OS MÚSCULOS Loyola Bradão
-
Upload
flavia-knebel -
Category
Documents
-
view
57 -
download
29
description
Transcript of OS MÚSCULOS Loyola Bradão
Professora Flávia Knebel – Língua Portuguesa 1
OS MÚSCULOS (Ignácio de Loyola Brandão)
(...)
Os fatos
Todos os domingos, pela manhã, enquanto os outros homens se reuniam no bar da
esquina, ou iam para a várzea, ele ficava no quintal, remexendo a terra. O quintal media 4
metros quadrados, o máximo que a administração do com junto residencial fornecia. Ali, ele
tinha alface, beterraba e couve.
Naquela manhã, ao passar o rastelo sentiu alguma coisa prendendo os dentes da
ferramenta. Forçou, era resistente. Abaixou-se e notou fios prateados que saíam da terra. Era
arame, novo. Quando tinha revirado a terra para adubar, tinha cavado fundo sem encontrar
nada. Além disso, arame velho estaria enferrujado. Tentou puxar o fio, estava bem preso.
Buscou um alicate, conseguiu pouca coisa. Cavou. O arame penetrava na terra alguns metros.
Cavou mais. Como é que tinham feito uma coisa dessas, da noite para o dia? Preocupado com
a horta, parou a pesquisa. Regou um pouco as sementes, pensando se o arame não ia prejudicar
a germinação.
No dia seguinte, levantou-se bem cedo, para observar. O arame tinha crescido. Nos três
canteiros, havia brotos de dez centímetros de altura. Um araminho espigado, vivo, forte. Teria
sido um pacote errado de sementes? Não, era loucura. Semente de arame?
À noite, o arame parecia estacionado. Também no dia seguinte. As semanas se passaram,
as sementes de verdura não germinaram. Só o arame cresceu, espalhou. Havia brotos pelo
quintal inteiro. A mulher reclamava, não podia estender roupas no varal, os arames espetavam.
Numa casa de semente, ele pediu um técnico. Demorou meses. Quando o técnico
apareceu, o arame estava alto. Os arbustos se enrolavam uns nos outros. O técnico nunca tinha
visto nada igual. Aconselhou que o homem plantasse varetas, junto a cada pé. Senão, a colheita
ia ser difícil. “Mas quem é que quer colher arame?”, disse o homem. “Eu quero acabar com
ele.” “Para isso não temos veneno”, garantiu o técnico. “Podemos matar saúvas, broca, pulgão,
mil tipos de larvas, mas arame, não”, disse ele, anotando numa caderneta preta. “Arame, não.
O senhor vai ter que escolher. E eu gostaria de saber como foi a safra.”
O arame se enrolou nas varetas e no fim de dois meses o homem pôde colher rolos e
rolos de um tipo especial, de aço inoxidável. “Vai ter boa saída no mercado”, disseram os
amigos.
Ele amontoou a safra num canto da sala. A mulher, reclamando. Principalmente quando
ele não conseguiu vender nada, apesar de ter corrido todas as casas. Um mês depois, o arame
crescia outra vez, no quintal.
Veio outra safra. Amontoada na sala. A mulher ameaçava: “Jogo tudo isso fora”. Não
jogou. As safras se amontoavam. O arame era fértil, produzia mensalmente. A casa se encheu.
Na casa pequena, 50 metros quadrados, o máximo permitido, não havia lugar para
estoque. O homem passou a distribuir pelo bairro, à tarde, quando largava o serviço. Estendeu
a distribuição a toda cidade, de porta em porta. Ofereceu, pelos jornais. Fazendeiros mandavam
Professora Flávia Knebel – Língua Portuguesa 2
buscar. Centenas de caminhões congestionavam a rua. O bairro não suportava. Fazia abaixo-
assinados.
As prefeituras aceitaram, para cercar os municípios. O governo do estado também. E o
governo federal consumiu a safra de meses. Até que chegou o dia em que o país estava cercado.
Cercas de dezoito fios, impenetráveis. As casas vendedoras de arame reclamaram.
Abriram processos. Em seguida vieram os fiscais da prefeitura. Com notas e notificações.
E os impostos, disto e daquilo. O Ministério da Fazenda falando em saturação do
mercado de exportação. Baixa no preço mundial. No quintal, o arame crescia, se enrolava. Os
lixeiros se recusavam a levar os rolos, não havia onde colocar.
A prefeitura proibiu a fabricação. Ele disse que não podia, que o arame crescia sozinho.
Os fiscais riram, nem quiseram ver. “Nada cresce sozinho”. Começaram a aplicar multas, e
multas.
Multas por fabricação ilegal, por falta de registros, por venda sem nota. As casas do
ramo (as boas) ganharam nos tribunais. Ele fazia concorrência desleal. Devia pagar
indenizações. Notificações para cessar a produção. O preço do arame caiu a zero no mercado.
O homem saía à noite, sozinho, para jogar arame pelos terrenos baldios, nos bairros mais
distantes. A mulher nem queria saber. Queria o quintal, de volta.
O homem parou de colher o arame. Ele cresceu, se enroscou todo. Caiu para o lado do
vizinho. Cresceu por todo lado, pegando nos muros e paredes das outras casas.
Os vizinhos reclamaram. O arame estragava as paredes. Era preciso intervenção da
polícia. Ele cortou o arame. Chamou benzedeiras. Duas semanas depois, o arame crescia
viçoso.
Crescia por baixo da casa. Subia como trepadeira. Aparecia na calçada. Rachava o
asfalto. Certa manhã, ao sair para o quintal, o homem compreendeu. Com um cabo de vassoura
forçou a passagem.
Foi penetrando através dos fios de arame. Eles cediam facilmente, eram novos ainda. E
o homem se deixou envolver pela floresta de fios. Andando. Cada vez mais para o meio. Até
um ponto em que era impossível voltar.
Estava perdido, e contente. Ali não o encontrariam. Os outros teriam medo de penetrar
naquela floresta, onde à tarde o calor era sufocante, mas a noite era fresca e agradável. Também
não morreria de fome.
Logo no primeiro dia, descobriu pequenos insetos prateados, de aspecto não repulsivo.
Verificou também que os brotos novos de arame eram macios e delgados. Descobriu que no
centro daquela floresta havia um tipo de arame grosso. E que ao pé deles havia bulbos de água.
Percebeu que durante o dia o sol penetrando pela densa vegetação de fios inoxidáveis produzia
reflexos, desenhos. O vento, agitando os arames, roçando uns nos outros, produzia sons.
Sons e formas que distrairiam Danilo na longa viagem
que começava.