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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
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OS INTELECTUAIS E O DEBATE DESENVOLVIMENTISTA NA INSTITUIÇÃO DA UNIVERSIDADE REGIONAL DO NORDESTE
(1952-1966): O ENSINO SUPERIOR E A CONFIGURAÇÃO DO “NOVO NORDESTE”1
Ramon de Alcântara Aleixo2
O debate educacional, ao longo das décadas de 1950 e 1960, encontrava-se
intrinsicamente ligado às discussões desenvolvimentistas. Emergiam, naquele cenário, os
chamados “desequilíbrios regionais”, quase sempre concebidos enquanto entraves ao projeto
de desenvolvimento regional e, consequentemente, nacional. As análises recaíam na
caracterização de “dois Brasis”: um “arcaico”, “subdesenvolvido”, localizado, sobretudo, no
Nordeste; outro “moderno”, identificado com o “progresso” e “desenvolvimento”, localizado
no centro-sul (FURTADO, 1967). A noção de "centro-periferia", aplicada à interpretação das
disparidades entre as nações, era transposta para as interpretações das desigualdades
regionais internas ao país.
Na região nordeste, a discussão acaba se concentrando na apropriação da ciência e da
técnica como forma de superar o “atraso histórico” que caracterizaria aquele espaço.
Adensava-se a ideia que advogava a “equação” dos chamados “problemas regionais” a partir
do conhecimento científico, assentado na instituição de escolas superiores e, posteriormente,
de universidades. Observa-se, nesse cenário, a mobilização de diversos intelectuais na
promoção da “causa do ensino superior”, que passa a ser considerada como a condição capaz
de reverter o quadro de subdesenvolvimento atribuído àquela região. Chamados a intervirem
nos “problemas da região”, parecia ser o “lugar” do intelectual que estava em mutação. Não
mais isolado em sua “torre de marfim”, o “intelectual moderno”, disseminava a imprensa do
período, deveria participar das “tarefas de engrandecimento de sua terra e de sua gente”3.
Na cidade de Campina Grande – Paraíba – o debate intelectual se consubstanciaria a
partir da criação de um conjunto de instituições como a Fundação para o Desenvolvimento
da Ciência e da Técnica (FUNDACT) e a Universidade Regional do Nordeste (URNe),
1 O presente texto consiste em um recorte da pesquisa de doutoramento desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sob a orientação do Prof. Dr. Jean Carlo de Carvalho Costa e financiada pelo CNPq (2014-2018).
2 Mestre em Educação pelo PPGE/UFPB. E-Mail: <[email protected]>. 3 ANDRADE, José Lopes de. Papel dos intelectuais. Diário da Borborema. Campina Grande, 08 ago. 1958. Seção
Homens & Fatos, p. 02.
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voltadas para a discussão da problemática regional a partir do binômico ciência e técnica. O
presente estudo objetiva problematizar a atuação dos intelectuais em sua relação com o
debate desenvolvimentista, enfatizando, nesse cenário, a centralidade adquirida pelo ensino
superior na configuração do que se denominou de “Novo Nordeste”. O debate em torno da
instituição da URNe galvanizaria um espectro difuso de concepções acerca dos caminhos
considerados como legítimos para inserir o Nordeste na senda do desenvolvimentismo.
Aglutinando diversos intelectuais, a URNe passa a defender o binômio ciência e técnica
enquanto elemento propulsor do chamado desenvolvimento regional. Tratava-se da defesa da
“cultura interessada” como condição precípua para a instituição de “um novo conjunto de
saberes” voltados ao estudo dos “problemas da região”.
Propomo-nos, ao longo desse estudo, analisar a atuação de dois intelectuais no debate
em prol da instituição da URNe: Edvaldo de Souza do Ó (1929-1993) e José Lopes de
Andrade (1914-1980). Integrantes do grupo denominado por Lima (2012) como
“desenvolvimentistas”, esses intelectuais ocuparam posições estratégicas na imprensa e na
administração pública, mobilizando as diversas espécies de capital em jogo nesses espaços
para a realização de seus projetos. Edvaldo do Ó chegou a ocupar o cargo de Reitor da URNe
entre 1966 e 1969. Economista, graduado pela Universidade de Pernambuco, exerceu
atividades na Diretoria de Planejamento na Prefeitura Municipal de Campina Grande, tendo
sido Diretor executivo da Companhia de Industrialização de Campina Grande (CINGRA), do
Saneamento de Campina Grande (SANESA), bem como Diretor de Educação na gestão do
Prefeito Elpídeo de Almeida (1955-1959). José Lopes de Andrade transitou por diversos
cargos no plano do executivo, tendo sido chefe da casa civil na gestão de José Américo de
Almeida à frente do Governo do Estado da Paraíba (1951-1956). Auto intitulava-se sociólogo,
embora fosse graduado em Filosofia pela Faculdade Nacional. Escreveu o livro Introdução à
Sociologia das Sêcas (1947), no qual aborda o “fenômeno” das secas mediante uma
perspectiva sociopolítica. É extensa a quantidade de artigos por ele publicados na imprensa
do período. Assinou, durante onze anos, a seção Homens & Fatos, no jornal Diário da
Borborema, constituindo essa seção em importante espaço na promoção dos debates
atinentes ao ensino superior em Campina Grande e na Paraíba.
Enquanto fontes de pesquisa nos apropriamos do jornal Diário da Borborema
(privilegiando o debate encetado pela seção Homens & Fatos), bem como dos dados
biográficos desses intelectuais. Dentre as biografias e/ ou produções que contemplam dados
biográficos desses intelectuais, destacamos o livro escrito pelo professor e ex-Reitor da
Universidade Estadual da Paraíba, Itan Pereira da Silva, intitulado Edvaldo do Ó: Um
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tropeiro da Borborema (tópicos de sua caminhada, Editora da Fundação Edvaldo do Ó,
1999) e a coletânea de artigos de José Lopes de Andrade, organizados pelo historiador José
Octávio de Arruda Melo, intitulado José Lopes de Andrade: Uma Militância na Imprensa
(Editora da Bolsa de Mercadorias da Paraíba, 1985).
As fontes impressas serão problematizadas a partir das contribuições teórico-
metodológicas do Contextualismo Linguístico de Quentin Skinner (1999, 2002) e John
Pocock (2003). Busca-se problematizar a escrita desses intelectuais enquanto “enunciado”,
isto é, como intervenção que visa demarcar e fixar formas de pensar que se expressam como
valores e modos de classificação que justificam a intervenção no debate político.
Compreendendo a linguagem como elemento político, torna-se possível analisar as diversas
formas como ela é mobilizada pelos intelectuais no intuito de intervirem na realidade. É
precisamente nesse ponto onde a linguagem se articula com a ação política. Mobilizando a
língua na defesa de seus projetos, esses intelectuais - mediante as posições ocupadas na
imprensa e/ou nas instituições – puderam lograr êxito nas campanhas que visavam inserir o
“Novo Nordeste” no concerto do ensino superior.
O texto que segue encontra-se organizado em duas partes. No primeiro momento, nos
debruçaremos sobre a atuação dos intelectuais desenvolvimentistas no debate que versava,
em grande medida, no escrutínio das “causas históricas” que caracterizariam o “atraso” ou,
para utilizarmos uma expressão recorrente no período, o “subdesenvolvimento” do nordeste.
A pluralidade de interpretações convergia, no entanto, para um ponto específico, qual seja: a
ideia de que apenas com “ciência e técnica” seria possível “reverter” o “atraso crônico” que até
então caracterizara o nordeste, inserindo essa região no âmbito do chamado “Novo
Nordeste”. Assentados nessa perspectiva, grande parte dos intelectuais desenvolvimentistas
passaram a defender a necessidade de se instituir uma Fundação Municipal voltada à criação
e manutenção das escolas de ensino superior em Campina Grande. Era instituída, em
dezembro de 1957, a FUNDACT, entidade que desempenhará papel fulcral no debate sobre o
ensino superior no cerne do projeto de desenvolvimento regional. Na segunda parte,
privilegiaremos a articulação dos intelectuais desenvolvimentistas na instituição da URNe,
entidade que acreditavam capaz de “orientar” o desenvolvimento da região nordeste.
Tratava-se, nos termos veiculados pelos intelectuais através da imprensa da cidade, da
produção de um “conjunto de saberes” voltados ao estudo dos “problemas da região”. O
edifício do ensino superior, assentado na defesa da “cultura interessada”, garantiria, na
percepção desses intelectuais, o “êxito” do projeto de desenvolvimento regional.
Vislumbravam, assim, a instituição do “Novo Nordeste” no concerto do ensino superior.
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“A Trincheira de Luta Avançada”: a FUNDACT, os intelectuais desenvolvimentistas e o projeto de instituição do “Novo Nordeste”
Não se compreende mais o intelectual isolado dos problemas gerais de sua sociedade, vivendo egoisticamente seu próprio sonho de homem superior [...] Seja o romancista, seja o poeta, seja o homem de estudo, seja o filósofo imerso nas profundas elucubrações – o intelectual moderno, o homem de letras da atualidade é um ser “situado” como qualquer outro. E mais do que o homem comum, sente ele a pressão dos problemas de seu tempo e a necessidade de resolvê-los (ANDRADE, 1958b, p. 02).
O trecho supracitado, extraído da seção assinada pelo professor José Lopes de
Andrade, evidencia certa concepção do papel que deveria ser assumido pela intelectualidade
na conjuntura histórico-educacional das décadas de 1950 e 1960. Nesse contexto, a
representação do intelectual encontra na ideia do engajamento na dinâmica da cidade a sua
condição máxima. Parecia que o tempo do diletantismo havia passado e era chegada a hora
da defesa de uma “cultura interessada”. O binômio ciência e técnica consistia, na visão dessa
intelectualidade, na condição capaz de retirar o Nordeste da situação de “atraso crônico”,
instituindo-o no que a linguagem do período denominou de “Novo Nordeste”. Nesse projeto,
os intelectuais são chamados a participarem enquanto agentes capazes de “despertarem” na
sociedade campinense a importância do ensino superior, mediante as premissas de uma
cultura assentada na ciência e na técnica, auxiliando na configuração de um outro, um “novo”
Nordeste. Afinal, ainda segundo o autor da seção, nesse mesmo texto, seria “através do
intelectual e da sua capacidade de criar, esquematizar e propagar ideias que a rotina das
coisas [seria] quebrada, que os novos métodos [seriam] inventados e postos a funcionar, que
o velho mundo em que vivemos se tem, constantemente, renovado”4.
O “êxito” que caracterizaria a instituição da FUNDACT, em dezembro de 1957, era
reverenciado pelo articulista, na seção que abre esse tópico, enquanto um “marco” na
aglutinação de intelectuais5 que, a partir de então, se debruçariam sobre o debate em torno
da “problemática regional”. O aspecto polemológico, presente no título que abre esse tópico,
nos sugere que os intelectuais que integravam o grupo desenvolvimentista haviam atribuído,
enquanto “inimigos” do projeto de desenvolvimento regional, a “ausência” (ou pequena
4 ANDRADE, José Lopes de. O Intelectual e a Sociedade. Diário da Borborema. Campina Grande, 07 de agosto de 1958b. Coluna Homens & Fatos, p. 02.
5 No que concerne ao conceito de intelectual, estamos compreendendo-o mediante a perspectiva de “geometria variável” (Sirinelli, 1996). Esse critério visa, em um primeiro momento, considerar no plano analítico os receptores e transmissores culturais, fechando, posteriormente, as lentes analíticas de modo a apreender aqueles que intervêm na dinâmica de uma dada espacialidade, através de modalidades como manifestos, petições, abaixo-assinados, movimentos intelectuais, etc.
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quantidade) de escolas de ensino superior na região. Essas instituições eram concebidas por
essa intelectualidade como espaços fulcrais para a “equação” dos problemas da região.
Nessa “luta”, os intelectuais desenvolvimentistas se apropriaram de diversos espaços,
no intuito de disseminarem suas ideias, promoverem os debates e, por conseguinte, os
embates advindos mediante o tensionamento dos projetos de ensino superior concebidos no
concerto do desenvolvimento regional. Dentre esses espaços, destacamos o jornal Diário da
Borborema, inaugurado em outubro de 1957 e que integrava a cadeia dos Diários
Associados. Esse jornal reuniu, nos anos iniciais de seu funcionamento, uma gama de
articulistas que se debruçavam sobre a temática do desenvolvimento do nordeste na
confluência do ensino superior. Esse debate aparecia com bastante frequência nas seções
assinadas por José Lopes de Andrade, Antônio Barroso Pontes, Osmário Lacet, Stênio Lopes,
Raymundo Asfóra, Garibaldi Dantas, Nilo Tavares, Adabel Rocha, Orlando Tejo e Elísio
Nepomuceno.
A frequência com que a temática do desenvolvimento regional aparece nesse jornal nos
permite observar a articulação de diversos integrantes do chamado “grupo dos
desenvolvimentistas” (LIMA, 2012) em torno do Diário da Borborema. O grupo, conforme
suscita o autor acima citado, era composto por amplos setores da sociedade campinense e
contemplava, na sua pauta de discussão, a defesa da educação e da industrialização como
“solução” para o desenvolvimento de Campina Grande e da própria região nordeste. A
ocupação de muitos dos integrantes do “grupo dos desenvolvimentistas” nos postos de
comando do Diário provavelmente contribuiu para dar maior visibilidade à temática do
ensino superior na cidade.
Constituía-se o Diário da Borborema em um espaço de grande importância para que os
intelectuais desenvolvimentistas pusessem em circulação suas ideias acerca dos projetos de
ensino superior no concerto das perspectivas de desenvolvimento econômico do nordeste.
Escrevendo no jornal, e mobilizando a atenção do público-leitor para determinados temas, os
intelectuais visavam, também, influir no campo do político. A atuação de José Lopes de
Andrade, através da seção Homens &Fatos, contribuirá para a constituição do Diário da
Borborema como o púlpito para que os intelectuais desenvolvimentistas veiculassem seus
discursos, defendessem seus projetos, visando, assim, intervir no debate político (POCOCK,
2003; SKINNER, 1999).
Nesse cenário, os intelectuais passam a mobilizar uma série de estratégias discursivas
que visavam interpretar as “causas” do “atraso histórico” que se atribuía à região nordeste.
Dentre essas interpretações, uma se destaca, notadamente pela recorrência com que aparece
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na seção assinada pelo professor José Lopes de Andrade. Tratava-se da “explicação histórica”
do “atraso crônico” em que teria se estruturado a “formação” do nordeste. Sob essa ótica, o
nordeste, apesar de ter sido a primeira “região” a experimentar o “desenvolvimento”, o teria
feito a base de condições “pré-científicas” ou “pré-técnicas”. O caráter “pré-científico” que
teria estruturado o desenvolvimento nordestino “explicaria”, na ótica do pensamento do
professor Lopes de Andrade, o “atraso” em que se encontrava a região em meados da década
de 1950, quando o Plano de Metas preconizado pelo governo de Juscelino Kubitscheck
começava a movimentar o país de norte a sul.
Considerando que a influência da presença lusitana no espaço que atualmente
corresponde à região nordeste teria se dado em moldes “post-renascimento”, mas não ainda
integrados às transformações engendradas pela “Revolução industrial”, Lopes de Andrade
atribui a esse aspecto uma das “causas” do “atraso histórico” da região nordeste. Experiência
contrária teria se dado na região sul/sudeste, haja vista que a alavancada do
“desenvolvimento” do sul/sudeste teria se dado sob as condições das migrações europeias, o
que, segundo Lopes de Andrade, teria colocado essa região em contato direto com o que o
autor denomina de “conhecimento politécnico”6.
Dessa forma, tornava-se nodal, para que a experiência de desenvolvimento do nordeste
fosse exitosa, “superar” o que o autor denomina de “atraso histórico”. Essa superação dar-se-
ia, notadamente, a partir de duas condições consideradas ausentes na região naquele
período, quais sejam: a ciência e a técnica. Somente através da ciência e da técnica, o
nordeste poderia engendrar o seu processo de industrialização, inserindo-se na perspectiva
do chamado Novo Nordeste:
O Nordeste, por força do povoamento inicial do Brasil, foi a primeira área brasileira a se desenvolver. Beneficiou-se, entretanto, de um desenvolvimento pré-científico e pré-técnico, se assim podemos dizer [...] Quando o Leste e o Sul do Brasil começam a experimentar extraordinário progresso, nos meados do século XIX e primeiro quartel do século XX, o Nordeste começa, ao contrário, a entrar em decadência [...]. O Nordeste caminhará fatalmente para o completo abandono, se não conseguir vencer dentro em breve o seu crônico subdesenvolvimento. Somos uma região pobre de dinheiro, é verdade, mas somos muito mais uma região pobre de conhecimentos aplicados à economia, uma região desvinculada do desenvolvimento da Ciência e da Técnica do século XX, teimando em viver
6 É preciso destacar que a interpretação feita pelo professor Lopes de Andrade baseia-se numa leitura anacrônica, haja vista a sua fundamentação em termos (desenvolvimento e região) que historicamente não estavam dados no período colonial. Todavia, a apropriação dessa e de outras leituras similares levadas à cabo pelo sociólogo serão aqui problematizadas a partir da sua inserção no contexto de produção. Dessa forma, o anacronismo identificado não nos interdita à apropriação do pensamento do autor. Muito pelo contrário, constitui aspecto fulcral na apreensão das matrizes explicativas que estavam sendo mobilizadas pela intelectualidade na compreensão daquele momento histórico.
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na era da máquina com o mesmo idealismo dos anos anteriores à Revolução Industrial (ANDRADE, 1957, p.02).
A língua, compreendida enquanto artefato político, passa a ser constantemente
mobilizada pelos intelectuais que escreviam no jornal de modo a constranger o poder público
a adotar ações mais enfáticas na estruturação do ensino superior na cidade. Dentre essas
ações, a criação de uma Fundação municipal que atuasse na criação e manutenção das
escolas superiores na cidade passa a estampar as páginas do Diário da Borborema ao longo
dos meses de outubro e novembro de 1957. A Fundação para o Desenvolvimento da Ciência e
da Técnica (FUNDACT) deveria atuar, segundo as proposições do professor José Lopes de
Andrade, enquanto “agência regional de serviços”, congregando, assim, os intelectuais que
subsidiariam os debates em torno da ciência e da técnica, de modo a conferir “maior
racionalidade” na organização do ensino superior na cidade.
Após uma série de debates travados por e através do Diário da Borborema a
FUNDACT seria instituída através da Lei municipal de Nº. 49, de 28 de dezembro de 1957.
Na seção Homens e Fatos do dia 30 de dezembro de 1957, Lopes de Andrade ressaltava a
importância da FUNDACT na “coordenação, estímulo e divulgação de pesquisas e trabalhos
científicos e tecnológicos em todos os ramos”. Essa prerrogativa era considerada de extrema
relevância, haja vista “a manutenção e desenvolvimento de institutos de grau superiores ou
instituições complementares”7. Analisando a legislação que cria a FUNDACT e institui seus
núcleos diretores, observamos as atribuições que lhe conferiam auxílio na manutenção das
Faculdades existentes na cidade naquele período (Faculdade de Filosofia de Campina
Grande, Faculdade de Serviço Social e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, esta última,
nunca implementada). Caberia à FUNDACT a realização de Conferências, bem como estudos
acerca das possibilidades de instituição de uma Universidade na cidade de Campina Grande.
A justificativa repousava na suposta função polarizadora que projetava Campina Grande
como “capital regional do nordeste”. O discurso crítico sobre o nordeste e a necessidade dessa
cidade em particular singularizar-se como instância mobilizadora desse “Novo Nordeste”
aparece de forma evidente.
Diversas foram as conferências proferidas por intelectuais no âmbito da FUNDACT e
que foram transcritas pelo Diário da Borborema, mais precisamente na seção Homens e
Fatos. Destacamos a edição do dia 26 de agosto de 1958, que traz parte da Conferência
realizada pelo professor José Lopes de Andrade, realizada no dia 21 de agosto do mesmo ano.
7 ANDRADE, José Lopes de. Desenvolvimento e Revolução Industrial. Diário da Borborema. Campina Grande, 31 de dezembro de 1957. Seção Homens & Fatos, p. 02.
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Na ocasião, o intelectual apontava a dicotomia socioeconômica existente no interior da
própria região nordeste, remontando aos escritos de Capistrano de Abreu na caracterização
do Nordeste-Exterior e do Nordeste-Interior. O discurso aponta para a polarização de ambos
os nordestes, evidenciando uma suposta necessidade de investimento socioeconômico no
âmbito do chamado Nordeste Interior8. A este seguimento da região, caberia a tarefa de
polarizar a concentração de investimentos, garantindo, assim, o desenvolvimento da região
como um todo:
No Nordeste, existe uma dicotomia sócio-econômica reconhecida por estudiosos dos mais diversos matizes: o Nordeste do Litoral (da cana-de-açúcar) e o Nordeste do Interior (do algodão e das fazendas de gado). Já o velho historiador Capistrano de Abreu falava dessa dicotomia sob os nomes de ‘Nordeste-Interior’ e ‘Nordeste-Exterior’, e um autor contemporâneo, Djacir Menezes, escreveu um livro que se tornou indispensável na consulta bibliográfica regional com um título bastante significativo a esse respeito: ‘O Outro Nordeste’, querendo aludir ao Nordeste das secas e dos cangaceiros, dos agrestes e dos sertões, em oposição ao Nordeste chuvoso e dos senhores-de-engenho, dos brejos, das praias e coqueirais. A Fundação para o Desenvolvimento da Ciência e da Técnica, cuja implantação iniciamos em Campina Grande, tem por finalidade específica, por um lado, a valorização e, por outro, o apoio a expansão de um daqueles Nordestes: precisamente o ‘Nordeste-Interior’ de que falava Capistrano de Abreu e de que a cidade de Campina Grande é uma das mais, senão a mais importante unidade territorial homogênea e com a mais pronunciada capacidade de polarizar o desenvolvimento das demais unidades que formam a região (ANDRADE, 1958c, p. 02).
Os intelectuais desenvolvimentistas, escrevendo no Diário da Borborema, enfatizarão
a ideia de que a ciência e a técnica (mediante a instituição das escolas superiores)
consistiriam elementos indispensáveis à inserção das regiões periféricas no cerne do projeto
desenvolvimentista. Conforme a leitura partilhada por muitos desses intelectuais, pouco
adiantaria os investimentos direcionados ao nordeste se a região não contasse com elementos
técnicos-científicos que pudessem “racionalizar” as atividades aqui instituídas ou as que
ainda poderiam ser implementadas. Do contrário, permaneceria o quadro de dependência
(econômica, mas, sobretudo, técnico-científica) da região nordeste em relação ao outras
regiões “mais desenvolvidas”. Afinal, esses intelectuais partilhavam da ideia de que quando
8 Observa-se a apropriação, por parte dos intelectuais que escreviam na imprensa da cidade, das teorias dualistas para se re-pensar a problemática regional. Procedia-se, assim, a uma diferenciação no interior da própria região nordeste. Partindo da constatação da existência de “dois nordeste”: o “nordeste exterior” (do litoral) e o “nordeste interior” (dos sertões), a intelectualidade passa a advogar a atribuição desse “outro nordeste” (“nordeste interior”) na edificação do que denominavam de “conhecimento politécnico”. Na medida em que a faixa litorânea dos estados nordestinos havia entrado em contato com a cultura humanista, ao longo do período da colonização, prevalecendo nas capitais desses estados os cursos clássicos, caberia ao nordeste interior (cuja cidade de Campina Grande os intelectuais imaginavam representar essa porção geográfica) a tarefa de erigir as bases do edifício do “novo nordeste”. Observa-se, na composição desse debate, a interseção das perspectivas culturalistas, da vertente dualista (“desequilíbrios regionais”) e, a partir da década de 1960, da Ciência Regional.
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uma nação ou região vivenciavam o “progresso econômico” sem disporem de um “progresso
cultural” (este último sempre concebido em termos de ciência e técnica), elas estariam se
beneficiando, também, da experiência de outras nações, povos e comunidades. Essa
“dependência cultural” poderia, segundo a produção discursiva veiculada pelos intelectuais,
fazer com que o progresso/ desenvolvimento local passasse a ser “controlado por fora”,
atendendo, assim, aos interesses de outras regiões. Para essa intelectualidade, a instituição
do “Novo Nordeste” só poderia ser efetivada no concerto da ciência e da técnica:
O pensamento que presidiu a criação da FUNDACT inspirou-se nas pesquisas e no resultado de estudo dos maiores homens de ciência e tecnologistas contemporâneos, que acreditam que todo progresso econômico e social está necessariamente apoiado no progresso científico e tecnológico. Quando uma Nação, um Povo, ou uma Comunidade desfrutam de progresso econômico e social sem disporem de um progresso cultural –ciência e técnica- correspondente, podemos afirmar que eles estão se beneficiando, de uma maneira qualquer, da experiência de outras Nações, Povos ou Comunidade (ANDRADE, 1958d, p. 02).
Balizados pela perspectiva de que o desenvolvimento regional apenas se efetivaria no
concerto do ensino superior, os intelectuais desenvolvimentistas promoverão diversas
campanhas, no início da década de 1960, reivindicando para Campina Grande (e para a
porção geográfica que acreditavam que essa cidade representava: o “Nordeste-interior”) a
instituição de uma Universidade. A justificativa repousava na ideia de que a equação dos
“problemas do nordeste” só poderia se efetivar mediante o advento da universidade. Os
intelectuais promoverão uma série de mobilizações visando instituir uma universidade na
cidade. Dentre essas campanhas, destacamos a promoção do Inquérito educacional firmado
entre a FUNDACT, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e o
Instituto de Pesquisas Joaquim Nabuco. O inquérito em questão visava analisar as condições
para a instituição de uma Fundação educacional ou Universidade na cidade de Campina
Grande e foi amplamente promovido pelos intelectuais que escreviam no Diário da
Borborema.
“Universidade Para a Região”: os intelectuais desenvolvimentistas e a instituição da URNe.
Mobilizando o repertório de imagens e discursos que advogam para a cidade de
Campina Grande parcela importante na construção do chamado Novo Nordeste, os
intelectuais que escreviam no Diário da Borborema reiteram o binômio ciência e técnica
como elementos basilares na produção de um novo tipo de saber, saber este “ajustado” aos
chamados “problemas da Região”. Parte-se da constatação da situação identificada pela
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intelectualidade como sendo de “atraso cultural”, vislumbrando perspectivas de ultrapassar
esse momento, mediante a apropriação da ciência e da técnica na construção do “Novo
Nordeste”.
A necessidade de se unificarem as unidades de ensino superior então existentes na
cidade sob a égide da Universidade passa a circular de forma constante nos meios impressos,
bem como nos debates travados no interior instituições, como a FUNDACT. A imprensa, seja
através dos editoriais ou das seções especializadas em educação, apresenta-se como o púlpito
privilegiado pela intelectualidade na veiculação de seus discursos. Os editoriais de o Diário
da Borborema, bem como a seção Homens & Fatos endossam o discurso veiculado nos
espaços institucionais da FUNDACT, fazendo coro à “necessidade” de se instituírem um
“conjunto de saberes” voltados ao estudo dos “problemas da região”. A tônica desses
discursos parece se concentrar na preponderância da instituição universidade, substituindo o
“antigo modelo das faculdades isoladas” até então vigente. Tal perspectiva era defendida
como a “única” solução possível em face da necessidade de unificação do “esforço” até então
empreendido, seja pela inciativa pública ou privada, no que concerne à instituição e
manutenção das escolas de nível superior9.
Nesse cenário, intensificam-se os debates lavados a cabo pelos intelectuais através da
imprensa da cidade. O inquérito socioeducacional passa a estampar as páginas da imprensa
campinense, seja nos editoriais do Diário da Borborema ou nas seções especializadas em
educação. Percebe-se a um só tempo a divulgação das etapas da pesquisa, bem como a
persuasão do público leitor, tendo em vista a mobilização dos diversos articulistas na
elucidação das “causas” que poderiam “estrangular” o desenvolvimento vivido pela cidade no
período. O que se deslinda nas páginas da imprensa do período é a formulação de perguntas
por parte da intelectualidade no que concerne a constituição de um “corpo de saberes”
adaptados aos problemas da Região. Nesse processo, a atuação da intelectualidade torna-se
fulcral, na medida em que atua ora na reivindicação da constituição do ensino superior na
cidade, ora na promoção das atividades realizadas10.
Após extenso debate travado através da e na imprensa da cidade, o Inquérito
Educacional recomendaria a criação de uma Universidade, objetivando atender as
“demandas” técnico-científicas reclamadas pelo desenvolvimento regional. O texto final,
publicado pelo Diário da Borborema, é subsidiado por dados estatísticos atinentes à
arrecadação tributária do município de Campina Grande, do contingente populacional em
9 Universidade para a Região. Diário da Borborema. Campina Grande. 01 jan. 1965, p. 02- Editorial. 10 Pesquisadores recebem apoio da população de Campina Grande. 20 fev. 1965, p. 01.
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seu entorno, bem como pela questão que parece fulcral àquela intelectualidade, qual seja: a
necessidade apontada pelo estudo no que tange a “formação” e “melhoria” dos “recursos
físicos e humanos” conclamados na alavancada desenvolvimentista que então se vislumbrava.
Nessa questão, parece centrar-se o eixo principal das análises encetadas, haja vista a
constante reiteração ao longo do Inquérito educacional da necessidade de se constituírem um
“conjunto de saberes” voltados ao estudo dos chamados problemas regionais.
Nesses termos far-se-ia imprescindível a organização do ensino superior existente na
cidade a partir do instituto da universidade, bem como a sua estruturação mediante o que a
intelectualidade denominava de “Universidade Moderna”. A denominação “Universidade
Moderna” visava se contrapor à perspectiva do que os intelectuais desenvolvimentistas
denominavam de “Universidade Tradicional”, esta última assentada na ideia de que à
Universidade caberia o estudo e a promoção da “cultura desinteressada”. Buscando se
distanciar dessa concepção, a intelectualidade à frente da instituição da URNe atribuía a essa
universidade a tarefa de lançar as bases para a defesa da “cultura interessada”, na perspectiva
da Ciência e Técnica, e tendo por objetivo nevrálgico auxiliar, mediante a “formação e
melhoria dos recursos existentes na região”, o projeto de desenvolvimento do Nordeste. É
precisamente nesse aspecto que residiria o caráter “inovador” que se atribuía a instituição,
qual seja: o distanciamento pretendido em face do que esses intelectuais identificavam com a
perspectiva diletante do ensino superior. O diletantismo em que se assentaria o ensino
superior no Brasil remontava, segundo as interpretações encetadas por José Lopes de
Andrade e Edvaldo do Ó, à chamada “tradição do canudo de bacharel”, não correspondendo,
essa tradição, aos desafios suscitados com o “advento” do “Novo Nordeste”.
Dessa forma, a estruturação do ensino superior no interior da região nordeste,
preconizada pela URNe, deveria se pautar pela formação de “fatores” (e não somente de
“doutores”) demandados pelo projeto desenvolvimentista regional. Nesse aspecto, José Lopes
de Andrade reitera por diversas vezes em sua coluna a necessidade de se pensar a
estruturação dos currículos da instituição mediante a interdependência dos dois ciclos de
formação: o técnico-científico (“nível básico”) e o profissional (nível superior). Essa
perspectiva visava, segundo o colunista, “eliminar” o que ele identificava como sendo o
“ranço elitista” do ensino superior brasileiro, promovendo simultaneamente a formação de
profissionais técnicos e de nível superior. Do consórcio dessa perspectiva dependeria o êxito
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do projeto da URNe. Escrevendo na seção Homens & Fatos11, de 19 de março de 1966, Lopes
de Andrade ressaltava:
Um aspecto, desde início, enfatizado na estruturação da nova UNIVERSIDADE REGIONAL DO NORDESTE, cuja sede será em Campina Grande, é o da sua estreita vinculação à realidade específica do Nordeste. Mas para isso, a nova Universidade deverá fugir, o mais que for possível, aos padrões tradicionais da Universidade meramente formadora de profissionais engenheiros, médicos, advogados, economistas, químicos, etc. Os dois ciclos fundamentais da formação técnico-científica- o básico e o profissional terão de ser, nitidamente, complementares, e não exclusivos ou predominantes [...]A nova UNIVERSIDADE REGIONAL DO NORDESTE, se propõe orientar suas atividades, especificamente, no sentido de ajudar o desenvolvimento regional. Não conseguirá jamais esse intento se persistir na ênfase particular à formação do que, em linguagem brasileira e portuguesa, já se convencionou chamar de “doutores” (ANDRADE, 1966a, p. 02).
A atuação de José Lopes de Andrade na imprensa soma-se à ação dos
desenvolvimentistas e de outros intelectuais e políticos engajados na “causa educacional”,
constituindo, assim, um amplo campo de debate das questões atinentes ao desenvolvimento
da região e, por conseguinte, da “função” da educação superior na operacionalização daquele
projeto. A tônica dos escritos, como dito anteriormente, recai sobre a necessidade de se
promover um “equilíbrio” entre as atividades econômicas e a dimensão cultural, esta última
considerada “esquecida”, “marginalizada” pelas “elites políticas” da cidade:
[...] O setor cultural, tenho afirmado reiteradamente nesta coluna, foi o que mais se atrasou em Campina Grande, quer o encaremos pelo lado da cultura artística, quer pelo da cultura científica ou tecnológica. O avanço no Comércio, na Indústria e na Lavoura, induzido de outros centros mais adiantados, poderá ressentir-se mortalmente do “cultural lang” – do atraso cultural – e levar a cidade ao definhamento, o que para muitos já estaria, inclusive, ocorrendo. Daí o apoio integral que precisa merecer de todos o movimento cultural em expansão sob várias formas (ANDRADE, 1966b, p. 02).
O que se observa, ao longo desse debate, é o atrelamento do debate desenvolvimentista
à necessidade de produção de um saber “ajustado” às demandas da região. Esta proposição
não nos permite reduzir o debate educacional a uma abordagem economicista. Distante
disso, acreditamos que o que se delineava, naquele momento, consistia na tentativa – levada
a cabo pelos intelectuais – de se produzir um “conjunto de saberes” voltados ao estudo dos
problemas regionais. Nesse debate, a ciência e técnica, consubstanciadas na instituição da
“Universidade Moderna”, possibilitaria a abordagem dos “problemas regionais”, que segundo
11 ANDRADE, José Lopes de. Formação básica e profissional. Diário da Borborema. Campina Grande, 19 mar. 1966. Coluna Homens & Fatos, p. 02.
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os intelectuais desenvolvimentistas, estariam há muito tempo “esperando” os “seus” técnicos
e cientistas.
A produção de um saber “ajustado” às demandas da região consistia, assim, no objetivo
principal que a URNe visava se debruçar, acreditando solucionar, dessa forma, os “problemas
crônicos” que arrastavam o Nordeste à situação de atraso e pauperismo. “Conhecer para
prover” era o tema por diversas vezes reiterado pela intelectualidade à frente do debate. O
conhecimento “exato” da “realidade nordestina” possibilitaria, segundo essa perspectiva, a
abordagem dos problemas regionais de forma a eliminarem-se as causas do sub-
desenvolvimento, até então abordadas em termos de “policiamento dos seus efeitos”.
Todavia, não bastava o “simples” conhecimento da problemática regional, era preciso que
esse conhecimento fosse assentado em bases científicas, fundamentados na “ciência e na
técnica”, fugindo, assim, do “empirismo” que na percepção daquela intelectualidade havia,
até então, caracterizado o cenário intelectual na região nordeste.
Revestido dessa tônica, o discurso do Reitor da URNe, na solenidade de inauguração da
instituição, evidencia a perspectiva defendida pela intelectualidade à frente do debate, qual
seja: a “iminente” necessidade de se instituir uma Universidade no interior da região
nordeste, de forma a “promover” o que esses intelectuais denominavam como “um conjunto
de saberes ajustados aos problemas da região”. A cerimônia de instituição da Universidade
consiste, assim, em um importante momento na percepção das sociabilidades intelectuais e
das tramas do político que sedimentam a relação entre educação e regionalismo. O evento foi
amplamente divulgado pela imprensa da cidade e do estado da Paraíba.
A cerimônia de abertura, realizada no dia 30 de abril de 1966, contou com a
participação de uma gama de políticos e intelectuais, reunidos no Teatro Municipal da cidade
de Campina Grande. O discurso proferido pelo vice-reitor, Edvaldo de Souza do Ó,
estabeleceu um panorama acerca da história da educação superior na região, enfatizando o
papel de Campina Grande no que considerava como sendo a “revolução cultural” que
auxiliaria a instituição do chamado Novo Nordeste.
A cerimônia de inauguração da URNe delineia-se, assim, enquanto importante
momento no que concerne às sociabilidades intelectuais, bem como das tramas do político
que configuram a própria história da instituição. Os discursos proferidos por Edvaldo do Ó,
José Lopes de Andrade e Williams de Souza Arruda abordam os aspectos nodais que
constituíam o projeto do grupo dos desenvolvimentistas. O evento receberia, também,
expressiva cobertura da imprensa da cidade, cuja cerimônia de instalação da URNe era
anunciada como o “novo marco da história da educação campinense”.
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Instituída a URNe, apenas as Faculdades de Filosofia (secção de Línguas Clássicas e
Anglo-Germânicas) e Serviço Social funcionariam ao longo do ano de 1966. As demais
Faculdades criadas (Administração, Direito e Química Industrial), bem como os Institutos
Centrais (Instituto Central de Ciências Básicas, Instituto Central de Ciências Humanas,
Instituto Central de Geociências, Instituto Central de Letras e Instituto Central de Artes)
entrariam em funcionamento apenas no início do ano de 1967. A estruturação da URNe em
Institutos Centrais e Faculdades pode ser visto como uma forma de integrar os ciclos básicos
(técnico e de nível médio) ao ensino oferecido nas Faculdades. Dessa forma, nos Institutos
Centrais, o alunado receberia os cursos introdutórios ou de nível técnico, complementando a
formação nas respectivas Faculdades. Essa estrutura pode ser também encarada como uma
forma de resolver o impasse com aquele que parecia ser o principal problema do ensino
superior no período: os chamados “excedentes”. A oferta do ciclo básico no primeiro ano
funcionaria como forma de absorver a quantidade de alunos que mesmo sendo aprovados no
concurso vestibular não encontravam vagas nas Faculdades.
A URNe prosseguiria a experiência da integração dos ciclos básico e superior até o final
da década de 1960. Nesse período, o recrudescimento da repressão no contexto de instituição
do AI-5 provocaria uma série de demissões e cassações no interior dessa universidade.
Verifica-se a destituição do reitor da Universidade, seguida de uma significativa modificação
no projeto previamente traçado para a instituição12.
O Decreto Nº. 105 de 9 de abril de 196913 teria partido das determinações da Guarnição
Militar da Paraíba, sob o comando do General de Brigada Venitius Nazareth Notare. A
destituição de Edvaldo do Ó do reitorado da URNe adviria, segundo o Decreto que o afastou,
da sua “atuação calamitosa enquanto professor da FACE”14, bem como em virtude de sua
“deficiente formação humanística”. A sua cassação teria surgido mediante um Inquérito
aberto na FACE, presidida pelo professor José Paulino Filho, encontrando acolhida nos
meios civis e militares interessados na sua destituição do cargo.
12 A atuação do Estado Autoritário, instalado em abril de 1964, configura-se mediante a instituição dos chamados Atos Institucionais. Tais Atos consistiam em mecanismos jurídicos com vistas a manter a legitimidade da Constituição Federal de 1946 mediante as ações de consolidação do estado de exceção. Dentre os Atos Institucionais impetrados, destaca-se, pelo caráter coercitivo, o Ato número cinco. O AI-5 incorporou a disposição dos Atos anteriores, com o agravante de não ter prazo para a sua vigência; decretou o recesso do Congresso Nacional e dos órgãos legislativos estaduais e municipais por quase um ano; suspendeu, por dez anos, os direitos políticos de vários parlamentares; determinou profundas restrições às ações do judiciário e aboliu o habeas corpus para os chamados “crimes políticos” (ALVES, 2005, p. 128-135).
13 CAMPINA GRANDE/PB. Decreto Nº. 105 de 9 de abril de 1969. Dispõe sobre a destituição do Presidente da Fundação Universidade Regional do Nordeste e Reitor da mesma Universidade. SEMANÁRIO OFICIAL [DA] PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINA GRANDE-PB, Poder Executivo, 1969.
14 Faculdade de Ciências Econômicas (FACE).
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É possível que a suposta “atuação calamitosa” enquanto professor da FACE tenha
contribuído para a sua cassação das funções de Reitor. Afinal, Edvaldo do Ó acumulava o
exercício da Reitoria da URNe, a direção da Companhia de Eletricidade da Borborema
(CELB) e do Treze Futebol Clube com as suas tarefas docentes na FACE, o que,
provavelmente, inviabilizava uma dedicação mais substancial à sala de aula. Sob a vigência
do AI-5, as acusações feitas ao reitor teriam encontrado ressonância, mediante a articulação
de pessoas interessadas na sua destituição da Reitoria.
A cassação de Edvaldo do Ó pode ter sido resultado de uma confluência de fatores (os
atritos provocados em virtude de sua personalidade autoritária, o “baixo desempenho”
verificado em sua atuação enquanto professor da FACE, os interesses de outras pessoas que
desejavam ascender ao cargo de Reitor da URNe, dentre outros) que, em virtude da
exacerbação autoritária então vivida no país, acabaram encontrando meios de se realizar,
afastando-o da Reitoria da Universidade Regional.
Em solidariedade a Edvaldo do Ó, todos os professores integrantes do Conselho Diretor
da URNe - Cônego Emídio Viana, José Lopes de Andrade, Evaldo Gonçalves e Arlindo
Pereira Almeida - renunciaram aos seus mandatos, sendo substituídos pelos professores
Antônio Lucena (posteriormente eleito vice-Reitor), Amauri Pinto, Luiz Mota Filho e Firmino
Brasileiro15. Ao cargo de Reitor da URNe foi designado, pelo Decreto Número 106 de 10 de
abril de 196916, o professor José Geraldo de Araújo, sendo posteriormente substituído pelo
professor Antônio Lucena17.
À mudança na direção da instituição seguiram-se uma série de transformações, dentre
as quais se destacam a destituição de todos os diretores das Faculdades e Institutos de Ensino
integrantes da Universidade, a extinção dos Institutos Centrais (concentrando todo o ensino
nas Faculdades), bem como a progressiva departamentalização da instituição, esta última em
consonância com a Reforma do Ensino Superior então em andamento. Afastados da direção e
dos principais cargos da instituição, o grupo dos desenvolvimentistas teve seu espaço
substancialmente reduzido, o que implicou, provavelmente, na mudança do projeto pensado
para a URNe.
É necessário salientar que a perda do espaço de atuação, por parte do grupo dos
desenvolvimentistas, não se fez sentir “apenas” no âmbito da URNe. Destituídos dos órgãos
15 FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE REGIONAL DO NORDESTE, 1971, p. 165-168. 16 CAMPINA GRANDE/PB. Decreto Nº. 106 de 10 de abril de 1969. Dispõe sobre a nomeação do Presidente da
Fundação Universidade Regional do Nordeste e Reitor da mesma Universidade. SEMANÁRIO OFICIAL [DA] PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINA GRANDE-PB, Poder Executivo, 1969.
17 FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE REGIONAL DO NORDESTE, 1971, p. 187.
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de planejamento da Prefeitura Municipal de Campina Grande, a centralização impetrada pelo
projeto levado à cabo pelos militares levaria a desarticulação do grupo, o que reverberava,
por conseguinte, na desorientação do projeto econômico, político e educacional que até então
vinha gerindo a cidade de Campina Grande. Frente a esse cenário, o trânsito de alguns
intelectuais nos veículos da imprensa também seria afetado. É significativo o
“desparecimento” da seção diária assinada pelo professor José Lopes de Andrade no Diário
da Borborema. É provável, assim, que a censura ao articulista esteja relacionada à mudança
na linha editorial do referido jornal, com a substituição de grande parte de seus articulistas
por pessoas “mais afinadas” às diretrizes do regime em voga. Dessa forma, as críticas que
vinham sendo tecidas pelo professor Lopes de Andrade, tendo em vista o processo de
intensificação do autoritarismo, podem ter soado enquanto comportamento “subversivo”,
levando-o ao afastamento em definitivo do jornal.
Destituídos dos principais postos de comando da Universidade e da imprensa, os
intelectuais desenvolvimentistas se viram fragmentados e sem espaços de atuação, haja vista
o recrudescimento da repressão pós-AI-518. As transformações processadas no âmbito da
URNe também implicariam numa viragem de perspectiva, levando, progressivamente, à
descaracterização do projeto originalmente pensado para a instituição.
Frente a esse cenário faz necessário indagarmos: como as transformações verificadas
no interior da URNe atuaram na reorientação do projeto desenvolvimentista incialmente
pensado para a universidade? De que forma essas transformações impingiram nova
conotação ao projeto de instituição do “Novo Nordeste” no concerto do ensino superior? As
“respostas” a tais questões devem ser buscadas na relação estabelecida entre a instituição e o
poder político, bem como na ascensão de um novo grupo de intelectuais e políticos à frente
da universidade, cuja orientação com as diretrizes em voga certamente conformariam a
dinâmica educacional da URNe. É preciso ainda que consideremos as transformações
inerentes ao próprio pensamento regionalista que, da perspectiva de “correção” dos
chamados “desequilíbrios regionais”, passa a assumir uma posição de crítica e revisão da
18 Após a sua cassação do cargo de Reitor da URNe, não encontrando espaço de atuação no setor público, Edvaldo do Ó se dedicaria ao campo da iniciativa privada. Em 1975, atuaria na instituição da Bolsa de Mercadorias da Paraíba. Com a Anistia, em 1979, foi readmitido à Universidade Regional. Foi-lhe então delegado o cargo de Diretor do Museu de Artes, vinculado à URNe, onde permaneceu por apenas alguns meses, em virtude de atritos com a administração central da instituição. Adquiriu, no início dos anos 1980, os direitos do jornal A Gazeta do Sertão. Em 1988, candidatou-se à Prefeitura de Campina Grande, obtendo 2.070 votos (2,02% dos votos válidos). Nos últimos anos de vida, dedicou-se às atividades desenvolvidas na Bolsa de Mercadorias e ao jornal A Gazeta do Sertão (SILVA, 1999). Com o seu afastamento do Conselho Diretor da URNe, José Lopes de Andrade passou a residir no Rio de Janeiro. Com a anistia, retornaria a Campina Grande, falecendo em maio de 1980.
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“concepção dual” que estaria presente na ideia de um “nordeste subdesenvolvido” versus um
“centro-sul desenvolvido”, reverberando, também, na dinâmica da instituição. Defendemos,
assim, a ideia de que simultaneamente à intervenção processada no âmbito da URNe (com a
destituição de muitos dos intelectuais desenvolvimentistas dos postos de direção) operou-se
uma reconfiguração do projeto inicialmente pensado por esses intelectuais para a
universidade.
Considerações Finais
Entre as décadas de 1950 e 1960, encontrou eco, na cidade de Campina Grande, a ideia
de que o desenvolvimento econômico do nordeste não poderia se fazer sem a estruturação do
ensino superior. Nesse cenário, destaca-se a intensificação do debate, assentado na
interseção de diversas perspectivas analíticas (tais com a vertente culturalista, dos
“desequilíbrios regionais” e da “Ciência Regional”), que advogava para a cidade de Campina
Grande a “tarefa” de encabeçar o chamado “desenvolvimento cultural” do “Nordeste
interior”. Esse “desenvolvimento” era considerado aspecto nodal para o êxito do projeto
desenvolvimentista, este último consubstanciado em políticas governamentais que
começavam a mobilizar as lideranças políticas e intelectuais de norte a sul do Brasil.
Os intelectuais desempenharam um papel nodal na promoção do debate educacional.
Elevando o ensino superior à condição de “causa educacional” da cidade, Edvaldo de Souza
do Ó e José Lopes de Andrade promoveram uma série de debates e embates acerca do papel a
ser desempenhando pelo ensino superior na instituição do chamado “Novo Nordeste”. A
URNe, assentada nos preceitos da “Universidade moderna”, representaria, na ótica dos
intelectuais desenvolvimentistas, a instituição considerada capaz de “racionalizar” os
recursos naturais e humanos da região e fomentar os “fatores” que propiciariam o
desenvolvimento regional.
Referências
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