OS MODELOS DE HONNETH E FRASER EM SUA RELAÇÃO … · 2009-02-17 · da política e da moral –...

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169 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 29, p. 169-185, nov. 2007 Ricardo Fabrino Mendonça RECONHECIMENTO EM DEBATE: OS MODELOS DE HONNETH E FRASER EM SUA RELAÇÃO COM O LEGADO HABERMASIANO 1 Recebido em 6 de dezembro de 2006. Aprovado em 15 de março de 2007. O presente artigo busca delinear o debate travado por Axel Honneth e Nancy Fraser acerca da noção de reconhecimento, buscando compreender, especificamente, alguns dos aspectos que atravessam o projeto habermasiano de teoria crítica. Se a proposta de Honneth (de uma teoria da justiça calcada na noção de auto-realização) e a de Fraser (baseada no princípio da paridade de participação) parecem, à primeira vista, inconciliáveis, alguns elementos comuns podem ser encontrados quando se tem em mente o pano de fundo sobre o qual trabalham. Acreditamos que a possível produção de um modelo de reconhecimento capaz de combinar proposições de Fraser e Honneth depende da explicitação de alguns pressupostos habermasianos que permanecem implícitos nas perspectivas aqui em análise. O presente artigo traça comparações e aproximações entre os três autores no que se refere, basicamente, a três aspectos: a importância das interações ordinárias, a dimensão material das lutas sociais e as relações entre direito e moral. PALAVRAS-CHAVE: reconhecimento; teoria crítica; Honneth; Fraser; Habermas. I. INTRODUÇÃO A filosofia política vem assistindo a um acirra- do debate em torno da noção de reconhecimento. Um crescente número de pesquisadores, de di- versas áreas das ciências sociais, debruça-se so- bre esse conceito desde que Charles Taylor (1994 [1992]) e Axel Honneth (2003a [1992]), cada um à sua maneira, retomaram trabalhos de Hegel para ressaltar a importância do reconhecimento intersubjetivo na auto-realização de sujeitos e na construção da justiça social. Seja para abordar os dilemas do multiculturalismo nas sociedades hodiernas, para refletir sobre as lutas voltadas para a construção da cidadania, para compreender os possíveis efeitos de políticas públicas que se que- rem inclusivas ou para diagnosticar padrões sim- bólicos desrespeitosos, o conceito de reconheci- mento mostra-se um instrumento heurístico bas- tante promissor 2 . Não há, contudo, homogeneidade em sua apli- cação, o que se faz evidente pelas sucessivas crí- ticas dirigidas por Nancy Fraser a Taylor e Honneth. Partindo de premissas filosóficas dis- tintas das deles, Fraser propõe um paradigma de reconhecimento assentado na acepção weberiana de status e assinala a importância da redistribuição de recursos materiais, defendendo que, em diver- sos casos, desigualdades sociais não estão calca- das em padrões simbólicos de não-reconhecimen- to. Honneth, por sua vez, alega adotar uma visão mais ampla de reconhecimento, que não se res- 1 O presente trabalho foi realizado com o apoio da Fapemig e do CNPq. Uma versão preliminar dele foi apresentada no Congresso Anual da Associação Brasileira de Pesquisado- res em Comunicação e Política (Salvador, 2006), contando, para tanto, com financiamentos do PPGCOM-UFMG e da Capes (Procad). Gostaria de registrar meus agradeci- mentos a Leonardo Avritzer, Ângela Marques, Mariana Assis e aos pareceristas da Revista de Sociologia e Política pelas sugestões e comentários feitos no desenvolvimento deste artigo. 2 Cabe mencionar, aqui, a realização de uma série de pes- quisas no Brasil que se pautam pela discussão teórica e empírica da idéia de reconhecimento. A título de exemplo, gostaríamos de citar os trabalhos de Souza (2006, 2003, 2000a, 2000b), Mattos (2006, 2004), Feres Júnior (2006), Neves (2005), Bernardino (2002), Costa (2002), Lopes (2000), Marques (2003), Assis (2006), Cruz (2007), Men- donça e Maia (2006). Não é nosso intuito, todavia, discor- rer neste artigo sobre os desdobramentos específicos da teoria do reconhecimento em pesquisas brasileiras. Salien- tamos, entretanto, a proficuidade do olhar proposto nos vários artigos que compõem a coletânea organizada por Jessé Souza (2006).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 169-185 NOV. 2007

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 29, p. 169-185, nov. 2007

Ricardo Fabrino Mendonça

RECONHECIMENTO EM DEBATE:OS MODELOS DE HONNETH E FRASER EM SUA RELAÇÃO

COM O LEGADO HABERMASIANO1

Recebido em 6 de dezembro de 2006.Aprovado em 15 de março de 2007.

O presente artigo busca delinear o debate travado por Axel Honneth e Nancy Fraser acerca da noção dereconhecimento, buscando compreender, especificamente, alguns dos aspectos que atravessam o projetohabermasiano de teoria crítica. Se a proposta de Honneth (de uma teoria da justiça calcada na noção deauto-realização) e a de Fraser (baseada no princípio da paridade de participação) parecem, à primeira vista,inconciliáveis, alguns elementos comuns podem ser encontrados quando se tem em mente o pano de fundosobre o qual trabalham. Acreditamos que a possível produção de um modelo de reconhecimento capaz decombinar proposições de Fraser e Honneth depende da explicitação de alguns pressupostos habermasianosque permanecem implícitos nas perspectivas aqui em análise. O presente artigo traça comparações eaproximações entre os três autores no que se refere, basicamente, a três aspectos: a importância das interaçõesordinárias, a dimensão material das lutas sociais e as relações entre direito e moral.

PALAVRAS-CHAVE: reconhecimento; teoria crítica; Honneth; Fraser; Habermas.

I. INTRODUÇÃO

A filosofia política vem assistindo a um acirra-do debate em torno da noção de reconhecimento.Um crescente número de pesquisadores, de di-versas áreas das ciências sociais, debruça-se so-bre esse conceito desde que Charles Taylor (1994[1992]) e Axel Honneth (2003a [1992]), cada umà sua maneira, retomaram trabalhos de Hegel pararessaltar a importância do reconhecimentointersubjetivo na auto-realização de sujeitos e naconstrução da justiça social. Seja para abordar osdilemas do multiculturalismo nas sociedadeshodiernas, para refletir sobre as lutas voltadas paraa construção da cidadania, para compreender ospossíveis efeitos de políticas públicas que se que-rem inclusivas ou para diagnosticar padrões sim-bólicos desrespeitosos, o conceito de reconheci-

mento mostra-se um instrumento heurístico bas-tante promissor2.

Não há, contudo, homogeneidade em sua apli-cação, o que se faz evidente pelas sucessivas crí-ticas dirigidas por Nancy Fraser a Taylor eHonneth. Partindo de premissas filosóficas dis-tintas das deles, Fraser propõe um paradigma dereconhecimento assentado na acepção weberianade status e assinala a importância da redistribuiçãode recursos materiais, defendendo que, em diver-sos casos, desigualdades sociais não estão calca-das em padrões simbólicos de não-reconhecimen-to. Honneth, por sua vez, alega adotar uma visãomais ampla de reconhecimento, que não se res-

1 O presente trabalho foi realizado com o apoio da Fapemige do CNPq. Uma versão preliminar dele foi apresentada noCongresso Anual da Associação Brasileira de Pesquisado-res em Comunicação e Política (Salvador, 2006), contando,para tanto, com financiamentos do PPGCOM-UFMG eda Capes (Procad). Gostaria de registrar meus agradeci-mentos a Leonardo Avritzer, Ângela Marques, MarianaAssis e aos pareceristas da Revista de Sociologia e Políticapelas sugestões e comentários feitos no desenvolvimentodeste artigo.

2 Cabe mencionar, aqui, a realização de uma série de pes-quisas no Brasil que se pautam pela discussão teórica eempírica da idéia de reconhecimento. A título de exemplo,gostaríamos de citar os trabalhos de Souza (2006, 2003,2000a, 2000b), Mattos (2006, 2004), Feres Júnior (2006),Neves (2005), Bernardino (2002), Costa (2002), Lopes(2000), Marques (2003), Assis (2006), Cruz (2007), Men-donça e Maia (2006). Não é nosso intuito, todavia, discor-rer neste artigo sobre os desdobramentos específicos dateoria do reconhecimento em pesquisas brasileiras. Salien-tamos, entretanto, a proficuidade do olhar proposto nosvários artigos que compõem a coletânea organizada porJessé Souza (2006).

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tringiria à dimensão cultural da justiça,encampando os aspectos econômicos. Essa di-vergência teórica estende-se desde a segundametade da década de 1990, culminando com apublicação conjunta de Redistribution orRecognition: a Political-Philosophical Exchange(FRASER & HONNETH, 2003).

O objetivo do presente artigo é delinear os con-tornos de tal contenda filosófica, buscando apre-ender, especialmente, a influência de JürgenHabermas tanto sobre as idéias de Honneth comosobre as de Fraser. O interesse por Habermas deve-se não apenas ao fato de ambos os autores aquiem questão travarem longos diálogos com ele aolongo de suas respectivas trajetórias acadêmicas3.Ele se justifica, principalmente, porque a atualiza-ção habermasiana da teoria crítica constitui o pró-prio pano de fundo a partir do qual Honneth eFraser desenvolvem seu debate. O acento colo-cado por Habermas na construção intersubjetivada política e da moral – bem como sua atençãoaos processos dialógicos por meio dos quais ossujeitos configuram identidades, padrões culturaisde interpretação e regras institucionalizadas deinteração – atravessa a discussão Fraser XHonneth, sendo que diferentes dimensões do pro-jeto habermasiano são atualizadas por eles. Aomesmo tempo, por outro lado, importantes as-pectos desse mesmo projeto são, ainda que impli-citamente, criticados no mencionado diálogo.

No intuito de observar tais questões, começa-remos com uma apresentação da noção de reco-nhecimento, tal como desenvolvida por Taylor eHonneth. Em seguida, discutiremos algumas res-salvas levantadas ao conceito, introduzindo a vi-são de Nancy Fraser e analisando as implicaçõesde seu modelo. Apontaremos, então, as linhas ge-rais da defesa de Honneth e abordaremos, por fim,alguns elementos do debate que são atravessadospelo pensamento de Habermas. Acreditamos quea possível produção de um modelo de reconheci-mento capaz de combinar as proposições de Fraseràs de Honneth depende da explicitação de algunspressupostos habermasianos que permanecem

implícitos nas perspectivas aqui em questão.

II. RECONHECIMENTO COMO GARANTIA DAAUTO-REALIZAÇÃO

A teoria do reconhecimento, tal como inicial-mente desenvolvida, pensa os conflitos sociaiscomo buscas interativas pela consideraçãointersubjetiva de sujeitos e coletividades. Tendocomo alicerce a filosofia hegeliana, autores comoCharles Taylor (1994 [1992]) e Axel Honneth(2003a [1992]) ressaltam a construção relacionalda identidade, frisando que os sujeitos lutam o tem-po todo por reconhecimento mútuo. Segundo es-ses autores, somente dessa maneira eles podemse desenvolver de maneiras saudáveis e autôno-mas. A chave dessa perspectiva é, portanto, acompreensão da identidade como possibilidade deauto-realização.

Em seu ensaio seminal sobre omulticulturalismo, Charles Taylor (1994, p. 26)afirma que o reconhecimento não é uma questãode cortesia, mas uma necessidade humana. Issoporque pessoas e grupos podem sofrer danos re-ais se a sociedade os representa com imagens res-tritivas e depreciativas. Para Taylor (1997; 1994),os sujeitos são construções dialógicas e é por meiodas interações intersubjetivas (sejam elasagonísticas ou amistosas) que eles podem realizara tarefa de serem verdadeiros com suas própriasoriginalidades. Em um mundo que construiu umaimagem individualizada de identidade, pautada peloprincípio de autonomia, “se eu não sou [verdadei-ro comigo mesmo], eu perco o cerne da minhavida; eu perco o que o ser humano significa paramim” (TAYLOR, 1994, p. 30). Essa autonomiasó pode ser construída em diálogos – em parte,externos e, em parte, internos – com os outros.

O projeto de Taylor está calcado em uma re-construção histórico-filosófica dos alicercesvalorativos que delineiam e estruturam a própriaexistência da sociedade. Como lembra Souza(2006), há hierarquias valorativas tácitas que per-passam as práticas cotidianas e instituições quese apresentam como neutras, tais como o merca-do e o Estado. De acordo com o filósofo cana-dense, a própria configuração dos sujeitos, natu-ralizada no cotidiano, é guiada por princípios mo-rais, amarrados no que ele denomina configura-ções. Uma “configuração incorpora um conjuntocrucial de distinções qualitativas. Pensar, sentir,julgar no âmbito de tal configuração é funcionarcom a sensação de que alguma ação ou modo de

3 Basta lembrar que Honneth foi assistente de Habermasem Frankfurt, entre 1984 e 1990, e que Fraser tem impor-tante reflexão acerca da noção de esfera pública, sendo queum de seus ensaios (FRASER, 1999) foi de suma relevân-cia na revisão das posições que Habermas defendera emMudança estrutural da esfera pública.

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vida ou modo de sentir é incomparavelmente su-perior aos outros” (TAYLOR, 1997, p. 35). A iden-tidade faz-se, portanto, inextricavelmente ligada aconcepções de bem, que norteiam a vida dos su-jeitos, garantindo-lhes o fundamento para juízos,intuições ou reações morais. “Taylor está interes-sado, antes de tudo, no componente avaliativo daconstituição da identidade humana, na medida emque a auto-interpretação dos sujeitos passa a serpercebida como momento constitutivo para aconstrução desta” (SOUZA, 2000a, p. 99). Sãoas configurações que permitem ao sujeito situar-se na trama social e orientar-se.

Em uma espécie de arqueologia das concep-ções de bem, “Taylor pretende encontrar aautocompreensão dos atores na topografia moralda época e na cultura em que esses atores se inse-rem” (SOUZA, 2000b, p. 137). Ele assinala que,na contemporaneidade, “talvez o mais urgente epoderoso conjunto de exigências que reconhece-mos como morais refira-se ao respeito à vida, àintegridade, ao bem-estar e mesmo à prosperida-de dos outros” (1997, p. 17). Assim, ele coloca aidéia de dignidade no cerne do pano de fundomoral que rege as sociedades ocidentais hodiernas,superestimando a capacidade destas deimplementar uma universalização de direitos quenaturalize o valor da igualdade (MATTOS, 2004,p. 157). De acordo com ele, na modernidade,houve um declínio da sociedade hierarquicamen-te predeterminada, o que levou a uma alteração dahonra estamental em direção à dignidade geral. Poroutro lado, o aludido desenvolvimento de umaacepção de self calcada nas noções de autentici-dade e de interioridade suscita uma política da di-ferença. “Enquanto a política da dignidade uni-versal lutava por formas de não-discriminação queeram bastante “cegas” aos jeitos em que os cida-dãos se diferem, a política da diferença,freqüentemente, redefine a não-discriminação re-querendo que façamos dessas distinções a basedo tratamento diferencial” (TAYLOR, 1994, p. 39).

A proposta tayloriana de reconhecimento en-volve esses dois tipos de política, estendendo aconsciência da igualdade de valor humano paracompreender a valorização daquilo que cada umfez a partir dessa igualdade. Para Taylor, por meiode lutas simbólicas, os sujeitos negociam identi-dades e buscam reconhecimento nos domíniosíntimo e social. Ele aponta, ainda, que as lutas porreconhecimento têm-se feito cada vez mais explí-citas, ultrapassando o foro interno, por via de pro-

testos públicos. Protestos esses que não buscama simples tolerância ou condescendência, mas orespeito e a valorização do diferente4. Para queisso ocorra, não deve haver uma generalizada va-lorização apriorística, mas uma profunda abertu-ra a comparações, capazes de encetar fusões dehorizontes, para usar os termos de Gadamer5. Nãose trata, pois, de uma oposição de coletividadescom seus próprios valores, mas da construção dorespeito mútuo. Taylor não é, de modo algum,um defensor do relativismo (MATTOS, 2006).

As proposições de Axel Honneth (2003a) se-guem um rumo semelhante às de Taylor, já quetambém ressaltam a existência de um contextonormativo que alicerça as representações e práti-cas sociais6. Honneth afirma que é por meio doreconhecimento intersubjetivo que os sujeitos po-dem garantir a plena realização de suas capacida-des e uma auto-relação marcada pela integridade.Para o autor, os sujeitos são forjados em suasinterações, sendo que eles só conseguirão formaruma auto-relação positiva caso se vejam reconhe-cidos por seus parceiros de interação.

4 Amy Gutmann explica a distinção entre tolerância erespeito à diferença, assinalando que “a tolerância se es-tende a uma gama mais ampla de perspectivas, na medidaem que cessam as ameaças ou outros danos diretos ediscerníveis aos indivíduos. O respeito é bem mais especí-fico do que isso. Ainda que não precisemos concordar comuma posição para respeitá-la, precisamos entendê-la comorefletindo um ponto de vista moral” (GUTMANN, 1994,p. 22).5 De acordo com Taylor, a “fusão de horizontes opera pormeio do desenvolvimento de novos vocabulários de com-paração, através dos quais podemos articular esses con-trastes” (1994, p. 67; sem grifos no original).6 Importante destacar, entretanto, que Honneth é bemmais cauteloso do que Taylor ao abordar a universalizaçãoda dignidade no Ocidente. Além disso, a divisão analítica detrês âmbitos do reconhecimento proposta por Honneth, daqual falaremos a seguir, oferece um quadro explicativo maisacurado que a divisão tayloriana entre as lutas íntimas e aspúblicas. Os domínios do amor, do direito e da estima, bemcomo a ligação destas últimas duas com a questão do traba-lho e das desigualdades econômicas, permitem uma leituramais complexa de conflitos sociais. Vale mencionar, porfim, que as entradas dos dois autores na teoria do reconhe-cimento são distintas: enquanto Taylor dá mais ênfase à“tarefa de fundamentação filosófica e histórico-filosóficada tese do reconhecimento social como vínculo mais básicoe fundamental entre os indivíduos (MATTOS, 2006, p.16), Honneth “procura sociologizar a teoria hegeliana ori-ginal, destituindo-a de sua ganga metafísica por posturasabertas à investigação empírica” (ibidem).

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Buscando construir uma teoria social de cará-ter normativo, Honneth (2003a) parte do princí-pio de que o conflito é intrínseco tanto à forma-ção da intersubjetividade como dos próprios su-jeitos. Ele destaca que tal conflito não é conduzi-do apenas pela lógica da autoconservação dos in-divíduos, como pensavam Maquiavel e Hobbes.Trata-se, sobretudo, de uma luta moral, visto quea organização da sociedade é pautada por obriga-ções intersubjetivas. Nesse sentido, o autor adotaa premissa de Hegel, para quem os indivíduos seinserem em diversos embates por meio dos quaisnão apenas constroem uma imagem coerente desi mesmos, mas também possibilitam a instaura-ção de um processo em que as relações éticas dasociedade seriam liberadas de unilateralizações eparticularismos. Esses embates dar-se-iam, navisão de Hegel, nos âmbitos da família, do direitoe da eticidade.

Honneth atualiza a idéia hegeliana por meio dapsicologia social de George H. Mead. Assim comoHegel, o psicólogo norte-americano defende agênese social da identidade e vê a evolução moralda sociedade na luta por reconhecimento. Mead(1993) aprofunda o olhar intersubjetivista, defen-dendo a existência de um diálogo interno (entreimpulsos individuais e a cultura internalizada), einvestiga a importância das normas morais nasrelações humanas. De acordo com ele, nasinterações sociais, ocorrem conflitos entre o “eu”,a “cultura” e os “outros”, por meio dos quais in-divíduos e sociedade desenvolver-se-iam moral-mente. Mead também embasa a idéia de reconhe-cimento em três tipos de relação: as primárias(guiadas pelo amor), as jurídicas (pautadas porleis) e a esfera do trabalho (na qual os indivíduospoderiam mostrar-se valiosos para a coletivida-de).

A partir da junção desses insights, Honneth sis-tematiza uma teoria do reconhecimento, afirman-do que “são as lutas moralmente motivadas degrupos sociais, sua tentativa coletiva de estabele-cer institucional e culturalmente formas amplia-das de reconhecimento recíproco, aquilo por meiodo qual vem a se realizar a transformaçãonormativamente gerida das sociedades”(HONNETH, 2003a, p. 156). Ele refina as cate-gorias de relações apresentadas por Hegel e Mead,extraindo delas três princípios integradores: as li-gações emotivas fortes, a adjudicação de direitose a orientação por valores.

As primeiras se materializam por meio das re-lações de amor e seriam as mais fundamentais paraa estruturação da personalidade dos sujeitos. Apoi-ando-se na psicanálise de Donald Winnicott,Honneth analisa as relações entre mãe e filho, in-dicando que elas passam por uma transformaçãoque vai da fusão completa à dependência relati-va. Nessa dinâmica conflitiva, um aprende com ooutro a se diferenciarem e verem-se como autô-nomos: ainda que dependentes, eles podem so-breviver sozinhos. Disso advém a possibilidadede uma autoconfiança. Para Honneth, em cadarelação amorosa se atualiza o jogo dependência/autonomia oriundo dessa fusão originária, deledependendo a confiança básica do sujeito em simesmo e no mundo.

As relações de direito, por sua vez, pautam-sepelos princípios morais universalistas construídosna modernidade. O sistema jurídico deve expres-sar interesses universalizáveis de todos os mem-bros da sociedade, não admitindo privilégios egradações. Por meio do direito, os sujeitos reco-nhecem-se reciprocamente como seres humanosdotados de igualdade, que partilham as proprieda-des para a participação em uma formaçãodiscursiva da vontade. As relações jurídicas ge-ram o auto-respeito: “consciência de poder se res-peitar a si próprio, porque ele merece o respeitode todos os outros” (idem, p. 195). Honneth assi-nala que o que caracteriza essa igualdade humanaé algo construído historicamente, sendo amodernidade marcada pela extensão dos atribu-tos universais. Recorrendo às clássicas proposi-ções de T. H. Marshall, o autor demonstra as lu-tas por reconhecimento travadas para a constru-ção dos direitos civis, políticos e sociais, todosvoltados para a configuração de cidadãos com igualvalor.

A terceira, e última, dimensão do reconheci-mento dá-se no domínio das relações de solidarie-dade, que propiciam algo além de um respeitouniversal. Honneth afirma que, “para poderemchegar a uma auto-relação infrangível, os sujeitoshumanos precisam [...] além da experiência dadedicação afetiva e do reconhecimento jurídico,de uma estima social que lhes permita referir-sepositivamente a suas propriedades e capacidadesconcretas” (idem, p. 198). Como explica Souza,o “espaço de positividade [dessa dimensão] é de-finido como aquele onde a honra no sentido tradi-cional não se transformou em dignidade (direito),

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mas antes na noção subjetivada de integridade”(2000b, p. 155). É no interior de uma comunida-de de valores, com seus quadros partilhados designificação, que os sujeitos podem encontrar avalorização de suas idiossincrasias. E vários con-flitos buscam, exatamente, a reconfiguração detais quadros dada a revisibilidade destes: “Nas so-ciedades modernas, as relações de estima socialestão sujeitas a uma luta permanente na qual osdiversos grupos procuram elevar, com os meiosda força simbólica e em referência às finalidadesgerais, o valor das capacidades associadas à suaforma de vida” (HONNETH, 2003a, p. 207).

Aos três reinos do reconhecimento, Honnethassocia, respectivamente, três formas de desres-peito: 1) aquelas que afetam a integridade corpo-ral dos sujeitos e, assim, sua autoconfiança bási-ca; 2) a denegação de direitos, que mina a possi-bilidade de auto-respeito, à medida que inflige aosujeito o sentimento de não possuir o status deigualdade; e 3) a referência negativa ao valor decertos indivíduos e grupos, que afeta a auto-esti-ma dos sujeitos. Para Honneth, todas essas for-mas de desrespeito impedem a realização do indi-víduo em sua integridade.

Mas se, por um lado, o rebaixamento e a hu-milhação ameaçam identidades, por outro, elesestão na própria base da constituição de lutas porreconhecimento. O desrespeito pode tornar-seimpulso motivacional para lutas sociais, à medidaque torna evidente que outros atores impedem arealização daquilo que se entende por bem viver.Esse é o ponto defendido por Honneth, quando,recorrendo a Dewey, afirma que os obstáculosque surgem ao longo das atividades dos sujeitospodem se converter em indignação e sentimentosque permitiriam um deslocamento da atenção dosatores para a própria ação, para o contexto emque ela ocorre e para as expectativas ali presen-tes. Disso poderiam advir impulsos para um con-flito, desde que o ambiente político e cultural fos-se propício para tanto. A idéia é que “toda reaçãoemocional negativa que vai de par com a experi-ência de um desrespeito de pretensões de reco-nhecimento contém novamente em si a possibili-dade de que a injustiça infligida ao sujeito se lherevele em termos cognitivos e se torne o motivoda resistência política” (HONNETH, 2003a, p.224).

O que Honneth defende, em suma, é que osconflitos intersubjetivos por reconhecimento, en-

cetados por situações desrespeitosas vivenciadascotidianamente, são fundamentais para o desen-volvimento moral da sociedade e dos indivíduos.Essa é a base de sua concepção formal de boavida, a qual “tem de conter todos os pressupos-tos intersubjetivos que hoje precisam estar preen-chidos para que os sujeitos se possam saber pro-tegidos nas condições de sua auto-realização”(idem, p. 270). Tal eticidade formal – alicerçadano amor, no direito e na estima social – só poderiaser construída na interação social.

III. CRÍTICAS E REVISÕES: O MODELO DENANCY FRASER

As idéias de Honneth e Taylor desencadearamum grande debate acerca da noção de reconheci-mento, explicitando seu potencial para a compre-ensão de conflitos sociais e para uma renovaçãoda teoria crítica. É importante perceber, contudo,que as formulações originais desses autores vêmsendo confrontadas e atualizadas desde meadosdos anos 1990. Um dos aspectos mais controver-sos diz respeito a uma certa negligência teórica deHonneth e Taylor em relação às injustiças econô-micas, cabendo citar, também, o temor de que asproposições deles reconduzam a visões de identi-dades autênticas essencializadas (TULLY, 2000;MARKELL, 2000; EMCKE, 2000; MCBRIDE,2005).

Buscando construir um paradigma alternativodo reconhecimento, Nancy Fraser compartilhaesse temor de que as proposições de Taylor eHonneth reconduzam a essencializaçõesidentitárias e sectarismos. No entanto, ela só sis-tematiza sua posição de forma clara e consistentedepois de um longo percurso que a conduz desuas raízes neomarxistas ao campo da teoria crí-tica mais contemporânea.

Essa trajetória tem início em instigante ensaio,no qual Fraser (1997 [1995]) aponta que a justiçarequer tanto a redistribuição como o reconheci-mento. Ela chama a atenção para o campo da eco-nomia na construção de conflitos emancipatórios,defendendo a centralidade da esfera da produçãona construção de uma sociedade mais justa. Demaneira distinta de Taylor (1994), que não tratado problema, e de Honneth (2003a), que defendeque a redistribuição faz parte do reconhecimento,Fraser aponta que essas lutas têm lógicas muitodistintas, ainda que surjam quase sempreimbricadas. A redistribuição buscaria o fim do fa-tor de diferenciação grupal, enquanto o reconhe-

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cimento estaria calcado naquilo que é particular aum grupo. Para Fraser (1997), isso gera umaesquizofrenia filosófica, já que as pessoas afeta-das por injustiças materiais e culturais teriam quenegar e afirmar sua especificidade ao mesmo tem-po7.

Buscando resolver esse dilema, Fraser dá con-tinuidade a seu percurso em alguns ensaios (2000;2001; 2003), nos quais se afasta, pouco a pouco,da justificativa marxista da economia, construin-do um modelo que tem como categoria central aidéia de paridade de participação. Nesses textos,a autora critica, sistematicamente, o que chamade paradigma identitário do reconhecimento, cujosexpoentes seriam Taylor e Honneth. Fraser (2000;2003) julga que pensar o reconhecimento a partirda perspectiva de uma autenticidade identitária éum equívoco não apenas teórico, mas tambémpolítico.

Ela acredita que tal viés geraria dificuldadespara a observação empírica e conduziria àreificação de identidades e a uma incapacidade dediscernir reivindicações justificáveis das não jus-tificáveis. “Enfatizando a necessidade de elaborare exibir uma identidade coletiva autêntica, auto-afirmativa e autogerada, ele [o viés] coloca umapressão moral nos indivíduos para que se confor-mem a uma dada cultura grupal” (FRASER, 2000,p. 112). Podem surgir, assim, formas repressivasde comunitarismo que reforçam dominaçõesintragrupais, bem como sectarismos que condu-zem ao separativismo social8.

Como alternativa, ela propõe um modelo dereconhecimento calcado na idéia weberiana destatus. Nessa perspectiva, o não-reconhecimentonão é explicado em termos de depreciação da iden-tidade, mas como subordinação social: “o que re-quer reconhecimento não é a identidade específi-ca do grupo, mas o status de seus membros indi-viduais como parceiros por completo na interaçãosocial” (idem, p. 113). Assim, a análise do desres-peito adquire um objeto empiricamente palpável:padrões institucionalizados de desvalorizaçãocultural, que constroem certas categorias de ato-res sociais como normativas e outras como infe-riores. Estejam tais padrões instituídos em leisformais ou em sentidos informais, seu resultado éa configuração de atores que são menos do quemembros efetivos da sociedade. Não há necessi-dade, pois, de investigar sentimentos de não-re-conhecimento interiores aos sujeitos. Além disso,não é preciso se ater aos casos em que os própri-os grupos percebem-se como desvalorizados.

Nota-se, que, sob esse viés, a luta por reco-nhecimento não procura a valorização de identi-dades, mas a superação da subordinação. Paratanto, faz-se necessário mudar valores e institui-ções reguladores de interações, o que varia emcada situação. O “modelo de status não está com-prometido a priori com nenhum tipo de soluçãoespecífica para o não reconhecimento” (ibidem).As soluções só podem ser elaboradascontextualmente.

Fraser (2001; 2003) busca embasar, filosofi-camente, esse projeto ao propor uma guinada daética para a moral. De acordo com a autora, aprimeira remonta ao conceito hegeliano deSittlichkeit e diz respeito a valores historicamenteconfigurados em horizontes específicos que nãopodem ser universalizáveis. A ética trata do bemviver. Já a moral está calcada no conceito kantianode Moralität e se refere a questões de justiça,pautando-se pelo correto e não pelo bom. As nor-mas da justiça seriam, para Fraser, universalmen-te vinculantes, não sendo tão contingentes comoas da ética. Ao mover-se nessa direção, a autoranega a perspectiva defendida por Honneth e Taylorde que o reconhecimento seria uma questão deauto-relização. Assim, ela “liberta a força normativade reivindicações de reconhecimento da depen-dência direta de um horizonte substantivo especí-fico de valor” (2001, p. 25).

De acordo com ela, essa guinada teria quatro

7 Nesse ensaio, Fraser propõe que a solução seria adotarpolíticas transformativas, que buscam corrigir desigualda-des a partir dos pressupostos que as embasam. A autoraaponta que é somente por meio delas que se pode combinarredistribuição e reconhecimento sem gerar estratégiasconflitantes. Em seus trabalhos mais recentes, todavia,Fraser (2000; 2003) deixa de recomendar remédios especí-ficos e propõe um olhar contextualizado.8 Concordamos com Fraser no que se refere à afirmação deque a visão de identidades autênticas leva a sectarismos e aformas de dominação. Não percebemos, todavia, essa ten-dência nas obras de Taylor e Honneth. O primeiro nãodefende comunitarismos separativistas, como muito seapregoa, o que fica claro em sua proposta de uma fusão dehorizontes. Honneth também tem um olhar intersubjetivistalonge da reificação. Zurn (2003, p. 531) é bastanteesclarecedor quando afirma que um modelo de reconheci-mento baseado na noção de identidade não necessariamen-te conduz à intolerância, ao separativismo intergrupal e aoconformismo intragrupal.

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conseqüências imediatas. Em primeiro lugar, nãose opta por uma concepção específica de bem emdetrimento de outras: “o modelo de status édeontológico e não-sectário” (FRASER, 2003, p.30). Em segundo lugar, o problema do desrespei-to é situado em relações sociais e não em estrutu-ras internas dos sujeitos, o que poderia culpabilizaras vítimas pela absorção da opressão ou levar àprática autoritária de policiamento de valores. Emterceiro lugar, ela “evita a visão de que todos têmigual direito à estima social” (idem, p. 32). Dife-rentemente de Honneth, ela diz que o que é preci-so é que todos possam buscar estima.

A quarta conseqüência diz respeito à questãoque motivou Fraser a construir todo o seu mode-lo: a guinada moral resolve a esquizofrenia filosó-fica causada por tentativas de atrelar as lógicasda redistribuição e do reconhecimento. SegundoFraser, trata-se de duas dimensões da justiça, cujaintegração não pode se dar pela redução de uma aoutra. Uma vez que o objetivo é remover impedi-mentos à formação de relações simétricas, é pos-sível pensar o imbricamento de ambas as lutas. Aquestão distributiva – que, curiosamente, ela atri-bui à tradição liberal em sua preocupação com ascondições para a liberdade e não a Marx – alicerçaas condições objetivas para a realização da pari-dade de participação. Os recursos materiais de-vem assegurar independência e voz aos partici-pantes da interação social. Já a questão do reco-nhecimento estaria no cerne das condiçõesintersubjetivas da paridade. “Padrõesinstitucionalizados de valor cultural devem expres-sar igual respeito a todos os participantes e garan-tir oportunidades iguais para a obtenção da esti-ma” (idem, p. 36)9.

A chave da guinada de Fraser está, portanto,na idéia de paridade de participação. Este seria opadrão normativo que deveria reger tanto as lutassociais como as análises de tais conflitos, e não anoção de auto-realização propagada por Taylor eHonneth. A visão desses autores permitiria, se-gundo ela, a valorização de identidades opresso-ras, por exemplo. No modelo de Fraser, só sãojustificáveis as reivindicações de reconhecimentoque sejam moralmente vinculantes, fomentando aparidade de participação, sem gerar formas al-ternativas de subordinação. Como já dito, isso variaem cada situação, não sendo possível, por exem-plo, predefinir se o reconhecimento deve se diri-gir às especificidades de um grupo ou à conside-ração de uma humanidade comum. O importanteé que as próprias pessoas afetadas participem, emprocessos dialógicos, da construção de soluçõespara superar quadros de subordinação.

Em sua proposta de uma teoria política, Fraser(2003) busca pensar os requisitos mínimos que taissoluções deveriam respeitar para atentar para asduas dimensões da justiça. Ela sugere que é preci-so pensar nos “efeitos colaterais” dos “remédios”adotados, levando-se em conta que, muitas vezes,soluções de um problema desencadeiam outros. Eladefende, uma vez mais, que soluçõestransformativas (preocupadas com as raízes dosproblemas) tendem a ser mais eficazes e aptas aconciliar a dimensão econômica à cultural. Mascomo nem sempre essas soluções são exeqüíveisou desejadas, pode-se pensar em reformas não re-formistas: mudanças mais pontuais, capazes de gerarefeitos profundamente transformadores a longoprazo. Ela assinala, ainda, a importância de quedecisões sejam revisáveis e do uso cruzado de so-luções que, endereçadas a uma das dimensões dajustiça, resolvam problemas da outra.

IV. RECONHECIMENTO COMO CATEGORIAAMPLIADA: A RESPOSTA DE HONNETH

Procurando contestar as críticas de NancyFraser, Honneth (2001; 2003b) defende aimplausibilidade filosófica da distinção entreredistribuição e reconhecimento. Ele diz que Fraserestá equivocada ao associar o reconhecimento àcultura. Nesse aspecto, ela seria a verdadeirareducionista, ao restringir a justiça à economia e àcultura. Para Honneth (2003b), a clivagem pro-posta por Fraser é arbitrária, desconsiderandomúltiplas dimensões da justiça e negligenciandoaspectos relevantes para o combate ao desrespei-

9 Para se referir a obstáculos às condições objetivas eintersubjetivas da paridade, Fraser usa, respectivamente, ostermos classe e status. Enquanto “classe é uma ordem desubordinação objetiva derivada de arranjos econômicos”(FRASER, 2003, p. 49), “status representa uma ordem desubordinação intersubjetiva derivada de padrõesinstitucionalizados de valor cultural” (ibidem). Status e clas-se correspondem a dimensões analiticamente distintas: ain-da que se imbriquem em jogos de influência recíproca, há,nas sociedades contemporâneas, um desacoplamento parci-al dos mecanismos econômicos das estruturas de prestígio.Por isso, ela julga não serem adequadas nem as explicaçõeseconomicistas (como as do marxismo ortodoxo), nem asculturalistas (como a que, na visão dela, Honneth defende-ria), nem as desconstrucionistas (como as de Butler e Young).Fraser propõe um dualismo perspectivo em que qualquerprática pode ser pensada a partir das duas dimensões.

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to. Ele afirma que um paradigma do reconheci-mento, suficientemente diferenciado, seria maisadequado para atualizar a teoria crítica, cunhandouma matriz atenta à construção intersubjetiva desujeitos, da sociedade e da emancipação. E deixaclaro que reconhecimento não é a simples valori-zação de grupos culturais.

Observa-se que Honneth frisa não negar a im-portância da distribuição de recursos materiais. Eletrata o reconhecimento como categoria ampla ca-paz de abrigar reivindicações de vários tipos. As-sim, demandas por redistribuição material caberi-am em sua proposta de duas maneiras: 1) nas im-plicações normativas de igualdade diante da lei, quepromete tratamento equânime a todos os membrosde uma comunidade política; e 2) na idéia de quecada membro de uma sociedade democrática deveter a chance de ser socialmente estimado por suasrealizações pessoais (HONNETH, 2001, p. 53). Deacordo com Honneth, nem mesmo Marx conside-rava a distribuição material como um fim último. Oimportante é que ela garanta a instauração de for-mas de relação mais justas e respeitosas entre su-jeitos. “Conflitos por distribuição [...] são semprelutas simbólicas sobre a legitimidade do dispositivosociocultural que determina o valor de atividades,atributos e contribuições” (idem, p. 54)10.

Nesse sentido, Honneth diz se afastar deLuhmann e Habermas, que pensariam o capitalis-mo como um sistema econômico não regidonormativamente11. Ele afirma que valores definemcomo serão distribuídos os recursos, fazendo-senecessário reconstruir o conceito de lutasdistributivas por meio do reavivamento de sua di-mensão moral. Nesse sentido, “A postura de Fraserequivale a retirar da perspectiva teórica do reco-nhecimento precisamente seu principal mérito, queé haver contribuído para re-significar tudo aquiloque o alto capitalismo em sua atual fase detriunfalismo sem oposição tem tornadocrescentemente naturalizado, muito especialmentena ordem econômica” (MATTOS, 2006, p. 157).

O grande problema do argumento de Honneth éque ele situa as lutas distributivas mais no âmbito

do terceiro domínio do reconhecimento (o da co-munidade de valores) do que no segundo (o dasrelações igualitárias). Ele diz que grupos devem lu-tar para que suas realizações sejam passíveis devalorização, construindo novos horizontes de va-lor. Mas, ao tratar a distribuição em termos de “re-alização” e “mérito”, pode acabar conduzindo aoequívoco de justificar disparidades inadmissíveis12.

Outro aspecto marcante da resposta deHonneth (2003b) é sua acusação a Fraser por res-tringir os conflitos sociais a lutas organizadas evisíveis na esfera pública, negligenciando toda umaampla gama de injustiças que afetam e depreciamidentidades sem serem tematizadas. Para ele,Fraser generaliza a experiência dos conflitos nor-te-americanos, abordando apenas as lutas de ato-res que ultrapassaram a barreira da invisibilidadepública. Ela desconsideraria que formas de sofri-mento e desrespeito profundamente enraizadas“também incluem aquelas que existem antes, eindependentemente, da articulação política demovimentos sociais” (idem, p. 117).

Honneth critica, ainda, um certoprocedimentalismo de Fraser e diz que a justiçanão pode se ver inteiramente despida da ética. Paraele, “sem antecipar uma concepção de boa vida éimpossível criticar quaisquer das injustiças con-temporâneas” (idem, p. 114). Mas ele não propõeum simples relativismo em que as definições deuma comunidade decidiriam sobre o justo e o in-justo. Com razão, ele afirma que Fraser interpre-tou equivocadamente suas proposições, deixandode observar sua preocupação como uma eticidadeformal, a qual seria a medida para justificar (oucriticar) reivindicações sociais. Segundo ele, “umaconcepção formal de ética contém as condiçõesqualitativas para a auto-realização e difere dapluralidade de formas específicas de vida ao cons-tituir as pré-condições gerais para a integridadepessoal de sujeitos” (HONNETH, 2001, p. 51)13.

Ainda que essa definição de eticidade formal seja

10 Para uma boa análise dessa perspectiva de Honneth ede seu enraizamento na teoria de Dewey, ver Zurn (2005).11 Souza (2006) e Mattos (2006) também apontam que“Habermas não contempla uma perspectiva que permitauma análise dos aspectos simbólico e cultural das institui-ções, especialmente, Estado e mercado” (idem, p. 140).

12 Curiosamente, o próprio Honneth (2003a) negara aidéia de Mead de que o trabalho seria o âmbito privilegiadopara a conquista da estima em processos de luta por reco-nhecimento.13 No que concerne a esse aspecto, Cristopher Zurn (2003)corrobora a posição de Honneth, questionando a possibili-dade de uma justiça totalmente despida da ética e destacan-do que o projeto de Honneth “tenta apresentar uma teorianormativa não-sectária que pode justificar reivindicaçõesnormativas que vinculem todas as pessoas” (idem, p. 528).

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apresentada de forma por demais abstrata, indicandopoucos critérios para a avaliação empírica de lutas,seria injusto atribuir a Honneth um solipsismo semparâmetros. Mesmo porque também a visão deparidade de participação de Fraser parece poucodelineada. Ambos buscam definir quais conflitosseriam justificáveis, mas, enquanto ela se pauta pelobem da participação, ele prefere o bem da auto-realização pessoal. Trata-se, no fundo, de concep-ções diferentes de justiça (HONNETH, 2003b, p.176). Em Honneth, a justiça seria conseqüência doprogresso moral da sociedade, avaliado em termosdo reconhecimento de novas partes da personali-dade ou da inclusão de outras pessoas nas relaçõesde reconhecimento.

Cabe citar, por fim, duas últimas acusaçõesque Honneth dirige a Fraser, a nosso ver,indevidamente. Ele afirma que: 1) ela não trata oproblema das identidades agressivas; e 2)historiciza a mudança da economia para a culturapor meio de um enfoque similar ao de Taylor etambém ao das chamadas teorias dos novos mo-vimentos sociais. No que concerne à primeira crí-tica, Fraser (2003) busca, claramente, negar a le-gitimidade de identidades agressivas ao declararque somente reivindicações que promovam a pa-ridade de participação são justificáveis. No tocan-te à segunda, vale lembrar, como o faz Zurn(2005), que a autora procura, justamente, con-testar a perspectiva historicista, evidenciando quepraticamente todo conflito passa tanto pela dimen-são cultural quanto pela econômica.

V. TEORIA CRÍTICA EM FOCO: UM DEBATEQUE ATRAVESSA A OBRA HABERMASIANA

Apresentado o debate entre Honneth e Fraser,interessa-nos, agora, observar sua relação com aobra de Jürgen Habermas. Isso porque ambas aspropostas de reconhecimento procuram atualizara teoria crítica, entrando em diálogo com as tri-lhas abertas pelo projeto habermasiano a partir doreferencial frankfurtiano. Cabe lembrar que a pro-posta inicial dos pensadores do Institut fürSozialforschung era construir uma teoria que “nãose limita a descrever o funcionamento da socie-dade, mas pretende compreendê-la à luz de umaemancipação ao mesmo tempo possível e bloque-ada pela lógica própria da organização social vi-gente” (NOBRE, 2003, p. 9). A partir da discus-são dos processos de racionalização engendradospela modernidade, os autores da primeira geraçãode Frankfurt defendem que o mundo do trabalho,da técnica e da produção conduziram a uma for-

ma de racionalidade única (a instrumental) quelevaria à naturalização da dominação e à supres-são do esclarecimento (cf. ADORNO &HORKHEIMER, 1985). A transformação socialadviria, de acordo com esse viés, de alterações nopróprio mundo da produção e da técnica.

A atualização habermasiana da teoria críticanega tanto esse diagnóstico como o caminho parasua superação. Habermas (1980a; 1983; 1987)defende que, por maior que seja a ubiqüidade daracionalidade instrumental, ela não esgota o pro-jeto moderno de racionalização. Em diálogo comMarcuse, ele alega que a teoria crítica não podeoperar apenas no interior do paradigma da pro-dução, preocupado com as relações que condu-zem à transformação da natureza. Habermas(1980a) afirma a importância de se olhar para alinguagem: é na racionalidade comunicativa –voltada para o entendimento mútuo – que os su-jeitos atualizam e reconfiguram o mundo (em suasdimensões objetiva, social e subjetiva), residindoaí o cerne do potencial emancipatório do projetoda modernidade. O próprio questionamento dalógica do mundo da produção depende, assim, deum tipo de ação distinto das ações instrumentais eestratégicas que visam ao sucesso e operam nosquadros dos modelos vigentes. Diferentemente dosprimeiros frankfurtianos, a normatividade busca-da por Habermas é construída linguageiramente,por meio da discussão pública sem restrições14.

Na perspectiva de Habermas (1987; 1997), asociedade deve ser compreendida a partir de umadivisão analítica entre sistemas funcionais e omundo da vida. Enquanto aqueles são regidos porcódigos e procedimentos específicos cuja valida-de só pode ser avaliada no interior de cada siste-ma, o mundo da vida compõe a trama de signifi-cados tácitos e tidos como certos, atualizada nouso comunicativo da linguagem15. O mundo da

14 Não se deseja sugerir, aqui, que Habermas vê comonegativas as ações estratégicas e as instrumentais, nem queele negue a importância do trabalho e do mundo da produ-ção na emancipação do homem. O que ressaltamos é aimportância dos acordos normativos comunicativamenteconstruídos até para que as estruturas do mercado possamser repensadas e alteradas.15 Amplamente explorado pela fenomenologia, sobretudopor Husserl e Schütz, o conceito de mundo da vida(Lebenswelt) refere-se ao contexto preliminar que marca aexperiência cotidiana do mundo. “O que o caracteriza, emprimeiro lugar, é o modo de uma certeza imediata”(HABERMAS, 1990, p. 92).

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vida serve de pano de fundo às ações comunica-tivas: interações simbolicamente mediadas quevisam ao entendimento mútuo.

Nesse tipo de interação, os interlocutores “nãoutilizam a linguagem ‘perlocutoriamente’, isto é,visando instigar outros sujeitos para um compor-tamento desejado, mas ‘ilocutoriamente’, isto é,com vistas ao estabelecimento não-coercitivo derelações intersubjetivas” (HABERMAS, 1980b, p.103). Isso se dá por meio do levantamento recí-proco de pretensões de validade criticáveis16, di-ante das quais os sujeitos assumemposicionamentos em termos de sim/não. Dessaforma, eles podem alterar ou sustentar fragmen-tos dessa rede simbólica que os precede, já que opoder-dizer-não instaura uma fratura deontológica(HABERMAS, 1997, v. 2, p. 53). As normas so-ciais se mantêm ou são questionadas na trocaintersubjetiva.

É justamente no uso da racionalidade comuni-cativa que Habermas deposita suas esperanças17.Como atesta Honneth, “Habermas deu uma gui-nada na tradição da teoria social crítica, na medi-da em que transferiu o potencial emancipatório,transcendente, da prática do trabalho para o mo-

delo de ação da interação lingüisticamente media-da” (HONNETH, 2003c, p. 246). De acordo comHabermas, os sujeitos podem, reflexiva edialogicamente, reconfigurar aspectos do mundo,das relações sociais e das próprias identidades aose posicionarem diante de pretensões de validadereciprocamente levantadas. É na ação comunica-tiva – na livre troca de argumentos voltados parao entendimento – que se atualizam e se alteramsentidos sobre o mundo em suas múltiplas dimen-sões, podendo a realidade ser reconstruída de for-ma não opressora.

Importante destacar que, no viéshabermasiano, a dominação e a subordinação nãosão meros reflexos da lógica instrumental-estra-tégica. Esta não seria, por si só, negativa, sendomesmo necessária no campo do trabalho. O pro-blema é quando as formas estratégicas de açãocomeçam a interferir em âmbitos que devem serregidos pelo medium da linguagem, tecnificando-os. Nesses casos, dar-se-iam os processos decolonização do mundo da vida: “mecanismossistêmicos suprimem formas de integração soci-al, mesmo nas áreas em que a coordenação de-pendente do consenso não pode ser substituída,ou seja, onde a reprodução simbólica do mundoda vida está em questão” (HABERMAS, 1987, p.196). Para impedi-la, Habermas aposta na dimen-são moral da política, proveniente da troca comu-nicativa intersubjetiva. Honneth (2003c, p. 242)salienta esse aspecto quando coloca que, na obrade Habermas, “o potencial moral da comunicaçãoé o motor do progresso social, indicando, ao mes-mo tempo, sua direção”.

A inscrição dos teóricos do reconhecimento nocampo da teoria crítica também se apóia sobre adimensão moral e intersubjetiva da política18. Re-fletindo sobre a questão da dominação e da eman-cipação nas sociedades hodiernas, eles buscamdiagnosticar as mazelas contemporâneas –

16 Habermas (1983; 1987; 1990) propõe que o uso públi-co da linguagem visando ao entendimento mútuo mobilizauma forma de racionalidade, que dialoga com as dimensõesobjetiva, social e subjetiva do mundo. Recorrendo às idéiasde Bühler e Austin, ele lembra que proferimentos usadoscomunicativamente expressam intenções de um falante, re-presentam estados de coisas e estabelecem relações comum destinatário (HABERMAS, 1990, p. 78). Nessa tríplicerelação, os enunciados envolvem, além de uma sempre pre-sente pretensão de compreensibilidade, pretensões de ver-dade, de correção e de veracidade. Qualquer uma dessaspretensões é passível de questionamento.17 Como apontado por um dos pareceristas anônimos daRevista de Sociologia e Política, reconhecemos que em TheTheory of Communicative Action, o autor adota uma pers-pectiva bastante pessimista ao tratar a questão da coloni-zação do mundo da vida. Para Habermas (1987, p. 283)“o padrão capitalista de modernização é marcado por umadeformação, uma reificação das estruturas simbólicas domundo da vida sob os imperativos de subsistemas diferen-ciados via dinheiro e poder e tornados auto-suficientes”.Não se pode, todavia, negligenciar o potencialemancipatório depositado por Habermas na ação comuni-cativa nem defender que seu diagnóstico é o de uma sub-missão completa da racionalidade comunicativa à estratégi-ca. Seu olhar ambivalente fica claro nos desdobramentosposteriores de sua teoria, sobretudo na conformação domodelo deliberacionista de democracia.

18 É interessante perceber, aqui, que nos referimos à di-mensão moral da política e não do sistema político admi-nistrativo, já que Habermas entende este último como umsistema social que usa a racionalidade estratégica orientadapelo medium do poder. Pensada sob uma acepção alargada,como veremos a seguir, a política não se restringe às insti-tuições administrativas do Estado, configurando-se comouma prática mais ampla, como já defendiam Aristóteles eArendt. É essa percepção que leva Habermas a formularseu modelo de política deliberativa calcado na idéia de cir-culação de poder.

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traduzidas em termos de desrespeito (Honneth) oude injustiça (Fraser) – e propõem uma gramáticamoral para a superação delas. Tal como Habermas,e antes dele Hegel, Honneth e Fraser percebemque a política não se restringe a uma luta de inte-resses (à ação estratégica)19. Há horizontesnormativos, coletiva e simbolicamente atualizados,sobre os quais os sujeitos se apóiam. Tais hori-zontes estão na base de reivindicações levantadascontra formas de opressão ou desrespeito, o queexplicita a permanente tensão entre a facticidadeda vida social e sua normatividade de que falaHabermas (1997).

V.1. A importância das interações ordinárias

A força da noção de intersubjetividade, pre-sente nos três autores aqui em tela, acaba porconduzi-los a uma compreensão ampliada da po-lítica, chamando a atenção para a participação doscidadãos em suas vidas cotidianas. Diferentementeda tradição que remonta a Weber e Luhmann, quevêem a política como um campo especializado eautopoiético (cf. HABERMAS, 1997, v. 2),Habermas, Honneth e Fraser enfocam a práxisordinária dos cidadãos, evidenciando suacentralidade para a política. Eles buscam com-preender os processos de produção de decisõescoletivas na perspectiva dos participantes e nãoapenas na do observador.

Habermas (1992; 1997) fá-lo ressaltando opotencial do uso corriqueiro da linguagem natu-ral por cidadãos comuns. Segundo ele, osproferimentos desses sujeitos ganham concretudee visibilidade em uma multiplicidade de arenasintersubjetivas, cuja trama configura uma esferapública, capaz não apenas de reconfigurar enten-dimentos coletivos e padrões culturais, mas tam-bém de gerar um poder comunicativo que podeinfluenciar as instâncias formais de decisão polí-tica20. Isso porque, “em sociedades complexas,

a esfera pública forma uma estrutura intermediá-ria que faz a mediação entre o sistema político, deum lado, e os setores privados do mundo da vidae sistemas de ação especializados em termos defunções, de outro lado” (HABERMAS, 1997, v.2, p. 107).

A noção de esfera pública é a base da propostahabermasiana de uma política deliberativa que“obtém sua força legitimadora da estruturadiscursiva de uma formação da opinião e da von-tade, a qual preenche sua função social eintegradora graças à expectativa de uma qualida-de racional de seus resultados” (idem, p. 28)21.Recorrendo a Joshua Cohen, Habermas (idem)afirma que as deliberações estão baseadas em tro-cas públicas de argumentos por todos os interes-sados por um determinado assunto. Os partici-pantes seriam livres de coerções externas e inter-nas, considerando que as tomadas de posição sãoregidas pelo princípio do melhor argumento.Passíveis de tratar quaisquer questões tematizadascomo publicamente relevantes e mantendo-se sem-pre abertas a revisões, as deliberações buscamacordos racionalmente motivados, dependendodas mudanças de preferências dos sujeitos parti-cipantes. Como se vê, trata-se de um jeito de pen-sar a política de forma inclusiva e participativa.

Nancy Fraser (2000; 2003) parece bastanteligada à proposta de Habermas, quando chama aatenção para o fato de que políticas eficazes, ca-pazes de combinar distribuição econômica e re-conhecimento cultural, não podem ser cunhadassem a participação das pessoas em processosdialógicos. Nesse ponto, ela mobiliza o princípio

19 Honneth reconhece, explicitamente, que Habermas foium dos poucos teóricos a colocar as expectativas normativasno cerne da política (HONNETH, 2003b, p. 128-9). Valeressaltar que Habermas parte da “premissa, segundo a qualo modo de operar de um sistema político, constituído peloEstado de Direito, não pode ser descrito adequadamente,nem mesmo em nível empírico, quando não se leva emconta a dimensão de validade do direito e a forçalegitimadora da gênese democrática do direito”(HABERMAS, 1997, v. 2, p. 9).20 Habermas (1997, v. 2) desenvolve essa perspectiva apartir do modelo de circulação de poder de B. Peters. A

idéia é a de que o sistema político tem um núcleo adminis-trativo responsável pelas tomadas de decisão e periferiascom distintos poderes de influência. Nesse modelo, os ci-dadãos comuns podem iniciar fluxos comunicativos capa-zes de pressionar os centros do sistema no sentido da trans-formação. Tais fluxos passam por sucessivas comportas,defendendo-se publicamente e formando um poder comu-nicativo, capaz de forçar modos extraordinários de soluçãode problemas.21 De acordo com Habermas, uma das razões pelas quaisseu projeto difere, de um lado, das visões liberais e, deoutro, das republicanas, está na função atribuída à forma-ção democrática da vontade. Ele afirma que, para os libe-rais, essa formação teria o papel de legitimação do poder,enquanto que, para os republicanos, ela constituiria a pró-pria sociedade. “Racionalização significa mais do que sim-ples legitimação, porém menos do que a constituição dopoder” (HABERMAS, 1997, v. 2, p. 23).

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D habermasiano, segundo o qual “são válidas asnormas de ação às quais todos os possíveis atin-gidos poderiam dar o seu assentimento, na quali-dade de participantes de discursos racionais”(HABERMAS, 1997, v. 1, p. 142)22. É na práticaargumentativa, no give-and-take de razões, queos sujeitos pesam escolhas, avaliam propostas econstroem soluções coletivas para problemas com-plexos. Somente com a participação deles – quedeve ser paritária, vale frisar –, as soluçõesdirecionadas à subordinação poderiam conciliar adimensão econômica da justiça à cultural, de for-ma a amenizar “efeitos colaterais”.

A proposta de Fraser caminha no sentido deum ciclo virtuoso da participação: por meio dela,os sujeitos construiriam quadros interacionais maispropícios à inclusão de todos como pares por in-teiro em interações sociais. Uma vez mais, apon-tamos a forte relação dessa idéia com a visão deHabermas, para quem “a esfera pública políticatem que se estabilizar, num certo sentido, por simesma” (HABERMAS, 1997, v. 2, p. 102). É nopróprio ato da participação comunicativa que estase estabelece e se aprimora. Em Fraser, a partici-pação paritária, moralmente construída ejustificada, é o eixo que deveria guiar a teoria crí-tica.

Por fim, ainda no que concerne à relevânciadas práticas ordinárias, nota-se que Honneth(2003a; 2003b) também destaca o papel das lutasintersubjetivas cotidianamente travadas. Ele apontaque, por meio de relações afetivas, jurídicas e so-ciais, o sujeito constrói-se interacionalmente, e esseprocesso de construção é profundamente políti-co. É por meio das lutas (individuais ou coletivas)para fazerem-se reconhecidos – como pessoascarentes, como seres humanos dotados de igual-dade e como indivíduos passíveis de estima – queos sujeitos promovem o progresso moral da soci-edade, construindo padrões de interação mais jus-tos e favoráveis à auto-realização. Ainda queHonneth não defenda a troca argumentativa comoforma privilegiada de transformação política, o

foco no potencial emancipatório das relações co-tidianas e a visão de que a intersubjetividade éconstitutiva dos sujeitos, da cultura e das regrassociais são reconhecidas heranças do projeto deHabermas.

Honneth apóia seu projeto nas interações domundo da vida, enfocando, especificamente, umde seus componentes: a estrutura pessoal23. Opróprio Habermas já defendia o potencial da açãocomunicativa no desenvolvimento moral da soci-edade ao discorrer sobre seu impacto na forma-ção identitária. Para ele, a “racionalização das nor-mas sociais seria caracterizada precisamente porum grau reduzido de regressividade (o que no pla-no da estrutura da personalidade, deveria fazercrescer a média de tolerância, face ao conflito entreos papéis)” (HABERMAS, 1980a, p. 331). MasHabermas não coloca a formação de sujeitos do-tados de uma auto-realização positiva no centrode seu projeto. O objetivo da justiça, em sua vi-são, é mais amplo, sendo que há critérios moraisque não passam pela construção da autoconfiança,do auto-respeito e da auto-estima.

V.2. A dimensão material das lutas sociais

Outro aspecto a ser discutido em relação aostrês projetos de teoria crítica aqui em análise dizrespeito à forma como concebem a questãoredistributiva. Em nossa compreensão, todos elesreconhecem a relevância dela, embora lhe atribu-am diferentes acentos. Cabe ressaltar, antes detudo, que os três realizam um progressivo afasta-mento do legado marxista. Habermas, Honneth eFraser demonstram-se críticos da dualidade infraX superestrutura, depositando um peso bem mai-or na cultura e nas interações linguageiras do queMarx, mesmo em uma leitura pouco ortodoxa,poderia admitir. Observa-se, também, umdistanciamento de categorias caras ao marxismocomo ideologia e luta de classes. Ainda que Fraser(2003) adote o termo classe para se referir a for-mas de dominação econômica, ela não defendetratar-se de uma identidade coletiva coesa, volta-da para a tomada e supressão do Estado. Os trêsautores indicam o papel político (e emancipatório)

22 Embora Honneth afirme que, nesse aspecto, a visão deFraser descende diretamente da obra habermasiana, ele jul-ga tratar-se de uma apropriação pouco adequada. Para ele,Fraser sobrecarrega um conceito que se pretendia pura-mente procedimental: “A formação democrática da vonta-de que Habermas tem em mente com seu conceito de ‘sobe-rania popular’ engloba muito menos do que as intuiçõesnormativas de Fraser” (HONNETH, 2003b, p. 178).

23 Habermas (1987; 1990) assinala que o lebenswelt écomposto de três dimensões que se imbricam: a) cultura(estoque de conhecimento que abastece as interpretaçõesdos sujeitos); b) sociedade (ordens legitimadas que regulamafiliações) e c) estrutura pessoal (biografia e experiência doindivíduo).

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dos indivíduos em suas relações sociais, e não deuma classe ou coletividade específica. Honneth(2003b, p. 124) explicita esse aspecto ao declararque um dos equívocos de Marx foi pensar o pro-letariado como o representante dos descontentes.Habermas também diz não ser possível localizaras injustiças sociais em uma única classe.

Na obra de Habermas, a questão redistributivaaparece como que no pano de fundo. Ele reco-nhece a importância dos bens materiais e de for-mas mais equânimes de distribuição para que ossujeitos possam participar da vida social e dosprocessos de decisão política. Ele afirma, porexemplo, que, em Estados democráticos, o siste-ma dos direitos não pode fechar os olhos para ascondições de vida desiguais (HABERMAS, 2002,p. 243). Mas, como já dito, não é no reino daeconomia e dos recursos materiais que ele depo-sita suas esperanças emancipatórias. Um dos pon-tos centrais do projeto habermasiano é demons-trar, em debate com seus antecessoresfrankfurtianos, que a transformação da sociedadedeve ser guiada pela ação comunicativa voltadapara o entendimento. É por meio do uso racionale intersubjetivo da linguagem que os sujeitos po-dem buscar construir outros mundos possíveis,sedimentando novos padrões culturais, regrassociais e práticas de socialização no mundo davida e influenciando decisões formais.

Honneth acompanha Habermas de perto nessaempreitada, defendendo a tese de que o mundotransforma-se (e evolui moralmente) por meio daslutas intersubjetivas por reconhecimento mútuo.É no mundo da vida que se naturalizam e se ques-tionam enraizados padrões de desrespeito, sendoque os indivíduos buscam, diariamente, fazer-sereconhecidos para se auto-realizarem. A questãoda distribuição é pensada por Honneth (2003b) apartir de um modelo diferenciado de reconheci-mento. Como já abordado, ele alega que os sujei-tos lutam por bens materiais tanto para se veremconsiderados seres humanos de igual valor, comopara verem reconhecidos seus méritos e realiza-ções distintivos. É a partir da lógica do reconhe-cimento, e não simplesmente visando ao aumentode bens materiais, que os sujeitos aspirariam apráticas redistributivas.

Fraser, por sua vez, representa como que umaruptura nessa perspectiva centrada no mundo davida. Ela redirige a atenção da teoria crítica para ocampo da economia, argumentando que nem tudo

pode ser resolvido no plano da construção de sig-nificações. Se a comunicação intersubjetiva é fun-damental para a alteração de regras e para a cons-trução de padrões paritários de interação, sem umaigualdade de recursos materiais não há condiçõesobjetivas para que isso ocorra. Nesse sentido,Fraser busca marcar sua entrada no campo dateoria crítica, por uma reconsideração de aspec-tos que estavam em suas origens, mas que forampouco a pouco saindo de foco.

V.3. Direito e moral: justiça sem ética?

Um terceiro aspecto a ser pontuado no cruza-mento das obras de Honneth e Fraser com o lega-do habermasiano refere-se à noção de direito.Ambos colocam a idéia de direitos no cerne desuas propostas para uma teoria da justiça, enten-dendo que eles não são simplesmente o reflexo deinteresses de grupos dominantes, mas constru-ções intersubjetivas dotadas de uma carga moral.Nesse aspecto, eles dão seqüência à trilha desen-volvida por Habermas, para quem “o Direito é ummedium que possibilita o translado das estruturasde reconhecimento recíproco – que reconhece-mos nas interações simples e nas relações de soli-dariedade natural – para os complexos e cada vezmais anônimos domínios de ação de uma socie-dade diferenciada funcionalmente, onde aquelasestruturas simples assumem uma forma abstrata,porém impositiva” (HABERMAS, 1997, v. 2, p.46).

Ainda de acordo com Habermas, em condi-ções pós-metafísicas, “as ordens jurídicas só po-dem ser construídas e desenvolvidas à luz de prin-cípios justificados racionalmente, portantouniversalistas” (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 101).Tanto Honneth como Fraser partilham dessa vi-são, ancorando a construção das relações jurídi-cas na intersubjetividade mobilizada na comuni-cação. Ambos assumem a visão de que o “queassocia os parceiros do direito é, em última ins-tância, o laço lingüístico que mantém a coesão dequalquer comunidade comunicacional”(HABERMAS, 1997, v. 2, p. 31).

Apesar desse eixo comum, o uso que Honnethe Fraser fazem da noção de direitos é distinto.Nota-se que Honneth (2003a) os concebe comoexpectativas morais recíprocas (instituídas ounão), ao passo que Fraser busca trabalhar comuma acepção mais institucionalizada de direito. Opróprio Habermas já assinalava que se fala em di-

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RECONHECIMENTO EM DEBATE

reitos tanto do ponto de vista moral como do jurí-dico (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 110). Naacepção habermasiana, o direito está diretamenteligado à moral, e ambos participam dos proces-sos de integração social. Apesar dessacomplementaridade, Habermas faz questão de dis-tingui-los. “Em primeiro lugar, o direito não levaem conta a capacidade dos destinatários em ligara sua vontade, contando apenas com sua arbitra-riedade. Além disso, o direito abstrai da comple-xidade dos planos de ação a nível do mundo davida, limitando-se à relação externa da atuaçãointerativa e recíproca de determinados agentessociais típicos. Finalmente, o direito não conside-ra, conforme vimos, o tipo de motivação, conten-tando-se em enfocar o agir sob o ponto de vistade sua conformidade à regra” (idem, p. 147).

Além dessas diferenças, Habermas ressalta quea formação da moral está limitada à comunicaçãoque se processa no mundo da vida, ao passo queo direito se constitui como um subsistema socialque, ancorando-se nas práticas comunicativasordinárias, precisa traduzi-las em linguagens es-pecíficas passíveis de regular e integrar outrossistemas. Para Habermas, o direito atua como meiode transformação do poder comunicativo em po-der administrativo. Ele funciona como um elemen-to intermediário entre mundo da vida e sistemas,possibilitando a existência de trânsitos entre a lin-guagem ordinária e a formal.

A necessidade de converter-se em poder ad-ministrativo evidencia que o direito não pode serpensado como algo tão abstrato como a moral.“O direito não regula contextos interacionais emgeral, como é o caso da moral; mas serve comomedium para a auto-organização de comunidadesjurídicas que se afirmam, num ambiente social,sob determinadas condições históricas” (idem, p.191).

Isso quer dizer que, para Habermas, o direitonão pode ver-se inteiramente despido da ética. Aordem jurídica, em Habermas, “expressa os ide-ais de uma cultura política que propaga determi-nados valores e difunde concepções de bem”(MATTOS, 2006, p. 139). Ele concorda que odireito deve ser neutro, mas “se a neutralidade in-cluísse também a exclusão de questões éticas dodiscurso político em geral, este perderia sua forçaem termos de transformação racional de enfoquespré-políticos, de interpretações de necessidades ede orientações valorativas” (HABERMAS, 1997,

v. 2, p. 35). De acordo com ele, a neutralidadeadviria do argumentar; do ato de tornar-se com-preensível ao outro. “É o procedimento que pos-sui um caráter moral, portanto, universal”(MATTOS, 2006, p. 138). Ao regular uma comu-nidade concreta, discursos jurídicos devem abrir-se não apenas para o uso moral da razão prática,mas também para sua utilização pragmática e éti-co-política.

Interessa-nos frisar aqui, exatamente, a impor-tância desse uso ético. Segundo Habermas, osdiscursos ético-políticos são expressões de auto-entendimento, conduzindo à definição de projetosidentitários específicos. Isso implica que “todaordem jurídica é também expressão de uma for-ma de vida em particular, e não apenas oespelhamento do teor universal dos direitos fun-damentais” (HABERMAS, 2002, p. 253). A justi-ça, instituída no direito, não se rege por uma mo-ral completamente isenta de valores, mesmo por-que até as normas morais incorporam valores,desde que sejam generalizáveis (HABERMAS,1997, v. 1, p. 193). Para Habermas, a teoria dosdireitos não proíbe que os cidadãos validem umaconcepção de bem. O que ela proíbe é “que seprivilegie uma forma de vida em detrimento deoutra” (HABERMAS, 2002, p. 256).

Esses apontamentos atravessam o debate emtorno da definição do reconhecimento. Se Honnethparece mais fiel à proposta de Habermas ao de-fender uma justiça perpassada por concepçõeséticas, sua concepção de direito permanece bas-tante aquém da cuidadosa separação que Habermasdelineia em relação à moral. Fraser, por outro lado,trata o direito como regras normatizadas com pre-tensão à fundamentação sistemática e universal,aproximando-se de Habermas. Ela, no entanto,esvazia sua concepção ao defender uma moral quese quer justa sem eleger definições sobre o bemviver. Aliás, ela defende um valor específico – asociedade em que há paridade de participação –,mas insiste em dizer que tal definição é moldadaapenas pelos parâmetros procedimentais da cor-reção e não por uma concepção de bem.

VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou mapear o debate tra-vado em torno da teoria do reconhecimento, apoi-ando-se, sobretudo, no diálogo entre Axel Honnethe Nancy Fraser. Procuramos demonstrar as cate-gorias que norteiam os modelos de cada um de-les, bem como as críticas reciprocamente

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endereçadas. Abordamos, ainda, a inscrição de taldebate no campo da teoria crítica, evidenciando aforte ligação (bem como os pontos de afastamen-to e crítica) dos dois autores com JürgenHabermas.

Em nossa compreensão, um modelo analíticobastante rico para a análise de conflitos sociais elutas emancipatórias pode emergir do atrito entreessas três perspectivas. A partir da junção de ele-mentos indicados pelos três projetos de renova-ção da teoria crítica, pode-se compor um modelocomplexo de justiça, mais apto a compreender astramas relacionais por meio das quais a sociedadese repensa e se transforma. Esse modelo deveatentar, como o faz Honneth, para a importânciadas lutas intersubjetivas travadas quase que deforma subterrânea no cotidiano. É por meio delasque os sujeitos se auto-realizam e, por mais que ajustiça não se resuma à auto-realização, não podeser pensada sem ela. Como lembra Habermas,“uma teoria dos direitos entendida de maneira cor-reta vem exigir exatamente a política do reconhe-cimento que preserva a integridade do indivíduo,até nos contextos vitais que conformam sua iden-tidade” (HABERMAS, 2002, p. 243).

Mas o modelo também deve explicitar, seguin-do Fraser e Habermas, a importância de lutas co-letivas travadas argumentativamente em uma es-fera pública que permite a alteração de padrõesinteracionais instituídos e a revisão de regras in-formais de convivência. A participação paritáriaem tal esfera é fundamental, pois somente por meiodela a sociedade pode se reconstruir reflexivamen-te. Ainda que outras práticas comunicativas se-jam importantes para as lutas sociais, como deixaa entender Honneth, a livre troca de razões temum papel não negligenciável que possibilita aformalização do direito e sua ligação com a moral.Moral essa que não pode ser pensada comodesencarnada de concepções sobre o bem viver.O que é necessário é que as concepções éticasencarnadas no direito não sejam sectáticas ou re-pressivas, o que só pode ser alcançado por meiode uma livre e irrestrita deliberação entre os mem-bros de uma sociedade de jurisconsortes. Delibe-

ração essa em que se fazem presentes argumen-tos pragmáticos, éticos e morais, como apontaHabermas.

Outro aspecto central a esse modelo seria aatenção sistemática às desigualdades materiais,que não podem permanecer como pano de fundo.Como lembra Zurn, a agenda da teoria crítica pa-rece, em vários momentos, mais pautada pela re-levância filosófica das questões do que pela pro-moção de relações mais justas: “uma teoria quemantém a esperança de um retorno da justiça eco-nômica para o primeiro plano da teoria crítica pro-mete uma volta a questões tradicionais adiadas pormuito tempo” (ZURN, 2005, p. 90). Mesmo quea economia não possa ser pensada de forma ab-solutamente desligada de valores, ela possui umacerta autonomia, como indica Fraser. A justiçasocial deve incluir uma atenção permanente a essadimensão, fazendo-se necessário pensar formasde associação dela com os conflitos morais emtorno de padrões simbólicos. Esse esforço é, jus-tamente, a maior contribuição de Fraser, comobem assinala Zurn (2003). Seu dualismoperspectivo é bastante enriquecedor, desde quepermaneça aberto à incorporação de outras dimen-sões da justiça.

Ainda que não possamos desenvolver, nesteartigo, o modelo aqui esboçado, nossa intenção éevidenciar que as perspectivas de Honneth e Fraserpodem ser combinadas em um viés, simultanea-mente, atento à auto-realização de sujeitos e à par-ticipação paritária deles em interações sociais.Afinal, se é só por meio da participação interativaque a auto-realização pode ser pensada de manei-ra moral, é apenas através de uma socializaçãominimamente saudável que os indivíduos podemafirmar-se como sujeitos e participar(HABERMAS, 1997, v. 1, p. 111). Com base nes-ses dois pilares, pode-se conceber uma sociedadeque se constrói justa, por meio da troca livre epermanente de pretensões de validade criticáveis.Um tal modelo combinado poderia arejar a teoriacrítica, reagrupando ética e moral, cultura e eco-nomia, lutas invisíveis e lutas públicas, Honneth eFraser.

Ricardo Fabrino Mendonça ([email protected]) é doutorando pelo Programa de Pós-Gradu-ação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), bolsista da Fundaçãode Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e pesquisador do Grupo de Pesquisa emMídia e Espaço Público (EME).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 227-230 NOV. 2007

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RECOGNITION IN DEBATE: HONNETH’S AND FRASER’S MODELS AND THEIRRELATIONSHIP TO THE HABERMASIAN LEGACY

Ricardo Fabrino Mendonça

This article presents a sketch of the debate between Axel Honneth and Nancy Fraser over thenotion of recognition, seeking specifically to understand some of the aspects that run through theHabermasian project of critical theory. If at a first glimpse, Honneth’s proposal (a theory of justicebased on the notion of self-fulfillment) and that of Fraser (based on the principle of parity ofparticipation) appear to be unreconcilable, some common elements can be identified when we keepthe background in which these theories operate in mind. We believe that the possible production ofa model of recognition that is capable of combining Fraser’s and Honneth’s proposals depends uponmaking explicit some of the Habermasian premises that remain implicit within the perspectives weare analyzing here. This article sketches out comparisons and approximations between the threeauthors with particular regard to three aspects: the importance of ordinary interaction, the materialdimension of social struggles and the relationships between law and morality.

KEYWORDS: recognition; critical theory; Honneth; Fraser; Habermas.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 233-236 NOV. 2007

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RECONNAISSANCE EN DEBAT: LES MODELES DE HONNETH ET FRASER DANS LEURRAPPORT AVEC LE LEGS HABERMASIEN

Ricardo Fabrino Mendonça

Cet article cherche à tracer le débat entre Axel Honneth et Nancy Fraser autour de la notion dereconnaissance, et essaye de comprendre certains des aspects qui passent au travers du projethabermasien de la théorie critique. Si la proposition de Honneth (d’une théorie de la justice appuyéesur la notion d’autoréalisation) et celle de Fraser (fondée sur le principe de la parité de la participation)semblent, de prime abord, inconciliables, certains éléments comuns sont identifiés lorsqu’on prenden compte le fond sur lequel ils travaillent. Nous croyons que la production éventuelle d’un modèlede reconnaissance associant les propositions de Fraser et Honneth dépend de l’explicitation dequelques postulats habermasiens qui sont implicites aux perspectives de notre analyse. Le présentarticle fait des comparaisons et des rapprochements entre les trois auteurs en ce qui concerne troisaspects: l’importance des interactions ordinaires, la dimension matérielle des luttes sociales et lesrapports entre le droit et la morale.

MOTS-CLÉS: reconnaissance; théorie critique; Honneth; Fraser; Habermas.

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