentaremos, resumidamente, alguns dados sobre a
vida de Ibn S»n«, além de fornecermos um quadro geral a respeito de sua obra. No
capítulo I explicaremos, em seus princípios fundamentais, o que é a enciclopédia Al-
Šif«’, visto que isso se torna necessário na medida em que nos permite situar com mais
clareza como o Livro VI da parte da Física - Kit«b al- afs - se localiza e se articula no
conjunto desta enciclopédia. No capítulo II apresentaremos, de modo sintético, os
assuntos que Ibn S»n« aborda sequencialmente dentro desta obra, destacando e
explicando as principais posições do autor. Sem dúvida, ao investigarmos o tema dos
sentidos internos, privilegiamos as seções e passagens que a estes se referem. No
entanto, na medida do possível, procuramos indicar o conjunto de assuntos analisados
por Ibn S»n« procurando manter a visão geral do tratado. No capitulo III estabelecemos
as fontes de Ibn S»n« e outras considerações sobre as suas classificações, apontando a
presença destas em autores posteriores tanto do oriente quanto do ocidente. Na última
parte, finalmente, apresentaremos nossas conclusões, apontando como esse tema pode
ser relevante atualmente na medida em que se insere em inúmeros pontos de interesse
da discussão e do estudo psicológico e epistemológico em particular e da própria
filosofia em seu caráter mais geral.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
10
I�TRODUÇÃO:
Alguns dados biográficos:
Abu ‘Ali Al-Hussein Ibn 'Abd All«h Ibn Al-®assan Ibn ‘Ali Ibn S»n«,
nasceu em Bukhara1 em 980 d.C. e faleceu em Hamadan2 em 1037. Uma boa parte de
sua vida nos é conhecida através de suas próprias palavras, numa curta auto-biografia3,
“transmitida e completada pelo seu mais fiel discípulo ‘Abu ‘Ubaid Al-J−zj«n»”.4 Seu
pai era um administrador da província de Bukhara5, onde Ibn S»n« iniciou seus
primeiros estudos. Aos dez anos, já sabia o Alcorão de cor "de modo que era objeto de
imensa admiração."
Iniciou, em seguida, seus primeiros estudos em filosofia, geometria,
aritmética, jurisprudência e lógica sob a orientação de um professor chamado Al-Nat»l»,
a quem Ibn S»n« logo iria superar. Passou a estudar por si mesmo a Isagoge de Porfírio,
os Elementos de Euclides e o Almagesto de Ptolomeu, tendo em seguida se iniciado nos
estudos de fisica e de metafisica. Particularmente, a metafisica de Aristóteles, no início
mostrou-se bastante obscura, mas a partir da leitura de um comentário de Al-F«r«b»,
tornou-se perfeitamente clara. Este é um episódio da vida intelectual de Ibn S»n«
frequentemente citado:
“Eu reli o livro da Metafísica (de Aristóteles) por quarenta vezes, de
modo que o aprendi de cor. Porém, não podia ainda compreender o que
havia em seu interior, e nem o intuito de seu autor.”6 Estando num
mercado de livros, pela insistência de um vendedor, acabou adquirindo,
1Esta cidade está situada numa região da antiga Pérsia, dominada já nesse período pelo Islam. Atualmente, faz parte do Uzbequistão que, estabelecido em 1924 como república da União Soviética, tornou-se um estado independente desde 1991. Atlas Geográfico Mundial - Folha de São Paulo -. São Paulo: Folha da Manhã, 1993 pp. 66 e 166 . 2 Esta cidade situa-se no atual Irã. Ibid pp. 69 e 166. 3 Esta autobiografia, com a continuação feita por Al-Jūzj«n» foi traduzida para o inglês em ARBERRY, .J. Avicenna on Theology, London: Hyperion Press, 1951, pp. 9-24. Uma edição crítica, acompanhada de tradução inglesa, foi feita por GOHLMAN, W. E.: The Life of Ibn Sina. New York: State university of New York Press, 1974. BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, pp. 595-602 apresenta também a parte que foi escrita pelo próprio Ibn S»n«. 4 BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 595. 5 As passagens a seguir foram baseadas na tradução da autobiografia por BADAWI, A. 6É possível supor que tais dificuldades se referissem, por um lado, à tradução do grego para o árabe que implicou na adaptação de termos desconhecidos nesta língua e, por outro lado, ao conteúdo da própria obra que divergia em alguns casos das concepções do Alcorão. Cf. - ISKANDAR, J. I. Avicena - A origem e o retorno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 18.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
11
por uma bagatela, a obra de Al-F«r«b» Do intuito do livro da Metafísica
(de Aristóteles). “Entrei em casa e me apressei em lê-lo; e logo seu
propósito se revelou a mim, visto que eu conhecia o livro de cor. Me
alegrei. No dia seguinte dei muitas esmolas aos pobres, em sinal de
agradecimento ao Deus Altíssimo.”7
Na mesma época passou a ler os livros de medicina, pois além de querer
se dedicar à arte médica verificara que "a medicina não era uma ciência difícil". Em
pouco tempo os médicos vieram aprender a arte médica com o jovem Ibn S»n« , que
tinha, então, apenas dezesseis anos.
Quando foi chamado para curar o príncipe Nu¯ Ibn Man·ur, teve a
oportunidade de frequentar a riquíssima biblioteca deste, e nela pôde entrar em contato
com grande parte do conhecimento de sua época. Este fato coloca em cena três aspectos
importantes que estarão sempre presentes em toda sua vida: a medicina, a filosofia e a
política. Nessa época tinha dezoito anos e já havia entrado em contato com
praticamente todas as mais importantes ciências conhecidas.
Atendendo à solicitação dos que o acompanhavam, aos vinte e um anos
passou a compor as sua primeiras obras. Nesse período, ocupava algumas funções
administrativas em Bukhara mas, com a morte do pai, iniciou um período de viagens a
cidades próximas.8Dentre essas viagens, destaca-se a estada de Ibn S»n« em Jurjan, onde
um amante da filosofia chamado Al-Šir«zi instalou o mestre numa casa ao lado da sua.
Aí Ibn S»n« escreve a primeira parte do Canon de medicina. Sua última estada antes de
se fixar de modo mais permanente em Hamadan é uma outra cidade próxima chamada
Al-Ray.
Em Hamadan, aceita o cargo de vizir9 (ministro) do príncipe Šams Al-
Dawlah. Nessa época Al-Jūzj«n» pediu ao mestre que compusesse comentários sobre as
obras de Aristóteles, mas Ibn S»n« se recusou, preferindo compor uma obra de grande
envergadura, expondo os principais conhecimentos científicos e filosóficos de seu
tempo.
7 BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 598. 8Até este ponto todo o relato foi feito pelo próprio Ibn S»n«. O que vem a seguir foi registrado pelo seu discípulo Al-Jūzj«n». 9O significado literal de‘Wazir’ é ‘aquele que carrega o fardo’. A sua raiz é o verbo ‘wazara’ que significa ‘carregar um fardo’ Cf. - REIG, D. Dictionaire Larousse arabe-français. Paris: Larousse, 1987, verbete ‘wazara’, p. 770 e DE LIBERA, A. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998, p. 118.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
12
Assim, começou a redigir a enciclopédia Al-Šif«’, cuja tradução é 'A
Cura', iniciando-a pela fisica. Al-J−zj«n», afirma que Ibn S»n« acumulava, nesse período,
as funções de vizir ao mesmo tempo em que escrevia, aproximadamente, cinquenta
páginas por dia. É bastante interessante o relato de Al- J−zj«n» que parece testemunhar
a grande energia e capacidade de trabalho de Ibn S»n«:
“Ele havia escrito o primeiro livro do Canon (da medicina), e todas as
noites seus discípulos se reuniam em sua casa. Alternávamos na leitura:
enquanto eu lia a Al- Šif«’, algum outro lia o Canon. Quando
terminávamos, diferentes classes de cantores se faziam presentes e a
sessão de bebidas com seus utensílios era preparada da qual
participávamos. A instrução tinha lugar à noite, devido à escassez de
tempo livre durante o dia por causa do serviço do mestre ao príncipe.” 10
Al- J−zj«n» relata também que Ibn S»n«, embora não tendo se casado,
não podia ver um ‘rabo de saia’: “ O mestre era vigoroso em todas as suas faculdades,
sendo a sexual a mais vigorosa e dominante de suas faculdades concupiscíveis, e ele a
exercia frequentemente”.11
Depois da morte de Šams Al-Dawlah, o novo príncipe, seu filho Taj Al-
Mulk encarcerou Ibn S»n« por quatro meses por questões políticas, acusando-o de ter se
correspondido secretamente com o príncipe ‘Ala’ Al-Dawlah, em Isfahan 12. Na prisão,
compõe algumas obras, dentre elas o tratado ®ay Ibn Yaqzan, escrito em linguagem
simbólica.13
Depois de solto Ibn S»n« transferiu-se para Isfahan, sob os serviços do
príncipe ‘Ala’ Al-Dawlah. Aí se afirmou como mestre incontestável em todas as
ciências. Nessa época compôs a parte da lógica, geografia e astronomia da Al-Šif«’
tendo praticamente terminado esta obra. Outras obras importantes foram escritas
também nesse mesmo período, como por exemplo a Al- ajat (A salvação) que era um
10GOHLMAN, W. E. The life of Ibn Sina. New York: State university of New York press, 1974, pp. 55 - 56. 11Ibid, pp. 82-83. 12 Esta cidade fica no atual Irã. Atlas Geográfico Mundial - Folha de São Paulo-. São Paulo: Folha da Manhã, 1993 p. 69 e 167 . 13Remetemos a PEREIRA, R. H. S. Avicena: a viagem da alma ( uma leitura gnóstico-hermética de Hay Ibn Yaqzân). Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, parte III.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
13
extrato da Al- Šif«’ e o Danesh- ama ( O Livro das ciências); tendo sido esta última
uma das obras que escreveu em persa e não em árabe. 14
Durante uma viagem em companhia do príncipe ‘Ala’ Al-Dawlah, Ibn
S»n« é acometido de fortes cólicas, sendo obrigado a voltar a Isfahan onde procurou se
curar. Numa nova viagem, com o príncipe, é atacado novamente por cólicas e, depois de
tentar várias vezes um auto tratamento, acaba por se render dizendo: "O governador que
governa o meu corpo, já é incapaz de governar e agora o tratamento não beneficia
mais".15
Ibn S»n« permaneceu doente durante alguns dias e morreu em Hamadan
com a idade de 58 anos. Sua tumba se encontra junto ao muro sul da cidade.
A vida de Ibn S»n« foi, portanto, muito movimentada, tendo-a
aproveitado plena e intensamente; nesta, o vinho, a música e os amores tiveram grande
presença. Foi ministro ao menos duas vezes, mas o exercício desta função não
prejudicou seus estudos de filosofia. Ao contrário, compôs grande parte de sua obra
maior -a Al- Šif«’- enquanto era ministro. Além disso, sua autobiografia também
testemunha sua piedade: “Todas as vezes que um problema me embaraçava, e que eu
não podia encontrar o termo médio de um silogismo, me retirava à mesquita, orando, e
invocava o criador de tudo até que ele me revelasse a solução daquele fato difícil e
obscuro.”16
A dedicação a várias áreas de conhecimento, aliada a uma vida agitada e
plurifacetada, não retiram a unidade a esta e a sua obra; ao contrário, lhes conferem
uma envergadura filosófica e científica difícil de ser encontrada em um só homem. Mas,
como já ficou indicado, Ibn S»n« não partiu de zero.
Na filosofia seus principais pontos de partida foram as obras de
Aristóteles e o sistema de Al- F«r«b». Além disso há nele uma grande presença do
pensamento neo-platônico, principalmente de Plotino17. Esta influência já estava
14 Praticamente toda a sua extensa produção foi escrita em árabe mas há algumas exceções escritas em persa como esta que apontamos. BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 606 apresenta uma relação das obras escritas em persa. 15GOHLMAN,W. E. The life of Ibn Sina. New York: State university of New York Press, 1974, p. 89. 16BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 597. 17BADAWI, A. La transmission de la philosophie grecque au monde arabe. Paris: J. Vrin, 1987 fornece um catálogo completo das obras que foram traduzidas para o árabe. Não entraremos em detalhes sobre a influência da chamada Teologia de Aristóteles, ( na verdade, um extrato das Enéadas de Plotino que teve um papel determinante na filosofia árabe, mesclando o aristotelismo ao neoplatonismo) indicando, a título introdutório ao assunto, FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique.Paris: Les éditions du Cerf, 1989, Cap.I.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
14
presente em Al-F«r«b» de quem podemos citar principalmente a doutrina cosmológica
caracterizada por uma vasta descrição metafísica e sistemática do mundo, religando o
pensamento plotiniano da emanação à doutrina aristotélica do intelecto. A hierarquia
das inteligências e da emanação das esferas do ser necessário até o mundo sublunar, se
conforma como uma reunião de elementos da filosofia de Aristóteles e do
neoplatonismo.
Quanto à medicina, Ibn S»n« pertence à tradição médica herdada dos
gregos. A teoria dos humores de Hipócrates, por exemplo, e as teorias de Galeno foram
amplamente difundidas dentro da tradição médica árabe, onde juntamente com Al-R«zi
(865-925 d.C. -Rhazes no ocidente-) Ibn S»n« figura entre os maiores médicos.
Tanto na filosofia como na medicina, suas obras foram de suma
importância para a formação do pensamento e das ciências ocidentais.18 Os ocidentais
conheceram Aristóteles em boa parte por intermédio de Ibn S»n«, sendo que
inicialmente o que prevaleceu, até que fossem traduzidas as obras de filosofia natural do
mestre grego eram, na verdade, muito mais as idéias de Ibn S»n« do que as do próprio
Aristóteles.
Na medicina, também, sua presença foi marcante. A obra Al-Qanūn fi Al-
²ib (o Cânon da medicina) foi adotada nas universidades européias até o séc. XVI como
texto de base para o ensino médico, sendo uma síntese dos conhecimentos médicos de
sua época e de suas próprias experiências .19
Particularmente, a simultaneidade nas duas áreas do conhecimento,
medicina e filosofia, parece ter atingido alto grau de excelência em Ibn S»n«, tanto pelo
que produziu quanto pela influência posterior de suas obras. Esta dupla referência se
configura de suma relevância, na medida em que se quer compreender as relações que
Ibn S»n« estabelece entre as teorias médicas e as filosóficas. Isto se torna bastante claro
quando nos propomos estudar uma obra como o Kit«b al- afs, visto o constante
paralelismo e apoio das teorias fisiológicas para reforçar os conceitos filósoficos sobre a
'alma' praticados por Ibn S»n«.
18Quanto à influência do pensamento de Ibn S»n« no ocidente medieval remetemos a GOICHON, A.M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient, 1940. 19SAID, H. M. "O Cânon da Medicina". Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, pp. 13-17. Cf. também PEREIRA, R. H. S. Avicena: a viagem da alma. Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, pp. 1- 63 para outros detalhes a respeito da vida e obra de Ibn S»n«.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
15
Alguns dados bibliográficos20:
Seguindo a classificação das obras de Ibn S»n«, segundo Georges C.
Anawati 21 contamos 276 títulos. A divisão mais geral apresenta :
24 títulos de filosofia geral, dentre os quais a enciclopédia Al- Šif«’;
22 títulos de lógica,
3 títulos de linguística,
1 título de poesia,
26 títulos de fisica,
33 títulos de psicologia,
43 títulos de medicina,
6 titulos sobre química e magia;
15 títulos sobre matemática, música e astronomia;
32 títulos de metafisica,
6 títulos de exegese do Alcorão,
32 títulos de tratados místicos,
11 títulos de moral, economia, política e profecia;
e 22 cartas pessoais.
Uma classificação cronólogica aproximada dessas obras é possível,
graças à autobiografia de Ibn S»n« posteriormente completada por seu discípulo Al-
J−zj«n». A partir das indicações desta, pode-se reconstruir, ao menos em parte, as datas
aproximadas em que as obras foram escritas, inserindo-as dentro de uma divisão da vida
de Ibn S»n« em seis grandes períodos. A divisão proposta por Anawati é a seguinte:
Iº Período: estada em Bukhara
IIº Período: viagens
IIIº Período: estada em Jurjan
20 BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam Paris: J. Vrin, 1972, apresenta indicações sumárias das obras de Ibn Sina, remetendo (nota à p. 602) à Bibliographie d'Ibn Sina, por Y. Mehdawi, Teheran, 1954, na qual se baseara e que julga ser mais completa e precisa que a de G.C. Anawati no Essai de Bibliographie avicennienne, na qual nos baseamos. No entanto, as indicações sumárias dadas por Badawi são suficientes para confirmar os dados que nos eram necessários e que havíamos encontrado na classificação de Anawati. 21 ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne" . Revue Thomiste. Paris: vol. 51, pp. 407-440, 1951. Retomada em ANAWATI, G.C. Études de philosophie musulmane. Paris: J. Vrin, 1974, pp. 229-262. Lembramos que JANSSENS L. J. An annotated bibliography on Ibn Sina.Leuven: University Press, 1991 segue, em linhas gerais, a classificação de Anawati mas traz informações complementares e mais atuais no que tange às edições e às traduções das obras elencadas.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
16
IVº Período: estada em Al-Ray
Vº Período: estada em Hamadan
VIº Período: estada em Isfahan
Será de acordo com essa divisão que procuraremos indicar em que época
e em que condições foi escrita a enciclopédia Al- Šif«’, que na parte da física contém o
Kit«b al- afs, objeto de nosso estudo. Passemos, portanto, a nos deter no que concerne
à Al- Šif«’.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
17
CAPÍTULO I
A AL- ŠIFªŠIFªŠIFªŠIFª’ E O KITªªªªB AL-AFS
A Al -Šif«’ :
A Al- Šif«’ pode ser considerada "a mais importante obra de Avicena". 22
O seu título significa "A Cura". Esta obra foi escrita em árabe. De acordo com a divisão
da vida de Ibn S»n« nos seis grandes períodos, citados anteriormente, esta obra estaria
situada nos dois últimos períodos, isto é, nas suas estadas em Hamadan e posteriormente
em Isfahan."A obra, iniciada em Hamadan, foi terminada 10 anos depois em Isfahan,
quando Ibn S»n« tinha 50 anos."23 Neste caso, esta seria, portanto, uma das obras da sua
maturidade.
Ibn S»n« declara que a intenção da Al-Šif«’ é reunir todos os
conhecimentos mais significativos da filosofia e das ciências antigas que tornaram-se-
lhe conhecidos:
"Nosso objetivo neste livro - esperamos que nos seja concedido tempo
suficiente para terminá-lo e que a ajuda de Deus nos acompanhe para
compô-lo - é registrar nele a quintessência dos fundamentos que
verificamos nas ciências filosóficas atribuídas aos antigos, fundadas na
especulação ordenada e comprovada, e os fundamentos descobertos pelas
inteligências que se ajudam entre si para perceber a verdade (...)Procurei
registrar nele uma grande parte da arte (da filosofia) (...) Esforcei-me em
ser muito breve e me esquivar absolutamente das repetições. (...) Nos
livros dos antigos não se encontra nada que não tenhamos levado em
conta e não tenhamos incorporado neste nosso livro. Se não se encontrar
no lugar em que usualmente os estabelecemos, será encontrado em outro
lugar que me pareceu mais conveniente." 24
A Al- Šif«’ é uma obra enciclopédica, apresentando-se como um conjunto
ordenado que agrupa grande parte das ciências racionais da época. Ibn S»n« introduz
22- ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, p. 417, 1951. 23MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22. 24Al Shifa, Lógica, 1, Introdução, ed. árabe, pp. 9-10 in GUERRERO, R. R. Avicena Madrid: Ediciones del Orto. 1994, pp.53-54. Há também uma tradução deste trecho in MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
18
nesta obra suas próprias pesquisas e hipóteses pessoais, aceitando certas posições de
seus predecessores e rejeitando outras, não se tratando, pois, de um comentário aos
antigos, mas antes, de uma nova síntese dos conhecimentos e das ciências da época.
A envergadura dessa obra, com tal soma de assuntos filosóficos, permite
que Madkur afirme que "não encontramos nenhum livro de filosofia que se assemelhe a
ela"25 e ainda que "...poucos livros exerceram em determinado período da história uma
influência tão grande quanto a Al- Šif«’. Nessa obra-prima de Avicena aparece o duplo
aspecto da personalidade do autor: influência recebida e reação pessoal; simples
assimilação e contribuição original."26
Apesar de algumas controvérsias devidas ao fato de o próprio Ibn S»n«
declarar no prólogo de uma obra posterior denominada Mantiq Al-Masriqiyn 27 ( A
lógica da filosofia oriental)28 que as idéias da Al-Šif«’ não exprimiriam mais o seu
próprio pensamento,29 isto não representaria de modo algum qualquer diminuição que
fosse de seu valor. Incontestavelmente, segundo Bakós, não obstante esse debate, a Al-
Šif«’ marca o apogeu da obra de Ibn S»n« e "representa uma contribuição
importantíssima para a história da cultura da humanidade."30 Acrescente-se a isto o fato
de ter sido precisamente esta obra, ainda que apenas parcialmente, e não uma outra, que
irá posteriormente influenciar o pensamento, a ciência e a cultura ocidentais.
Poderíamos talvez dizer, até mesmo, que a Al- Šif«’ é , em certa medida,
um marco da história da ciência e do pensamento no qual há um certo afunilamento,
uma reunião, na qual tudo o que fôra produzido nesse âmbito tende a repousar, como
25MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22. 26Ibid, p. 28. 27GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médievale. Paris: Librarie d'Amérique et d'orient. Paris, 1940, p.18. 28ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, p. 421, 1951. 29Para a discussão desta questão tão controversa que divide em boa parte os analistas de Ibn S»n«, remetemos a GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médievale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient. Paris, 1940, pp. 1-53; CORBIN, H. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Gallimard,1986, Cap. V, item 4-Avicenne et le avicennisme-, pp. 238-247; e BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J.Vrin, 1972, p. 609-610. Na própria introdução da Al-Šif«’, Ibn S»n« refere-se a isso: “ Além desses dois livros tenho outro.(...) é o meu livro sobre A Filosofia Oriental. Por outro lado este outro livro (Al-Šif«’) é mais detalhado e está mais de acordo com os companheiros peripatéticos. Quem quiser a verdade sem rodeios deverá se dirigir àquele outro livro; quem quiser a verdade de maneira que se produza uma certa satisfação aos companheiros(...) não necessita do outro livro, então que se dirija a este (Al- Šif«’)”. Cf. GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ediciones del Orto, 1994, p.55 e PEREIRA, R. H. S. Avicena: a viagem da alma. Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, pp. 23-41. 30BAKOS, J. Psychologie d'Ibn Sina. Praga: Academie Tchécoslovaque des Sciences, 1956, p. VIII.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
19
síntese dentro de seus limites e, por outro lado, muito do que veio a ser realizado depois,
parte, também, dessa síntese, então realizada. Passemos, pois, a apresentar sua estrutura
interna.
Seguindo a classificação proposta por Anawati,31 encontramos a Al-Šif«’
catalogada entre as obras de filosofia geral, sob o título de nº 14. Há, ainda, uma
indicação lateral que menciona a existência de 105 manuscritos .
A Al-Šif«’ comporta quatro partes:
I) -Lógica,
II) -Física,
III) -Matemática,
IV) -Metafísica.
A Lógica compreende 9 livros:
1) Isagoge, 2) Categorias,
3) Perihermeneas, 4) Primeiros Analíticos,
5) Segundos Analíticos, 6) Dialética,
7) Sofística, 8) Retórica
9) Poética,
A Física compreende 8 livros:
1) A Física propriamente dita, 2) O Céu e o Mundo,
3) A Geração e a Corrupção, 4) As Ações e Paixões,
5) Os Meteoros 6) A Alma, o Kit«b al- afs, objeto
de nosso estudo
7) As Plantas, 8) Os Animais
A Matemática é disposta em quatro livros:
1) Geometria, 2) Aritmética,
3) Música, 4) Astronomia.
31ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, p. 417, 1951.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
20
E finalmente a Metafisica., em 10 livros.32
Importância histórica
As primeiras traduções, de algumas partes da obra de Ibn S»n«,33 foram
feitas primeiramente para o latim, tendo sido parte de um movimento mais amplo, que
objetivava fazer conhecer ao mundo cristão as principais obras gregas e árabes, ocorrido
nos séculos XII e XIII notadamente na Espanha34 na época do bispo Raimundo de
Toledo e posteriormente, tendo nesta cidade um importante centro. Estas traduções
representaram muito pouco do total da obra de Ibn S»n«, e não seria demais afirmar que
a Idade Média ocidental traduziu apenas uma pequena parte da Al-Šif«’, sendo que a
parte da lógica, por exemplo, representa apenas 1/14 do texto original árabe. 35
No caso específico da tradução latina do Kit«b al- afs a própria
dedicatória da tradução se tornou uma fonte histórica importante ao fornecer alguns
detalhes de como, quando e onde foi realizado este trabalho. Esta dedicatória,36
encontrada em mais de quarenta manuscritos,37 se faz em nome de um arcebispo de
Toledo de nome João: “ Johanni Reverentissimo Toletanae sedis Archiepiscopo et
Hispaniarum Primati”. Os dados deste documento revelam, ainda, algumas
circunstâncias da tradução, seu método e seus tradutores. Não se pode determinar com
32Não nos deteremos em fornecer a relação de edições que existem atualmente. Para as respectivas partes da Al-Šif«’ que foram editadas em árabe ou então traduzidas para outros idiomas, ver a relação fornecida por JANSSENS, J. L. An Annotated Bibliography on Ibn Sina (1970-1989). Leuven: University Press, 1991, pp. 3 - 13 . 33Não cabe aqui determo-nos nas condições específicas em que se deram as traduções das obras de Ibn S»n«. Nos limitamos a uma apresentação de caráter introdutório, notadamente do De Anima. Remetemos à coletânea de artigos sobre as traduções de Avicena no ocidente em D’ALVERNY, M.T. Avicenne en occident. Paris: J.Vrin, 1993; ao artigo de Danielle Jacquart, “ A escola de tradutores” em CARDILLAC, L. (org). Toledo, séculos XII-XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. pp. 155-167; e a AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus IV-V “Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction doctrinale par G. Verbeke.1972, pp.92-136. (As citações posteriores seguirão o seguinte formato: VERBEKE. Introd. IV-V, pp. 92-136). 34O meio toledano, neste período, compunha-se de muçulmanos, judeus e cristãos arabizados (moçárabes). Estes últimos, às vezes possuíam dois nomes: um árabe e um latino. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.92. 35ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, p. 417, 1951. 36O texto integral da dedicatória é reproduzido em VERBEKE. Introd. IV-V, pp.103-104. 37O texto do De Anima de Ibn S»n« nos é transmitido por 50 manuscritos: dezessete encontram-se na Itália (oito em Roma); treze na França (dez em Paris); seis na Inglaterra (três em Oxford); cinco na Alemanha; três na Bélgica; dois na Espanha (mas nenhum em Toledo); um em Leiden; um na Suíça; um na Suécia e um na Iugoslávia. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.105.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
21
certeza qual a real intervenção dos arcebispos ou de outros personagens conhecidos no
conjunto de traduções que teve Toledo como centro. O Bispo Raimundo é geralmente
considerado um mecenas cuja intervenção foi decisiva para a elaboração de traduções
do árabe para o latim, mas parece não ter havido, nesta época, uma “célebre escola dos
tradutores de Toledo”. Nessa medida a dedicatória do De Anima assume relevância ao
indicar algumas dessas condições. Mesmo assim, “os enigmas e as contradições”38 que
ela apresenta divide as opiniões, deixando ainda muitas lacunas abertas. De todo modo,
pela menção do nome do arcebispo citado na dedicatória como “João” sucessor de
Raimundo, é possível situar a elaboração da tradução do De Anima entre 1152, data da
morte de Raimundo e 1166, data da morte de João.
O método de tradução é apresentado na própria dedicatória como um
trabalho de equipe: “Eis, pois, este livro, traduzido do árabe conforme vossa orientação,
eu dizendo cada palavra em língua vulgar39 e o arquediácono Domenico a transferindo
e convertendo em latim.” No entanto, em que medida esta etapa oral era realizada, isto é
algo que não se esclareceu e não se sabe se o tradutor arabofone conhecia ou não o latim
e, se o tradutor latinista conhecia ou não o árabe. O que se confirma é que a tradução
contém muitos equívocos. A confrontação entre o texto árabe e o latino mostra inúmeras
distorções, dentre elas, confusões entre raízes árabes e erros de sintaxe devido à
estrutura maleável da língua árabe. O latinista da equipe é nomeado como Domenico
(Domingos) embora nenhum dos manuscritos forneça o seu nome completo. Apesar
disso, normalmente este nome é identificado com o de “Domenico Gundissalinus” ou
“Domenico Gundissalvi”, falecido em 1190 e que, na sua juventude entre 1152 e 1160,
talvez pudesse ter realizado este trabalho. Tal identificação , no entanto, não põe fim a
uma série de questões que ainda permanecem abertas em torno do latinista da equipe.
Depois do nome e dos títulos do arcebispo de Toledo, a dedicatória traz o nome do
personagem que escreve a própria carta e que se identifica como o arabofone da equipe:
“Avendauth Israelita Philosophus”.40 Há muitas hipóteses em torno de seu nome mas a
verdade é que não se sabe ao certo quem era o sábio “Avendauth” de Toledo por volta
de 1150. Uma das hipótese é que Avendauth seria “Abraham Ibn Daud”, sábio judeu
38VERBEKE. Introd. IV-V, p.94. 39 A língua vulgar era a língua românica. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 98. 40Há alguns manuscritos que citam o nome de Gerardo de Cremona como o tradutor do De Anima. No entanto, esta atribuição parece ter pouca credibilidade pois na mesma época, Gerardo estava traduzindo o Canon de Ibn Sina. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.102.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
22
que viveu em Toledo nessa época e que era conhecido por um tratado filosófico escrito
em árabe. No entanto, a afirmação de Verbeke mantém o tema na obscuridade: “Em
torno da personalidade de Avendauth, o mistério permanece”.41
Não obstante as inúmeras dificuldades de identificação dos tradutores e
até mesmo os vários equívocos nas traduções da obra de Ibn S»n«, estas foram
suficientes para despertar o espírito dos ocidentais medievais para novas considerações
de toda ordem, tornando-as referência praticamente presente em todas as formulações
medievais posteriores, tendo sido, pois, de suma importância no desenvolvimento do
pensamento ocidental .
Fundamentalmente a filosofia de Ibn S»n« foi conhecida pela Metafísica,
os tratados Do Céu, Dos Animais, Sobre a Geração e a Corrupção e o Livro VI dos
Estudos da Natureza (Sextus de aturalibus -Da Alma- Kit«b al- afs-). Além disso
foram traduzidos importantes fragmentos de lógica e das ciências naturais (Física). Este
grupo de escritos, mesmo que fragmentários, se comportou como o "primeiro conjunto
de doutrinas verdadeiramente constituído que chegava ao ocidente" 42 No caso do De
anima, considerado como o primeiro tratado de psicologia racional que penetrou no
Ocidente, seu impacto é verificado não só pelo seu próprio conteúdo mas também
porque apresentava, pela primeira vez, uma síntese do De Anima de Aristóteles.43
O choque, causado sobre a teologia cristã será enorme.44 Todos os nomes
da escolástica universitária cristã ( Boaventura, Alberto Magno, Rogério Bacon, Tomás
de Aquino, João Duns Scot, etc) não só se referem a Ibn S»n« e o citam, mas se apoiam
nele. E mesmo quando dele discordam, dão-se ao trabalho de discutir detalhadamente
suas teses. Para ficar num único exemplo, Tomás de Aquino o cita na Suma de Teologia
mais de 250 vezes.45 Provavelmente as bases da metafísica de Duns Scot seriam
impossíveis sem as concepções avicenianas sobre o ente e a essência.46 Teremos
41VERBEKE. Introd. IV-V, p.101. 42GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient, 1940, p.90. 43 Houve também uma tradução de Nemésio (De atura hominis) que também foi feita à mesma época, talvez alguns anos antes. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.102. 44A respeito de aspectos importantes da repercussão do pensamento de Ibn S»n« no ocidente veja-se GOICHON, A.M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient, 1940, cap. III p. 89 - 133. e DE LIBERA, A. La philosophie médiévale. Paris: P.U.F., 1993, p. 117 -120. 45Cf. FOREST, A. La structure métaphysique du concret selon Saint Thomas d’Aquin. Paris: J.Vrin, 1956, 2ª ed., pp 331-360: tabela de citações de Avicena por Tomás de Aquino. 46Cf. GILSON, E. “Avicenne et le point de départ de Duns Scot”, Archives d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge, 1927, pp. 89-149, V.2.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
23
oportunidade, mais adiante, de particularizar estas indicações no que se refere ao De
anima ou Liber Sextus de aturalibus, o Livro VI dos Tratados sobre a atureza,
o Kit«b al- afs.
O Kit««««b Al-afs.
Características Gerais:
Como havíamos alertado na apresentação deste trabalho, o Kit«b al- afs
não é um comentário ao texto de Aristóteles sobre o mesmo assunto, mas é antes uma
exposição sistemática das próprias idéias de Ibn S»n«. A intenção de Ibn S»n« é, antes
de mais nada, encontrar explicações para as realidades observáveis, o que lhe confere,
em certa medida, um perfil ‘empírico’ com raízes e inspirações aristotélicas. De modo
geral, os contornos do tratado acompanham os do mestre grego em seu De Anima mas
se desenvolvem em dois sentidos: no primeiro, aquilo que em Aristóteles está dito de
modo embrionário ou apenas potencial, adquire em Ibn S»n« contornos mais definidos e
classificações mais precisas; no segundo, Ibn S»n« se distancia do aristotelismo,
acrescentando elementos de outras fontes para assegurar suas posições a respeito da
alma. Além disso, é notável o desenvolvimento dado à parte fisiológica, aliando de
forma acentuada a tradição médica à tradição filosófica.
Entendemos que para termos uma noção melhor de como se apresenta
esta exposição de Ibn S»n«, diríamos que este, indubitavelmente, utiliza-se de teorias e
de idéias já consagradas, mas apenas na medida em que estas tenham uma função clara
para compor com o seu sistema e partilhar de suas convicções como um todo. Se, por
outro lado, tais idéias não se articularem com suas premissas, com certeza serão
criticadas e negadas em seu valor de verdade. Por essa razão, mesmo possuindo um
declarado respeito pela sabedoria dos antigos, e principalmente pela de Aristóteles, Ibn
S»n« parece se colocar numa postura que o possibilita ir além de tudo o que já fôra dito.
Nessas condições lhe é possível discutir com todos os que o antecederam,
concordar com eles e eventualmente discordar deles baseado fundamentalmente em suas
experiências ou conclusões que o amparam de maneira vigorosa. É nessa medida que
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
24
entendemos que Ibn S»n« pode se utilizar de inúmeras teorias consagradas tanto na
filosofia, como por exemplo, a doutrina da alma como forma do corpo, quanto na
medicina, como por exemplo, a doutrina do pneuma, procurando articulá-las com
elementos de sua fé muçulmana, como no caso da profecia, que constitui o ápice do
conhecimento. A articulação desses diversos elementos refletem a sua síntese própria.
Isso permite que se identifique a personalidade do autor de modo a diferenciá-lo
absolutamente de seus antecessores, sejam eles árabes ou gregos.
Importância histórica:
Talvez não seja despropositado começar relembrando que a questão
medieval a respeito da alma possui uma unidade de fundo que se desdobra em dois
momentos teóricos: um greco-latino ( agostiniano e boeciano) e outro peripatético ou
greco-árabe. Segundo Alain De Libera "Na tradição greco-latina que precede a difusão
dos textos peripatéticos, dominam: o modelo trinitário do pensamento e da alma,
produzido por Agostinho; a teoria da natureza e do funcionamento da intelecção
elaborada nos comentários lógicos de Boécio e o conjunto das proposições psicológicas
tiradas da exegese teológica cristã do Timeu. A teoria aristotélica da alma é
desconhecida ou negligenciada. O desenrolar integral da teoria medieval do pensamento
começa com a leitura de Ibn S»n« e dos escritos naturais de Aristóteles." 47
Ainda, indicando a importância do texto de Ibn S»n«, declara:
"Conhecido antes do De anima de Aristóteles, o De anima de Avicena fornece o âmbito
quase definitivo da teoria peripatética da alma.(...) A organicidade estabelecida entre
biologia, psicologia e teologia explica o sucesso do modelo aviceniano" 48
Segundo G. Verbeke,49 "o tratado de Avicena representou uma etapa
original e importante da reflexão sobre o homem". Diferentemente dos inúmeros
comentários medievais sobre o De Anima de Aristóteles existentes, que não estão
editados porque sequer valem a pena, o tratado de Ibn S»n« destaca-se destes pela
originalidade e por sua contribuição na evolução do pensamento filosófico e científico.
47DE LIBERA, A. A flosofia medieval. Rio de Janeiro: J.Zahar,1990, p. 83. 48Ibid, p.86 49VERBEKE Introd. I-III p.1.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
25
O De Anima de Ibn S»n« não é um comentário, mas uma exposição sistemática e uma
nova síntese. 50
Ibn S»n« repensa o homem a partir do desenvolvimento das ciências,
particularmente da medicina. O âmbito do tratado procura lidar com duas visões
aparentemente excludentes, mas que na obra de Ibn S»n« se harmonizam: a
materialidade e a imaterialidade do homem. Por um lado, desenvolve uma visão de alma
muito mais espiritualista que a de Aristóteles;51 por outro lado, fornece elementos que
possibilitam a articulação dos elementos fisiológicos tanto da anatomia do cérebro, da
estrutura dos órgãos, das funções do coração e fígado, do papel do sistema nervoso e
inúmeras outras caracterísiticas do homem visto como organismo corporal.
O aspecto espiritualista ao qual o homem está vinculado neste tratado de
Ibn S»n«, possibilitou, que ele fosse acolhido com simpatia pelo ocidente cristão,52 ao
menos num primeiro momento. O momento seguinte, foi menos favorável, a partir do
início dos debates a respeito da transcendência do intelecto agente, que ameaçaria,
segundo a visão dos teólogos cristãos, a integridade da pessoa humana.53 No entanto, a
maioria dos teólogos e filósofos da Idade Média latina frequentemente se apoiou sobre a
autoridade de Ibn S»n« para justificar as suas próprias doutrinas.54
Estes são alguns dos traços que indicam a importância da introdução do
De Anima de Ibn S»n« no ocidente medieval. Os desdobramentos posteriores dessa
influência, com muita probabilidade, estarão presentes nas teorias psicológicas que
adentraram o pensamento moderno, visto que os modernos, mesmo tentando uma
ruptura, se apoiaram ainda nos medievais.
Desse modo, ainda que de forma indireta, muitas formulações do
pensamento moderno podem encontrar sua mais longínqua inspiração nas teorias de Ibn
S»n«. Das formulações da teoria das idéias do empirismo inglês até o limite de algumas
intuições cartesianas, pode-se avaliar o quanto o pensamento de Ibn S»n« foi abrangente,
trazendo ao despertar do ocidente a sabedoria dos antigos de modo renovado e
consistente. Influenciou cientistas, teólogos e médicos, numa obra de amplos horizontes,
um dos pilares do impulso verificado na Europa no seu período de despertar e de maior
efervescência.
50Ibid, p.3. 51Ibid, p.1. 52Ibid, p.1. 53Ibid, p.1. 54Ibid, p.1.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
26
As edições:
Na classificação bibliográfica de Badawi encontra-se anotado que a
Física da Al-Šif«’ foi editada (em litografia) em Teerã em 1886. Particularmente no que
se refere ao Livro VI -Kit«b al- afs- pudemos identificar as seguintes edições:
1) RAHMAN, F. Avicenna's De Anima, Being the Psychological
part of Kitab Al-Shifa. London: Oxford University Press, 1960 ;
2) BAKÓS, J. Psychologie d'Ibn Sina. Praga: Académie
Tchecoslovaque des Sciences, 1956. (Acompanhada de uma tradução francesa)55;
3) AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus I-II-
III.”Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par
G. Verbeke.1972; AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus IV-
V.”Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G.
Verbeke.1968;
5) De anima et Philosophia Prima. Veneza, 1508. (Primeira edição
latina);
6) BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin,
1972, p. 672-674 e 678-679. (Tradução parcial, confrontada com a tradução de Bakós).
55Esta é a edição que, em princípio, utilizamos para realizar a maior parte desta pesquisa. Entretanto, recorremos frequentemente ao texto latino para dirimirmos dúvidas.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
27
A Divisão :
O Kit«b al- afs constitui-se de uma introdução e de cinco capítulos ,
sendo que cada capítulo é dividido em seções, variando seu número, conforme o
capítulo, de quatro a oito. Os capítulos possuem aproximadamente a mesma extensão,
exceto o capítulo III, que tem praticamente o dobro da extensão dos outros e é dedicado
exclusivamente ao estudo da luz e da visão.
Na Introdução, Ibn S»n« apresenta a posição deste livro em relação ao
conjunto da enciclopédia Al-Šif«’.
O Capítulo I é dividido em cinco seções.56 É dedicado principalmente a
definir a alma, refutar as doutrinas que Ibn S»n« considera falsas, estabelecê-la como
uma substância e iniciar a enumeração das diversas faculdades que a alma possui.
Primeira seção: Constatação da existência da alma e sua definição;
Segunda seção: Opiniões dos antigos e refutação;
Terceira seção: A alma como substância;
Quarta seção: A diversidade das faculdades;
Quinta seção: Enumeração das faculdades.
O Capitulo II trata da alma vegetal e dos sentidos externos de que é
dotado o animal.
Primeira seção: Determinação das faculdades da alma vegetal;
Segunda seção: Dos modos de percepção que possuímos;
Terceira seção: Do tato;
Quarta seção: Do paladar e do olfato;
Quinta seção: Da audição.
O Capitulo III, como dissemos, é o mais longo e se refere apenas à luz e
ao sentido da visão.
Primeira seção: Da luz, da diafanidade e da cor;
Segunda seção: Da claridade e do raio luminoso;
Terceira seção: Refutação de doutrinas sobre a claridade;
Quarta seção: Reflexão sobre as doutrinas enunciadas sobre as cores;
56Os títulos das seções foram adaptados, indicando apenas o tema principal.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
28
Quinta seção: Das doutrinas sobre a visão;
Sexta seção: Refutação de doutrinas sobre a visão;
Sétima seção: Solução das dúvidas enunciadas;
Oitava seção: Da causa pela qual uma coisa é vista como duas coisas.
O Capitulo IV, o que mais nos interessa neste trabalho, trata dos sentidos
internos.
Primeira seção: Enunciado universal sobre os sentidos internos no
animal;
Segunda seção: Da faculdade formativa e cogitativa;
Terceira seção: Da faculdade que se lembra e da estimativa;
Quarta seção: Das faculdades motoras.
O Capítulo V apresenta fundamentalmente as faculdades da alma
racional, terminando com a explicação dos orgãos que pertencem à alma.
Primeira seção: Ações e paixões da alma humana;
Segunda seção: Prova da subsistência da alma racional;
Terceira seção: Relação da alma humana com os sentidos e o início do
ser da alma;
Quarta seção: De que a alma humana não se corrompe nem se transmite;
Quinta seção: Do intelecto agente e paciente;
Sexta seção: Dos graus de inteligência e o intelecto santo;
Sétima seção: Doutrinas herdadas dos antigos;
Oitava seção: Explicação dos órgãos que pertencem à alma.
Passaremos, em seguida, a apresentar as principais teses de Ibn S»n« no
que se refere aos sentidos internos. Para fazer isto é, no entanto, necessário situá-lo no
conjunto da obra, seguindo o próprio encadeamento dado pelo autor. Não pretendemos
apresentar por igual todos os capítulos e seções, sendo o que não diz respeito
diretamente aos sentidos internos mencionado apenas a título de melhor localização e
compreensão destes. Na realidade, apresentamos uma leitura do Cap. I, como
preparação para a exposição da doutrina acerca dos sentidos internos (Cap. IV). Este
será acompanhado de maneira mais detalhada.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
29
CAPÍTULO II:
OS SE�TIDOS I�TER�OS �O KITªªªªB AL-AFS
Prolegômenos: o quadro geral do Kit««««b al-afs (Cap.I)
Introdução:
A abertura do Livro VI se dá com a frase:
“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.”57
Em sua introdução, Ibn S»n« fornece um quadro geral dos livros que já
foram escritos na parte da Física58, assim como dos demais livros que serão sucessivos a
este.59A hierarquia dos seres físicos pode ser verificada através da própria forma
ascencional com que são divididos e apresentados os livros e seus respectivos temas.
No primeiro livro tratou das coisas comuns às coisas naturais (Física); 60
em seguida, no segundo livro tratou a respeito do céu e do mundo sublunar, dos corpos
e dos movimentos primeiros no mundo da natureza (De Caelo et Mundo). Indica que
nos livros três e quatro, falou-se sobre a geração e a corrupção dos corpos e dos
elementos dos corpos (De Generatione et Corruptione e De Actionibus et Passionibus
universalibus quae fiunt ex qualitatibus elementorum) e sobre as qualidades primeiras e
suas paixões e sobre as misturas que nascem disso. O livro quinto, trata das coisas
engendradas, tendo como objeto as coisas sólidas e o que não tem nem sensibilidade
nem movimento voluntário visto serem as mais antigas dentre elas e as mais próximas
delas, enquanto engendradas a partir dos elementos (De Mineralibus). Ora, da ciência
natural restou o estudo relativo aos vegetais e aos animais sendo, estes, coisas
engendradas que possuem, não apenas a simples combinação dos elementos, mas uma
combinação tal que nos permite diferenciá-los dos outros corpos. Isto se dá porque
possuem não só matéria, mas também alma, que lhes confere essencial diferença na
57Int, p. 3. As citações do texto original seguirão o seguinte formato: I, 2, 35, significando respectivamente Capítulo I, Seção 2, página 35 da edição de Jan Bakós. 58A filosofia da natureza (scientia naturalis), na Al-Šif«’, compreende oito tratados. O De Anima é o sexto. 59Não são citados os 9 livros da primeira divisão da Lógica. A sequência, iniciada pelos Livros da parte da Física, da parte da Matemática e terminando com os da Metafisica e a ciência dos costumes confirma, de modo geral, a divisão de Anawati (Cf. supra pp. 16-17). Esta divisão não é original, visto que a encontramos em Aristóteles nos Meteorológicos (338ª -339ª). No entanto, no que se refere à Física, Ibn Sina insere alguns tratados pseudo-aristotélicos. 60Isto é, a física propriamente dita em que estuda sobretudo o movimento, o tempo e outras questões relativas ao mundo material. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.9.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
30
medida em que são dotados de sensibilidade e movimento, nascimento, crescimento e
geracão. Portanto, o livro sexto (Sextus de naturalibus) tratará da alma. Assim, Ibn S»n«,
como Aristóteles, classifica a psicologia entre as ciências naturais, sendo ela um ramo
da física, tendo por objeto a alma do ser animado, do ζωον εµψυχον. Ibn S»n« não faz
referência aos dois últimos livros depois do De Anima mas, são eles: o estudo das
plantas (De Vegetabilibus) e dos animais (De Animalibus)61 O estudo da vida,
começando no sexto livro, se inicia pela análise da alma naquilo em que há de comum
no homem, nos animais e nas plantas. Por isso os tratados sobre os vegetais e animais
vêm depois do Livro VI. Assim como o estudo da Física introduz o estudo do mundo
material, este tratado introduz o estudo do mundo biológico.62
Αpós explicar os procedimentos adotados para dividir o estudo da alma
no que concerne ao vegetal, ao animal e à alma humana, Ibn S»n« indica que irá iniciar
este estudo primeiramente pelas informações relativas à alma, e depois pelas
informações relativas ao corpo, visto que considera essa sequência melhor para o
ensinamento do que o contrário.
Na medida em que o conhecimento de toda coisa é primeiramente o que
se refere à sua forma, justificar-se-ia o porquê de se falar primeiramente da alma e
depois do corpo. No entanto, Ibn S»n« não considera que essa sequência seja necessária,
afirmando que não entrará em disputa se alguém decidir inverter a sequência proposta.
No nosso caso estamos totalmente isentos de tal disputa com Ibn S»n«, pois optamos por
seguir o quanto possível a sua sequência, procurando relatar passo a passo as suas
principais considerações.
61Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.9. 62Ibid. p.9.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
31
CAPÍTULO PRIMEIRO:
Da ciência da alma em cinco seções
Primeira seção: Constatação63 da alma e sua definição enquanto alma.
Esta primeira seção apresenta duas considerações básicas para o estudo
da alma: a constatação da existência da alma e sua definição como alma.
A primeira coisa de que é preciso falar é a constatação da existência da
alma. Isso pode ser feito a partir do fato de que observamos não apenas corpos, mas
determinados corpos que sentem e se movem espontaneamente, se nutrem, crescem e
engendram semelhantes. Ora, esses corpos não podem ser o que são, apenas pela sua
corporeidade, pois se assim fosse, a simples corporeidade seria suficiente para os dotar
dessas características de sensibilidade e movimento espontâneo, nutrição, crescimento e
geração; o que, na verdade, não é observado, visto que há corpos que não possuem essas
particularidades.64 Resta, pois, que existem princípios outros que a própria corporeidade
dos corpos que lhes garantam as características mencionadas. É justamente isso, que é o
princípio do qual procedem essas ações espontâneas, que chamamos alma.
Isto a que chamamos alma é parte da constituição das coisas que
afirmamos possuí-la. Pois, sendo as coisas, que afirmamos possuírem alma, corpos e sua
existência enquanto vegetal ou animal só se perfazendo em razão da existência dessa
nelas, é forçoso que esta seja parte inerente de sua constituição.
Mas é necessário definir como ela participa dessa constituição, visto que
as partes da constituição de uma coisa podem ser de duas categorias: ato e potência. Se
a alma fosse da segunda categoria, isto é, potência como é o corpo, seria necessário
algum outro tipo de ato que realizasse a perfeição do animal e do vegetal. Mas tal
perfeição é justamente a alma, que realiza este acabamento. Desse modo, a alma é isso
pelo que o vegetal e o animal tornam-se vegetal e animal em ato. É forçoso que ela seja
63 O termo a\_f[ - itb«t - encontra sua melhor tradução como ‘constatação’, ‘afirmação’. (Cf. REIG, D.
Dictionaire Larousse arabe-français. Paris: Larousse, 1987, p. 74 ). A tradução latina adotou o termo ‘afirmação’ (Cf. AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus I-II-III , p. 14 e Léxique arabo-
latin, p. 299). Bakós adotou o termo ‘preuve’ - prova, mas este cabe melhor ao termo ²\·z^ - burh«n -
(Cf. ISKANDAR, J. I. Avicena - A origem e o retorno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 198 e GOICHON, A. M. Lexique de la langue philosophique d’Ibn Sina. Paris: Desclée de Brouve, 1938, p. 21, n. 47.) Além disso a argumentação de Ibn S»n«, nesta seção, confirma tratar-se mais de constatação do que de prova. 64Como há seres corpóreos que são inanimados, o corpo enquanto tal não pode ser o princípio da vida. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p.23.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
32
uma forma e não um corpo, pois se assim fosse, o próprio corpo seria sua forma, o que
não se pode sustentar. Assim sendo, pode-se afirmar que: “ (...) é claro que a essência da
alma não é um corpo, mas parte do animal e do vegetal; ela é uma forma, ou como
forma ou como perfeição .” 65 A partir dessas análises parciais, podemos estabelecer em
que sentido, podemos chamar a alma de faculdade, forma ou perfeição.
Podemos denominar a alma como sendo uma faculdade em vista dos atos
que dela procedem, o que significa tanto as ações de crescimento, geração e nutrição,
quanto do próprio movimento e da sensibilidade. Do mesmo modo, ainda, podemos
chamá-la faculdade, mas num outro sentido, que não se refere propriamente a esse tipo
de atos que mencionamos, mas a certas formas sensíveis e inteligíveis que se
aproximam dela. Nesse segundo caso, então, estaríamos diante não só da simples
animalidade, mas de outras funções próprias dos processos de sensação em conexão
com a intelecção.
Podemos também chamá-la forma relativamente à matéria que ela tomou
por receptáculo, sendo que, desse modo, o composto matéria e forma se torna uma
substância 66 vegetal ou animal.
A alma pode ser chamada também de perfeição relativamente ao
acabamento do gênero em espécie realizado por ela, visto ser a natureza do gênero
incompleta e indeterminada enquanto a natureza da diferença não a colocar em ato
reunindo-se a ela; sendo que a espécie é acabada somente quando a diferença é assim
reunida.67 Ora, se a espécie é ato em relação ao gênero, se a perfeição é o acabamento
do gênero pela atualização da espécie através dos seres particulares, e se a alma , como
forma, é esse acabamento, logo, a alma é perfeição, no sentido de que, como forma em
relação à matéria, aperfeiçoa o gênero, atualizando-o na espécie, pelos particulares.
Dessa maneira, temos então quais os sentidos que podem ser atribuídos à
denominação de alma. Num primeiro sentido pode ser chamada de princípio eficiente e
faculdade motora em relação ao movimento; num segundo sentido, pode ser
65I,1,6. A tradução literal do árabe é “ como forma ou como perfeição” - − \°¨«\§ ¼[ ºy½ˆ«\¨ . O
texto latino traduziu este final como “quase forma ou quase perfeição” entendendo a partícula ‘¨‘, antes
do substantivo, como uma comparação (“ como se fosse uma forma ou como se fosse uma perfeição ” ) permitindo, nesse caso, que se entenda forma não no mesmo sentido aristotélico, mas com uma leve nuance, visto que, para Ibn Sina, sendo a alma uma substância imaterial como pode ser considerada a forma do vivente que é o homem? Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p.23. 66Trata-se do συνολον de Aristóteles. Cf. Bakós n. 2. 67Pode-se dizer que a alma é uma perfeição, pois o gênero recebe dela sua determinação, enquanto que a espécie é constituída por ela. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 24.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
33
denominada forma em relação à matéria; e ainda pode ser chamada de perfeição e fim
em relação ao todo. Portanto, deve-se considerar que, quando dizemos que a alma é
forma, isto decorre do fato de que sua existência está em relação com a matéria, ao
passo que a perfeição exige uma relação com a coisa completa da qual procedem os
atos. Assim, quando dizemos perfeição estamos afirmando que a alma é perfeição
quanto à sua relação com a espécie. Sendo, pois, preferível referir-se à alma como
perfeição, pois, quando dizemos perfeição, isto inclui as duas idéias, isto é, forma e
faculdade. Pois a alma, sob o aspecto da faculdade, pela qual se conclui a percepção do
animal é uma perfeição e sob o aspecto da faculdade da qual procedem os atos do
animal, ela é ainda uma perfeição; a alma isolada é uma perfeição e a alma que não é
isolada é uma perfeição. Assim, pode-se estabelecer a perfeição como o conceito mais
próprio para a alma. Ao dizer que a alma é perfeição, Ibn S»n« quer dizer que a
fisionomia característica e as atividades particulares do ser vivo vêm do princípio
psíquico: este não é somente uma fonte de movimento ou de atividade cognitiva, é
simultaneamente os dois e está na raiz que constitui a estrutura própria dos seres
vivos.68
Resta ainda, no entanto, verificar que, não obstante o fato de chamá-la de
perfeição ser o mais apropriado, ainda assim isto não se dá em um só sentido apenas,
mas ao menos em dois níveis, porque existem duas espécies de perfeição: uma perfeição
primeira que é aquela pela qual a espécie se torna espécie em ato; e uma perfeição
segunda que ocorre a partir das ações e das paixões da primeira perfeição. Portanto, a
alma, em vista da atualização da espécie é uma perfeição primeira; e tratando-se do
exercício, das paixões e ações vindas da espécie dessa coisa, é uma perfeição segunda.
Mas como a perfeição segunda não pode existir sem a primeira, podemos afirmar,
finalmente, que o que mais caracteriza a alma, visto ser a definição mais geral, que
abarca todas as outras é, ser perfeição primeira: “ A alma que encontramos é, então,
perfeição primeira de um corpo natural, provido de órgãos, que pode realizar os atos da
vida.” 69
Indica-se, ainda nesta seção o tema da substancialidade da alma. Apesar
da definição da alma como perfeição, com isto não conhecemos se ela é ou não uma
68 Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 24. 69I,1,10. Esta definição aproxima-se bastante da de Aristóteles no De anima II 412 a 20, na qual afirma a alma como a forma de um corpo natural tendo a vida em potência, e II 412b5 em que afirma a alma como enteléquia primeira de um corpo natural organizado.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
34
substância, porque a idéia da perfeição indica aquilo pelo que o animal se torna animal
em ato e o vegetal, vegetal em ato. Esse tema, embora mencionado nesta seção, será
desenvolvido apenas na seção seguinte.
Ao final desta seção, encontra-se um outro meio pelo qual o homem pode
constatar a existência da alma, que fôra anunciada na sua primeira frase: “ Dizemos que
a primeira coisa que devemos falar é a constatatação da existência disso que se chama
alma.” 70 Embora esta constatação tenha sido realizada através da observação dos
corpos animados, Ibn S»n« fornece uma nova via para esta constatação. De todo modo,
parece claro que a preocupação que precede todas as outras é justamente a de
estabelecer, de modo irrefutável, a constatação da existência daquilo que se vai estudar:
a alma.
Esta via de constatação ficou conhecida como a alegoria do “homem
suspenso no espaço” 71 e apresenta-se da seguinte maneira:
“É preciso que um de nós conceba que foi criado de uma só vez, e criado
perfeito, mas que sua vista foi velada, privada da intuição sensível das
coisas exteriores; que ele foi criado caindo de cima para baixo no ar ou
no vácuo, de modo que a constituição do ar não o atingisse de tal maneira
que ele devesse senti-la; que seus membros estivessem separados, não se
encontrassem nem se tocassem. Em seguida ele refletirá: pode ele afirmar
a existência de sua essência sem duvidar da afirmação de que ele próprio
existe e não afirmar, malgrado isto, nem a extremidade de seus
membros, nem o interior de suas entranhas, nem o coração, nem o
cérebro, nem nada de exterior ? Melhor: ele afirmará sua essência, mas
não afirmará nela nem comprimento, nem largura, nem profundidade. E
se neste estado lhe fosse possível imaginar-se uma mão ou um outro
membro, não o imaginaria como parte de sua essência nem condição em
sua essência. Ora, tu sabes que o que é afirmado é distinto do que não é
afirmado e que o que o deduz é distinto do que não o deduz. Logo, a
essência cuja existência foi afirmada possui uma propriedade, na medida
70 I, 1, 5. 71 Esta também é referida como a “alegoria do homem voador ” ou o “Cogito” de Ibn S»n«, no qual o homem, sem a intermediação do corpo, se percebe existente e pensante. Além disso, leve-se em consideração que essa alegoria era muito conhecida na Idade Média. Cf. Bakós n. 58. Ver a respeito: GILSON, E. 'Les sources greco-arabes de l'augustinisme avicennisant', pp. 39-53. Segundo GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, p. 42 a base do argumento é neoplatônica.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
35
que esse homem é nele mesmo distinto de seu corpo e de seus membros
que não eram afirmados. Então, aquele que afirma, possui um meio para
o afirmar, em virtude da existência da alma, como algo distinto do corpo,
ou melhor, sem corpo. Certamente esse homem o conhece e o percebe, e
se ele o tivesse esquecido, teria necessidade de ser advertido.” 72
Pode-se considerar que esta seria uma visão bastante original de Ibn S»n«, na medida em
que não se confunde nem com a doutrina de Aristóteles e nem com a de Platão e dos
neoplatônicos. Para Aristóteles, por um lado, a alma não seria independente do corpo,
não tendo uma vida própria e, por outro lado, não seria dotada de preexistência
conforme Platão e os neoplatônicos; para Ibn S»n« a alma tem o começo de seu ser
juntamente com o corpo e a partir de então não está sujeita à corrupção.
Com essa alegoria encerram-se as três considerações importantes e
fundamentais para o estudo da alma: a constatação de sua existência, sua definição, e o
uso do termo alma em suas diversas aplicações.
Segunda seção: Menção do que os antigos 73 disseram da alma e de sua substância e
refutação.
Assim como Aristóteles, Ibn S»n« dedica uma seção especial para expor e
refutar o que os antigos disseram da alma e de sua substância. No entanto, em referência
ao conjunto da obra, a colocação dessa seção difere daquela adotada por Aristóteles. O
Estagirita inicia a sua obra, apresentando primeiramente, um pequeno estudo sobre o
método e as dificuldades metodológicas de se estudar a alma. 74 Após esse prefácio
metodológico, passa a apresentar e a criticar as teorias anteriores sobre a alma 75 sendo
que, só depois de todo esse trajeto, apresenta a sua própria definição de alma.
No caso de Ibn S»n«, encontramos diferentemente, como vimos, uma
definição categórica já na primeira seção, não havendo nenhum tipo de preocupação em
discutir qualquer tipo de questão metodológica. Só depois de fornecer sua própria
definição de alma, passa então a se ocupar com o exame da doutrina dos antigos.
Os nomes que estão, direta ou indiretamente, envolvidos nessa relação de
opiniões e posições adotadas entre os antigos, podem ser reduzidos a dois principais
blocos: por um lado, o dos que consideravam a alma como um princípio incorpóreo e,
72I, 1, 12-13. 73 Os antigos são os predecessores de Aristóteles. 74 De anima, Livro I, 1.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
36
por outro lado, os representantes da posição que sustentava que a alma seria um
princípio corpóreo. Sem considerações mais específicas sobre tais posições, poderíamos
enumerar os principais nomes como sendo os de Tales, Anaximandro, Anaxímenes,
Heráclito, Demócrito, Empédocles, os pitagóricos, Platão e Xenócrates. 76
O conjunto deste exame das doutrinas dos antigos é bastante breve, 77 o
que somado ao que disséramos no início desta seção, indicaria uma clara preeminência
em Ibn S»n« de estabelecer muito mais as suas próprias convicções do que de abrir uma
discussão mais detalhada com outras posições filosóficas. Indica também uma postura
metodológica diferenciada, pois Aristóteles começa apresentando as aporias ao passo
que Ibn Sina procede mais de modo expositivo.
Mesmo assim, inicia o exame a partir de um roteiro geral, afirmando que
as opiniões dos antigos divergiram consideravelmente sobre a maneira de definir a
alma, tendo se diferenciado segundo a via que tomaram. Alguns, por exemplo,
tomaram a via, em direção à ciência da alma, do ponto de vista do movimento; outros
procuraram estabelecer a prevalência de uma análise a partir da percepção; outros,
ainda, procuraram aproximar as duas vias e, além desses, houve outros que
identificaram o estudo da alma com o estudo da vida. Algumas dessas inúmeras
posições adotadas pelos antigos,78 passam, então, a ser apresentadas de modo sumário,
procurando-se destacar suas características mais distintivas.
Dentre as principais posições, destacamos, a dos que consideraram a
alma como móvel por si mesma, sendo um motor primeiro;79 ou então a dos que
afirmaram que ela seria uma substância incorpórea, preexistente; ou ainda a dos que
defenderam a posição de que a alma poderia ser reduzida a um dos elementos, como
por exemplo o fogo ou a água; ou então, dos que disseram que a alma seria um
75 De anima, Livro I, 2 a 5. 76Cf. Bakós n. 66. 77 Ocupa apenas uma seção ( 7 pp. na tradução de Bakós); Aristóteles dedica a esta questão a maior parte do Livro I do De Anima. 78Para um estudo mais detalhados da discussão que se estabelece vide VERBEKE. Introd. I-III, pp. 15-22. 79O autor ao qual Ibn S»n« se refere é manifestamente Platão que no Fedro define a alma como um princípio que se move perpetuamente a si mesmo. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 16.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
37
corpo80; além dos que sustentaram a opinião de que a alma seria o resultado de uma
mera composição dos elementos; ou então dos que asseveraram que a alma seria uma
espécie de harmonia. Ibn S»n« deixa claro o que pensa acerca dessas doutrinas:
“Estas são, em relação ao tema da alma, as doutrinas referentes aos
filósofos mais antigos, mas todas são falsas. Quanto aos que se
apegavam ao movimento, o primeiro absurdo que os acompanha é que
esqueceram o repouso.” 81
A explícita afirmação da falsidade dessas doutrinas perpassa toda a seção. Ibn S»n«
apresenta as refutações a partir de duas vias: as contradições internas que essas
doutrinas apresentam, ou então as suas próprias conclusões e formulações, sejam elas
empíricas ou lógicas que , ao se confrontarem com as doutrinas então criticadas, acabam
prevalecendo e derrubando-as.
Ainda assim, parece haver uma preferência de Ibn Sina em demonstrar a
falsidade e a fragilidade dessas opiniões dos antigos a partir da apresentação da sua
própria doutrina, que será exposta ao longo dos capítulos seguintes. É o que se
depreende da passagem final da seção:
“A falsidade de todas essas opiniões será em breve manifesta de outros
modos, nas suas falhas, pelo que conheceremos quanto ao estudo da
alma.” 82
Terceira seção: De que a alma é intrínseca ao predicamento da substância. 83
"Certamente, tu sabes pelo que precedeu para ti, que a alma não é corpo,
e se fosse estabelecido para ti que a uma certa alma convém o estado
separado com a subsistência de sua essência, não te ocorreria uma dúvida
sobre o fato de que ela fosse uma substância." 84
Com esta frase, na abertura da seção, introduz-se a questão principal que será colocada,
isto é, a determinação da substancialidade da alma.
80Certamente Demócrito e Leucipo, que asseveraram que a alma seria composta de átomos esféricos que estariam em perpétuo movimento e que se renovam sem cessar graças à respiração, sendo que, estando em contínuo movimento, esses átomos são capazes de mover outra coisa. CF. VERBEKE. Introd. I-III, p. 16. 81 I, 2,15. Acerca dos que partiram da percepção, ver p. 16. 82 I, 2, 19. 83 Pode-se dizer que esta seção apresenta-se como uma continuação direta da primeira, a qual fôra interrompida pela refutação das doutrinas dos antigos. 84 I, 3, 20.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
38
É próprio da substância não subsistir em nenhum sujeito de inerência. Ao
contrário, é próprio do acidente inerir a uma dada substância. O que está ligado
necessariamente a um sujeito de inerência não pode existir por si mesmo, sendo privado
da independência necessária que caracteriza uma substância; existindo, portanto, de um
modo acidental, isto é, necessariamente ligado a uma dada substância.
Assim, torna-se necessário distinguir o modo pelo qual a alma faz parte
do composto vivente, visto que há inúmeras propriedades que fazem parte do
equipamento do vivente mas não pertencem de modo algum a sua estrutura substancial,
sendo apenas acidentais. É preciso verificar se a alma é tambem uma dessas
propriedades acidentais do corpo, que não poderia subsistir quando da ausência deste;
ou se, ao contrário, ela existe por si mesma, não tendo inerido no corpo, mas tendo sido
uma substância dada conjuntamente com o corpo, podendo, desse modo, caracterizar-se
pela independência da da matéria corpórea, em certos casos.
A simples afirmação de que ela é uma parte do composto vivente,
portanto, não descarta, ainda, a possibilidade de que ela estivesse ligada ao corpo de
modo acidental, isto é, tendo sido reunida à matéria corporal como o acidente se reúne a
um sujeito de inerência previamente dado. Uma das consequências dessa hipótese, seria
que, após a dissolução do sujeito de inerência da alma, isto é, a matéria corpórea, não
seria possível que este acidente, nesse caso hipotético, a alma, pudesse subsistir. Definir
de modo mais preciso as relações que se estabelecem no composto corpo e alma é, nessa
medida, fundamental para estabelecer a alma como substância. Afirmar que a alma é
uma substância seria, então, ir além da afirmação anterior de que ela é perfeição
primeira, pois:
"...quando dizemos perfeição, não sabemos ainda se a alma é uma
substância ou não, porque a idéia da perfeição é a coisa pela existência da
qual o animal se torna animal em ato e o vegetal se torna vegetal em
ato."85
Desse modo, já se preludia, a intenção de ultrapassar a definição da alma
como perfeição no sentido da forma atualizada do corpo, o que não seria suficiente para
a estruturação básica de sua teoria. É necessário insistir na alma como a perfeição
primeira, não como simples parte do composto matéria e forma, mas algo além disso,
isto é, a alma como a artesã da matéria, o que só poderia ser possível se ela fosse uma
85 I, 1, 7-8.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
39
substância, algo além da forma do composto matéria e forma. Algo que vem com o
composto, mas que é além dele. Algo que é forma mas que também é alguma coisa além
disso.
Para iniciar a argumentação deve-se partir da constatação básica de que a
formação dos corpos origina-se da mistura dos elementos. Visto que dessas misturas
resultam corpos orgânicos e inorgânicos, é sómente graças à presença da alma que um
corpo tornar-se-á o corpo de um ser vivo. Trata-se, portanto, sempre de corpos naturais,
de organismos. Não haveria sentido em se falar de alma em corpos artificiais,
inanimados, pois isso resultaria numa clara contradição, visto que “sem a alma, o
sujeito de inerência não seria mais um ser vivo, mas um sólido que não possuiria a
vida". 86
Em última análise deve-se dizer que "a alma constitui o seu sujeito de
inerência próximo e o faz existir em ato ".87 Isso importa na medida em que se
estabelece que a alma não é a perfeição primeira de qualquer corpo, mas precisamente
de um corpo natural vivo, provido de órgãos, capaz de realizar, graças a ela, os atos da
vida, sendo que a própria alma é o princípio dessa geração, como vemos nesta
passagem:
" (...) a alma é causa da geração do vegetal e do animal, segundo a
mistura que eles possuem. (...) ela é o princípio da geração e do
crescimento, sendo absurdo para ela que o sujeito de inerência próximo
seja o que está em ato, se isso não for pela alma. A alma é, pois, a causa
de sua maneira de ser assim." 88
Pode-se, então, atestar que “a existência da alma no corpo não é como a existência do
acidente no sujeito de inerência.” 89 Por essa razão “a alma é perfeição como
substância, e não como acidente." 90
Sob esse aspecto, a alma não é, de modo algum, uma consequência da
mistura, não sendo, pois, acidental. Ela tem o início no ser juntamente com o corpo mas
não é causada por ele. Com isso pode-se entender que não se trata de haver algo já
constituído que recebe a alma como um acidente, porque é justamente a alma que
86Cf. Bakós, n. 127. 87 I, 3, 20. 88 I, 3, 20. 89 I, 3, 21. 90 I, 3, 23.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
40
constitui esse algo, atualizando-o. Desse modo descarta-se a possibilidade de que o
princípio da alma seja o corpo.
Assim, o equipamento do corpo também provém da alma. Não é o corpo
com seu equipamento que é simplesmente dado à alma sem que essa intervenha em sua
constituição, 91 porque a alma não organiza algo que lhe fôra dado anteriormente. O
corpo não lhe é "dado" com a organização que lhe é própria. O organismo corporal só é
o que é graças à alma; se ele é equipado para servir de instrumento no exercício das
atividades da vida, ele o deve à alma. Por isso pode-se dizer que esta constitui o seu
próprio sujeito de inerência em ato e por isso é a perfeição de um sujeito que é
constituído por ela, pois, do contrário, deveria ter havido uma outra perfeição primeira
que o tivesse atualizado, o que não pode ser, pois isso foi realizado justamente por ela.
Se assim não fosse, a alma sobreviria a um sujeito já formado e ela só poderia ser uma
propriedade acidental. 92
Um dos conceitos mais determinantes para que isso se torne mais claro é
o conceito da alma como artesã. Pois ela, ao realizar na mistura que ela tomou por
receptáculo, a confecção de todos os seus elementos vitais, é a artesã da espécie,
atualizando o gênero naquela matéria específica, tornando-a animada:
"Logo, a alma é então a perfeição de um sujeito de inerência, e esse
sujeito subsiste pela perfeição. A alma é , além disso a que aperfeiçoa a
espécie, ela é a artesã desta." 93
Ibn Sina crê poder demonstrar a substancialidade da alma pelo que se passa com o ser
vivo quando de sua morte: se a alma se separa do corpo, este não permanece mais da
mesma espécie, revestindo-se de uma outra forma; se a alma não intervisse na
organização do corpo, não haveria razão para que essa estrutura se perdesse depois da
morte; não tendo sido produzida pela alma, ela poderia se manter mesmo ao se separar
dela, 94 mas isto não ocorre justamente porque
"(...) a matéria animada só é o que é por uma mistura própria e por uma
disposição própria, sendo que a matéria só resta existente em ato nessa
91 VERBEKE. Introd I-III, p. 30. 92 Ibid., p.30. 93 I, 3, 23. 94 VERBEKE. Introd I-III, p. 30
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
41
mistura própria enquanto a alma permanece nela, pois é a alma que a
coloca nessa mistura." 95
No que se refere à inspiração aristotélica, 96 a afirmação da alma como substância se
afasta da doutrina de Aristóteles no De Anima: 97
"A alma é, para Aristóteles, substância somente enquanto é a enteléchia
de um corpo natural que possui a vida em potência, não sendo separável
do corpo, nem sendo imortal, mas em conjunção com o corpo é o
princípio formador do organismo." 98
Não há dúvida de que Ibn S»n«, apesar de iniciar por uma definição aristotélica, termina
por lhe atribuir este novo sentido, no qual “a alma não é só a forma do corpo , mas uma
substância em si mesma, porque não existe no corpo como em um sujeito, mas subsite
por si mesma”. 99
Talvez por essa razão, acentuando mais a distinção entre corpo e alma,
ele se sirva mais da noção de perfeição do que da noção de forma, insistindo sobre o
caráter substancial da alma.100 Ibn S»n« insere-se num desenvolvimento na linha dos
neoplatônicos, dando um significado original e sensivelmente mais espiritualista 101 à
alma, na medida em que afirma a subsistência da alma (racional) após a dissolução do
corpo. Desse modo, Ibn S»n« passa gradativamente da unidade do homem aristotélico do
De Anima, como composto de corpo e alma, à dualidade do homem neoplatônico, na
qual a sua verdadeira substância e realidade é a alma. 102
Não obstante não haver, ainda, definido os três tipos de alma (vegetal,
animal e racional), ao final desta seção Ibn S»n« explica que a definição nominal de
alma pode se dar de modo absoluto ou por analogia. Tomado em sentido absoluto o
termo “alma vegetal”, “alma animal” e “alma racional” indica a unicidade do ente
concreto que a possui. A partir desta afirmação, apresentam-se dois objetivos: o
primeiro é mostrar que o animal não vem do vegetal, mas é a mistura diferenciada que é
a responsável por isso; o segundo é mostrar que a alma é uma unidade, não sendo
95 I, 3, 20. 96 "Sobre a posição de Aristóteles no que concerne às relações da alma em geral com o corpo, ver Rodier, II, 27-30. Cf. ARISTOTE. De L'ame. Trad. par J. Tricot. Paris: J. Vrin, 1965, p.9, n.1. 97Para a questão da evolução de Aristóteles neste ponto ver GAUTHIER, R. A. Introdução à Moral de Aristóteles.Lisboa: Europa-América, 1992, pp 10-21. 98 JAEGER, W. Aristóteles. México: Fondo de Cultura Econômica. México, 1995, pp. 58-59. 99 GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, p. 43. 100 VERBEKE. Introd. I-III p. 33. 101 Ibid. p. 27. 102 GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, p.43.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
42
possível que haja coabitação de almas no ente concreto. Em relação ao primeiro
objetivo destacamos a seguinte passagem:
"Quanto ao corpo que possui os órgaos da sensibilidade, da distinção e
do movimento voluntário, esse corpo não provém da alma vegetal
enquanto ela é alma vegetal, mas enquanto uma outra diferença lhe é
reunida, pela qual nasce uma outra natureza, e isso só se produz se essa
natureza se torna alma animal." 103
Desse modo, é o próprio caráter da mistura que propicia que o vivente seja vegetal ou
animal, não havendo uma ligação de causa e consequência que determine o segundo
através do primeiro. Quanto ao segundo objetivo, é estabelecido que a alma é una, pois
dizer que a alma vegetal está no animal e que a animal estaria no homem poderia dar a
idéia de várias almas num mesmo ente concreto.
Para desfazer este possível equívoco, deve-se considerar que há dois
modos de se compreender a idéia dos três tipos de alma, e que às vezes a utilização dos
termos se dá por um modo de analogia :
“(...) por alma vegetal, ou entende-se a alma específica, particular ao
vegetal, à exclusão do animal, ou entende-se a idéia comum, que se
estende à alma vegetal e à alma animal sob o aspecto do que nutre,
engendra e cresce. Certamente, às vezes, chama-se a isso alma vegetal.
Mas é uma expressão figurada do enunciado. Pois a alma vegetal só
existe no vegetal." 104
Desse modo, quando conceituamos alma vegetal em referência ao animal estamos, na
verdade, utilizando apenas um modo de expressão, visto que a alma é una. Esse modo
de expressão refere-se às faculdades da alma vegetal que estão presentes no animal
porque nesse caso, " por alma vegetal, entende-se, entre as faculdades da alma animal,
a faculdade da qual provêm os atos da nutrição, do crescimento e da geração." 105
Assim, num sentido estrito, o termo “alma vegetal“ refere-se apenas ao
vegetal, assim como “alma animal” refere-se apenas ao animal e, por fim, o termo
“alma racional” tem relação apenas com o homem. Num outro sentido, entretanto, pode-
se usar o termo alma vegetal quando nos referimos aos animais, querendo dizer as
103 I, 3, 21. 104 I, 3, 21. 105 I, 3, 21.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
43
faculdades da alma vegetal que estão presentes na alma animal. Do mesmo modo
podemos nos referir ao homem utilizando os termos alma vegetal ou alma animal,
indicando as faculdades da alma animal ou da alma vegetal que estão presentes no
homem. Isto não significa que haja a coabitação de almas num determinado ente
concreto, mas que nesse caso a referência será sempre em relação às faculdades que
essas almas possuem.
Conclui-se, assim, que há dois modos de referência, que serão utilizados
ao longo de toda a obra: um sentido absoluto e um sentido relativo. Alma vegetal, em
sentido absoluto, é apenas em relação ao vegetal, e quando o dizemos em relação ao
animal ou ao homem, referimo-nos à faculdade da alma do animal ou do homem, que
tem as três funções características da alma vegetal. Isso permite afirmar,
categoricamente, a unidade da alma e suas múltiplas faculdades:
"Será bem evidente mais tarde que a alma é una, e que estas faculdades
derivam nos membros." 106
Quarta seção: Demonstração de que a diversidade dos atos da alma tem por causa
a diversidade de suas faculdades.
Esta seção é uma primeira abordagem condensada sobre as faculdades
que a alma possui. 107 O conceito de faculdade implica em que ela seja essencialmente
faculdade para uma certa coisa, sendo o princípio desta. As faculdades enquanto são
faculdades são princípios de ações determinadas pela intenção primeira. Às vezes,
porém, é admissível que a faculdade seja , por uma intenção secundária, princípio de
outras ações, sendo que estas outras ações seriam como que ramificações, não sendo a
faculdade primariamente o princípio destas. 108
Com isso, fica estabelecido, por um lado, que cada uma das faculdades
tem ações e princípios bem definidos que não se misturam entre si, e, por outro lado,
que elas são dinâmicas e suas ações se combinam de inúmeros modos. Esta
106 I, 3, 22. 107 O próprio Ibn S»n« indica, ao final da seção 3, que as seções 4 e 5 serão respectivamente um estudo condensado e aprofundado das faculdades da alma e de seus atos: “Indiquemos, pois, agora de uma maneira condensada as faculdades da alma e seus atos, depois, na sequência, por um estudo aprofundado”. ( I, 3, 23.) Cf. VERBEKE. Introd. I-III p. 34 - 48. 108 I, 4, 25.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
44
diferenciação é importante na medida em que isto será um dos pilares fundamentais
para a articulação das faculdades que será discutida e apresentada posteriormente.
A primeira premissa para se poder falar dessas faculdades, é verificar
que os atos da alma diferem entre si, sendo que é só a partir da constatação dos diversos
atos observados que se torna possível estabelecer as diversas faculdades
respectivamente correspondentes a esses atos. As faculdades da alma são identificadas
pelos modos como as ações se manifestam:
“A alma possui atos que diferem de maneiras múltiplas. Uns diferem pela
intensidade e pela fraqueza, outros pela rapidez e pela lentidão. Com
certeza, o conhecimento presumido é uma crença que difere do
conhecimento certo, em certeza e intensidade, e a intuição intelectual
difere do conhecimento certo pela rapidez do entendimento."109
Como a observação das manifestações dos atos da alma constata que são inúmeros e
variáveis, não resta dúvida de que existem muitas questões e dificuldades para
estabelecer quais seriam, na verdade, essas faculdades, como funcionam, quantas são,
como se relacionam, enfim, sua definição mais precisa. O papel dessa seção é
justamente esse, pois,
"(...) é preciso preparar a solução dessas dúvidas para que nos seja
possível proceder ao estabelecimento das faculdades da alma e
estabelecer que seu número é tal e que umas diferem das outras pois, na
nossa opinião, isso é a verdade." 110
A partir desse ponto é possível, então, que Ibn S»n« estabeleça a primeira caracterização
das faculdades da alma tal como indicado no início desta seção. Fala, ele, em seguida,
da divisão das mesmas:
"Dizemos pois agora que , na primeira das divisões, as ações da alma são
em número de três: ações nas quais participam o animal e o vegetal, por
exemplo, a nutrição, o crescimento e a geração; ações nas quais
participam os animais, a maior parte dentre eles, ou os grandes, não
havendo traço pertencente ao vegetal, por exemplo, a sensação, a
imaginação e o movimento voluntário. Ações particulares aos homens,
por exemplo, a intelecção dos inteligíveis, a invenção das artes, o
109 I, 4, 23. 110 I, 4, 25.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
45
conhecimento dos seres engendrados e o discernimento entre o belo e o
feio" 111
Além dessa primeira divisão, já se encontra nesta seção, também, uma das diferenças
mais importantes em relação à faculdade humana, que será desenvolvida
posteriormente:
"Quanto à faculdade humana, explicaremos em breve que sua essência é
liberada de ser impressa na matéria, e explicaremos que em todas as
ações que se referem ao animal, há a necessidade de um órgão." 112
Quinta seção: Enumeração das faculdades da alma por meio do estabelecimento
das variedades. 113
Esta seção, que encerra o capítulo I, é a mais explicativa em relação à
classificação das faculdades da alma. Além disso, ela fornece um quadro sintético que
permite uma visão de conjunto da obra. A sequência dos assuntos apresenta-se dentro da
seguinte ordem: estabelecimento da divisão das três espécies de alma, isto é, vegetal,
animal e humana; apresentação das faculdades relativas à alma vegetal, à alma animal e
à alma racional humana; resumo da hierarquia das faculdades e suas relações.
Segundo a primeira divisão, as faculdades da alma são classificadas em
três espécies. A primeira delas é a alma vegetal, definida como perfeição primeira de
um corpo natural munido de órgãos, enquanto nasce, cresce e se nutre. A segunda é a
alma animal, definida como perfeição primeira de um corpo natural munido de órgãos,
enquanto ele apreende as coisas particulares e se move voluntariamente. A terceira é a
alma humana, definida como perfeição primeira de um corpo natural munido de órgãos,
enquanto se lhe atribui a execução dos atos que se fazem por escolha refletida e por
invenção efetuada com discernimento, e também enquanto apreende as coisas
universais. 114
Depois de estabelecida essa primeira divisão, podemos enumerar as
faculdades de cada uma das três espécies de alma, iniciando pelas faculdades da alma
111 I, 4, 26. 112 I, 4, 27. 113 As variedades poderiam ser entendidas como variedades de ações ou dos tipos de alma. Bakós interpreta como variedade de almas. Cf. n.174. 114 I, 5, 27-28.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
46
vegetal, depois da alma animal e, finalmente, da alma humana. A alma vegetal possui
três faculdades, sendo a primeira delas a faculdade nutritiva. Esta é uma faculdade que
assimila um corpo distinto daquele no qual ela está; ela o transforma em algo
semelhante ao seu próprio corpo em troca do que foi dissolvido deste. A segunda é a
faculdade de crescimento. É uma faculdade que, através daquele corpo que foi
assimilado, e se transformou em algo semelhante ao seu próprio corpo, faz crescer as
dimensões deste último proporcionalmente em altura, largura e profundidade, de modo
que esta faculdade chega à perfeição do crescimento no corpo em que ela está. A
terceira, e última faculdade da alma vegetal, é a faculdade da geração. É definida como
a que, a partir do corpo em que está, toma uma parte potencialmente semelhante a esse
corpo e realiza, nessa parte, com o auxílio de outros corpos que foram assimilados a ela,
a ação de criar e de fazer a mistura que resulta num outro corpo semelhante, em ato, ao
seu. 115
No caso da alma animal, além de possuir as faculdades da alma vegetal,
ela possui também outras faculdades. A primeira divisão que se estabelece é que a alma
animal possui uma ramificação básica em duas faculdades: a motora e a da percepção.
A faculdade motora, por sua vez, divide-se em duas categorias: primeiro, considerada
como a que excita o movimento, e segundo como a que age efetivamente. No primeiro
caso, isto é, a que excita o movimento, é a faculdade do desejo e do apetite. Isso ocorre,
por exemplo, quando uma forma desejável ou a evitar se imprime na imaginação e
excita ao movimento uma outra faculdade motora a agir. Esta faculdade que excita tem
dois ramos.
O primeiro ramo chama-se faculdade concupiscível, por excitar a um
movimento de aproximação daquelas coisas que forem estimadas necessárias ou úteis.
O outro ramo chama-se faculdade irascível, excitando a um movimento pelo qual ela
repele a coisa estimada como prejudicial ou destrutora, procurando a vitória. Essas duas
fauldades motoras têm apenas a função de estimar, de algum modo, o que se lhe
apresenta, funcionando por atração e repulsa, excitando as outras faculdades, de que
falaremos a seguir, a realizar em ato, o movimento que foi desejado. 116
Quanto à faculdade motora, enquanto a que realiza efetivamente a ação,
ela é excitada nos nervos e nos músculos. As faculdades motoras irascível e
115 I, 5, 28. 116 I, 5, 28-29. Note-se que estas faculdades não foram localizadas, ainda, em nenhum órgão.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
47
concupiscível são as responsáveis em colocar em movimento esta que age, a partir da
movimentação do conjunto anatômico apropriado. Os movimentos acompanham as duas
direções básicas estabelecidas pela irascível e concupiscível, isto é, de aproximação ou
de afastamento. No caso da aproximação, provinda da excitação da concupiscível, pode
haver, por exemplo, contração de músculos, puxamento de tendões e de ligamentos dos
membros na direção do princípio ou do objetivo em questão. No caso de afastamento,
provindo da irascível, os músculos podem se relaxar e os nervos se esticar em
comprimento, colocando os tendões e os ligamentos em oposição à direção do princípio
em questão. 117 Com isto encerra-se a divisão das faculdades motoras do animal, sendo
que agora, serão apresentadas as classificações das faculdades animais relativas à
percepção, isto é, os sentidos externos e internos no animal.
A primeira divisão a ser estabelecida, quanto à faculdade da percepção, é
que ela é de duas categorias:
“uma delas é a faculdade que percebe de fora; a outra, a faculdade que
percebe de dentro. O que percebe de fora são os cinco ou os oito
sentidos.” 118
Entre os sentidos externos está, em primeiro lugar, a visão. Esta faculdade está
localizada no nervo 119 ótico e percebe as formas impressas no humor cristalino,
oriundas das imagens dos corpos coloridos que, pelos corpos diáfanos em ato, chegam
às superfícies dos corpos polidos. 120
A audição, por sua vez, é uma faculdade estabelecida nos nervos
dispersos na superficie do canal auditivo. Esta faculdade percebe uma forma qualquer
que chegue à rede nervosa da agitação do ar fortemente comprimido entre o que golpeia
e o que é golpeado, resistindo este ao ar com violência, donde nasce o som. A agitação
chega, em seguida, ao ar que está retido, tranquilo, na concavidade do canal auditivo e o
117 I, 5, 29. 118I, 5, 29. O que percebe de dentro são os sentidos internos (Cf. I, 5, 30, ll. 3-5) apesar de Bakós ter afirmado que seria a faculdade intelectual desprovida de órgãos sensoriais ( Cf. Bakós n.181). Há pelo menos dois modos de se entender o fato de Ibn S»n« referir-se a oito sentidos: o primeiro, que consideramos correto, é admitir o tato, não como um, mas como quatro sentidos, (Cf. I, 5, 29, ll. 36-39) de acordo com a natureza do objeto ( Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p. 48). O segundo, que nos parece equivocado, é afirmado por Bakós (n. 182). Neste, os oito sentidos resultariam da soma dos cinco sentidos externos ( visão, audição, olfato, paladar e tato) com três internos ( sentido comum, imaginativa e estimativa) sendo que os outros dois sentidos internos ( memória e imaginação) seriam entendidos apenas como depósitos e não propriamente como sentidos. 119
Note-se que todas as localizações nervosas das faculdades não se encontram em Aristóteles, visto que ele não tinha conhecimento algum da existência dos nervos. ( Cf. Bakós n.183). 120
Ibn S»n« desenvolve a teoria do meio diáfano e da cor no terceiro capítulo de sua obra.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
48
move por um movimento semelhante ao seu. As ondas desse movimento relativo ao
nervo, se tocam e, então, escuta-se.
O olfato é o terceiro sentido a ser tratado, sendo uma faculdade
estabelecida nas duas protuberâncias da parte anterior do cérebro, semelhante aos dois
mamilos da mama.121 Tem percepção daquilo que o ar aspirado faz chegar ao cérebro
dos odores que se encontram na exalação misturada ao ar ou do odor impresso no ar
pela alteração de um corpo dotado de odor.
Em seguida, temos o sentido do paladar que é uma faculdade
estabelecida no nervo estendido sobre o corpo da língua. Esta faculdade percebe os
gostos dissolvidos dos corpos quando estão contíguos à língua, misturados ao humor
agradável de ser engolido no qual se encontra uma mistura transformante, isto é, aquilo
que é dissolvido de um determinado corpo sápido, estando em contato com a língua, é
misturado com um humor próprio da faculdade do paladar, antes de ser engolido. 122
E finalmente, o sentido do tato, que é uma faculdade estabelecida nos
nervos da pele e da carne de todo o corpo, tendo por função perceber tudo o que toca o
corpo, e tem uma influência sobre ele pela contrariedade que transforma a compleição
ou a disposição da composição. Ibn S»n« alude ao fato de que para alguns o tato não
seria uma faculdade única, mas um gênero que englobaria no mínimo quatro faculdades
que estariam difundidas em conjunto sobre toda a pele. Uma delas seria responsável por
discernir o contraste entre o quente e o frio; a segunda discerniria o contraste entre o
úmido e o seco; a terceira discerniria o contraste entre o duro e o mole; e a quarta
discerniria o contraste entre o rugoso e o polido. Apenas a sua reunião num único órgão
faria pensar numa única faculdade essencialmente a mesma. 123
Passa-se, em seguida, à primeira apresentação dos sentidos internos que o
animal possui, isto é, as faculdades dos sentidos internos próprias do equipamento vital
da alma animal.
Antes de iniciar propriamente esta primeira classificação dos sentidos
internos, são esclarecidos alguns pontos básicos. A primeira explicação é em relação à
121 Apesar da localização não estar muito clara, ela será retomada mais à frente. Esta passagem não é aristotélica; Aristóteles, no De anima, nada diz sobre o órgão olfativo.( Cf. Bakós n.190 e 193). Além disso, a idéia de que o cérebro é órgão central da sensação também não é aristotélica, pois Aristóteles afirma que é o coração, sendo que o cérebro tem apenas uma função subalterna. ( Cf. Bakós n. 192). 122 I, 5, 29. 123 I, 5, 29-30.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
49
diferença entre percepção de formas e percepção de idéias124 pois "quanto às faculdades
que percebem interiormente, algumas são faculdades que percebem as formas das coisas
sensíveis, e outras percebem as idéias das coisas sensíveis.” 125 A diferença entre esses
dois modos de percepção é que a percepção da forma é realizada em conjunto, isto é
pelo sentido externo e interno, sendo que necessariamente uma forma dada passa pelo
sentido externo sendo levada até o sentido interno. A percepção da idéia,
diferentemente, é realizada de modo imediato pelo sentido interno.
Por exemplo, a ovelha percebe a forma do lobo, isto é, sua configuração,
seu aspecto e sua cor; com certeza o sentido interno da ovelha também percebe essa
forma do lobo, mas primeiramente ela é percebida somente pelo seu sentido externo.
Por outro lado, a idéia é a coisa que a alma percebe do sensível sem que o sentido
externo a tenha percebido anteriormente. Por exemplo: a ovelha percebe no lobo a idéia
de inimigo ou a idéia que torna necessário o medo e a fuga para longe dele sem que o
sentido externo perceba isso de modo algum; logo, isso que o sentido externo percebe
primeiramente, depois o sentido interno percebe do lobo, chama-se propriamente de
forma; e isso que a faculdade interna percebe à exclusão dos sentidos externos, chama-
se idéia. 126
Uma outra diferença relevante para podermos entender como os sentidos
internos funcionam, e para compreendermos mais precisamente como a faculdade
imaginativa se comporta, é saber que algumas faculdades internas percebem e agem em
conjunto, e outra percebem, mas não agem.
A diferença entre um tipo de percepção com ação e um tipo de
percepção sem ação, refere-se ao fato de que certas faculdades internas atuam, ora
compondo formas e idéias percebidas com outras, ora as separando umas das outras;
sendo que outras faculdades apenas apreendem. Assim sendo, é possível que, após ter
percebido, elas ajam nisso que perceberam. No caso das percepções sem ação, ocorre
apenas a simples impressão da forma ou da idéia sem que se faça sobre elas nenhum
tipo de ato em virtude de uma escolha. A diferença entre a percepção primeira e a
percepção segunda, é que a percepção primeira consiste na atualização da forma de
qualquer modo que seja, sendo tal atualização reclamada diretamente pela própria
124Vide nota 171 sobre o termo “idéia” no Capítulo IV “Sentidos internos” Seção terceira, abaixo p. 57. 125 I, 5, 30. 126 I, 5, 30.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
50
coisa. A percepção segunda consiste na atualização da forma da coisa em referência a
uma outra coisa que faz chegar a ela. 127
Após estas considerações gerais, Ibn S»n« passa a enumerar os sentidos
internos, fornecendo uma primeira explicação, contendo um esquema básico e geral,
que será aprofundado no quarto capítulo.
"Dentre as faculdades animais que percebem internamente uma é a
fantasia ou sentido comum, estabelecida no primeiro ventrículo do
cérebro, que recebe por si mesma todas as formas impressas nos cinco
sentidos e que chegam ao ventrículo.” 128
Em seguida está a imaginação ou faculdade formativa. Esta faculdade também está
estabelecida na extremidade do ventrículo anterior do cérebro. Sua função é a de
conservar o que o sentido comum recebeu dos cinco sentidos particulares e que
permanece na extremidade do ventrículo após o distanciamento das coisas sensíveis. 129
Com isso, já se estabelece como se processa a continuidade dos sentidos
externos até os sentido internos. Num primeiro estágio, a recepção do que é sentido
exteriormente é efetuada pelo sentido comum ou fantasia. Num segundo estágio, o que
foi recebido é armazenado pela faculdade formativa ou imaginação.
Ibn S»n« acentua a diferença entre a função receptiva e a conservativa: a
recepção pertence a uma faculdade e a conservação a outra. Esta distinção é ilustrada
pelo exemplo da água que tem a capacidade de receber a impressão e o traçado (a
figura) mas não tem capacidade de conservar. Ibn Sina usa também de exemplos (da
gota de chuva e de algo reto que gira) para explicar a distinção entre a ação do sentido
externo, do sentido interno e da faculdade formativa. Os exemplos consistem no
seguinte: uma gota que cai é percebida descrevendo uma linha reta; e se tomamos uma
linha reta e movermos sua extremidade a partir de um centro fixo, apreendemos uma
127 I, 5, 30. 128 I, 5, 30. É preciso prestar atenção aos nomes das faculdades e a suas respectivas funções, visto a proximidade com as denominações dadas por Aristóteles, embora com outras funções. No presente caso, por exemplo, “em Aristóteles são duas faculdades distintas: uma é o sentido comum que é a faculdade que enuncia e julga a diferença de duas coisas apresentadas simultaneamente; outra é a ‘fantasia’ -imaginação- distinta ao mesmo tempo da sensação e do pensamento e que julga no que concerne às imagens.” ( Cf. Bakós n.204). Ver em anexo uma representação das localizações cerebrais. 129 Aqui temos o mesmo caso de homonímia em relação à Aristóteles. Esta imaginação , em Ibn S»n«, tem certos traços em comum com a ‘fantasia’ em Aristóteles. Nenhuma das duas é idêntica nem à sensação nem ao pensamento; elas dependem da sensação e são um tipo de prolongamento desta. As imagens dos objetos sentidos permanecem nelas, mesmo quando estes se afastam. (Cf. Bakós n. 205). No entanto, há diferenças mais específicas que trataremos mais adiante.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
51
figura circular. Ora, os sentidos externos, nesse caso, não podem nos fornecer nem o
conhecimento de uma linha reta nem de um círculo, pois eles apreendem sempre o que é
dado num determinado instante. Quando o sentido externo apreende a gota de chuva a
cada instante, segundo a posição que ela ocupa, não pode apreender a continuidade
entre uma posição e as posições anteriores sendo que para poder apreendê-la como uma
linha reta é necessário a conservação das posições anteriores no momento da apreensão
da posição atual. Portanto, nesses casos, o conhecimento de uma linha reta ou de uma
figura circular requer a intervenção dos sentidos internos. 130
Em seguida está a faculdade chamada imaginativa em relação à alma
animal e cogitativa em relação à alma humana. Está estabelecida no ventrículo médio do
cérebro perto do verme.131 Ela tem a propriedade de compor certas coisas que estão na
imaginação com outras, assim como de separá-las à vontade.132
Além dessas, há também a faculdade estimativa, estabelecida na
extremidade do ventrículo médio do cérebro, ela percebe as idéas não sensíveis que se
encontram nas coisas sensíveis particulares, como a faculdade que se encontra na
ovelha, quando ela julga que deve fugir deste lobo e ter afabilidade para com este
cordeiro. As ações desta faculdade estão intimamente ligadas à faculdade imaginativa,
indo além da simples apreensão, pois “parece que ela é, além disso, uma faculdade
livre na ação de compor e de separar as coisas imaginativas”. 133
Finalmente, nos é apresentada a faculdade que conserva e se lembra. Está
estabelecida no ventrículo posterior do cérebro. Sua função é conservar o que a
faculdade estimativa percebeu das idéias não sensíveis nas coisas sensíveis particulares.
A relação da faculdade que conserva com a estimativa é como a relação da imaginação
com o sentido comum e a relação da estimativa com as idéias é como a relação da
imaginação com as formas sensíveis. A faculdade que conserva e se lembra e a
130 I, 5, 31 e VERBEKE. Introd. IV-V, p. 50-51. 131Cf. Bakós (n. 208) remete a Galeno. Em anatomia o termo “verme do cerebelo” é o nome dado ao lóbulo médio do cerebelo entre ambos os hemisférios. (Cf. AULETE, C. Dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Delta, 1958, p. 5268). Assim é chamado por sua forma ser semelhante à de uma larva. ( Cf. LABOR, Biologia humana. Barcelona: Ed. Labor. 1961, vol.3 p.789 e cf. ilustração em SPALTEHOLZ,W. Atlas de anatomia humana. Barcelona: Ed. Labor. 1959, tomo 3, 2ª ed. 132 A imaginação, na obra de Ibn S»n«, tem importância não só em sua psicologia mas também em outras áreas como, por exemplo, em sua cosmologia, metafísica e nos seus escritos simbólicos. Para uma visão mais panorâmica sobre o papel da imaginação em sua obra remetemos a MAHLOUBI, B. La notion d’imagination chez Avicenne. Tese de doutorado. Paris: Université de Paris I Panthéon-Sorbonne, 1991. 133 I, 5, 31.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
52
imaginação são depósitos (faculdades de conservação). A estimativa e o sentido comum
são faculdades de recepção.
O objetivo desse primeiro esquema é apenas o de situar os sentidos
internos dentro da complexa estrutura das três espécies de alma. Não nos deteremos,
agora, na articulação e na dinâmica dos sentidos internos; no entanto algumas coisas já
podem ser estabelecidas como, por exemplo, que o funcionamento específico de cada
atributo das faculdades internas é bastante claro. De modo sucinto, podemos dizer que
há três sentidos e duas memórias. O sentido comum recolhe as formas, e a faculdade
formativa as conserva. A estimativa recolhe as idéias e a memória as conserva. E, por
fim, a imaginativa compõe e separa as formas e, em alguns casos, as idéias. 134
Em seguida, Ibn S»n« apresenta as faculdades da alma racional humana:
“Quanto à alma racional humana, suas faculdades dividem-se em
faculdade que age e faculdade que conhece sendo que cada uma das duas
faculdades chama-se inteligência por homonímia ou equivocidade.” 135
Também podem ser chamadas de faculdade prática e faculdade especulativa, ou ainda,
inteligência prática e inteligência especulativa. Esta breve apresentação, fornece
algumas características de ambas, sendo que a melhor imagem da alma humana que Ibn
Sina nos dá é a de que ela tem duas faces. 136
Como vimos, a alma é uma substância una, mas ela tem uma relação
dupla, em direção a dois lados: um que está abaixo dela e o outro que está acima dela.
Conforme cada lado, ela possui uma faculdade pela qual é organizada a conexão entre
ela e esse lado. “Assim, do lado inferior nascem os hábitos morais, do lado superior
nascem as ciências”. 137 Nessa medida o que se chama de faculdade prática é a
faculdade que a alma possui em razão da conexão com o lado que é mais baixo que ela,
e que é o corpo e o governo deste, sendo preciso que esta face não receba de modo
algum qualquer impressão de um gênero exigido pela natureza do corpo. No caso da
134 Note-se que Ibn S»n« usa várias denominações para uma mesma faculdade: sentido comum ou fantasia; imaginação ou formativa; imaginativa (no animal) e cogitativa (no homem); estimativa e memória. 135 I, 5, 31. Em Aristóteles são o intelecto teórico e o intelecto prático. O fim do intelecto prático é a ação, dirigida ao bem prático e o contingente; enquanto o fim do intelecto teórico é o necessário, isto é, o verdadeiro e o falso. O verdadeiro sendo absoluto, o bem relativo. (Cf. Bakós n.210) . Note-se, ainda, que sendo faculdades da alma humana, não há uma localização fisica. 136 I, 5, 32-33. 137 I, 5, 33.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
53
faculdade especulativa, ela é uma faculdade que a alma possui em razão da conexão
com o lado que está acima dela, sendo preciso que esta face receba e adquira
constantemente o efeito disso que está acima. Por essa razão é que se pode dizer que “a
nossa alma possui, então, duas faces138: uma em direção ao corpo (...) e uma em direção
aos princípios supremos” . 139
A faculdade prática está, portanto, ligada aos atos particulares, tanto no
âmbito do próprio corpo quanto no âmbito da ação moral e consequentemente política,
assim como na criação das artes (entre elas a arte médica) e de todas as ações humanas
realizadas em sociedade. É a partir da estrutura da faculdade prática que são possíveis as
atividades humanas concretas, pois a inteligência especulativa é contemplativa,
buscando a aquisição do conhecimento e das verdades supremas. No entanto, é sob os
influxos e os princípios da faculdade especulativa que a faculdade prática deve se guiar.
A inteligência prática não é totalmente independente da inteligência teórica. 140 Em
outras palavras, a ação humana deve se guiar pela verdade, em vista do bem.
A dinâmica das faculdades implica que a faculdade prática esteja em
relação com as outras. Ela tem uma relação com a faculdade animal apetitiva, isto é,
concupiscível e irascível, uma relação com a faculdade animal imaginativa e estimativa,
e uma relação consigo mesma. Sua relação com a concupiscível e com a irascível está
ligada à ocorrência das “disposições que são próprias ao homem, pelas quais ele está
disposto a agir e a sofrer rapidamente , como a vergonha e o pudor, o riso e as lágrimas,
e o que se assemelha a isso”. 141 Trata-se da relação da inteligência prática com as
paixões ou emoções ou sentimentos.
Sua relação com a faculdade imaginativa e estimativa, está relacionada
com a condução das coisas que podem ser produzidas ou destruídas e com a invenção
das artes humanas. Sua relação consigo mesma está relacionada às opiniões que
dependem das ações e desbordam tornando-se comuns e bem conhecidas como, por
exemplo, que a mentira e a injustiça são detestáveis. A isso é que podemos chamar de
sabedoria prática, caracterizada por estar entre a inteligência prática e a inteligência
especulativa, não pelo estabelecimento de uma prova ou de demonstrações nem ao que
138 Literalmente, “duas faces” - µÀ¸k¼ . 139
I, 5, 33. 140Cf. Bakós n.214. 141
I, 5, 32.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
54
se assemelhe a premissas determinadas, mas que procedendo da repetição de
determinadas ações, gera um outro tipo de conhecimento.
É importante destacar que a posição de contato desta faculdade com duas
esferas distintas, a corporal e a intelectual, caracteriza o perfil do homem no
pensamento de Ibn S»n«. Apesar de esta dicotomia estar sempre presente, a função da
faculdade prática, no conjunto das faculdades, é que ela seja , em última análise, a
condutora por excelência do corpo e das ações humanas. Por essa razão ela “deve
dominar os resto das faculdades do corpo, mas isto segundo as normas de uma outra
faculdade142”, isto é, a inteligência especulativa. A sua correta constituição exige que
ela não sofra de modo algum a direção das outras faculdades que estão abaixo dela, mas
que ela as conduza na criação de hábitos morais excelentes. Do contrário criar-se-iam o
que chamamos de habitos morais vis, fruto de uma inversão das influências na
hierarquia das faculdades.
Terminada a exposição da faculdade prática, Ibn S»n« passa à faculdade
especulativa. A primeira definição que encontramos é que “ela é uma faculdade com a
função de receber a impressão das formas universais abstraídas da matéria.” 143
A faculdade especulativa possui diversas relações com essas formas, e
isso porque a coisa que tem por função receber algo, recebe-o tanto em potência, como
em ato. Isso faz com que se estabeleçam níveis diferentes nessas relações. A apreensão
das formas não é, portanto, unívoca mas pode ser identificada segundo os níveis nos
quais se configura. Por essa razão, para poder explicar a faculdade especulativa, Ibn
Sina distuingue, antes, a existência de distintos níveis de potencialidade para, em
seguida, relacioná-los com os graus da faculdade especulativa.
No primeiro caso, a potência seria a aptidão absoluta da qual nada resulta
em ato, bem como não se realiza aquilo pelo que algo resulta, como a faculdade de
escrever de uma criança de tenra idade. No segundo caso pode-se chamar potência essa
aptidão, já mais desenvolvida, isto é, quando não se realiza senão aquilo pelo que é
possível chegar a adquirir a ação sem intermediário, por exemplo, quando a faculdade
de escrever se encontra num jovem que já conhece a pena e o tinteiro e é iniciado nas
letras. Em terceiro lugar chama-se potência, essa mesma aptidão quando ela já está
completa, quando já começou a ser a perfeição da aptidão de tal modo que possa agir
142
I, 5, 32.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
55
quando quiser sem ter necessidade da aquisição, bastando que se decida a agir. Por
exemplo, a faculdade do escriba perfeito na arte, quando não escreve.
“A primeira potência chama-se absoluta e material; a segunda, potência
possível; e a terceira perfeição da potência.” 144
Os distintos níveis de potencialidade, assinalados por Ibn S»n«, são a base para que ele
explique a faculdade intelectiva. As relações da faculdade especulativa na apreensão das
formas se dão, de forma análoga, dentro dessa classificação sendo possível então
distinguir, três níveis da intelecção, como se fossem três intelectos ou três faculdades
intelectivas, ou ainda graus diferenciados de apreensão da inteligência especulativa.145
No primeiro caso a relação da faculdade especulativa em vista das formas
abstratas é estabelecida nos parâmetros do que está em potência absoluta: “este
primeiro intelecto se encontra frente aos inteligíveis em um estado de potencialidade
absoluta”. 146 Isso se dá quando a faculdade especulativa não recebeu nada ainda da
perfeição que existe em relação a ela, chamando-se então inteligência material, por sua
semelhanca com a matéria prima que não possui por si mesma uma certa forma, sendo
sujeito para toda forma. Esta faculdade pertence a cada indivíduo da espécie.
Às vezes, a relação se dá aos moldes do segundo caso, isto é, da potência
possível. O que ocorre, nesse caso, é que, na potência material, já chegaram ao ato
inteligíveis primeiros, isto é, os primeiros princípios, como , por exemplo, que o todo é
maior que a parte, que duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si, dos quais e
pelos quais se chega aos inteligiveis segundos. Este segundo intelecto se chama
inteligência hábito, e pode se dizer em ato em relação ao primeiro.
Num terceiro caso, a relação se dá conforme o que se chamou de
perfeição da potência que consiste em que nela são colocados em ato os inteligíveis
segundos, sem que a inteligência hábito os considere e se volte para eles em ato, mas
antes como se estivessem armazenados e, quando quiser, ela considera essas formas em
143
I, 5, 33. Aristóteles também distingue as formas, isto é, os inteligíveis, como sendo realidades imateriais, indivisíveis, em ato, das formas realizadas em matérias apropriadas, sendo inteligíveis em potência que, pela ação do ‘nous’, se tornam inteligíveis em ato. ( Cf. Bakós n. 223). 144 I, 5, 33. 145 No que se refere às divisões do intelecto, deve-se ter em mente as fontes de Ibn S»n«, notadamente Al- Farabi que no De Intellectu já havia estabelecido a base da divisão adotada por Ibn S»n«. Cf. GILSON, E. “Les sources gréco-arabes de l’augustinisme avicennisant”, pp- 126-141. 146 GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, p. 46.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
56
ato. Esta inteligência denomina-se inteligência em ato, porque ela é uma inteligência
que conhece quando quer sem se dar ao trabalho de uma aquisição. 147
Esta primeira descrição dos graus da faculdade especulativa encerra-se
com um prelúdio ao intelecto agente:
"Às vezes a relação é uma relação do que está em ato absoluto. Isso
consiste em que a forma inteligível está presente na inteligência enquanto
esta a considera em ato; então ela conhece em ato e sabe que a conhece
em ato. O que veio então ao ato nela chama-se inteligência adquirida; e
ela só se chama inteligência adquirida porque nos será claro em breve
que a inteligência em potência só passa ao ato por causa de uma
inteligência que está sempre em ato, e quando a inteligência em potência
se une por um certo modo de junção a esta inteligência que está em ato,
uma espécie das formas que são adquiridas do exterior se imprime nela.
Estes são ainda os graus das faculdades que se chamam inteligências
especulativas e, na inteligência adquirida está completado o gênero
animal e a espécie humana que pertence a ele; e aí a inteligência humana
já está assimilada aos princípios primeiros de toda existência.” 148
Terminada, pois, esta primeira caracterização de todas as faculdades das três espécies de
alma, é apresentada a hierarquia que se estabelece entre elas na medida em que “umas
comandam as outras e umas servem as outras.” 149
No topo da hierarquia encontra-se, como chefe, a inteligência adquirida.
O todo a serve e ela é o extremo limite. Depois, a inteligência em ato é servida pela
inteligência hábito; e a inteligência material, enquanto houver aptidão nela, serve a
inteligência hábito. Em seguida, a inteligência prática as serve todas visto que a conexão
corporal existe em razão da ação de aperfeiçoar a inteligência especulativa e da ação de
a purificar, e é a inteligência prática que rege essa conexão. Depois, a inteligência
prática é servida pela faculdade estimativa e esta é servida por duas faculdades: a
memória, que está depois dela e o conjunto das faculdades animais que está antes dela.
Em seguida, a imaginativa é servida por duas faculdades de diversas maneiras: a
147 I, 5, 34. 148 I, 5, 34. 149 I, 5, 34.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
57
apetitiva a serve pela consulta porque a imaginação a excita ao movimento e a
imaginação150 a serve pela apresentação das formas armazenadas nela. A imaginação e a
apetitiva são chefes de dois grupos: a imaginação é servida pela fantasia e esta pelos
cinco sentidos; a apetitiva é servida pela concupiscência e pela irascível e estas duas
últimas são servidas pela faculdade motriz nos músculos.
Todas estas faculdades animais são servidas pelas vegetativas. No topo
encontra-se a faculdade de geração; a de cresimento serve a de geração e a nutritiva
serve-as todas. Em seguida as quatro forças naturais as servem. Dentre elas, a digestiva
é servida, de um lado pela assimilativa, de outro pela atrativa; e a repulsiva as serve
todas. Depois as quatro qualidades servem todas estas: o calor é servido pelo frio, pois o
frio ou prepara uma matéria para o calor ou conserva o que o calor preparou. E elas
todas são servidas pela secura e pela umidade. 151
Desse modo, termina a descrição da hierarquia das faculdades, e também
o primeiro capítulo. No segundo capítulo, Ibn S»n« trata das faculdades da alma vegetal
, do modo de percepção das faculdades da alma animal e dos quatro sentidos externos,
excluindo-se a visão que será tratada no capítulo terceiro. Não nos propomos apresentar
o conteúdo destes capítulos. Destacamos apenas alguns elementos do que Ibn Sina diz
na segunda seção do Capítulo 2 sobre a percepção.
Nesta seção Ibn S»n« apresenta quais são e como se efetuam os diferentes
modos de percepção. O motivo que o leva a falar primeiramente da percepção, de modo
geral, é que ela é mais abrangente do que o sentido externo, visto que se estende à ação
dos sentidos internos e do intelecto. 152 A abstração que se realiza a partir desses
elementos é diversa, configurando graus diferentes. A percepção é analisada, então,
através dos sentidos externos, da imaginação, da estimativa, além de indicar o modo
pela razão. Isso se configura como uma introdução para o desenvolvimento posterior
dos outros capítulos, em que se analisa a percepção pelos sentidos externos e internos,
pela intelecção, terminando no mais alto grau de abstração pelo intelecto agente.
150Estas passagens caracterizam-se por um texto embrulhado por causa dos nomes das faculdades. A tradução latina foi prejudicada por isso (Cf. AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus aturalibus I -III . “Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G. Verbeke.1968, p. 100, nota às linhas 95-96). A tradução de Bakós também apresenta dificuldades principalmente por usar nestas passagens o termo “imaginativa” tanto para a imaginação, que conserva as formas, quanto para a imaginativa propriamente dita que age por reunião e separação das formas. 151 I, 5, 35 152 Cf. Bakós n. 308.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
58
Em primeiro lugar parece que toda percepção é apenas a apreensão de
um certo modo da coisa percebida. Se for a percepção de uma coisa material, é a
apreensão da forma dessa coisa, abstraída da matéria de uma certa maneira.
“O primeiro sentido é, na verdade, o que é impresso no órgão do sentido
e este o percebe. Quando se diz: senti a coisa (extrínseca) parece que a
idéia é diferente da idéia de: senti na alma.” 153 Assim, se estabelece um primeiro nível de percepção imediata realizado pelos sentidos.
No entanto os sentidos não abstraem perfeitamente a forma da matéria. É necessário que
esta forma seja interiorizada na alma, o que só pode ser feito pelos sentidos internos.
A imaginação, ao receber a forma e gravá-la, mesmo depois que a coisa
sensível se distanciou ou desapareceu, vai mais além extraindo a forma da matéria de
modo mais intenso, rompendo de uma maneira mais perfeita a conexão entre a forma e a
matéria. Mas, mesmo assim, ela ainda não abstrai a forma de todas as características que
a ligam à matéria, pois a forma que está na imaginação é ainda segundo a medida da
forma sensível e segundo a determinação de uma certa quantidade, qualidade e posição.
Portanto, é ainda impossível que na imaginação seja representada uma forma tal que
todos os indivíduos desta espécie possam dela participar. Por exemplo, não é possível
que o homem imaginado não esteja imerso, de algum modo, nas determinações citadas,
de uma certa quantidade, qualidade e posição.
O outro sentido interno, a faculdade estimativa, que percebe não as
formas mas as idéias, ultrapassa esse grau de abstração. A razão disto é que ela
apreende idéias que não são materiais, como por exemplo, o bem e o mal, o conveniente
e o inconveniente. Apesar de ela se utilizar da matéria para isso, ela percebe coisas
imateriais. Esse tipo de abstração já é mais forte que as realizadas pela imaginação e
pelos sentidos. Entretanto, ainda assim, ela não abstrai a forma totalmente da matéria
porque ainda essa percepção é particular. A percepção das formas totalmente despojadas
da matéria só será realizada pela inteligência especulativa, no homem, pela intervenção
necessária do intelecto agente.
Assim, temos apresentados os quatro tipos de percepção admitidos por
Ibn Sina , isto é, a percepção pelos sentidos externos; pelos sentidos internos sob suas
153 II, 2, 43.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
59
duas formas através da imaginação 154 e da estimativa e ; enfim, pela razão. Baseado
nessa diferenciação dos modos de percepção, estabelece que cada uma delas emite um
tipo de julgamento próprio e específico. Entende-se que não poderia haver qualquer tipo
de apreensão sensível, formal, ideal ou intelectual, se não houvesse um juízo específico
em cada um desses graus, que possibilitasse a própria percepção da coisa determinada.
Assim, temos: a percepção através do julgamento sensível, do julgamento imaginativo
ou formativo, do julgamento estimativo e do julgamento intelectual. 155
154 Bakós (n.270) diz imaginativa, mas trata-se certamente da imaginação (formativa) pois é ela que retém o que está no sentido comum, isto é a forma, em contraposição à idéia da estimativa. Na p.41 (linhas 26-32) a passagem é clara: “ quanto à imaginação como faculdade e como ato, ela libera a forma abstraída da matéria de um modo mais intenso, e isto, pela razão de que ela a apreende da matéria, a forma não tendo para sua existência na imaginação necessidade da existência de sua matéria visto que, ainda que a matéria seja distanciada do sentido ou reduzida a nada, a forma permanece existente de modo estável na imaginação.” Na p.118 (linha 6) também encontra-se ‘faculdade imaginativa’ sendo que se trata, na verdade, da imaginação (formativa). Mesmo considerando que o julgamento, como procedimento ativo, só possa ser exercido pela imaginativa, o processo de abstração da forma da coisa já se encontra estabilizado na imaginação para a emissão do juízo. 155 II, 2, 42-43.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
60
Os Sentidos Internos no Kit««««b al-afs ( Cap. IV)
Primeira seção: Ela encerra um enunciado universal sobre os sentidos internos que
o animal possui.
Esta seção, inicialmente, retoma as principais características dos sentidos
internos. No que se refere ao sentido comum, a primeira sentença confirma que Ibn S»n«
quer se distanciar dos que consideram os sensíveis comuns como percebidos por cada
um dos sentidos externos ou por uma faculdade que teria, neles, especificamente esta
função. Em sua análise, o sentido comum tem outro papel:
"Quanto ao sentido que é o sentido comum, ele é, na verdade, diferente
do que se pensou, isto é, que os sensíveis comuns possuem um sentido
comum; mas, o sentido comum é a faculdade à qual chegam todas as
coisas sensíveis." 156
Se não existisse uma faculdade única que percebesse o que é colorido e o que é tátil, não
poderíamos distinguir um do outro, dizendo que este não é aquele. Se nos é possível
distinguir uma cor e um odor, isso não é graças à visão ou ao olfato, mas graças a uma
faculdade capaz de apreender simultaneamente os objetos de diferentes potências
sensitivas.157 Essa função, antes de ser própria da inteligência, está presente no sentido
comum pois os animais também são capazes de fazer essas distinções. 158 Afirma Ibn
S»n« que “se não houvesse no animal isto em que são reunidas as formas das coisas
sensíveis, a vida dos animais seria difícil.” 159
Se, por exemplo, o odor e o som não fossem para os animais um
indicador do sabor, e se a forma de um pedaço de madeira não lhes fizesse lembrar a
dor, de modo que fugissem; ora, isto não seria possível se não se admitisse a
necessidade de essas formas estarem reunidas no interior dos animais num único lugar.
156 IV, 1, 115. Wolfson in WOLFSON, H.A. “ The internal senses in latin, arabic and hebrew philosophic texts”, in Studies in the history of philosophy and religion. London: Harvard University Press, 1979, vol.I afirma que “ o primeiro a incluir especificamente o sentido comum em sua classificação dos sentidos internos é Avicena”. Segundo Goichon, Livre des Directives et remarques, p. 318 teria sido Al-F«r«b». (Cf. VERBEKE Introd. IV-V, p. 49). 157VERBEKE. Introd. IV-V, p.49. 158 Mais à frente ( IV, 1, 117), ao tratar da imaginação, Ibn S»n« afirma que “quanto ao sentido comum e aos sentidos externos, certamente, eles julgam sob um certo aspecto, ou por um certo julgamento.” 159 IV, 1, 115.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
61
A consideração das próprias coisas160 nos indica a existência desta faculdade,
mostrando, sobretudo, que ela possui um órgão diferente dos órgãos dos sentidos
externos. 161"Esta faculdade é, pois, a que se chama sentido comum, e ela é o centro dos
sentidos, e dela se ramificam os ramos e a ela são conduzidos os sentidos, e ela é na
verdade aquela que sente." 162
Não obstante o sentido comum receber as formas, ele não tem a
propriedade de retê-las; isto é função de outra faculdade, a imaginação:
"Mas a ação de reter o que este (o sentido comum) percebe pertence à
faculdade que se chama imaginação, e ela se chama faculdade formativa,
e se chama faculdade imaginativa. 163 Algumas vezes distingue-se entre a
imaginação e a faculdade imaginativa, em relação ao significado
convencional da palavra. Somos dos que distinguem isso das formas que
estão no sentido comum. O sentido comum e a imaginação são como se
fossem uma só faculdade; é como se os dois não diferissem quanto ao
sujeito de inerência, mas quanto à forma. Isto é porque ‘que ele recebe’
não significa ‘que ele conserva’. Pois a forma do sensível é conservada
pela faculdade que se chama formativa e imaginação, mas ela não possui
de modo algum um julgamento, 164 ao contrário uma conservação.
Quanto ao sentido comum e aos sentidos externos, certamente, eles
julgam sob um certo aspecto ou por um certo julgamento." 165
Depois da imaginação, Ibn S»n« discorre sobre a faculdade propriamente denominada
imaginativa (no animal), e cogitativa (no homem):
160Ibn Sina introduz aqui a consideração de uma série de casos ( semelhantes aos que indicamos acima pp. 44-45 ) que apoiariam a necessidade de afirmar a existência do sentido comum, afirmação esta que aparece como resultante dessa consideração. Cf. IV, 1,116. 161 IV, 1, 115 -116. 162 IV, 1, 116. 163 Ao longo do texto, Ibn S»n« utiliza mais as duas primeiras denominações. No entanto, às vezes utiliza o termo imaginativa. É preciso atenção, pois este último termo será usado de modo mais próprio para a faculdade que compõe as formas. 164 Segundo Bakós, (nn. 588, 270), Ibn S»n« admite quatro modos de percepção: pelos sentidos externos, pela faculdade imaginativa, pela estimativa e pela razão; afirma, ainda que Aristóteles também reconhece que a sensação, a imaginação e a intelecção emitem um certo tipo de julgamento. Indica Aristóteles, De Anima, III, 2, 426b8. Cf. supra pp. 52-53 e abaixo n. 221. 165 IV, 1, 117. Aqui intervém um exemplo para apoiar esta distinção entre o papel do sentido comum e da imaginação: “Diz-se que este móvel é negro e que este vermelho é ácido. Mas pelo que conserva, não é emitido um julgamento sobre algo que pertence ao que existe; ao contrário, sobre o que está em si mesmo, isto é, que nele está uma forma de tal modo.”
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
62
"Em seguida, sabemos às vezes, de maneira indubitável, que está na
nossa natureza compôr certas coisas sensíveis com outras, e separar
certas delas de outras, não segundo as formas que encontramos nessas
coisas sensíveis no exterior nem pela mediação de um assentimento dado
à existência de uma coisa pertencente a elas ou à sua não existência. É
preciso, pois, que em nós haja uma faculdade pela qual fazemos isso, e
essa é a que é chamada de cogitativa, quando a inteligência a emprega, e
de imaginativa quando a emprega uma faculdade animal" 166
Quanto à faculdade estimativa, Ibn S»n« explica que às vezes fazemos um julgamento
sobre as coisas sensíveis por idéias que não percebemos pelos sentidos, ou porque essas
idéias, em sua natureza, não são de modo algum sensíveis, ou porque elas são sensíveis
mas não as sentimos no momento do julgamento. Quanto às idéias que, em sua
natureza, não são sensíveis temos, por exemplo, a inimizade, a maldade, a aversão que
a ovelha percebe na forma do lobo, isto é, a idéia que a faz fugir do lobo e a concórdia
que ela percebe de sua companheira, a saber, a idéia que a torna familiar com ela. Essas
são coisas que a alma animal percebe sem que os sentidos externos indiquem algo a
respeito delas. 167 Assim, conclui Ibn S»n«: “A faculdade pela qual se as percebe é uma
outra faculdade, e ela é chamada de estimativa.” 168
Quanto às idéias sensíveis, Ibn S»n« dá o seguinte exemplo: “(...) nós
vemos algo amarelo e emitimos o julgamento de que se trata de mel e que é doce. Não é
o sentido que faz isto chegar à estimativa no momento do julgamento pois o julgamento
em si não é sensível, embora se refira a algo do domínio do sensível.” 169 Algumas vezes
há um erro nesse julgamento na medida em que isso também pertence a esta faculdade.
Esta faculdade, embora se ocupe dos julgamentos particulares, encontra-se em nós,
superior, e no animal cumpre um tipo de julgamento que não é uma diferença específica
como o julgamento intelectual, mas um julgamento imaginário, unido à particularidade
e à forma sensível e do qual procedem a maior parte das ações dos animais. 170
166 IV, 1, 117. 167 IV, 1, 117. 168 IV, 1, 117. 169 Cf. IV, 1, 117. 170
IV, 1, 117-118.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
63
Ibn S»n«, retoma ainda a diferença da apreensão pela forma e pela idéia: “
É habitual chamar-se forma, o objeto de percepção do sentido comum, e idéia o objeto
de percepção da estimativa.” 171
Em seguida, relaciona o depósito das formas do sentido comum ao
depósito das idéias da estimativa. Cada uma das duas faculdades possui um depósito
próprio. O depósito do sentido comum é a imaginação localizada na parte anterior do
cérebro. É por essa razão que quando ocorre um dano nessa região, esta categoria da
concepção se corrompe, sendo que são imaginadas formas que não existem, ou então, o
que existe é difícil de ser fixado nela. 172 O depósito da faculdade estimativa é a
faculdade que conserva: “O depósito do que percebe à idéia é a faculdade chamada
faculdade que conserva, e seu lugar próprio é a parte posterior do cérebro.” 173 É por
essa razão que quando há um dano nessa região, é corrompida esta capacidade particular
de conservar as idéias. Esta faculdade é ainda chamada de faculdade que se lembra. 174
A última parte desta seção exemplifica alguns movimentos da estimativa
em relação às outras faculdades:
“A faculdade que conserva é assim chamada visto que ela preserva o que
está nela, e também é chamada faculdade que se lembra em razão da sua
rapidez na aptidão de fixar e conceber recuperando-o quando o perdeu.
171 IV, 1, 118. O termo que Ibn S»n« usa é Å´˜¯ - ma‘na - ( Cf. edição árabe do texto por Bakós p. 161).
A tradução latina adotou o termo “intentio” (Cf. léxico p.419). Os dicionários geralmente traduzem “ma‘na” por conceito, noção, sentido, significado (Cf. - REIG, D. Dictionaire Larousse arabe-français. Paris: Larousse, 1987, p. 458); acepção, sentido, significado (Cf. SABBAGH, A.N. Dicionário árabe-
português-árabe. RJ: Ed. da UFRJ, 1988, p. 211). Esta palavra é o particípio passado de Å´— - ‘na - que
é traduzido geralmente como significar, querer dizer, concernir (Cf. KAPLANIAN, M.G. Diccionario Alhambra arabe-español. Barcelona: Ed. Ramon Sopena, 1974, p. 314 parte árabe- espanhol); significar (Cf. SABBAGH, A.N., op. cit., p.153, parte árabe-português) significar, querer dizer (Cf. - CORRIENTE, F. Diccionario arabe-español. Barcelona: Ed. herder, 1991, p.539). Logo, a melhor tradução de “ma‘na” seria “significado”. Goichon, ( Cf. léxico item 469) traduz por “idéia” e afirma que este termo quase
sempre designa o inteligível mas que este convém mais a ª½¤˜° “ma‘qūl”, enquanto “ma‘na” é
empregado algumas vezes para um grau de abstração inferior ao intelectual; em seu mais baixo grau, significando a idéia particular apreendida pela estimativa. O termo idéia, no sentido de conceito, encontra
em árabe sua melhor tradução em ºz¨Ÿ - fikra - ( Cf. KAPLANIAN, M.G. op. cit., p. 347, parte
espanhol-árabe; cf. SABBAGH, A.N., op. cit., parte árabe-português, p. 165). Não é demais lembrar que o termo “idéia” adotado por Bakós não deve ser confundido com o sentido mais conceitual que este termo adquiriu na filosofia moderna. Visto que em nosso idioma parece não haver um termo adequado, optamos por manter o termo ‘idéia’ desde que se leve em conta o acima exposto, considerando afinal este termo como indicando uma espécie de juízo avaliativo, não deliberado. 172 IV, 1, 118. 173 IV, 1, 118. Ibn Sina localizou-a mais exatamente no ventrículo posterior do cérebro. (Cf. I, V, 31.). 174 IV, 1, 118.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
64
Isso ocorre quando a estimativa volta a sua imaginativa175 para a frente, e
começa a apresentar uma a uma as formas presentes na imaginação, para
que se faça como se ela visse as coisas que têm essas formas. E quando
lhe chega a forma com a qual foi percebida a idéia que foi apagada, então
esta idéia aparecerá como se houvesse aparecido no exterior, e a
faculdade que conserva a reforçará nela mesma, como havia feito
anteriormente, havendo assim reminiscência. Ocorre, algumas vezes, o
contrário, isto é, que da idéia chega-se à forma. Desse modo, a relação do
objeto da lembrança buscado com o que está no depósito da memória não
existe, sendo sua relação, antes com o que está no depósito da
imaginação. Assim, sua repetição se faz ou sob o aspecto do retorno a
essas idéias que estão na memória, de modo que a idéia chega com a
aparição da forma, pois a relação retorna uma segunda vez ao que está na
imaginação, ou pelo retorno ao sentido.” 176
Seguem-se dois exemplos ilustrando as duas possibilidades apontadas. Ibn S»n« propõe
uma síntese ao final desta primeira seção:
“O centro do cérebro foi colocado como lugar da faculdade estimativa177
para lhe ser uma junção com os dois depósitos da idéia e da forma. E
parece que a faculdade estimativa é aquela que é por ela mesma
cogitativa e imaginativa e memorativa; ela é por si mesma a que emite
um julgamento, pois ela emite um julgamento por sua essência, ao passo
que pelos seus movimentos e suas ações ela é imaginativa e memorativa;
pois ela é imaginativa pelo fato de que ela age sobre as formas e sobre as
idéias, e ela é memorativa por aquilo em que resulta sua ação.” 178
A estimativa pelo seu movimento age como se tivesse uma imaginativa em sua
estrutura, pois, do contrário, não poderia julgar e nem mover. Para que ela possa
funcionar e julgar é necessário uma comparação de formas e idéias, por isso ela atua
175 Note-se que, em princípio, a faculdade imaginativa só tem acesso às formas armazenadas na imaginação. O fato de haver composição e separação com as idéias armazenadas na memória só é possível porque a estimativa está no comando dessa ação e age, por analogia, como se fosse imaginativa; ou dito de outro modo, usa a sua própria imaginativa para compor e separar as formas da imaginação com as idéias da memória. 176 IV, 1, 118. 177 Em seu Livre de Directives e Remarques, Ibn S»n« escreve que a estimativa está situada no cérebro todo, mas sobretudo na parte mediana (trad. Goichon, p. 322) (Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.51). 178 IV, 1, 119.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
65
como se fosse imaginativa. Assim como a denominação de alma vegetal, animal e
humana se faz ou de modo absoluto ou por analogia, aqui se dá o mesmo. A faculdade
imaginativa, em sentido absoluto é a que compõe as formas da imaginação e está
localizada no ventrículo médio do cérebro.179 Mas, por analogia, a estimativa por ser
superior e por seus movimentos, tem em si uma imaginativa; do mesmo modo que
ocorre quando dizemos, por analogia, que a alma animal tem uma alma vegetal, sem
que com isto estejamos dizendo que existem duas almas, mas uma só alma com funções
tanto de uma quanto de outra. A estimativa tem acesso aos dois depósitos, das formas e
das idéias, podendo confrontá-las e relacioná-las, o que caracteriza o movimento de
composição próprio da imaginativa. Do lado externo ela associa a forma vinda do
exterior com a intenção apreendida; do lado interno, ela pode fazer essa associação
apenas com as formas já existentes na imaginação e com as intenções armazenadas na
memória. Essas associações são guardadas, por isso ela é também memorativa. Por
exemplo, se à estimativa da ovelha for apresentada a forma do lobo que está na
imaginação, a intenção associada a esta forma ser-lhe-á igualmente apresentada e, por
fim, a sensação de medo se repetirá. Verbeke observa que “é interessante notar que a
estimativa não se detém no que é percebido propriamente: o que é percebido nos
exemplos dados, é um lobo ou uma ovelha. Os ‘julgamentos’ de que de um se deve
fugir e de outro se deve ter compaixão ultrapassam os dados da percepção. No nível da
estimativa, como da cogitativa, há um modo de composição e divisão: no exemplo dado,
associa-se ‘lobo’ e ‘ fugir’, ‘ovelha’ e ‘ ter compaixão’; encontramo-nos cada vez diante
de uma espécie de julgamento associativo.”180
Segunda seção: Dos atos da faculdade formativa e cogitativa, dentre os sentidos
internos. Esta seção contém um discurso sobre o sono, a vigília, o sonho verdadeiro
e enganador e uma espécie das propriedades da profecia.181
179Cf. I, 5, 31. Não há contradição entre esta localização da imaginativa e a da estimativa citada acima (p. 80 n. 177), pois a estimativa ocupa a “extremidade do ventrículo médio do cérebro” (I, 5, 31). (Cf. anexo). 180Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.51. 181 Para uma análise mais detida sobre o tema da profecia em Ibn S»n« remetemos à ELAMRAJNI-JAMAL, A. “De la multiplicité des modes de la prophétie chez Ibn S»n«” in Etudes sur Avicenne. Collection sciences et philosophie arabes. Paris: Les Belles Lettres, 1984, pp. 125-142 e MAHLOUBI, B. La notion d’imagination chez Avicenne. Tese de doutorado. Paris: Université de Paris I Panthéon-Sorbonne, 1991, pp. 147 - 172. .
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
66
Ibn S»n« inicia esta seção afirmando que a faculdade formativa que é a
imaginação é a última faculdade em que se estabelecem as formas das coisas sensíveis,
e que a sua direção182 para com as coisas sensíveis é o sentido comum. Este, não só faz
chegar à imaginação, mas também deposita nela, tudo o que os sentidos externos lhe
trazem. Mas a faculdade formativa armazena também, às vezes, o que não é extraído
dos sentidos.183 Com efeito, a cogitativa ao compor e decompor formas retiradas da
imaginação, acaba produzindo novas formas, guardando-as novamente na imaginação.
Para a ação de compor e de analisar, a faculdade cogitativa emprega, às vezes, as formas
que estão na faculdade formativa porque estas lhe estão submissas. Quando a faculdade
cogitativa compõe uma forma com outra ou a separa dela, é possível que procure
também conservá-la na formativa, pois nesse caso a formativa é um depósito para esta
forma não porque esta se refere a algo e lhe chega do interior ou exterior, mas porque se
torna o que é por esse modo de abstração empregado pela cogitativa. 184
Em seguida, Ibn S»n« mostra como pode acontecer que tais formas
resultantes das composições ou divisões podem ser impressas não só na imaginação mas
mesmo no sentido comum, ocorrendo que essas formas são tomadas, nesse caso, como
realidades externas. 185Mas um outro caso também se apresenta:
"(...) se por uma certa causa, ocorresse acidentalmente, seja por
imaginação e reflexão, 186 seja em razão de uma certa configuração
celeste, 187 que uma forma se representasse na faculdade formativa,
enquanto o espírito estivesse ausente ou em repouso fora de sua
consideração, seria possível que isso se imprimisse por si mesmo no
182 “Direção”- a edição latina optou pel tradução literal que é “face” - facies - \¸¸k¼. (Cf. Vol. 2, p.12,
l. 57) 183 IV, 2, 119. 184 IV, 2, 119. Podemos dizer que a imaginativa (cogitativa) e a estimativa são faculdades ativas, agindo sobre os dados armazenados, ao passo que o sentido comum, a memória e a imaginação são faculdades passivas, pois não têm esse tipo de movimento, sendo apenas receptáculos: a primeira, dos dados trazidos pelos sentidos externos e de algumas formas internas que se imprimem nela; a segunda, das “intenções” ou “idéias”; e a terceira das formas que chegam ao sentido comum. No caso do sentido comum talvez se pudesse considerar a distinção dos sensíveis comuns como uma espécie de atividade mas não do mesmo modo que se dá na estimativa e na imaginativa (cogitativa). (Cf. p. 61). 185 Com isto, pode-se afirmar que o sentido comum não recebe exclusivamente os dados trazidos pelos sentidos externos, mas também pode ser afetado pelo movimento de composição da imaginativa, sendo que ele não tem a função de distinguir entre essas formas imaginadas das que lhe chegam do exterior. 186 Aqui refere-se à imaginação como o movimento da imaginativa e um modo de reflexão pela cogitativa. 187 Este tipo de ação é explicado ao final da seção.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
67
sentido comum segundo as disposições deste. Então, escutar-se-ia sons e
ver-se-ia cores sem que eles tivessem uma existência exterior, nem suas
causas no exterior.” 188
Isso ocorre frequentemente quando as faculdades intelectuais estão em repouso ou
então pelo descuido da estimativa. Quando isso acontece, as faculdades formativa e
imaginativa ganham força para realizarem suas ações próprias, de modo que o que elas
apresentam é representado como formas que tivessem sido percebidas pelos sentidos
externos.
Deve-se levar em conta que a dinâmica das faculdades é um movimento
próprio da alma. Todas as faculdades existem para servi-la e todas elas pertencem a uma
alma única. Assim sendo, as faculdades realizam suas funções e as apresentam
constantemente à alma. Ocorre, no entanto, que a alma, voltando-se constantemente às
suas diversas funções, é afetada de modo diferente, em relação à intensidade das ações
das faculdades:
“(...) quando a alma se ocupa com as coisas internas, ela negligencia a
investigação das coisas exteriores, e não faz investigações das coisas
sentidas como deveria fazer. E quando está ocupada com as coisas
exteriores, negligencia o emprego das faculdades internas” 189
Por essa razão quando a alma está atenta aos sensíveis exteriores, no momento em que
ela se inclinou na direção deles, sua imaginação e reminiscência são fracas. Quando ela
tende às ações da faculdade concupiscível, cessam as ações da irascível e vice-versa.
“Em resumo, quando ela se inclina a realizar as ações do movimento, as ações relativas
à percepção tornam-se fracas e vice- versa”.190 Desse modo, quando a alma está
tranquila como se estivesse separada e não se ocupa com as ações das faculdades em
geral, e nem de uma delas em particular, a faculdade mais forte e mais atuante acaba
dominando e fazendo prevalecer as suas ações, apresentando-as à alma. 191
“Isso que acontece acidentalmente à alma pelo fato de que ela não se
ocupa com a ação de uma faculdade ou com as faculdades, existe, por
188 IV, 2, 120. 189 IV, 2, 120. 190 IV, 2, 120. 191 IV, 2, 120. Analogamente aos sentidos externos que, depois de serem constituídos pela alma, realizam suas funções de modo ininterrupto (por exemplo, o ouvido não cessa de ouvir, o olfato de cheirar, etc, a não ser que a alma intervenha e os impeça), assim também se dá com os sentidos internos, notadamente com as duas faculdades que chamamos ativas, isto é, a imaginativa ( cogitativa) e a estimativa.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
68
vezes, em razão de um dano ou de uma fraqueza que desvia a realização
perfeita, como ocorre nas doenças, e como ocorre no medo; ou existe em
razão de um certo repouso, como ocorre no sono; ou existe em razão da
tendência múltipla do esforço (da alma) para empregar a faculdade em
direção da qual se produz a tendência, afastando-se de uma (faculdade)
diferente dela.” 192
Estabelecidas as funções da imaginativa, Ibn S»n« explica que a alma, às vezes, a desvia
de sua ação própria. Isto se dá de dois modos: primeiro quando a alma se ocupa com o
exterior, voltando a faculdade formativa em direção aos sentidos externos; segundo,
quando a alma emprega a imaginativa em suas ações, devidas à distinção e à reflexão,
que estão unidas à imaginativa. Este último caso é subdividido em dois:
"Isso se produz, também, de duas maneiras, das quais uma é quando a
alma se apodera da imaginativa e se faz servir por ela, enquanto o sentido
comum está com ela, na composição das formas com suas essências
concretas e na análise delas, sob um aspecto que a alma tem, e no qual há
um verdadeiro objetivo, e é por essa razão que a imaginativa não se
apodera do ato submetido à sua escolha a respeito do que, por sua
natureza, ela deveria ter a livre ação; ao contrário ela é arrastada de um
certo modo quando a alma racional dispõe dela. A segunda é que a alma
a desvia das imaginações que não coincidem com os seres existentes no
exterior; então, a alma os repele, declarando-os falsos. Assim, a
imaginativa não é capaz de reproduzi-los em imagem e de representá-los
com intensidade. E se a imaginativa é desviada de ambos os lados, sua
ação é fraca." 193
Em todos esses movimentos apresentados por Ibn S»n«, deve-se ter presente que a alma
é uma primeira perfeição que estrutura o corpo, atualizando todas as suas faculdades
para realizar os atos da vida. Ao colocá-las em funcionamento, estas passam a exercer
as suas funções sem cessar. O que está em questão é a intensidade com que isto se dá.
Desse modo, há duas situações diferentes que são apresentadas por Ibn S»n«: a primeira
acontece, quando a alma não está empenhada em nenhum objetivo específico e, na
192 IV, 2, 121. 193 IV, 2, 121.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
69
medida em que as faculdades agem de modo intermitente, ocorre que as ações de uma
determinada faculdade são realizadas de modo mais livre e passam a dominar; o
segundo caso se dá quando a alma está empenhada num objetivo específico e passa a
utilizar os instrumentos que ela tem para auxiliá-la, ocorrendo, nesse caso, que as
características das faculdades em uso não dominam porque a alma como um todo
comanda este procedimento.
Em seguida, Ibn S»n« mostra quando é que a imaginativa ganha mais
força. Isto se dá quando ela não é desviada, ocorrendo que suas ações passam a ser mais
livres e irrestritas. Se a imaginativa cessa de ser ocupada de ambos os lados, isto é, pela
inteligência e pela comparação com as coisas existentes no exterior, como ocorre no
estado de sono; ou ainda, de apenas um dos lados, como ocorre nas doenças que tornam
o corpo fraco, ou em situações de medo, ou em qualquer situação na qual ela abandona
a inteligência e a sua condução, é possível que a apreensão imaginativa se torne forte, e
que ela se dirija à formativa, empregando-a, sendo que a reunião das duas se torna
igualmente forte, e a forma que está na formativa aparece no sentido comum. 194
“Desse modo, ela (a forma) é vista como se fosse existente fora, porque
a impressão percebida do que vem de fora e do que vem de dentro é o
que é representado na formativa, e só há diferença pela relação.”195
É por essa razão, explica, que aquilo que o homem louco, medroso, fraco e sonolento vê
como imagens subsistentes, se dá como ele as vê realmente no estado sadio, do mesmo
modo como ouve sons. Assim, o imaginado toma forma e dimensões de realidade
exterior. No entanto, quando a inteligência impede algo disto e atrai a influência da
imaginativa, os fantasmas desaparecem.
Ibn S»n« expõe um modo particular de profecia associado à imaginativa.
Segundo ele, em certos homens a faculdade imaginativa é criada extremamente forte de
tal modo que não é dominada pelos sentidos e nem a faculdade formativa (imaginação)
lhe resiste. Também a alma de tais homens é forte, de tal modo que a contemplação do
intelecto e do que está acima deste não destrói sua inclinação para os sentidos.Tais
homens possuem em estado de vigília o que outros possuem no sono, isto é, a
capacidade de ter visões que lhes aparecem ou como são ou através de imagens; o que
194 IV, 2, 121. 195 IV, 2, 122.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
70
explica que eles estejam ausentes das coisas sensíveis ou cheguem até a desmaiar. Há
outros tipos de profecias que serão tratados adiante. 196
Quanto ao mecanismo próprio da imaginativa de reunir e de separar
formas encontra-mo-lo descrito do seguinte modo:
"Mas é próprio desta faculdade imaginativa inclinar-se constantemente
sobre os dois tesouros da faculdade formativa e da memória e apresentar
constantemente a forma começando por uma forma sentida ou da qual
nos lembramos, passando dela a um contrário ou a um semelhante, ou a
algo que vem dela por uma causa, e esta forma sentida ou da qual nos
lembramos será a natureza da forma." 197
O movimento da imaginativa, de uma coisa a seu contrário, excluindo seu semelhante e
de uma coisa a seu semelhante , excluindo-se o seu contrário, tem inúmeras causas. De
um modo geral, pode se dizer que a alma, ao considerar simultaneamente as “idéias”198
e as “formas” passa da “idéia” à “forma” que está mais próxima, ou de modo absoluto,
ou porque aconteceu que pouco antes viu a conjunção desta “forma” e de tal “idéia”,
seja pelo sentido, seja pela estimativa e, por isso, passa da “forma” à “idéia”. Além dos
sentidos e da estimativa, podem intervir, como fatores que particularizam uma “forma”
e uma “idéia”, a inteligência ou ainda uma causa celeste.
A reflexão racional é experimentada pela imaginativa e isso decorre de
sua natureza quando ela está sendo ocupada de maneira urgente. Quando, para uma
certa forma, a alma emprega a imaginativa em vista de um determinado objetivo, a alma
passa rapidamente a outra coisa que não está relacionada com o objetivo e, desta, a uma
terceira, e a imaginativa faz com que a alma esqueça a primeira coisa da qual havia
começado, de modo que a alma tem necessidade de se lembrar, passando a analisar no
sentido inverso para voltar ao princípio. 199
Segue-se a explicação da interferência da imaginativa na fixação de algo
na memória, seja na vigília, seja no sono. Caso a imaginativa o permita (porque está
tranquila ou porque não desvia a alma) a fixação será firme e não haverá necessidade
nem de reminiscência (na vigília), nem de interpretação (nos sonhos), nem de exegese
196 IV, 2, 122. Estas passagens sobre as profecias guardam relações com o caráter profético da religião muçulmana. (Cf. p. 72 sobre o modo de profecia associado às faculdades motoras). 197 IV, 2, 123. 198Vide, sobre a diferença entre forma e idéia, a p.57 n. 171. 199 IV, 2, 123. Voltar ao princípio significa retornar à memória. (Cf. Bakós n. 597).
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
71
(na revelação por audição). É de se notar a aproximação da exegese e da interpretação
em relação à reminiscência.200 Mas, se a imaginativa interfere com o que a alma viu em
sonhos opondo-lhe imagens distintas ou até opostas, o que foi visto não se fixa bem na
memória e sim algo proveniente da imaginação e que imita o que foi visto. Pode
acontecer também que o que foi visto das coisas celestes seja como que “a cabeça e o
princípio” mas depois a imaginação prevalece, lançando-se numa agitação contínua.
Este tipo de sonho não tem muita importância: trata-se de um sonho incoerente e ele é
uma ilusão. Nos sonhos em que prevalece a imaginação, é necessária a interpretação. Às
vezes, alguém vê a interpretação de seu sonho no próprio sonho. Isto é uma
reminiscência. Ibn Sina detalha esta última afirmação:
“Pois como a faculdade cogitativa passou primeiramente do princípio à
conformação, em razão de uma relação entre os dois, do mesmo modo
pouco é necessário para que ela passe da conformação ao princípio.
Então frequentemente ocorre à faculdade cogitativa que tal ação (que é)
sua seja imaginada uma outra vez; então ela é vista como se alguém que
fala dirigisse, por intermédio disso, a palavra à faculdade cogitativa. E
frequentemente não acontece desse modo e sim como se ela visse com
seus próprios olhos a coisa de uma maneira perfeita, sem que a alma
estivesse ligada ao mundo insensível, ou melhor, uma conformação
proveniente da faculdade imaginativa torna-se a conformação, então,
compreendida no princípio. E este modo de sonho verdadeiro é, às vezes,
proveniente da imaginação sem o recurso de uma outra faculdade, apesar
de que isso seja o princípio no qual a conformação se encontra; então, ela
está aí compreendida. Às vezes (a imaginação) representa esta
conformação por uma outra conformação; então, ela precisa uma outra
vez da interpretação do intérprete dos sonhos. Mas isso são coisas e
disposições que não são conhecidas a fundo.”201
Tal tipo de visão não se dá apenas no sonho, mas também em vigília:
"Dentre os que vêem essas coisas no estado de vigília, há o que vê isso
em razão da nobreza e da força de sua alma, e em razão da força de sua
200Cf. AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus aturalibus IV-V . “Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G. Verbeke.1968, p. 23, nota às linhas 10-12. 201 IV, 2, 124-125.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
72
faculdade imaginativa e de sua faculdade que se lembra, sendo que as
coisas sensíveis não distraem a alma de suas acões próprias." 202
Para que ocorram tais fenômenos, é necessária uma relação entre o invisível, a alma e a
faculdade interna imaginativa, 203 bem como uma relação entre a alma e a imaginativa.
O princípio de todos esses movimentos é remetido à metafísica:
“ E como, da apreensão imaginativa, nosso discurso já tratou da matéria
do sonho, não há obstáculo algum para que indiquemos um pouco do
princípio de onde provêm as predições no sono, pelas coisas que
sustentamos de um certo modo, e que só nos são explicadas na disciplina
que é a filosofia primeira. Dizemos, pois, que as idéias de todas as coisas
engendradas no mundo dentre as que foram e são no presente, e se
preparam para ser, são existentes de uma maneira no saber do Criador e
dos anjos intelectuais, e são existentes de uma outra maneira nas almas
dos anjos celestes. As duas maneiras te serão claras em breve num outro
lugar e, também, que as almas humanas combinam mais com estas
substâncias angélicas do que com os anjos intelectuais por causa dos
corpos sensíveis.” 204
Ibn S»n« distingue as representações da imaginativa que provêm do que é mais próximo
da alma, seja isto natural ou voluntário, e as representações que provêm do mundo
invisível. O que é natural é o que resulta do pneuma, veículo da faculdade formativa e
imaginativa, devido à combinação das forças dos humores. São relacionadas com este
tipo de representação as que se ligam a alguma afecção do corpo como a fome, a
emissão de esperma ou a necessidade de defecar. O que é voluntário se liga às
preocupações em vigília, sendo como um resíduo de reflexão no sonho. Tudo isto são
sonhos incoerentes.
202 IV, 2, 125. Verbeke destaca que tais homens, possuindo uma potência psíquica excepcional, são capazes de entrar em contato com o mundo superior mesmo em estado de vigília, abstraindo-se das realidades sensíveis nas quais se encontram. Mas esse dom profético nada tem que ultrapasse a natureza humana, sendo devido apenas ao fato de que tais homens têm a faculdade imaginativa mais potente que a de outros. (Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.56.) 203As representações da imaginativa não pertencem todas unicamente ao que desborda do mundo invisível sobre a alma. (Cf. IV, 2, 126.). 204 IV, 2, 126. Bakós (n.31) explica que as almas das esferas são almas das esferas celestes ou almas angélicas, sendo que acima delas há inteligências separadas. As almas das esferas e as inteligências separadas não entram em composição com a matéria. Indica, ainda que Aristóteles também admite substâncias eternas e motores dos astros que têm movimentos particulares ( Cf. Metafísica 12, 8.).
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
73
Um outro modo pelo qual a imaginativa é afetada pelo exterior é através
dos sonhos provocados por influência dos corpos celestes. Estes provocam, segundo
suas relações e segundo as relações de suas almas, formas na imaginação, sem que estas
venham, de algum modo do mundo invisível ou da predição.
“É por isso que , em sua maior parte, não é verdadeiro o sonho do poeta,
do impostor, do maldoso, do beberrão, do doente, do aflito, e daquele em
quem domina uma compleição ruim ou inquietações. É por isso também,
na maior parte, que o sonho só é verdadeiro se ele tem lugar no momento
da aurora, porque nesse momento, todas as intenções estão em repouso, e
os movimentos das imagens já se apaziguaram." 205
As composições da imaginativa estão relacionadas com o tipo de caráter do homem e
com aquilo que ele cultiva em sua alma, isto é, com o que está armazenado em sua
imaginação, visto que a imaginativa, nesse caso, age a partir de um conjunto de dados
previamente existente. Neste sentido: “os homens que têm os sonhos mais verdadeiros
são os cuja compleição é a mais moderada”.206
As ações da faculdade imaginativa também são influenciadas pelos
hábitos intelectuais do homem. O hábito da falsidade e das cogitações viciosas deteriora
a imaginação quanto a seus movimentos, e esta passa a não assistir corretamente à ação
da razão em direção ao que é justo . Esse tipo de disposição é característico daquele que
tem a compleição da imaginação corrompida e em desordem. 207
Ibn S»n« encerra esta seção com uma breve exposição sobre o sono e a
vigília. 208 A frase final sugere que a seção, no seu conjunto, acabou tendo o caráter de
“uma coisa puxa a outra”: o estudo da imaginativa acarretou o do sonho e este o do sono
e da vigília. Ibn S»n« de fato diz:
“Isto entrou por acidente no assunto aqui tratado, embora seja essencial
falar do sono e da vigília ao se falar do que acontece ao que possui
sensibilidade”.209
205 Aos sonhos desse tipo não se deve atribuir credibilidade porque esses homens manifestam um desequilíbrio no organismo corporal. (Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.57). 206 IV, 2, 127. 207 IV, 2, 128. 208 IV, 2, 127 - 128. 209 IV, 3, 128. Algumas referências sobre o sonho em outras obras de Ibn S»n« encontra-se, ainda que de modo bastante breve, em MAHLOUBI, B. La notion d’imagination chez Avicenne, pp. 93 -101, assim como algumas indicações mais gerais sobre o sonho em Ibn S»n«, Al-Kind» e Aristóteles.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
74
Terceira seção: Das ações da faculdade que se lembra e da estimativa,210 e de que
todas as ações destas faculdades se fazem por órgãos corporais.
Esta seção se inicia com uma referência ao que foi tratado na seção
anterior e o anúncio do tema da presente seção; segue-se uma primeira e fundamental
caracterização da estimativa:
“Depois de termos esgotado nosso discurso sobre a disposição da
(faculdade) imaginativa e formativa, nos é necessário falar da disposição
da (faculdade) que se lembra, e disso que está entre ela e a (faculdade)
cogitativa, e da disposição da (faculdade) estimativa. Dizemos, pois, que
a estimativa é o grande juiz no animal, e ela julga por meio de uma
excitação relacionada à apreensão imaginativa, sem que isso seja
verificado." 211
Isto é parecido com o que ocorre quando o homem acha que o mel é repugnante em
razão de sua semelhança com o fel.212 Este julgamento é feito pela estimativa, e a alma
segue esta avaliação, embora o intelecto a declare falsa. A estimativa possui este tipo de
julgamento mas não possui a distinção racional ; ao contrário, tal julgamento se realiza
apenas por um certo tipo de excitação. Mas, pelo fato da estreita vizinhança da
estimativa com a razão, pode se considerar que no homem, as faculdades internas
estejam a ponto de se tornarem intelectuais, diferentemente dos animais. 213Isso se dá
porque
“a luz da razão parece desbordar, fluir sobre estas faculdades e , além
disso, porque esta imaginativa que o homem tem, já se tornou sujeito de
inerência para a razão, depois de ter sido sujeito de inerência para a
estimativa nos animais, de modo que o homem aproveita da imaginativa
nas ciências.” 214
Ibn Sina destaca algumas características distintivas da estimativa:
210
“Segundo RAHMAN. A History of Muslim Philosophy, Cap. XXV, p. 494, a doutrina aviceniana sobre a estimativa é a mais original de sua psicologia.”; Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.51, n.177. 211
IV, 3, 129. 212
O texto árabe traz o termo y[z°«[ que é fel, mas indica ¶y[z°«[ (bílis) como uma variante existente
no manuscrito T (Litografia de Teerã, 1303) , a qual foi adotada na tradução francesa por Bakós. 213
IV, 3, 129. 214 IV, 3, 129. Apesar dos sentidos internos estarem presentes tanto no animal quanto no homem, a conjunção com a razão faz com que, no homem, os sentidos internos tenham características distintas em relação ao animal. A citação foi corrigida de acordo com a tradução latina. Cf. Van Riet, p. 36.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
75
“Dizemos, pois, que pertencem à estimativa várias modalidades; entre
elas estão os instintos que desbordam da misericórdia divina sobre o
universo; por exemplo, o estado da criança assim que nasce, quanto à sua
dependência da mama; e, por exemplo, o estado da criança que é erguida
e colocada em pé, e que está em via de cair, por sua ação de acorrer para
se agarrar em quem a segura, em razão de uma natureza na alma que a
inspiração divina colocou nela.” 215
Do mesmo modo os animais possuem instintos ou cuidados naturais. A causa disto são
as relações entre eles e o fato de que os princípios de tais relações são constantes e não
intermitentes como, por exemplo, considerar com o intelecto. A estimativa apreende as
“idéias” que estão unidas ao sensível e dizem respeito ao nocivo e ao útil. Assim, toda
ovelha se protege do lobo, sem que jamais o tenha visto, assim como muitos animais se
protegem do leão. Os pássaros se protegem das aves de rapina e, os pássaros frágeis
têm, sem experiência, repulsa por elas. 216 As características inatas, no entanto, não
esgotam as modalidades da estimativa: “ Isto é uma categoria, enquanto que uma outra
categoria existe em razão de algo como a experiência” 217
A diferença entre o que é estimado de maneira inata e o que é estimado
através da experiência decorre do fato de que esta última se dá, por exemplo, quando
uma dor ou um prazer atingem o animal, ou quando lhe chega algo de útil ou inútil
sensível e que isto esteja unido a uma forma sensível. Nesse caso, a forma da coisa e a
forma do que lhe está reunido são impressas na formativa e, a idéia da relação entre as
duas, assim como o julgamento sobre esta relação são impressos na memória graças à
natureza desta última. Quando esta forma aparece do exterior à imaginativa, ela se move
na formativa, mas com ela se move o que lhe foi unido das
idéias úteis ou nocivas, isto é, a idéia que está na memória. Esse processo
se dá à maneira da translação e da apresentação que estão na natureza da faculdade
imaginativa. 218
215 IV, 3, 130. É mencionado ainda o caso da pupila incomodada por um cisco: a criança procura automaticamente fechar a pálpebra. Os dados inatos são, assim, uma nota distintiva da faculdade estimativa em vista dos objetos dos sentidos externos assim como os do processo intelectivo. Não há aí escolha deliberada. 216 IV, 3, 130. 217 IV, 3, 130. 218 IV, 3, 130.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
76
“Então a estimativa sente tudo isto em conjunto e vê a idéia com a forma.
Mas isto se produz pelo motivo de que a experiência foi acrescentada. É
por isso que os cães têm medo das pedras, dos paus e coisas
assemelhadas. Às vezes, sobrevêm na estimativa outros julgamentos a
modo de comparação porque a coisa possui uma forma unida a uma idéia
da estimativa, quanto a certas coisas sensíveis, mas não lhe está unida
sempre com todas estas formas. Então, a estimativa prestará atenção à
idéia desta forma, ao se apresentar esta última. Portanto, a estimativa
sendo o juiz no animal, tem necessidade em seus atos, da obediência
dessas faculdades que ele possui. O de que ela tem mais frequentemente
necessidade é da memória e dos sentidos. Quanto à formativa, a
estimativa tem necessidade dela por causa da memória e da
reminiscência.” 219
Em seguida, Ibn S»n« apresenta uma longa exposição das diferenças entre memória e
reminiscência. Considera que a memória se encontra em todos os animais mas, quanto à
reminiscência, que é o artifício de fazer voltar o que foi apagado, esta só se encontra no
homem. A reminiscência é mais caracterizada no homem, na medida em que há uma
ligação da memória com os atos intelectivos e o estabelecimento de objetivos futuros
nesse processo, ao passo que nos mecanismos puramente memorativos, característicos
do animal, isso não ocorre. Ambos os procedimentos e suas decorrências envolvem os
julgamentos da faculdade estimativa. 220 Ibn S»n« compara a reminiscência e o
aprendizado, estabelecendo sua semelhança e diferença. Detem-se também sobre a
diferença da memória na criança, no adulto e no velho.
Segue-se uma análise das características do modo de abstração pelos
sentidos externos e internos, afirmando a necessidade de órgão corporais nesse
processo.
“Limitemo-nos, agora, ao que dissemos a respeito das faculdades animais
que percebem, e demonstremos que todas fazem atos com órgãos,
dizendo: quanto ao que, dentre as faculdades, percebe as formas
219 IV, 3, 130-131. 220 IV, 3, 131- 132. Cf. também o artigo de Elamrani-Jamal “De la multiplicité des modes de la prophétie chez Ibn Sina” em Etudes sur Avicenne.Paris: Les Belles Lettres, 1984, pp. 129-131 em relação a alguns movimentos da estimativa no processo de memória e reminiscência.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
77
particulares exteriores, segundo uma disposição que não é perfeita quanto
à ação de abstrair e quanto à separação da matéria, e que não é de modo
algum livre das relações com a matéria, como o que percebem os
sentidos externos, é bem evidente, fácil de compreender que a percepção
disso que percebe tem necessidade de órgãos corporais. E isto se dá,
porque estas formas só são percebidas enquanto as matérias estão
presentes, existentes. Ora, o corpo presente, existente, não está presente,
existente, senão de acordo com um corpo, e ele não está às vezes presente
e às vezes ausente de acordo com o que não é um corpo.” 221
Em seguida, é explicado através do exemplo da figura de um quadrilátero, como a
imaginação, ao fixar a forma deste em si, não é capaz de destituir esta forma da
particularidade exterior que lhe foi dada, isto é, a imaginação não desvincula os
acidentes deste quadrado particular para chegar ao conceito universal de sua forma. A
definição, o inteligível universal é algo que só pode ser alcançado pelo intelecto. 222
O mesmo se dá também pelo fato de não podermos imaginar a negrura e
a brancura numa imagem imaginativa, 223 única, fundindo as duas cores nesta imagem.
Mas isso nos é possível desde que haja duas partes da imagem imaginativa, que a
imaginação observa como separadas:
“Mas se as duas partes não fossem distintas quanto à posição, melhor, se
as duas imagens fossem impressas em uma coisa indivisível, a coisa em
questão, não se distinguiria no que é impossível e no que é possível.
Logo, as duas partes são distintas quanto à posição e a imaginação
imagina as duas distintas em duas partes. E se alguém disser: o mesmo
221
IV, 3, 132. A hierarquização da composição dos corpos animados, desde os elementos que os compõem até o mais alto grau de abstração, realizado pelo intelecto agente em nossas almas destituído das notas materiais, encontra nos sentidos internos um desses graus de abstração, no qual já existe um início deste processo. Mas como este modo de abstração é efetuado através de órgão corporais, ele não é tão perfeito quanto o que é feito pelo intelecto que não está impresso em nenhum órgão corporal. Verbeke explica os graus de abstração tomando o caso da visão em que a abstração não é perfeita porque o objeto necessita estar presente para que sua forma seja apreendida. No nível da imaginação, o objeto não necessita mais estar presente, mas a abstração é feita somente da matéria e não dos caracteres materiais do objeto representado. No caso da estimativa, a abstração é mais perfeita porque seu objeto de percepção é imaterial mas, mesmo assim, ainda esta abstração é realizada em relação a um objeto particular. Nem no caso dos sentidos externos, nem dos internos a abstração é perfeita, isto é, uma abstração da matéria e dos caracteres materiais. Disto resulta que a atividade dos sentidos internos só é possível pela intervenção de um órgão corporal. (Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.52-53). 222
IV, 3, 133-136. 223
Este exemplo encontra-se ao final da seção. “A imagem imaginativa única resulta de um objeto visto no exterior, e a brancura e a negrura não podem estar simultaneamente num mesmo substrato”. (Cf. Bakós n. 608).
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
78
ocorre com a inteligência, responderíamos dizendo que a inteligência
conhece a negrura e a brancura juntas a um só e mesmo tempo, enquanto
conceito ou enquanto assentimento. É, então, impossível que o sujeito de
inerência das duas cores seja um, mas quanto à imaginação ela não
imagina as duas juntas, não à maneira do conceito e nem do
assentimento, se bem que a ação da imaginação só se faça à maneira do
conceito, não de outro modo e que ela não tenha nenhuma ação em algo a
não ser ela.” 224
A seção se encerra com a justificativa do porquê de se ter analisado os processo de
funcionamento da imaginação, com a seguinte sentença:
“E após ter conhecido isto da imaginação, já o conheceis da estimativa
que, segundo o que explicamos, aquele que percebe só percebe seus
objetos de percepção tendo relação com uma forma particular,
imaginativa.” 225
Vale notar que a estimativa, em suas ações, recorre não só aos dados armazenados na
memória, que é o seu depósito próprio, mas também às formas armazenadas na
imaginação, que é o depósito próprio do sentido comum; a partir disso, nesse caso,
agindo como se fosse imaginativa, estabelece relações entre as formas e as idéias para
chegar ao seu julgamento próprio.
Quarta seção: Das disposições das faculdades motoras e de um modo de profecia
que depende delas.
As faculdades motoras são de uma ordem diferente em relação às
faculdades que percebem. O animal, enquanto nada deseja, não é excitado a buscar pelo
movimento. Este desejo não pertence a uma das faculdades que percebem, pois estas só
possuem o julgamento e a percepção, o que, por sua vez, não implica o desejo daquilo
que percebem.
“Pois as pessoas concordam sobre a percepção do que sentem e
imaginam enquanto sentem ou imaginam; porém, diferem sobre o que
desejam do que sentem e imaginam." 226
224 IV, 3, 137. 225 IV, 3, 137. 226 IV, 4, 137.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
79
Este tipo de disposição, isto é, a de desejar, não pertence somente ao homem, mas
também a todos os animais. Ibn S»n« explica que não é sempre que o desejo leva ao
movimento, pois, às vezes, a resolução não é possivel. Mas, quando a resolução é
possível, as faculdades motrizes obedecem tal resolução, mediante suas características
próprias, isto é, a contração e a extensão dos músculos.
Em seguida, chama a faculdade que deseja de “faculdade apetitiva”,
apresentando-a com suas duas ramificações:
"E dentre os ramos desta faculdade apetitiva estão a faculdade irascível e
a faculdade concupiscível. Assim, aquela que, desejando o deleitável e o
que se estima util, é excitada a procurá-los, é a concupiscível; ao passo
que, aquela que, desejando vencer e repelir o que se estima incompatível,
é excitada a repelí-lo, é a irascível." 227
Cabe à faculdade deliberativa 228 resolver quando deve mover os órgãos, por exemplo,
como no caso da concupiscível e da irascível, e também do que é belo dentre os
inteligíveis. Por exemplo, à concupiscível pertence a intensidade do desejo para o
deleitável, enquanto que à apetitiva cabe a resolução; assim como à irascível pertence a
intensidade do desejo de vencer, enquanto à apetitiva cabe a resolução para isto.229 Ibn
Sina segue explicando como a combinação das faculdades motoras com as faculdades
que percebem pode gerar novas afecções da alma.
“Mas o medo, o desgosto, a tristeza, são provenientes dos acidentes da
faculdade irascível por uma associação das faculdades que percebem,
pois quando ela se move e está fraca após uma concepção imaginativa ou
intelectual, esses acidentes começam a ser; quando ela se move em
seguida a uma concepção intelectual ou imaginativa, nasce o medo. Mas
quando ela não faz nascer o medo, ela torna-se forte e lhe sobrevém o
desgosto do qual torna-se necessária a cólera, quando o desgosto não
consegue repelir a cólera, a menos que a chegada do desgosto não faça
227 IV, 4, 138. Bakós (n. 612) diz que, em Aristóteles, a doutrina sobre as faculdades da alma, nesse aspecto, corresponde ao desenvolvimento da vida segundo seus quatro graus: 1- crescimento e nutrição, 2- percepção, 3- desejo e movimento, 4- pensamento. (Cf. De anima III, 10, 433a). Bakós (n. 613) destaca também a importância da faculdade concupiscível e irascível na psicologia antiga e medieval, notadamente no que concerne às afecções. 228 A deliberativa é a própria apetitiva em sua função de resolver-se ou não à ação. 229 IV, 4, 138.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
80
nascer o medo. E a alegria , que é do domínio da vitória, e também fim
desta faculdade.” 230
Ibn Sina explica, ainda, que:
“A avidez, a voracidade, a volúpia, a lubricidade e o que a isto se
assemelha, pertencem à faculdade bestial concupiscível, a amabilidade e
a alegria vêm dos acidentes das faculdades que percebem.” 231
Com isto se diferenciam dois graus das afecções das faculdades motoras: as que lhes
pertencem propriamente e as que, em combinação com as faculdades que percebem,
especialmente a imaginativa e a estimativa, lhes pertencem de modo acidental. As
faculdades motoras seguem-se à estimativa, pois um desejo não existe de modo algum,
senão depois da apreensão pela estimativa do objeto desejado. Assim como a faculdade
estimativa possui, nos animais, a autoridade no âmbito das faculdades que percebem, a
concupiscível e a irascível possuem a autoridade no âmbito das faculdades motrizes; e a
faculdade deliberativa segue-se às duas, vindo, em seguida, as faculdades motrizes que
estão nos músculos. 232
A sequência do movimento é a seguinte: primeiramente algo é estimado
ou avaliado (estimativa), em seguida há o impulso para um movimento de aproximação
(concupiscível) ou afastamento (irascível). Este impulso antes de ser atualizado, passa
pelo julgamento da deliberativa que, assentindo, atualiza as faculdades motoras dos
músculos e assim, ocorre o movimento do corpo. As ações e os acidentes vêm dos
caracteres acidentais que sobrevêm à alma enquanto ela está no corpo, não ocorrendo
sem a participação deste. Ibn S»n« chega a afirmar que as compleições corporais
inclinam a aptidão da própria alma. Assim, por exemplo há homens que, segundo sua
compleição, são inclinados a uma natureza irascível ou concupiscível. A tristeza, a
angústia, a dor, a fome e o apetite, por exemplo, também são afecções só tornadas
possíveis pelo corpo. No entanto, os movimentos próprios do corpo são também
influenciados pelos movimentos próprios da alma, como por exemplo:
“E, reflitas no estado do doente que se imagina já curado e, no saudável
que se imagina ser doente. (...) quando a forma se firmou em sua alma e
230
IV, 4, 138. 231
IV, 4, 139. 232
IV, 4, 139.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
81
sua faculdade estimativa, seu elemento-receptáculo233 sofre pela forma,
havendo, então saúde ou doença. E isso é mais eficaz do que o que faz o
médico por meio de instrumentos e recursos e intermediários” 234
A ação da imaginativa nos movimentos se dá também quando, por exemplo, um homem
corre sobre um tronco de palmeira atirado sobre um caminho batido e quando o mesmo
tronco é colocado como uma ponte sobre um abismo, fazendo com que ele rasteje
devagar e temeroso. Tal alteração nos movimentos corporais se dá em vista de que em
sua alma é imaginada, no segundo caso, de modo extremamente forte, a forma de
cair. 235
A explanação segue com o objetivo de mostrar um modo de profecia
provindo das faculdades motoras:
“Então, quando a existência das formas é consolidada na alma, e as
crenças nessas formas, é necessário que elas existam. Então pode ocorrer
frequentemente que a matéria que tem por propriedade de sofrer pelas
formas, sofra por elas, e que elas existam. Se isso existisse para a alma
universal que pertence ao Céu e ao mundo, pode ser que influísse sobre a
natureza do universo, e se isso existisse para uma alma particular, pode
ser que influísse sobre a natureza particular. Mas a alma influi
frequentemente num outro corpo como ela influi sobre seu próprio corpo,
à maneira pela qual influem o mal-olhado e a estimativa que age” 236
Estabelecido que a alma sofre afecções do corpo, que o corpo sofre afecções da alma
que ele porta, e que, além disso, pode ocorrer uma afecção num segundo corpo, é
possível que haja alterações materiais segundo esse modo de influência. Quando a alma
é forte e nobre, semelhante aos princípios, o elemento-receptáculo que está no mundo a
obedece.
“Então esta alma cura os doentes, torna doentes os maldosos e segue-se à
sua ordem que naturezas são arruinadas e naturezas são fortalecidas e que
ela transforma por si mesma os elementos. Então o que não é fogo torna-
233Entende-se tratar do receptáculo corporal, vindo da mistura adequada dos elementos, no qual a alma, como artesã, desenvolveu suas aptidões, em suma, o corpo. 234 IV, 4, 141. Para todas essas afecções da alma cf. JOURNET, C. “Les maladies des sens internes”. Revue Thomiste. Paris: 1924, pp. 36-50, vol. 29 em vista das relações com a psicologia moderna e a psicanálise. 235 IV, 4, 141. 236 IV, 4, 141.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
82
se fogo, e o que não é a terra torna-se terra e, além disso, por sua vontade
sobrevêm chuvas e uma fertilidade, do mesmo modo que sobrevém uma
penúria e uma epidemia, tudo de acordo com o necessário inteligível; em
resumo, à ordem de sua vontade pode sobrevir a existência do que tem
relação com a alteração do elemento-receptáculo nos contrários. Com
certeza, o elemento receptáculo obedece, por sua natureza, ao necessário
inteligível, e nele é engendrado o que está representado na vontade do
necessário inteligível; pois o elemento-receptáculo é totalmente submisso
à alma, e sua sujeição a ela é mais numerosa que sua sujeição aos
contrários que influem sobre as qualidades. Mas isto é também uma das
propriedades das faculdades relativas à profecia (...) que tem relação com
as faculdades animais motoras, 237 deliberativas da alma do profeta
majestoso em profecia.” 238
Terminada a exposição quanto à este modo de profecia, Ibn S»n« retorna à questão da
localização corporal das faculdades reafirmando que todas as faculdades animais só
agem pelo corpo. Além disso, essas faculdades só existem enquanto agem, e sua
existência só se dá enquanto houver corpo. Quanto à sobrevivência das faculdades
animais após o desaparecimento do corpo, Ibn S»n« é claro: “Elas não possuem
sobrevivência depois do corpo.” 239
Com esta frase encerra-se esta seção e o Capítulo IV, mas Ibn S»n«
acrescenta uma observação, remetendo o leitor para os escritos de medicina, onde
encontrará um estudo “das causas das aptidões dos indivíduos diferentes por sua
natureza e pela diversidade de suas disposições, à alegria, ao desgosto, à cólera, à raiva,
237 Na segunda seção foi apresentada um modo de profecia provindo dos movimentos da imaginativa. 238 IV, 4, 142. Não nos deteremos nas interpretações desta passagem. Aludimos, apenas, à observação de Verbeke na qual afirma que “Avicena não se admira: a alma humana pode tornar-se de tal modo vigorosa e potente que a matéria lhe seja submissa e lhe obedeça totalmente. Não se trata, pois, de uma intervenção especial da Divindade no curso da história, mas de um poder que a alma adquiriu pelo seu próprio desenvolvimento”. (Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.59). 239 IV, 4, 142.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
83
à inveja, à benignidade e demais da mesma ordem”240 estudo inexistente, segundo o
próprio Ibn S»n«, nos seus predecessores.241
240Alegria ( mzŸ - fara ̄); desgosto ( ±› - ¿am ); cólera ( ̀ Œ› - ¿a±ab ); raiva ( v¤n- ̄ aqad ); inveja
( v�n - ̄ asad ) e benignidade ( »¯Ø� - sal«ma ). 241 Vide AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus aturalibus IV-V . “Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G. Verbeke.1968, anexo, pp. 187-210. Não adentraremos no último capítulo (Capítulo V), mas destacamos que, neste, Avicena trata da alma racional e de suas ações e paixões. A maior parte é um estudo dedicado à analise do processo da aquisição dos inteligíveis, os graus de inteligência e sobre o intelecto agente. Neste capítulo também é afirmada a subsistência da alma racional humana. O tratato termina com uma explicação detalhada dos órgãos que pertencem à alma e como se dá o seu funcionamento.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
84
CAPÍTULO III - AI�DA OS SE�TIDOS I�TER�OS
1) As fontes de Ibn S»»»»n«««« : Embora cônscios de que há inúmeras fontes às quais Ibn S»n« recorreu
em toda a sua obra, nesta análise não pretendemos chegar aos limites da exaustão, o que
desbordaria do propósito deste trabalho; ao contrário, procuraremos apenas indicar um
itinerário básico do desenvolvimento dos sentidos internos através dos principais
autores anteriores à Ibn S»n«, segundo o que a literatura242 nos oferece.
Como assinaláramos de início, Ibn S»n« não partiu do zero para chegar à
sua própria definição, estruturação e funcionamento dos sentidos internos. Sua fonte
mais próxima é Al-F«r«b», como veremos, mas podemos nos distanciar deste
procurando estabelecer uma origem mais longínqua no tempo que remete a Galeno e ao
próprio Aristóteles, particularmente ao seu De Anima que é a base geral do Kit«b-al
afs. No entanto, no que se refere especificamente ao tratamento dado aos sentidos
internos, Ibn S»n« se distancia do mestre grego, como relembra Bakós:
“A teoria dos sentidos internos é pós-aristotélica. Aristóteles admite
somente o sentido comum, a φαντασια (imaginação) e a
µνηµη (memória), mas não como sentidos internos (...) .Philopon
reconhece dois modos de fantasia, um recebe e reúne as impressões, a
outra as combina (...) Avicena aborda o campo de explicação dos
sentidos internos que Aristóteles não conheceu; apesar de encontrar-se
nele certos elementos rudimentares sem localização no cérebro.” 243
Inicialmente, em Ibn S»n«, já há um conjunto determinado de sentidos que são
estudados numa parte específica de sua obra, isto é, o Capítulo IV, ao passo que não se
verifica no De Anima do Estagirita uma seção específica que trate das faculdades pós-
sensoriais.
“Em Aristóteles não há um termo geral para as faculdades da alma
tratadas no livro III do De Anima e no De Memoria et Reminiscentia para
242As linhas gerais deste capítulo têm como base o trabalho de WOLFSON, H.A. “The internal senses in latin, arabic and hebrew philosophic texts”, in Studie in the history of philosophy and religion.London: Harvard University Press, 1979, pp. 250 -314. 243Cf. Bakós n. 182.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
85
diferenciá-los dos cinco sentidos que ele trata no livro II do De
Anima.”244
Entretanto, não foi Ibn S»n« quem diferenciou tais faculdades pela primeira vez com a
denominação “sentidos internos”. Desse modo, da inexistência da expressão “sentidos
internos”, verificada em Aristóteles, até a complexa sistematização encontrada em Ibn
S»n« há um itinerário que envolve outros autores.
A expressão “sentidos internos”245 é encontrada tanto nos textos árabes
como nos textos hebraicos e latinos medievais anteriores a Ibn S»n«.246 O significado
dessa expressão é variável segundo a determinação de uma ou mais faculdades247 pós-
sensoriais dada pelos diversos autores. No entanto, todas guardam a característica mais
importante que é a de serem faculdades distintas dos cinco sentidos externos.248 Nos
primevos textos filosóficos latinos, Agostinho parece ter sido o primeiro a usar a
expressão “sentidos internos”.249 Nesse caso, porém, esta designação tem a função de
denominar simplesmente uma faculdade pós-sensorial da alma. Sua caracterização não
comporta distinção numérica e nem o detalhamento encontrado em Ibn S»n«.250 Além do
mais, não foi através da literatura filosófica latina que Ibn S»n« herdou uma série de
traços constitutivos de sua classificação dos sentidos internos. Neste assunto, assim
como em muitos outros, a tradição filosófica árabe, incluindo Ibn S»n«, além da notória
herança da filosofia dos gregos (mais precisamente de Aristóteles) deve muito também à
tradição galênica no que concerne ao arranjo entre a filosofia e a fisiologia médica.
Muitos dos chamados médicos-filósofos como Al-F«r«b», Ibn S»n«, Al-R«zi, Maimon
244
Cf. Wolfson, art. cit., p. 250. 245Às vezes ao invés de “interno” encontram-se os termos “espiritual”, “separável” e “ cerebral”, o que se explica pelo fato de que as faculdades às quais eles são aplicados residem “dentro do cérebro” e operam sem os órgãos corporais externos. (Ibid. p. 250). 246Na filosofia grega porterior a Aristóteles, sobretudo sob a influência da filosofia médica grega, a questão dos sentidos internos tornou-se importante, assim como na psicologia patrística (Agostinho, O Livre arbítrio, I, 4, 10), depois na filosofia árabe e sobretudo na filosofia e na psicologia escolástica da Europa, o número dos sentidos internos chega, ao fim da evolução, a cinco. (Cf. Bakós nn. 200 e 208). 247Às vezes, também, o termo “faculdades” ou “apreensões” é usado ao invés de “sentidos”. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 250). 248Algumas vezes ao invés de “externo” são usados os termos “corporal” e “passivo”. (Ibid. p. 250). 249O próprio Wolfson afirma: “Fui incapaz de encontrar o uso de ‘sentidos internos’ antes de Agostinho.” (Ibid. p. 252, n.12). 250 Não nos debruçaremos sobre a análise dos sentidos internos na tradição latina, mas apenas para que fiquem alguns exemplos destacamos que Agostinho usa tanto “sentido interno” (interior sensus) como “faculdade interna” (interior vis). (Cf. As Confissões, I, 20; VII, 17; O livre arbítrio, I,4,10; II, 3-5). Estes termos são empregados como sinônimos do sentido comum de Aristóteles, guardando traços das funções assinaladas pelo filósofo grego. De modo similar ocorre também em Gregório Magno. Em Erígena, o sentido descrito como interior é identificado com o termo grego διανοια, situando-se antes da ratio (λογοσ) e intellectus (νουσ) e depois dos cinco sentidos externos e da imaginação. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 252).
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
86
(Maimônides), Ibn Rušd e outros aí se inserem. Vejamos, pois as relações que este fato
encerra.
Na literatura filosófica árabe e hebraica, de modo geral, a expressão
“sentidos internos” aparece desde o começo como uma designação genérica que inclui
uma variedade de faculdades pós-sensoriais. Em sua forma mais simples é usada
incluindo três faculdades: imaginação (φανταστικον), cogitação (διανοετικον) e
memória (µνηµονευτικον). Vale lembrar, contudo, que esta tríade já é encontrada na
discussão de Aristóteles a respeito das faculdades que estão além dos sentidos.251 Desse
modo, é possível remeter ao próprio mestre grego, se não a sistematização, ao menos a
indicação da estrutura básica como condição possível do desenvolvimento
posteriormente verificado. Nessa medida, o próprio Galeno não poderia ser tomado
como a origem das classificações dos sentidos internos:
“Não se pode concordar com o ponto de vista de que a classificação
tríplice dos sentidos internos é de origem galênica ou de que há algo
peculiarmente galênico nela. A enumeração de Galeno destas três
faculdades pós-sensoriais, precisamente como sua enumeração dos cinco
sentidos que a precede, nada mais é do que uma análise do De Anima e
do De Memoria et Reminiscentia de Aristóteles.”252
Do mesmo modo que Aristóteles, Galeno não usa o termo “sentidos internos” para essas
faculdades, embora os filósofos árabes ao reproduzir sua classificação das faculdades
pós-sensoriais, a descreva pelo título de “sentidos internos”.
Em relação às passagens na literatura árabe e hebraica que contêm a
classificação dos sentidos internos em três verifica-se que elas não são homogêneas nem
quanto à enumeração, nem quanto à terminologia. Podem ser identificados dois grupos
básicos: no primeiro estão Hunayn ben Isaq, Al-R«zi, Isaac Israeli e Pseudo Bahya.253
Em todas estas listas os termos usados são acuradas traduções dos três termos usados
por Galeno. Hunayn e Al-R«zi em suas classificações das faculdades pós-sensoriais em
251No De Anima, III,3; III, 4-6 e no De Memoria et Reminiscentia, respectivamente. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 253). 252Cf. Wolfson, art. cit., p. 253. 253 A respeito da vida e obra dos filósfos judeus remetemos à MUNK, S. Mélanges de philosophie juive et arabe. Paris: J.Vrin, 1988. Quanto aos árabes remetemos à FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Les éditions du cerf: 1989 e BADAWI, A. A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972. Ressaltamos apenas que Hunayn ben Isaq (809-873) foi “de longe a maior personagem na história da tradução da filosofia e das ciências gregas (...) fundando a arte de tradução árabe sobre bases científicas.” (Cf. FAKHRY cit. supra, p. 36).
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
87
três, referem-se explicitamente a isto. O segundo grupo é representado pelas listas dadas
por Ibn Gabirol, Abraham Ibn Ezra e Maimônides. Nestes, os termos diferem dos
usados por Galeno. Ao invés de “memória” usam “compreensão”, por exemplo, ou ao
invés de “imaginação”, “criação”. Mesmo assim em suas raízes “estas três listas são
também traduções da classificação de Galeno.”254 De modo geral, nestas classificações
não há descrições precisas das funções das várias faculdades mencionadas nelas. O que
se tem é uma correspondência com os três termos gregos φαντασια, διανοια, µνησισ,
e as suas respectivas localizações nas concavidades anterior, média e posterior do
cérebro.255 Uma classificação diferenciada pode ser encontrada nos chamados Iĥwan
Al-¶afa256. Além de reproduzir a mesma classificação com a mesma localização, são
acrescentadas duas faculdades incluindo, ainda, uma descrição das funções de cada uma
das cinco. São chamadas de “sentidos espirituais” em oposição aos “corporais”. Sua
classificação é a seguinte:
1- imaginação, que recebe e retém as impressões dos sentidos;
2- cogitação, que distingue as impressões umas das outras e sabe o que é
verdadeiro ou falso, certo ou errado;
3- memória, que preserva os julgamentos da cogitação;
4- faculdade da fala, localizada na garganta e na língua tendo por função
comunicar o conteúdo de uma mente a outra;
5- faculdade produtiva, localizada nas mãos e nos dedos tendo como
função produzir a arte da escrita e as outras artes.257
Nesse caso, parece seguro que as três primeiras são de origem
aristotélica. Quanto às outras, pode se supor duas vias: a primeira é que esta
classificação seria uma combinação de duas classificações tríplices, a saber, a de Galeno
e a dos estóicos. A estóica é a seguinte: φωνητικον, διανοητικον, γεννητικον. No
caso dos Iĥwan Al-¶afa as três primeiras faculdades seriam as de Galeno, a quarta seria
a primeira dos estóicos e a quinta seria a terceira dos estóicos. Nesta última, o conceito
254Cf. Wolfson, art. cit., p. 255. 255 Ibid. p. 258. 256A tradução geralmente é feita por “Irmãos da Pureza”. Para tanto remetemos à FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Les Editions du Cerf: 1989, pp. 185-188 e CORBIN, H. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Gallimard, 1989, pp-193-197. “Os irmãos da Pureza” podem ser caracterizados como uma sociedade filosófico-religiosa secreta descrita como comunitária e fraterna. Intitulam-se membros na pesquisa da verdade, reunidos pelo menosprezo ao mundo e seus atrativos e pela sua devoção à verdade, sendo a teologia ou “ciência divina” a sua principal preocupação. (Cf. FAKHRY cit. supra, pp. 186-187). 257Cf. Wolfson, art.cit. p. 258.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
88
específico da geração (produção) de crianças teria sido tomado no sentido geral de
produção. A segunda sugestão é de que os dois últimos termos teriam derivado do
intelecto teórico e prático de Aristóteles.258 Desse modo, a idéia de que “a história da
classificação dos sentidos internos consiste na elevação das três faculdades galênicas
originais a cinco pela adição do “sentido comum” e do que os escolásticos chamam
‘aestimatio’ ”259 não é válida em todos os casos, como mostra a classificação dos Iĥwan
Al-¶afa. Na verdade, a adição destas duas últimas resultou num total de sete faculdades,
visto o desdobramento que elas implicaram. Este número final poderá ser combinado de
modo diferente pelos diversos autores, como veremos.
No caso da estimativa parece que o primeiro a introduzi-la na lista de
classificação foi Al-F«r«b». Em Aristóteles não há nenhuma menção de uma faculdade
denominada “estimativa”. Alguns autores quiseram identificá-la com a
δοξα aristotélica, mas o próprio Arsitóteles diz que esta não existe nos animais.260 “A
descrição característica da faculdade estimativa como a dos medos e preferências dos
animais não corresponde às descrições características da δοξα que se encontra em
Aristóteles."261 Mesmo assim, pode se inferir das obras do mestre grego traços que
permitem indicações que talvez tenham levado os autores posteriores a desenvolvê-la ao
ponto de ser sistematizada e nomeada como “estimativa”.
A indicação de que uma tal faculdade existe no animal parece ter sido
feita pelo próprio Aristóteles em passagens em que ele diz que esta faculdade é
comparável à inteligência (διανοια) no homem, estando presente no animal como algo
equivalente à sagacidade (συνεσισ),262 ou uma faculdade equivalente à arte (τεκνε),
sabedoria (σοφια)263 e sagacidade. Em outro lugar ele descreve os animais como
prudentes (φρονιµοσ)264 ou como sagazes ( συνετοσ)265. Labarriérre também afirma
que Aristóteles classifica frequentemente, senão todos, ao menos um certo número
dentre os animais de “phronimoi” havendo uma hierarquia deste tipo de “inteligência
258Há uma relação das passagens de Aristóteles com os Iĥwan Al-¶afa via João Damasceno. Este, na discussão da dianóia, reproduz Aristóteles. Faz referência também a uma classificação siríaca: pensamento, reflexão, inteligência, espírito, julgamento. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 261-266). 259Cf. Wolfson, art. cit. p.267. 260 Ibid. p. 268 n. 3 remetendo ao De Anima, III, 3, 428a19-22. 261Ibid.p.269. 262Historia animalium, VIII, 1, 588a,23 (Cf. Wolfson, art. cit., p. 271, n.9). 263Cf. Wolfson, art. cit., p. 271, n.10. 264De Partibus Animalium, II,2, 6481, 5-8 (Cf. Wolfson, art. cit., p. 271, n.11). 265Cf. Wolfson, art. cit., p. 271, n.12.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
89
animal” nas diversas espécies.266 Estas denominações fazem referência a um tipo de
“inteligência” animal que permite, por exemplo, que a aranha faça a sua teia. Essa
produção é realizada por um tipo de arte (τεκνε) que não é dada propriamente pela
inteligência mas por natureza.267Se todas as faculdades da alma animal estão no homem
e se é possível verificar esse tipo de estimação existente primariamente nos animais,
tomando neles o lugar da razão no homem, é possível dizer, também, que esse tipo de
estimação existe no homem, sendo usada frequentemente em alguns julgamentos que
não são afetados diretamente pela razão.268
No caso de Al-Kind»,269 considerado o primeiro filósofo árabe, não se
encontra um conjunto de sentidos que sejam denominados “internos”. A sua teoria da
alma, inspirada tanto em Platão quanto em Aristóteles, já indica o cérebro como a sede
das faculdades da alma270 mas parece não ultrapassar os limites das faculdades que
estão entre a sensação e o intelecto estabelecidas pelo Estagirita em seu De Anima. Ao
estudar os sonhos, Al-Kind» chega a tratar da imaginação e de seus movimentos tanto na
vigília quanto no sono, afirmando que, neste último, a sua ação é mais forte. Mesmo
assim, não parece haver uma classificação que se assemelhe àquela que encontramos,
logo em seguida, em Al-F«r«b». Este, aliás, parece ter sido “o primeiro a introduzir a
estimativa (wahm) na classificação dos sentidos internos”271 tendo alterado o
significado da cogitativa (mufakira), terminando por acrescentar uma outra espécie de
imaginação (mutaĥa»la). Em Al-F«r«b» teríamos duas classificações básicas diferentes:
1- imaginação - somente com a função de reter as imagens dos objetos
sensíveis;
2- estimativa;
3- memória- função de reter as formas da estimativa;
4- imaginação compositiva humana;
266LABARRIÉRRE, J.L.”De la phronesis animale”. Biologie, logique et métaphysique chez Aristote. Séminaire du CNRS, 1987. Paris: Ed. du CNRS, 1990, pp. 405 - 428. 267"Esta faculdade de sagacidade, prudência, ou previsão, que Aristóteles atribui aos animais, correspondente ao intelecto no homem, corresponde exatamente à descrição do árabe “wahm” e do escolástico “aestimatio". (Cf. Wolfson, art. cit., p. 271). 268Cf. Wolfson, art. cit., p. 272, n.16 indicando que Ibn S»n« refere-se a isso no Cânon. 269Cf. BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 427 e 450. 270Ibid. p. 451. 271Cf. Wolfson, art. cit., p. 274
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
90
5- imaginação compositiva animal.272.
Na outra classificação, Al-F«r«b» parece mencionar somente quatro
termos sendo que, a ausência da imaginação compositiva animal talvez se dê pelo fato
de estar subentendida:
1- imaginação;
2- estimativa;
3- memória;
4- imaginação compositiva humana. 273
Há, ainda, uma outra descrição, fornecida por Badawi,274 que indica mais
precisamente as funções de cada faculdade:
1- formativa, encontrada na parte anterior do cérebro, que fixa as
imagens após a separação das coisas sensíveis dos sentidos;
2- intuição, que percebe do sensível o que não é sentido, por exemplo, a
capacidade da ovelha de apreender o perigo do lobo275, sendo o sentido externo incapaz
de apreender tal periculosidade;
3- memória, que armazena o que a intuição percebe assim como a
formativa armazena o que os sentidos externos percebem;
4- imaginativa que tem acesso aos dois depósitos ( da memória e da
formativa ) para unir ou separar as formas que lá estão; esta última quando empregada
pelo homem denomina-se pensamento discursivo.
Estas classificações de Al-F«r«bi constituem-se seguramente numa das
fontes mais próximas nas quais Ibn S»n« se inspirou. Duas diferenças são notadas: a
primeira, de que não se tratou até aqui do sentido comum e tampouco da diferença entre
a memória e a reminiscência. Estas duas características serão apresentadas por Ibn S»n«,
elevando o número de faculdades e de combinações destas como veremos a seguir.
272 Wolfson adverte que Al-F«r«b» provavelmente não pretendeu dar uma classificação quíntupla, mas ao contrário, como outros depois dele, contou as compositivas animal e humana como uma só, somando quatro sentidos internos. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 275, n. 23, indicando esta classificação no Risalat fu·us Al-®ikma em tradução alemã - Preciosidades da Sabedoria Cf. ISKANDAR, J. I. Avicena a origem e o retorno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p.17-18). 273A ausência da compositiva animal significa que está subentendida. (Cf. Wolfson, art. cit., p. 275, n. 24, indicando esta classificação no ‘Uyun Al-Masa’il - As fontes do problema - tradução alemã). 274Cf. BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 546. 275 Este exemplo de Badawi indica que o exemplo tão repetido pelos medievais, parece já estar presente antes do próprio Ibn S»n«.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
91
2) As classificações de Ibn S»»»»n«««« :
Dando continuidade à herança do conjunto de sentidos internos que o
antecedeu, Ibn S»n« pode ser lembrado, antes de tudo, pelo amplo tratamento que dedica
à explicação das potências de cada faculdade e suas detalhadas articulações. Mas,
restringindo-nos apenas ao aspecto das funções e da classificação das faculdades, pode
se apontar duas contribuições principais. A primeira é a inclusão do sentido comum,
como o registrou bem Wolfson:
“O primeiro a incluir especificamente o sentido comum em sua
classificação dos sentidos internos é Avicena. A descrição característica
do sentido comum que ocorre em seus escritos é análoga à caracterização
aristotélica como a faculdade que distingue e compara os dados da
percepção sensorial.276 (...) Sua localização, em concordância mais
propriamente com Galeno do que com Aristóteles, é como a da
imaginação retentiva, na cavidade anterior do cérebro." 277
Devemos lembrar, no entanto, que apesar da descrição da função do sentido comum em
Ibn S»n« aproximar-se da de Aristóteles, a caracterização do sentido comum como uma
faculdade separada dos sentidos externos, assim como a sua localização cerebral não se
encontra no mestre grego. A segunda contiribuição é o estabelecimento da diferenciação
entre a memória e a reminiscência.278 Com a introdução do sentido comum e da
reminiscência, a classificação dos sentidos internos se completa, tendo no total sete
funções ou sete faculdades:
1- sentido comum;
2- imaginação retentiva;
3- imaginação compositiva animal;
4- imaginação compositiva humana;
276 Não nos deteremos nesta discussão mas destacamos que há divergência sobre o pioneirismo de Ibn S»n«. Apesar de Wolfson afirmar que “ o primeiro a incluir especificamente o sentido comum em sua classificação dos sentidos internos é Avicena” (Cf. Wolfson, art. cit., p. 276), Goichon, após citar a referida sentença de Wolfson, escreve: “ Acreditamos, no entanto, que o primeiro foi Al-F«r«b»” , cf. Livre des Directives e remarques, p. 318. Ver também Verbeke Introd. III-IV, p. 49, que segue a opinião de Wolfson, da qual partilhamos. 277Cf. Wolfson, art.cit. p.277. 278 Esta diferenciação não é original visto que o próprio Aristóteles escreveu um pequeno tratado com o título de Sobre a memória e a reminiscência. Referimo-nos, aqui, a contribuição de Ibn S»n« em relação aos seus predecessores mais próximos.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
92
5- estimativa;
6- memória;
7- reminiscência.
De modo geral, o que mais caracteriza cada uma dessas funções é o
seguinte:
1- sentido comum - o centro para o qual todos os sentidos convergem; ele
distingue entre as qualidades dos diferentes sentidos, acrescentando o elemento de
consciência à sensação; no entanto não retém as impressões que recebe;
2- imaginação retentiva - retém as impressões das coisas sensíveis
recebidas pelo sentido comum depois que as coisas desapareceram;
3 e 4- imaginação compositiva animal e humana - consiste na
construção de novas imagens reais ou irreais;
5- estimativa - percebe as formas insensíveis conectadas aos objetos
sensíveis, sabendo o que se deve seguir e o que se deve evitar;
6- memória - retém as formas da estimativa, assim como a imaginação
retentiva retém as formas dos objetos sensíveis;
7- reminiscência - é a restauração de algo à memória depois de ter sido
esquecido.279
As combinações feitas por Ibn S»n« em outras obras parecem não ser tão
completas quanto a do Kit«b al- afs. Em relação ao sentido comum e à imaginação, no
Canon, Ibn S»n« teria registrado duas definições: de acordo com os filósofos, o sentido
comum e a imaginação seriam faculdades distintas sendo a primeira o recipiente das
imagens e a segunda o retentor das imagens; por outro lado, de acordo com os médicos,
as duas constituiriam uma faculdade simples, embora observe-se nela a distinção entre a
força retentiva e a receptiva.280 A referência aos médicos não parece estar ligada a
nenhum nome específico visto que em Galeno sequer ocorre o termo sentido comum; a
enumeração dos sentidos internos, por ele apresentada, logo após os sentidos externos,
comporta apenas: φαντασια, διανοητικον, µνηµονικον. Vale lembrar, no entanto,
que no caso das localizações cerebrais a doutrina de Ibn S»n« talvez tenha mais
proximidade com a “dinâmica da doutrina celular ” relativa às funções cerebrais e que
foi introduzida por Qusta b. Luqa. Nesta teoria, a cada “célula” ( ou concavidade ) do
279Cf. Wolfson, art. cit. p. 277. 280Ibid. p.278.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
93
cérebro é associada uma função específica.281 Mesmo assim, a posição mais aceita
parece ser a de que Ibn S»n« teria procurado indicar duas posturas em relação aos
sentidos internos mais do que entrar em discussão com alguma linha médica específica.
Em sua dupla formação de médico e filósofo ele procura harmonizar as
duas posições sem considerá-las excludentes, combinando essas duas vias em seus
escritos. Do ponto de vista médico, as faculdades da alma seriam classificadas segundo
o órgão que ocupam, ao passo que, para a filosofia, referir-se-iam a várias funções:282
“Do ponto de vista filosófico uma faculdade é a que tem uma função distintiva,
independente do lugar que ocupa no cérebro.”283 Considerado desse modo, na Al- ajat
e na Al-Šif«’ Ibn S»n« teria seguido mais os filósofos e "curiosamente reproduz a
palavra grega fantasia na transliteração árabe como sinônimo de sentido comum."284 No
Risalat fi al- afs (Epístola da alma) ele parece ter seguido mais os médicos não só
tratando as duas faculdades como uma mas até mesmo as identificando, definindo
ambas em termos de sentido comum e não fazendo nenhuma distinção entre retenção e
recepção.285
No que concerne à imaginativa animal e humana e à estimativa, Ibn S»n«
as teria tratado no Canon como uma só faculdade. Na Al- ajat nenhum número é dado
mas, pelo contexto supõe-se que a compositiva humana e a imaginação animal são
tratadas como uma faculdade e a estimativa como outra286. Quanto à memória, Ibn S»n«
se refere no Canon à discussão entre os filósofos sobre se ela é uma ou duas faculdades.
Na Al- ajat e no Risalat fi al- afs ele não faz distinção entre as duas. Segundo essa
variedade de combinações, Ibn S»n« teria no Canon três espécies de classificação. Uma
primeira com três membros:
1- a- sentido comum;
b- imaginação (definida nos termos do sentido comum);
2- compositiva a - humana;
b- animal;
c- estimativa;
3- a- memória;
281 DELIBERA, A. A Filosofia medieval. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. 282Cf. Wolfson, art.cit. p .279. 283Ibid. p. 280. 284Ibid. p. 278. 285Ibid. p. 278. 286Ibid. p. 280.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
94
b- reminiscência.
Em seguida, haveria uma classificação quádrupla contando o sentido
comum e a imaginação como duas faculdades, e uma quíntupla, contando a memória e a
reminiscência como duas.
No Risalat fi al- afs a classificação seria a seguinte:
1- sentido comum e imaginação;
2- compositiva animal;
3- estimativa;
4- memória e reminiscência;
5- compositiva humana.
Ao considerar tais variações, Wolfson afirma que "Avicena não parece
decidir quais destas sete faculdades devem se combinar e, consequentemente, várias
combinações são encontradas em seu Canon, na Al-Šif«’,287 na Al- ajat, e no Risalat fi
al- afs.”288 Esta afirmação, no entanto, não parece ser adequada na medida em que
admitimos que uma das chaves que permite compreender a dinâmica, as localizaçãoes e
as diversas classificações dos sentidos internos em Ibn S»n«, segundo o Kit«b al- afs, é
que, na verdade, a preeminência não é quanto ao número e à combinação dos sentidos
internos, mas quanto às suas funções.
O fato de se chegar a sete faculdades ou funções não implica para Ibn
S»n« que o número de sentidos internos deva ser sete ou ter uma combinação rígida. Isso
se deve ao fato de que ele considera que um sentido interno pode ter mais do que uma
função, o que pode reduzir o seu número para cinco em alguns casos e, em outros, até
para quatro. Pode se observar que Ibn S»n« ao mesmo tempo em que estabelece com
rigor as funções das faculdades não as combina com rigidez. Ao longo do Kit«b al- afs
isto pode ser verificado com frequência como, por exemplo, no caso da estimativa em
que, após a definição da função básica desta faculdade, Ibn S»n« passa a apresentar as
variantes compreendidas em sua dinâmica e em seus movimentos levando-a a ser
também imaginativa e também memorativa. Tais variações de combinação não parecem
ser, no Kit«b al- afs, uma indecisão do autor mas uma amostra da maleabilidade das
combinações segundo o imperativo das funções das faculdades.
287Cf. Wolfson, art.cit. pp. 277-278, n.32, esclarecendo que não se baseou no texto árabe mas que o esquema de classificação e a terminologia usados é o mesmo da Al- ajat. 288Ibid. p. 278.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
95
Desse modo, a questão de encontrarmos no Kit«b al- afs cinco sentidos
internos deriva justamente do fato de que, não obstante serem consideradas sete funções
distintas, isto não implica que elas sejam sete faculdades distintas. Assim, a combinação
final, nesta obra, resulta em cinco sentidos internos com sete funções básicas. Aí, não se
encontra, também, a alusão de Wolfson, quanto ao problema da dupla classificação
médica e filosófica. Além disso, Ibn S»n« parece também não ter dúvida quanto à
combinação básica que deve ser feita289, sendo que a classificação final do Kit«b al- afs
com os nomes que o próprio Ibn S»n« fornece é a seguinte:
1- sentido comum ou fantasia;
2- imaginação, imaginativa ou formativa;
3- imaginativa ( no animal ) e cogitativa ( no homem );
4- estimativa;
5- faculdade que conserva e se lembra.
289Deve se ter em conta, também, que segundo o relato de Al-Jūzj«ni, a Al-Šif«’ e o Canon foram escritos na mesma época. Cf. GOHLMAN, W. E. The life of Ibn Sina. New York: State University of New York Press, 1974, p. 55 - 56. (Vide supra, p. 5).
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
96
3 ) A posteridade na trilha de Ibn S»»»»n««««:
A tradição posterior árabe e judaica seguiu no geral o exemplo de Ibn
S»n«, passando a incluir o sentido comum em suas classificações. Assim, por exemplo,
Šarastani reproduz a classificação da Al- ajat. Al-¾azal», mesmo diferindo em seus
escritos quanto à combinação e, por vezes, quanto à localização, segue em linhas gerais
o estabelecido por Ibn S»n«.290 A influência da classificação de Ibn S»n« pode ser
encontrada também nos escritos de Juda-ha levi, Bahya Ibn Pakuda e Abraham Ibn
Daud.291 Um afastamento desse tipo de classificação é encontrado em Ibn Rušd. Em seu
Epítome da Memória e Reminiscência, ele fornece uma classificação quádrupla do que
denomina “sentidos espirituais”:
1- sentido comum,
2- imaginativa
3- cogitativa ou descriminativa
4- memorativa. 292
Ibn Rušd parece omitir a compositiva animal e a estimativa por
considerá-las sub-funções da imaginação. Em seu comentário ao De anima de
Aristóteles diz que este apresenta quatro estágios das faculdades imateriais: sentido
comum, imaginação, cogitação e memória. No Epítome da Memória e Reminiscência
afirma que aquilo que o homem realiza por “pensamento e deliberação” os animais
fazem por “natureza” . Mas “natureza,” diz ele, não tem um nome especial. Ibn S»n«, no
entanto, a chama de estimativa. De acordo com Ibn S»n« esta é uma faculdade separada;
de acordo com Ibn Rušd, seria uma sub-função da imaginação.293
Quanto ao ocidente, pode se verificar que por intermédio das traduções
dos escritos árabes para o latim nos séculos XII e XIII, tanto a classificação dos sentidos
internos de Ibn S»n«, como a de Ibn Rušd, tornaram-se conhecidas dos escolásticos.294 A
penetração da psicologia de Ibn S»n«, além dessa via direta da tradução de suas obras,
também ocorreu por uma outra via, indireta, tanto pela tradução latina do Maq«sid al-
290Cf. Wolfson, art. cit. pp. 282-283, apresentando algumas varições na classificação de Al-¾azal». 291Ibid. pp.285-287, fornecendo as suas classificações. 292Ibid. p.289. 293Ibid. pp.289-290. 294Ver nossa introdução no que se refere à importãncia histórica da Al-Šif«’.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
97
fal«sifah (As intenções dos filósofos) de Al-¾azal»295 que apresentava algumas teses de
Ibn S»n«, quanto por tratados apócrifos que levavam o seu nome, como por exemplo, o
anônimo Liber Avicenne, in primis e secundis substantiis et de fluxu entis.296A presença
das teses de Ibn S»n« pode ser detectada imediatamente através dos primeiros
pensadores latinos que tiveram acesso às suas obras. Isto pode ser notado desde o final
do do século XII, em que há a presença da filosofia de Ibn S»n« nos “agostinistas”, até o
início do século XIV, em que o filósofo árabe foi tido por Gilson como “ o ponto de
partida de Duns Escoto ”.297 Esta presença, considerada como uma primeira etapa do
pensamento de Ibn S»n« na filosofia ocidental, é marcada também pela classificação dos
sentidos internos. Apenas para registrar alguns nomes de peso que no ocidente se
referiram a Ibn S»n« nessa área, ora aceitando ora divergindo de suas teses, citamos
Alberto Magno, Tomás de Aquino e Rogério Bacon. Alberto Magno menciona o VI
aturalibus, Tomás de Aquino o De Anima de Ibn S»n« e Rogério Bacon o De Anima e
o De Animalibus, referindo-se indiretamente ao Canon.298 Retomemos rapidamente as
classificações destes autores.
Em Alberto Magno encontramos quatro tipos de classificação. A
primeira,299 na qual cita explicitamente Ibn S»n« (Avicena)300 é a que se segue:
1- sentido comum ;
2- imaginação retentiva;
3- imaginação compositiva animal e humana;
4- estimativa;
5- memória e reminiscência.
Na segunda classificação301 os nomes se conservam, mas há uma
inversão de ordem em relação à imaginação compositiva e a estimativa:
1- sentido comum;
2- imaginação retentiva;
3- estimativa;
295 A respeito dos termos latinos para os sentidos internos em Al-¾azal» e Ibn S»n« Cf. GILSON, E. “ Les sources gréco-arabes de l’augustinisme avicennisant” pp. 74-78. 296Cf. BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 692 - 693. 297Ibid. p. 693 298Cf. Wolfson, art. cit. p.296. 299Ibid. pp. 297-298; esta classificação está na Isagoge in Libros de Anima, Cap. XIV-XIX. 300Não é demais lembrar que todas as referências dos latinos a Ibn S»n« se encontram sob a forma de seu nome latino, isto é, ‘Avicenna’; assim como as de Ibn Rušd encontram-se sob a forma de ‘Averroes’. 301Cf. Wolfson, art. cit. p.297; esta classificação está em De apprehensione, Partes III, IV.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
98
4- imaginação compositiva animal e humana;
5- memória e reminiscência.
A terceira classificação302 é basicamente como a segunda mas o termo
reminiscência, que aparecia juntamente com a memória, é retirado e há uma inversão da
ordem das duas últimas faculdades, isto é, a memória aparece antes da imaginação
compositiva:
1- sentido comum;
2- imaginação retentiva;
3- estimativa;
4- memória;
5- imaginação compositiva animal e humana.
Finalmente na quarta classificação303 verifica-se a separação entre a
memória e a reminiscência, tomadas como duas faculdades distintas. Nota-se também a
ausência do sentido comum o qual, neste caso, teria sido explicitamente colocado sob os
sentidos externos. Vejamos :
1- imaginação retentiva;
2- imaginação compositiva animal e humana;
3- estimativa;
4- memória;
5- reminiscência.
Tais diferenças talvez possam ser explicadas pela diversidade das fontes
que Alberto usou: nas primeiras três deve ter seguido a ordem do Kit«b al- afs, na
última a do Maq«sid Al-Fal«sifah de Al-¾azal».304 Observa-se, ainda, que nos casos em
que Alberto Magno reproduz exatamente as classificações de Ibn S»n«, ele por vezes
não interpreta fielmente alguns termos usados pelo filósofo árabe.305Isto talvez se deva
ao fato de que, apesar da reprodução dos termos seguir Ibn S»n«, no conjunto, a
influência da psicologia deste sobre Alberto parece não ter sido pura, mas um tanto
matizada .306
302Ibid. p. 298; esta classificação está em De Anima, Lib II, Trat. IV, Cap. VII. 303 Ibid. p. 298; esta classificação está na Summa de Creaturis, Parte II: De Homine. 304Cf. Wolfson, art. cit. pp. 297-299. 305Ibid. p. 305. 306Cf. BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 694.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
99
Em relação a Tomás de Aquino podemos constatar, na Suma de
Teologia,307 um tratamento específico dos sentidos internos. Baseando-se numa
exposição dos requisitos de um animal perfeito, Tomás, como que “deduz” os sentidos
internos, em número de quatro:
1) sentido comum - associado aos sentidos próprios e tido como a “raiz
e o princípio destes”;
2) fantasia ou imaginação - caracterizada como “um tesouro das formas
recebidas pelos sentidos” ;
3) estimativa - que apreende as “intenções” não recebidas pelo sentido;
4) memorativa - “que é um tesouro destas ‘intenções’ ”.
Tomás apresenta a cogitativa e a reminiscência como as formas humanas
do que nos animais aparece respectivamente como estimativa e memória. A diferença
entre a cogitativa e a estimativa é que os outros animais “percebem as intenções apenas
por um certo instinto natural ” ao passo que “o homem as percebe também por um modo
de comparação”. Daí receber o nome de razão particular, por descobrir tais intenções
por um modo de comparação das intenções individuais, tal como a razão descobre as
intenções universais por meio também de uma comparação. O mesmo tipo de diferença
se verifica em relação à reminiscência comparada com a memória. O homem não tem
apenas memória como súbita recordação do que passou; ele é dotado também de
“reminiscência, como que inferindo silogisticamente, de acordo com as intenções
individuais, a memória do que passou”. Ao final do corpo do artigo, Tomás critica
explicitamente a distinção aviceniana entre imaginação (retentiva) e imaginativa (a
imaginação compositiva). Rejeita ele, assim “uma quinta potência, intermediária entre a
estimativa e a imaginativa”. Sua razão para isso é que tal operação é exclusiva do
homem ( não existindo nos outros animais ) e neste para tal basta a imaginação. É, aliás,
a esta que Ibn Rušd atribui tal operação.
Vemos, pois, que Tomás segue de preferência a classificação dos
sentidos internos de Ibn Rušd. 308 Seu texto revela, no entanto, um bom conhecimento
307AQUINO,T. Suma teológica, Iª, q.78, a.4. Rio Grande do Sul: Est.Sulina.UCS, 1980, pp. 690-693 . Ver também IVANOV, A. A cogitativa em Tomás de Aquino. Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, onde se encontra uma boa bibliografia. 308 Cf. supra p.110. Em seu artigo, Wolfson afirma que “enquanto Alberto Magno em suas quatro espécies de classificações dos sentidos internos reproduz a classificação de Ibn Sina com estrita exatidão, a mesma exatidão não é encontrada em Tomás de Aquino.” (Cf. Wolfson art. cit. p. 301). Talvez a impressão de pouca exatidão na reprodução da classificação de Ibn S»n«, sentida por Wolfson, derive do fato de que Tomás, assim como outros escolásticos latinos, não pretendiam reproduzir as classificações anteriores dos árabes, mas utilizá-las como meio de formular seu próprio pensamento.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
100
de Ibn S»n«: em primeiro lugar a crítica precisa acima mencionada; além disso, o
exemplo da ovelha que foge do lobo e do pássaro que recolhe palhas para fazer o ninho,
mencionados no corpo do artigo; a “dedução” dos sentidos internos e a distinção entre
memória (animal) e reminiscência (humana).309
Em Rogério Bacon também podemos comprovar a presença da
classificação dos sentidos internos de Ibn S»n«. Especificamente na Perspectiva (5ª
parte do Opus Majus) a identificação das fontes de Bacon não se mostra problemática
pois ele mesmo se incumbe de citá-las explicitamente. Dentre os nomes mais
importantes destacamos Ptolomeu, Euclides, Ibn Al-Haytham (Al-Hazen), Aristóteles,
Ibn Rušd, Boécio, Sêneca, S. Agostinho e o próprio Ibn S»n«.310 A título de comparação
podemos verificar que Aristóteles tem um lugar de destaque. Bacon cita 14 obras do
mestre grego sendo o De anima a mais citada (20 vezes). No caso de Ibn S»n«, de
acordo com o número de citações encontradas, pode se afirmar que o nosso filósofo é
uma fonte importante para Bacon notadamente no que se refere aos dados fisiológicos e
psicológicos. O De anima de Ibn S»n« é referido por 14 vezes, o De animalibus por 12
vezes e os livros de medicina por 9 vezes.311 Afirma Vescovini: “Na elaboração de sua
Perspectiva, Bacon se serviu largamente da doutrina biológica e psicológica da
sensação visual contida no De anima ou Liber sextus naturalium de Avicena que teve
grande influencia na idade média.”312
Bacon, ao discutir as faculdades sensíveis internas, cita expressamente o
nome “Avicena” por nove vezes num trecho que ocupa menos de oito páginas. Apenas
para tomarmos um exemplo, reproduzimos o início do capítulo, no qual é apresentado o
sentido comum e a imaginação:
“(...) portanto, em vista de descobrir o que é requerido para a visão,
devemos começar com as partes do cérebro e as forças da alma (...) E o
cérebro tem três seções, chamadas ‘câmaras’, ‘celas’, ‘partes’ ou’
divisões’. Duas faculdades têm lugar na primeira cela. Uma delas é o
309Seria necessário um estudo comparativo mais acurado, pois Tomás teve acesso direto aos textos de Ibn S»n«, Ibn Rušd e escolásticos anteriores a ele (Alexandre de Hales, por exemplo). O nosso objetivo, por enquanto, é apenas apontar através da trajetória dos textos escolásticos latinos que Ibn S»n« continua presente. 310Cf. BACON, R. Perspectiva. in Roger Bacon and the Origins of Perspectiva in the Middle Ages. A critical edition and english translation of Bacon’s Perspectiva with Introduction and notes by David C. Lindberg. Oxford: Clarendon Press, 1996, Index. 311Cf. NASCIMENTO, C. A. “A perspectiva de Bacon”. Manuscrito, p. 6. 312 Cf. Vescovini, Studi, p. 77; cf.pp. 89-90. Citado em NASCIMENTO,C.A. “A perspectiva de Bacon”. Mimeografado, p. 8.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
101
sentido comum, situado em sua parte anterior, como Avicena diz em seu
De Anima, Livro I. (...) A operação final do sentido comum é receber as
espécies vindas dos sentidos particulares e completar o julgamento a
respeito delas. No entanto, pela extrema instabilidade de seu órgão ele
não as retém, de acordo com Avicena, De Anima, Livro I.
Consequentemente, deve haver outra faculdade da alma na parte final da
primeira câmara (do cérebro) que se incumbe de reter as espécies vindas
dos sentidos particulares, tendo secura e umidade moderadas, e sendo
chamada de ‘imaginação’.”313
Rogério Bacon também parece estar correto do ponto de vista histórico na medida em
que sabe que Aristóteles não fez menção explícita dos sentidos internos mas,
equivocadamente, supõe que os tradutores das obras de Ibn S»n« (De Anima, De
Animalibus e Canon) não usaram um vocabulário uniforme.314 Bacon nos dá neste
capítulo 315 uma boa visão de conjunto da classificação dos sentidos internos. Estes são
os mesmos apresentados por Ibn S»n« em seu De Anima: sensus communis, imaginatio,
cogitativa, aestimatio, memoria. A localização dos sentidos internos no cérebro,
fornecida por Bacon, traz o sentido comum na parte anterior do cérebro vindo em
seguida a imaginação, a cogitativa e a estimativa em direção à parte posterior do cérebro
onde está a memória.316 Esta localização segue exatamente a de Ibn S»n« conforme
apresentamos em anexo:
1- sensus comunis e phantasia
2- imaginação retentiva (imaginatio)
3- estimativa (aestimativa)
4- memória (memorativa)
5- imaginação compositiva humana e animal (cogitativa, logística,
rationalis).317
Nesta classificação, Bacon não reproduz Ibn Rušd, mas antes Ibn S»n«,
revelando, entretanto, também um uso diverso do termo cogitativa, embora não do
313 Cf. BACON, R. Perspectiva. in Roger Bacon and the Origins of Perspectiva in the Middle Ages. A critical edition and english translation of Bacon’s Perspectiva with Introduction and notes by David C. Lindberg. Oxford: Clarendon Press, 1996, pp. 7 e 9. 314Ibid. Cap. V, p. 17. 315Ibid. Cap. V, pp. 17-18. 316Cf. NASCIMENTO,C.A. “A perspectiva de Bacon”. Mimeografado, pp.18-19. 317 Wolfson indica as mesmas faculdades apresentando-as, no entanto, em outra ordem: Cf. Wolfson, art. cit. pp. 303-304, n. 43 indicando Opus majus, V: perspectiva, Pars I, Dist. I, Cap II-IV.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
102
mesmo tipo do que ocorre em Tomás. Wolfson chega a afirmar que “esses três filósofos
(Alberto, Tomás e Bacon) falharam ao reproduzir com exatidão o uso do termo
cogitativa tanto em Avicena quanto em Averróes.” 318 Esta mesma característica
aparecerá nos filósofos latinos posteriores, adentrando já as raias da modernidade. Mas,
para o nosso desiderato, as breves passagens que citamos nos parecem suficientes para
indicar a notável presença da classificação e das determinações conceituais dos sentidos
internos formuladas por Ibn S»n«.
318 Wolfson, em seu comentário, acrescenta que Tomás interpretou mal a classificação de Ibn S»n« ao reproduzí-la, principalmente no uso do termo cogitativa e que, sua reprodução da classificação de Ibn Rušd revela um deslocamento do termo estimativa. (Cf. Wolfson, art. cit. pp. 310-305). Talvez a inexatidão venha do fato de que estes escolásticos não pretendiam reproduzir nem Ibn S»n« nem Ibn Rušd, mas apoiar-se neles para propor, por conta própria, uma classificação dos sentidos internos, como já observamos.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
103
CO�CLUSÃO
Ao final deste percurso gostaríamos apenas de reiterar a importância do
estudo de Ibn S»n« sob os dois aspectos principais que procuramos expor em nosso
trabalho: o primeiro refere-se ao próprio conteúdo do Kit«b al- afs e o segundo refere-
se à sua contribuição na formação do pensamento ocidental. Para tal, não seremos
exaustivos e apresentaremos, em linhas gerais, apenas alguns comentários que acentuem
isto e que justifiquem a sua presença nas discussões atuais tanto no que tange à
psicologia e à epistemologia, quanto à própria filosofia em seu caráter mais geral.
Um dos aspectos singulares que podemos observar e que pode estar
contido no que dissemos acima é o procedimento de Ibn S»n« em procurar contemplar a
análise das realidades externas e internas do homem de modo que isto resulte numa
unidade de compreensão deste. Isto pode ser verificado se tomarmos, por exemplo, as
duas vias de constatação da existência da alma propostas na abertura e no encerramento
da Seção 1 do Capítulo I. As sentenças que abrem essa seção se detêm em um exame
atento das realidades externas observáveis nos levando a verificar, através dos sentidos,
que o diferencial dos puros corpos em relação aos corpos animados confirma a presença
de um princípio incorpóreo denominado alma. De modo diverso, ao final da seção, Ibn
S»n« propõe uma via diametralmente oposta à primeira, pois destitui o sujeito da
percepção de todos os caracteres sensíveis em que este poderia estar imerso: tal homem
teria os olhos velados, estaria no vácuo e não poderia sequer tocar o próprio corpo.
Neste segundo caso, a constatação da existência da alma é alcançada por uma via
interna, não mediada pela experiência exterior e nem por qualquer um dos sentidos; ou
seja, esta segunda via é uma consciência imediata da existência da alma que mesmo
parecendo contrária à primeira, na qual o homem estava revestido de toda a
sensibilidade e de seus caracteres materiais, no caso de Ibn S»n«, resulta por completá-
la.
Naturalmente poderíamos, no primeiro caso, aproximá-lo tanto de
Aristóteles quanto da ciência moderna, na medida em que realiza um exame através da
experiência sensível para explicar a realidade. Por outro lado, no segundo caso,
poderíamos aproximá-lo tanto de Plotino como de Agostinho e do próprio modo como
os monoteístas leram Platão, na medida em que as constatações são alcançadas sem a
mediação dos sentidos externos. No entanto, justamente o que queremos ressaltar é a
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
104
impossibilidade de reduzir a psicologia de Ibn S»n« a um destes perfis, impossibilidade
esta que justifica, dentre outras coisas, a sua originalidade.
O modo como Ibn S»n« procura contemplar ao longo do Kit«b al- afs
estas duas realidades: externa e interna; sensível e não sensível; material e imaterial,
estabelece uma unidade e uma complementação tal que se distancia, em alguns casos,
do modo pelo qual ela é tratada por outros autores. Nunca é demais lembrar, por
exemplo, que na modernidade a concepção de Descartes, por um lado, e dos empiristas,
por outro, acentuaram uma das duas vias em relação à outra, ocorrendo geralmente, que
ao se privilegiar a externa, a interna tornou-se-lhe subordinada e vice-versa.
No caso de Ibn S»n« as esferas do externo e do interno parecem
apresentar-se muito mais como realidades que se completam do que como realidades
que se subordinam. O homem, unidade, se apresenta em meio a dois mundos. Uma boa
imagem disto, que consideramos uma das matrizes de seu pensamento, é a da alma
humana como sendo aquela que possui duas faces, uma voltada para a matéria e outra
voltada para o imaterial. O homem, nesse caso, é um ente não somente capaz de tocar
as duas realidades mas é, também, tocado por elas. Pode se atestar isto, por exemplo,
pelas passagens em que o movimento dos astros influencia os sonhos através da
faculdade imaginativa, assim como, de modo oposto, pelas passagens em que se afirma
que as almas fortes e nobres são capazes de “tornar fogo o que não é fogo” e dirigir a
matéria à sua vontade. Entendido deste modo, Ibn S»n« se apresentaria, nos debates
atuais, como um agregador do homem, procurando lhe dar a medida certa de suas duas
realidades: - o que é o corpo e a alma - e, além disso, como elas deveriam se inserir
harmoniosamente na sociedade e no cosmos.
Por essa razão, entendemos que é através deste princípio agregador de
sua psicologia, presente no Kit«b al- afs, que podemos tomar sua filosofia como um
todo. O próprio Ibn S»n« não nos autoriza a fazermos o contrário, pois ele mesmo não
foi, historicamente, um divisor de conhecimentos mas, ao contrário, um agregador
destes em um sistema próprio. Por essa razão, parece nos que, para compreendermos o
seu pensamento nesta obra, é mister ter em mente que se, por um lado, tomarmos o
Kit«b al- afs com os olhos da ciência moderna nos decepcionaríamos com afirmações
no campo do não verificável e se, ao contrário, quisermos lê-lo com olhos místicos,
procurando nesta obra uma poesia da alma, teríamos dificuldade em manejar o caráter
científico que ele propõe. O erro certamente não é dele mas é nosso, na medida em que
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
105
geralmente podemos querer acentuar apenas uma dessas características. A unidade a que
nos referimos é aludida por Goichon319 que atribui, além disso, o estudo fragmentário
que pode ser feito de sua obra justamente à amplitude e ao modo como trata os diversos
aspectos do conhecimento.
Uma outra característica que justifica a sua presença nas questões
contemporâneas e que confirma a sua originalidade no estudo da alma é a afirmação
desta como uma substância que, no caso da alma racional humana, possui sobrevivência
após o desaparecimento do corpo por não estar ligada a nenhum órgão corporal e ser
capaz de apreender os inteligíveis. É de se notar que nesse caso, a doutrina de Ibn Sina
encontra um meio de não aceitar a preexistência da alma e nem a sua transmigração, ao
mesmo tempo em que não desautoriza a sua permanência. Assim, a alma individual tem
início no ser mas jamais cessa. Esta teoria não é encontrada em toda a sua extensão em
nenhum de seus predecessores. Novamente, algumas características podem se
aproximar de Aristóteles; outras de Platão; outras da religião monoteísta de um modo
geral e do islamismo em particular; e outras até mesmo de Agostinho, o que lhe
proporcionou um acolhimento generoso, inicialmente, no Ocidente cristão. No entanto,
mesmo se constatando a miríade de fontes e inspirações de outros filósofos com os
quais Ibn S»n« tem afinidade, ainda assim a sua psicologia parece continuar irredutível a
qualquer um dos seus antecessores, sejam eles árabes ou não árabes. Não há dúvida de
que um dos traços de sua filosofia é a sistematização do conjunto dos conhecimentos
científicos e filosóficos que lhe chegaram como herança. Mas, nem por isso poderíamos
entender sua filosofia como uma mera sobreposição de conceitos e teorias passadas, o
que resultaria numa desfiguração de seu pensamento. Na verdade, o que parece dirigir a
filosofia de Ibn S»n« é menos um simples recolhimento de dados existentes e mais uma
convicção íntima, uma segurança primeira, que se utiliza dos elementos disponíveis
para auxiliá-lo em suas afirmações, as quais estão sempre amparadas pela arte da
lógica. A constante retomada das mesmas afirmações em diversas obras parece atribuir
à sua filosofia um perfil mais constante, diferentemente do que se observa em outros
autores em quem é mais visível a evolução do pensamento através dos seus escritos.
Certamente não foi tudo que chegou às mãos de Ibn S»n« que ele acolheu, mas parece
319 GOICHON, A.M. “ L’unité de la pensée avicennienne”. Archives Internationales d’Histoire des Sciences. Paris: nº 20 - 21, 1952, pp. 290 - 308.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
106
que foi segundo esta direção primeira que os argumentos foram aceitos ou refutados e
desenvolvidos através de sua própria experiência e reflexão, tornando-se, ao final, uma
estrutura personalíssima de grande envergadura. Assim, devemos acentuar que a
filosofia de Ibn S»n« é, afinal, a filosofia de Ibn S»n«.
Com estes poucos exemplos queremos justificar, além da originalidade
de sua teoria da alma, que um dos pontos altos deste tratado é o estabelecimento de uma
continuidade que permeia os diversos aspectos da realidade aos quais o homem está
vinculado: o corpo, a alma, a sociedade e o cosmos. Os inúmeros assuntos procuram
repousar em uma coesão não somente formal mas com grande desenvolvimento e
profundidade seja na fisiologia, na metafísica, na psicologia ou na física. Para ele, tais
abordagens estão de tal modo entrelaçadas umas às outras que o estudo detido de cada
uma delas separadamente resulta sempre numa unidade de conhecimento que envolve as
outras, resultado este que dificilmente encontraremos após a divisão e especialização
que se verificou na modernidade e que, em muitos casos, perduram até os dias de hoje.
Certamente, podemos argumentar que suas bases científicas não são mais
sustentáveis, como o geocentrismo, a teoria do pneuma e dos quatro humores. Mas o
mesmo não aconteceria com a unidade que ele procura estabelecer. Por esta razão,
mesmo que troquemos o geocentirsmo pelo heliocentrismo, a teoria do pneuma pela
transmissão de impulsos elétricos, ainda assim manter-se-ia a intenção de tal unidade.
Por outro lado, se argumentarmos que atualmente não nos é possível estabelecer uma
unidade objetiva de todos os conhecimentos, ao menos podemos entender esta intenção
de unidade no próprio homem, procurando a medida e o sentido da existência humana, o
que parece ser, para dizer o mínimo, uma das tarefas da filosofia. Aliás, talvez seja a
isso que Platão, ao final do Livro IX da República, se refira, ao afirmar a respeito da
cidade criada em lógos:
“ Mas talvez haja um modelo no céu, para quem quiser contemplá-la e,
contemplando-a, fundar uma para si mesmo. De resto, nada importa que
a cidade exista em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto é pelas
suas normas, e pelas de mais nenhuma outra, que ele pautará o seu
comportamento.”320
320PLATÃO, A República X, 592 b.. Trad. e notas de Maria Helena R. Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 450.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
107
Assim, na medida em que não se considere a filosofia como sendo apenas
a sua história mas um encontro com respostas aos problemas tanto práticos quanto
teóricos com os quais nos deparamos, o estudo de Ibn S»n« se alinha no mesmo patamar
e importância que atribuímos aos filósofos do passado pois parece que uma das razões
pelas quais voltamos aos antigos gregos, aos medievais cristãos, árabes ou judeus e aos
modernos, é justamente para discutirmos, entre outras coisas, questões filosóficas
contemporâneas a respeito do homem, da sociedade e do mundo. Muitas vezes,
principalmente na tradição ocidental, tomamos o passado como o que ficou para trás
sendo, na verdade, o ultrapassado. Há, porém, uma outra imagem, mais presente no
Oriente, na qual o passado não está atrás mas está embaixo, assim como o futuro não
está à frente mas está em cima, pois o passado é raiz que nos sustenta e o futuro é onde
se encontram as realidades primeiras e últimas às quais o homem retornará. Tomando a
segunda imagem, o sentido de voltarmos ao passado seria, portanto, o de verificarmos
onde estamos apoiados.
Desse modo, ao nos voltarmos para o passado, testificamos que os
antigos propuseram alguns caminhos e, invariavelmente, damos a palavra a eles, na
medida em que suas filosofias tenham relação com a formação do nosso pensamento. É
sob este mesmo argumento que queremos acentuar que, do mesmo modo que a palavra
é dada aos antigos gregos, aos medievais cristãos e aos modernos, a palavra deve ser
dada aos filósofos árabes deste período da história que fizeram a ‘falsafa’ 321, ou seja, a
filosofia árabe helenizada. Mesmo considerando que muito do que afirmamos sobre Ibn
S»n« valha para outros pensadores, devemos lembrar que ele está mais próximo da
ciência moderna do que Aristóteles, e viveu após o estabelecimento da tríade monoteísta
judaico-cristã-islâmica, possuindo, assim, elementos e desafios a superar, em alguns
casos, mais próximos de nós do que aqueles dos antigos gregos, ao mesmo tempo em
que trata a filosofia de modo diverso do que o fez a tradição medieval cristã no
ocidente. Assim, a síntese de Ibn S»n« ao mesmo tempo em que ilumina os textos
gregos, se faz presente nos medievais e avança nos modernos, chamando-nos a um
retorno para contemplarmos as suas propostas que, reunidas sob uma mesma pena, se
configuraram num novo sistema, uma cosmovisão diferenciada de tudo o que o
321 »Ÿ�¬Ÿ
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
108
antecedeu, uma síntese que não é nenhuma das que encontramos alhures. Por essa razão,
contemporaneamente devemos ouví-lo não meramente por um sentido histórico, mas
por causa da relevância com que trata questões sempre atuais do homem. Afora isto,
talvez a importância de estudá-lo, hoje em dia, seja simplesmente a mesma de que
revestimos os antigos ao voltarmos a eles, ou seja: encontrar algo precioso que lá está,
pois “tudo o que se manifestou certa vez ao homem na luz da verdade pode tornar a se
manifestar verdadeiro, se se encontra uma alma que aí se redescubra, e o redescubra ”322
É, portanto, no âmbito de uma contribuição efetiva através da presença
de sua psicologia e de sua epistemologia nas discussões atuais que podemos ressaltar,
mais precisamente, a importância do estudo dos sentidos internos que são, em última
análise, um ponto alto de sua psicologia. Lembremo-nos que é através da dinâmica
interna destes sentidos aliada, em alguns casos, com outras faculdades anímicas que ele
crê poder explicar inúmeras ocorrências que são atualmente estudadas pela psicologia
moderna como, por exemplo, os sonhos, os sentimentos de alegria, tristeza, raiva, os
desejos e as emoções em geral.
Quanto ao caráter histórico, como vimos, a penetração das classificações
dos sentidos internos de Ibn S»n« foi uma das vias pelas quais o Kit«b al- afs participou
da formação do pensamento Ocidental, tendo sido parcialmente utilizado por outros
autores formando novos sistemas. Recordemos que a trajetória dos sentidos internos
desde as indicações dadas por Aristóteles até a chegada aos pensadores latinos dos
séculos XII e XIII passsou praticamente desapercebida pelos primeiros pensadores
latinos nos quais este termo indicava apenas uma faculdade pós-sensorial. Na tradição
árabe, assim como na hebraica, apesar das classificações anteriores a Al-F«r«b» serem
diversas, a tradição que perdurou foi a adotada a partir deste último com a inclusão da
estimativa e da divisão da imaginação entre retentiva e compositiva animal e humana.
Mas foi somente com Ibn S»n« que a estrutura dos sentidos internos atingiu o mais alto
grau de sistematização com a inclusão do sentido comum e o estabelecimento da divisão
entre a memória e a reminiscência. Além disso, lembremos a análise detalhada da
articulação de todas as funções das faculdades, elevando as funções a sete, combinando-
as para chegar, no Kit«b al- afs, ao número de cinco faculdades. A adoção da
sistematização dos sentidos internos, como expusemos, se deu tanto no Oriente com
322Palavras do historiador e filósofo francês Henri-Irénée Marrou citadas em NASCIMENTO, C.A. O que é filosofia medieval. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1992, p. 80.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
109
Al-¾azal» quanto no Ocidente com Ibn Rušd e onde os pensadores tardios da filosofia
latina herdaram tais classificações .
Os ecos da posteridade de Ibn S»n« talvez tenham sido escutados na
modernidade, apesar de que muitas vezes, os próprios autores sequer soubessem de
onde provinham algumas idéias que circulavam na época. Podemos entender que há
indicações de que o Kit«b al- afs tenha tido dois modos de inserção no ocidente: uma
direta e imediata como observamos nos escritos de Tomás e de Bacon; outra indireta e
mediata, que talvez tenha tocado os modernos. Wolfson não deixa de indicar a
importância dos sentidos internos de Ibn S»n« na filosofia posterior:
“Nos textos tardios da filosofia latina, começando com a tradução dos
textos de Avicena e Averróes no século XII, todas as classificações dos
sentidos internos são dominadas pela influência de Avicena e
Averróes.”323
E numa outra afirmação podemos presentir a presença de seus escritos, ainda que de
forma indireta, na modernidade num vislumbre de até onde podem ter chegado os ecos
tardios dos sentidos internos de Ibn S»n«:
“Finalmente quando terminarmos com os textos latinos devemos mostrar
como essas várias classificações na literatura árabe deu início a um
ulterior desenvolvimento que continuou até o tempo de Kant.”324
Um dos traços marcantes do ingresso dos sentidos internos na modernidade parece ter
sido a redução de seu número. Descartes325e Leibniz referem-se aos sentidos internos,
assim como Kant. Mas um dos pontos altos desse tema talvez possa ser encontrado
também no emprirismo inglês, mais precisamente nos escritos de John Locke.
Entretanto, esta é uma outra discussão e tais indagações não poderão ser desenvolvidas
aqui. Talvez num outro momento e num outro trabalho.
Em todo este trajeto também pudemos observar que não é do nosso
conhecimento que tenha havido um autor que tivesse se ocupado tanto com a questão
dos sentidos internos como Ibn S»n«. Nem os anteriores e, seguramente, nem os
323Cf. Wolfson, art. cit. p. 311. 324Ibid. p. 268. 325Wolfson apresenta algumas referências de Descartes a dois sentidos internos (sensus interni), descrevendo um deles como nossos apetites naturais e o outro como as emoções da mente ou paixões. Em outro lugar, sem mencionar explicitamente os sentidos internos, Descartes refere-se a eles ao tratar da imaginação e memória. Em outra passagem a imaginação é identificada ao sentido comum e confrontada com os sentidos externos. Há também indicações mais sumárias sobre Leibniz e Kant. (Cf.Wolfson, art. cit.pp 307-309 e notas).
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
110
posteriores, o que, por si só, também justifica a sua relevância nos estudos filosóficos
em geral e nos psicológicos e epistemológicos em particular.
Devemos justificar, além de tudo, que o caráter mais expositivo deste
trabalho foi uma opção que fizemos e talvez fosse despropositado se tratássemos de
filósofos que já possuem uma tradição de estudo mais avançada em nossas
universidades. No caso de Ibn S»n«, entretanto, este procedimento nos pareceu
preferível visto que entendemos que os trabalhos em filosofia árabe tem para nós,
ainda, um caráter seminal, o que nos levou, por bom senso, a um desenvolvimento deste
tipo. Entendemos, assim, que bases colocadas de modo simples e sólido terão mais
utilidade para o desenvolvimento futuro de outras pesquisas.
Para encerrar, ao final desta jornada, lembramos que na apresentação
deste trabalho disséramos que o nosso objetivo era apresentar a estrutura geral do Kit«b
al- afs. Por este ponto de vista entendemos que cumprimos o nosso objetivo. Por outro
lado, contudo, durante o nosso trajeto nos deparamos com temas que gostaríamos de ter
desenvolvido mas que não nos foi possível. Do mesmo modo houve detalhes e
pormenores que nos acompanharam durante todo o percurso e que ainda permanecem
como interrogações em nossas mentes. Por essas razões, não podemos considerar este
trabalho concluído, na medida em que há muitos aspectos que gostaríamos de
desenvolver posteriormente se assim nos for permitido e, como disse Ibn S»n« no
prólogo da Al-Šif«’, “esperamos que nos seja concedido tempo suficiente para terminá-
lo e que a ajuda de Deus nos acompanhe”.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
111
BIBLIOGRAFIA:
ANAWATI, G. C. Études de philosophie musulmane. Paris: J.Vrin, 1974. _______. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, pp.
407-440, 1951. _______. Études de philosophie musulmane. Paris: J. Vrin, 1974. AQUINO,T. Suma teológica, Rio Grande do Sul: Est. Sulina. UCS, 1980. ARBERRY, A.J. Avicenna on Theology, London: Hyperion Press, 1951. ARISTOTE. De L'âme. Trad. J. Tricot. Paris: J. Vrin, 1965.
_______. Meteorologica. Trad. E.W.Webster in The works of Aristotle.Oxford: Clarendon Press.
AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus I-II-III. “Avicenna Latinus”,
Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G.Verbeke.1972. _______. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus IV-V . “Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G.Verbeke.1968. _______( IBN SºNª ). Livre des directives et remarques. Trad. avec introduction et
notes par A. M.Goichon. Paris: J.Vrin, 1951. _______( IBN SºNª ). Psychologie d'Ibn Sina. Ed. et Trad. J. Bakós. Praga: Académie tchécoslovaque des sciences, 1956. _______. Livre des directives et remarques. Trad. et notes par A. M. Goichon. Paris: J.
Vrin, 1951.
BACON, R. Perspectiva. in Roger Bacon and the Origins of Perspectiva in the Middle
Ages. A critical edition and english translation of Bacon’s Perspectiva with Introduction and notes by David C. Lindberg. Oxford: Clarendon Press, 1996.
BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972. _______. La transmission de la philosophie grecque au monde arabe. Paris: J. Vrin, 1987. CARDAILLAC, L. (org). Toledo, séculos XII-XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. CARRA DE VAUX, B. Avicenne. Paris: Félix Alcan, 1900. CHATEAU, J. Les grandes psychologies dans l’antiquité. Paris: J.Vrin, 1978. CORBIN, H. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Gallimard, 1986.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
112
D’ALVERNY, M.T. Avicenne en occident. Paris: J.Vrin, 1993
DE LIBERA, A. A filosofia medieval. Rio de Janeiro: J.Zahar, 1990. _______. La philosophie médiévale. Paris: Presses Universitaires de France, 1993. FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique.Paris: Les Editions du Cerf, 1989. FOREST, A. La Structure métaphysique du concret selon Saint Thomas d’Aquin. Paris: J.Vrin, 1956.
GAUTHIER, R. A. Introdução à moral de Aristóteles.Lisboa: Europa-América, 1992.
GILSON, E. “ Les sources gréco-arabes de l’augustinisme avicennisant” Archives d’histoire doutrinale et littéraire du Moyen Âge, 1929 - 30, pp. 5-158, vol. 4. _______. “ Avicenne et le point de départ de Duns Scot”, Archives d’Histoire
Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge, 1927, pp. 89-149, vol. 2. GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie d'amérique et d'orient, 1940. _______. Lexique de la langue philosophique d’Ibn Sina. Paris: Desclée de Brouve, 1938. _______. “ L’unité de la pensée avicennienne”. Archives Internationales d’Histoire des
Sciences. Paris: nº 20 - 21, 1952, pp. 290 - 308.
GOHLMAN,W.E. The life of Ibn Sina. New York: State University of New York Press, 1974. GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994. ISKANDAR, J. I. Avicena - A origem e o retorno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. IVANOV, A. A cogitativa em Tomás de Aquino. Dissertação de mestrado. SP.
FFLCH.USP, 1998. JAEGER, W. Aristóteles. México: Fondo de Cultura Econômica. México, 1995. JANSSENS, J. L. An Annotated Bibliography on Ibn Sina (1970-1989). Leuven:
University Press, 1991. JOLIVET, J. & RASHED, R. Etudes sur Avicenne. Paris: Les Belles Lettres, 1984.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
113
JOURNET, C. “Les maladies des sens internes”. Revue thomiste. Paris: 1924, pp. 36-50,
vol. 29.
LABARRIÉRRE, J. L. “De la phronesis animale”. Biologie, logique et métaphysique
chez Aristote. Séminaire du CNRS, 1987. Paris: Ed. du CNRS, 1990, pp. 405 - 428.
MAHLOUBI, B. La notion d’imagination chez Avicenne. Tese de doutorado. Paris:
Université de Paris I Panthéon-Sorbonne, 1991. MUNK, S. Mélanges de philosophie juive et arabe. Paris: J.Vrin, 1988.
NASCIMENTO, C.A. “A perspectiva de Bacon”. Mimeografado.
_______, C.A. O que é filosofia medieval. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1992.
PEREIRA, R. H .S. Avicena: a viagem da alma ( uma leitura gnóstico-hermética de Hay Ibn Yaqzân). Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998.
PLATÃO, A República. Trad. e notas de Maria Helena R. Pereira. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1996. WOLFSON, H.A. “ The internal senses in latin, arabic and hebrew philosophic texts”,
in Studies in the history of philosophy and religion. London: Harvard University Press, 1979, pp. 250-314.
CORRIENTE, F. Diccionario arabe-español. Barcelona: Ed. herder, 1991. REIG, D. Dictionaire Larousse arabe-français. Paris: Larousse, 1987. KAPLANIAN, M.G. Diccionario Alhambra arabe-español. Barcelona: Ed. Ramon
Sopena, 1974. SABBAGH, A.N. Dicionário árabe-português-árabe. RJ: Ed. da UFRJ, 1988. AULETE, C. Dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Delta, 1958. LABOR, Biologia humana. Barcelona: Ed. Labor. 1961, vol.3 p.789 SPALTEHOLZ, W. Atlas de anatomia humana. Barcelona: Ed. Labor. 1959, tomo 3,
2ª ed. Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº 12, 1980. Atlas Geográfico Mundial - Folha de São Paulo-. São Paulo: Folha da Manhã, 1993
p.66 e 166 .
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
115
LOCALIZAÇÃO DOS SENTIDOS INTERNOSLOCALIZAÇÃO DOS SENTIDOS INTERNOSLOCALIZAÇÃO DOS SENTIDOS INTERNOSLOCALIZAÇÃO DOS SENTIDOS INTERNOS Nome em Bakós Nome árabe Bakós (texto árabe)
Sentido comumSentido comumSentido comumSentido comum I, 5, 30, l. 35 ©zc„°«[ �o«[ SS (p. 44, l. 14) IV, 1, 116, l. 34 Al-¯as al-muštarak
ou ¼[
FantasiaFantasiaFantasiaFantasia I, 5, 30, l. 35 \À� \�´^326 SS (p. 44, l. 14) Ban³as»a Definição e localização: “(...) fantasia ou sentido comum,fantasia ou sentido comum,fantasia ou sentido comum,fantasia ou sentido comum, estabelecida no primeiro ventrículo do cérebrono primeiro ventrículo do cérebrono primeiro ventrículo do cérebrono primeiro ventrículo do cérebro que recebe por si mesma todas as formas impressas nos cinco sentidos e que chegam ao ventrículo.” (Cf. I, 5, 30, l. 35) “(...) ela é o centro dos sentidos, e dela se ramificam os ramos e a ela são conduzidos os sentidos, e ela é , na verdade, a que sente.” (Cf. IV, 1, 116, l. 34). Nome em Bakós Nome árabe Bakós (texto árabe)
ImaginaçãoImaginaçãoImaginaçãoImaginação I, 5, 30, l. 38 ª\Às«[ SS(p. 44, l. 16) IV, 1, 116, l. 37 Al-ĥi«l
ou ¼[
FormativaFormativaFormativaFormativa I, V, 30, l. 38 ºy½ˆ°«[ SS(p. 44, l. 16) IV, 1, 116, l. 37 Al-masūra Definição e localização: “(...) imaginação ou faculdade formativaimaginação ou faculdade formativaimaginação ou faculdade formativaimaginação ou faculdade formativa; faculdade estabelecida também na extremidade do ventrículo anterior do cérebro, extremidade do ventrículo anterior do cérebro, extremidade do ventrículo anterior do cérebro, extremidade do ventrículo anterior do cérebro, ela conserva o que o sentido comum recebeu dos cinco sentidos particulares e que permanece na extremidade do ventrículo depois do distanciamento destas coisas sensíveis.” (Cf. I, 5, 30, l. 38). “(...) mas a ação de reter o que é percebido pertence à faculdade que se chama imaginação, e ela se chama faculdade formativa, e se chama faculdade imaginativa. Às vezes se distingue entre a imaginação e a imaginativa, em relação à significação convencional da palavra.” (IV, 1, 116 l. 37).
326
O termo mais corrente, que o próprio Ibn S»n« adota em outras obras, é \~\�´Ÿ ‘fan³as»a’
(Cf. Goichon, Léxico, pp. 69-71, n.150), mas nesta obra a transliteração do termo grego ‘fantasia’ aparece com a substituição da primeira letra por um ‘b’ tanto na edição de Bakós ( p.44, l.14) quanto na edição de F. Rahman ( p. 44, l. 4) e é empregada apenas nesta passagem.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
116
“(...) O sentido comum e a imaginação são ambos como se fossem uma só faculdade, é como se os dois só diferissem quanto ao sujeito de inerência. Isso, porque, “que ele receba” não significa que “ele conserva”. (IV, 1, 116, l. 41). Nome em Bakós Nome árabe Bakós (texto árabe)
ImaginativaImaginativaImaginativaImaginativa I, 5, 31, l. 19 »¬Àsc°«[ ST(p.45, l. 12) IV, 1, 117, l.18 Al-mutaĥa»la
e ¼
CogitativaCogitativaCogitativaCogitativa I, 5, 31, l. 19 ºz¨Ÿ°«[ ST(p. 45, l. 12) IV, 1, 117, l. 17 Al-mufakira Definição e localização: “(...) a faculdade que se chama imaginativa faculdade que se chama imaginativa faculdade que se chama imaginativa faculdade que se chama imaginativa em relação à alma animal e cogitativa cogitativa cogitativa cogitativa em relação à alma humana; faculdade estabelecida no ventrículo médio do cérebro ventrículo médio do cérebro ventrículo médio do cérebro ventrículo médio do cérebro junto ao verme, ela tem a propriedade de compor certas coisas que estão na imaginação com outras, e de separar outras à vontade.” ( I, 5, 31, l. 19) “(...) é de nossa natureza compor certas coisas sensíveis com outras e de separar algumas delas de outras, não segundo as formas que encontramos nessas coisas sensíveis no exterior (...) É preciso que esteja em nós uma faculdade pela qual fazemos isso, e esta é a que se chama cogitativacogitativacogitativacogitativa, quando a inteligência a emprega, e imaginativaimaginativaimaginativaimaginativa, quando a emprega uma faculdade animal.” ( IV, 1, 117, l.18). Nome em Bakós Nome árabe Bakós ( texto árabe)
EstimativaEstimativaEstimativaEstimativa I, 5, 31, l.19 ±·½«[ ST(p. 45, l. 15) IV, 1, 117, l. 28 Al-wahm
Definição e localização: “ (...) faculdade estimativa; faculdade estimativa; faculdade estimativa; faculdade estimativa; faculdade estabelecida na extremidade do ventrículo médio extremidade do ventrículo médio extremidade do ventrículo médio extremidade do ventrículo médio do cérebrodo cérebrodo cérebrodo cérebro; ela percebe as idéias não sensíveis que se encontram nas coisas sensíveis particulares, como a faculdade que se encontra na ovelha, quando ela julga que deve fugir deste lobo e ter afabilidade por este cordeiro. Parece que ela é , além disso, a faculdade que tem a livre ação de compor e separar as coisas imaginativas.” ( I, 5, 31, l. 19). “(...) Quanto às coisas que em suas naturezas não são sensíveis, são, por exemplo, a inimizade, a maldade, a aversão que a ovelha percebe na forma do lobo(...) Essas são coisas que a alma animal percebe, enquanto o sentido nada indica a respeito delas. Então, a faculdade pela qual (essas coisas) são percebidas é uma outra faculdade, e ela é chamada estimativa.” (IV, 1, 117, l. 30)
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
117
Nome em Bakós Nome árabe Bakós (texto árabe)
Fac. que conservaFac. que conservaFac. que conservaFac. que conserva I, 5, 31 l. 29 »”Ÿ\o«[ SU (p. 46, l. 2) e se lembrae se lembrae se lembrae se lembra IV, 1, 118, l. 11 Al-h«fµa
½ (Memória e e
Reminiscência) ºz§xc°«[ *
Al-mutadakira Definição e localização: “(...) faculdade que conserva e se lembra; faculdade que conserva e se lembra; faculdade que conserva e se lembra; faculdade que conserva e se lembra; faculdade estabelecida no ventrículo posterior ventrículo posterior ventrículo posterior ventrículo posterior do cérebro, do cérebro, do cérebro, do cérebro, ela conserva o que a estimativa percebeu das idéias não sensíveis, nas coisas sensíveis particulares.” (I, 5, 31, l. 29). “ O depósito do que percebe a idéia, é a faculdade que se chama (faculdadefaculdadefaculdadefaculdade) que que que que conserva, conserva, conserva, conserva, e seu lugar próprio é a parte posterior do cérebro.” ( IV, 1, 118, l. 11) * nota: JAMAL, A. E. in Etudes sur Avicenne. Paris: Les Belles Lettres, 1984, p.130
Ibn S»n« apresenta também uma localização geral dos sentidos internos ao tratar dos órgãos que pertencem à alma: “ Quanto à faculdade formativa e ao sentido comum, os dois vêm da parte anterior do cérebro, estando num pneuma que preenche esse ventrículo. E os dois estão lá somente para olhar os sentidos cuja maior parte provém apenas da parte anterior do cérebro. Nos dois outros ventrículos estão o pensamento* e a reminiscência; no entanto, o lugar da reminiscência é posterior, para que a sede do pneuma cogitativo seja intermediária entre o depósito da forma e o depósito da idéia (intentio), e que a sua distâcia dos dois seja idêntica. A faculdade estimativa governa todo o cérebro, mas seu poder está no centro.” (Cf. V, 8, 190-191) * entendido como o ato da imaginativa no homem, isto é, a cogitativa.
Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) Miguel Attie Filho
120
* Nota sobre a transliteração de nome de pessoas:* Nota sobre a transliteração de nome de pessoas:* Nota sobre a transliteração de nome de pessoas:* Nota sobre a transliteração de nome de pessoas:
Os nomes próprios dos árabes foram transliterados segundo o original da própria língua,
assim \´À� µ^[, manteve-se como Ibn S»n«, e assim entendemos por este estudo não tratar principalmente do “Avicena latino”. No entanto, mantivemos o nome “Avicena” quando ele assim foi citado por outros autores.
Tabela de transliteração das letras árabesTabela de transliteração das letras árabesTabela de transliteração das letras árabesTabela de transliteração das letras árabes
[ « y r š ¿
] b { z ā f
a t } s ¢ q
e t ‚ Š ¦ k
i j † · ª l
m ¯ Š ± ® m
q h � ³ ² n
u d ’ µ ¶ h
w d – ‘ ¼ u / w
Vogais ¾ » / y
_´_ a Æ ’
_ _ i ( Õ â )
´
_’_ u ( Â ä )