Os Pastorinhos de Fátima - Lucerna Online · – Olhe, senhora, há pais bons que têm filhos maus...

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Os Pastorinhos de FátimaIguais a Todos, Iguais a Nós

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TítuloOs Pastorinhos de Fátima – Iguais a Todos, Iguais a Nós

AutoraMadalena Fontoura

Edição e copyrightLucerna, Cascais

1.ª edição – Março de 2017© Princípia Editora, Lda.

Design da capa Rita Maia e Moura Execução gráfica www.artipol.net • Depósito legal 422725/17

LucernaRua Vasco da Gama, 60-C – 2775-297 Parede – Portugal

Tel.: +351 214 678 710 • Fax: +351 214 678 719 • [email protected] • www.principia.pt

A cópia ilegal viola os direitos

dos autores. Os prejudicados

somos todos nós.

Nada obstaLisboa, 31 de janeiro de 2017Cónego Prof. Doutor João Maria Félix da Costa Seabra

Imprima-seLisboa, 6 de fevereiro de 2017Cónego Nuno Isidro Nunes CordeiroVigário-Geral

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Madalena Fontoura

Os Pastorinhos de Fátima

Iguais a Todos, Iguais a Nós

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Em família

O nome é árabe. Conta a lenda que se chamava Fátima a filha do Vali de Alcácer por quem se apaixonou um cavaleiro das hostes de D. Afonso Henriques, descendente de uma família nobre de Ourém.

Nos primeiros anos do século XX, não passava de uma po-voação humilde no planalto da serra de Aire. Não era grande, nem rica, nem bonita. Não tinha grandes obras de arte, nem grande cultura, nem mesmo grande religião.

À sua volta, aldeias, lugares e a paisagem árida da serra: car-rasqueiras, azinheiras, pinheiros e, aqui e ali, um ou outro bocado de terra cultivada.

Bem próximo da igreja paroquial, coração da freguesia, um dos lugares mais pequenos e pobrezinhos: Aljustrel, uma estradi-nha às curvas, com casas pequenas, construídas de um lado e de outro pelos próprios moradores.

Ali moravam as famílias Santos e Marto.António e Olímpia Santos eram irmãos e casaram-se com

outros dois irmãos da família Ferreira Rosa: Maria Rosa e José.

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António e Maria Rosa tiveram sete filhos. Um morreu quando ainda era pequenino. Os outros eram um rapaz, o Manuel, e um rancho de raparigas. A mais novinha de todas era a Lúcia.

José Ferreira Rosa morreu novo e Olímpia ficou viúva com dois filhos. Voltou a casar com Manuel Pedro Marto. Também tive-ram sete filhos, e também morreu um deles quando era pequeni-no. E os dois últimos eram o Francisco e a Jacinta.

Em Aljustrel, todos estimavam estas duas famílias.A família Santos era o socorro de todos os que precisavam.

Maria Rosa acudia sempre às necessidades dos outros mesmo que não a chamassem, fossem eles doentes, mendigos ou famí-lias a quem morrera a mãe ou o pai. Contava com o apoio do marido. António não regateava nem a sua ausência de casa, nem os alimentos que ela partilhava, nem a falta das filhas, que ela convocava para ajudar. Lúcia cresceu neste ambiente de caridade alegre. Lembrava-se de ouvir a Mãe dizer: «Nunca o que nós de-mos aos pobres nos fez falta».

A retidão dos pais da Lúcia fê-los sofrer muito até aceitarem como verdadeiros os relatos das aparições.

– Para ser Nossa Senhora, é uma coisa tão grande que nós não somos dignos dela! – dizia Maria Rosa.

Foi exigente com a filha, mas não a abandonou, nem quando, na aparição de outubro, julgou que a pastorinha correria risco de vida se a multidão se sentisse defraudada pela promessa do milagre:

– Nós vamos com ela, que, se ali vai morrer, também que-remos morrer a seu lado.

António, mais reservado e pacífico, deu, um dia, o seguinte conselho à filha:

– Tu não viste? Então não digas que viste. Mas, se viste, não digas que não viste.

Manuel Pedro Marto tinha a fama de ser o homem mais sé-rio de Aljustrel. Na sua casa todos trabalhavam muito no amanho das terras e, tendo em conta a pobreza do lugar, eram conside-rados dos mais desafogados – o que custa a acreditar quando se visita hoje a casa minúscula onde viviam.

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O Ti Marto impressionava não só pela sua honradez, mas também pela sua sincera humildade. Nunca se lhe ouviu uma pa-lavra de vaidade pela santidade dos filhos mais pequenos.

– São coisas do alto! Poderes do alto! – repetia constante-mente.

Junto da Capelinha, foi um dia abordado por uma senhora que lhe pediu:

– Senhor Marto, nas suas orações, lembre-se de mim. Era já velhinho. Endireitou-se, olhou-a fixamente e respon-

deu:– Olhe, senhora, há pais bons que têm filhos maus e pais

maus que têm filhos bons.

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lúcia

Era Quinta-Feira Santa, aquele dia 28 de março de 1907. Maria Rosa, de esperanças, já no fim do tempo, ainda foi à Missa de manhã e comungou. À tarde nasceu a pastorinha mais velha dos três a quem Nossa Senhora apareceu – que dizia mais tarde ter comungado ainda antes de nascer.

Para conseguir que a filha fosse batizada no sábado seguin-te, António Santos registou-a a 22 de março, data que ficou sempre conhecida como o seu dia de anos. O nome foi escolhido pelo pai da madrinha, uma rapariguinha de Aljustrel que era afilhada de Maria Rosa. E assim foi batizada no dia 30 de março, Sábado de Aleluia, Lúcia de Jesus Santos.

Lúcia cresceu rodeada de mimos. As irmãs mais velhas leva-vam-na para todo o lado com elas e a mãe deixava. «Minha mãe, como eu, era um papagaio que tudo repetia, gostava que elas me le-vassem a todos os sítios onde iam», conta Lúcia nas suas memórias. E aprendia tudo com facilidade, das coisas de casa às cantigas e danças.

Foi aprendendo também a caridade, pela maneira como a sua mãe vivia e educava os filhos. Lembrava-se mais tarde de só

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ter licença para fazer um xaile novo se fizesse dois, para dar um a uma menina pobre. Doutra vez, fez uma blusa nova, que a mãe deu a uma mendiga, ensinando depois a filha a fazer outra e a alegrar-se com a partilha.

Várias vezes se via rodeada das crianças da terra, que pa-ravam em sua casa enquanto as mães iam trabalhar no campo. Lúcia era a capitã das brincadeiras: decidia, ensinava, corrigia, consolava, punha e dispunha, com um sentido prático e uma boa disposição permanentes.

Com seis anos fez a Primeira Comunhão. Só se podia fazê--la aos sete, mas Lúcia, com seis, já sabia a doutrina toda. Passou na paróquia o padre Cruz, para ajudar nas confissões, e, vendo-a preparada, convenceu o pároco a deixá-la antecipar.

No dia da Primeira Confissão, teve uma graça que nunca mais esqueceu. O padre Cruz, depois de a ouvir, disse-lhe:

– Minha filha, a sua alma é templo do Espírito Santo. Guarde--a para sempre pura, para que Ele possa continuar nela a sua ação divina.

Lúcia perguntou-lhe como devia fazer. – De joelhos, ali, aos pés de Nossa Senhora, peça-lhe, com

muita confiança, que tome conta do seu coração, que o prepare para receber amanhã dignamente o seu querido Filho, e que o guarde só para Ele.

Lúcia contava que tinha ido ajoelhar-se no altar de Nossa Senhora do Rosário: «Pedi-Lhe, pois, com todo o ardor de que fui capaz, que guardasse, para Deus só, o meu pobre coração. Ao repetir várias vezes esta humilde súplica, com os olhos fitos na imagem, pareceu-me que ela se sorria e que, com um olhar e gesto de bondade, me dizia que sim. Fiquei tão inundada de gozo, que a custo conseguia articular palavra».

No dia da Primeira Comunhão, teve uma experiência inten-sa que descreve com as palavras «atmosfera de sobrenatural», com que mais tarde se referirá também a Fátima. Lembra-se do que rezou na Ação de Graças: «Senhor, fazei-me uma santa, guardai o meu coração sempre puro, apenas para Vós». E pareceu-lhe rece-

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ber no fundo do seu coração uma resposta de Deus: «A graça que hoje te é concedida permanecerá viva em tua alma, produzindo frutos de vida eterna».

E a Lúcia, pequenina e brincalhona, começou a mudar nesse dia. Faltavam ainda três anos para as aparições.

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francisco

No dia 11 de junho de 1908, por volta das dez da noite, nas-ceu o Francisco. Foi batizado nove dias depois, a 20 de junho, na Igreja Paroquial de Fátima.

Moreninho, de cara mais redonda que comprida, olhos cas-tanhos escuros, à medida que crescia foi ficando com aquele tom tostado de pele causado pelo ar da serra. Tinha um sorriso alegre e uma cara agarotada. Apesar do feitio pacato, o pai dizia dele que era «mais bravo e desinquieto que a Jacinta. Por qualquer coisa não estava com tanta paciência. Por qualquer coisa era uma mexida que até parecia um bezerro». «Teria sido homem!», acres-centava a mãe.

«Carapuço enterrado na cabeça, jaleca muito curta, colete deixando ver a camisa, calças justas, enfim um homem em mini-atura. Bela cara de rapaz!»1 foi a descrição que fez dele um dos primeiros peregrinos de Fátima quando o conheceu.

1 Padre António Maria Martins, citando Carlos Azevedo Mendes, numa carta à noiva de 8 de setembrode 1917, em Novos Documentos de Fátima.

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Amigo do campo, a natureza parecia não ter segredos para ele. «Não mostrava nada ser medroso. Ia de noite sozinho a qualquer sítio escuro, sem mostrar dificuldade. Brincava com os lagartos e cobras que encontrava. Fazia-as enrolar à volta dum pau, deitava--lhes nas covas das pedras leite das ovelhas para que o bebessem; metia-se nas covas à procura das luras das raposas, dos coelhos e dos ginetes, etc.»2.

Era um defensor dos animais, sobretudo dos passarinhos. Quando via os outros meninos prenderem-nos ou roubarem-lhes os ninhos, ficava todo triste. Divertia-se a imitar o canto dos pássa-ros, dava-lhes de comer do seu farnel, falava com eles como se o entendessem. Um dia encontrou um miúdo que tinha apanhado um passarinho. Trazia-o na mão, todo orgulhoso. O Francisco fez de tudo para tentar convencê-lo a soltar o pássaro, mas não conseguiu. Então prometeu-lhe dois vinténs. O rapaz aceitou, mas queria o di-nheiro na mão. Isto passou-se junto à Lagoa da Carreira, um pouco abaixo da Cova da lria. E lá foi o Francisco a correr até casa, a buscar o resgate do prisioneiro. Quando finalmente o viu a voar, bateu as palmas de contente dizendo:

– Tem cautela, não te tornem a apanhar.Também gostava de ajudar os outros. A Ti Maria Carreira, que

era uma velhota a quem os filhos pediam para guardar um rebanho de cabras e ovelhas, chamava ao Francisco «o meu Anjinho da Guar-da», porque era sempre ele quem estava pronto para ajudá-la quando as cabras e ovelhas, que eram pouco domesticadas, se tresmalhavam, fugindo uma para cada lado.

E tudo isto era feito lá do fundo do seu silêncio, do seu modo discreto, do seu feitio metido consigo. Sem dar nas vistas, sem brigas, sem discussões.

A Lúcia enervava-se com aquela maneira de ser dele tão passiva. «Parece-me que, se houvesse crescido, o seu defeito prin-cipal seria o de não-te-rales»3, observou ela, que era por sua vez

2 Padre Fernando Leite, citando a Irmã Lúcia, em Francisco de Fátima.3 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.

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toda despachada, toda sem papas na língua. «Às vezes», confessou, «pegava-lhe por um braço, obrigava-o a sentar-se no chão ou em alguma pedra. Mandava-lhe que estivesse quieto e ele obedecia como se eu tivesse uma grande autoridade. Depois sentia pena, ia buscá-lo pela mão e vinha com o mesmo humor, como se nada tivesse acontecido»4.

Apesar de ser alegre e animado nos jogos, os outros meninos não gostavam de jogar com ele porque perdia quase sempre. E, das poucas vezes em que ganhava, se os outros se punham à discus-são, encolhia os ombros e respondia:

– Pensas que ganhaste tu? Pois sim! A mim isso não me im-porta.

Nada do que entusiasma as crianças daquela idade parecia ter muita importância para ele. Até podiam tirar-lhe coisas, como da célebre vez em que apareceu no bolso de outro menino o seu lencinho de estimação, com Nossa Senhora da Nazaré pintada. A resposta foi a de sempre:

– Deixa-o lá! A mim que me importa o lenço?Não entrava nas danças. Gostava mais de tocar o seu pífaro

enquanto os outros dançavam. Ou, então, tocava-o sozinho, senta-do numa pedra, sem precisar de atenção, nem de companhia, nem de estardalhaço, para estar entretido e contente.

Nunca ia à luta, nunca se exaltava, nunca defendia os seus direitos nem fazia valer as suas vontades. E depois, de repente, havia uma centelha que faiscava naquele todo pacato. E percebia--se um coração apaixonado, capaz de se fascinar, de se deixar arrebatar.

Quando, muito pequenino, começou a ir com a Jacinta acompanhar a Lúcia a tomar conta do rebanho, partiam os três, ainda noite escura, e divertiam-se a descobrir a Lua, a «candeia de Nossa Senhora», e a contar as estrelas, as «candeias dos anjos». Mas, assim que o Sol começava a espreitar, o Francisco já não queria saber das estrelas. Seguia com os olhos os raios que faziam brilhar

4 Idem.

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os vidros das janelas e as gotas de água espalhadas pelo campo. E exclamava, do fundo da sua contemplação:

– Nenhuma candeia é tão bonita como a de Nosso Senhor!

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Jacinta

A Jacinta nasceu a 11 de março de 1910, pelas quatro horas da tarde. Tinha o Francisco quase dois anos. Batizaram-na no dia 19 de março, festa de São José, com pouco mais de uma semana de vida.

Foi estragada com mimos, o que talvez tenha contribuído para a tornar um bocadinho melindrosa e amuadiça, mas também sensível e meiguinha. O pai dizia dela com ternura:

– Tão boazinha que ela era, tão mansinha!… Nunca criámos outra daquele jeito.

Muito parecida com o Francisco, a Lúcia havia de descrevê--la assim: «era de tamanho natural de uma criança de seis anos; bem desenvolvida; de natural robusto; mais magra que gorda; cor tostada pelo ar e sol da serra, olhos grandes castanhos, muito vi-vos, protegidos por grandes pestanas e sobrancelhas pretas; olhar doce e meigo, ao mesmo tempo vivo»5.

5 Sebastião Martins dos Reis, citando o interrogatório do Dr. Goulven em A Vidente de Fátima Dialoga e Responde pelas Aparições.

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Uma outra descrição da época acrescenta: «Um lenço com

ramagem encarniçada, embrulhado na cabeça com as pontas ata-

das atrás. Lenço velhito e já roto. Um casaquito que também não

primava muito pela limpeza. Uma saia sobre o encarnado, mas

com uma roda enorme, à moda da terra… Os olhos negros de

uma vivacidade encantadora, uma expressão angélica, de uma

bondade que nos seduz, um todo extraordinário que não sei por-

quê nos atrai»6.

Era muito amiga da Lúcia e ia muitas vezes brincar com ela,

juntamente com o Francisco. Conta a prima: «Quem gozava mais

da festa era a pequena Jacinta, por estar a cear junto de mim. No

fim, não havia quem conseguisse levá-la para sua casa. Agarrava-se

a mim, dizendo:

– Eu fico cá e mais ti…

Nestes casos, a minha Mãe dizia para o Pai ou Mãe dela:

– Se ela não quer ir, deixem-na ficar; elas cabem as duas na

cama e a ceia chega para todos»7.

No entanto, ao princípio, a Lúcia confessa que não tinha

especial amizade por ela, além do facto de serem primas. E era-

-lhe antipático o feitiozinho melindroso da Jacinta. «A menor con-

tenda das que se levantam entre as crianças, quando jogam, era

bastante para a fazer ficar amuada, a um canto, a prender o burri-

nho… Para a fazer voltar a ocupar o seu lugar na brincadeira, não

bastavam as mais doces carícias que em tais ocasiões as crianças

sabem fazer. Era então preciso deixá-la escolher o jogo e o par

com quem queria jogar»8.

O jogo preferido da Jacinta era o das pedrinhas ou do botão,

que ela ganhava com frequência. Iam jogá-lo sentados nas lajes

que cobriam o poço do quintal da Lúcia. Esta brincadeira custou

alguns sustos à pastorinha mais velha, que se via sem botões à hora

6 Carlos Azevedo Mendes, numa carta à noiva de 8 de setembro de 1917, em Novos Documentos de Fátima.

7 Padre Fernando Leite, citando a Irmã Lúcia, em Jacinta de Fátima.8 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Primeira Memória.

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de a chamarem para a refeição. «Era preciso pregá-los à pressa; e

como conseguir que ela mos desse, se além do defeitilho de amuar,

tinha o de agarrada? Queria guardá-los para o jogo seguinte, para

não ter de arrancar os dela. Só ameaçando-a de que não voltava

mais a brincar com ela é que os conseguia»9.

Tinha saídas muito de criança, que enterneciam qualquer

um. Da primeira vez que viu numa procissão os «anjinhos» a

deitarem flores, nunca mais se esqueceu. A partir daí, de vez em

quando, enquanto os três primos brincavam, afastava-se, ia apa-

nhar flores e atirava-as à Lúcia. Quando a prima, muito admirada,

lhe perguntava o que estava a fazer, respondia muito contente:

«Faço como os “anjinhos”, deito-te flores».

Feita pastorinha mais cedo do que era habitual para a idade,

delirava com as ovelhas: sentava-se com elas ao colo, enroscava-se

nelas e dava-lhes beijinhos. Um dia, de regresso a casa, meteu-se

pelo meio do rebanho e, quando lhe perguntaram porque ia ali,

saiu-se com esta:

– Para fazer como Nosso Senhor, que, naquele santinho

que me deram, também está no meio de muitas ovelhas, com

uma ao colo.

A atração por Jesus veio cedo e parecia mais forte do que

tudo o que ela aprendia em casa. Talvez a história mais surpre-

endente seja a do jogo das prendas. Estavam em casa da Lúcia a

fazer este jogo. A regra é que quem ganha mande fazer qualquer

coisa a quem perde. Calhava à Lúcia mandar a Jacinta. Como

estava ali sentado o irmão mais velho da Lúcia, ela mandou que

a Jacinta lhe fosse dar um abraço e um beijinho. A Jacinta atrapa-

lhou-se, não quis e, de repente, apontando para um crucifixo que

estava na parede, sugeriu:

– Porque não me mandas beijar aquele Nosso Senhor que

está ali?

A Lúcia concordou:

9 Idem.

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– Sobes para cima de uma cadeira, trá-lo para aqui e, de joelhos, dás-lhe três beijos e três abraços, um pelo Francisco, outro por mim e outro por ti.

– A Nosso Senhor dou quantos quiseres. A Lúcia nunca mais se esqueceu da maneira como viu a pri-

ma beijar e abraçar aquele crucifixo.E, a seguir, com o crucifixo na mão, a Jacinta quis saber

porque estava Jesus ali pregado e pediu à Lúcia que lhe explicasse. A Lúcia, que já tinha ouvido muitas vezes a história da Paixão de Jesus, contou-a com todos os pormenores. E a Jacinta comoveu-se e chorou.

Ainda outra história bem típica dela: pediu para ir de «anji-nho» na Procissão Eucarística e ficou excitadíssima porque também ia atirar flores a Jesus.

– E nós vêmo-l’O? – perguntava, toda preocupada. – Sim, leva-O o Senhor Prior.No dia da procissão, lá foi, muito compenetrada, sem tirar os

olhos do prior, mas nada de atirar flores. No fim, perguntaram-lhe:– Jacinta, porque não deitaste as flores a Jesus?– Porque não O vi. Então tu viste o Menino Jesus? – pergun-

tou ela à Lúcia.– Não! Mas tu não sabes que o Menino Jesus da hóstia não se

vê, está escondido?! É O que nós recebemos na comunhão.– E tu, quando comungas, falas com Ele?– Falo.– E porque não O vês?– Porque está escondido.E assim nasceu o costume dos pastorinhos mais pequenos

de chamarem a Jesus na Eucaristia «o Jesus escondido».

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iguais a todos, iguais a nós

Na primavera de 1916, a Jacinta tinha seis anos, o Francisco estava quase a fazer oito e a Lúcia tinha nove. Eram assim, cada um à sua maneira, com muitas qualidades e alguns defeitos. Não se distinguiam das outras crianças de Aljustrel, nada tinham de especial. E mesmo as histórias mais tocantes da paixão da Jacinta por Jesus teriam caído no esquecimento de todos, se não viesse o que veio.

Eram normais, muito normais, tão normais como nós. Até se escapavam da oração do terço, para poderem ir brincar mais depressa: «[…] como todo o tempo nos parecia pouco para a brin-cadeira, arranjámos uma boa maneira de acabar depressa: passá-vamos as contas dizendo só “Avé Maria”. Quando chegávamos ao fim do mistério, dizíamos com muita pausa as palavras “Padre Nosso”. E, assim, num abrir e fechar de olhos, como se costuma dizer, tínhamos o nosso terço rezado»10.

10 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Primeira Memória.

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E foi por serem tão crianças e tão normais que se tornou ainda mais grandioso o que havia de operar-se neles. Mesmo sendo santos, não deixam de ser muito próximos de nós.

O Céu não escolheu três crianças iluminadas, excecionais ou particularmente místicas. Escolheu aqueles Pastorinhos de Aljus-trel. A massa de que se fez a sua santidade é a mesma de que somos feitos nós, cada um com as suas limitações, as suas misé-rias, a sua normalidade.

Seria tão fácil distanciarmo-nos de tudo o que eles foram e viveram, se já fossem perfeitos à partida. Mas não eram.

O que veio depois começa agora. O que veio depois acon-teceu, mas podia não ter acontecido. O que veio depois mudou tudo.

Mas, para começar, só havia aqueles Pastorinhos de Aljustrel, iguais a todos, iguais a nós.

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o anJo

Estava um dia de chuva miudinha. Os três Pastorinhos abriga-ram-se numa gruta não muito longe de casa que até hoje é conhe-cida como Loca do Cabeço, e ali passaram o dia a brincar. A certa altura, começaram a ver uma luz, que se aproximava e ia tomando forma humana. Já junto deles, assumiu o aspeto de um rapaz que brilhava mais do que «um cristal atravessado pelos raios do Sol»11.

Desde o primeiro momento, aquela visão mergulhou-os num ambiente de silêncio e espanto tal que não conseguirm dizer nada. Inevitavelmente, estariam também um bocadinho assustados.

E o anjo disse-lhes:– Não temais. Sou o Anjo da Paz. Orai comigo.E, prostrando-se em terra, pronunciou pela primeira vez a

belíssima oração:– Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-Vos. Peço-Vos

perdão para os que não creem, não adoram, não esperam e não Vos amam.

11 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.

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«Levados por um movimento sobrenatural»12, os Pastorinhos imitaram-lhe o gesto e a oração.

Ao fim de a repetir três vezes, o anjo deixou-os, com esta recomendação:

– Orai assim. Os Corações de Jesus e de Maria estão atentos à voz das vossas súplicas.

«A atmosfera de sobrenatural que nos envolveu era tão in-tensa, que quase não nos dávamos conta da própria existência, por um grande espaço de tempo, permanecendo na posição em que nos tinha deixado, repetindo sempre a mesma oração. A presença de Deus sentia-se tão intensa e íntima que nem mesmo entre nós nos atrevíamos a falar. No dia seguinte, sentíamos o espírito ainda envolvido por essa atmosfera que só muito lenta-mente foi desaparecendo.

Nessa aparição, nenhum pensou em falar nem em recomen-dar o segredo. Ela de si o impôs. Era tão íntima que não era fácil pronunciar sobre ela a menor palavra»13.

Lúcia descreveu assim esse momento, com memória viva e inegável intensidade, mais de 20 anos depois de tudo se ter passado.

Passaram alguns meses. Era um daqueles verões quentes da serra de Aire. Custava aguentar o sol à hora de maior calor. Em dias assim, os Pastorinhos traziam os rebanhos para casa a meio da manhã e só voltavam a sair com eles quando começava a refrescar. O seu refúgio, à hora da sesta, era a sombra das árvores, à volta do poço que havia no quintal de casa da Lúcia. Ali estavam, num dia desses, quando viram, de repente, o anjo outra vez ao pé deles.

Como quem os corrige, perguntou-lhes:– Que fazeis? Orai! Orai muito! Os Corações de Jesus e Maria

têm sobre vós desígnios de misericórdia. Oferecei constantemente ao Altíssimo orações e sacrifícios.

12 Idem.13 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.

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A pergunta da Lúcía foi pronta:– Como nos havemos de sacrificar?E a resposta, funda, certeira, atravessando as décadas para

continuar a confrontar-nos ainda hoje, não tardou:– De tudo que puderdes, oferecei um sacrifício em ato de

reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores. Atraí sobre a vossa Pátria a paz. Eu sou o Anjo da sua guarda, o Anjo de Portugal. Sobretudo, aceitai e su-portai com submissão o sofrimento que o Senhor vos enviar.

É depois desta segunda aparição que o Francisco fala: quer saber o que disse o anjo, pois não ouviu nada, só o viu. Já da primeira vez também tinha sido assim. Mas, mesmo sem ouvir, era como se o impelisse a mesma urgência de agir e responder, que tocou o coração da Jacinta e da Lúcia. Porém, iria ter de esperar até ao dia seguinte. Envolvidas na mesma atmosfera de sobrenatural, no mesmo imperioso silêncio da primeira aparição, nenhuma das duas conseguiu falar.

Quase não dormiu de noite a pensar no anjo e no que ele teria dito. No dia seguinte, a Lúcia contou-lhe tudo, mas ele não a largava com perguntas sobre o significado daquelas palavras mis-teriosas. As respostas, porém, não chegam todas no mesmo dia. Vão vindo devagarinho, que a aparição do anjo tem aquele efeito inexplicável de levar ao silêncio.

Quando falam do anjo, a Jacinta confessa:– Não sei o que sinto. Já não posso falar; nem cantar, nem

brincar e não tenho força para nada.– Eu também não – acrescenta o Francisco. – Mas que impor-

ta? O anjo é mais bonito que tudo isso. Pensemos nele.A Lúcia, quando, anos depois, recordou e registou tudo o

que acontecera, descreveu o efeito provocado neles pelas apari-ções do anjo: «A força da presença de Deus era tão intensa que nos absorvia e aniquilava quase por completo. Parecia privar-nos até do uso dos sentidos corporais por um grande espaço de tem-po. Nesses dias, fazíamos as ações materiais como que levados por esse mesmo ser sobrenatural que a isso nos impelia. A paz e

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a felicidade que sentíamos era grande, mas só íntima, completa-mente concentrada a alma em Deus. O abatimento físico, que nos prostrava, era também grande»14.

Lentamente, começa a mudança. O Céu toma para si a ener-gia saltitante e a alegria esfuziante tão típicas do temperamento e da idade da Jacinta. Tudo será recuperado para uma missão que ela desconhece ainda. Por enquanto, trata-se de crescer mais depressa, por dentro dos seus seis anos. Não à força, mas por causa de uma atração grande e funda que ela ainda não sabe explicar, mas que começa a tomar conta de tudo o que ela é, de tudo o que ela pensa, de tudo o que ela sente.

E o Céu começa a atrair a contemplação do Francisco. Ele quer saber tudo, não por mera curiosidade, mas para conhecer melhor, para saborear mais. Era metido consigo. Passará, de então em diante, a ser metido com Deus.

À Lúcia cabem a observação dócil e a consciência, que a tornarão missionária do século XX. Acolhe, responde, avalia, reco-nhece, testemunha e indica o caminho. Por enquanto, apenas aos primos; mais tarde, à Igreja e ao mundo.

É também a partir desta segunda aparição que os três Pas-torinhos descobrem o amor ao sacrifício. Ou melhor, descobrem mais profundamente o amor de Deus por eles e arde neles o desejo de obedecerem aos pedidos de oração e sacrifício que ou-viram do anjo. Passam, assim, a oferecer a Deus tudo o que lhes custa. E prostram-se em terra, durante horas seguidas, repetindo a oração que o anjo lhes ensinou. Ao Francisco não lhe é difícil rezar, mas não consegue ficar, como elas, tantas horas prostrado com a cabeça por terra. Acompanha-as, na sua humildade, de joelhos ou sentado.

No princípio do outono, o anjo volta à Loca do Cabeço. E esta é a aparição do grande encontro. A oração mais intensa daque-les meses e a descoberta da penitência foram a estrada percorrida

14 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.

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pelos Pastorinhos de Aljustrel para poderem chegar àquele momen-to. Tinham sido introduzidos, de maneira única, a esse Amor de Deus que os escolhera, que os chamara e que os atraía cada vez mais. Estavam enfim preparados para o que ia acontecer naquela terceira aparição do anjo. Ele trazia na mão «um cálice e sobre ele uma Hóstia, da qual caíam, dentro do cálice, algumas gotas de san-gue. Deixando o cálice e a Hóstia suspensos no ar, prostrou-se em terra e repetiu três vezes a oração:

– Santíssima Trindade, Pai, Filho, Espírito Santo, adoro-Vos profundamente e ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo, presente em todos os sacrári-os da Terra, em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido. E, pelos méritos infinitos do seu Santíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria, peço-Vos a conversão dos pobres pecadores».

Levantando-se, deu a Comunhão aos Pastorinhos: o Corpo de Jesus à Lúcia e o Sangue de Jesus à Jacinta e ao Francisco, di-zendo, ao mesmo tempo:

– Tomai e bebei o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo horri-velmente ultrajado pelos homens ingratos. Reparai os seus crimes e consolai o vosso Deus.

Tudo se torna ainda mais profundo e mais intenso depois desta aparição. A presença física de Deus enche-os de uma paz e de uma felicidade íntimas até então nunca experimentadas. Os três Pastorinhos estão de tal maneira mergulhados em Deus, que, durante dias, em todos os seus atos, mesmo os mais simples, sen-tem-se literalmente levados pelo sobrenatural.

Uns dias mais tarde, o Francisco, para quem a compreensão dos mistérios que lhes vão sendo revelados é sempre mais difícil, ousa perguntar à Lúcia:

– O anjo a ti deu-te a Sagrada Comunhão, mas, a mim e à Ja-cinta, que foi que Ele nos deu? A Jacinta adianta-se, respondendo, ainda cheia de felicidade:

– Foi também a Sagrada Comunhão. Não vês que era o San-gue que caía da Hóstia?

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E o Francisco conclui:– Eu sentia que Deus estava em mim, mas não sabia como

era.A Lúcia é a única dos três que já fez a Primeira Comunhão.

Um momento marcante da sua vida, que guardará na memória, mesmo depois de atravessar a experiência das aparições. Das mãos do anjo comunga, da mesma maneira que das mãos do pá-roco e de todos os padres, bispos e Papas que cruzarão a sua vida: o Corpo de Jesus sob a forma da Hóstia Consagrada. A Eucaristia que vem do Céu é a mesma que foi entregue à Igreja, de uma vez por todas, na Última Ceia de Jesus com os seus discípulos. O caminho da simplicidade da vida cristã começa a ser percorrido pela Lúcia, mesmo por dentro dos acontecimentos extraordinários que é chamada a viver. Ela é atraída para o Céu, como os primos, mas será preparada para um longo caminho na Terra. Que terá que percorrer sem eles.

Os Pastorinhos entram no ano de 1917 profundamente mu-dados e, ao mesmo tempo, totalmente eles mesmos. E assim irá ser sempre. Quanto mais mudam, quanto mais se convertem, quanto mais se santificam, mais os encontramos no melhor de si mesmos: a Jacinta com um coração cada vez maior, o Francisco com um gosto silencioso de apreciar todas as coisas, cada vez mais sábio e intenso, e a Lúcia cada vez mais certa, serena, responsável e pronta a protagonizar as grandes batalhas que a esperam.

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nossa sEnhora

Maio

A Jacinta já tinha sete anos, o Francisco quase nove e a Lúcia dez. Era domingo, aquele dia 13 de maio. Foram à Missa bem cedinho, como era seu costume. Nesse dia, por acaso, «se é que nos desígnios da Providência há acasos», sublinha a Lúcia, escolheram levar o rebanho para a Cova da lria. O percurso foi longo, com as ovelhinhas a pastarem pelo caminho. Chegaram já ao fim da manhã. Depois do farnel e do terço, a brincadeira do dia foi construir uma «paredita em volta de uma moita». Estavam no cimo da encosta, no lugar onde se ergue hoje a Basílica de Nossa Senhora do Rosário.

De repente, viram um clarão, que lhes pareceu um relâm-pago. Não fosse vir trovoada, começaram a conduzir o rebanho encosta abaixo. Junto à azinheira grande, outro relâmpago e, avançando um pouco mais, viram «sobre uma carrasqueira, uma Senhora, vestida toda de branco, mais brilhante que o Sol, espar-

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gindo luz, mais clara e intensa que um copo de cristal, cheio de água cristalina, atravessado pelos raios do sol mais ardente»15.

Não deram mais nenhum passo, tomados pelo espanto. A Lúcia garante que não tiveram nenhum medo daquela Senhora. Era a trovoada que os assustava. «As aparições de Nossa Senhora não infundem medo ou temor, mas sim surpresa»16.

Ainda assim, as primeiras palavras da Senhora mais brilhante do que o Sol foram para os tranquilizar:

– Não tenhais medo. Eu não vos faço mal.– De onde é Vossemecê? – perguntou a Lúcia.– Sou do Céu.– E que é que Vossemecê me quer?– Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos,

no dia 13, a esta mesma hora. Depois vos direi quem sou e o que quero. Depois voltarei ainda aqui uma sétima vez.

– E eu também vou para o Céu?– Sim, vais.– E a Jacinta?– Também.– E o Francisco?– Também, mas tem de rezar muitos terços.A Lúcia fez mais perguntas sobre pessoas da terra que já

tinham morrido. Pacientemente, a Senhora a tudo respondeu. Che-gou, enfim, o momento de lhes fazer o pedido que trazia:

– Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os so-frimentos que Ele quiser enviar-vos, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?

A resposta das crianças, a que a Lúcia deu voz, foi pronta:– Sim, queremos.Com doçura, mas sem rodeios, Nossa Senhora diz-lhes a ver-

dade, levando a sério o oferecimento que acabaram de lhe fazer:

15 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.16 Idem.

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– Ides pois ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.

E foi nesse momento que abriu as mãos. E das palmas das suas mãos saiu uma luz intensa que os envolveu. Não precisou de lhes dizer nada para que soubessem, com clareza, o significado do que lhes estava a acontecer: aquela luz penetrava-lhes no peito e no mais íntimo da alma, explicaria a Lúcia, «fazendo-nos ver a nós mes-mos em Deus, que era essa luz, mais claramente que nos vemos no melhor dos espelhos»17.

«Então, por um impulso íntimo também comunicado»18, caí-ram de joelhos, repetindo intimamente:

– Ó Santíssima Trindade, eu Vos adoro. Meu Deus, meu Deus, eu Vos amo no Santíssimo Sacramento.

«Passados os primeiros momentos, Nossa Senhora acrescenta:– Rezem o terço todos os dias, para alcançarem a paz para o

mundo e o fim da guerra.Em seguida, começou-Se a elevar serenamente, subindo em

direção ao nascente, até desaparecer na imensidade da distância»19.

Partia, assim, serenamente, a Senhora que à chegada lhes dissera, com igual serenidade: «Não tenhais medo. Eu não vos faço mal».

Vem do Céu, irrompendo de uma forma inesperada e sur-preendente na vida daquelas crianças; pede-lhes uma entrega total, que Ela não esconde que comportará muitos sofrimentos. Mas diz, com doçura: «Eu não vos faço mal».

Como pode falar-lhes assim? Que será isso de não fazer mal, senão exclui dúvidas, perseguições, doenças e morte prematura?

Sem medo, sem dúvidas e sem hesitações, os Pastorinhos de Aljustrel confiam e entregam-se. Esse «sim, queremos» que di-

17 Idem.18 Idem.19 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.

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rão, com uma espontaneidade que nos espanta, não é um impulso infantil. É uma decisão crescida, feita de um ano de convivência com o anjo, tornada fiel na oração, forte na penitência e santa na Eucaristia. É um passo cheio de consciência, o que eles dão de olhos postos naquela Senhora que prometeu levá-los para o Céu.

Os momentos que se seguiram à partida de Nossa Senhora naquele dia 13 de maio foram de uma paz e de uma alegria expan-siva, o que, segundo conta a Lúcia, não os impedia de falar entre eles. Não era a mesma prostração física das outras vezes, quando tinha vindo o anjo. «A Aparição de Nossa Senhora veio de novo a concentrar-nos no sobrenatural, mas mais suavemente»20. Só da-quela luz das mãos de Nossa Senhora não conseguiam dizer nada: «sentíamos um não sei quê interior que nos movia a calar»21.

Contaram ao Francisco tudo o que Nossa Senhora lhes tinha dito. Mais uma vez, ele vira tudo, mas não ouvira nada. Na sua habitual humildade, ficou todo contente com a promessa de ir para o Céu e dizia: «Ó minha Nossa Senhora, terços, rezo todos quantos Vós quiserdes».

E, desde esse dia, era costume vê-lo afastar-se, muito calado, a passear pelo campo. Se o chamavam, levantava a mão a mostrar o terço. Às vezes, a Lúcia dizia-lhe que viesse brincar, que depois rezava com elas. Ele respondia: «Depois também rezo. Não te lem-bras que Nossa Senhora disse que tinha de rezar muitos terços?».

Porque terá Nossa Senhora deixado este recado ao Francisco, que parece uma condição para ir para o Céu? Seria para correção de alguma fraqueza sua? Seria uma maneira de sublinhar a força que tem a oração do terço? Ou, antes, uma indicação sobre a missão con-templativa a que o Céu queria chamar o Francisco? Não adianta falar a uma criança de nove anos incompletos sobre vocação contempla-tiva – não vai perceber. E logo o Francisco, tão terra a terra, tão sem

20 Idem.21 Idem.

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grandes voos intelectuais. Agora, rezar o terço, ele sabia o que era. E, levando a sério a indicação recebida, foi-se afeiçoando a essa intimi-dade com Deus, que nada no mundo alcança como a oração. A Lúcia conta este episódio, passados poucos dias depois da aparição:

«Ao chegar à pastagem, subiu a um elevado penedo e disse--nos:

– Vocês não venham para aqui. Deixem-me estar sozinho.– Está bem.E pus-me com a Jacinta atrás das borboletas, que apanháva-

mos para logo fazer o sacrifício de as deixar fugir, e nem mais do Francisco nos lembrou. Chegada a hora da merenda demos pela sua falta e lá fui chamá-lo:

– Francisco, não queres vir a merendar?– Não; comam vocês.– E a rezar o terço?– A rezar o terço vou; torna-me a chamar.Quando voltei a chamá-lo, disse-me:– Venham vocês a rezar para o pé de mim.Subimos para cima do penedo, onde mal cabíamos os três

de joelhos, e perguntei-lhe:– Mas que estás tu aqui a fazer, tanto tempo?– Estou a pensar em Deus que está tão triste por causa de

tantos pecados! Se eu fosse capaz de Lhe dar alegria!»22.

Tudo nele se começava a desenhar nesse sentido. Talvez por isso, falava assim da primeira aparição: «Gostei muito de ver o Anjo, mas gostei ainda mais de Nossa Senhora. Do que gostei mais foi de ver a Nosso Senhor naquela luz que Nossa Senhora nos meteu no peito. Gosto tanto de Deus! Mas Ele está tão triste, por causa de tantos pecados! Nós nunca havemos de fazer nenhum».

Por iniciativa da Lúcia, os três Pastorinhos decidiram não contar a ninguém a aparição de Nossa Senhora. E se não acredi-

22 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.

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tassem neles? E se, mesmo acreditando, não compreendessem as coisas grandes que lhes tinham acontecido? O silêncio era defini-tivamente o melhor conselheiro.

Estavam pensativos naquela tarde tão especial. Mas, de vez em quando, a voz da Jacinta irrompia: «Ai! Que Senhora tão boni-ta!». A Lúcia estremecia só de pensar que aquele segredo ia ficar mal guardado pelos sete anos impulsivos da prima:

– Estou mesmo a ver. Ainda vais dizer a alguém…– Não digo, não! – prometia ela. – Está descansada.Lá foram para casa. Os pais da Jacinta e do Francisco tinham

ido à feira da Batalha e voltaram só ao fim da tarde. A Jacinta não via a hora de os ver chegar. Mal os avistou, correu para a mãe:

– Ó mãe, vi hoje Nossa Senhora na Cova da Iria.Estava dado o alarme. E depois deste anúncio nunca mais

nenhum dos três teve sossego. No dia seguinte, contaram tudo à Lúcia. Ela, adivinhando o que a esperava, não se conteve sem dizer:

– Vês? Eu bem me parecia!A Jacinta ouviu-a, com aflita submissão, e depois respondeu-

-lhe, com os olhos cheios de lágrimas:– Eu tinha cá dentro uma coisa que não me deixava estar

calada.O Céu serviu-se da impulsividade da pastorinha mais peque-

na e, na sua inconfidência infantil, ela torna-se misteriosamente na primeira apóstola dos acontecimentos de Fátima. Começa assim a manifestar-se aquele que vai ser o carisma da Jacinta: uma paixão inflamada, que não a deixa calar o que encontrou, nem ficar quieta diante daquilo que conhece. Mas uma coisa, mais do que todas, domina a sua atenção.

Um dia, conta a Lúcia que, chegados à pastagem, a Jacinta se sentou numa pedra com um ar muito pensativo.

– Jacinta! Anda brincar!– Hoje não quero brincar.– Porque não queres brincar?– Porque estou a pensar. Aquela Senhora disse-nos para re-

zarmos o terço e fazermos sacrifícios pela conversão dos pecado-

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res. Agora, quando rezarmos o terço, temos de rezar a Avé Maria e o Padre Nosso inteiros. E os sacrifícios, como os havemos de fazer?

O Francisco sugeriu que dessem o farnel às ovelhas, para oferecer o sacrifício do jejum. Assim fizeram. Mas a Jacinta voltou para a sua pedra e continuava pensativa:

– Aquela Senhora disse também que iam muitas almas para o inferno. E o que é o inferno?

– É uma cova de bichos e uma fogueira muito grande – explicou a Lúcia evocando a imagem que tinha aprendido com a mãe – e vai para lá quem faz pecados e não se confessa e fica lá sempre a arder.

– E nunca mais de lá sai?– Não.– E depois de muitos, muitos anos?!– Não; o inferno nunca acaba. E o Céu também não. Quem

vai para o Céu nunca mais de lá sai. E quem vai para o inferno também não. Não vês que são eternos, que nunca acabam?

Foi difícil para a Jacinta entender o que era isso de ser eterno. Mas marcou-a, sobretudo, a ideia de haver pecadores no inferno, para sempre. E começou assim aquele carinho e aquele desassossego pela sorte dos pecadores que iria marcar o resto da sua vida. De vez em quando, lá voltavam as perguntas, mesmo no meio da brincadeira:

– Mas, olha: então, depois de muitos, muitos anos, o inferno ainda não acaba?

E outras vezes:– E aquela gente que lá está a arder não morre? E não se faz

em cinza? E se a gente rezar muito por os pecadores, Nosso Senhor livra-os de lá? E com os sacrifícios também? Coitadinhos! Havemos de rezar e fazer muitos sacrifícios por eles. – E acrescentava: – Que boa é aquela Senhora! Já nos prometeu levar para o Céu.

A Lúcia começou, desde a primeira hora, a enfrentar uma forte reação da família à notícia da aparição, que já se tinha espa-lhado pela terra. Para a mãe era evidente que se tratava de uma

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mentira e fez de tudo para levar a Lúcia a confessá-lo. Com dez anos, habituada a todos os mimos de filha mais nova, a Lúcia viveu um dilema que parecia maior do que as suas forças. Queria muito não desgostar a mãe e ter paz em casa, mas não podia negar o que lhe tinha acontecido.

Maria Rosa foi severa com a filha:– Sempre consegui que os meus filhos dissessem a verdade;

e agora hei de deixar passar uma coisa destas na mais nova?! Se ainda fosse uma coisa mais pequena… mas uma mentira destas que traz aí enganada já tanta gente!… Dá-lhe as voltas que quise-res! Ou tu desenganas essa gente, confessando que mentiste, ou eu te fecho num quarto onde não possas ver nem a luz do Sol.

As irmãs da Lúcia concordavam com a mãe, e a pastorinha mais velha sofria com o ambiente de desdém e frieza de que se via rodeada tão de repente. Chorava, muitas vezes sozinha, com saudade do carinho que sempre tinha tido em casa.

Por isso, a decisão de voltar à Cova da Iria em junho foi um ato de coragem e de confiança na Senhora de maio.

Junho

– Ó minha mãe, venha connosco amanhã à Cova da lria, ver Nossa Senhora.

Abraçada à mãe, na noite da véspera da segunda aparição, a Jacinta é, ao mesmo tempo, a criança pequenina e mimada que em tudo quer a mãe, e a missionária intrépida de uma grande certeza. Chegada a hora, irá; sem a mãe, mas irá.

A Lúcia passa a buscar os primos por volta das 11 horas. Se-guem-nos cerca de 50 pessoas, muitas de fora da terra, que não pa-ram de fazer toda a espécie de perguntas. Seguem-nos, também, os olhares incrédulos e trocistas da maioria dos vizinhos e conhecidos.

Durante aquele mês, foi claro para eles que começava a cum-prir-se o que Nossa Senhora não tinha querido esconder-lhes: «Ides,

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pois, ter muito que sofrer». Não faltaram dúvidas, interrogatórios, troça e até a frieza de alguns. Para os encorajar talvez só a frase des-complicada e sábia do Ti Marto: «Se os cachopos viram uma mulher vestida de branco, quem poderia ser senão Nossa Senhora?»?.

Chegados à Cova da lria, rezam o terço. E, no fim, veem ou-tra vez o reflexo daquela luz que lhes tinha parecido um relâmpa-go da primeira vez. Logo a seguir, Nossa Senhora aparece em cima da carrasqueira, «em tudo igual a maio»23. O diálogo é mais uma vez com a Lúcia, que começa com a sua inconfundível pergunta:

– Vossemecê que me quer?– Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que

rezeis o terço todos os dias e que aprendeis a ler. Depois direi o que quero.

Ao pedido de cura de um doente, Nossa Senhora responde:– Se se converter, curar-se-á durante o ano.A Lúcia prossegue:– Queria pedir-lhe para nos levar para o Céu.– Sim; a Jacinta e o Francisco, levo-os em breve. Mas tu ficas

cá mais algum tempo. Jesus quer servir-Se de ti para me fazer co-nhecer e amar. Ele quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração.

– Fico cá sozinha?A Lúcia reconhece que fez esta pergunta num tom triste. A

resposta, firme, mas carregada de ternura, não se faz esperar:– Não, filha. E tu sofres muito? Não desanimes. Eu nunca te

deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o cami-nho que te conduzirá até Deus.

Ditas estas palavras, volta a abrir as mãos. E das suas mãos sai, de novo, aquela luz que os faz mergulhar em Deus. Desta vez, como que a ilustrar o que tinham acabado de ouvir, «a Jacinta e o Francisco parecia estarem na parte dessa luz que se elevava para o Céu»24 e a Lúcia na que se espalhava sobre a Terra.

23 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.24 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.

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Veem ainda, à frente da palma da mão direita de Nossa Senhora, «um coração cercado de espinhos que parecia estarem--lhe cravados»25. Não tiveram uma dúvida de que era «o Imacu-lado Coração de Maria, ultrajado pelos pecados da humanidade, que queria reparação»26.

Esta revelação do Imaculado Coração de Maria, que será muito mais desenvolvida na aparição de julho, consistirá numa das partes do tão falado segredo de Fátima. Desta vez, Nossa Senhora não lhes impõe o silêncio, mas eles têm uma noção tão clara da grandeza do que lhes foi confiado que dirão, a partir de então, que Nossa Senhora lhes disse um segredo em junho.

O Francisco não consegue deixar de pensar em tudo o que as mãos abertas de Nossa Senhora lhes mostraram. E pergunta à Lúcia:

– Para que é que estava Nossa Senhora com um coração na mão, espalhando pelo mundo essa luz tão grande que é Deus? Tu estavas com Nossa Senhora na luz que descia para a Terra, e a Ja-cinta comigo na que subia para o Céu.

– É que tu com a Jacinta vais em breve para o Céu – explica--lhe a prima – e eu fico com o Coração Imaculado de Maria mais algum tempo na Terra.

– Quantos anos ficas cá?– Não sei, bastantes.– Foi Nossa Senhora que o disse?– Foi, e eu vi-o nessa luz que nos meteu no peito.– É assim, é – confirmava a Jacinta.– Eu também o vi assim.Cada vez mais a Jacinta e o Francisco vivem a sua vida em

função da próxima partida para o Céu. E cada vez mais isso muda tudo na sua forma de olhar, de avaliar o que lhes acontece, de su-perar dificuldades, de responder às perguntas que lhes fazem, de se ajudarem entre si.

Debaixo da aparência rude de Pastorinhos serranos, brota neles uma humanidade nova, que espanta, fascina e atrai.

25 Idem.26 Idem.

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O Francisco é, cada vez mais, um miúdo conquistado pelo amor de Deus. É bem seu este comentário: «Esta gente fica tão con-tente só por a gente lhe dizer que Nossa Senhora mandou rezar o terço e que aprendesses a ler! O que seria se soubessem o que Ela nos mostrou em Deus, no seu Imaculado Coração, nessa luz tão grande!».

E a Jacinta para a Lúcia: «Aquela Senhora disse que o seu Ima-culado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá a Deus. Não gostas tanto? Eu gosto tanto do seu Coração! É tão bom!».

O percurso da Lúcia começa a revelar-se diferente. Não só pela reação da família, mas também pelo discernimento que lhe é pedido e que, levado muito a sério, a fará debater-se com dúvidas tremendas.

O prior da freguesia pede a Maria Rosa que lhe traga a filha. Inquieta com o crescente movimento em volta das crianças e das aparições, incapaz de levar a Lúcia a admitir que mentiu, Maria Rosa conta com o pároco para a meter na ordem.

– Amanhã vamos à Missa logo de manhãzinha. Depois, vais a casa do Senhor Prior. Ele que te obrigue a confessar a verdade, seja como for; que te castigue; que faça de ti o que quiser; desde que te obrigue a confessar que tens mentido, eu fico contente.

Apesar da amizade dos primos que, assim que souberam dis-so, se propuseram acompanhá-la, a Lúcia começa a aprender que o seu caminho é solitário, porque lhe são pedidas contas de que os pequeninos são poupados. Será assim pela sua longa vida fora. Mas começa cedo, ainda as aparições estão nos primeiros meses e ela ainda tem a companhia dos pastorinhos mais novos.

A Lúcia oferece o seu sofrimento a Deus durante a Missa ma-tutina. Já à porta do pároco, a mãe ainda insiste:

– Não me rales mais! Agora diz ao Senhor Prior que mentiste, para que ele possa, no domingo, dizer na igreja que foi mentira e as-sim acabar tudo. Isto tem lá jeito! Toda a gente a correr para a Cova da Iria, a rezar diante de uma carrasqueira.

Embora a trate com muito carinho, o padre conclui, de-pois de muitas perguntas, que não lhe parece uma revelação

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do Céu. E levanta a possibilidade de se tratar de um engano do demónio.

A Lúcia tem só dez anos, a família está toda contra ela, está cansada da pressão que tem em cima e esta dúvida do pároco é a gota de água. Começa a desanimar.

O Francisco, cada vez mais afeiçoado à ideia de consolar Jesus, encoraja-a com o melhor que tem:

– Deixa lá. Não disse Nossa Senhora que íamos ter muito que sofrer para reparar a Nosso Senhor e ao seu Imaculado Coração de tantos pecados com que são ofendidos? Eles estão tão tristes! Se com esses sofrimentos os pudermos consolar, já ficaremos contentes.

Apesar do apoio constante dos primos, a Lúcia acaba por lhes confessar que não quer voltar à Cova da lria, não vá ser mes-mo coisa do demónio. Ficam os dois desgostosíssimos. A Jacinta responde-lhe com aquela sua vivacidade:

– Não é o demónio, não. O demónio dizem que é muito feio e que está debaixo da terra, no inferno. E aquela Senhora é tão bonita e nós vimo-la subir ao céu.

E é entre lágrimas que Francisco lhe diz:– Mas como é que tu podes pensar que é o demónio? Não

viste Nossa Senhora e Deus naquela luz tão grande? Como é que nós vamos sem ti, se tu é que tens de falar?

Julho

Os dias que faltam para 13 de julho são de profunda angústia para a Lúcia. A dúvida persegue-a dia e noite. Perde o entusias-mo pelos sacrifícios, a sua vontade enfraquece, considera dizer aos adultos que é tudo mentira. Os primos não se conformam:

– Não faças isso! Não vês que agora é que tu vais mentir e que mentir é pecado?

Uma noite, a Lúcia tem um pesadelo horrível: o demónio ri-se de a ter enganado e arrasta-a para o inferno. Acorda tão ater-

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rorizada que decide evitar a companhia dos primos e passa a es-conder-se a chorar, enquanto o Francisco e a Jacinta a procuram e chamam por toda a parte.

Chega o dia 12 e a Lúcia está firmemente decidida a não ir, apesar do povo que começa a juntar-se, porque, de mês para mês, tornam-se cada vez mais conhecidos os acontecimentos da Cova da lria.

Comunica aos primos a sua decisão. Tristes e aflitos, eles respondem-lhe:

– Nós vamos. Aquela Senhora mandou-nos lá ir.A Jacinta, tentando ser corajosa, dispõe-se a ser ela a falar

com Nossa Senhora, mas, olhando para a prima, de quem tanto gos-ta, não se aguenta e desata a chorar. A Lúcia pergunta-lhe porque é que está a chorar:

– Por tu não quereres ir – responde-lhe. Mas nem isso demove a Lúcia:– Não; eu não vou. Olha, se a Senhora te perguntar por mim,

diz-lhe que não vou, porque tenho medo que seja o demónio.Se a Jacinta reage com lágrimas, o Francisco, mais crescidi-

nho, não desiste. Nesse dia 12, à noite, depois da ceia, volta a casa da Lúcia. Não é eloquente, não é bom a argumentar. Mas tem uma certeza. E consolar Jesus e Nossa Senhora tornou-se o centro da sua vida. Chama a prima:

– Olha, tu amanhã vais?– Não vou, já te disse que não volto mais.– Mas que tristeza! Porque é que tu agora pensas assim? Não

vês que não pode ser o demónio? Deus já está tão triste com tantos pecados e agora, se tu não vais, fica ainda mais triste! Anda, vai!

– Já te disse que não vou, escusas de mo pedir. E a Lúcia, depois deste remate desabrido, fugiu a esconder-

-se, mais uma vez, mergulhada numa grande dor.O Francisco quase não dormiu nessa noite: chorava e rezava

para que Nossa Senhora a fizesse mudar de ideias.E, de facto, no dia seguinte, à hora da partida, a Lúcia, impe-

lida por uma força misteriosa e irresistível, põe-se a caminho. Passa

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por casa dos primos a ver se ainda lá estão. Encontra-os no quarto, de joelhos ao pé da cama, a chorar:

– Então vocês não vão?– Sem ti não nos atrevemos a ir. Anda, vem!– Já cá vou.Foi um alívio para os dois! Cheios de alegria, lá partiram a

caminho da Cova da lria, onde se juntavam já entre 3000 e 4000 pessoas.

Como das outras vezes, rezaram o terço; como das outras vezes, viram o reflexo da luz do costume e, logo a seguir, como das outras vezes, Nossa Senhora, sobre a carrasqueira:

– Vossemecê que me quer?– Quero que venham aqui no dia 13 do mês que vem, que

continuem a rezar o terço todos os dias, em honra de Nossa Se-nhora do Rosário, para obter a paz do mundo e o fim da guerra, porque só ela lhes poderá valer.

– Queria pedir-lhe para nos dizer quem é e para fazer um milagre com que todos acreditem que Vossemecê nos aparece.

– Continuem a vir aqui todos os meses. Em outubro direi quem sou, o que quero e farei um milagre que todos hão de ver e acreditar.

A Lúcia transmite a Nossa Senhora alguns pedidos que as pessoas lhe foram confiando. Nossa Senhora responde que é pre-ciso rezarem o terço para alcançarem as graças durante o ano. E continua:

– Sacrificai-vos pelos pecadores e dizei muitas vezes, em es-pecial sempre que fizerdes algum sacrifício: «Ó Jesus, é por vosso amor, pela conversão dos pecadores e em reparação pelos pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria».

É neste momento que abre as mãos, como nos outros me-ses, mas, desta vez, o que tem para lhes comunicar é bem diferen-te. O reflexo parece penetrar a terra e os Pastorinhos veem «como que um mar de fogo. Mergulhados nesse fogo, os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou bronze-adas, com forma humana, que flutuavam no incêndio, levadas

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pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faúlhas nos grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demónios distinguiam-se por formas horríveis e asque-rosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes como negros carvões em brasa»27.

A multidão presente ouve um grito da Lúcia, que ela não se dá conta de ter soltado. Entretanto, os Pastorinhos, assustados, voltam-se para Nossa Senhora, como quem pede ajuda. É com bondade e tristeza que lhes fala:

– Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres peca-dores; para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu vos disser, salvar--se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar. Mas, se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai a punir o mundo dos seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perse-guições à Igreja e ao Santo Padre.

Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração e a Comunhão reparadora nos primeiros sá-bados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e te-rão paz; se não, espalhará os seus erros pelo mundo, promoven-do guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquila-das. Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz. Em Portugal se conservará sempre o dogma da fé».

No fim desta longa profecia, os Pastorinhos voltaram a ter uma visão simbólica: «vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora, um pouco mais alto, um Anjo com uma espada de fogo na mão

27 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.

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esquerda; ao cintilar, despedia chamas que parecia que iam incen-diar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro. O Anjo, apontando com a mão direita para a terra, com voz forte, disse: Penitência! Penitência! Penitência! E vimos numa luz imensa que é Deus, algo semelhante a como se veem as pessoas num espe-lho quando lhe passam por diante, um Bispo vestido de branco – tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre – vários outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma es-cabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos, como se fora de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas e, meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dor e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de joelhos aos pés da grande Cruz, foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e, assim mesmo, foram morrendo, uns trás outros, os Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos, cada um com um regador de cristal na mão, neles recolhiam o sangue dos Mártires e com eles regavam as almas que se aproximavam de Deus»28.

Antes de partir, Nossa Senhora dará uma indicação clara so-bre o conteúdo desta aparição, que os Pastorinhos respeitarão con-tra tudo e contra todos:

– Isto não o digais a ninguém. Ao Francisco, sim, podeis dizê-lo. – E acrescenta: – Quando rezais o terço, dizei, depois de cada mistério: «Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do in-ferno; levai as alminhas todas para o Céu, principalmente aquelas que mais precisarem».

Depois de um instante de silêncio, a Lúcia pergunta:– Vossemecê não me quer mais nada?

28 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Apêndice III.

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– Não. Hoje não te quero mais nada.Esta terceira aparição é decisiva, por conter o tão falado

segredo de Fátima e pelo impacto que provoca nos Pastorinhos. Foram heroicos na fidelidade a este segredo, que guardaram, por obediência a Nossa Senhora, mas também por uma clara consciência da grandeza do que lhes tinha sido revelado. A Ja-cinta e o Francisco viriam a morrer sem pronunciar, a não ser entre eles, uma única palavra acerca do segredo, mas vivendo-o intensamente.

Muitos anos mais tarde, de 1941 para 1942, Lúcia, parecen-do-lhe que do Céu já tinha licença para isso, revelaria as duas primeiras partes do segredo, a propósito da sua terceira memó-ria, sobre a Jacinta. A terceira parte do segredo só seria tornada pública a 13 de maio de 2000, por ocasião da beatificação dos pastorinhos Francisco e Jacinta.

O que é o segredo de Fátima e o que significa?A primeira parte é a visão do inferno.Sublinhar a existência do inferno no século que verá caí-

rem todas as certezas é afirmar a liberdade do Homem e a exis-tência de um destino. É também como que um apelo à solida-riedade, ao colocar nas mãos dos crentes a possibilidade e a necessidade concreta de tudo fazer para dar a conhecer a todos o amor de Deus.

Foi esta causa que moveu a breve vida da Jacinta. Todo o seu afeto, toda a sua sensibilidade, toda a sua vivacidade se concen traram no amor aos pecadores, na luta incansável pela con-versão de todos.

«A vista do inferno», conta a Lúcia, «tinha-a horrorizado a tal ponto, que todas as penitências e mortificações lhe pareciam nada, para conseguir livrar de lá algumas almas»29. E acrescenta: «Como é que a Jacinta, tão pequenina, se deixou possuir e compreendeu um tal espírito de mortificação e penitência?

29 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Terceira Memória.

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Parece-me que foi: primeiro, por uma graça especial que Deus, por meio do Imaculado Coração de Maria, lhe quis conce-der; segundo, olhando para o inferno e a desgraça das almas que aí caem»30.

Uma longa série de episódios passados com a Jacinta, mos-tram bem o que esta revelação significou para ela. A Lúcia conta uma porção deles, de enfiada, como quem não pode conter uma memória ainda comovida com a santidade da prima. Conta– os como só ela sabe contar:

«Com frequência se sentava no chão ou em alguma pedra e, pensativa, começava a dizer:

– O inferno! O inferno! Que pena eu tenho das almas que vão para o inferno! E as pessoas lá vivas a arder como a lenha no fogo!

E, meio trémula, ajoelhava, de mãos postas, a rezar a oração que Nossa Senhora nos tinha ensinado: “Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as alminhas todas para o Céu, principalmente as que mais precisarem.

[…] E permanecia assim, por grandes espaços de tempo, de joelhos, repetindo a mesma oração. De vez em quando, chamava por mim ou pelo irmão (como que acordando dum sono):

– Francisco, Francisco, vocês estão a rezar comigo? É preciso rezar muito, para livrar as almas do inferno. Vão para lá tantas! Tantas!

Outras vezes, perguntava:– Porque é que Nossa Senhora não mostra o inferno aos

pecadores? Se eles o vissem, já não pecavam, para não irem para lá! Hás de dizer àquela Senhora que mostre o inferno a toda aquela gente (referia-se aos que se encontravam na Cova da lria, no mo-mento da aparição). Verás como se convertem.

Depois, meio descontente, perguntava-me:– Porque não disseste a Nossa Senhora que mostrasse o in-

ferno àquela gente?

30 Idem.

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– Esqueci-me – respondia.– Também me não lembrei! – dizia, com ar triste.Às vezes, perguntava ainda:– Que pecados são os que essa gente faz, para ir para o

inferno?– Não sei. Talvez o pecado de não ir à Missa ao domingo, de

roubar, de dizer palavras feias, rogar pragas, jurar.– E só assim por uma palavra vão para o inferno?!– Pois! É pecado!– Que lhes custava estar calados e ir à Missa!? Que pena eu

tenho dos pecadores! Se eu pudesse mostrar-lhes o inferno!Repentinamente, às vezes, agarrava-se a mim e dizia:– Eu vou para o Céu; mas tu que ficas cá, se Nossa Senhora

te deixar, diz a toda a gente como é o inferno, para que não façam mais pecados e não vão para lá.

Outras vezes, se lhe diziam: “Não tenhas medo; tu vais para o Céu”, respondia:

– Pois vou, mas eu queria que toda aquela gente para lá fosse também»31.

O Francisco, como que mais amadurecido e sereno na sua vocação de consolador de Jesus, não se impressiona tanto como a irmã com a visão do inferno. É sempre a contemplação de Deus o que mais o marca:

– Nós estávamos a arder naquela Luz que é Deus e não nos queimávamos. Como é Deus?! Não se pode dizer «Isto, sim», que a gente nunca pode dizer. Mas que pena Ele estar tão triste! Se eu O pudesse consolar!

E dizia à Jacinta:– Não penses tanto no inferno! Pensa antes em Nosso Senhor

e Nossa Senhora. Eu não penso nele para não ter medo.Enquanto os pastorinhos mais novos foram vivos, coube à

Lúcia responder-lhes às perguntas e ensinar-lhes o que tinha apren-

31 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Terceira Memória.

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dido na doutrina sobre o inferno. Mas o que estaria no seu coração, sabendo que este segredo em breve lhe ficaria entregue? Que lhe faltaria a simplicidade, cheia de sabedoria, dos primos para com-preender tudo o que lhes tinha sido revelado? Que ficaria sozinha, para responder às interpelações de um mundo cada vez mais ferido pelo mistério do mal?

Provavelmente terá guardado no coração a caridade inflama-da da Jacinta e a contemplação reparadora do Francisco, amadure-cendo um olhar de misericórdia sobre a humanidade. É disso que dão testemunho os longos anos da sua vida na Terra.

A segunda parte do segredo de Fátima refere-se à devoção ao Imaculado Coração de Maria. De certo modo, esta revelação é antecipada, ou preparada, já na aparição de junho.

«Deus quer» é a expressão-chave. «Deus quer servir-Se de ti para Me fazer conhecer e amar»; «Deus quer estabelecer no mun-do a devoção a meu Imaculado Coração». Mas «o que Deus quer» dialoga com a liberdade do homem, de uma maneira que se re-flete na História. Nossa Senhora descreve os passos deste drama da liberdade humana, inscrito na História do século XX, com uma precisão que que não podemos deixar de considerar impressionan-te quando a relemos agora, depois de quase tudo ter acontecido. A pastorinha mais velha, que «ficou cá mais algum tempo», seguiu tudo com inquietação e oração insistente.

Depois de ter visto acabar a guerra de 14-18 e começar «outra pior», como estava anunciado; depois dessa «noite alumiada por uma luz desconhecida» – a aurora boreal de 25 de janeiro de 1938, que ela confirmará como o sinal também anunciado por Nossa Senhora; depois de ver «a Rússia espalhar os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja» e «vári-as nações serem aniquiladas», como fora ainda anunciado, a Lúcia não teria descanso enquanto não se cumprisse a parte seguinte do anúncio desse dia 13 de julho – a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria – que lhe seria reiterada anos mais tarde, numa aparição em Tuy, no seu tempo de noviça doroteia.

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E insiste em fazer chegar a cada Papa, sucessivamente, a neces-sidade e a urgência desse pedido. Mas, nos tempos da chamada «Cortina de Ferro», que dividia pesadamente a Europa, entre os países comunistas e os outros, o pedido da Lúcia era diplomatica-mente inaceitável e, sobretudo, era politicamente impensável que aquele sistema, que de fora parecia tão sólido, pudesse ceder a qualquer pressão, ainda que fosse do Céu.

As contas da Lúcia não eram essas, mas teria de esperar, lutar e confiar. Sem desisitir.

A terceira parte da mensagem de Fátima, cheia de simbo-lismo, continha a terrível profecia do assassinato do Santo Padre. Talvez por essa razão, os sucessivos Papas consideraram prudente mantê-la em silêncio.

Mas, a 13 de maio de 1981, o Papa João Paulo II sofreu um atentado à sua vida que tinha tudo para poder atingir o seu pro-pósito. O disparo de um atirador profissional, a poucos metros de distância, foi certeiro. Mas o Papa não morreu. É difícil explicar o percurso da bala dentro do seu corpo, contornando os órgãos vi-tais, num desafio às leis da natureza. Eleito três anos antes, o Papa polaco diria, a partir de então, que teve três anos de pontificado e o resto de milagre. Impressionado com a data do seu atentado – 13 de maio – não hesitaria em afirmar a sua convicção de que a mão de Nossa Senhora desviou a bala. E, por isso, entregaria ao Santu-ário de Fátima essa bala, que seria, mais tarde, incrustada na coroa da imagem de Nossa Senhora.

Na sequência do atentado, São João Paulo II estuda a fundo a mensagem de Fátima, tornando-se instrumento do seu cumpri-mento. Wojtila acredita que é ele o bispo vestido de branco da terceira parte do segredo. Lúcia confirma. A amizade entre os dois mudará o rosto do século XX. É pela mão deste Papa, tão de Maria, que lentamente tudo se cumpre. Com ele. E por ela.

Mas a terceira parte do segredo tem um conteúdo muito rico que não se cinge à profecia do atentado. A espada que cintila na mão do anjo, «despedindo chamas que parecia que iam incen-

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diar o mundo, mas se apagavam com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro» é uma alegoria de um mundo ferido que desafia Deus, mas que Nossa Senhora quer converter e salvar, com suavidade, como Mãe de Misericórdia.

O anjo aponta com a mão direita para a Terra, dizendo, com voz forte: «Penitência! Penitência! Penitência!». Foi também um anjo quem, preparando os Pastorinhos para as aparições de Nossa Senhora, lhes ensinou a penitência. Percorrendo o caminho paradoxal da penitência, os Pastorinhos tornaram-se maduros e livres, doces e fortes, dóceis e intrépidos. A voz forte do anjo fala de um imperativo. Mas é mais imperioso ainda o clamor da própria vida humana, tão incapaz de se realizar seguindo o seu instinto. A penitência desafia a lógica do mundo. Fátima desafia o mundo com a lógica da penitência.

A terceira parte do segredo termina com a imagem dos anjos que regam o povo de Deus com o sangue dos mártires, numa con-firmação da sabedoria milenar da Igreja: «sangue de mártires, se-mente de cristãos». O século XX teve mais mártires do que todos os precedentes da era cristã. O século XXI começou com uma brutal disseminação da perseguição aos que são de Jesus. A terceira parte do segredo de Fátima é uma profecia e assinala a vitória paradoxal dos que pertencem a Cristo.

No dia 13 de maio do ano 2000, o Papa João Paulo II, de saúde já muito debilitada, insistiu em ir a Fátima beatificar a Jacinta e o Francisco. Era o grande jubileu do novo milénio e o Papa tinha, nesse ano, uma agenda carregada de encontros e celebrações. To-dos os que o rodeavam tentaram demovê-lo da viagem a Portugal. Mas o Papa estava certo do que pretendia fazer e não se tratava só da beatificação.

Depois de celebrar a Missa e proclamar beatos os dois Pasto-rinhos mais pequenos, diante da sua prima, nessa altura uma velha carmelita, o Santo Padre sentou-se e o cardeal secretário de Estado anunciou ao mundo que a terceira parte do segredo ia ser revelada.

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E, nas suas palavras, percebe-se que ela contém uma referência ao atentado cometido contra o Papa João Paulo II.

O anúncio, feito em simultâneo com a beatificação dos dois Pastorinhos e em pleno Jubileu do Ano 2000, pareceu indicar um entendimento do Papa sobre o novo milénio: diante do mistério do mal, ergue-se o testemunho de vidas simples oferecidas a Deus sem reservas. E a mediação materna de Nossa Senhora, que mostra Deus, concreto e próximo, a uma geração que iria, cada vez mais, considerá-l’O abstrato e distante.

Em outubro desse ano, João Paulo II chamou, pela segunda vez, a Roma a imagem de Nossa Senhora de Fátima venerada na Capelinha das Aparições. Diante dela teve lugar uma vigília de oração em que a irmã Lúcia participou, a partir do seu Carmelo de Coimbra, rezando um dos mistérios do Rosário. No dia seguinte, o Papa consagrou a Nossa Senhora o terceiro milénio.

Menos de cinco anos depois, João Paulo II voltou à Casa do Pai, deixando-nos este inestimável legado.

Agosto

Fátima encontrava-se sob a administração de Vila Nova de Ou-rém. Artur de Oliveira Santos, homem ativo e inteligente, subira, de uma pequena oficina de latoeiro, a chefe do Partido Democrático, de-pois a presidente da câmara, e era, então, administrador do concelho.

No seu Dicionário de Maçonaria Portuguesa, Oliveira Mar-ques descreve-o assim: «Republicano, teve papel de relevo na pro-paganda dos ideais republicanos na sua região […]. Combateu o clericalismo e a superstição, tendo adotado atitudes firmes na re-pressão à mistificação de Fátima. […] Iniciado em 1907 no triângulo n.º 94 de Vila Nova de Ourém, com o nome simbólico de Xavier, pertenceu depois (1924) à Loja Acácia de Lisboa”32.

32 Padre Fernando Leite, em Jacinta de Fátima.

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Num tempo de perseguição religiosa, em que era proibida

toda a manifestação externa do culto, terá sido difícil para um

homem com aquele perfil permitir um fenómeno como o da Cova

da Iria em terras da sua jurisdição. Assim, convocou António San-

tos e Manuel Pedro Marto a comparecerem na Administração de

Vila Nova de Ourém no dia 11 de agosto, com os filhos envolvi-

dos no assunto.

O Ti Marto recusou-se a levar os seus, por serem muito pe-

queninos. Mas o pai da Lúcia, achando-a responsável e não saben-

do o que fazer com aquela intimação do poder, resolveu levá-la:

– A minha vai; responda ela. Eu cá destas coisas não entendo

nada. E, se mente, é bem que seja castigada.

Passaram por casa do Ti Marto, para fazerem a viagem jun-

tos. Quando a Lúcia correu ao quarto da prima a dar-lhe um abraço

de despedida, a Jacinta disse-lhe, a chorar:

– Se eles te matarem, diz-lhes que eu mais o Francisco so-

mos como tu e também queremos morrer. Eu vou já com o Fran-

cisco para o poço, rezar muito por ti.

A viagem foi longa e cansativa. A Lúcia ia sentadinha numa

burra e por três vezes se deixou dormir e caiu do animal abaixo.

Quedas inofensivas, que burra era pequena e a Lúcia, levezinha.

Em Ourém, o Ti Marto foi seriamente repreendido pela deso-

bediência. A Lúcia foi interrogada e ameaçada, mas não desmentiu

os factos, nem revelou o segredo. Não conseguindo arrancar-lhe

nada, o administrador tentou fazê-la prometer que não voltaria à

Cova da Iria. Sem mostrar medo, a partorinha disse-lhe, sem rodei-

os, que voltaria lá daí a dois dias. Artur de Oliveira Santos deixou-

-os partir, mas avisou que não iria desistir.

De facto, na manhã do dia 13 de agosto, apresentou-se em

casa da família Marto e mandou chamar a Lúcia, para poder in-

terrogar os três em conjunto. Os Pastorinhos não deram nenhum

sinal de intimidação, nada os demoveu. Artur Santos convenceu,

então, o pároco a continuar o interrogatório, na sua presença, na

residência paroquial. Diante do prior e de mais dois padres, a

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Lúcia mostrou-se particularmente intrépida, de uma simplicidade

desarmante:

– Eu não minto e digo só o que vi e ouvi àquela Senhora.

Se o povo vai à Cova da Iria é porque quer, que eu não chamei lá

ninguém.

Volta a pergunta sobre o segredo que a Senhora terá dito.

– Disse, sim, senhor. Mas eu não o digo. Se vossemecê quer,

eu vou lá abaixo perguntar àquela Senhora se me dá licença de

dizer o segredo e então digo-o.

O administrador não podia dar-se por vencido. Fingiu en-

cerrar o assunto e ofereceu-se para levar os Pastorinhos na sua

charrete para a Cova da lria. A meio do caminho, mudou de rumo e

seguiu para Ourém, deixando a enorme multidão, que os esperava

no local das aparições, cheia de indignação.

Houve quem se convencesse de que tinha havido conivência

do pároco nesta situação, o que o levou a escrever este veemen-

te protesto: «Com toda a repulsão do coração de padre católico,

venho tornar patente e asseverar, perante todos os que tiveram

conhecimento ou o possam vir a ter do boato, tanto mais infa-

mante e repelente quanto mais perigoso para a minha existência e

dignidade paroquial, de que fui cúmplice no brusco arrebatamento

das criancinhas, que dizem ver Nossa Senhora… Venho repelir tão

injusta como insidiosa calúnia, bradando ao mundo inteiro que não

tomei parte, por mínima que fosse, quer direta, quer indiretamente,

em tão odioso e sacrílego ato»33.

Pelo caminho, o administrador cobre os Pastorinhos com

uma manta para os esconder aos olhos de muitos peregrinos

que vêm a subir a serra. Leva-os para a sua casa, onde ficam

nessa noite, a maior parte do tempo fechados num quarto. Ida-

lina de Oliveira Santos, mulher do administrador, é uma boa pes-

soa e vai buscá-los para lhes dar uma refeição e para brincarem

um bocadinho com os seus filhos.

33 Padre António Maria Martins, em Novos Documentos de Fátima.

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A notícia chega depressa a Aljustrel. A Ti Olímpia vai ao en-contro da cunhada, muito chorosa. Maria Rosa não se deixa abalar:

– Então! Não andem a mentir! Não tenhas medo, comadre, que não os comem!

Em Ourém, é na casa do administrador que se passam uma boa parte dos interrogatórios, as ameaças e tentativas mais insinu-antes de levar os Pastorinhos a falar. No dia 14, são metidos na prisão e passam a ser interrogados em separado, redobrando as ameaças e chantagens. No dia 15 de manhã, são finalmente postos em liberdade e levados para Fátima. E, dado o absoluto insucesso de todo este esforço, será a última vez que o poder político inter-ferirá diretamente nas suas vidas.

O que mais sobressai nestes dois dias dramáticos da vida dos Pastorinhos é que as crianças não se deixam vencer pela sua própria fragilidade. São pequeninas, sentem saudades dos pais, custa-lhes estar sozinhas, assusta-as a demonstração de força daqueles senhores, que os interrogam e prendem, são analfa-betas, têm medo da prisão, não sabem o que as espera. Parece que tudo está contra elas, ao ponto de não ser possível enfrentar e resistir.

Mas, além de tudo isso, mais forte do que todas essas cir-cunstâncias adversas, há a sua certeza, a sua confiança naquela Senhora e a sua vida totalmente determinada pelo Amor de Deus. Por isso, tornam-se invencíveis, desconcertando o poder anticleri-cal que os afronta.

Os episódios mais impressionantes relatados pela Lúcia são os passados na prisão. A primeira a quebrar é a Jacinta, que não consegue conter as lágrimas. Encontrará no irmão e na prima um consolo, que não é feito do mimo de que ela parece precisar, mas antes de um permanente convite ao sacrifício generosamente ofe-recido. Conta a Lúcia:

«Quando, depois de nos terem separado, voltaram a jun-tar-nos em uma sala da cadeia, dizendo que dentro em pouco nos vinham buscar para nos fritar, a Jacinta afastou-se para junto

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duma janela que dava para a feira do gado. Julguei, a princípio, que se estaria a distrair com as vistas; mas não tardei a reconhe-cer que chorava. Fui buscá-la para junto de mim e perguntei-lhe porque chorava:

– Porque – respondeu – vamos morrer sem tornar a ver nem os nossos pais, nem as nossas mães!

E com as lágrimas a correr-lhe pelas faces:– Eu queria sequer ver a minha mãe!– Então tu não queres oferecer este sacrifício pela conversão

dos pecadores?– Quero, quero.E, com as lágrimas a banhar-lhe as faces, as mãos e os olhos

levantados ao Céu, faz o oferecimento:– Ó meu Jesus, é por vosso amor, pela conversão dos pe-

cadores, pelo Santo Padre e em reparação dos pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria.

Os presos que presenciaram esta cena quiseram consolar--nos:

– Mas vocês – diziam eles – digam ao Senhor Administrador lá esse segredo. Que lhes importa que essa Senhora não queira?

– Isso não! – respondeu a Jacinta, com vivacidade. – Antes quero morrer.

Determinámos então rezar o nosso terço. A Jacinta tira uma medalha que tinha ao pescoço, pede a um preso que lha pendure num prego na parede e, de joelhos diante dessa medalha, começá-mos a rezar, Os presos rezavam connosco, se é que sabiam rezar, pelo menos estiveram de joelhos»34.

O Francisco vê então que um dos presos está a rezar com a boina na cabeça. Nem a situação de aflição em que se encontra apaga nele aquela delicadeza com Deus e Nossa Senhora que o caracteriza. Vai ter com o homem e diz-lhe:

– Vossemecê, se quer rezar, tem de tirar a boina.

34 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Primeira Memória.

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E o homem, com certeza espantado, entrega-lha docilmente.É essa mesma ternura que o faz dizer quase a chorar:– Nossa Senhora é capaz de ter ficado triste por a gente não

ir à Cova da Iria, e não voltar mais a aparecer-nos. E eu gostava tanto de a ver!

E anima a Jacinta à sua maneira, quando a vê com saudades da mãe:

– A mãe, se a não tornarmos a ver, paciência, oferecemos pela conversão dos pecadores. O pior é se Nossa Senhora não vol-ta mais! Isso é o que mais me custa! Mas também o ofereço pelos pecadores.

Entretanto, vem um guarda, e a Jacinta é a primeira a ser levada, supostamente para ser deitada em azeite a ferver, segundo a ameaça com que os assustaram. «Foi imediatamente, sem se des-pedir de nós»35, sublinha a Lúcia. Enquanto interrogam a Jacinta, o Francisco parece ficar cheio de paz e alegria e diz:

– Se nos matarem, como dizem, daqui a pouco estamos no Céu! Mas que bom! Não me importo nada.

E, passado um momento de silêncio, lembrou-se:– Deus queira que a Jacinta não tenha medo. Vou rezar uma

Avé-Maria por ela!Sem mais, tira o carapuço e reza. O guarda, ao vê-lo em ati-

tude de rezar, pergunta-lhe:– Que estás a dizer?– Estou a rezar uma Avé-Maria, para que a Jacinta não tenha

medo.O guarda fez um gesto de desprezo e deixou correr.

O Ti Marto conta o regresso deles a Fátima na manhã do dia 15, estava a Missa da Assunção de Nossa Senhora a acabar: «Não sei como é que corri para lá. Agarrei-me à Jacinta e beijei-a, com as lágrimas a caírem-me para a carita dela. Peguei-lhe ao colo e até me lembro que a pus no braço direito, que as mulheres põem os

35 Padre Fernando Leite, citando a Irmã Lúcia, em Jacinta de Fátima.

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filhos sempre no braço esquerdo, que é para ficarem com o direito livre para poderem lidar»36.

Acalmados os ânimos, a vida voltou à possível normalidade. Mas no coração dos Pastorinhos pesavam a ausência de Nossa Se-nhora e a perda, que lhes parecia irreparável, do encontro do dia 13.

No dia 19, a Lúcia saiu com o rebanho para um sítio a que davam o nome de Valinhos. Ia com ela o Francisco, mas, em vez da Jacinta, estava nesse dia o João, irmão dos dois. A Lúcia explica que sentiu que «alguma coisa de sobrenatural se aproximava e os envolvia»37. Teve a nítida sensação de que Nossa Senhora ia apare-cer. Pediu ao João que fosse chamar a irmã, pois não podia pensar que aquele momento tão desejado acontecesse sem a presença da Jacinta. O João não queria ir. Despachada, como sempre, deu-lhe dois vinténs e lá o convenceu.

Entretanto, viu com o Francisco o reflexo de luz tão seu conhecido. Mas só depois de a Jacinta chegar é que viram Nossa Senhora, também sobre uma carrasqueira, como na Cova da Iria. Foi como se «aquela Senhora» estivesse à espera da sua pastorinha mais pequena! O diálogo começou como de costume:

– Que é que Vossemecê me quer?– Quero que continueis a ir à Cova da lria no dia 13, que

continueis a rezar o terço todos os dias. No último mês, farei o milagre, para que todos acreditem.

– Que é que Vossemecê quer que se faça ao dinheiro que o povo deixa na Cova da lria?

– Façam dois andores: um leva-o tu com a Jacinta e mais duas meninas vestidas de branco; o outro, que o leve o Francisco com mais três meninos. O dinheiro dos andores é para a festa de Nossa Senhora do Rosário e o que sobrar é para a ajuda duma ca-pela que hão de mandar fazer.

– Queria pedir-lhe a cura dalguns doentes.– Sim; alguns curarei durante o ano.

36 Padre Fernando Leite, em Jacinta de Fátima.37 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.

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Antes de partir, toma um aspeto mais triste, ao dizer-lhes:

– Rezai, rezai muito e fazei sacrifícios pelos pecadores, que

vão muitas almas para o inferno por não haver quem se sacrifique

e peça por elas.

«E, como de costume, começou a elevar-Se em direção ao

nascente».

Os Pastorinhos ficaram radiantes. Esta aparição foi para

eles como um presente inesperado. A Jacinta, como sempre, era

a mais exuberante. Por ela, passava o resto do dia com os outros

dois. Foi o Francisco quem lhe lembrou:

– Não, tu tens de ir embora, porque a mãe hoje não te dei-

xou vir com as ovelhas.

E ofereceu-se para lhe fazer companhia até casa.

Mas, antes disso, a Jacinta teve um atrevimento enterne-

cedor, que nunca tinham ousado na Cova da lria: arrancou da

carrasqueira uns raminhos, onde Nossa Senhora pousara os pés.

Como de outras vezes, o Céu serviu-se da sua espontaneidade

infantil, misturada com a alegria que lhe vinha da companhia de

Nossa Senhora: os raminhos que ela arrancou cheiravam tão ex-

cecionalmente bem que até a severa mãe da Lúcia, pela primeira

vez, balançou na sua descrença.

À noite, em casa da família Marto, a mãe perguntou ao João

se tinha visto alguma coisa, já que estava com os irmãos à hora da

aparição:

– Só vi o Francisco, a Jacinta e a Lúcia, que falou por vári-

as vezes para a azinheira. Nossa Senhora não a vi, apesar de ter

olhado muito para o céu. No fim até me doíam os olhos de tanto

olhar.

Em casa da Lúcia, a mãe ainda se animou com a passagem

da aparição para os Valinhos, que sempre era uma pastagem que

dava menos prejuízo se fosse pisada. Mas, ao saber que a Senhora

os mandara voltar à Cova da Iria, desabafou:

– Valha-me Deus, estamos na mesma! Nem os republica-

nos foram capazes de acabar com isto!

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Setembro

A aparição de setembro foi curta. Impressionante é a manei-ra como o testemunho dos Pastorinhos foi atraindo cada vez mais gente à Cova da lria. As aparições ainda não tinham chegado ao fim e já havia milhares de peregrinos de Fátima.

O relato que a Lúcia faz daquela manhã de 13 de setembro, e do que a leva a pensar em tudo aquilo que viveu precisa de ser relembrado na primeira pessoa:

«Ao aproximar-se a hora, lá fui, com a Jacinta e o Francisco, entre numerosas pessoas que a custo nos deixavam andar. As estra-das estavam apinhadas de gente. Todos nos queriam ver e falar. Ali não havia respeito humano. Numerosas pessoas, e até senhoras e cavalheiros, conseguindo romper por entre a multidão que à nossa volta se apinhava, vinham prostrar-se, de joelhos, diante de nós, pe-dindo que apresentássemos a Nossa Senhora as suas necessidades. Outros, não conseguindo chegar junto de nós, chamavam de longe:

– Pelo amor de Deus! Peçam a Nossa Senhora que me cure o meu filho, que é aleijadinho!

Outro:– Que me cure o meu, que é cego!Outro:– O meu, que é surdo!– Que me traga o meu marido…– … o meu filho, que anda na guerra!– Que me converta um pecador!– Que me dê saúde, que estou tuberculoso!Etc., etc.Ali apareciam todas as misérias da pobre humanidade. E al-

guns gritavam até do cimo das árvores e paredes, para onde subi-am, com o fim de nos ver passar. Dizendo a uns que sim, dando a mão a outros para os ajudar a levantar do pó da terra, lá fomos andando, graças a alguns cavalheiros que nos iam abrindo passa-gem por entre a multidão.

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Quando agora leio, no Novo Testamento, essas cenas tão encantadoras da passagem de Nosso Senhor pela Palestina, recor-do estas que, tão crianças ainda, Nosso Senhor me fez presenciar, nesses pobres caminhos e estradas de Aljustrel a Fátima e à Cova da lria, e dou graças a Deus, oferecendo-Lhe a fé do nosso bom povo português. E penso: se esta gente se abate assim diante de três pobres crianças, só porque a elas é concedida misericordio-samente a graça de falar com a Mãe de Deus, que não fariam se vissem diante de si o próprio Jesus Cristo?

[…] Chegámos, por fim, à Cova da lria, junto da carrasqueira, e começámos a rezar o terço com o povo. Pouco depois, vimos o reflexo de luz e a seguir Nossa Senhora sobre a azinheira.

– Continuem a rezar o terço, para alcançarem o fim da guer-ra. Em outubro virá também Nosso Senhor, Nossa Senhora das Dores e do Carmo, São José com o Menino Jesus para abençoarem o mundo. Deus está contente com os vossos sacrifícios, mas não quer que durmais com a corda; trazei-a só durante o dia.

– Têm-me pedido para lhe pedir muitas coisas: a cura de alguns doentes, dum surdo-mudo.

– Sim, alguns curarei; outros não. Em outubro farei o mila-gre, para que todos acreditem.

E começando a elevar-se, desapareceu como de costume»38.

Entre a densidade de conteúdo das três primeiras apari-ções, os factos dramáticos que envolveram a quarta e o milagre prometido para a última, facilmente nos passa despercebida a aparição de setembro. E, no entanto, este diálogo diz mais sobre Nossa Senhora, e mais sobre os Pastorinhos, do que pode parecer à primeira vista.

«Deus está contente com os vossos sacrifícios, mas não quer que durmais com a corda; trazei-a só durante o dia»… Sabemos que, desde os encontros com o anjo, os Pastorinhos foram de tal maneira compreendendo a sua vida como missão, que se foram des-

38 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.

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prendendo, a pouco e pouco, de tudo o que os amarrava e detinha, ficando, cada vez mais, entregues à sua vocação e à finalidade da sua existência.

Sabemos que este percurso fascinante passa por uma serie-dade incomparável na forma como recebem o convite à penitência que lhes é feito insistentemente, e que eles são generosos, e até cri-ativos, em relação aos sacrifícios que lhes ocorria oferecer a Deus.

Mas as palavras de Nossa Senhora põem a nu a mais escon-dida e gratuita das penitências que podíamos imaginar. A Lúcia conta como surgiu a ideia:

«Passados alguns dias (após a aparição dos Valinhos), ía-mos com as nossas ovelhinhas por um caminho no qual encon-trei um bocado de corda de um carro. Peguei nela e, brincando, atei-a a um braço. Não tardei a notar que a corda me magoava.

Disse então para meus primos:– Olhem, isto faz doer. Podíamos atá-la à cinta e oferecer a

Deus este sacrifício.As pobres crianças aceitaram logo a minha ideia e tratámos

em seguida de a dividir entre os três. A esquina de uma pedra, batendo em cima de outra, foi a nossa faca.

Seja pela grossura e aspereza da corda, seja porque às vezes a apertávamos demasiado, este instrumento fazia-nos, por vezes, sofrer horrivelmente. A Jacinta deixava, às vezes, cair algumas lá-grimas com a força do incómodo que lhe causava e, dizendo-lhe eu algumas vezes para a tirar, respondia:

– Não! Quero oferecer este sacrifício a Nosso Senhor em reparação e pela conversão dos pecadores»39.

Se agosto foi o mês da heroicidade pública e manifesta dos Pastorinhos, setembro descobre-nos a profundidade dessa entrega escondida debaixo da roupa, da alegria e da brincadeira. Os Pasto-rinhos de Aljustrel são grandes, não só quando os perseguem injus-tamente, mas também quando correm e brincam, quando guardam

39 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Segunda Memória.

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ovelhinhas e ceiam à mesa com a famílía, quando ninguém vê, quando ninguém sabe, quando ninguém suspeita.

E a Senhora que lhes aceita os sacrifícios é a mesma que responderá aos infindáveis pedidos de cura que lhe chegam pela Lúcia: «Alguns curarei; outros não». A finalidade da vida não é uma vida sem dor. A finalidade da vida é essa consciência de um Des-tino bom que faz todas as coisas. E se para O conhecer e amar for precisa a cura, virá a cura; mas, se por um desígnio desconhecido, Ele for servido na doença, permanecerá a doença.

E, enquanto, confusos e espantados, nos detemos neste sen-tido do sofrimento, que parece ser o tema da aparição de setem-bro, o Francisco surpreende-nos com o que verdadeiramente lhe importa: quando a Lúcia e a Jacinta lhe contam que Nossa Senho-ra prometeu que em outubro viria também Nosso Senhor, reage, cheio de alegria:

– Ai que bom! Só O vimos duas vezes ainda e eu gosto tanto d’Ele!

E, daí em diante, de vez em quando perguntava:– Ainda faltarão muitos dias para o dia 13? Estou ansioso que

venha, para ver outra vez a Nosso Senhor. E, mais pensativo, acrescentava:– Mas, olha: Ele ainda estará tão triste?! Tenho tanta pena que

esteja assim tão triste! Eu ofereço-Lhe todos os sacrifícios que posso arranjar. Às vezes, já nem fujo dessa gente, para fazer sacrifícios.

À Lúcia, não faltavam ocasiões de oferecer sacrifícios, além daqueles a que se propunha juntamente com os primos. Em casa, continuava o ambiente de desconfiança e aspereza. Para além da incredulidade, a família da Lúcia sofria graves prejuízos com o mo-vimento gerado pelas aparições. A pastagem da Cova da Iria, per-tencente à família Santos, que era muito boa, não podia de todo ser utilizada, devido à multidão que para ali se deslocava. Por outro lado, o trabalho da Lúcia cada vez rendia menos, porque a toda a hora chegavam pessoas para a ver e interrogar e as irmãs lá tinham de ir chamá-la. Mais tarde, Maria Rosa acabaria por decidir vender o rebanho, que fez muita falta ao sustento da família. A juntar a

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tudo isto, ainda havia as más-línguas. Uma vez, chegou aos ouvi-dos da Ti Maria Rosa que a Lúcia tinha recebido dinheiro de uns senhores que tinham ido interrogá-la. Castigou severamente a filha, vindo só depois a saber que se tratava de uma calúnia. Foi mais uma ocasião de oferecimento para a Lúcia.

Outubro

Era sábado, aquele dia 13 de outubro. Um sábado que ama-nheceu cinzento e frio, o frio cortante da Serra de Aire, que gela os ossos. A meio da manhã, começou a cair uma chuva miudinha, que foi engrossando. As roupas ensopadas, as terras enlameadas e o vento invernoso e desagradável, tudo atrapalhava a caminhada. E eram muitos os que nessa manhã galgavam a serra, debaixo do mau tempo, em direção à Cova da lria. Muitos eram também os que já lá estavam desde a véspera.

A notícia de que havia três crianças de Aljustrel que diziam ver Nossa Senhora espalhara-se pelo país. E o anúncio para aquele dia de um milagre visível atraíra gente que nunca mais acabava. Havia os crentes e os aflitos. Havia os curiosos e também os céti-cos, que não resistiam a ir espreitar. Até havia jornalistas! Quando, um bocadinho antes do meio-dia, os Pastorinhos chegaram à Cova da Iria, já lá estavam cerca de 50 000 pessoas.

Pelo caminho, ainda mais lento e difícil do que no mês an-terior, ouviram de tudo, desde bênçãos e pedidos de graças, até troças e ameaças (iriam ver o que lhes aconteceria se fosse tudo mentira e não houvesse milagre nenhum). Os pais temiam pela sorte dos três e não hesitaram em acompanhá-los.

Só eles próprios estavam tranquilos e sossegados. Incomo-dava-os horrivelmente aquela chusma de gente de volta deles, a segui-los, a agarrá-los e a dizer-lhes coisas. Mas, quanto ao milagre, não tinham o mais pequeno estremecimento de dúvida. Era total e serena a confiança na Senhora:

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– Não temos medo porque Nossa Senhora não nos engana. Disse que fará um milagre e que todos hão de acreditar. Nossa Se-nhora cumpre o que prometeu.

A Cova da lria parecia um enorme acampamento, com mi-lhares de guarda-chuvas abertos e encostados uns aos outros. A Lú-cia, «levada por um movimento interior»40, como ela própria refere, pediu ao povo que fechasse os guarda-chuvas. Um dos peregrinos, que estava a cerca de 100 metros do local onde se encontravam os Pastorinhos, contaria assim este episódio:

«Numa determinada altura, essa larga massa confusa e com-pacta fechou os guarda-chuvas e descobriu-se, num gesto que devia ser de humildade ou respeito, mas que me deixou surpreso e admirado, porque a chuva, numa continuidade cega, molhava agora cabeças, encharcava e ensopava. Disseram-me depois que esta gente, que acabou por ajoelhar na lama, tinha obedecido à voz de uma criança»41.

Chegada a hora, os Pastorinhos viram, como de costume, o reflexo da luz e, logo a seguir, Nossa Senhora em cima da carras-queira. O último diálogo começou como os anteriores:

– Que é que Vossemecê me quer?– Quero dizer-te que façam aqui uma capela em minha hon-

ra, que sou a Senhora do Rosário, que continuem sempre a rezar o terço todos os dias. A guerra vai acabar e os militares voltarão em breve para suas casas.

– Eu tinha muitas coisas para lhe pedir: se curava uns doen-tes e se convertia uns pecadores, etc.

– Uns, sim; outros, não. É preciso que se emendem, que peçam perdão dos seus pecados.

Nossa Senhora tinha prometido dizer-lhes quem era e o que queria. Depois de ouvirem da sua boca que era a Senhora do

40 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.41 Costa Brochado, em Fátima à Luz da História.

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Rosário, faltava saberem o que queria, faltava dizer-lhes o que a trouxera, a razão principal de tantas visitas e de tantos sinais.

Guardou-o para o fim; disse-o de maneira simples, para que a entendessem bem, e tinha um ar mais triste quando falou:

– Não ofendam mais a Deus Nosso Senhor, que já está muito ofendido.

E, pela última vez, abriu as mãos, mas desta vez fê-las refletir no Sol. E, enquanto se afastava, continuava o reflexo da sua pró-pria luz a projetar-se no Sol. Sem saber explicar como nem porquê, já que estava toda mergulhada naquele encontro sobrenatural, a Lúcia, mais uma vez, «levada por um movimento interior»42, man-dou o povo olhar para o Sol.

Também os Pastorinhos para lá se voltaram, porque foi junto do Sol que viram o que se seguiu: primeiro, a Família de Nazaré completa: «S. José com o Menino e Nossa Senhora vestida de bran-co, com um manto azul. S. José com o Menino pareciam abençoar o mundo com uns gestos que faziam com a mão, em forma de cruz»43. Finda esta aparição, viram Nosso Senhor e Nossa Senhora: ela pareceu-lhes Nossa Senhora das Dores; Ele fazia uns gestos como os de São José, parecendo abençoar o mundo. Por último, voltaram a ver Nossa Senhora e ficaram com a impressão de ser sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo.

Terminava assim o ciclo das aparições da Cova da Iria, ter-minavam os encontros com Nossa Senhora, vividos em conjunto pelos três primos. A partir daquele momento, a história de cada um deles começaria a tomar um caminho próprio. E cada um sabia bem o que lhe era pedido.

Ela era a Senhora do Rosário. Não poderia ter-se apresenta-do com outro nome, depois de repetidamente lhes pedir: «Rezem o terço todos os dias». Era a Senhora do instrumento simples, da oração milenar, da voz dos pobres. Chamava-se Senhora do Ro-

42 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.43 Idem.

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sário, como quem se chama Senhora da Salvação pelo Rosário, Senhora da Paz pelo Rosário, Senhora da Misericórdia pelo Rosá-rio. O seu nome não era bem uma revelação, era a confirmação de um caminho.

O pedido que lhes fazia tornava-os missionários, porque era ao mundo inteiro, mais do que aos seus três Pastorinhos, que ela o dirigia. Pedia conversão, naquele momento derradeiro, pedia mu-dança, pedia regresso. E pedia-o com o semblante triste de uma Mãe aflita.

Só eles o tinham ouvido. Mas, sobretudo, só eles lhe tinham visto aquela tristeza no olhar que falava mais do que as suas pró-prias palavras.

Antes de partir definitivamente, Nossa Senhora mostrava-se e mostrava o seu Filho com facetas bem significativas. Impressiona, especialmente, pensar que, logo a seguir a «não ofendam mais a Deus Nosso Senhor que já está muito ofendido», a Família de Na-zaré se fez ver no céu da Cova da lria. Como que a lembrar que tudo parte da família, e que é ferindo a família que se torna quase inevitável ofender cada vez mais «a Deus Nosso Senhor, que já está muito ofendido».

Entretanto, a promessa cumpria-se e, como sinal de que era desejo do Céu que todos pudessem acreditar, como confirmação imponente da voz simples dos Pastorinhos de Aljustrel, dava-se enfim o milagre visível aos olhos de todos. Obedecendo ao grito da Lúcia, que mandara olhar para o Sol, todo aquele povo foi, então, testemunha de um espetáculo nunca visto, conhecido até hoie como «o Milagre do Sol». Descrevem-no assim alguns do que o viram:

«A chuva cessou por completo. As nuvens correndo velo-zes, abrem clareiras, e o sol aparece dardejando raios de ouro, no sentido natural; mas passou à cor de prata fosca, vendo-se segui-damente rodeado de chamas encarnadas, e num dado momento viu-se animado dum rápido movimento de rotação, parecendo des-prender-se do céu e cair sobre a terra e passou ao roxo esbatido;

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passou em seguida à cor verde; e por fim a amarelo vivo que se prolongou por mais tempo e com tal intensidade que se viu passar a cor do sol à terra aparecendo-nos a atmosfera e os objetos pró-ximos revestidos daquela cor. Estávamos a sangue frio. E para que nos não ficasse a menor dúvida no espírito olhávamos, depois de um fenómeno tão estupendo, para o sol, não lhe voltando a ver a menor alteração, depois de terminada a cor amarela»44;

«O sol momentos antes tinha rompido ovante a densa camada de nuvens que o tivera escondido, para brilhar clara e intensamen-te. Voltei-me para este íman que atraía todos os olhares e pude vê--lo semelhante a um disco de bordo nítido e aresta viva, luminoso e luzente, mas sem magoar. […] Este fenómeno com duas breves interrupções em que o sol bravio arremessou os seus raios mais co-ruscantes e refulgentes, e que obrigaram a desviar o olhar, devia ter durado cerca de dez minutos. Este disco nacarado tinha a vertigem do movimento. Não era a cintilação de um astro em plena vida. Girava sobre si mesmo numa velocidade arrebatada. De repente ouve-se um clamor, como que um grito de angústia de todo aquele povo. O sol conservando a celeridade da sua rotação, destaca-se do firmamento e sanguíneo avança sobre a terra ameaçando esma-gar-nos com o peso da sua ígnea e ingente mó. São segundos de impressão terrífica. Durante o acidente solar, […] houve na atmos-fera coloridos cambiantes. […] Estando a fixar o sol, notei que tudo escurecia à minha volta. Olhei o que estava perto e alonguei a vista para o largo até ao extremo horizonte, e vi tudo cor de ametista. […] Continuando a olhar o sol, reparei que o ambiente tinha aclarado. […] De facto tudo agora mudara, perto e distante, tomando a cor de velhos damascos amarelos. […] Todos estes fenómenos que citei e descrevi, observei-os eu sossegada e serenamente sem uma emoção ou sobressalto. A outros cumpre explicá-los ou interpretá-los»45;

44 Joaquim Gregório Tavares, em Documentação Crítica de Fátima.45 Padre António Maria Martins, citando José Maria Almeida Garrett em

Novos Documentos de Fátima.

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«[…] o sol mostra-se liberto de nuvens no zénite. O astro lembra uma placa de prata fosca e é possível fitar-lhe o disco sem o mínimo esforço. Não queima, não cega. Dir-se-ia estar-se reali-zando um eclipse. Mas eis que um alarido colossal se levanta […] o sol tremeu, o sol teve nunca vistos movimentos bruscos fora de todas as leis cósmicas – o sol “bailou” segundo a típica expressão dos camponeses.

[…] Resta que os competentes digam da sua justiça sobre o macabro bailado do sol que hoje, em Fátima, fez explodir hossanas dos peitos dos fiéis e deixou naturalmente impressionados – ao que me asseguraram sujeitos fidedignos – os livres pensadores e outras pessoas sem preocupações de natureza religiosa que acor-reram à já agora celebrada charneca»46.

O impacto que este fenómeno teve na multidão que se re-unia na Cova da Iria foi enorme. As pessoas louvavam a Deus, batiam no peito em contrição pelos seus pecados, avivou-se a fé na maioria e, no coração dos que a não tinham, desenhou-se uma pergunta premente, à espera de uma resposta verdadeira.

Aquele sinal do Céu abria caminho à propagação da mensa-gem comunicada aos três Pastorinhos. Depois daquele 13 de ou-tubro, importava analisar cuidadosamente o conteúdo dos relatos das crianças, mas já era difícil negar a natureza sobrenatural de tudo o que se tinha passado.

À volta dos Pastorinhos de Aljustrel havia agora um intenso movimento de fé, destinado a crescer e a espalhar-se por todo o mundo. À Lúcia caberia sustentá-lo e confirmá-lo, com a sua me-mória e o seu testemunho. Para a Jacinta e para o Francisco, apro-ximava-se o fim.

46 Padre António Maria Martins, citando Avelino de Almeida em Novos Documentos de Fátima.

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dEpois das apariçõEs

A intensificação dos interrogatórios e das visitas não esperou nem pelo dia seguinte. A tarde do dia 13 de outubro já não foi deles. Iam longe aquelas horas íntimas e silenciosas, a seguir às primeiras aparições, em que os três primos se diziam coisas essenciais, parti-lhavam o tesouro recebido e, juntos, se calavam a saboreá-lo.

Agora, até esse sacrifício lhes era pedido. Um de cada vez, ou todos juntos, lá tinham de aparecer quando os chamavam, res-ponder ao que lhes perguntavam e rezar com os visitantes se lho pediam.

Cansados de correr a buscá-los se estavam longe, os pais da Jacinta e do Francisco já não os deixavam sair com as ovelhas. A mãe da Lúcia, a princípio, limitou-se a marcar-lhe o lugar das pastagens, para saber onde ela andava, mas deixava-a ir. Quan-do era perto, lá avisava os sobrinhos para irem ter com ela. E os três aproveitavam todas as ocasiões, porque era cada vez menos o tempo de que dispunham para se verem, para se falarem, para rezarem juntos e para se encorajarem uns aos outros na prática de penitências que só eles conheciam.

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Durante o ano que se seguiu à última aparição, apesar de já não terem as visitas regulares de Nossa Senhora, os Pastorinhos não desarmaram nunca; antes pareciam crescer cada vez mais, na oração e nos sacrifícios.

Tinham, por exemplo, o costume de passar uma novena ou um mês sem beber. De uma das vezes em que fizeram este sa-crifício estavam em pleno mês de agosto, e o calor era sufocante, o típico do clima da região. Por isso um dia em que voltavam de rezar o terço na Cova da lria e passavam junto de uma lagoa, a Jacinta, não aguentando mais, desabafou:

– Olha: tenho tanta sede e dói-me tanto a cabeça! Vou beber um bocadinho desta água.

A água estava sujíssima e a Lúcia sugeriu que fossem antes pedir água boa a uma vizinha.

– Não! – respondeu a Jacinta. – Dessa água boa não quero. Bebia desta, porque, em vez de oferecer a Nosso Senhor a sede, oferecia-Lhe o sacrifício de beber desta água suja.

Às vezes, quando a má disposição apertava, dizia, sem es-conder:

– Nosso Senhor deve estar contente com os nossos sacrifíci-os, porque eu tenho tanta, tanta sede! Mas não quero beber; quero sofrer por seu amor.

Quando a Jacinta e o Francisco não podiam juntar-se à Lúcia, tentavam afastar-se da confusão dos curiosos, para pode-rem rezar e fazer sacrifícios. O sítio preferido era uma espécie de caverninha na encosta de um monte vizinho que estava resguar-dada da chuva, do calor e dos olhares indiscretos. Ali passavam muitas horas.

A Jacinta, sempre cheia de saudades da prima, e meiguinha, como era do seu feitio, colhia flores na encosta desse monte à hora de voltar para casa, e desfolhava-as. Depois, ia esperar a Lúcia ao caminho e atirava-lhe as pétalas.

Quando a família Santos decidiu vender o rebanho, combi-nou com os Marto que o melhor era mandar os pequenos todos para a escola. E assim se fez.

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A Jacinta lembrou-se logo de aproveitar os recreios para ir à igreja rezar, mas nem aí tinha sossego:

– Parece que adivinham. Logo que a gente entra na igreja, é tanta gente a fazer-nos perguntas! Eu gostava de estar muito tempo sozinha, a falar com Jesus escondido; mas nunca nos deixam!

O Francisco não se interessava pela escola, mas não era por preguiça nem por dificuldade: simplesmente, a vida para ele era outra coisa. Às vezes, quando chegavam a Fátima, dizia para a Lúcia:

– Olha: tu vai à escola. Eu fico aqui na igreja, junto de Jesus escondido. Não me vale a pena aprender a ler; daqui a pouco vou para o Céu. Quando voltares vem por cá chamar-me.

Por essa altura, como a igreja andava em obras, o sacrário es-tava à entrada, do lado esquerdo. O Francisco metia-se entre a pia batismal e o altar e era aí que a Lúcia o encontrava quando voltava.

Entre todos os interrogatórios, visitas e pedidos com que literalmente os perseguiam, houve um ou outro que lhes trouxe muito conforto.

A Lúcia conta, com muita gratidão, o encontro com o vigário do Olival, o padre Faustino Ferreira. Talvez por ser a mais crescida, era, seguramente, atormentada com interrogatórios mais densos. Começou a andar inquieta, dividida entre o dever de responder ao que lhe perguntavam os padres, em nome da Igreja, e a obediência a Nossa Senhora, que lhes confiara o segredo. O padre Faustino deu-lhes, um dia, este conselho:

– Fazeis bem, meus filhinhos, em guardar para Deus e para vós o segredo das vossas almas; quando vos fizerem essa pergunta, respondei: «Sim, disse; mas é segredo». Se vos fizerem mais pergun-tas a respeito disso, pensai no segredo que vos comunicou essa Senhora e dizei: «Nossa Senhora disse-nos que não disséssemos a ninguém, por isso não o dizemos». Assim guardais o vosso segredo ao abrigo da Santíssima Virgem.

A Lúcia ficou muito aliviada. E o padre Faustino terá perce-bido a luta interior vivida por aquela criança de apenas 11 anos, e dispôs-se a acompanhá-la. Combinou com uma paroquiana do

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Olival, que ia às vezes rezar à Cova da Iria, que trouxesse a Lúcia a passar uns dias em casa dela, uma vez por outra, a pretexto de a ajudar. Assim foi. Quando a Lúcia estava no Olival, o vigário cha-mava-a para a ensinar e aconselhar. A Lúcia diria, mais tarde, que, sem ela saber o que isso queria dizer, esse padre tinha-se tornado no seu primeiro diretor espiritual.

Outro encontro inesquecível para os Pastorinhos foi o que tiveram com o padre Cruz. Tinham-lhes dito que ele era santo e que adivinhava o que se passava no íntimo de cada um. A Jacinta ficou toda animada com a ideia e dizia:

– Quando virá esse Senhor Padre que adivinha? Se adivinha, há de saber muito bem que falamos verdade.

De facto, o padre Cruz foi muito bondoso com eles: tran-quilizou-os quanto à veracidade das aparições e pediu-lhes que o levassem ao local onde Nossa Senhora tinha aparecido. Pelo cami-nho, foi-lhes ensinando jaculatórias e, no fim, rezou o terço com eles na Cova da lria.

A Jacinta gostou imenso dele e tão confiante se sentiu que a certa altura lhe disse, com a sua habitual espontaneidade infantil:

– Vossemecê já está velhico! O padre Cruz tinha 58 anos!Crianças como eram, também tinham saídas engraçadas para

se livrarem de tanto movimento à volta deles. Uma vez, indo a Jacinta e a Lúcia a caminho de Fátima, viram sair de um carro um grupo de pessoas.

Não tiveram dúvidas de que as procuravam, mas como já não podiam fugir sem serem vistas, lá se aproximaram, na esperan-ça de passarem despercebidas. As pessoas abordaram-nas, pergun-tando-lhes se conheciam os Pastorinhos a quem aparecera Nossa Senhora. Responderam que sim. Se sabiam onde moravam. Deram--lhes as indicações pedidas e correram a esconder-se, muito con-tentes por terem escapado daquela dizendo só a verdade, como faziam sempre.

Doutra vez, foi o Francisco. A Jacinta e a Lúcia tinham ido fazer uma visita que lhes tinham pedido. O Francisco ficou em

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casa. Quando elas chegaram, a Ti Olímpia estava toda apoquen-tada porque tinham vindo umas pessoas para os ver. Na ausência das raparigas, tinha-se fartado de chamar pelo Francisco, mas ele nada de aparecer. As duas primas sentaram-se um bocadinho no banco da cozinha, fazendo contas de ir procurá-lo, a seguir, à Loca do Cabeço, quando ouviram uma voz vinda do sótão a cha-mar baixinho. Era o Francisco, que lá se tinha escondido e que desabafou com elas:

– Era tanta gente! Deus me livre se me apanhavam cá sozi-nho! O que é que eu lhes havia de dizer?

Mas, a maior parte das vezes, havia que acolher as pessoas, que, além das perguntas, lhes apresentavam todas as suas necessi-dades e aflições. A Jacinta mostrava compreensão por todos, sobre-tudo se lhe pediam por algum pecador.

Nesses casos, em geral, respondia:– Temos de rezar e oferecer sacrifícios a Nosso Senhor, para

que o converta e não vá para o inferno, coitadinho!Levava a sério as coisas que lhe pediam e, se prometia rezar

por determinada intenção, rezava mesmo. E a Lúcia conta alguns casos de graças alcançadas por ela, ainda em vida. Uma, particu-larmente enternecedora, passou-se com um soldado, que foi cha-mado para a guerra, estando a mulher doente e tendo três filhos pequeninos. Pediu à Jacinta que rezasse para a mulher se curar ou ele não ter de ir. A Jacinta rezou o terço com ele e depois disse-lhe:

– Não chore. Nossa Senhora é tão boa! Com certeza faz-lhe a graça que lhe pede.

E nunca mais se esqueceu. Rezava sempre por ele uma Avé--Maria no fim do terço. Passados uns meses, lá lhe apareceu o ra-paz, com a mulher e com as três crianças: tinha-lhe dado uma febre na véspera de partir e já não tinha ido; a mulher tinha-se curado, segundo ele, por milagre de Nossa Senhora.

O Francisco era de outro género. Ia menos que a Jacinta ao encontro das pessoas e era de poucas falas.

Até da irmã e da prima às vezes se isolava. Iam dar com ele, escondido nalgum canto, de joelhos a rezar, ou então, explicava

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ele, «a pensar em Nosso Senhor, triste por causa de tantos pecados». Se lhe perguntavam porque não rezava com elas, respondia:

– Gosto mais de rezar sozinho, para pensar e consolar a Nosso Senhor, que está tão triste.

A Lúcia um dia perguntou-lhe:– Francisco, tu de que gostas mais: de consolar a Nosso Se-

nhor ou de converter os pecadores, para que não vão mais almas para o inferno?

– Gostava mais de consolar a Nosso Senhor. Não reparaste como Nossa Senhora, ainda no último mês, se pôs tão triste quan-do disse que não ofendessem a Deus Nosso Senhor que já está muito ofendido? Eu queria consolar a Nosso Senhor e depois con-verter os pecadores para que não O ofendessem mais.

Tanto ele como a Jacinta, nesta fase final da vida, tornaram--se numas crianças invulgarmente sérias e crescidas para a sua idade: talvez pela proximidade da partida para o Céu, talvez pela consciência da missão que a cada um era confiada, talvez pela pu-reza do olhar com que observavam todas as coisas, talvez porque o centro das suas vidas era tão diferente do que interessava às outras crianças, talvez por tudo isso.

Ambos fugiam da companhia de grupos onde ouvissem coi-sas impróprias ou vissem comportamentos menos recomendáveis. Juntamente com a Lúcia, aconselhavam-se uns aos outros nesse sentido e eram capazes de o dizer desassombradamente aos pró-prios que assim agiam. As outras crianças tendiam a evitá-los, in-timidadas por esta seriedade e por esta exigência. Mas, ao mesmo tempo, aqueles dois Pastorinhos, assim como eram, tinham um atrativo qualquer que fazia com que pequenos e adultos acabas-sem por sentir vontade de os procurar outra vez.

O Francisco tinha muito o costume de dar conselhos à Lúcia, que era dos três quem tinha mais proximidade com as pessoas e os hábitos da aldeia. Que não andasse com estes ou com aqueles, que não organizasse o baile de Carnaval, que não cantasse certas cantigas. Para ele, era óbvio que nada disso interessava. Era como se estivesse já meio caminho andado entre a Terra e o Céu.

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Das jaculatórias aprendidas com o padre Cruz, as preferidas da Jacinta eram: «Ó meu Jesus, eu Vos amo» e «Doce Coração de Maria, sede a minha salvação».

Às vezes, andava pelo campo a apanhar flores e a cantarolar, com uma melodia inventada por ela:

– Doce Coração de Maria, sede a minha salvação. Imacu-lado Coração de Maria, converte os pecadores, livra as almas do Purgatório.

Outras vezes, quando acabava de rezar a jaculatória, acres-centava, com aquela ternura muito sua:

– Gosto tanto do Imaculado Coração de Maria! É o Coração da nossa Mãezinha do Céu! Tu não gostas tanto de dizer muitas vezes «Doce Coração de Maria, Imaculado Coração de Maria»? Eu gosto tanto, tanto!

Por esses tempos, a Lúcia passou uma grande aflição: a mãe adoeceu gravemente, ao ponto de pedir a Santa Unção e reunir a família para se despedir de todos. A Lúcia foi a última a abraçá-la. Chorava tanto, sem conseguir soltar-se daquele abraço, que ela julgava ser o último, que teve de ser a sua irmã mais velha, Maria dos Anjos, a tirá-la do quarto da mãe.

As irmãs juntaram-se à volta dela e pediram-lhe que fosse à Cova da Iria pedir pela mãe a Nossa Senhora. E que prometesse o que quisesse, que elas fariam. E, se a mãe se curasse, elas acredi-tariam nas aparições. A Lúcia lá foi, em lágrimas, com o coração apertado de dor e solidão. Rezou, chorou e pediu. Lembrou-se da seguinte novena: ir, com as irmãs, nove dias seguidos, de joelhos, do cimo da estrada até ao lugar da carrasqueira onde Nossa Senho-ra aparecia, rezando o Rosário. E no último dia levar nove crianças pobres e dar a todas um jantar, no fim.

Quando chegou a casa, a mãe estava melhor e voltou a fi-car bem. A família ficou tão impressionada que o pai decidiu que, assim que Maria Rosa retomasse as forças, iriam todos, em família, cumprir a promessa. E assim foi. E terá sido esta a primeira vez que se fez um gesto que, depois, milhares de peregrinos repetiram em Fátima até aos dias de hoje.

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Entretanto, chegou o ano de 1918 e, com ele, a tremenda epidemia da pneumónica, que viria a atingir gravemente a gente de Aljustrel. E, entre essa gente, os dois pastorinhos mais pequenos.

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«a Jacinta E o francisco, lEvo-os Em brEvE»

Em outubro de 1918, um ano depois da última aparição, a Jacinta adoeceu com a pneumónica, que já estava a fustigar Al-justrel. E, dias depois, o Francisco caiu também de cama com a mesma epidemia. Era um sinal claro de que se aproximava a hora do cumprimento da promessa de Nossa Senhora de os levar em breve consigo.

Esta doença, que a todos assustava, parecia não afligir os dois pastorinhos. Acolheram-na com a tranquilidade de quem a es-pera e viveram-na com a santidade de quem não foge da penitên-cia, antes lhe sabe os segredos e lhe conhece a beleza e o sentido.

Como estiveram os dois doentes ao mesmo tempo, quando estavam cada um no seu quarto não podiam fazer grande compa-nhia um ao outro. A Lúcia é que ia visitá-los todos os dias, ficando um bocadinho com um e um bocadinho com o outro. Essas visi-tas da prima eram as únicas que verdadeiramente os consolavam. Só entre eles se entendiam até ao fundo. Só juntos se ajudavam a centrar cada vez mais o coração no essencial.

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A Jacinta, então, amiga como era da Lúcia, não via a hora de a ver chegar. Mas, mesmo assim, em nenhum momento da doença se esqueceu de fazer sacrifícios pelos pecadores, mesmo quando isso queria dizer privar-se da companhia da prima ou do irmão.

– Agora vai ver o Francisco. Eu faço o sacrifício de ficar aqui sozinha – dizia-lhe, ao fim de um tempo de a ter com ela.

E doutra vez, também para a Lúcia:– Já fizeste hoje muitos sacrifícios? Eu fiz muitos. A minha

mãe foi-se embora e eu quis ir muitas vezes visitar o Francisco e não fui.

O Francisco atravessou a doença sempre de cara alegre e sem queixumes. A Lúcia, às vezes, perguntava-lhe:

– Sofres muito, Francisco?– Bastante; mas não importa. Sofro para consolar a Nosso

Senhor; e depois, daqui a pouco, vou para o Céu!Doutra vez, a prima pediu-lhe:– Lá, não te esqueças de pedir a Nossa Senhora que me leve

para lá também depressa.– Isso não peço! Tu bem sabes que Ela não te quer lá ainda.Um dia em que a Jacinta se pôde levantar da cama, juntaram-

-se os três no quarto dele.– Hoje falem pouco, que me dói muito a cabeça – pediu-lhes.– Não te esqueças de oferecer pelos pecadores – lembrou-

-lhe a Jacinta.– Sim, mas, primeiro, ofereço para consolar a Nosso Senhor,

a Nossa Senhora e depois então é que ofereço pelos pecadores e pelo Santo Padre.

À medida que se aproximava a hora da partida, era mais pre-mente nele este desejo de reparação. Como se, quanto mais perto estava de ver o rosto do seu Senhor, tanto maior fosse a consciên-cia da realidade do seu amor e do drama do pecado humano. O Ti Marto relata, a este propósito, um episódio comovente:

«Uma noite, aí pela uma hora, acordei e pareceu-me ouvir um suspiro no quarto do Francisco. Fiquei à escuta, até que tive

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a certeza de que não me enganava; saltei da cama, acendi uma

candeia e entrei, preocupado, no quarto do meu filho. Encontrei-

-o deitado de bruços, com o rosto enterrado no travesseiro para

abafar o pranto.

Convencido de que se sentia pior, perguntei:

– Porque choras?

Ele levantou a cabeça muito surpreendido e não respondeu

nada. Às minhas perguntas insistentes respondeu num tom de timi-

dez e sacro pudor:

– Pensava em Jesus que está tão triste por causa dos pecados

que cometem contra Ele.

Fiquei possuído de um grande respeito pelo meu filho. Não

soube fazer outra coisa senão passar a mão pela sua cabeça e con-

cluir com uma carícia:

– Está bem, Francisco, mas agora dorme.

Deitei-me de novo com todo o cuidado para não acordar a

minha mulher; mas custou-me a pegar no sono»47.

O maior sacrifício para o Francisco era não poder ir para o

pé de Jesus escondido. Além da aparição do anjo, só comungou

uma vez na vida: quando recebeu a Santa Unção. Uma ocasião, a

Ti Olímpia tinha andado a prepará-lo para a Primeira Comunhão,

mas no dia do exame da doutrina ele enganou-se no Credo e a

Mãe decidiu que ele não estava preparado. No dia seguinte, ao

assistir à Primeira Comunhão dos outros meninos, chorou o tem-

po todo. Já cá fora, apoiado no muro do adro da igreja, quando

já todos se tinham ido embora, continuava a chorar, inconsolável.

A mãe tentou explicar-lhe:

– Afinal, tu sabes que te enganaste; que não estás ainda

preparado.

Mas ele respondeu-lhe, com os olhos cheios de lágrimas:

– As pessoas grandes também se enganam e comungam!

47 Humberto Pasquale, em Eu Vi Nascer Fátima.

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Agora, que sentia que estava quase a ir para o Céu, já só esperava por esse momento de Comunhão total e definitiva com o seu Jesus, que, de uma vez por todas, já não estaria escondido.

Além da Lúcia, os dois pastorinhos recebiam muitas outras visitas, de crianças e adultos, que acolhiam serenamente, embora não gostassem muito dessas companhias, porque as pessoas fala-vam de banalidades que não lhes interessavam nada. Mas, para as pessoas da aldeia, estar com eles era uma experiência única, mes-mo quando eles ficavam, caladinhos, a ouvi-las.

Nas últimas semanas da vida do Francisco, aumentaram as visitas. As pessoas comentavam: «Não sei que tem o Francisco. A gente sente-se aqui bem!»; ou «É um mistério que a gente não en-tende. São crianças como as outras, não nos dizem nada e, junto delas, sente-se um não-sei-quê diferente das demais»; ou ainda: «Parece que se sente, ao entrar no quarto do Francisco, o que sentimos ao entrar na igreja».

O estado do Francisco agravou-se muito mais rapidamente do que o da Jacinta. A doença levou-o em seis meses.

Poucos dias antes da sua partida, a Lúcia chegou lá a casa e encontrou a Jacinta sentada aos pés da cama do irmão. Estavam os dois muito emocionados. Como de costume, foi a Jacinta quem se adiantou a dar a notícia:

– Nossa Senhora veio-nos ver e diz que vem buscar o Fran-cisco muito brevemente para o Céu. E a mim perguntou-me se que-ria ainda converter mais pecadores. Disse-lhe que sim. Disse-me que ia para um hospital, que lá sofreria muito, que sofresse pela conversão dos pecadores, em reparação dos pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria e por amor de Jesus. Pergun-tei se tu ias comigo. Disse que não. Isto é o que me custa mais. Disse que ia minha mãe levar-me. E depois fico lá sozinha. – Ao dizer isto, ficou um bocadinho calada a pensar e logo continuou: – Se tu fosses comigo! O que mais me custa é ir sem ti. Se calhar, o hospital é uma casa muito escura onde não se vê nada; e eu estou ali a sofrer sozinha! Mas não importa, sofro por amor de Nosso Se-

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nhor, para reparar o Imaculado Coração de Maria, pela conversão dos pecadores e pelo Santo Padre.

A partir daquele dia, ficou claro para eles que a Jacinta ainda tinha mais algum tempo de doença pela frente. Quanto ao Fran-cisco, estava próximo o fim. As conversas entre eles encheram-se, então, com os últimos recados e os últimos preparativos.

– Olha: estou muito mal; já me falta pouco para ir para o Céu – disse um dia o Francisco à prima.

– Então vê lá: não te esqueças de lá pedir muito pelos peca-dores, pelo Santo Padre, por mim e pela Jacinta.

– Sim, eu peço. Mas olha: essas coisas, pede-as à Jacinta, que eu tenho medo de me esquecer, quando vir a Nosso Senhor! E depois antes O quero consolar.

Os recados da Jacinta eram todos para ele entregar no Céu:– Dá muitas saudades minhas a Nosso Senhor e a Nossa

Senhora e diz-lhes que sofro tudo quanto eles quiserem para con-verter os pecadores e para reparar o Imaculado Coração de Maria.

Os últimos dois dias do Francisco na Terra foram de uma intensidade impressionante. E ninguém os descreve como a Lúcia:

«Um dia de madrugada, cedo, sua irmã Teresa vai chamar--me:

– Vem cá depressa. O Francisco está muito mal e diz que te quer dizer uma coisa!

Vesti-me à pressa e lá fui. Pediu à mãe e irmãos que saíssem do quarto, que era segredo o que me queria. Saíram e ele disse-me:

– É que me vou confessar para comungar e morrer depois. Queria que me dissesses se me viste fazer algum pecado e que fosses perguntar à Jacinta se me viu ela fazer algum.

– Desobedeceste algumas vezes a tua mãe – lhe respondi –, quando ela te dizia que te deixasses estar em casa e tu te escapavas para o pé de mim e para te ires esconder.

– É verdade! Tenho esse. Agora vai perguntar à Jacinta se ela se lembra de mais algum.

Lá fui, e a Jacinta, depois de pensar um pouco, respondeu-me:

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– Olha: diz-lhe que, ainda antes de Nossa Senhora nos apa-recer, roubou um tostão ao pai, para comprar o realejo ao José Marto, da Casa Velha; e que, quando os rapazes de Aljustrel atira-ram pedras aos de Boleiros, ele também atirou algumas.

Quando lhe dei este recado da irmã, respondeu:– Esses, já os confessei, mas torno a confessá-los. Se calhar,

é por causa destes pecados que eu fìz que Nosso Senhor está tão triste! Mas eu, ainda que não morresse, nunca mais os tornava a fazer. Agora estou arrependido.

E, pondo as mãos, rezou a oração:– Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno,

levai as alminhas todas para o Céu, principalmente as que mais precisarem. Olha: pede tu também a Nosso Senhor que me per-doe os meus pecados.

– Peço, sim; está descansado. Se Nosso Senhor tos não tivesse já perdoado, não dizia Nossa Senhora, ainda outro dia, à Jacinta, que te vinha buscar muito em breve para o Céu. Agora, eu vou à Missa e lá peço a Jesus escondido por ti.

– Olha: pede-Lhe para o Senhor Prior me dar a Sagrada Comunhão.

– Pois sim.Quando voltei da igreja, já a Jacinta se tinha levantado e es-

tava sentada na sua cama. Logo que me viu, perguntou-me:– Pediste a Jesus escondido para o Senhor Prior me dar a

Sagrada Comunhão?– Pedi.– Depois, no Céu, peço eu por ti.– Pedes?! Ainda outro dia disseste que não pedias!– Isso era para te levar para lá breve; mas, se tu queres, eu

peço, e depois Nossa Senhora faz como quiser.– Pois quero; tu pede.– Pois sim; fica descansada, que eu peço.Deixei-os ficar e fui para as minhas ocupações diárias de

trabalho e escola. Quando voltei, à noitinha, estava já radiante de alegria.

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Tinha-se confessado e o Senhor Prior tinha prometido trazer-

-lhe no dia seguinte a Sagrada Comunhão. Depois de comungar, no

dia seguinte, dizia para a irmãzinha:

– Hoje, sou mais feliz que tu, porque tenho dentro do meu

peito a Jesus escondido. Eu vou para o Céu; mas lá vou pedir mui-

to a Nosso Senhor e a Nossa Senhora que vos levem também para

lá depressa.

Este dia passei-o quase todo com a Jacinta, junto de sua

cama. Como já não podia rezar, pediu-nos que rezássemos nós o

terço por ele. Depois disse-me:

– Decerto, no Céu, vou ter muitas saudades tuas! Quem dera

que Nossa Senhora te levasse também para lá breve!

– Não tens, não. Imagine-se! Ao pé de Nosso Senhor e de

Nossa Senhora, que são tão bons!

– Pois é! Se calhar, nem me lembro.

Já de noite, despedi-me dele.

– Francisco, adeus! Se fores para o Céu esta noite, não te

esqueças lá de mim, ouviste?

– Não te esqueço, não; fica descansada.

E, agarrando-me a mão direita, apertou-ma com força, por

um bom bocado, olhando para mim com as lágrimas nos olhos.

– Queres mais alguma coisa? – lhe perguntei, com as lágri-

mas a correr-me também já pelas faces.

– Não – me respondeu, com voz sumida.

Como a cena se estava a tornar demasiado comovedora, mi-

nha tia mandou-me sair do quarto.

– Então adeus, Francisco! Até ao Céu!

– Adeus, até ao Céu!…»48.

No dia seguinte de manhã, a certa altura exclamou:

– Ó minha mãe, que luz tão bonita, ali junto da nossa janela!

– E, depois de uns minutos: – Agora já não vejo.

48 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Quarta Memória.

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«Deu um ar de riso – lembra a mãe – e ficou-se que nunca

mais respirou»49.

Era o dia 4 de abril de 1919, pelas 10 horas da manhã. O

Francisco tinha 10 anos e quase 10 meses.

Por aquelas contas que só no Céu se fazem e só no Céu se

entendem estava guardada para a Jacinta, pequenina e sensível

como era, uma agonia bem mais longa e dolorosa. Como sempre

na vida dos Pastorinhos, este derradeiro sacrifício não foi uma

fatalidade inesperada. Foi uma proposta de Nossa Senhora, que

esperou pelo consentimento da pastorinha mais pequena. Quan-

do veio anunciar a partida do Francisco, perguntou-lhe «se queria

ainda converter mais pecadores». A Jacinta disse que sim. E, como

sempre na vida dos Pastorinhos, Nossa Senhora levou-a a sério.

Também ela já levava seis meses de doença quando o Fran-

cisco morreu. E, apesar da certeza de o saber no Céu, doíam-lhe

as saudades do irmão. De vez em quando, davam com ela muito

pensativa e com um ar muito triste e, se lhe perguntavam em quem

estava a pensar, respondia:

– No Francisco. Quem me dera vê-lo!

Só à Lúcia descobria a intensidade do sofrimento que a do-

ença lhe causava:

– Estás melhor? – perguntou-lhe, um dia, a prima.

– Já sabes que não melhoro. Tenho tantas dores no peito!

Mas não digo nada. Sofro pela conversão dos pecadores.

Doutra vez, perguntou à Lúcia, quando ela a foi visitar logo

de manhã:

– Quantos sacrifícios ofereceste esta noite a Nosso Senhor?

– Três. Levantei-me três vezes a rezar as orações do anjo.

– Pois eu ofereci-lhe muitos, muitos, não sei quantos foram,

porque tive muitas dores e não me queixei.

49 Padre Fernando Leite, citando um inquérito paroquial, em Francisco de Fátima.

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E numa outra manhã em que a Lúcia a foi encontrar com

muito mau parecer:

– Esta noite tive muitas dores e quis oferecer a Nosso Senhor

o sacrifício de não me voltar na cama; por isso não dormi nada. –

Confessou-lhe também: – Quando estou só, desço da cama para

rezar as orações do anjo; mas agora já não sou capaz de chegar

com a cabeça ao chão, porque caio. Rezo só de joelhos.

A Lúcia, impressionada com o que ouviu, aproveitou uma

vez em que o prior da freguesia lhe perguntou pela Jacinta para lhe

contar este episódio. O Senhor Prior mandou-a dizer à prima que

não queria que ela descesse mais da cama para rezar; que rezasse

deitada e só o que pudesse, sem se cansar. A Jacinta ouviu o reca-

do, com atenção, e depois perguntou:

– E Nosso Senhor ficará contente?

– Fica. Nosso Senhor quer que a gente faça o que o Senhor

Vigário nos manda.

– Então, está bem; nunca mais me torno a levantar.

Tal como o Francisco, tinha uma verdadeira paixão por

Jesus escondido. Quando ainda tinha forças para andar, se às

vezes a Lúcia ia à Missa ao dia de semana, queria ir também. A

prima dizia-lhe:

– Jacinta, não venhas. Tu não podes. Hoje não é domingo.

– Não importa. Vou pelos pecadores que nem ao domingo

vão.

Se a Lúcia passava por casa dela a caminho da igreja, en-

chia-a de recados: «Olha, diz a Jesus escondido que eu gosto

muito d’Ele e que O amo muito»; «Diz a Jesus escondido que lhe

mando muitas saudades».

E à volta, se a Lúcia tinha comungado, pedia-lhe:

– Chega-te aqui bem para mim, que tens em teu coração a

Jesus escondido.

Apesar de nunca ter comungado senão na aparição do

anjo, tinha uma intimidade com o seu Jesus que a fez um dia

deixar escapar:

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– Não sei como é. Sinto a Nosso Senhor dentro de mim, compreendo o que me diz e não O vejo, nem O oiço, mas é tão bom estar com Ele.

Mas afligia-a pensar que podia morrer sem comungar:– E vou morrer sem receber Jesus escondido? Se mo levasse

Nossa Senhora, quando me for buscar?A Lúcia ofereceu-lhe uma vez um santinho da Eucaristia,

que tinha representado um cálice e uma Hóstia. Pegou nele, toda contente, encheu-o de beijinhos e dizia:

– É Jesus escondido. Gosto tanto d’Ele! Quem me dera re-cebê-Lo na igreja! No Céu não se comunga? Se lá se comungar, eu comungo todos os dias. Se o anjo fosse ao hospital levar-me outra vez a Sagrada Comunhão, que contente eu ficava!

Doutra vez, a prima levou-lhe um outro santinho, este do Coração de Jesus. Quando o recebeu, foi espontânea, como de costume:

– É tão feio! Não se parece nada com Nosso Senhor, que é tão bonito! Mas quero; sempre é Ele – e dava-lhe muitos beijinhos, explicando: – Beijo-o no Coração, que é do que mais gosto. Quem me dera também um Coração de Maria. Não tens nenhum? Gostava de ter os dois juntos.

Inseparável deste seu amor entranhado a Jesus e a Nossa Senhora era a sua paixão missionária pela humanidade: afligiam-na os pecados e os sofrimentos dos homens e preocupava-a especial-mente o Santo Padre.

Nascera de forma misteriosa esse lugar tão especial que o Santo Padre tinha na sua oração e nos seus sacrifícios. A Lúcia conta que, muito antes de estar doente, um dia, ao pé do poço, de repente, ela chamou-a e perguntou-lhe se tinha visto o Santo Padre. A Lúcia não tinha visto nada.

– Não sei como foi! Eu vi o Santo Padre numa casa muito grande, de joelhos, diante de uma mesa, com as mãos na cara a chorar. Fora da casa estava muita gente e uns atiravam-lhe pedras, outros rogavam-lhe pragas e diziam-lhe muitas palavras feias. Coi-tadinho do Santo Padre! Temos de pedir muito por ele.

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E doutra vez, na Loca do Cabeço:– Não vês tanta estrada, tantos caminhos e campos, cheios

de gente a chorar com fome e não têm nada para comer? E o Santo Padre numa igreja, diante do Imaculado Coração de Maria, a rezar? E tanta gente a rezar com ele?

Nenhum dos outros dois tinha estas visões. A Jacinta parecia--lhe que, se outras pessoas soubessem do que ela via, com certeza se emendariam dos seus pecados. Por isso, um dia perguntou à Lúcia:

– Posso dizer que vi o Santo Padre a toda aquela gente?– Não. Não vês que isso faz parte do segredo? Que por aí

logo se descobria?– Está bem; então não digo nada.Depois de estar doente, repetiu-se algumas vezes este tipo de

imagens proféticas. Um dia, a Lúcia encontrou-a sentada na cama, com um ar muito grave, e perguntou-lhe em que estava a pensar.

– Na guerra que há de vir. Há de morrer tanta gente! E vai quase toda para o inferno! Hão de ser arrasadas muitas casas e mortos muitos padres. Olha: eu vou para o Céu. E tu, quando vires, de noite, essa luz que aquela Senhora disse que vem antes, foge para lá também.

– Não vês que para o Céu não se pode fugir?– É verdade! Não podes. Mas não tenhas medo! Eu, no Céu,

hei de pedir muito por ti, pelo Santo Padre, por Portugal, para que a guerra não venha para cá, e por todos os sacerdotes.

Entretanto, o seu estado de saúde agravava-se. Quanto pior se sentia, menos apetite tinha e com mais sacrifício comia ou bebia alguma coisa do que a mãe lhe trazia.

Um dia recusou-se a tomar uma chávena de leite que a mãe lhe preparou. A Ti Olímpia ficou toda ralada:

– Não sei como lhe hei de fazer tomar alguma coisa, com tanto fastio!

A Lúcia, com aquela amizade exigente que sempre caracteri-zou os três Pastorinhos, chamou-lhe a atenção:

– Como desobedeces assim a tua mãe e não ofereces este sacrifício a Nosso Senhor?

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– Agora não me lembrei! – respondeu, de lágrimas nos olhos. E imediatamente chamou a mãe, pediu-lhe desculpa e dispôs-se a tomar o que lhe desse. A chávena de leite voltou e ela bebeu-a, sem um queixume, nem o mais leve sinal de sofrimento. Mas no fim desabafou para a prima:

– Se tu soubesses quanto me custou a tomar!Mais tarde, confessava-lhe:– Cada vez me custa mais a tomar o leite e os caldos; mas

não digo nada. Tomo tudo por amor de Nosso Senhor e do Imacu-lado Coração de Maria, a nossa Mãezinha do Céu.

Com o agravar da doença, tornou-se impossível tratá-la em casa e tiveram de a levar para o hospital. Foi internada no Hospi-tal de Santo Agostinho, de Vila Nova de Ourém, a 1 de julho de 1919. Ficou lá dois meses, com visitas só de vez em quando, que a distância naquele tempo era de respeito e não havia facilidade de transportes.

Numa das visitas da mãe, pediu-lhe para ver a Lúcia. A Ti Olímpia fez-lhe a vontade. Com imensos sacrifícios, lá levou a so-brinha e, quando lá chegaram, a pedido da Jacinta, deixou-as con-versar um bocadinho sozinhas. A Lúcia quis saber se ela estava a sofrer muito:

– Sofro, sim; mas ofereço tudo pelos pecadores e para repa-rar o Imaculado Coração de Maria. – E continuou, cheia de entu-siasmo: – Gosto tanto de sofrer por seu amor! Para Lhes dar gosto! Eles gostam muito de quem sofre para converter os pecadores.

Durante aqueles dois meses, a Lúcia só pôde fazer-lhe duas visitas e, das duas vezes, teve a mesma impressão: em lugar da solidão, do mimo, das saudades, do medo, a Jacinta falava-lhe da alegria que sentia em sofrer por amor de Jesus. Parecia entusiasma-da, como quem está a viver uma experiência gratificante.

Voltou para casa a 31 de agosto. Tinha então uma ferida aberta no peito, que implicava curativos diários e dolorosos. Não se queixava, nem oferecia resistência.

Tal como acontecera com o Francisco, muitas pessoas a visi-tavam, mais do que para a ver, para passarem algum tempo na sua

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companhia. Todas eram unânimes em reconhecer que ali se sentia alguma coisa de especial. As mulheres da aldeia vinham, às vezes, coser roupa para o quarto dela, dizendo: «Vou trabalhar para o pé da Jacinta. Não sei o que é que ela tem! A gente gosta de estar ao pé dela».

Para a Jacinta é que essas visitas, em geral muito tagarelas, eram um grande sacrifício:

– Já me doía tanto a cabeça de ouvir aquela gente! Agora que não posso fugir para me esconder, ofereço mais sacrifícios destes a Nosso Senhor.

Tinha também outro género de visitas, que se destinavam a interrogatórios sobre as aparições, o que também a cansava horrivelmente. O cónego Formigão, que esteve com ela por essa altura, veio de lá impressionado com a debilidade do seu estado, que descreveu assim:

«A pequena está esquelética. Os braços são de uma magreza assombrosa. Desde que saiu do hospital de Vila Nova de Ourém, onde durante dois meses se esteve tratando sem resultado, anda sempre a arder em febre. O seu aspeto inspira compaixão. Pobre criança! Ainda o ano passado cheia de vida e saúde, e já hoje, como flor murcha, pendendo à beira do sepulcro! A tuberculose, depois de um ataque de broncopneumonia e duma pleurisia puru-lenta, mina-lhe desapiedadamente o débil organismo»50.

Mas, apesar deste quadro, a Jacinta ainda tinha pela frente alguns meses de agonia. Mais perto do fim, teve a melhor de to-das as visitas: Nossa Senhora voltou a aparecer-lhe para, pessoal-mente, a preparar para a dureza do final que a esperava.

Como sempre, contou tudo à prima:– Disse-me que vou para Lisboa, para outro hospital;

que não te torno a ver, nem aos meus pais; que, depois de sofrer muito, morro sozinha, mas que não tenha medo; que me vai lá ela buscar para o Céu.

50 Padre Fernando Leite, em Jacinta de Fátima.

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A confiança da Jacinta em Nossa Senhora era ilimitada e

nunca regateara um único sacrifício. Mas, desta vez, não conse-

guiu conter as lágrimas. Abraçou-se à prima dizendo:

– Nunca mais te torno a ver. Tu não me vais visitar. Olha,

reza muito por mim, que morro sozinha.

E a ideia de morrer sozinha nunca mais deixou de a ator-

mentar, mais do que a própria doença. Um dia, a Lúcia foi dar

com ela abraçada a um santinho de Nossa Senhora, a dizer: «Ó

minha Mãezinha do Céu, então eu hei de morrer sozinha?».

A Lúcia tentou animá-la:

– Que te importa morrer sozinha, se Nossa Senhora te vai

buscar?

– É verdade. Não me importa nada. Mas não sei como é. Às

vezes não me lembro que ela me vai buscar. Só me lembro que

morro sem tu estares ao pé de mim.

O final estava muito próximo. Tal como acontecera com o

Francisco, as conversas entre as duas primas tinham agora uma

intensidade ainda maior. Já só importava o essencial.

– Que vais fazer no Céu? – perguntou-lhe, um dia, a Lúcia.

– Vou amar muito a Jesus, o Imaculado Coração de Maria,

pedir muito por ti, pelos pecadores, pelo Santo Padre, pelos meus

pais e irmãos e por todas essas pessoas que me têm pedido para

pedir por elas.

«Chegou, por fim, o dia de partir para Lisboa», conta a Lúcia.

A despedida cortava o coração. Permaneceu muito tempo abraçada

ao meu pescoço e dizia, chorando:

– Nunca mais te hei de tornar a ver, nem a minha mãe, nem

meus irmãos, nem o meu pai! Nunca mais hei de ver ninguém.

E depois morro sozinha… Nunca mais nos tornamos a ver! Reza

muito por mim até que eu vá para o Céu. Depois, lá, eu peço

muito por ti. Não digas nunca o segredo a ninguém, ainda que te

matem. Ama muito a Jesus e o Imaculado Coração de Maria e faz

muitos sacrifícios pelos pecadores.

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De Lisboa, mandou-me ainda dizer que Nossa Senhora a

tinha ido lá ver; que lhe tinha dito a hora e o dia em que morria; e

recomendava-me que fosse muito boa»51.

A Jacinta partiu para Lisboa a 21 de janeiro de 1920, onde

ficou no Orfanato de Nossa Senhora dos Milagres, no n.º 17 da

Rua da Estrela, fundado e dirigido pela Madre Godinho. Ali este-

ve 13 dias, com o especialíssimo consolo da companhia do Jesus

escondido: o orfanato tinha uma janelinha que dava para a Capela

dos Milagres, onde a Jacinta passou longas horas de olhos fixos no

sacrário.

Testemunhos da Madre Godinho referem a sabedoria e a

maturidade da Jacinta. A madre chegou a aconselhar-se algumas

vezes com ela. Um dia perguntou-lhe:

– Mas quem te ensinou tantas coisas?

– Foi Nossa Senhora, mas algumas penso-as eu. Gosto muito

de pensar.

No dia 2 de fevereiro, a Jacinta foi internada no Hospital de

Dona Estefânia, com o diagnóstico de «pleurisia purulenta da gran-

de cavidade esquerda fistulizada; osteíte da sétima e oitava costelas

do mesmo lado».

Foi operada oito dias depois, com uma anestesia local que,

segundo o médico, tem de ter sido muito dolorosa, devido à infla-

mação dos tecidos, e que não evitou todas as dores. A operação foi

muita demorada e o médico, interrogado 60 anos depois, ainda se

lembrava da coragem da Jacinta.

No dia 20 de fevereiro, por volta das 6 horas da tarde, sentiu-

-se mal e pediu os sacramentos. O pároco dos Anjos foi e confes-

sou-a, mas, parecendo-lhe que não estava para morrer logo, não

lhe deu a Comunhão, apesar dos pedidos insistentes dela. Mas, ao

sair do hospital, profundamente impressionado, dizia:

– Mal de nós, se esta não for para o Céu!

51 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Primeira Memória.

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A Jacinta morreu pelas 10.30 da noite, sozinha e sem receber Jesus escondido. Faltavam pouco mais de duas semanas para fazer 10 anos. Nossa Senhora, que nunca lhe faltou ao prometido, há de ter vindo buscá-la.

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«tu ficas cá mais algum tEmpo»

Lúcia estava agora sozinha, sem nenhum dos companheiros com quem tinha vivido o encontro com a Mãe do Céu. Por quanto tempo? Onde? A fazer o quê? Com a ajuda de quem?

No dia 31 de julho de 1919, tinha-lhe morrido também o pai, que sempre se tinha oposto a que ela saísse de Aljustrel. Mas era preciso pensar na educação daquela pastorinha, no seu futuro e na grande missão que lhe estava confiada.

Uma das pessoas que mais se dedicou a encontrar um cami-nho para a Lúcia foi o cónego Formigão. Depois de contactos com várias pessoas, chegando até a um encontro com o bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva, ficou decidido, com o consentimen-to de Maria Rosa, que a Lúcia iria estudar para um colégio interno das Irmãs Doroteias no Porto, o Asilo do Vilar.

O último dia da Lúcia em Fátima foi uma das provas mais duras da sua vida, depois da morte dos primos. Sentia que estava a ser arrancada do lugar que tanto amava e de que tinha recordações tão únicas. Custava-lhe a separação da sua família e assustava-a deixar o único modo de vida que conhecia, o da serra d’ Aire, tão

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árida e pobre, mas tão sem segredos para ela. Era o dia 15 de junho de 1921, tinha ela 14 anos.

Foi à Missa, de manhã cedo, com o coração apertado de insegurança e dor. Confortada com a presença de Jesus escondido, saiu daquela igreja que lhe era tão querida lançando um olhar de despedida à imagem de Nossa Senhora do Rosário, que lhe tinha sorrido no dia da sua Primeira Comunhão.

Depois, foi percorrer todos os lugares marcados pelos acon-tecimentos grandes dos últimos anos: o cemitério, a casa dos pri-mos, a Loca do Cabeço, os Valinhos, o poço do Arneiro, ao qual viria a referir-se com estas palavras: «[…] o poço de que já falei e que, por estar escondido atrás duns castanheiros, dum monte de pedras e dum silvado, havíamos de escolher, alguns anos depois, para cela dos nossos colóquios, de fervorosas orações e também de lágrimas, por vezes bem amargas. Misturávamos as nossas lá-grimas às suas águas, para bebê-las depois, na mesma fonte onde as derramávamos. Não seria essa cisterna a imagem de Maria, em cujo Coração enxugávamos o nosso pranto e bebíamos a mais pura consolação?»52.

O momento mais intenso teve lugar na Cova da Iria, junto à grade de proteção do lugar onde estivera a carrasqueira, que en-tão já não existia. Numa luta interior tremenda, querendo oferecer aquele sacrifício e não se sentindo capaz de o fazer até ao fim, não conseguia parar de chorar. Teve, então, a mais doce e inesperada das graças: uma nova aparição de Nossa Senhora.

A 13 de maio, Nossa Senhora tinha prometido que, além dos dias 13, de maio a outubro, voltaria uma sétima vez. Mas a Lúcia não imaginava que isso pudesse acontecer naquele momento tão deci-sivo para ela. Viu Nossa Senhora e ouviu a sua voz inconfundível:

– Aqui estou pela sétima vez. Vai, segue o caminho por onde o Senhor Bispo te quiser levar; essa é a vontade de Deus.

Foi uma confirmação profundamente pacificadora. Cheia de dor, a Lúcia ficou certa do passo que ia dar. E mais confian-

52 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Primeira Memória.

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te do que nunca no amparo de Nossa Senhora, que prometera nunca a abandonar.

Deixou Fátima no dia 16 de maio de 1921. Só não sabia que passariam 25 anos até voltar àqueles lugares benditos.

A mãe acompanhou-a até Leiria, juntamente com uma senho-ra muito bondosa, a quem o bispo tinha pedido para levar a Lúcia ao Porto. Assim foi. Na viagem para o Porto, a pobre pastorinha já ia sem a mãe, só com aquela senhora, com quem não se sentia muito à-vontade.

Entrou no Asilo do Vilar no dia 17 de junho. Por prudência, fizeram-na adotar outro nome. Ficou a chamar-se Maria das Dores, o nome da madre superiora. A adaptação à nova vida foi difícil. Tinha muitas saudades da simplicidade dos hábitos serranos. E não podia falar abertamente às outras meninas do Asilo, para não se dar a conhecer. As suas respostas evasivas não se revelaram sim-páticas às suas novas companheiras, o que era doloroso para um temperamento tão comunicativo como o da Lúcia.

Tudo vivia como oferecimento a Jesus e ao Coração Imacu-lado de Maria, sustentada pela memória do que tinha vivido com os primos. Valente e desembaraçada, foi-se adaptando à nova vida. Saiu-se bem nos estudos, apesar do atraso que trazia, e foi ganhan-do a amizade e o respeito de todos.

Os anos foram passando, lentamente. E foi surgindo e ama-durecendo nela o desejo de se entregar toda a Deus. Queria ser carmelita como Santa Teresinha, beatificada em 1923. Mas a sua saúde não era a melhor. Por outro lado, as ordens religiosas tinham sido expulsas de Portugal. As Doroteias mantinham aquela casa por prestarem um serviço social, que era tolerado pela Primeira República.

Assim, a Lúcia foi aconselhada a entrar na vida religiosa como doroteia, o que implicava ir fazer o tempo de preparação em Espanha. Tratava-se, mais uma vez, de dizer um «sim» que implica-va uma renúncia. A Lúcia decidiu dar esse passo. Foi para Ponteve-dra como postulante no dia 26 de outubro de 1925, tinha 18 anos. Iria viver em terra espanhola durante 20 anos.

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Na casa das Doroteias em Pontevedra, teve de começar por aprender a língua espanhola, o que lhe custou uma série de pe-ripécias divertidas, que ela atravessou com simplicidade e o seu bom humor habitual.

Nossa Senhora não se fez esperar nesta nova etapa da sua vida. No dia 10 de dezembro desse ano de 1925, menos de dois meses depois de ali ter chegado, manifestou-se numa nova apa-rição. Estava Lúcia no seu quarto quando lhe apareceu, no meio de uma grande luz, Nossa Senhora com o Menino Jesus. Nossa Senhora pousou-lhe, carinhosamente, a mão sobre o seu ombro, mostrou-lhe o seu Imaculado Coração e disse estas palavras:

– Olha, minha filha, o Meu Coração cercado de espinhos, que os homens ingratos a todos os momentos me cravam com blasfémias e ingratidões. Tu ao menos procura consolar-me e diz a todos aqueles que, durante cinco meses, no primeiro sábado, se confessarem, recebendo a Sagrada Comunhão, rezando o terço e me fizerem 15 minutos de companhia, meditando nos mistérios do Rosário, com o fim de me desagravarem, que eu prometo as-sistir-lhes na hora da morte com todas as graças necessárias para a salvação das suas almas.

A Devoção dos Cinco Primeiros Sábados querida pelo Céu era assim entregue a uma pobre postulante portuguesa de 18 anos. A Lúcia contou-o à superiora e ao confessor, mas ambos fo-ram mais prudentes do que entusiastas. A partir daí, abraçou esta missão, não se detendo diante de nenhum obstáculo.

Pouco tempo depois, teve um novo encontro que confirma-va a importância desta devoção. Aqui está o relato que ela fez por escrito, para entregar ao confessor:

«No dia 15 de fevereiro de 1926, andava eu muito ocupada com o meu ofício e quase nem disso me lembrava. E indo eu deitar num apanhador de lixo fora do quintal, onde, alguns meses atrasa-dos, tinha encontrado uma criança, à qual tinha perguntado se ela sabia a Avé-Maria e, respondendo-me que sim, lhe mandei que a dissesse, para eu ouvir. Mas como ela não se resolvia a dizê-la só,

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disse-a eu com ela três vezes; e ao fim das três Avé-Marias pedi-lhe que a dissesse só. Mas, como ela se calou e não foi capaz de di-zer, só, a Avé-Maria, perguntei-lhe se ela sabia qual era a Igreja de Santa Maria. Respondeu-me que sim. Disse-lhe que fosse lá todos os dias e que dissesse assim: Ó minha Mãe do Céu, dai-me o Vosso Menino Jesus! Ensinei-lhe isto e vim-me embora.

No dia 15 de fevereiro de 1926, voltando eu lá, como é de costume, encontrei ali uma criança que me parecia ser a mesma e perguntei-lhe então:

– Tens pedido o Menino Jesus à Mãe do Céu?A criança volta-se para mim e diz:– E tu, tens espalhado, pelo mundo, aquilo que a Mãe do

Céu te pediu?E, nisto, transforma-se num Menino resplandecente. Conhe-

cendo, então, que era Jesus disse:– Meu Jesus! Vós bem sabeis o que o meu Confessor me

disse na carta que Vos li. Dizia que era preciso que aquela Visão se repetisse, que houvesse factos para que ela fosse acreditada, e a Madre Superiora, só, a espalhar este facto, nada podia.

– É verdade que a Madre Superiora só, nada pode; mas com a Minha graça, pode tudo»53.

O diálogo estende-se ainda mais, porque a Lúcia faz muitas perguntas práticas a Jesus sobre a devoção, recebendo respostas para tudo.

Quando se vê, de novo, sozinha, a Lúcia está inquieta por fazer o que lhe é pedido e, ao mesmo tempo, confortada por mais esta visita do Céu.

A sua vida segue, com muita simplicidade. Não tendo ela mui-tos estudos e sendo também necessário protegê-la dos olhares de estranhos, as tarefas que lhe são confiadas são das mais humildes.

No dia 2 de outubro desse ano de 1926, toma o hábito, começando o seu noviciado. Está, então, na comunidade de Tuy,

53 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Apêndice I.

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onde passará longos anos como Irmã Maria das Dores. É alegre e diligente, nunca ninguém sabe se alguma coisa a entristece, porque o guarda para si, vive com toda a alma o seu caminho de irmã doroteia, sem se deixar desanimar por não ter sido esta a sua preferência.

É nessa casa que vai receber uma nova aparição, de conte-údo misterioso e consequências para a História do mundo. Dá-se no dia 13 de junho de 1929. A irmã Maria das Dores está a rezar sozinha na capela quando tudo se ilumina e ela vê sobre o altar «uma Cruz de luz que chegava até ao teto. Numa luz mais clara, via-se, na parte superior da cruz, uma face de homem com corpo até à cinta. Sobre o peito uma pomba também de luz e, pregado na cruz, o corpo de outro homem. Um pouco abaixo da cinta, suspenso no ar, via-se um cálice e uma hóstia grande, sobre a qual caíam algumas gotas de sangue que corriam pelas faces do crucifi-cado e duma ferida do peito. Escorregando pela hóstia, essas gotas caíam dentro do cálice. Sob o braço direito da cruz estava Nossa Senhora, com o seu Imaculado Coração na mão. Sob o braço es-querdo, umas letras grandes, como se fossem de água cristalina, que corresse para cima do Altar, formavam estas palavras “Graça e Misericórdia”… Nossa Senhora disse:

– É chegado o momento em que Deus pede para o Santo Padre fazer, em união com todos os bispos do mundo, a consa-gração da Rússia ao meu Imaculado Coração, prometendo salvá-la por este meio. São tantas as almas que a justiça de Deus condena por pecados contra mim cometidos que venho pedir reparação: sacrifica-te por esta intenção e ora»54.

Lúcia não vai descansar enquanto não este pedido não for acolhido e cumprido pelo Papa. Serão 55 anos de cartas, coló-quios, orações e sacrifícios. Vários Papas serão sensíveis à sua insistência. Pio XII e Paulo VI farão gestos de consagração do mundo, de formas prudentes e diplomáticas, sem envolver todos os bispos. Lúcia não desiste. A pastorinha tinha 71 anos quando

54 Irmã Lúcia, em Memórias da Irmã Lúcia, Apêndice II.

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Karol Wojtila foi eleito Papa João Paulo II, com a sua divisa mari-ana Totus Tuus – «Todo Teu».

É difícil imaginar o que terá sentido quando soube do aten-tado de 13 de maio de 1981 e recordou a aparição de 13 de julho de 1917, que o profetizava. Tendo sobrevivido miraculosamente a esse atentado, passado um ano, numa peregrinação de ação de graças a Fátima, João Paulo II faz uma impressionante oração de consagração do mundo inteiro ao Imaculado Coração de Maria. Mais tarde, o Papa saberá porém, pela irmã Lúcia, que o gesto não foi ainda cumprido como Nossa Senhora pedia. De acordo com todas as indicações da pastorinha carmelita, era precisa a união de todos os bispos do mundo em torno desta consagração.

A 25 de março de 1984, São João Paulo II consagra, de novo, o mundo ao Imaculado Coração de Maria, desta vez em união com todos os bispos do mundo, que quiseram associar-se-lhe em Roma ou, em simultâneo, nas suas dioceses. Fá-lo aos pés da imagem de Nossa Senhora de Fátima venerada na Capelinha das Aparições da Cova da lria e propositadamente levada para a Praça de São Pedro para esse fim. No belíssimo texto da consagração, não é menciona-da explicitamente a Rússia, mas é feita uma alusão sábia: «Iluminai de modo especial os povos dos quais esperais a nossa consagração e a nossa entrega». E mais adiante: «Confiando-vos, ó Mãe, todos os homens e todos os povos, nós vos confiamos também a própria consagração do mundo, depositando-a no vosso coração materno».

Lúcia faz saber que, finalmente, se cumpriu o pedido de Nossa Senhora.

Nos anos seguintes, as notícias que chegam da União Sovié-tica são de inesperada e galopante mudança. E, cinco anos depois, a 9 de novembro de 1989, ruía, para assombro do mundo inteiro, o símbolo mais emblemático do poder comunista – o muro que dividia ao meio a cidade de Berlim – e, com ele, todo o domínio daquele sistema sobre o Leste da Europa.

Mas tudo isto aconteceu depois. Naquela noite do dia 13 de junho de 1929, terminada a aparição, ficou só a irmã Maria das Dores, na penumbra da capela de Tuy, com a sua intimidade com

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o Céu, o seu amor ao Imaculado Coração de Maria, a sua solidão habitada e a longa estrada da sua vida e da sua missão.

A vida de irmã doroteia é de uma grandeza feita de coisas sempre pequenas: os trabalhos da rouparia, que são o seu ofício, a obediência, a caridade com as irmãs, a oração e o oferecimento diário da vida a Jesus e ao Coração de Maria. Escreve e recebe car-tas sobre as aparições. Também escreve à família, pedindo notícias e dando conselhos. São cartas onde se cruzam, de forma deliciosa, a proximidade das relações da aldeia e a maturidade da alma que vive em profunda intimidade com Deus. E é procurada por várias pessoas com problemas, que esperam muito da sua sabedoria e da sua santidade.

No convento, ela é, simplesmente, a irmã Maria das Dores, com o seu espírito de serviço, o seu sentido de humor, o seu desembaraço e o seu silêncio. Assim passam mais alguns anos, e aproxima-se o momento da sua profissão perpétua como doroteia.

O desejo do carmelo não se tinha apagado. A Lúcia não quer magoar as irmãs doroteias de quem é tão amiga, mas custa-lhe dar um passo definitivo naquela congregação, quando continua a de-sejar uma vida de maior recolhimento e permanece vivo o apelo do carmelo.

Como sempre, aconselha-se com os padres e bispos que a acompanham. Asseguram-lhe que não deve temer o passo da profissão religiosa, pois isso não impedirá que algum dia venha a entrar no carmelo. Trata-se, sim, de dizer a Jesus que quer ser sua até à morte. E disso a pastorinha Lúcia, feita irmã Maria das Dores, não tem a mais pequena dúvida.

Os votos perpétuos têm lugar no dia 2 de otubro de 1934. E Jesus dá-lhe um grande consolo nesse dia de entrega total: a alegre surpresa da presença da sua mãe. Seria o último encontro entre as duas. Maria Rosa tinha 65 anos. A Lúcia ainda quis ter o consolo de saber que a mãe já acreditava nas aparições. Mas não:

– Ó filha, eu não sei! Parece-me uma coisa tão grande!E assim se separaram. Para sempre. Maria Rosa viria a morrer

no dia 16 de julho de 1942, o ano das bodas de prata das aparições.

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Os anos que se seguiram à sua profissão perpétua foram marcados por uma nova tarefa: a escrita. Em 1935, o bispo de Leiria pediu-lhe que escrevesse sobre a Jacinta – e foi a primeira memó-ria. Seguiram-se mais três, ao longo de seis anos.

Escreve por pura obediência. Além da dificuldade de encon-trar tempo e lugar para a escrita no meio da azáfama da sua vida na casa de Tuy, é com relutância que passa a escrito todas as suas me-mórias tão vivas. Mas quem lho pediu sabe que preciosidade cons-titui esse seu legado. As Memórias da Irmã Lúcia, como são hoje conhecidas em todo o mundo, são o documento mais importante e mais rico de que dispomos sobre os acontecimentos de Fátima.

Em setembro de 1943, na sequência de uma doença grave da irmã Maria das Dores, o bispo de Leiria pede-lhe que ponha por escrito a terceira parte do segredo. Habituada a obedecer, dessa vez oferece resistência. Parece-lhe que não pode fazer o que lhe é pedi-do, tem dúvidas sobre a vontade de Deus, adia, reza, pede luz. No dia 3 de janeiro de 1944, está na capela, em oração, quando recebe uma visita de Nossa Senhora. A sua presença nunca falha nos mo-mentos decisivos.

«Senti então, que uma mão amiga, carinhosa e maternal me toca no ombro, levanto o olhar e vejo a querida Mãe do Céu. “Não temas, quis Deus provar a tua obediência, fé e humildade, está em paz e escreve o que te mandam, não porém o que te é dado enten-der do seu significado. Depois de escrito, encerra-o num envelope, fecha-o e lacra-o e escreve por fora que só pode ser aberto em 1960, pelo Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa ou pelo Sr. Bispo de Leiria”»55.

Assim faz, com o coração tranquilo.Em maio de 1946, dá-se uma sucessão de factos muito rele-

vante para a Lúcia. Começa com a comunicação inesperada de que regressará a Portugal. A decisão é tomada de um dia para o outro. A Lúcia é apanhada de surpresa. Não consegue saborear a ideia do

55 Carmelo de Coimbra, em Um Caminho sob o Olhar de Maria.

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regresso ao seu país e da maior proximidade de Fátima, porque, ao mesmo tempo, é-lhe pedida uma despedida muito significativa. Viveu muitos anos entre Tuy e Pontevedra, nesses lugares acon-teceram-lhe coisas muito decisivas, e o seu coração é, de novo, dilacerado por esta mudança, para mais tão repentina. Despede-se de Tuy com a intuição de que não voltará lá. E tem razão. Encerra--se, assim, uma longa etapa da sua vida, que começou com a sua chegada como postulante, aos 18 anos. A irmã Maria das Dores tem agora 39 anos.

À chegada ao Porto, nova surpresa: o bispo de Leiria pede--lhe que vá a Fátima, fazer o reconhecimento dos lugares. Voltar a Fátima! Vinte e cinco anos depois! A pastorinha estremece de comoção.

Este grande acontecimento dá-se no dia 21 de maio desse ano de 1946, na companhia de três madres doroteias. Ela própria relata a sua chegada à Cova da Iria:

«Chegámos a Fátima, pelas seis e meia da tarde. Caía uma chuva miudinha. O carro levou-nos até à Capelinha das Aparições. Descemos e dando o passo às Madres, pude, enquanto que elas entraram dentro a rezar, só, ajoelhar-me fora no lugar onde estivera a pequena carrasqueira sobre a qual Nossa Senhora poisou os Seus pés Imaculados e a grade de 1921.

Ao ajoelhar-me aí, depois de tantos anos, senti uma impres-são forte, como que um calafrio, mas consegui dominar, sem que as Madres se apercebessem. Depois, pelo espírito passou-me a re-cordação dos acontecimentos aí passados e quando as Madres me tocaram no ombro para irmos a casa, estava completamente sere-na. Tudo se tinha passado felizmente entre mim e Deus só»56.

Nesse dia, era já tarde, pelo que a visita aos lugares ocorreu no dia seguinte, cheia de beleza, intensidade e alegria, como se pode ver nas fotografias que foram tiradas.

56 Idem.

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Um momento enternecedor foi o encontro da Lúcia com o Ti Marto, pai do Francisco e da Jacinta. Uma troca de palavras, bem à maneira dos dois:

– Que bela cachopa que tu estás! Tu sim que valeu a pena vires a este mundo!… Lembras-te da minha Jacinta e do meu Francisco?

– Então, tio, não me hei de lembrar?…– Se fossem vivos seriam como tu!…– Oh! Seriam melhores do que eu! Nosso Senhor desta vez

enganou-se, devia ter deixado cá um deles e deixou-me a mim.A Lúcia regressa ao Porto, com a alma em festa pela graça

extraordinária deste regresso a Fátima.E estás prestes a começar um novo capítulo da sua vida.

Um ano depois, em 1947, começam a suceder-se os factos que a levarão para o carmelo, satisfazendo o seu desejo tão antigo. Conhece um padre dominicano que se presta a levar uma carta sua ao Papa. Nessa carta a Lúcia pede ao Papa para entrar para o carmelo. O Papa dá indicação ao bispo do Porto para que se facilite essa entrada.

Esta intervenção direta do Papa é recebida em Portugal com alguma estranheza. A frontalidade da pastorinha de Aljustrel foi decisiva. E, apesar de peripécias, adiamentos, mudanças de planos que ainda terá de atravessar, está traçado o caminho que a levará ao carmelo e, desta vez, vai mesmo ser uma realidade.

Fica decidido que irá para o Carmelo de Coimbra. Fátima está fora de causa, pela exposição a que estaria sujeita, com a consequente turbulência para a vida dessa comunidade. A Lúcia também pensa assim.

Falta um corte muito doloroso: a despedida das Irmãs Do-roteias. Foram mais de 20 anos de vida religiosa junto delas, foi amada e dedicou-se, de alma e coração, à sua vocação. Cresceu, amadureceu como cristã e como religiosa. E agora é preciso dizer adeus a toda essa longa etapa da sua vida, o que a Lúcia faz com o coração dorido, apesar do entusiasmo pelo passo, tão desejado, que vai dar.

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Chega o dia 25 de março de 1948. É Quinta-Feira Santa. A pastorinha entra no Carmelo no mesmo dia litúrgico do seu nas-cimento. A cela que lhe foi destinada é dedicada ao Imaculado Coração de Maria e, num pequeno quadrinho, está escrito: «O meu Imaculado Coração será o teu refúgio».

Professou no dia 31 de maio de 1949, festa da Visitação de Nossa Senhora, e ficou a chamar-se irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado. Sente-se, finalmente, em casa. Tem 42 anos. Está, ainda, a menos de metade do seu caminho terreno.

Fátima é, nessa altura, conhecida em toda a parte. A ima-gem peregrina de Nossa Senhora de Fátima é recebida em todo o mundo com extraordinárias manifestações de fé e devoção. Lúcia é a testemunha viva de Fátima. Recebe correspondência do mundo inteiro. As tentativas para visitá-la são inúmeras. Protegida pela clausura, vivendo, como sempre quis, uma vida recolhida, a irmã Lúcia recebe só quem deve e vive a sua vida de carmelita como uma irmã entre todas, embora tratada com um natural carinho e sendo mais procurada do que é comum para uma carmelita.

É indubitável que Nossa Senhora a terá visitado. Nunca o negou, embora se referisse a isso com discrição e humildade:

– Não sou, como no mundo se imagina, do número dessas almas felizes que veem e falam pessoalmente com Nosso Senhor todos os dias: essas graças têm-me sido concedidas, de longe em longe. Longos anos às vezes as separam e fico durante esses es-paços de tempo trilhando o meu pobre caminho, à luz da fé e da graça que esses favores deixam no meu espírito. Mas não vou só, sinto a presença de Deus, que me absorve no seu Ser Infinito co-municando-me luz, graça e força para levar a Cruz que me deixou. Ele conhece bem toda a minha fraqueza e miséria e não me aban-dona, porque sabe que não sou capaz de mais.

Foram quatro as visitas papais a Fátima durante a vida da irmã Lúcia, sempre a 13 de maio. Quer o Papa Paulo VI, em 1967, no cinquentenário das aparições, quer o Papa João Paulo II, nas suas três visitas – em 1982, um ano depois do atentado, em 1991, 10 anos depois do atentado, e em 2000, para a beatificação da

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Jacinta e do Francisco – requerem a presença da pastorinha no santuário, para participar nas celebrações.

Em 1967, a primeira vez, ninguém esperava que o Papa ti-vesse esse gesto. Quando, no fim da Missa, Paulo VI tomou a mão da irmã Lúcia e a apresentou à multidão dos peregrinos, a comoção geral foi imensa. E não terá sido menor a da própria irmã Lúcia.

Em cada uma das três vindas de João Paulo II, a irmã Lúcia teve encontros pessoais com o Papa. Deve ter sido uma emoção muito forte para ela ver, cara a cara, o bispo vestido de branco que ela vira cair sob as balas dos soldados, na simbólica terceira parte da aparição de julho. O Papa polaco também sabia que era dele que se tratava e tinha essa profecia marcada na sua carne. Tinham muito que trabalhar, aqueles dois gigantes da fé, até que tudo o que lhes estava confiado fosse consumado.

A irmã Lúcia tinha 93 anos quando viu os primos serem be-atificados. Entrou, a partir daí, numa fase de maior recolhimento ainda, sentindo que a sua missão estava cumprida.

Em março de 2004, com 97 anos, começou o seu enfra-quecimento mais visível, que iria durar quase um ano. As irmãs revezavam-se para a acompanhar. Gracejava com a sua situação, conservando o sentido de humor até ao fim.

Na manhã do dia 13 de fevereiro de 2005, recebeu um reca-do do Papa João Paulo II, enviado por fax, pela Nunciatura:

«Informado do estado em que versa a sua saúde, venho afir-mar-lhe a minha união afetuosa com uma particular lembrança da sua pessoa junto do Deus de toda a consolação para que possa superar serena, resignada, meritoriamente estes momentos de prova-ção unida a Cristo redentor e deixando-se iluminar pela sua Páscoa. Como penhor das melhores graças celestiais, envio-lhe, extensível à sua comunidade carmelita e familiares, a minha bênção apostólica».

A irmã Lúcia morreu pelas cinco da tarde desse dia 13 de fevereiro de 2005. Tinham passado quase 88 anos desde que Nossa Senhora lhe dissera: «Tu ficas cá mais algum tempo».

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Uma multidão esteve presente no velório, no carmelo, na Missa exequial, na Sé de Coimbra, e no cortejo fúnebre de regresso ao carmelo, onde ficou enterrada durante um ano. Uma multidão ainda maior participou na transladação dos seus restos mortais para a Basílica de Nossa Senhora do Rosário no Santuário de Fátima, a 19 de fevereiro de 2006.

Agora os três Pastorinhos estão enterrados nesse lugar onde, no dia 13 de maio de 1917, estavam a construir uma paredita antes de verem a luz anunciadora das aparições de Nossa Senhora.

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o caminho para a vErdadE é uma ExpEriência

A Jacinta, o Francisco e a Lúcia eram aquilo a que chamarí-amos hoje crianças inteiramente normais. Os dois mais pequenos mor reram novinhos, tendo revelado, em cerca de dois anos, per-sonalidades invulgares. A Lúcia não perdeu a sua natureza simples e comum, em nenhuma circunstância da sua longa vida, nem nas horas mais escondidas, nem nos acontecimentos mais conhecidos, enquanto se tornava, para Portugal e para o mundo, uma irmã mais velha na fé. A experiência das aparições foi o ponto de vira-gem das suas vidas. Mas como é que isso aconteceu? Que caminho percorreram os Pastorinhos? Como foram guiados em cada encon-tro, em cada palavra, em cada sinal?

No primeiro momento – a primeira aparição do anjo – não houve muito diálogo, mas passaram-se três coisas verdadeiramen-te educativas:

– «Não temais» Os Pastorinhos começaram por ser tranqui-lizados. A novidade, o inesperado são, quase sempre, um desafio forte, para pequenos e grandes. Eles tinham diante de si um rapaz

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desconhecido, que tinha vindo pelo ar e que brilhava como um cristal ao sol. O anjo bem sabia que era bom e grande o que lhes trazia; mas eles não. Antes de lhes propor fosse o que fosse, tran-quilizou-os, quis que eles vivessem aquele momento como uma promessa de bem.

– «Orai comigo» – Os Pastorinhos foram convidados a fazer uma experiência. Antes de ser uma regra, foi um convite; em vez de uma explicação teórica, foi uma vivência. Depois de experi-mentar rezar assim, com ele, dizendo aquelas palavras, fazendo aqueles silêncios e imitando-o naquela posição, pouco mais havia a dizer. O anjo não lhes pedia algo estranho, que não sabiam como se fazia; também não se sentou numa cadeira a ensinar-lhes como devia ser: prostrou-se e rezou com eles; fez com eles a experiência do que queria que eles aprendessem.

– «Os Corações de Jesus e de Maria estão atentos à voz das

nossas súplicas» – Foi proposta aos pastorinhos uma relação. É di-fícil rezar porque sim, ou porque alguém mandou. Mas, se houver quem explique que rezar é falar com Outro; se a primeira coisa que se aprende sobre rezar é que Alguém ouve as palavras ditas e acolhe os gestos feitos; se quem manda rezar vive verdadeiramente em relação com Aquele a Quem reza, então a oração é uma ami-zade e não é preciso ser-se muito crescido para saber o que isso é.

A segunda aparição do anjo é um dos momentos da história de Fátima de mais difícil compreensão para a nossa mentalidade. Os Pastorinhos tinham seis, oito e nove anos, e é-lhes pedido que façam sacrifícios. Como pedir sacrifícios a crianças a quem quere-mos todo o bem e toda a felicidade, a quem gostaríamos de poupar todos os sofrimentos?

A segurança do anjo ao pedir sacrifícios aos Pastorinhos e a naturalidade com que eles lhe respondem revela o tesouro de um critério de felicidade mais focado num Bem maior do que num bem de agora, o amor e a coragem de quem, em vez de proteger e prender, arrisca confiar e lançar.

Quem os criou e os conhece, Quem os amou primeiro e os sustenta na vida é que tem para eles este desígnio de misericórdia.

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Saber isso faz-nos deixar de defendê-los de percorrer o caminho, e passar a percorrê-lo com eles.

Apesar de serem pequeninos, o anjo não prescinde de dois passos muito importantes: dar-lhes razões e respeitar a sua li berdade.

Pede-lhes sacrifícios, mas explica para quê: «em ato de re-paração pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores». A partir daí, os Pastorinhos farão suas estas razões, e os sacrifícios constantes que passam a fazer são para eles cheios de sentido.

E o anjo respeita a liberdade deles: «De tudo o que puder-des, oferecei um sacrifício…». Não faz uma lista, não indica um número mínimo, nem estabelece um grau de exigência. Desta pri-meira vez, limita-se a lançar o desafio e deixa-os ir descobrindo, com o tempo, a ocasião, o sentido e a necessidade.

Na terceira aparição, o anjo expõe-lhes e dá-lhes o sacra-mento da Eucaristia. E porque os preparou, pela oração e pela penitência, não precisa de enfeitar a grandeza daquele gesto. Vi-vem-no em silêncio, na adoração, na força das palavras essenciais. Não precisam de ser entretidos, nem distraídos. É o coração que lhes pede a seriedade com que descobrem este mistério.

Se é clara a lógica deste caminho nos encontros com o anjo, ela é luminosa nas aparições de Nossa Senhora, e logo a partir da primeira, em maio. Nossa Senhora passa mais de metade desta primeira aparição a conversar com eles, a responder-lhes às perguntas, a dar-lhes tempo de a conhecerem e de se sentirem seguros na sua companhia. Só depois de os ter tranquilos e confi-antes é que lhes diz ao que vem. E o que a traz é uma pergunta, ou melhor, uma proposta, um pedido: «Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar--vos, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?».

Tal como Deus fez um dia com ela, Nossa Senhora faz de-pender tudo do seu «sim». E leva-o a sério. Não lhes esconde difi-culdades, não diz o típico «vão ver que não custa nada». Diz-lhes

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a verdade: «Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto». Promete ajuda e companhia, mas diz-lhes a verdade.

E é também a verdade sobre eles mesmos que lhes oferece, quando das palmas das suas mãos sai essa luz, que era Deus, onde se viam, melhor do que no melhor dos espelhos, sem disfarces, nem elogios exagerados, nem críticas exasperadas.

A verdade atravessa os conteúdos de todas as aparições, mas é particularmente forte em julho. Pode defender-se que, às crianças, nunca se mostra o lado feio das coisas, para não as assustar, para não as impressionar. Mas Nossa Senhora não hesita em pôr diante dos Pastorinhos de Aljustrel o lado mais triste da realidade: a existên-cia do inferno, como eternização de uma recusa feita em liberdade.

E, logo a seguir, fá-los descobrir essa possibilidade profun-damente atrativa que é o amor ao Imaculado Coração de Maria.

No fim da aparição de julho, eles não eram crianças trau-matizadas. Eram, sim, crianças invulgarmente realistas e motiva-das, libertas do egocentrismo próprio da sua idade, com uma agu-da consciência do sentido das suas existências, que, a partir daí, nada nem ninguém poderia deter. Ao vê-los assim, entusiasmados e imparáveis, salta à vista o quanto tinham para dar e como tudo se teria perdido pelo caminho da banalidade, da meia verdade e do medo da dor.

Durante seis meses, Nossa Senhora voltou sempre. Até em agosto: voltou mais tarde, mas voltou. Nunca lhes faltou com a companhia prometida. Nunca traiu a sua confiança. Sabiam que podiam contar com ela e que isso não dependia de merecerem ou precisarem, como não dependia de ela ter tempo ou vontade.

Tornaram-se heroicos, sustentados por aquela relação, ani-mados por aquela ternura, impelidos por aquela voz que pedia sempre mais. Sabiam-se amados com um amor único, porque aquela Senhora lhes dava sempre o essencial. O sofrimento não os desanimava, porque aquela Senhora os tinha ensinado a colocar o olhar. A morte não os assustava, porque aquela Senhora os tinha feito amar o destino.

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Depois daqueles seis meses, Nossa Senhora deixou de vir re-gularmente. Voltou a aparecer só muito perto da hora da morte dos mais novos e esporadicamente na longa vida da Lúcia. Aquilo que eles seriam na sua ausência julgaria a verdade daqueles encontros e o sentido daquela experiência.

Se os tivesse ensinado a rezar muito, a pensar muito em Deus e a gostar muito de aparições, mas não lhes tivesse aberto o coração aos outros, os últimos anos de vida dos dois pastorinhos mais pequenos e toda a vida da Lúcia poderiam ter-se tornado num triste testemunho e causa de estranheza para quantos os rodeavam.

Em vez disso, revelaram-se profundamente humanos e aten-tos, ao ponto de as pessoas se sentirem bem junto deles, mesmo quando os pequeninos já estavam muito doentes e de cama, e mesmo quando a Lúcia se ocupava de tarefas humildes.

A amizade que os une é mais um elemento deste caminho tão verdadeiro. Uma amizade que nem os crescidos percebem, habituados como estão a chamar boas companhias simplesmente àquelas com quem as crianças não fazem disparates, nem se me-tem em sarilhos. Os Pastorinhos serão, uns para os outros, até à hora da morte, uma companhia para o destino. Não se servem uns dos outros para desculparem mutuamente as fraquezas. São entre eles de uma verdade transparente e de uma corajosa exigência, chamando-se permanentemente à fidelidade e ajudando-se, uns aos outros, a ir sempre mais longe.

Este caminho para a verdade, com que o Céu educa os Pas-torinhos e nos ensina a educar, é um encontro, a proposta de uma experiência e uma companhia fiel, que torna possível o passo livre e razoável do «sim, queremos».

É preciso estar ancorado na certeza de um bem para educar assim, para lançar e deixar voar. Leve aonde levar.

Aos pastorinhos de Aljustrel, levou-os ao Céu.

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amar a cristo, tal qual somos

Fátima faz-nos olhar, com devoção, para os Pastorinhos. Lembramos a sua fidelidade à oração, a generosidade com que faziam sacrifícios, o seu horror ao pecado, o seu zelo pela conver-são dos pecadores e o amor que tinham a Jesus e ao Imaculado Coração de Maria.

A heroicidade das suas virtudes e a fama da sua santidade tornam as suas vidas distantes da nossa fraqueza, da nossa limita-ção, da nossa rea lidade. Pensamos que era bom se fôssemos assim, mas infelizmente não somos. E olhamos com enfado e descrença para os nossos passos imperfeitos, como se estivessem irremedia-velmente destinados a não ir muito longe.

Para evitar essa tremenda injustiça com o testemunho deles, com a graça de nos terem sido dados e connosco próprios, vale a pena voltar a percorrer o caminho que os levou do sossego da serra de Aire até ao reconhecimento, em toda a parte do mundo, da santidade das suas vidas.

Relembremos como era o Francisco até aos oito anos: intro-vertido, de poucas falas, entretinha-se com brincadeiras solitárias

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e não gostava de discussões com os outros meninos. Nem muito esperto, nem muito expressivo nos afetos, era prestável e amigo de ajudar, o que fazia com delicadeza e sem dar nas vistas.

Depois veio o anjo e ensinou-o a rezar. E aí o seu estar so-zinho povoou-se com a presença do seu Deus. Não se tratava de ser diferente ou de fazer outra coisa, mas simplesmente de uma novidade inesperada que enchia de gosto e de sentido os mesmo caminhos do campo, os mesmos passeios, as mesmas horas pensa-tivas. O Céu invadia a personalidade do Francisco, sem mudanças drásticas. Quem estivesse de fora não daria por nada de diferente, porque não era preciso ser diferente para acolher aquela novidade.

De passo em passo, o Francisco chega a maio de 1917 e ouve falar de um Deus ofendido, magoado pelos pecados dos homens, e que pede ajuda, pede uma entrega. Quem dá o recado é uma Senhora muito bonita, muito boa e que promete levá-lo para o Céu.

Mais uma vez é tocada uma corda sensível do Francisco: a sua delicadeza e a sua sensibilidade diante do sofrimento. Mais uma vez, o que lhe é pedido faz sentido com o que ele já é, com o que ele já sabe fazer. Trata-se simplesmente de uma atenção muito maior e de uma ajuda muito mais significativa do que ele soubera dar até aí. Mas também é tão maior o motivo, são tão mais fortes as razões!

O Francisco cresce, não tanto por um esforço voluntarista, por ter resolvido multiplicar sem fim a sua capacidade de ser útil aos outros. O Francisco cresce porque abre o coração à proposta que vem ao seu encontro. O Francisco cresce porque, em vez de fazer planos e cálculos sobre o que pode ou quer dar, simplesmen-te dá tudo o que tem e entrega-se de alma e coração a esse Deus magoado, que lhe pede ajuda, e àquela Senhora, tão boazinha, que todos os meses lhe aparece e o chama pelo seu nome.

Não deixou de ser introvertido, calado, metido consigo e desinteressado de discussões. Não passou a ter um feitio diferente, que o tornasse mais dinâmico e mais atrativo aos olhos dos outros. Não se tornou mais inteligente ou mais perspicaz.

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Tudo fez Deus com a natureza do Francisco, tal como era. Aquilo que lhe pedia era muito maior do que ele, mas, ao mesmo tempo, feito para ele. Talvez porque esse Deus, que assim o cha-mava, o criara um dia para esta missão. E o fizera assim porque assim o queria, sem tirar nem pôr.

E o pastorinho pacato que conhecemos na primavera de 1916 é o mesmo Francisco que morre a sorrir três anos depois.

A Jacinta era aquela criança mimadinha, sensível, afetuosa e impulsiva. Muito agarrada à mãe e muito afeiçoada à Lúcia, que era a sua melhor amiga, era capaz de ímpetos de ternura únicos, que derretiam o coração de qualquer um. Tinha uma afeição misterio-samente intensa por Jesus, desde muito pequena, que a fazia co-mover-se quando ouvia falar da sua Paixão e da sua Morte na Cruz.

Com as aparições, essa afeição cresce e torna-se o motor da sua vida, fazendo dela forte mesmo quando é fraca. A descoberta do drama do pecado e da realidade de tantos pecadores, que mor-rem sem arrependimento e vão para o inferno, fere a sua enorme sensibilidade. Afeiçoa-se a essa multidão de desconhecidos com uma intensidade e uma emoção que dantes eram só para os mais chegados.

Torna-se na primeira e mais generosa nos sacrifícios. Im-pulsiva como era, nada a detém na hora de dar resposta àquela emergência do Céu. Fala dos pecadores com uma inocência que desarma, mas entrega-se à sua conversão com uma heroicidade que espanta. Não é valente porque tenha deixado de ser mimada. É valente porque ama com intensidade, porque deixou que a graça rasgasse o seu coração, abrindo-o a uma dimensão nunca por ela imaginada.

Foi corrigindo o capricho e o melindre, mas continuou a ser impetuosa, intensamente afetiva e bem criança. Em nenhum dos momentos mais dramáticos da sua vida deixou de choramin-gar com saudades da mãe, ou de ter ideias infantis, de quem não tem a inteligência ainda completamente formada. A sua sabedoria, que até à sua morte espantava os mais crescidos, não vinha de ser precoce ou particularmente adulta para a idade, mas de uma ver-

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dadeira identificação com Jesus e de uma adesão sem reservas ao que lhe dizia, pedia e ensinava a Senhora da Cova da lria.

É, o tempo todo, igual a si própria, mesmo na doença, mes-mo no hospital, mesmo nos últimos dias de vida. E ao Céu não parece importar que a primeira apóstola de Fátima mande sauda-des ao Jesus escondido, chame Mãezinha do Céu ao Imaculado Coração de Maria e dê beijinhos nos santinhos que lhe dão. Por-que, com a mesma pureza infantil, ela é intrépida no sofrimento, inabalável na confiança e imbatível no amor.

A Lúcia também era estragada com mimos. Gostava de aju-dar a mãe e as irmãs mais velhas em tarefas de crescida, e por isso tornou-se despachada e mandona. Fazia tudo bem feito, estava ha-bituada a carinhos e elogios, pelo que sofria quando lhe ralhavam ou deixava de estar no centro das atenções.

Com as aparições, assumiu o papel de interlocutora do anjo e de Nossa Senhora, explicava aos primos o que tinha ouvido, respondia às suas dúvidas e encorajava-os com exigência e bon-dade. Esteve na primeira linha de todos os embates com crentes e descrentes, e foi interiorizando a sua missão de dar testemunho.

Aprendeu a conservar o essencial no coração, a oferecer alegria aos outros e a guardar para si as deceções e mágoas, saben-do que iria ter uma vida longa sem poder desabafar com os seus companheiros das aparições.

Diligente e despachada com as tarefas de casa, foi assim na vida religiosa. Até à morte, guardou a sua simplicidade serrana, a sua docilidade ao Céu, bem como a sua franqueza e a sua fron-talidade. De explicar tudo aos primos e às crianças de Aljustrel, passou a explicar ao mundo, à Igreja, aos padres, aos bispos, aos Papas.

Veio a tornar-se uma figura incontornável do século XX, não por ser culta ou influente, por ter aprendido a mexer-se entre os seus contactos de peso ou por ter sido hábil a trabalhar a sua ima-gem, mas porque respondeu à vida tal como ela se apresentava; levou até às últimas consequências a certeza de que nada havia a temer, porque Nossa Senhora nunca a deixaria e, com a graça de

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Jesus, tudo era possível, sem ser preciso sair do recolhimento da vida contemplativa.

O testemunho dos Pastorinhos de Aljustrel desarruma-nos velhas e anquilosadas ideias sobre a santidade, que a tornavam para nós um marco que, de tão inacessível, quase deixava de ser desejável.

Pensamos que, para sermos santos, temos de ser outros; pa-rece-nos que a nossa banalidade e a nossa imperfeição são um obstáculo intransponível; envergonha-nos a nossa indisponibilida-de para a oração e a nossa resistência à penitência; julgamos que o nosso testemunho depende da nossa cultura e do nosso brilhantis-mo; habituámo-nos a perder sistematicamente na comparação com outros que, esses sim, é que consideramos santos.

Porque são assim os nossos tropeços, não podemos dei-xar de olhar com imensa gratidão para a Jacinta, o Francisco e a Lúcia. Talvez nunca antes deles tivesse havido um sinal de tão imponente evidência de que o Céu nos quer assim mesmo, iguais a nós próprios.

Nenhum de nós consegue escapar totalmente ao facto de que é possível começar, neste instante, a amar a Cristo tal qual somos.

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Em família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

Lúcia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Francisco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Jacinta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Iguais a todos, iguais a nós . . . . . . . . . . . . . . . . 21

O anjo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Nossa Senhora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29Maio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29Junho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36Julho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40Agosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51Setembro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59Outubro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

Depois das aparições . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

«A Jacinta e o Francisco, levo-os em breve» . . . . . . . 77

«Tu ficas cá mais algum tempo» . . . . . . . . . . . . . 93

O caminho para a verdade é uma experiência . . . . . . 107

Amar a Cristo, tal qual somos . . . . . . . . . . . . . . 113

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