Os residentes de Hilda

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66 | artes plásticas | OS RESIDENTES DE HILDA CASA DA POETISA, FAMOSO PONTO DE ENCONTRO DE ARTISTAS DE VÁRIAS GERAÇÕES, LEVA ADIANTE SEU LEGADO POR MEIO DE VIVÊNCIAS ARTÍSTICAS POR JR. BELLÉ FOTO: DIVULGAçãO

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Os residentes de Hilda

Casa da pOetisa, famOsO pOntO de enCOntrO de artistas

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Quando, em 1961, Hilda Hilst, no auge de seus 31 anos e cinco li-vros lançados, abandonou o protagonismo nas colunas so-ciais dedicadas

à aristocracia paulistana e ilhou-se em sua literatura e em uma afastada propriedade a 20 quilômetros do centro de Campinas, a qual nomeou de Casa do Sol, muitos sur-preenderam-se. O que poucos imaginavam é que a casa ampla, tomando 800 dos 9 mil metros quadrados, incluindo o quintal e o sossego das sombras, se tornaria ponto de encontro para escritores, pintores, roteiris-tas, enfim, uma corte de artistas que natu-ralmente deixaram-se influenciar por Hilda. 

Ela faleceu em 2004, e sua poesia, que jamais morreu, teve a petulância de renas-cer à sombra da figueira eternizada em suas estrofes. A conversão da Casa do Sol em um instituto que levaria seu nome começou a ser imaginado pela própria escritora ainda em 1995, quando os primeiros sinais de isquemia começaram a evidenciar-se. Mas não como as casas de outros poetas, como as famosas de Neruda, o Instituto Hilda Hilst não se pre-

tendia, como tampouco agora se pretende, um memorial imutável. Pelo contrário, alme-ja que imutável seja sua essência criadora de arte, para que a memória de Hilda permaneça em traços na contemporaneidade. O que des-de seu tombamento pelo patrimônio históri-co, em 2011, e posterior agregação de progra-mas de residência artística, em 2012 – como a Revista da Cultura contou em reportagem na edição 56, de março do ano passado –, pareceu tão natural quanto imprescindível.

Residências artísticas proporcionam infraestrutura, tempo e ambientação a criadores das mais variadas áreas. São oferecidas por museus, instituições, uni-versidades, bibliotecas, galerias, centros culturais independentes e outros pontos produtores e incentivadores.

A Casa do Sol deu um passo largo em 2013. Por meio do apoio do programa Rede Nacional Funarte, levou a cabo o projeto Poemas aos Homens de Nosso Tempo – Hilda Hilst em Diálogos, composto por residência artística, exposição e publicação. Cinco artis-tas de diferentes estados foram convidados a mergulhar na vida e na obra de Hilda para absorção e criação de trabalhos e conteúdos inéditos, desdobrados em uma exposição no Ateliê Aberto, também em Campinas – em cartaz até dia 27 de julho –, e uma pu-

blicação gratuita, com lançamento neste mês, criada pela designer pernambucana Daniela Brilhante. O projeto é de curado-ria conjunta entre o Instituto Hilda Hilst, o Ateliê Aberto e a curadora e crítica de arte Ana Luisa Lima, editora da revista Tatuí.

O paulista Nazareno já transita entre a palavra e a imagem, assim que sua aproxima-ção com a poesia de Hilda foi natural: “Faço muitos desenhos com escritos, por isso o que estou propondo para exposição são 14 de-senhos que retratam coisas vistas durante o período em que fiquei na casa, não apenas a beleza física, mas também as relações com-portamentais, as facilidades e os atritos. As obras refletem bastante a vivência”. O artista ressalta que o objetivo de uma residência é exatamente “sair do cotidiano, da situação or-dinária, da sua rua, do seu bairro, e, resguar-dando uma reserva de domínio, se deixar contaminar por essa nova ambientação”. Por isso, durante os 15 dias que passou na Casa do Sol, se permitiu permear pelo universo da escritora, pôde partilhar do que chamou de “um ato generoso”, pois, afinal, “quantas vezes a gente tem acesso a um ateliê, um es-túdio de um grande artista? Essa experiência possibilita um encontro muito rico”. Nazare-no aproveitou a estada para investigar algo que considera muito curioso na história de Hilda: ele queria entender e imaginar como foi, para uma mulher moderna como Hil-da, tomar a decisão de isolar-se, de voltar ao campo para estabelecer um local de trabalho.

Mas nem para todos a residência foi uma experiência produtiva. “Minha relação com a casa foi estranha. Tive a sensação de que ela é um sepulcro. O melhor momento foi, na verdade, fora da Casa do Sol, na Uni-camp, onde a gente pôde ler os diários dela”, conta o maranhense Thiago Martins de Melo, que já havia trabalhado com influên-cias dos escritos de Hilda em 2007. O artis-ta imaginava que trabalharia mais a obra de Hilda do que essa memória física da poeta, encarnada nas paredes que restaram dela “mas o triste da residência foi isso, deixar de mergulhar outra vez no universo dela, e focar no seu simulacro, que está na casa”.

Thiago conta que, quando viu o portão, o estilo da casa, que, apesar de construída na década de 1960, remonta aos idos coloniais,

Equipe de curadoria do Instituto Hilda Hilst; ao

lado, a sala da escritora

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toda a aura lhe despertou “uma sensação de simulacro que não agradou muito. Senti que ela não está mais lá, a obra dela, sim, mas a casa me pareceu um cadáver”. E foi pensando nisso que ele desenvolveu sua obra, resultado da residência, intitulada Si-mulacro e parasitismo na Casa do Sol Preto, e é toda baseada em sua relação com “o tú-mulo dela, a memória física e as persona-gens que orbitavam ao redor dela”.

“Eu acho que tem uma energia nessa área, que se relaciona com o modo como Hilda encarava esta árvore [a figueira], e percebi que essa energia imanta todas as ár-vores desse quintal. Por conta disso, resolvi fazer esse trabalho”, conta Divino Sobral, ar-tista goiano, enquanto admira sua obra, fios de lã trançados pelo caule e galhos de uma árvore de porte médio, em um vermelho forte e alguns tons de amarelo. “A cor está ligada com a preferência cromática da Hilda pelo vermelho, e também com a seleção de 16 extratos de texto que separei do Júbilo, memória e noviciado da paixão, em que ela fala no rubro, no sangue e em uma ligação desses textos com o ouro”, conta o artista, que explica ainda que árvore é apenas uma obra complementar, “o resultado destes dias de imersão no mundo da Hilda são a expo-sição única no Ateliê Aberto. Lá escrevi tre-chos da obra dela a lápis em uma parede e os apaguei com a minha língua, lambi a pare-de, que depois foi toda coberta de vermelho”.

Divino explica que os textos passaram por um processo de apagamento, viraram me-mória daquela parede, que escorre em ver-melho sangue, “então, galhos dessa árvore serão fixado perpendicularmente, de forma viril, como se estivessem penetrando-a, e no centro há uma foto da árvore coberta de lã”.

Perto dali, sentado em um banco de ma-deira, está Adir Sodré, fazendo um pequeno vaso de flores dançar entre seus braços, se-relepe e falador, como parece naturalmente, “metade do que digo é brincadeira, a outra é mentira”, repete. Nascido no Mato Grosso, seu trabalho orienta-se por uma ótica regio-nalista, ainda que ele reforce que não perten-ce a nenhum lugar: “Sou filho de baianos, nasci em Cuiabá, mas nunca estive lá, apesar de amar minha cidade”. Ele conta que chegou

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Divino Sobral, autor de uma das instalações presentes na exposição Poemas aos Homens de Nosso Tempo (foto acima) escala o portão de entrada da Casa do Sol com o artista Paulo Meira

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Brión é uma aldeia da galícia, no noroeste da Espanha, com pouco mais de duas

dezenas de casas. Essa minúscula vila onde todos se conhecem e nada acontece foi

o lugar escolhido por amilcar Bettega, 48, para finalizar seu último livro (Barreira, com

lançamento previsto para agosto no Brasil). atualmente residente em lisboa, o escritor

gaúcho passou o mês de fevereiro em uma residência literária criada por uma editora.

“É um lugar muito calmo. E bastante agradável também, com muito verde ao redor, além

de umas espécies de praias. a casa onde os escritores ficam pertence à editora; é uma

casa à antiga, com paredes de pedra e fogão a lenha”, conta. seu solitário trabalho só

era interrompido na metade do dia, quando percorria de bicicleta cerca de 10 quilômetros

entre ir e voltar do restaurante onde almoçava – o mais perto que havia. Esse mês de

trabalho sem interferência externa e fora do hábitat natural foi bastante proveitoso, conta.

“comigo normalmente é assim, um mês em uma residência literária equivale a quatro

meses trabalhando em casa.” No entanto, o seu período não pode ser muito largo.

“depois de um mês, começo a render menos”, completa ele, que já havia passado por

experiências em residências literárias nos Estados unidos, na frança e na suíça.

o autor de Os lados do círculo aponta a quebra de rotina, a mudança de ares,

paisagem e a possibilidade de dedicar-se apenas ao trabalho literário como as maiores

vantagens de uma residência literária. “o que pode um escritor esperar de uma residência?

tempo e tranquilidade para trabalhar. E há coisa melhor a oferecer a um escritor?”.

Uma noite poética

No ano passado, o poeta e dramaturgo português Jaime rocha, 64, aceitou convite da

casa fernando Pessoa para dormir uma noite no quarto em que o criador dos múltiplos

heterônimos passou seus últimos anos. a inciativa, chamada “uma noite com Pessoa”,

consistia em aproximar escritores do universo pessoano – mais uma dezena de literatos,

entre eles os brasileiros João gilberto Noll, tatyana levy salem e maria lúcia dal farra,

fizeram parte do projeto. o autor de A loucura branca conta que, embora em um primeiro

momento a experiência pudesse parecer uma brincadeira, ela teve uma carga forte e

intensa. “No meu caso, foi uma aproximação com a morte, com o medo do corpo morto.

impressionou-me, sobretudo, o terno de Pessoa (camisa, casaco, gravata e chapéu)

pendurado sobre o cabide que está no quarto. É uma presença fortíssima esta imagem,

porque ele está lá sem estar – uma espécie de fantasma que, no fundo, é a força da sua

poesia, dos seus heterônimos. E também me impressionaram as frases que estão escritas

nas paredes, pelo seu significado e pelo seu tamanho.”

rocha relata que, durante a noite, teve um pesadelo em que se sentia sufocado pelos

móveis e pelas palavras do poeta português. “foi uma experiência única, mas, como foi

apenas uma noite, não creio que me acrescentasse muito no sentido da minha criação

literária futura, mas mais no conhecimento da vida e da obra de Pessoa.”

o produto final desse projeto – ainda em andamento – será um livro com relatos

dos escritores sobre as noite na cama do poeta do desassossego.

Outras experiências literáriasP o r r i c a r d O V i e l

à Casa do Sol em um sábado, para iniciar a residência, e, no dia seguinte, estava comple-tamente perturbado: “Chorei, chorei muito, essa casa mexe muito com as pessoas. Eu queria respostas para o que não tinha respos-ta, entrei em pânico, comecei a sentir saudade de quando minha filha tinha 8 anos, e hoje ela tem 25. Coisas estranhas”.

Adir, que já pintou obras fortes e pene-trantes, como Matisse enrabando Picasso, apossou-se do livro Caderno rosa de Lori Lamb para compor seu diálogo com Hilda. “Confundi tudo, sempre faço isso. Achei que era 'Lori Bambi', então criei um perso-nagem em cima disso. Mas meu trabalho mudou quando cheguei aqui. Me mutei de Adir para o cor-de-rosa Lori Bambi. Vou chegar na exposição montado, lá vão estar vários objetos da Hilda, tudo cor-de-rosa, e eu vou chegar de rosa também.”

Paulo Pereira foi o artista que mais tempo permaneceu, ininterruptamente, como resi-dente durante o Poemas aos homens de nos-so tempo, somando mais de 15 dias na casa e seus arredores. E faz todo sentido, pois ele pretende desenvolver seu diálogo com Hilda a partir, exatamente, de sua casa. Nela, as noi-tes de chuva são impressionantes, “baixa uma sensação pesada, uma espécie de tristeza, dá pra entender por que a Hilda foi tão influen-ciada por esse lugar”. Paulo não era próximo da literatura dela, ao menos até o contato fei-to pelo Instituto, no final de 2012. “Então, li logo Contos grotescos, e foi curioso, porque ambientei, na minha cabeça, uma parte do livro num lugar exatamente como esse [dei-xa os olhos percorrerem os cantos do am-plo pátio central até se deterem no pequeno poço]. Quando cheguei aqui e vi isso, senti um impacto. Foi nesse momento que deci-di trabalhar minha obra em função da casa, num sentido de feminilidade”. Natural do Recife, Paulo preparou uma videoinstalação, gravada no pátio, que contará também com um programa de rádio em ondas curtíssimas, emitidas de um pequeno transmissor.

Poucos autores, quem dirá os dedicados à poesia, ainda mais aqueles reclusos, são capazes de lograr que seu legado artístico impacte diferentes gerações. Talvez Hilda te-nha escondido seu segredo debaixo de uma figueira. Talvez.

assista ao vídeo de entrevistas com artistas residentes no site