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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PATRICIA AMORIM DE PAULA ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DA CULTURA E FORMAÇÃO EM MÚSICA NA CIDADE DE SÃO PAULO: UM ESTUDO SOBRE O PROJETO GURI CAMPINAS 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PATRICIA AMORIM DE PAULA

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DA CULTURA E FORMAÇÃO EM MÚSICA NA CIDADE DE SÃO PAULO:

UM ESTUDO SOBRE O PROJETO GURI

CAMPINAS 2016

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PATRICIA AMORIM DE PAULA

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DA CULTURA E FORMAÇÃO EM MÚSICA NA CIDADE DE SÃO PAULO: UM ESTUDO

SOBRE O PROJETO GURI

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título de Mestra em Educação, na área de concentração de Ciências Sociais na Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Liliana Rolfsen Petrilli Segnini

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA PATRICIA AMORIM DE PAULA, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. LILIANA ROLFSEN PETRILLI SEGNINI.

CAMPINAS 2016

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Paula, Patricia Amorim de, 1988- P281o PauOrganizações sociais da cultura e formação em música na cidade de São Paulo : um estudo sobre o Projeto Guri / Patricia Amorim de Paula. – Campinas, SP : [s.n.], 2016. Pau Orientador: Liliana Rolfsen Petrilli Segnini. Pau Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Pau 1. Projeto Guri. 2. Organização social. 3. Cultura. 4. Trabalhos artísticos. 5. Educação musical. I. Segnini, Liliana Rolfsen Petrilli,1949-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Social organizations of culture and music education in the city of

São Paulo : a study about the Guri Program Palavras-chave em inglês:

Guri Program Social organizations Culture Artistic labor Music education Área de concentração: Ciências Sociais na Educação Titulação: Mestra em Educação Banca examinadora: Liliana Rolfsen Petrilli Segnini [Orientadora] Alexandro Henrique Paixão José Roberto Zan Data de defesa: 24-02-2016 Programa de Pós-Graduação: Educação

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DA CULTURA E FORMAÇÃO EM MÚSICA NA CIDADE DE SÃO PAULO: UM ESTUDO

SOBRE O PROJETO GURI

Autora: Patricia Amorim de Paula

COMISSÃO JULGADORA:

Orientadora: Profa. Dra. Liliana Rolfsen Petrilli Segnini Prof. Dr. Alexandro Henrique Paixão Prof. Dr. José Roberto Zan

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

2016

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Agradecimentos

Ao final deste processo de pesquisa, apesar da cilada das palavras e do desafio de

lançar-se por meio da escrita (LISPECTOR, 1999), senti que foi possível construir

um trabalho acadêmico sobre e com os sujeitos envolvidos. Por isso, quero registrar,

de forma destacada, a confiança em mim depositada pelos sujeitos entrevistados do

Guri Santa Marcelina, bem como a recepção de sua coordenação durante o trabalho

de campo. Sem dúvidas, esses elementos foram fundamentais para concretizar esta

dissertação. Embora fazer pesquisa seja um trabalho solitário, sou muito grata por

ter contado com algumas pessoas que se fizeram presentes e deixaram a sua

contribuição para ela.

À professora Liliana Segnini, minha orientadora, que esteve presente em todos os

momentos desta construção, da preparação ao desenvolvimento. Nos conhecemos

por meio da disciplina que ela ministrava, Sociologia Geral, e desde então ela esteve

próxima, com sua orientação séria, competente, atenciosa e carinhosa, despertando

o desejo pela pesquisa. Os reflexos de nossos diálogos estão impressos nos

diferentes momentos que envolvem o processo de pesquisa: no entusiasmo, na

alegria e nas conquistas e também nas frustrações, nos desafios e nas

adversidades, o que demonstra a intensidade de nossa relação. Contar com sua

orientação, com seu estímulo e seu exemplo de mulher, professora e pesquisadora

é, para mim, um bem de valor inestimável.

À professora Aparecida Neri de Souza, que também é a grande responsável pela

existência deste projeto. Seu incentivo, suas indicações, o seu esforço em reunir e

unir nosso grupo de pesquisa, sempre traziam novo ânimo para prosseguir e

desenvolver nossas pesquisas. Sua capacidade de agregar pessoas e formar

coletivos de pesquisa nos inspira a resistir ao extremo individualismo e produtivismo

acadêmico instaurado em nossa universidade.

Meus sinceros agradecimentos aos professores Alexandro Henrique Paixão e

Cármen Lúcia Rodrigues Arruda, pelas indicações e caminhos apontados para a

pesquisa no Exame de Qualificação. Aos professores Alexandro Henrique Paixão,

José Roberto Zan, Cármen Lúcia Rodrigues Arruda e Aparecida Neri de Souza, por

aceitarem participar e contribuir nesse processo de conclusão do trabalho como

membros da Banca de Defesa.

Agradeço a Regina Celia Devera, Marlene Amorim, Luciana Corniani, Marta Godoi,

Ester Dias, Rosilda Wustemberg, Sidneia Silva, Rose Pontes e Lauro Sartoratto,

cuja ajuda profissional, torcida, e também, conforto, foram fundamentais para

amenizar as barreiras encontradas no percurso.

Agradeço à Faculdade de Educação da Unicamp, pelo apoio e suporte oferecidos

durante todos esses anos. Desde a equipe da limpeza à direção desta instituição,

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todos são essenciais e indispensáveis para o funcionamento e o desenvolvimento

humano de professores, estudantes e funcionários que trabalham nesse espaço.

Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de

Educação, em especial, a Nadir, Cleonice, Luciana e Ligia, pela atenção, disposição

e gentileza ao atender nossas demandas e angústias. Não posso deixar de

agradecer também a todos os funcionários da Biblioteca da Faculdade de Educação

pelo empenho e pelo trabalho desenvolvido neste espaço tão importante para a vida

acadêmica.

Aos amigos e pesquisadores vinculados ao GEPEDISC, pelas trocas, parcerias e

apoio em momentos de aflição: Cármen Lúcia Rodrigues Arruda, Selma Venco,

Cacilda Ferreira dos Reis, Dilma Marão Pichoneri, Juliana Coli, Driely Gomes, José

Humberto da Silva, Katiuska Scuciato de Riz, Liliane Bordignon, Maria Aparecida

Alves, Ricardo Normanha Ribeiro de Almeida, Cyntia Malaguti Moya, Potiguara

Lima, Fernando Protetti e Amanda Coutinho.

À minha família, em especial aos meus pais, pela educação e condições

proporcionadas para que eu pudesse estudar e buscar os meus sonhos. E aos

demais familiares, que com muito carinho e respeito compreenderam a minha

ausência e se colocaram à disposição para me acolher nos momentos de

dificuldades.

À Leda Farah, responsável pelo cuidado e atenção dispensados às palavras deste

texto, meu mais sincero reconhecimento pela importância de seu trabalho.

Aos meus amigos que tiveram a sua importância nos momentos de descontração,

reflexões, conselhos, carinho e contraponto à solidão que cada um carrega dentro

de si: Edimária Santana, Thamires Reiss, João Paulo Braite, Gabriela Chiareli,

Bernardo Mendes Ribeiro, Larissa Soares, Mariana Urrutia Thomaz, Rodrigo Ribeiro,

Diogo Negrão, Emiliano César Almeida, Ariadne Meissner, Mariana Halter, Cláudio

da Silveira Júnior, Domingos Pereira da Silva, Flore Noirot, Claire Malsch, In

Cheong, Shelbi Labat, Luisa Domingues, Jace Labat, Satya Prakash, Wellington

Oliveira, Manny Esguerra, Diogo Oliveira, Larissa Vieira, Simone Shiosawa e Gabriel

Sebrian Concário.

Ao meu amigo e companheiro, Cesar, pela paciência, pelo estímulo e apoio

dedicados a mim durante todo esse processo. Por sua sensibilidade, sua música e

seu amor à profissão que me cativam e influenciam meus interesses de pesquisa.

Obrigada por seu companheirismo e compreensão nos momentos mais críticos

vivenciados neste percurso.

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Diálogo entre Edward W. Said e Daniel Barenboim EWS: E me interessa mais o que não pode ser resolvido e o que é irreconciliável. Quer dizer, se, no contraste entre estética e política, fosse possível recuperar cada fenômeno estético e, de algum modo, convertê-lo em político, não haveria resistência; acho que às vezes é bom ver o estético como uma denúncia do político, como uma poderosa oposição à desumanidade, à injustiça. E acho que é a isso que as pessoas reagem em Beethoven. Você inclusive. Portanto, na minha opinião, é perigoso dizer: “Tudo bem, faz parte da vida”. Há partes da vida que a gente não quer aceitar. [...] O que dá tanta força às suas interpretações é precisamente o fato de estarem sempre lembrando que isso é A e não é B. É precisamente por ser tão A que você não pode dizer que é B. Para mim, que gosto tanto de música, uma parte muito importante da prática musical é que, num sentido profundo, a música talvez seja a resistência final à aculturação e à mercantilização de tudo. (BARENBOIM; SAID, 2003, p.176)

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RESUMO

O objetivo deste estudo é analisar as políticas culturais no campo da formação em música dirigidas às crianças e jovens das classes trabalhadoras, elaboradas pela Secretaria de Estado da Cultura, bem como sua gestão e execução por parte de Organizações Sociais da Cultura. Para tanto, estabelecemos como estudo de caso o Projeto Guri Santa Marcelina – Organização Social da Cultura, a fim de compreender como se constituem as relações entre o Estado, as Organizações Sociais, que são uma parcela da sociedade civil de origem burguesa responsável pela gestão dos equipamentos públicos, e as empresas e as grandes corporações que financiam as ações culturais públicas por meio do mecanismo de renúncia fiscal e/ou patrocínio. Os instrumentos de pesquisa foram: documentos institucionais (Leis, estatutos, regimentos, orçamentos, prestações de contas, contratos de gestão, currículos e programas de formação); trabalho de observação das atividades referentes ao projeto; e entrevistas com jovens músicos em formação, docentes e funcionários. Propõe-se compreender o significado dessa organização social e das relações que legitimam e estruturam sua prática educativa, tal como compreender o impacto que as relações sociais de trabalho exercem sobre as relações de formação.

Palavras-chave: Organizações Sociais da Cultura. Trabalho Artístico. Projeto Guri. Educação Musical.

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ABSTRACT

The aim of this research is to analyze the cultural policies in music education for children and young students of the working classes, developed by the State Secretariat of Culture of São Paulo, as well the management and execution of this policies by the Social Organizations of Culture. It is stablished a case-study, the Guri Program - Santa Marcelina, in order to understand the relationships between the State, the Social Organizations, which are a portion of the civil society related to the third sector and responsible for the management of the public facilities, and the businesses and big companies that finance public cultural activities through tax waivers mechanisms and / or sponsorships. The instruments used in this research were: institutional documents (Laws, statutes, regulations, budgets, rendering of accounts, management contracts, curricula and training programs); field observation of activities related with the program; and interviews with music students, music teachers and employees of the program. The study uses such research instruments in order to comprehend the meaning of these social organizations and the relationships that legitimize and structure their educational practice, and also comprehend the effect that work relationships have on education relationships. Keywords: Social Organizations of Culture. Artistic Labor. Guri Program. Music Education.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AAPG – Associação de Amigos do Projeto Guri.

AMA – Atendimento Médico Ambulatorial.

AME – Atendimento Médico Ambulatorial de Especialidades.

APAC - Associação Pinacoteca Arte e Cultura.

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento.

CAPS – Centro de Apoio Psicossocial.

CEU – Centro Educacional Unificado.

CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas.

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente.

EMESP – Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim.

FEBEM - Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor.

GSM – Guri Santa Marcelina.

GIF – Grupo Infanto-Juvenil.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

IVJ – Índice de Vulnerabilidade Juvenil.

IPVS – Índice Paulista de Vulnerabilidade Social.

MINC – Ministério da Cultura.

NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família.

ONG – Organização Não Governamental.

OS – Organização Social.

OSC – Organização Social da Cultura.

OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.

PG – Projeto Guri.

PNC – Plano Nacional de Cultura.

PROAC - Programa de Ação Cultural.

SEADE – Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados.

SEC – Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo.

SMC - Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

SNC - Sistema Nacional de Cultura.

UBS – Unidade Básica de Saúde.

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Projeto Guri – Premiações, parcerias internacionais e produtos, de 1999 a 2013. Tabela 2 – Distribuição dos polos do Projeto segundo regiões administrativas e polos da Fundação Casa em 2013. Tabela 3 - Distribuição dos polos do Guri Santa Marcelina por regiões e parcerias público ou público-privado, em 2014. Tabela 4 – Distribuição, segundo o sexo, dos integrantes do Coral Juvenil do Guri, temporada 2014, em números absolutos. Tabela 5 – Distribuição, segundo o sexo, dos integrantes da Banda Sinfônica Infanto-Juvenil do Guri, temporada 2014, em números absolutos. Tabela 6 – Distribuição, segundo o sexo, dos demais grupos infantis e juvenis do Guri, temporada 2014, em números absolutos.

Tabela 7 – Distribuição do corpo docente do GSM, segundo o sexo e o instrumento, em 2012 (números absolutos). Tabela 8 – Distribuição do corpo docente da EMESP- Tom Jobim, segundo o sexo e o instrumento, em 2012 (números absolutos).

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LISTA DE FIGURAS E DE GRÁFICOS

Figura 1 – Tipos de Área. Distritos do Município de São Paulo, 2005. Figura 2 - Índice de Vulnerabilidade Juvenil, segundo Tipos de Área. Município de São Paulo 2000-2005. Figura 3 – Mapa da distribuição dos polos do Projeto Guri, em 2013. Figura 4 - Aluno do Guri Santa Marcelina, em polo do CEU na zona sul de São Paulo. Figura 5 - Mapa da distribuição dos polos do Guri Santa Marcelina, em 2014. Gráfico 4.1 – Distribuição, segundo o sexo, dos integrantes do Coral Juvenil do Guri, temporada 2014, em porcentagem. Gráfico 5.1 – Distribuição, segundo o sexo, dos integrantes da Banda Sinfônica Infanto-Juvenil do Guri, temporada 2014, em porcentagem. Gráfico 6.1 – Distribuição, segundo o sexo, dos demais grupos infantis e juvenis do Guri, temporada 2014, em porcentagem. Gráfico 7.1 – Distribuição do corpo docente do GSM, segundo o sexo e o instrumento, em 2012. Gráfico 8.1 - Distribuição do corpo docente da EMESP- Tom Jobim, segundo o sexo e o instrumento, em 2012.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................14

Enfoque teórico.............................................................................................15

Projeto Guri e o seu contexto........................................................................16

Metodologia...................................................................................................18

CAPÍTULO I

A MÚSICA COMO AGENTE DE CIDADANIA: A CONTRIBUIÇÃO DO PROJETO GURI................22

A origem do Projeto Guri................................................................................26

O surgimento da Associação de Amigos do Projeto Guri..............................39

CAPÍTULO II

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E AS POLÍTICAS CULTURAIS..................................................44

Criação do Ministério da Cultura...................................................................56

O Ministério da Cultura: ontem e hoje...........................................................60

Política Cultural Experimental........................................................................67

CAPÍTULO III

DUAS CONCEPÇÕES DE PROJETO GURI: PARALELOS E PARADOXOS..............................75

Uma nova Organização Social na gestão do Projeto Guri.............................75

Paralelos.........................................................................................................84

Aspectos contrastantes: AAPG e GSM..........................................................98

Projeto Guri Santa Marcelina e EMESP Tom Jobim: paradoxos..................101

Trabalho Social e Trabalho Musical: interesses em conflito.........................114

CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................133

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................146

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INTRODUÇÃO

______________________________________________________________

A presente pesquisa parte dos resultados do trabalho anterior de Iniciação

Científica, intitulado “A relevância das igrejas evangélicas na formação de músicos

no Brasil: um estudo sobre a Universidade Estadual de Campinas”. Diante da

significativa presença dessas igrejas na formação e na concomitante ausência de

instituições públicas, estatais e municipais como responsáveis pela formação

musical de jovens que almejam o ingresso no ensino superior, quais são as

instituições responsáveis por essa formação no estado de São Paulo?

Nesse sentido, nos deparamos com o avanço do modelo das Organizações

Sociais da Cultura administrando escolas de música profissionalizantes públicas,

como: o Conservatório Dramático e Musical “Dr. Carlos de Campos”, de Tatuí; a

Escola de Música do Estado de São Paulo - Tom Jobim; e a Escola Municipal de

Música de São Paulo. Assim como fundações, ONGs e OSCIPs na gestão de

teatros, museus e casas de cultura. Mas o que se mostrou mais evidente foi o

Projeto Guri, criado em 1995 e vigente, caracterizado por seus proponentes como

“projeto de inclusão sociocultural por meio da educação musical”. Primeiramente,

por sua extensão pelo interior de São Paulo, litoral e capital, com 370 polos; e na

Grande São Paulo e na capital, com 46 polos. Segundo, por ser o único espaço

público que prepara, de alguma forma, para o ingresso nas escolas mencionadas

anteriormente. Atualmente, duas Organizações Sociais administram esse projeto: a

Associação de Amigos do Projeto Guri - AAPG (polos do interior, litoral e capital) e a

Santa Marcelina Cultura – GSM (polos da Grande São Paulo e capital).

Por meio deste estudo de caso, consideramos relevante compreender a

sociedade, no presente momento histórico. Com essas informações, apresentamos

ao leitor o tema de pesquisa (as políticas culturais elaboradas e executadas por

Organizações Sociais da Cultura no campo da formação em música) e o estudo de

caso (Projeto Guri – Santa Marcelina).

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Enfoque teórico

Cultura será compreendida como trabalho intelectual e criativo do homem, ou

seja, a sua capacidade de se comunicar com homens e mulheres de seu tempo por

meio da música, da construção, da pintura, da literatura, da filosofia, das ciências

físicas, enfim, de todos os saberes socialmente construídos e daqueles não

sistematizados (das instituições, das maneiras, dos costumes e das memórias

familiares). Chegamos a essa possível compreensão de cultura por meio da

expansão interpretativa dos constructos: base e superestrutura, na teoria marxista,

considerando a crítica feita por Williams (2011) sobre a visão da cultura como

ideologia no marxismo da tradição inglesa; do diálogo com a produção intelectual de

Raymond Williams e sua compreensão acerca da cultura como todo um modo de

vida, um processo social geral, o qual se constrói com base na experiência.

Por um lado, compreendemos o mundo da cultura, enfocando a formação em

música, por meio da crítica cultural materialista1 proposta por Marilena Chaui (1995,

2006), Raymond Williams (1984, 2008, 2007, 2011) e George Yúdice (2000, 2006).

E, por outro, o estabelecimento da política cultural no Estado capitalista

contemporâneo, com o advento da compreensão de cultura associada ao mercado

e, por consequência disso, a comercialização de seus produtos na forma

mercadoria. Para a compreensão desse movimento, a pesquisadora taiwanesa Chin

Tao Wu (2006) apresenta, em sua análise sobre a privatização da cultura,

fundamentos para constituirmos as relações e as contradições inerentes ao poder

político (Estado), ao poder simbólico (Organizações Sociais da Cultura) e ao poder

corporativo (empresas e grandes corporações financiadoras das ações culturais) em

âmbito estadual e nacional.

Além disso, a partir do século XX, vivemos numa sociedade transicional, na

qual a estrutura de sentimentos restrita ao industrialismo tornou-se névoa, poeira, e

tudo está disperso nas histórias de vida e envolto na crise (WILLIAMS, 2011). Por

isso, torna-se um desafio compreender o processo de publicização na sociedade

contemporânea, o qual consiste na conversão do público no privado e na vivência

1 O termo surge a partir de uma discussão no campo de estudos da crítica literária entre Maria Elisa

Cevasco (2004; 2005) e a obra do filósofo Theodor Adorno. Para maior aprofundamento nesse tema, indicamos os seguintes textos: CEVASCO, Maria Elisa Burgos Pereira da Silva. Momentos da crítica cultural materialista. In: Terceira Margem, Rio de Janeiro, número 12, janeiro-junho/2005; CEVASCO, ______. Dois críticos literários. In: ABDALA JUNIOR, Benjamin (Org.). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo e outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004, pp. 144-145.

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deste como público. Com a Lei Federal nº 9.637, que regula as Organizações

Sociais (BRASIL, 1998), as ações culturais no âmbito público passam por processos

de reestruturação, o que consiste na sua passagem da esfera estatal para a esfera

privada de interesse público. Para Evelina Dagnino (2005), esse movimento reflete

uma confluência perversa entre dois projetos societários antagônicos, mas que se

baseiam num vocabulário comum sobre a sociedade civil, a cidadania e a

participação. Porém, o projeto neoliberal e o projeto democratizante e participativo

caminham em sentidos opostos.

A dificuldade de compreensão dessas relações consiste em pensar que a

sociedade é governada por padrões simples e, ao fazer uma média desses padrões:

atividade econômica, comportamento político e desenvolvimento cultural,

encontraremos as respostas, conforme ponderou Williams (1984, p. 320). Para

Williams (1984), precisamos impulsionar novas categorias e descrições para os

padrões destacados, pois dessa maneira observaremos e reconheceremos as

contradições internas a esses padrões, bem como as contradições entre as

diferentes partes do processo geral de mudança.

Faremos essa discussão no segundo capítulo. Mas veremos as implicações

desses processos ao longo do texto, especialmente, em nosso estudo de caso.

Projeto Guri e o seu contexto

Esse é o contexto no qual se situa o Projeto Guri. Acerca desse projeto, a

antropóloga Rose Hikiji (2006) elaborou um conjunto de dados que caracterizam o

Projeto Guri no período de 1995 a 2006 e os analisa à luz do discurso institucional

proferido pela coordenação técnica. Ao construir seu objeto de pesquisa, ela destaca

o debate do momento acerca da infância e juventude “em situação de risco” como

estimulador da criação de projetos em arte-educação.

Conforme verificamos na análise de Hikiji (2006), entre outros dados

elaborados nesta pesquisa, a gestão da Associação de Amigos do Projeto Guri, de

1995 a 2006, estruturou como princípio a apropriação do ensino musical para

cultivar determinados valores com as crianças e os jovens pobres: responsabilidade,

disciplina, concentração, autoestima e cidadania. Como projeto social, esses valores

admitem um propósito: a formação da classe trabalhadora para o capital.

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Durante a gestão do secretário de cultura, João Sayad (2007-2010), houve

um crescimento substantivo do Projeto Guri e evidências de críticas em relação à

administração da Associação de Amigos do Projeto Guri. Sendo assim, em 2007, a

convite da Secretaria de Cultura, uma nova organização assumiu a gestão dos polos

da Grande São Paulo e Capital: o Instituto das Irmãs Marcelinas. Essa parceria foi

proposta com base na experiência desse Instituto na parceria público-privado e na

filantropia no campo da saúde (administrando hospitais de grande porte e programas

da rede básica de saúde como UBSs, AMAs, AMEs, NASF e CAPS), além da sua

atuação no campo das artes, com a oferta de Ensino Superior privado – Faculdade

de Artes da Santa Marcelina (BRUNO, 2013, p. 52). Marta Bruno (2013), em sua

tese, descreve e analisa o trabalho desenvolvido pela Santa Marcelina Cultura no

Projeto Guri.

Sayad refere-se a uma herança maldita no interior da secretaria, que são os

contratos de trabalho irregulares dos funcionários, chamados “credenciamentos”

(Cooperativa de Músicos do Estado de São Paulo), e assume a proposta de

regularização via Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Além disso, a

Associação de Amigos do Projeto Guri passou por sucessivas transformações para

se adequar ao novo formato exigido pela Secretaria a partir de João Sayad e do

ingresso da Santa Marcelina como gestora de uma parte do projeto. Destacam-se a

reconfiguração da equipe de administração e o aumento no número de cargos, a

reformulação da proposta pedagógica e social e a reorganização dos polos e das

sedes administrativas.

Contudo, persistem algumas diferenças em seus projetos pedagógicos

musicais: a AAPG incorporou as metas estabelecidas no documento Educação para

a Paz, organizado pela Unesco em 2000, já o GSM elaborou uma proposta própria,

inspirada em Paulo Freire. Além disso, a AAPG mantém suas parcerias com

empresas patrocinadoras e, na medida do possível, as amplia, porém, com o GSM,

houve uma queda substantiva nos patrocínios. Aparentemente, a atuação da AAPG

demonstra maior filiação à lógica empresarial, enquanto o GSM opta pela

apresentação de propostas originais e elaboradas no interior do próprio grupo,

sendo passíveis de financiamento pela concordância e objetivos comuns.

Quanto aos projetos em si, cabe mencionar que são duas propostas

pedagógicas e sociais distintas, que disputam entre si a hegemonia sobre o Projeto

Guri. Abordaremos alguns aspectos divergentes nas duas propostas em torno do

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Guri, contudo nos aprofundaremos em nosso estudo de caso, o Guri Santa

Marcelina.

Outro aspecto a ser considerado acerca do modelo OSC na relação com o

trabalho artístico é que este promoveu a regulamentação via Consolidação das Leis

Trabalhistas – CLT –, o que expressa uma ambiguidade: por um lado, a superação

da ilegalidade nas relações de trabalho, por outro lado a derrota da perspectiva de

serem reconhecidos na condição trabalhista de servidores públicos concursados

(SEGNINI, 2006). Veremos as implicações disso ao longo da análise.

Metodologia

Constatamos que, nos quase 20 anos da chamada inovação institucional

promovida pela lei que instituiu as Organizações Sociais, não se constituiu somente

uma inovação administrativa, mas a concepção de política pública para a formação

de músicos no campo da cultura em âmbito estadual. Dessa forma, as indagações

que motivam esta pesquisa são: “Como se formam os músicos no Projeto Guri?

Quais as condições sociais e políticas dessa formação?”.

Pela expressão que o Projeto Guri assume como programa de educação

musical mais longevo e de grande extensão no estado, nós o privilegiamos como

campo empírico, na tentativa de desenvolver essas questões.

Em novembro de 2013, obtivemos autorização formal para desenvolver o

trabalho de campo junto ao Guri Santa Marcelina. Contudo, precisávamos

compreender como se consolidou historicamente o Projeto Guri e sob quais

circunstâncias e motivações ele foi elaborado, para passar, posteriormente, a sua

compreensão no contexto atual. Para tanto, fizemos uma pesquisa bibliográfica,

consultando desde o acervo de trabalhos acadêmicos que interliga as produções

das três principais universidades estaduais (USP, UNESP e UNICAMP) até revistas

especializadas. No último levantamento, realizado em 2014, encontramos somente

duas teses, as quais citamos anteriormente.

Como fontes primárias, analisamos os documentos institucionais (leis,

estatutos, regimentos, orçamentos, prestações de contas, contratos de gestão,

currículos e programas de formação) que regulamentam a parceria entre a

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Secretaria de Estado da Cultura e a Santa Marcelina Cultura, bem como a relação

com a Associação de Amigos do Projeto Guri, para fins comparativos.

Foram realizadas pesquisas no acervo das mídias impressas de maior

veiculação em São Paulo (Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo), de 1995 a

2014, a fim de recuperar mais elementos que remontam à história desse projeto,

bem como os ideais de cultura impressos na sociedade nesse período.

O início da pesquisa de campo se deu em outubro de 2014 na EMESP Tom

Jobim, local onde os Grupos Infanto-Juvenis (GIFs) se reuniam aos sábados e

ocasionalmente aos domingos para realizar ensaios em seus respectivos grupos

sinfônicos: coros, big-bands, orquestras, regional de choro e camerata de violões.

Ao todo, constituíam 373 participantes na temporada de 2014. Optamos por

acompanhar durante um mês dois grupos: o Coral Juvenil e a Banda Sinfônica

Infanto-Juvenil.

Cabe ressaltar que as informações relativas a classe social, gênero, cor da

pele, condições de moradia e infraestrutura de equipamentos públicos, nas regiões

onde se encontram os polos do Guri, não foram delimitadas por ambas as

organizações do Projeto Guri ou não se tornaram públicas. Utilizamos dados

elaborados pelo Índice de Vulnerabilidade Juvenil e outros dados elaborados por

instituições de pesquisa e marketing de empresas (Ipsos e Ábaco) encomendadas

pelos projetos, bem como o acompanhamento dos GIFs, para compreender a

origem social dos participantes do Guri.

O contato com esses jovens permitiu maior proximidade e confiança, e

pudemos acompanhá-los também nas redes sociais, o que se tornou uma fonte de

pesquisa. Nessa primeira fase do trabalho de campo, obtivemos cinco depoimentos

de alunos, por escrito, acerca de sua experiência no Guri Santa Marcelina.

Na segunda fase do trabalho de campo, passamos à observação de quatro

polos do Guri Santa Marcelina3, nas regiões sul, leste, centro-oeste e centro. Para

tanto, adotamos como instrumento etnográfico a descrição densa4 proposta por

Clifford Geertz (1978), no intuito de captar a complexidade do caso com o máximo

de detalhe descritivo das atividades que permeiam o Projeto Guri. Entrevistamos ao

3 A fim de preservar a identidade de professores, assistentes, agentes de apoio e alunos que

colaboraram nesse processo de pesquisa, optamos por não revelar os polos pesquisados, assim como a identidade das pessoas. 4 “Assim, há três características da descrição etnográfica: ela é interpretativa; o que ela interpreta é o

fluxo do discurso social e a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o ‘dito’ num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis.” (GEERTZ, 1978, p. 31)

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todo nove profissionais, no formato de entrevista semiestruturada, por meio da

técnica de gravador e registro da informação viva (cadernos de campo). Foi

solicitado a cada entrevistado que falasse sobre sua história de vida, relações

familiares, percurso de formação, inserção na profissão, condições e relações de

trabalho na instituição, ensino de música e a música como profissão.

A construção desse conjunto de dados por meio das fontes primárias e

secundárias apresentadas acima possibilitou que a análise desse objeto fosse

subdividida em três capítulos.

O primeiro refere-se à constituição histórica do Projeto Guri e analisa o

contexto de sua criação. Nesse capítulo buscamos compreender, à luz do Guri, as

implicações do debate que se encontrava latente na sociedade nos anos 1990. A

criação de um imaginário social de que o jovem pobre que vive nas regiões

periféricas da cidade é propenso ao crime e à violência, conforme analisou Emir

Sader (1987, p. 14-5), em que a questão do menor, reconhecida na década de 1960

como problema de miséria social, passou a ser vista a partir dos anos 1980 como

problema de segurança pública. E, no diálogo com Rose Hikiji (2006, p.86-87), o

entendimento acerca da expressão situação de risco considera que não são os

jovens quem se veem em risco, mas a sociedade, pois eles são os protagonistas da

violência. Nesse contexto é que se inscrevem os diversos projetos em arte-

educação, voltados para populações de baixa renda, admitindo o fazer artístico

como oposição à situação de risco.

No segundo capítulo é analisada a transferência da gestão de políticas

culturais para a iniciativa privada. A constituição do modelo de política pública

baseado na perspectiva da Organização Social da Cultura é relevante para o

entendimento desse fenômeno que se consolida nacionalmente e possibilita a

constituição do Guri.

No terceiro capítulo é analisado o Projeto Guri Santa Marcelina, foco central

do nosso trabalho de campo. Estabeleceremos uma análise comparativa das duas

propostas em torno do Projeto Guri: a da Associação de Amigos do Projeto Guri

(AAPG) e a do Guri Santa Marcelina (GSM), explorando aspectos divergentes,

continuidades e rupturas. Além disso, o exercício de compreensão acerca do

trabalho do Guri Santa Marcelina nos seus oito anos de existência, será feito na

relação com a ascensão do modelo de Organizações Sociais como referência

hegemônica na condução de políticas culturais.

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Com o Guri Santa Marcelina e sua equipe, composta em sua maioria por

músicos e musicistas com ampla experiência no ensino de música, identificamos um

esforço relevante para consolidar uma proposta de educação musical original e livre

do paradigma do salvacionismo por meio da música. Porém, presa, em certos

momentos, às artimanhas de outro paradigma: a lógica do mérito. No interior da

instituição Santa Marcelina Cultura, encontramos um campo de disputas entre a

equipe pedagógica e a equipe empresarial, e esse movimento é o que induz às

contradições internas no grupo e a algumas expressões de resistência nas ações

pedagógicas. Sobretudo na perspectiva de atuação da assistência social no GSM,

que defende o protagonismo juvenil, identificamos novas bases para compor as

inter-relações entre pobreza, política e música; nelas percebemos o reforço da lógica

do mérito e um estímulo à inserção dos jovens no mercado de trabalho por meio da

venda de sua força de trabalho.

Nas considerações finais, salientamos algumas dimensões encontradas ao

longo do trabalho e questões para pesquisas futuras.

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CAPÍTULO I

A MÚSICA COMO AGENTE DE CIDADANIA: A CONTRIBUIÇÃO DO PROJETO GURI

______________________________________________________________

O objetivo deste capítulo é destacar a relação entre música e pobreza no

Projeto Guri. O Projeto Guri (PG) é uma iniciativa da Secretaria de Cultura do Estado

de São Paulo, implementada durante a gestão do secretário de cultura Marcos

Mendonça (1995-2002) e do governador Mário Covas (1995-2001). Entre os anos

1995 e 1996, desenvolveu-se na Oficina Cultural Amacio Mazzaropi, com o objetivo

de transformar a cultura e a arte em instrumentos de inclusão sociocultural; e na

Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (antiga FEBEM e atual Fundação

Casa), na Unidade do Complexo Tatuapé, com intuito de reinserção social dos

jovens em cumprimento de medidas socioeducativas. Portanto, admite inicialmente

um modelo de política social focalizada na pobreza.

É preciso compreender o que estava em discussão nesse período, para

justificar o seu intuito de política social focalizada. Nesse sentido, a antropóloga

Rose Hikiji (2006) estudou durante seu doutorado a constituição do Guri. Ao

construir seu objeto de pesquisa, ela destaca o debate do momento acerca da

infância e da juventude em situação de risco como estimulador da criação de

projetos em arte-educação. De certo modo, impulsionado também pela promulgação

do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990),

que traça diretrizes para uma proteção integral da criança e do adolescente como

sujeitos de direitos civis, humanos e sociais.

“Como e por que a música veio a ocupar um lugar de destaque dentre os

projetos sociais voltados à questão do menor?”, indaga Hikiji (2006, p. 20), pois, de

fato, tal situação promoveu uma série de iniciativas para esse público no âmbito do

ensino artístico5. Segundo a autora, este foi frequentemente associado a

recuperação, inserção ou terapia.

5 “A Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) dispõe, em seu site www.andi.org.br, de um

banco de projetos sociais (em 2006, ‘Banco de Fontes’) que é dividido em áreas de atuação. Em 2002, na área ‘Arte e Cultura’, eram apresentados cerca de duzentos projetos de organizações da sociedade civil, provenientes de todo país, com foco em atividades relacionadas à arte-educação destinadas a comunidades de baixa renda, sobretudo crianças e jovens. No mesmo site, estavam listadas mais de trinta entidades governamentais e mais de quarenta empresas, fundações ou institutos que também mantinham projetos com atividades artísticas direcionadas a públicos com algum nível de carência” (HIKIJI, 2006, p. 81, grifos no original).

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Para uma possível explicação da questão anterior, precisamos retomar

iniciativas passadas no âmbito da arte e da cultura, direcionadas à infância e à

juventude. Deparamo-nos com a criação da Secretaria do Menor do Estado de São

Paulo (1987-1994)6, durante a gestão da secretária Alda Marco Antônio (1987-1992)

e do governador Orestes Quércia (1987-1991). O objetivo central dessa Secretaria,

segundo Passeti (2007, p. 367), foi o de “fomentar a co-participação no atendimento

aos abandonados e ‘meninos de rua’ mantendo, sob sua responsabilidade, o

atendimento a infratores por meio da Febem.” Em síntese, podemos verificar os

valores envolvidos com o trabalho cultural desenvolvido pela Secretaria por meio do

depoimento da secretária Alda Marco Antônio (1991):

[...] nós aprendemos a trabalhar com poucos recursos, inclusive nós

desmistificamos uma série de coisas. Educação para mim, por exemplo, não é fábrica de escola. Educação para mim é transferência de saber no sentido lato, é a relação do adulto, de quem ensina com a criança. E nós na Secretaria do Menor ensinamos nas vielas das favelas. O programa, considerado número um pelos cientistas da ONU, que passaram três meses conosco aqui em São Paulo, se chama A Turma Faz Arte, e acontece nas favelas, que acontece nos campinhos de futebol; dia que chove não tem esse programa, não tem telhado. [...] O prédio, às vezes, é importante, mas o prédio sozinho não faz escola. Nós ensinamos embaixo de lona de circo. Quer coisa mais bonita? Nós ensinamos, e o ato de ensinar, para nós, é um ato barato. Nós desmistificamos essa coisa

de que é caro cuidar de criança. Não é caro não! Caro é não cuidar de criança, caro é deixar a criança analfabeta, caro é deixar a criança à sua própria sorte, abandonada à sua própria sorte, porque fica caro para ela, caro para a família dela, caro para a sociedade, que depois, provavelmente, vai ter que manter essa criança em algum presídio. Então veja, eu sempre acho que tem pouco recurso, porque eu sempre gostaria de fazer mais. Mas hoje nós somos um centro de referência mundial para treinamento de recursos humanos, e esse

papel nós já assumimos na frente de qualquer outro estado brasileiro. Nós hoje temos condições de treinar recursos humanos, treinar técnicos dos municípios, [...] técnicas modernas, preparação de recursos humanos, isso nós estamos em condições de fazer aqui de São Paulo. (PRONSATO, 2014, p. 115, grifos do original)

De um lado, vemos o intuito de elaborar políticas públicas no campo da

cultura direcionadas às crianças e aos jovens, rompendo com o caráter punitivo dos

tempos em que vigorava o Código de Menores (Lei 6.697, de 10 de outubro de

1979) no período ditatorial-militar (1964-1985). Por outro lado, identificamos que a

proteção e a vigilância de antes cedem espaço ao assistencialismo, que passou a

6 Em 1991, integra-se à Secretaria de Assistência Social, e passou a chamar-se Secretaria da

Criança, Família e Bem-Estar Social (SANMARTIN, 2015, p. 2898).

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compreender esses jovens não mais como questão de polícia, mas como “carentes”

(PRONSATO, 2014, p. 98).

Reiteramos a análise de Laura Pronsato (2014), dançarina e pesquisadora

(UFV), em sua tese de doutorado, sobre a inserção profissional dos artistas da

dança e/ou arte-educadores da dança nas ações socioeducativas, que vê na relação

arte e cultura um campo fértil para a resolução de questões políticas, econômicas e

sociais, o que naturalmente foge das especificidades desses campos de

conhecimento. A relação entre arte e desenvolvimento torna-se quase obrigatória e

alvo de justificativa social para o investimento financeiro na área.

Os programas implementados pela Secretaria do Menor foram: o Clube da

turma, que previa uma estrutura física de clube (com quadras, campo de futebol e

alguns até com piscina) e atingiu seis unidades em 1992, atendendo crianças de 7 a

14 anos; o Enturmando, de caráter profissionalizante, que consistia na atividade de

Circo-Escola. Não possuía estrutura fixa, e o investimento envolvia o aluguel de

terreno, montagem da lona e construções fabricadas. Segundo Nogueira (2008, p.

40), o desenvolvimento dessa atividade representava um grande risco aos

participantes, pela utilização de estruturas baratas e de rápida construção; A turma

faz arte não previa infraestrutura de espaços para a realização das atividades, que

poderiam acontecer em galpões, barracões ou na própria rua. Neles eram

desenvolvidos trabalhos com dança, artes visuais, teatro e educação física

(PRONSATO, 2014, p. 121-122).

O contexto e a análise dos projetos socioeducativos desenvolvidos pela

Secretaria do Menor do Estado de São Paulo contribuem para a compreensão de

como posteriormente se constituíram outros programas socioeducativos envolvendo

a arte. No que se refere ao entendimento das contradições e das novas perspectivas

que se impõem sobre o ensino da arte exercido por iniciativas governamentais ou

ONGs, OSs e OSCIPs, bem como de um novo campo de trabalho que surge para os

artistas e os educadores no final da década de 1980, esse marco é importante para

verificar a sua repercussão atual nas relações que se travaram entre artistas, ensino

de artes e campo de trabalho (PRONSATO, 2014).

Pronsato (20014, p. 124) compreende que os programas citados, em si, eram

inovadores para a época e, apesar de não apresentarem noções claras sobre arte,

contavam com artistas e educadores com ampla experiência profissional, que

proporcionaram trabalhos de qualidade, mesmo com condições inadequadas de

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trabalho com contratos de trabalho parcial, a curto prazo e flexível. Os artistas

coordenadores entrevistados afirmaram que tiveram que abrir uma empresa para

serem contratados como pessoa jurídica e assim poderem repassar pagamentos

aos demais artistas envolvidos.

O campo de trabalho aberto pelos projetos socioeducativos em artes, cujo

público alvo era composto por crianças e jovens de baixa renda, convoca artistas

com formação em música, dança, artes visuais e artes cênicas, a serem chamados

de arte-educadores. Esta terminologia, com o passar dos anos, admite múltiplos

significados até ser enquadrada, pela Classificação Brasileira de Ocupações

(CBO/2002), no grupo de “Trabalhadores de Atenção, Defesa e Proteção a Pessoas

em Situação de Risco” (PRONSATO, 2014, p, 85).

A arte-educação, ocupação recém-criada por projetos sociais, parece não

apresentar uma articulação clara com a área da educação e/ou com a área de artes

– uma contradição a ser compreendida. Ao olhar essa terminologia e a atuação

desse profissional, Pronsato (2014, p. 130) indaga: “o que eles estão chamando de

arte-educador?”.

De um lado, temos um movimento em arte-educação formado por artistas e

educadores que, em conjunto, defendem as quatro áreas de conhecimento em artes

(música, dança, artes visuais e artes cênicas), sua regulamentação e as formas de

inserção do ensino de artes.

A arte-educação constitui no Brasil, um movimento surgido no final da década de 1970, fora da educação escolar que buscava novas metodologias de ensino e aprendizagem da arte nas escolas por meio de uma concepção de ensino de arte com base numa ação educativa mais criadora, mais ativa e que envolvesse o aluno de forma mais direta, mais concreta. [...] [termo] que serviu para identificar uma posição de vanguarda do ensino de arte contra o oficialismo da educação artística dos anos 70 e 80. (BIASOLI, 1999, p. 87, p. 89)

Por outro lado, estabeleceu-se a arte-educação como sinônimo de

intervenção cultural nas periferias e convencionou-se que o arte-educador que atua

nas periferias, como artista ou não, desenvolveria trabalhos artísticos motivados por

questões institucionais alheias à arte. Parte desse imaginário coletivo, conforme

vimos, tornou-se oficial por meio da CBO/2002.

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Pronsato (2014, p. 206) destaca a dificuldade dos artistas da dança durante

as entrevistas, quando tentavam definir o que faz o arte-educador ou o que é arte-

educação. Eles expunham no processo uma crise identitária e discursiva acerca da

profissão, arriscando-se entre leituras de pesquisadores da área e as suas

experiências no trabalho.

Uma forma de resolver essa tensão, conforme analisou Pronsato (2014, p,

242), foi reformular a terminologia para “artistas-educadores”, conduzindo a uma

compreensão política de atuação profissional na qual se dá ênfase à experiência

artística dos artistas. Embora a saída encontrada no interior do grupo de

trabalhadores seja legítima, estamos diante da ponta do iceberg, que pode ser maior

do que se imagina; trata-se de um dos elementos que virá a expressar a questão

“como e por que a música veio a ocupar um lugar de destaque dentre os projetos

sociais voltados à questão do menor?”, sobre a qual iremos nos aprofundar.

A origem do Projeto Guri

O debate a partir dos anos 2000 mantém o mesmo foco de antes, motivado

pela necessidade de reduzir o crescimento dos índices de criminalidade e taxas de

homicídio contra os jovens, o que tem fundamento, se observarmos os dados

referentes ao período, conforme apresenta Paula Miraglia em 20007. Além disso, a

autora destaca a identificação desses dados com “bolsões de risco” ou “bolsões de

violência”, segundo pesquisa realizada pelo Governo do Estado de São Paulo,

concentrando-se nos seguintes distritos: Cidade Ademar, Sapopemba, Jabaquara,

Itaquera e Jardim Ângela, nos quais a taxa de homicídios entre jovens de 15 a 24

anos chegou a atingir 206,87 em 19998. Para efeito de comparação, a taxa na

cidade de São Paulo no mesmo ano, de acordo com Miraglia (2002), era de 121,33 .

(HIKIJI, 2006, p.84-5).

Para o mesmo período, Hikiji (2006) apresenta os resultados da pesquisa

promovida pela Unesco (2004), em que são analisados trinta projetos em diferentes

estados do país, nas áreas de arte, cultura, cidadania ou esporte, associando-os a

7 Na faixa etária entre 15 e 24 anos, em 2000, a taxa de óbitos por homicídio no Brasil é de 52,1

(número de homicídios por cem mil habitantes) e em São Paulo é de 89,6, número inferior somente aos estados do Rio de Janeiro (107,6) e Pernambuco (102,8) (MIRAGLIA apud HIKIJI, 2006, p.84-5). 8 Dados sistematizados pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – Seade, fonte

primária (2002). Cabe lembrar que a taxa apresentada sempre corresponderá ao número de homicídios por cem mil habitantes da região (HIKIJI, 2006, p.85).

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alternativas de superação da realidade de pobreza e violência dos jovens neles

atendidos.

Outro dado relevante para nós é que, em 2002, a Fundação Seade lançou o

Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ)9, coordenado pela socióloga Felícia Madeira,

por solicitação da Secretaria de Estado da Cultura, com o intuito de viabilizar o

empréstimo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a

implantação de programas na periferia da capital – neste caso, o Programa Fábricas

de Cultura10 (SEADE, 2007). As variáveis consideradas a fim de delimitar as regiões

metropolitanas com maior risco de criminalidade entre jovens de 15 a 19 anos foram:

a taxa de crescimento populacional, o número de jovens residentes no local, a taxa

de mortalidade por homicídio nessa faixa etária, o percentual de mães

precocemente grávidas, o valor do rendimento do chefe de família e os jovens fora

da escola (HIKIJI, 2006).

A elaboração do IVJ tornou-se um elemento-chave para nós, ao passo que

permite a compreensão de dois fatores que refletem sobre as ações dos projetos

sociais, sobretudo, no âmbito do Guri: 1-) a cristalização da representação social do

jovem pobre que vive nas regiões periféricas da cidade como propenso ao crime,

conforme analisou Emir Sader (1987, p. 14-5), em que a questão do menor,

reconhecida na década de 1960 como problema de miséria social, passou a ser

vista nos anos 1980 como problema de segurança pública; 2-) a perspectiva de

análise proposta por Hikiji (2006, p.86-87), que nós reiteramos, acerca da expressão

situação de risco que considera que não são os jovens quem se veem em risco, mas

a sociedade, pois eles são os protagonistas da violência. Por isso, os diversos

projetos em arte-educação, voltados para populações de baixa renda, admitem o

fazer artístico como oposição à situação de risco.

9 “No IVJ 2002, a intenção era pontual e voltada para a seleção de distritos administrativos da capital

a serem contemplados pelo Programa Fábricas de Cultura. Assim, entre os dados utilizados na sua construção, além das estatísticas vitais produzidas pela Fundação Seade e passíveis de atualização anual, foram considerados dados levantados pelo Censo Demográfico 2000, do IBGE. Portanto, a atualização desses dados só poderia ser realizada por ocasião do novo levantamento censitário, em 2010” (SEADE, maio de 2007, p. 01). Disponível em: http://produtos.seade.gov.br/produtos/ivj/ivj_2000_05.pdf. Acesso em: 10 out. 2014. 10

A Poiesis – Instituto de Apoio à Cultura, à Língua e à Literatura atualmente gerencia as atividades desenvolvidas nas unidades: Brasilândia, Jardim São Luís, Capão Redondo, Jaçanã e Vila Nova Cachoeirinha (http://www.fabricasdecultura.org.br/). E a Catavento Cultural e Educacional – Organização Social da Cultura gerencia as atividades nas unidades: Vila Curuçá, Sapopemba, Itaim Paulista, Parque Belém e Cidade Tiradentes (Disponível em: http://www.fabricadecultura.org.br/).

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Figura 1 – Tipos de Área. Distritos do Município de São Paulo 2005

Fonte: Fundação Seade. Sistema de Estatísticas Vitais11

11

Ressaltamos que os critérios estatísticos sobre classe elaborados pela Fundação Seade dizem respeito à associação do conceito de vulnerabilidade em relação à condição de pobreza; a operacionalização dessa noção considera indicadores socioeconômicos e geográficos no que tange a uma rede de fenômenos que aumentam riscos ou desvantagens dos jovens. Os níveis de renda foram decisivos para situar a localização de suas moradias no contexto urbano paulistano. Quanto à segmentação do município de São Paulo em áreas homogêneas, a referência utilizada foi o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social – IPVS (SEADE, 2000 – elaborado por meio do Censo Demográfico de 2000), no qual a classificação do espaço em uma escala de vulnerabilidade à pobreza consistiu em: nenhuma vulnerabilidade, vulnerabilidade muito baixa, baixa, média, alta e muito alta. Desse horizonte, foram delimitados para o Índice de Vulnerabilidade Juvenil quatro tipos

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Figura 2 – Índice de Vulnerabilidade Juvenil, segundo Tipos de Área. Município de São Paulo

2000-2005

Fonte: Fundação Seade.

A hipótese elaborada por Hikiji (2006) torna-se um ponto de partida para a

compreensão do presente objeto de pesquisa, ou seja, o investimento em ações

culturais por meio de projetos sociais não está associado diretamente ao direito à

cultura, conforme regulamentam o ECA e a própria Constituição Federal (1988), e,

sim, ao problema de segurança pública, do ponto de vista de sua concepção inicial.

de distrito administrativo da capital paulista, expressando o perfil de vulnerabilidade à pobreza da população jovem que reside nas áreas classificadas como: rica, classe média, classe média baixa e pobre (SEADE, 2007).

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Ao recuperarmos as declarações públicas do ex-secretário de Cultura do Estado de

São Paulo, Marcos Mendonça (1999), e da coordenadora geral do Guri, Elizabeth

Parro (HIKIJI, 2006), ambos no referido contexto, verificaremos os objetivos iniciais

do Projeto Guri convergindo com a perspectiva da segurança pública:

[...] o programa pretende promover a autoestima dos participantes, muito mais do que propriamente ensinar música. Na última rebelião na Febem do Tatuapé (zona leste da capital), onde há um polo, os menores guardaram os instrumentos em uma sala que foi a única a não sofrer depredações. Desde o início do projeto na unidade, o número de fugas caiu 42%. As crianças que desejarem continuar com o estudo musical após completarem 18 anos e que forem consideradas aptas pelos maestros dos polos têm a possibilidade de conseguir bolsas de estudo no conservatório de Tatuí ou na Universidade Livre de Música, na capital. (MENDONÇA, 1999, p. 03)

O objetivo do projeto não é formar músicos, mas sim trabalhar autoestima, cidadania, tirar a criança da rua e mostrar para ela uma condição de vida melhor. (HIKIJI, 2006, p. 76)

A fim de recuperar mais elementos que remontam à história desse projeto,

como os ideais de cultura impressos na sociedade nesse período, seguimos o

caminho metodológico apontado por Hikiji (2006) e pesquisamos o acervo da mídia

impressa de maior veiculação em São Paulo (Folha de S. Paulo e O Estado de S.

Paulo), de 1995 a 2014. Sabemos das limitações de tais fontes, mas, dada a

escassez de trabalhos acadêmicos sobre o Projeto Guri12, essa foi a alternativa

encontrada para compreender o alcance social e cultural associado a ele.

A hipótese de Hikiji (2006) acerca da construção social do medo relacionado

aos pobres e da violência constantemente atribuída a eles foi confirmada. Em

especial, no conteúdo das matérias publicadas entre 1997 a 2003. Nós sabemos

que tal “estrutura de sentimentos” diz respeito à classe social dominante; contudo,

ela detém o poder simbólico necessário para influenciar a sociedade de seu tempo

e, por isso, atinge ampla adesão social, alimentando o discurso da segurança

pública e os anseios educacionais.

Dessa forma se constrói a necessidade de cultivo de uma cultura tida como

da minoria e voltada aos pobres, como um modo de “civilizar”, sobretudo, crianças e

12

No último levantamento bibliográfico realizado em 2014 foram encontradas somente duas teses sobre o Projeto Guri: A música e o risco: etnografia da performance de crianças e jovens participantes de um projeto social de ensino musical (2006), da antropóloga e Professora do Departamento de Antropologia da USP, Rose Satiko Gitirana Hikiji. E Tecendo cidadania no território da Educação Musical: a experiência do Guri Santa Marcelina (2013) da assistente social e Coordenadora da área de Assistência Social do Guri Santa Marcelina, Marta Regina Pastor Bruno.

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jovens, a fim de conter possíveis tensões sociais, mas também com uma pretensão

de transformação social a partir desses meios; eventualmente, encontramos as duas

dimensões nesse projeto.

A existência dos pobres e de suas necessidades culturais ganha visibilidade,

porém suas caracterizações estereotipadas impõem a priori o lugar de recepção dos

bens culturais. Vejamos somente alguns títulos que fazem menção a esse processo

de assimilação cultural. No jornal O Estado de S. Paulo: “Música transforma vida de

250 guris da Febem” (19/07/1999a), “Arte é usada para elevar auto-estima de

jovens; Música erudita torna-se um atalho para a cidadania” (21/08/1999b), “Chance

para os menores da Febem” (02/12/1999c), “Arte recupera menor infrator da Febem”

(25/04/1998), “Ocupando mentes” (05/05/2000a), “Projeto Guri leva música a

crianças carentes” (05/06/2000b), “Jovens da periferia representam o Brasil em NY”

(04/05/2002); e no jornal Folha de S. Paulo: “Arte faz fuga da Febem diminuir 41%”

(06/06/1997), “Aumentar auto-estima é arma contra crime” (26/07/1998), “Milton

canta com meninos da Febem” (14/09/1997), “Música clássica orquestra as

primeiras notas de cidadania” (26/07/2001).

Percebe-se, nesse período, a ênfase da mídia sobre a inserção do projeto de

ensino musical no ambiente da Febem – tanto que há pouquíssimas referências aos

demais polos do projeto, o que causa a falsa impressão de que todos os

participantes fossem menores infratores da Febem – e a sugestão de uma certa

pacificação pela música. Porém Hikiji (2006) nos convida, em sua análise, a olhar

para além das oposições música e violência, bem e mal, por meio da observação da

experiência desses jovens.

Primeiramente, a autora discute a categoria tempo, por entendê-la como

central, pois a demanda da sociedade é de que se ocupe o tempo ocioso ou livre

das crianças e dos jovens pobres, para que não haja espaço para a sedução da

criminalidade. E, do mesmo modo, com relação aos filhos e às filhas de famílias da

classe média e alta, para que não haja nenhum potencial empreendedor

desperdiçado. Da célebre frase “Tempo é dinheiro”, de Benjamin Franklin,

oportunamente analisada por Max Weber (2004), interpreta-se tempo ocioso é

perigoso. Tal valor negativo remete a uma herança da Revolução Industrial e a sua

construção de que o ócio e o tempo livre não geram riquezas.

Há que investigar, conforme sugere Hikiji (2006), os sentidos atribuídos à

ocupação do tempo com a música e as possibilidades de o tempo musical libertar os

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sujeitos. Para a política institucional da Febem, salienta a autora, a ocupação do

tempo é a ideia fundamental para a ruptura com o destino livre e errante produzido

na rua. No Projeto Guri, a ocupação do tempo pela música pretende disciplinar os

sujeitos. Melanie Farkas, presidente da Sociedade de Amigos do Projeto Guri,

declarou: “A música, diferentemente de outras atividades, é uma atividade de

conjunto. Para a ideia de integração, disciplina, organização é a maneira mais

adequada para criar a sensação de trabalho em conjunto” (HIKIJI, 2006, p.77, grifo

nosso).

Sendo assim, temos elementos para inferir que, nesse momento histórico,

para a coordenação do projeto, roubar dos filhos e das filhas dos pobres o tempo

livre destinado à brincadeira e à socialização, no espaço público, significa disciplinar

uma classe trabalhadora.

Que o conceito de disciplina é fundamental à música ocidental não há

dúvidas, porém a supervalorização da disciplina por um projeto social que visa à

inclusão sociocultural e não tem a intenção de ser um curso técnico e

profissionalizante, é, no mínimo, emblemática. Conforme ressalta Hikiji (2006), há

outros atributos pertinentes ao fazer musical que felizmente não escapam à relação

experimental vivenciada por esses sujeitos, o que faz renascer, no contato com a

música, o sentimento de tempo liberado.

A experiência orquestral proporcionada por esse projeto promove o contato

com o outro, a construção coletiva, a relação indivíduo e grupo como unidade de

sentido e de solidariedade, conforme argumenta Hikiji (2006, p. 145-6, grifos do

original):

O fazer musical, lembra Lévi-Strauss (O Cru e o Cozido, 1991, p.35), pega “pelas entranhas”, age “sobre o espírito e sobre os sentidos”, move “ideias e emoções’. Ou seja, instaura desejo, gera sentimento e reflexão, produz conhecimento. [...] presenciei jovens despertados pelo fazer musical, jovens que percebiam suas potencialidades e as limitações decorrentes de sua situação, seja de preso, seja de pobre. Jovens que percebiam o prazer decorrente da produção de sons, de música, mas sabiam que dificilmente teriam acesso a esse prazer do outro lado dos muros. E o aluno que fala para o professor “quando sair daqui quero roubar um contrabaixo” é a expressão da explosão da dicotomia, um retrato da contradição.

Assim como o Projeto Guri na Febem, havia outras opções de projetos na

área de arte-educação nessa instituição, o que permitia a escolha pelos jovens.

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Quando optavam pelo Guri, reforça Hikiji (2006), havia um senso de diferenciação

entre o interior da Febem e a rua, de abandono dos estereótipos imputados pela

sociedade e de humanização. Já os internos identificados como aqueles da música

de rua também apresentam uma dimensão interessante. Encontramos acerca disso

somente uma matéria dentre todas as referentes ao projeto nos jornais pesquisados,

na seção “Reabilitação”, da Folha de S. Paulo (10/07/1999):

Segundo Rose Marie dos Santos, coordenadora de projetos especiais da Febem, iniciativas desse tipo são importantes para a reintegração social desses meninos. Para o músico PMC, líder do Jigaboo, o projeto Realidade tem como função mostrar a realidade desses adolescentes sob o ponto de vista “de quem está lá dentro” e colocar os jovens no mercado musical. Alemão, 17 anos, “Entrei pra 'família Jigaboo' pra mostrar à sociedade que não somos o que eles pensam. Tem muita gente de valor aqui". Cascavel, 17 anos, “Resolvi entrar no projeto Realidade pra poder falar do que eu vivo, de como me sinto aqui". "Nossa ideia não é formar músicos profissionais, e sim transformá-los em cidadãos sensíveis", afirma Renata Soares, diretora da escola-oficina e responsável pelos setores de profissionalização e de arte e cultura da Febem.

A rua, conforme nota Hikiji (2006), é, para os jovens da Febem, sinônimo de

libertação e criação, tanto é que no discurso dos rappers ela é lembrada como lugar

da cultura e metáfora da sociedade, onde se produz um tipo de conhecimento que

também tem uma finalidade própria e emancipadora em si – basta tomar como

exemplo o rap produzido, na região do Capão Redondo, bairro periférico de São

Paulo, por uma referência neste campo, o grupo Racionais MCs.

Retomando o Projeto Guri, embora ele tenha uma posição ideológica bem

demarcada, conforme alerta Hikiji (2006, p. 220-1), as relações sociais são muito

mais dinâmicas do que podemos supor, a ponto de o ensino de música ser capaz de

colocar “em risco a ordem que separa os universos do trabalho e do lazer, da

punição e da diversão, de presos e libertos, do popular e do erudito, de pobres e

ricos”. É preciso destacar essa dimensão, para não deixar se perder, na análise, a

presença das contradições.

Partindo dessa breve contextualização que fundamenta a elaboração do Guri,

poderemos tratar diretamente seus aspectos gerais: objetivos, público alvo, proposta

educativa, entre outros, sempre associados aos valores que o constituíram.

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Aos poucos, o Guri conquistou ampla aceitação e repercussão social, por

meio de premiações, ampliação no número de crianças e jovens atendidos, produtos

veiculados, parcerias internacionais e defesa da mídia:

Tabela 1 – Projeto Guri – Premiações, parcerias internacionais e produtos, de 1999 a 2013.

A

Ano

Premiações

Parcerias Internacionais

Produtos

1

1999

Lançamento do 1º CD – Hinos. A coletânea contempla

três hinos: “Hino Nacional”, “Hino da Independência” e

“Hino da Proclamação da República”.

2

2000

Prêmio Multicultural de O Estado

de S. Paulo, de melhor projeto de

fomento à cultura.

Lançamento do CD Herdeiros do futuro, com a

participação de Toquinho e banda, coral e orquestra do projeto.

2

2001

Representa as crianças

brasileiras na Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em Nova

York, a convite do MEC.

2

2002

Apoio financeiro do Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID).

2

2003

Ordem do Mérito Cultural, oferecida pela Presidência da

República, por indicação do MinC.

2

2005

Participação na 1ª Conferência

Orquestral da África do Sul, evento organizado pela WASBE-SA (World Association

for Symphonic Bands and Ensembles South Africa).

Lançamento de loja virtual com marcas do projeto:

boneco, caneta, adesivo e CD.

2

2009

CD Projeto Guri Convida, com participações de Thalma de

Freitas, Andreia Dias, Arnaldo Antunes, Rappin’ Hood, entre outros.

2

2010

O CD Projeto Guri Convida é

finalista do Prêmio da Música

Brasileira, na categoria Álbum Infantil.

Lançamento do livro Guri, 15 anos.

2

2011

Lançamento do Mixer Guri, software interativo para criação de músicas, que teve como objetivo a captação de doações de pessoa física e envolveu Naná Vasconcelos e

Arnaldo Antunes, entre outros artistas.

2

2012

A Amigos do Guri se afilia à

Jeunesses Musicales International, associação sediada na Bélgica que reúne

diversas organizações musicais em cerca de 70 países.

Lançamento e distribuição dos livros didáticos para

educadores do Guri e elaboração de livros didáticos para alunos. São 11 livros específicos para os cursos de baixo elétrico, bandolim, bateria, canto coral infanto-juvenil,

cavaco, guitarra, madeiras, metais, percussão, viola caipira, violão e 1 guia didático para cordas friccionadas.

2013 Distribuição de mais de 30 mil exemplares da coleção de

material didático para cada aluno. São 17 títulos que atendem aos cursos de: baixo elétrico, bandolim, bateria, cavaco, canto coral infanto-juvenil, clarinete, eufônio,

flauta, guitarra, percussão, saxofone, trompa, trombone, trompete, tuba, viola caipira e violão.

Fonte: Material eletrônico de divulgação institucional, http://www.projetoguri.org.br. Elaboração própria.

Participam do Guri crianças e jovens de 6 a 18 anos, especialmente aqueles

oriundos de regiões geográficas consideradas pobres e sem infraestrutura de

equipamentos públicos. Atualmente, somam aproximadamente 35 mil alunos no

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interior, no litoral e na Grande São Paulo, distribuídos em 370 polos14, conforme

apresentaremos nos quadros e no mapa abaixo.

Dos 38 polos existentes na cidade de São Paulo, conforme análise do IVJ

apresentada anteriormente, 18 encontram-se em regiões pobres, 17 em regiões de

classe média baixa, 1 em região de classe média e 2 em regiões ricas. Sobre os

polos situados no interior e nos municípios da Grande São Paulo, uma possível

análise encontra-se no Índice Paulista de Vulnerabilidade Social – IPVS (Fundação

SEADE), elaborado em 2010, com base nos dados do Censo Demográfico de 2010.

Esta referência pode ser considerada para fins de compreensão de ordem

socioeconômica e geográfica dos participantes do Guri nesses espaços da malha

urbana. Para esta pesquisa, nos interessa especificamente a realidade da cidade de

São Paulo. Por isso, não analisaremos os 332 polos restantes à luz do IPVS 2010.

Figura 3 - Distribuição dos Polos do Projeto Guri em 2013.

Fonte: http://www.projetoguri.org.br/mapa-dos-polos/

14

Relatório de Atividades AAPG, 2013, p.18.

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Tabela 2 – Distribuição dos polos do Projeto segundo regiões administrativas e polos da Fundação Casa em 2013.

Regiões Número

de

polos

Polos na Fundação Casa

Raposo

Tavares

Brás Bom

Retiro

Jardim

Quissiana

Pirituba Itaquera Brasilândia José Bonifácio Mooca

Araçatuba 30

Itapeva 22

Jundiaí 31

Marília 36

Presidente

Prudente

39

Ribeirão

Preto

38

São Carlos 37

São José

dos Campos

32

São José do

Rio Preto

36

São Paulo 38 Casa

Nova

Aroeira e

Casa Ipê.

Casa Rio

Tocantins,

Casa Rio

Tamisa,

Casa Rio

Paraná,

Casa Rio

Nilo e Casa

Juquiá.

Casa Ruth

Pistori.

Casa Vila

Conceição.

Casa

Pirituba.

Casa

Itaquera.

Casa

Feminina

Parada de

Taipas.

Casa Fazenda

do Carmo.

Casa

Chiquinha

Gonzaga

CI.

Sorocaba 31

Fonte: Site institucional http://www.projetoguri.org.br. Elaboração própria.

Os dados são elucidativos da origem social desses jovens: eles vivem em

áreas consideradas pobres. Identificamos que 94,8% dos 38 polos situam-se em

áreas onde vivem as classes trabalhadoras e 5,2% em áreas consideradas ricas.

Dos 18 polos sediados em regiões pobres, 14 vinculam-se à Fundação Casa, a qual

abriga os jovens em cumprimento de medidas socioeducativas (que praticaram de

pequenos furtos a assassinato). Temos assistido a uma forte argumentação

generalizante e direcionada a esse público.

Pobreza e classe trabalhadora não são sinônimos. Porém, é do interesse de

projetos como o Guri e das instituições que regem nossa sociedade alimentar a

construção social do medo e da violência atribuída a essas regiões e

consequentemente a todos que nelas vivem. Ao fazerem isso, desconsideram ou

omitem a presença das classes trabalhadoras que também residem nesses espaços

da malha urbana, cujos filhos e filhas participam majoritariamente do Projeto Guri.

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A palavra “classe” engloba diferentes sentidos e se complexifica em seu uso

específico relativo à divisão social, segundo Williams (2007, p. 85-95).

Historicamente, diferentes concepções teóricas foram atribuídas ao termo para

designar um grupo ou divisão social. Optamos pela compreensão de classe como

categoria econômica na qual se entende que todos aqueles que vendem sua força

de trabalho e desse processo recebem um salário pertencem às classes

trabalhadoras. Sendo assim, a situação econômica de todos os que vivem em

regiões consideradas pobres sugere que eles partilham de modos de vida e

interesses semelhantes que fazem parte das classes trabalhadoras (p. 93-4).

Voltaremos a essa discussão no capítulo III.

Hikiji (2006) construiu um conjunto de dados sobre o Projeto Guri de 1995 a

2006 e os analisa à luz do discurso institucional proferido pela coordenação técnica.

Ela não aborda a problemática da relação Estado e Organização Social da Cultura,

como pretendemos fazer a seguir. Contudo, ela desconstrói analiticamente

categorias como: cidadania, autoestima e inclusão social, permitindo constatar a

ideologia veiculada pelo projeto.

Segundo Hikiji (2006), cidadania e autoestima são frequentemente

associadas como similares em sentido, no discurso de vários proponentes do

projeto. Embora a prática musical no interior do Guri proporcione socialização,

construção de identidades, noção de pertencimento social e vínculos no grupo, a

passagem para a compreensão da cidadania não se cumpre: não se aborda nem ao

menos a arte como um direito de cidadania.

Por outro lado, a aposta no resgate da autoestima parte do pressuposto de

que as crianças e os jovens atendidos possuem, no geral, baixa autoestima; e

invalida as experiências anteriores desses jovens, as quais possivelmente lhes

asseguravam formas de gostar de si, de autoconfiança. Além disso, torna os

espaços de exposição ao público – em especial, espaços frequentados pela classe

média e alta – responsáveis pelo resgate da autoestima de crianças e jovens

pobres, conforme podemos verificar a seguir no depoimento de Ângela Maria

Visconti, supervisora técnica do Projeto Guri:

Esse resgate da auto-estima está funcionando muito em cima das apresentações que a gente proporciona e dos espaços que estão sendo criados para que essa criança possa se mostrar. Como no ano

passado: juntar uma orquestra de mais de 150 componentes aqui na

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Sala São Paulo...Foi uma apresentação enorme, com a Celine Imbert, na música erudita, e o Toquinho, na música popular. O que a gente vê de auto-estima nisso? O prazer que eles tiveram... (HIKIJI,

2006, p. 89, grifo nosso)

O olhar sobre a inclusão social revela que, ao se apropriarem da música

como forma de intervenção social, os coordenadores do projeto definem que a

escolha do gênero musical erudito, em si, já é um instrumento de inclusão das

crianças e dos jovens pobres. Ao afirmar isso, atribuem, como ideais, outros não

necessariamente associados ao fazer musical, como disciplina, responsabilidade,

concentração e autoestima, além de reiterar preconceitos de classe (HIKIJI, 2006).

Elizabeth Parro, coordenadora do projeto, informa, no trabalho de Hikiji (2006, p.

105):

Porque você consegue com o clássico a concentração, a responsabilidade... Para tocar um tambor, é uma coisa mais simples. Para tocar violino exige uma concentração muito maior. Exige postura, responsabilidade, compromisso. Por isso nós fomos para o clássico. Eles formam uma família. Ali, quando estão juntos, há uma concentração tão grande que um precisa do outro. [...] Na Casa de Solidariedade [onde funciona um dos polos do Guri], trabalhamos com crianças do cortiço. Imagina o que é colocar os meninos na sala de aula e naquele momento fazer com que eles parem para ouvir. Eles têm que se ouvir.

Identificamos que o projeto reitera e reproduz a divisão artificial construída

pela burguesia: arte erudita X arte popular, o que expressa uma compreensão

elitista sobre a cultura, somada a ideais salvacionistas por meio da música clássica.

Do ponto de vista da compreensão musical por parte da coordenação do projeto, fica

evidente seu conhecimento restrito ao comparar o tambor ao violino, instrumentos

que admitem importância distinta em diferentes contextos de execução.

Trata-se de uma visão estigmatizada associar música erudita a uma cultura

de elite, conforme problematiza João Maurício Galindo, diretor artístico e regente

titular da Orquestra Jazz Sinfônica, responsável pelo desenvolvimento do método de

ensino de cordas do Guri. Galindo ressalta que a maioria dos músicos de São Paulo

não vem de famílias abastadas, mas da classe média ou baixa. Além disso, ele

defende a formação orquestral e o ensino dessa prática como uma opção por fazer

música em conjunto e não por restringir-se ao repertório erudito (HIKIJI, 2006).

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Em parte, Galindo desconstrói essa falsa opinião, expondo argumentos sobre

o ensino de música e formação orquestral. No entanto, no campo de disputas entre

a coordenação técnica e os músicos, prevalece o discurso da coordenação.

No decorrer de seu trabalho de campo, Hikiji (2006) se deparou com

ambiguidades como essas, em especial, na concepção do fazer musical por parte da

coordenação técnica e dos músicos envolvidos no projeto. A sala de aula tornou-se

o espaço de válvula de escape, onde os professores de música transmitem

conhecimentos da área, valores, anseios e frustrações do percurso profissional.

Conforme vimos, a gestão do Projeto Guri, de 1995 a 2006, estruturou como

princípios a apropriação do ensino musical para cultivar determinados valores com

as crianças e os jovens, como salienta Hikiji: responsabilidade, disciplina,

concentração, autoestima e cidadania. Como projeto social, esses valores admitem

o objetivo de formar trabalhadores e minimizar os conflitos sociais. Embora tenham

sido destacadas, na pesquisa de Hikiji (2006), mudanças no âmbito subjetivo, nas

relações interpessoais e ampliação do conhecimento musical, não podemos deixar

de mencionar as expectativas de crianças e jovens em relação à carreira na música

e a ausência de discussão acerca das categorias classe social e desigualdade social

na cidadania.

O surgimento da Associação de Amigos do Projeto Guri

Nos anos 1997 a 2003, no interior da Secretaria de Estado da Cultura (SEC-

SP), constituiu-se a Sociedade de Amigos do Projeto Guri, a fim de gerenciar o

Projeto a partir de um novo modelo inaugurado naquele momento histórico, a

Organização Social (Lei nº 9.637/1998). Essa lei propõe que as ações culturais no

âmbito público passem por processos de reestruturação, o que consiste na sua

transferência da esfera estatal para a esfera privada de interesse público. Sendo

assim, instituições privadas propõem um projeto de gestão para coordenar projetos,

escolas e teatros públicos, o que implica na extinção das instituições originais15 e

também das relações sociais de trabalho e formação, outrora constituídas em âmbito

público e estatal.

15

Dessa forma é descrito o que, em termos jurídicos, se nomeia publicização. Para fins analíticos, adotaremos este termo a partir deste momento.

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Durante esse período, a Sociedade exerceu um trabalho experimental,

investindo em sua autoimagem nacional e internacional, por meio da criação de

produtos (CDs, espetáculos, camisetas, canetas, etc.) com efeito de propaganda e

expansão dos polos. Em junho de 2004, a Associação de Amigos do Projeto Guri

(AAPG) foi qualificada como Organização Social de Cultura e, em novembro do

mesmo ano, firmou o primeiro contrato de gestão com a Secretaria de Estado da

Cultura para administrar o Projeto Guri.

Em 2004 ocorreu uma expansão do Guri no interior e na região metropolitana

de São Paulo, pelas parcerias estabelecidas com as prefeituras e os municípios e

também com a criação dos Centros Unificados de Educação - CEUs, durante a

gestão de Marta Suplicy (2001-2005) na Prefeitura de São Paulo e a do secretário

municipal de cultura Celso Frateschi (2003-2004).

Nesse contexto é que se instaurou um novo modelo institucional de gestão

das ações culturais, a Organização Social da Cultura. Desde 2004, por meio de sua

regulamentação legal, os projetos vinculados diretamente à SEC-SP passaram a ser

coordenados por associações civis e/ou instituições privadas sem fins lucrativos, a

partir de um contrato de gestão estabelecido por ambas, que firma, inclusive, o

recurso orçamentário a ser oferecido pela Secretaria para esse fim. Segundo a

coordenação da AAPG, atualmente, 95% dos recursos orçamentários são

provenientes da SEC-SP. No entanto, há ainda outras modalidades de recursos a

serem capitaneados pelas Organizações Sociais da Cultura: doação direta ou via

incentivos fiscais da Lei Rouanet (pessoa jurídica e física).

De acordo com as informações divulgadas pela Associação em seu endereço

eletrônico16, os patrocinadores estão classificados conforme o tamanho do aporte

financeiro realizado, o que também resulta numa estratégia de marketing favorável a

ambas as partes:

1-) Patrocinadores Ouro: Concessionária de Estradas CCR AutoBan; SKY –

empresa de TV por assinatura; Duke Energy Brasil – concessionária

das usinas hidrelétricas Jurumirim, Chavantes, Salto Grande, Canoas I e II,

Capivara, Taquaruçu e Rosana; BancoVotorantim – um dos maiores

conglomerados privados da América Latina.

16

Vide http://www.projetoguri.org.br/parceiros/patrocinadores/. Acesso em: 25 de março de 2015.

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2-) Patrocinador Prata: Grupo Maringá – uma Cia Holding cuja estrutura

societária é denominada São Eutiquiano Participações S/A, que controla as

empresas Cia Canavieira de Jacarezinho e Cia Agrícola Usina Jacarezinho,

do setor Sucro-Alcooleiro, e Maringá Ferro-Liga S/A, do setor de Siderurgia.

3-) Patrocinadores Bronze: Grupo Segurador Banco do Brasil Seguros

Participações S. A. e Grupo MAPFRE Seguros, uma união estratégica no

setor de seguros, maior empresa no ramo da América Latina; Magazine Luiza,

uma das maiores empresas varejistas do país; a empresa farmacêutica EMS;

TAUSTE Ação Social – Rede de Supermercados (Bauru, Marília e Sorocaba);

CCR SPVias, responsável por 3.284 quilômetros de rodovias da malha

concedida nacional, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e

Mato Grosso do Sul, tem ainda 34,25% do capital social da STP, que opera

os meios eletrônicos de pagamento Sem Parar e Via Fácil, além de estar

presente no segmento de transporte de passageiros por meio das

concessionárias Via Quatro, CCR Barcas e CCR Metrô Bahia; Mercedes-

Benz, fabricante e fornecedora mundial de veículos comerciais, automóveis,

componentes e serviços relacionados; Capitale Energia, agente de

comercialização de energia e membro da Câmara de Comercialização de

Energia Elétrica – CCEE –, atua como agente de comercialização de energia

ou ainda representando clientes; Pirelli, corporação internacional de produtos

e serviços no ramo automobilístico; Capuani, companhia nacional que atende

a pequena e grande demanda (nacional e internacional) em fornecimento de

matéria-prima (fragrâncias ou surfactantes) para as mais diferentes

aplicações; Arteris, uma das maiores companhias no setor de concessões de

rodovias do Brasil (federais) em quilômetros administrados, mantém parceria

com a Abertis Infraestruturas S.A. e com a Brookfield Motorways Holdings

SRL.

4-) Empresas Colaboradoras: Pinheiro Neto – advogados, um escritório full

service que se situa nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília e

possui alto nível de especialização nas diferentes áreas do direito; Catho,

empresa online de classificados de emprego e serviços de preparação dos

candidatos, foi incorporada por dois grupos de investimentos estrangeiros: a

Tiger Global Management LLC e a Seek Corporation; Cipatex, um grupo de

empresas com mais de 100 mil metros quadrados de área produtiva, atuando

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nos setores plástico, químico e não tecidos; PPE Fios Esmaltados S. A. –

situa-se em Cerquilho (SP) e Joinville (SC) e produz fios para enrolamentos e

vergalhão de cobre.

5-) Apoiadores: Credit Suisse e Credit Suisse Hedging-Griffo atuam em

private banking, administração de recursos de terceiros (asset management),

operações de crédito, emissão de ações e títulos, abertura de capital (IPO),

fusões e aquisições de empresas (M&A), corretagem e tesouraria; Inforshop,

distribuidora de suprimentos originais para escritório.

A partir de uma visita aos websites dessas empresas, foi possível constatar

as relações entre poder simbólico (Organizações Sociais da Cultura) e poder

corporativo (empresas patrocinadoras) por meio da ideologia veiculada por ambos. É

observado um discurso de defesa de um capitalismo sustentável, que viabilize o

desenvolvimento do país e o aumento dos lucros das empresas, sem comprometer o

equilíbrio do meio ambiente, com ênfase na responsabilidade social, na

sustentabilidade e no consumo consciente. Do mesmo modo, as ações do Projeto

Guri – AAPG – privilegiam a conscientização ambiental (parceria com o Instituto de

Pesquisas Ecológicas - IPÊ), projetos especiais como Orquestra Verde e Guri

Consciente17. O que resulta dessa parceria é o conjunto de valores a serem

interiorizados pelos participantes: conformação dos indivíduos ao seu grupo de

origem, seu protagonismo social como sinal de sua resiliência, noção de equipe,

tolerância e cooperação.

Podemos verificar todos esses aspectos na orientação mais recente do

mercado de trabalho, proveniente da racionalidade capitalista pós-reestruturação

produtiva, em que são mobilizadas as competências atitudinais, como a polivalência,

o empreendedorismo, a flexibilidade, a criatividade e a liderança. Para exemplificar a

17

“Quando pensamos numa Orquestra Verde o propósito é ir além do que os olhos podem ver. Em tempos em que os recursos naturais tornam-se cada vez mais escassos, é preciso reavaliar muitos hábitos cotidianos e ficar mais atento ao que se pode fazer para amenizar o impacto que estamos gerando a natureza. Uma destas formas é a conscientização na hora de adquirir um bem. Pensando em nossas responsabilidades ambientais, o Guri Consciente – projeto desenvolvido pelos funcionários da organização Amigos do Guri, que visa despertar a consciência da sociedade com base em quatro pilares principais: Meio Ambiente e Sustentabilidade, Saúde, Ética e Diversidade, e Cidadania e Direitos – decidiu formar uma orquestra de cordas dedilhadas composta por doze violões, quatro cavacos e quatro violas caipira feitos com madeira maciça certificada pela Forest Stewardship Council (FSC), organização criada para promover o manejo florestal responsável ao redor do mundo. ‘Além de ecologicamente corretos, estes instrumentos proporcionam maior qualidade de som, apresentando melhor timbre e projeção sonora’, ressalta José Henrique de Campos, Violonista e Diretor Educacional do Guri.” Disponível em: http://www.projetoguri.org.br/projetos-especiais/orquestra-verde/. Para maiores informações, ver também: http://www.projetoguri.org.br/guriconsciente/. Acesso em: 25 mar. 2015.

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concepção na qual se baseia essa formação dos futuros trabalhadores, citamos a

declaração da ex-Presidente do Conselho de Administração da AAPG – que fez

parte do conselho durante oito anos – e atual membro do Conselho Consultivo, a

socióloga Ana Maria Wilheim, em entrevista concedida ao Instituto de Pesquisa

Ambiental da Amazônia (IPAM), quando estava ligada ao Instituto Akatu18 em 2012:

As organizações não governamentais são fundamentais e as empresas reconhecem sua importância. As ONGs são hoje um campo de inteligência: monitoram, fiscalizam, denunciam. Hoje, muitas empresas confiam em ONGs e se associam a elas em projetos. A Brasken chamou o Akatu para referendar um estudo sobre sacolas plásticas. Fomos chamados porque eles sabem que vamos questionar. (CAMPANILI, 2012)

Retomando a questão do patrocínio, é importante ressaltar que a pretensa

responsabilidade social levou algumas das empresas citadas a investir em projetos

sociais próprios e/ou em editais por elas propostos, tais como: Grupo CCR, Grupo

Segurador Banco do Brasil e MAPFRE, TAUSTE Ação Social, Pirelli, Capuani,

Arteris, Pinheiro Neto Advogados e PPE Fios Esmaltados. As áreas privilegiadas

são: cultura, educação, saúde, meio ambiente, assistência social e esportes. Não

por acaso, são setores essenciais e estratégicos em nossa sociedade, cujo controle

é autorizado e estimulado para o poder corporativo, que passa a veicular sua

ideologia e formar seus beneficiários.

Sendo assim, constatamos que, em quase 20 anos, se constitui não só uma

inovação institucional, mas uma concepção de política pública para o campo da

cultura em âmbito estadual.

18

“O Instituto Akatu é uma organização não governamental sem fins lucrativos, que trabalha pela conscientização e mobilização da sociedade para o Consumo Consciente. Defende o ato de consumo consciente como um instrumento fundamental de transformação do mundo, já que qualquer consumidor pode contribuir para a sustentabilidade da vida no planeta: por meio do consumo de recursos naturais, de produtos e de serviços e pela valorização da responsabilidade social das empresas”. Disponível em: http://www.akatu.org.br/Institucional/OAkatu. Acesso em: 29 mar. 2015.

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CAPÍTULO II

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E AS POLÍTICAS CULTURAIS

___________________________________________________________________

O objetivo deste capítulo é analisar a concepção de política cultural adotada

pelo estado de São Paulo nos últimos 20 anos. Nosso objetivo é trazer dados

analíticos para a questão proposta na introdução: qual é a intenção de transferir a

gestão de políticas culturais para a iniciativa privada? Nisto consiste o esforço

teórico desta discussão, que não pretende tratar separadamente o campo empírico e

o campo teórico, mas compreendê-los como uma unidade de sentido, de forma que

não é possível constituir o fenômeno sem a devida junção de ambas as partes.

O modelo de política cultural que vem se estruturando em âmbito estadual e

nacional se constitui de Fundações, Organizações Sociais da Cultura (OSC) e

Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs). Desde 1998, com

a promulgação da Lei Federal nº 9.637 (BRASIL, 1998) que as regula, as ações

culturais no âmbito público têm sido submetidas a processos de reestruturação, o

que consiste na sua transferência da esfera estatal para a esfera privada de

interesse público. Sendo assim, instituições privadas propõem um projeto de gestão

para coordenar projetos, escolas e teatros públicos, o que implica na extinção das

entidades originais e das relações sociais de trabalho e formação, outrora

constituídas em âmbito público e estatal.

Essa reestruturação emerge no processo político de Reforma Administrativa

do Aparelho de Estado em 1995, elaborado pelo Ministro da Administração Pública e

Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira19 (1997) e, posteriormente,

conduzido pela Ministra Cláudia Costin20 (1998-1999), responsável pela

19

O Professor Emérito da Escola de Economia da FGV-SP, historicamente, ocupou cargos públicos por tempo determinado e curto prazo: Ministro da Fazenda em 1987 e Ministro da Ciência e Tecnologia em 1999. Além disso, possui vasta produção intelectual cujo conteúdo consiste em propostas de intervenção econômica e política para o desenvolvimento da democracia capitalista. Disponível em: http://www.bresserpereira.org.br/. Foi também Presidente do Banco do Estado de São Paulo – BANESPA (1983-1985) e Conselheiro Consultivo do Grupo Pão de Açúcar (1988-2012). Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4794422H1. Acesso em: 08 mar. 2015. 20

Após a sua experiência à frente do Ministério, a especialista em Administração Pública (Doutora pela FGV-SP) foi também Secretária de Cultura do Estado de São Paulo (2003-2005), Vice- Presidente da Fundação Vitor Civita (2005-2007), Secretária Municipal de Educação do Rio Janeiro (2009-2014). Em seguida foi convidada a assumir por dois anos o gerenciamento de Políticas Públicas e Combate à Pobreza para a América Latina no Banco Mundial, quando coordenou projetos

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implementação do projeto das Organizações Sociais como gestoras e executoras de

serviços públicos sociais, como saúde, educação e cultura.

O intuito principal de tal reforma foi tornar o país economicamente competitivo

na era global. Para tanto, adotou-se o modelo administrativo público gerencial, sob

um Estado Social-Liberal21, baseado em conceitos atuais de administração e

eficiência e voltado para o controle dos resultados e para a descentralização

(BRESSER PEREIRA, 1997).

Historicamente a tradição filantrópica privada compõe parte da oferta de

serviços sociais em nosso país, como entidades privadas de utilidade pública

(filantrópicas, associações comunitárias, santas casas de misericórdia, entre outras),

atendendo demandas essenciais com vantagens econômicas para isso (isenção de

impostos). Contudo, a reconfiguração dessas formas tradicionais como

Organizações Sociais no Estado contemporâneo representam uma “inovação

institucional”, no que se refere ao seu marco legal e modo de parceria com o Estado,

conforme analisa Modesto (1997), assessor do ex-ministro Bresser Pereira e

professor de Direito na UFBA.

Compreendemos que a discussão acerca da mercantilização da arte se faz

presente desde a construção do conceito de cultura, entre os séculos XVIII e XIX.

No Brasil, no século XIX, vimos o nascente capitalismo cultural por meio da

constituição da imprensa, num país de analfabetos e escravos em sua maioria, o

que expressa aparente paradoxo.22 Contudo, o debate proposto nesta dissertação é

contemporâneo, por isso, iremos adotar como marco histórico o período anterior a

inserção das artes no mercado em contexto neoliberal. Para Ridenti (2000), a esfera

cultural e artística passou a compor a lógica mercantil, no contexto brasileiro, desde

o seu estabelecimento com a terceira revolução tecnológica capitalista, a partir dos

anos 1960. Esse processo se intensificou com a expansão da indústria cultural,

na Guatemala, na Argentina, na República Dominicana, no Brasil, no Peru e no Chile. Disponível em: http://ebape.fgv.br/node/1316 . Acesso em: 08 mar. 2015. 21

Bresser-Pereira (1997, p. 10) atribui a esta expressão a seguinte definição: “social porque continuará a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento econômico; liberal porque o fará usando mais os controles de mercado e menos os controles administrativos, porque realizará seus serviços sociais e científicos principalmente através de organizações públicas não estatais competitivas, porque tornará os mercados de trabalho mais flexíveis, porque promoverá a capacitação de seus recursos humanos e de suas empresas para a inovação e a competição internacional”. 22

Para maior aprofundamento nesse tema, indicamos: PAIXÃO, Alexandro Henrique. Um público para a literatura oitocentista no Brasil: o exemplo dos emigrantes portugueses do Rio de Janeiro em 1860. In: Revista Escritos, Rio de Janeiro, Ano 5, n. 5, 2011.

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entre os anos 1970 e 1980, rendendo empregos e contratos de trabalho aos artistas,

inclusive com o próprio Estado, apesar do contexto de repressão desse momento

histórico (RIDENTI, 2000).

Apesar de essa visão mercantilizada de cultura ser a que persiste em nossa

atualidade e, inclusive, orienta as políticas culturais, temos, do mesmo modo, uma

compreensão mais ampla acerca da cultura que convive e disputa espaço, traçando

perspectivas possíveis de política cultural.

Estamos falando numa compreensão de cultura – conforme enunciamos na

introdução – como trabalho intelectual e criativo do homem, ou seja, a sua

capacidade de se comunicar com homens e mulheres de seu tempo por meio da

música, da arquitetura, da pintura, da literatura, da filosofia, das ciências físicas –

enfim, de todos os saberes socialmente construídos, assim como aqueles não

sistematizados (das instituições, das maneiras, dos costumes e das memórias

familiares); trata-se de uma capacidade que pode, quiçá, atravessar períodos, por

ser uma atividade humana relacional que não se encerra no produto; ao contrário,

ela se baseia na produção de riquezas em torno de valores de uso. Chegamos a

essa possível compreensão de cultura por meio da expansão interpretativa dos

constructos base e superestrutura na teoria marxista, bem como do diálogo com a

produção intelectual de Raymond Williams (2007, 2011), que supera a visão

reducionista da cultura como ideologia, e lança a compreensão da cultura como todo

um modo de vida, um processo social geral, o qual se constrói com base na

experiência, desde a mais imediata até o contato com a experiência alheia.

Outros intelectuais brasileiros pensaram a política cultural desse ponto de

vista: em âmbito nacional, o economista Celso Furtado e, no município de São

Paulo, a filósofa Marilena Chaui. Vejamos, a seguir, suas respectivas concepções de

cultura. Primeiramente, Furtado (2012), em seu discurso de posse no Ministério da

Cultura (1986), apresenta sua noção de cultura, associando-a à ideia de trabalho no

mundo das artes como meio e fim, pois ele, o trabalho, não é encarado

simplesmente como meio, como fator de produção cuja produtividade se desenvolve

e amplia na medida em que avançam a acumulação e a técnica; nas artes, o

trabalho é um fim em si mesmo, no qual se torna difícil estabelecer padrões de

produtividade e mensuração de valor23. Neste excerto, especificamente, ele confere

23

Não entraremos na discussão acerca da materialidade do trabalho imaterial. Ressaltamos somente, a partir da análise elaborada por Marx (2013), que encontramos no trabalho musical, tal como nas

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maior destaque à dimensão valor de uso, aspecto que nos interessa, mas que em

nossa sociedade não podemos separar da dimensão valor de troca, para fins de

compreensão.

Cultura, para mim, é a dimensão qualitativa de tudo que cria o homem. E o que tem sentido profundo para o homem é sempre qualitativo. [...] O homem, com seu gênio criativo, dá significação às coisas, e são essas coisas impregnadas de significação que constituem a nossa cultura. Em seu esforço para enriquecer a própria vida e a sociedade em que está inserido, o homem cria cultura. Não esqueçamos que o homem é um ser em formação e que é por seu próprio esforço que ele avança nesse caminho. É natural, portanto, que o homem sempre se sinta desafiado, confrontado ao mistério de si mesmo. As obras superiores de seu espírito são respostas a esse desafio, mergulhos nesse mistério. Mas, meus amigos, a cultura também está impregnada em todos os momentos de nossa vida. Eu diria mesmo que a dimensão cultural do nosso cotidiano é o mais significativo no que respeita a uma política cultural. [...] E é dessa visão global da vida que temos de partir para pensar em política cultural. Sendo um esforço permanente para enriquecer a vida do homem, o processo cultural tem que abranger esta em sua globalidade. (FURTADO, 2012, p.51-2)

Do mesmo modo que vemos pontos de contato desta compreensão de cultura

com a elaborada por Williams (2008, 2011), encontramos, com efeito, a mesma

aproximação em Marilena Chaui, baseada em Marxismo e literatura (WILLIAMS,

1979). Principalmente porque ela ressalta o processo de distinção provocado pela

divisão social das classes (cultura dominante X cultura popular) e seus efeitos

deletérios (por um lado, a cultura como expressão e consequência da sociedade de

classes; por outro lado, a ligeira aparência de uma diferença qualitativa). Reiteramos

a análise dessa autora de que é preciso romper com esse prisma, estruturando uma

outras formas de trabalho subordinadas à lógica de produção de mercadorias e acumulação de capital, uma dupla dimensão: o trabalho concreto como fruto da necessidade humana de transformação da natureza, elemento crucial de sua existência e constituição social, e o trabalho abstrato, subvertido pelo modo capitalista de produção, cuja finalidade primordial consiste na produção de mais-valia. Partindo dessa premissa, mesmo o trabalho imaterial ou mercadoria simbólica, estaria submetido à lógica da forma mercadoria e sua realização. Porém, considerando o produto imaterial abstrato – no caso da música, o som –, sabemos que este não se mede por padrões, devido à dificuldade do cálculo do tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, o que torna sua avaliação pelo capital um tanto problemática, tal como sua apropriação privada. Apesar disso, a sujeição da atividade artística à ordem do capital se dá pela conversão de sua improdutividade em produtividade e pela exploração da capacidade de trabalho socialmente necessário (COLI, 2006a). O artista não tem o domínio total das condições objetivas e materiais da realização de seu trabalho. As consequências da consolidação de um mercado de trabalho não tradicional neste campo culminam: no crescimento do número de artistas à procura de trabalho, baixo índice de trabalho formal, ameaças baseadas na efemeridade dos empregos, crescente concorrência e exigência de maior qualificação profissional (SEGNINI, 2012). Para maior aprofundamento das questões relativas ao trabalho imaterial (imensurabilidade, irredutibilidade, improdutivo e imaterial) vide o artigo de CERQUEIRA (2015).

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crítica cultural materialista capaz de construir uma política cultural apoiada no modo

de inserção da cultura na sociedade de classes, na república e na democracia

(CHAUI, 2006).

Em decorrência de seu sentido latino e do novo sentido que recebe no final do século XVII, cultura passa a ter duas significações. Numa delas, refere-se ao processo interior dos indivíduos educados intelectual e artisticamente; é o campo das “humanidades”, apanágio do “homem culto” em contraposição ao “inculto” – esse contraponto, diz Hanna Arendt, exprime e alimenta o filistinismo burguês24. Na

outra, marcada pela relação com a história, torna-se o conjunto internamente articulado dos modos de vida de uma sociedade determinada e é concebida como o campo das formas simbólicas (trabalho, linguagem, religião, ciências e artes), produzidas pelo trabalho do Espírito (em Hegel) ou como resultado das determinações materiais econômicas sobre as relações sociais (em Marx). (CHAUI, 2006, p. 12-3)

Embora existam conexões entre Williams e Chaui, autores que constituem a

base de nosso referencial teórico, é necessário estabelecer suas diferenças para

verificar como cada autor contribui nesta análise. A obra de Raymond Williams

encontra-se no âmbito dos estudos culturais de forma bastante próxima da

sociologia, já Marilena Chaui realiza seus estudos culturais no âmbito da filosofia

sob a influência da Escola de Frankfurt. Para Williams, a cultura representa um todo,

é sinônimo de realidade social, pois as produções culturais estão no todo e, ao

mesmo tempo, nas partes (na música, na literatura, na pintura, entre outras). Para

Chaui, cultura é uma dimensão da vida, não abarca o todo, é uma esfera da

sociedade, bem como a política e a economia.

Entre os anos 1970 e 1980, os teatros subvencionados e as escolas mantidas

pelo Estado representavam instituições que possibilitavam o mais elevado grau de

direitos vinculados ao trabalho – quando comparado ao contexto mais amplo do

heterogêneo mundo da cultura25. Porém, nem todos os trabalhadores artistas

gozavam de um contrato formal de trabalho, ou de algum vínculo empregatício; pelo

24

O termo filistinismo burguês, na análise de Hannah Arendt (2001) e na interpretação de Marilena Chaui (2006, p.13), expressa os efeitos da divisão social das classes sobre a relação com a cultura, promovendo uma distinção entre “culto” e “inculto”, “cultura erudita” e “cultura popular”, “cultura e arte populares”: vinculados à tradição nacional, tornam-se folclore; e arte erudita ou de elite torna-se belas artes e é apreciada por um público seleto. 25

Acerca disso, nos referimos ao trabalho do sociólogo francês Robert Castel (2009), quando analisa a segmentação do mercado de trabalho, ou seja, distinção e consequente desarticulação da classe trabalhadora, entre núcleos protegidos pela legislação social e trabalhadores que perdem os seus direitos, desfiliados.

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contrário, recebiam somente o pagamento por ordem de serviço (MARÃO, 2011;

SEGNINI, 2012). Por outro lado, essas instituições possibilitam o exercício da arte

publicamente instituída, tendo como patrono o público (WILLIAMS, 2008). Dando

maior ênfase às atividades musicais realizadas nesses espaços, cito as seguintes

instituições e suas respectivas datas de criação: Orquestra Sinfônica Brasileira,

1940; Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, 1950; Conservatório de Tatuí, 1951;

Orquestra Sinfônica Estadual – atual OSESP, 1954; Banda Sinfônica do Estado de

São Paulo – juntamente com a Universidade Livre de Música (ULM), 1989;

Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, 1989; Escola de Música do

Estado de São Paulo - Tom Jobim, antiga ULM, 1989; Orquestra Experimental de

Repertório, 1990; Orquestra Sinfônica Jovem Municipal de São Paulo, 1968;

Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal de São Paulo, 1939; Escolas Municipais

de Arte (Dança e Música, respectivamente, 1940; 1969); Projeto Guri, 1995.

Conforme a análise de Juliana Coli, cantora e pesquisadora do MusiMid/SP26,

no início da década de 1980, os “chamados servidores artísticos” do balé da Cidade

de São Paulo e da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, que eram efetivos,

perderam a sua estabilidade e, consequentemente, seus direitos trabalhistas. Em

1988, esse grupo de trabalhadores efetivos foi eliminado, com a justificativa de que

os quadros de funcionários poderiam vir a ser repostos (COLI, 2003, p. 224-5).

As mudanças no mundo do trabalho, da criação desses postos até a

atualidade, foram substanciais e sistemáticas, especialmente se pensarmos no

processo de publicização que, a partir da década de 1990, extinguiu as entidades

estatais e públicas, substituindo-as por fundações públicas de direito privado. Nesse

sentido, as formas autônomas, precárias, substitutas, intermitentes e subcontratadas

de trabalho, como o não trabalho e o desemprego, que sempre fizeram parte do

trabalho artístico brasileiro, intensificaram-se ainda mais no atual contexto.

Nas pesquisas desenvolvidas pela socióloga do trabalho, Liliana Segnini

(2009b, 2011, 2014), ela destaca que no Brasil, em música e dança, os índices

sobre o mercado de trabalho formal, com registro em carteira, são inexpressivos. Por

outro lado, as múltiplas formas de trabalho precário necessárias à manutenção da

sobrevivência desses artistas provocaram o crescimento do número de ocupados

em Artes e Espetáculos no Brasil.

26

Centro de Estudos em Música e Mídia.

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Esta constatação é reiterada pelo fortalecimento desse campo econômico e pelo crescimento do número de artistas e produtores de espetáculo entre os trabalhadores ocupados no Brasil, bem acima dos índices que informam o mercado de trabalho. Por exemplo: entre 1992 e 2006, a população ocupada cresceu 16%, enquanto o grupo de profissionais dos “Espetáculos e das Artes” (SEGNINI, 2008) registrou crescimento de 67% (SEGNINI, 2009a). Este dado é confirmado, quando considerado o período mais recente 2003/2011, no qual a população ocupada volta a apresentar crescimento de 17%, enquanto os inscritos no grupo referido registram crescimento maior de 22%. (SEGNINI, 2014, p. 51)

A lógica empresarial é a que impera no modelo das OSC, com os princípios

de eficiência, eficácia, contenção dos gastos e produtividade. Quando uma OSC

assume a gestão de um equipamento cultural, juridicamente a entidade original é

extinta e, em decorrência disso, ocorre a mudança no enquadramento funcional para

o regime da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Sabemos que esses

elementos causam impacto sobre a qualidade do serviço social ofertado, sobretudo

pela forma como recaem sobre os trabalhadores. Sobre esse aspecto, a seguinte

declaração da ex-secretária da cultura do estado de São Paulo (2003-2005), Cláudia

Costin, responsável pela adoção do modelo de OSC, expressa tais impactos nas

relações de trabalho:

É quase impossível operar a cultura diretamente. Não dá para contratar um bailarino por concurso público, prevendo que ele vá se aposentar aos 70 anos como funcionário. A OS estabelece um contrato de gestão, que impõe à associação que vai gerir o equipamento um grupo de metas que explicitam como deve funcionar. É muito mais fácil e isso despolitiza a condução daquele órgão. [...] A grande vantagem é a flexibilidade e o controle social. (COSTIN, 2004, página ilegível)

Levantamento realizado acerca desse tema revelou que passaram por esse

processo, em especial no estado de São Paulo, que se tornou o laboratório de

aplicação dessa política27, as seguintes instituições responsáveis pela formação

musical de crianças e jovens: Associação de Amigos do Conservatório de Tatuí -

2006, Associação de Amigos do Projeto Guri - 2004 (polos no interior de São Paulo),

Santa Marcelina – Organização Social da Cultura - 2007 (Projeto Guri - polos da

27

No mesmo momento histórico no qual se aplicava a Reforma em âmbito federal, o estado de São Paulo foi um dos primeiros a implementar as mudanças sob este princípio. Podemos citar algumas delas: a privatização do Banco do Estado de São Paulo (Banespa); a concessão de estradas estaduais; e a entrega de parte da oferta do Sistema Único de Saúde (SUS) para hospitais privados. É importante lembrar que, a partir de 1998, por meio da Lei Complementar Estadual nº 846, as instituições sem fins lucrativos que atuam na área cultural passaram a ser qualificadas como Organizações Sociais da Cultura.

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Grande São Paulo, Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim) e Escola

Municipal de Música de São Paulo - 2011 (Fundação Theatro Municipal -

Organização Social da Cultura Instituto Brasileiro de Gestão Cultural). Dentre essas,

somente o Conservatório de Tatuí, a Escola de Música Tom Jobim e a Escola

Municipal de Música de São Paulo oferecem ensino técnico ou que viabilize a

profissionalização por meio de preparação para o ingresso no ensino superior.

Por outro lado, o modelo das OSCs, particularmente no estado de São Paulo,

tem sido a referência em direitos trabalhistas no campo da formação em música.

Nos programas de formação referidos acima, a experiência de enquadramento

funcional estatutário não existiu; em seu lugar estavam os contratos por tempo

determinado e o pagamento por ordem de serviços – relação mediada pela

Cooperativa de Músicos do Estado de São Paulo, responsável pelo repasse dos

pagamentos. Por isso, alguns professores de música veem na OSC uma perspectiva

de trabalho formal com o vínculo celetista e alguns direitos a este relacionado.

Voltaremos a essa discussão posteriormente.

Com respeito a outros equipamentos culturais voltados à atividade musical

que foram qualificados como Fundações, OSC e OSCIPs, temos: Orquestra

Sinfônica do Estado de São Paulo (Fundação Osesp - 2005); Fundação Theatro

Municipal de São Paulo28 (Organização Social da Cultura Instituto Brasileiro de

Gestão Cultural – 2013); Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, Orquestra Jazz

Sinfônica e Orquestra Sinfônica do Theatro São Pedro (Organização Social de

Cultura Instituto Pensarte – 2011), Orquestra Sinfônica Brasileira, Orquestra

Filarmônica de Minas Gerais (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

Instituto Cultural Filarmônica – 2005), Orquestra Sinfônica de Porto Alegre

(Fundação Cultural Pablo Komlós – 2004). Há também outros equipamentos

culturais geridos sob esse modelo: o Museu da Imagem e do Som (Associação do

Paço das Artes Francisco Matarazzo Sobrinho - Organização Social de Cultura -

2007), o Museu da Língua Portuguesa (Organização Social de Cultura IDBrasil

Cultura Educação e Esporte – 2012) e a Pinacoteca do Estado (Associação

Pinacoteca Arte e Cultura Organização Social de Cultura – 2005).

28

Com um corpo artístico formado pela Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, Coro Lírico Municipal de São Paulo, Balé da Cidade de São Paulo, Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo, Coral Paulistano Mário de Andrade, Orquestra Experimental de Repertório, Escola Municipal de Música de São Paulo e Escola de Dança de São Paulo.

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Há três forças sociais protagonistas nesse processo que podemos definir com

base no trabalho da pesquisadora taiwanesa Chin Tao Wu (2006): 1-) a sociedade

política, representante do Estado, como parte do poder político; 2-) uma parcela da

sociedade civil de origem burguesa, responsável pela gestão dos equipamentos

públicos (OSC), constitui o poder simbólico; e 3-) as empresas e as grandes

corporações que financiam as ações culturais públicas por meio do mecanismo de

renúncia fiscal e/ou patrocínio, representantes do poder corporativo. Acontecimentos

políticos, sociais e econômicos, em âmbito internacional e nacional, produziram essa

cadeia atual de relações.

Após anos de consolidação da privatização da cultura e consequente

substituição do governo pelo mercado como instituição econômica e social, durante

os governos de Ronald Reagan (presidente dos EUA de 1981-1989) e Margaret

Thatcher (primeira-ministra britânica de 1979-1990), sua influência mundial gerou

um receituário a ser seguido pelos países em desenvolvimento, nomeado Consenso

de Washington (1989), do qual o Brasil foi signatário. Para além disso, as relações

com a economia de mercado se intensificaram sob o poder político dos democratas

nos EUA e dos novos trabalhistas na Inglaterra, governos sucessores de Reagan e

Thatcher, mostrando que a centro-esquerda esteve afinada com o movimento

progressista do capital (WU, 2006).

As mudanças propostas por Reagan e Thatcher para as instituições National

Endowment for the Arts (EUA) e Arts Council (RU) basearam-se numa sujeição

passiva, usando as estruturas originais dessas instituições para promover suas

políticas.

Diferentemente das administrações de Reagan e Thatcher, no caso brasileiro

optou-se pela reestruturação drástica dos equipamentos públicos de artes com base

no modelo descrito acima.

No Brasil, a partir da segunda metade dos anos 1990, foi estabelecida a

política de privatização, que redefiniu o papel do Estado brasileiro. Tal política

consiste na redução do gasto público e na expansão do setor privado, conforme

estabeleceram Reagan, Thatcher e seus respectivos sucessores (WU, 2006). A

reforma adaptativa e o paradigma gerencial das Organizações Sociais contribuíram

somente para a desvalorização do Estado aos olhos dos cidadãos (NOGUEIRA,

2005, p.40).

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Por outro lado, precisamente porque teatros, museus e escolas de artes com

financiamento público fazem parte do Estado, ainda que de forma mediada por uma

OSC ou Fundação, é que as empresas admitem interesse em compor essa parceria,

o que lhes rende a legitimidade e o poder simbólico associado a essas instituições

públicas. Já ao poder político convém estabelecer alianças com o poder corporativo,

mesmo que o etos empresarial e os interesses de ambos se confundam, em

detrimento da instituição em si e do próprio Estado, pois o que está em jogo é a

manutenção do poder e do sistema hegemônico (WU, 2006).

Atualmente, na Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo (SEC), há 38

iniciativas adeptas do mecanismo de sociedades civis sem fins lucrativos, sem a

privatização do patrimônio em si29. Para situar o leitor, podemos exemplificar com o

caso da Pinacoteca do Estado (2005). A Associação Pinacoteca Arte e Cultura

(APAC) concentra uma estrutura gerencial característica desse formato apresentado

anteriormente, composta por conselhos, sendo o de Administração responsável

pelas decisões da instituição, e plano de metas similar ao das empresas. Há indícios

de que o Conselho de Administração se associou ao mercado, deixando de

corresponder às expectativas de manutenção da história do museu, seu acervo e

legado artístico, conforme reflete Ana Maria Belluzzo em entrevista à Carta Capital

(MARGARIDO, 2014, p. 63): “Numa época em que a produção cultural tornou-se

commodity, como evitar que estratégias mercadológicas passem a definir o que será

a história da arte?”.

O conselho é frequentemente composto por administradores, advogados e

empresários colecionadores de arte, com forte inclinação para o segmento

contemporâneo. Nesse sentido, interesses privados acabam se cruzando com

interesses públicos. O presidente do conselho, José Olympio Pereira, por exemplo, é

um amante de obras contemporâneas e possui um acervo que ultrapassa 1,2 mil

peças. Coincidentemente, ele está na nova coalizão para reerguer o Museu de Arte

29

Formação Cultural: Conservatório de Tatuí, EMESP Tom Jobim, Fábricas de Cultura, Oficinas Culturais, Projeto Guri e SP Escola de Teatro; Corpos Artísticos: Banda Sinfônica, Jazz Sinfônica, OSESP, Orquestra do Theatro São Pedro, São Paulo Companhia de Dança; Museus: Casa Guilherme de Almeida, Casa das Rosas, Catavento, Estação Pinacoteca, Memorial da Resistência, Museu Afro Brasil, Museu Casa de Portinari (Brodowski), Museu Felícia Leirner (Campos do Jordão), Museu da Casa Brasileira, Museu da Imagem e do Som (MIS), Museu da Imigração, Museu da Língua Portuguesa, Museu de Arte Sacra, Museu do Café (Santos), Museu do Futebol, Museu Índia Vanuíre (Tupã), Paço das Artes, Pinacoteca do Estado, Museu de História de São Paulo; Festivais: Festival de Campos do Jordão; Teatros, Auditórios e Salas de Concerto: Auditório Claudio Santoro, Teatro Maestro Francisco Paulo Russo, Teatro Procópio Ferreira, Teatro Sérgio Cardoso, Sala São Paulo, Theatro São Pedro; Programas em Rede: Pontos de Cultura.

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de São Paulo (Masp) e no alto escalão do Museu de Arte Moderna de São Paulo

(MAM-SP) e da Bienal (MARGARIDO, 2014).

Outros exemplos significativos de bilionários que se afastam de seus

negócios e passam a dedicar-se ao mundo das artes e da educação possuem

destaque nas publicações americanas da revista Forbes. Ligadas ao setor

financeiro, temos a família Villela: Maria de Lourdes Egydio Villela ou Milú, que

preside o Itaú Cultural e acumula função com a presidência do MAM-SP, e Ana

Lucia de Mattos Barretto Villela, que preside o Instituto Alana, no Jardim Pantanal,

região leste de São Paulo, onde desenvolve projetos educacionais e iniciativas

contra o consumo infantil (BERNARDES, 2015, p. 25). Recentemente, o ranking dos

bilionários brasileiros publicado pela revista Forbes Brasil (2015) destaca como

primeiro da lista: Jorge Paulo Lemann, cuja fortuna, calculada em 83 bilhões de

reais, foi acumulada no ramo de cervejaria com a empresa AmBev, que em 2008

tornou-se a maior cervejaria do mundo, ao associar-se à Budweiser. Além disso,

possui outros investimentos em negócios altamente rentáveis. No ramo da

educação, fundou, em 2002, a Fundação Lemann, uma organização sem fins

lucrativos, cujo objetivo é melhorar a educação pública do país, com base nos

princípios de empreendedorismo e de high education influenciados pela cultura

norte-americana.

A pesquisa realizada por Chin Tao Wu (2006) informa que os colecionadores-

curadores de arte contemporânea se encontram em vantagem com relação aos

demais colecionadores, pois possuem o privilegio da informação. E, quanto mais

obras compram de um determinado artista, maior será o valor ou o prestígio de sua

coleção após a exposição no museu. Essa relação confere um ganho econômico ao

investidor, em detrimento do caráter/interesse público do museu, o que é possível

constatar na declaração de um desses empresários, citada pela pesquisadora: “Não

temos culpa que depois da aquisição do museu ou exposição o artista eleva o preço

de sua obra em 30% - é quase impossível ser curador e não haver conflito de

interesses” (WU, 2006, p. 116).

A prerrogativa do Estado Social-Liberal expressaria o processo de

publicização mencionado anteriormente; sob essa construção, a sociedade civil seria

convocada a elaborar e a promover ações culturais, com ou sem financiamento

estatal, compondo, desse modo, uma espécie de associação democrática mais

próxima do público do que o próprio Estado, porém associada ao poder estatal. Esta

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análise assemelha-se à elaborada pela socióloga Evelina Dagnino (2005), na qual

se identifica uma “confluência perversa” entre dois projetos societários que emergem

da crise do sistema autoritário e repressivo anterior: o projeto neoliberal e o projeto

democratizante e participativo. Dessa crise ocorre um deslocamento de sentido e

construção discursiva sobre a sociedade civil, a cidadania e a participação e, de fato,

ambos os projetos requerem uma sociedade civil propositiva e ativa, mas em

sentidos opostos. Nesse movimento, conforme já observamos na descrição e na

análise do Projeto Guri, identificamos uma crise discursiva, conforme nomeou

Dagnino (2005, p. 48). E nas armadilhas da homogeneidade desse vocabulário

comum, acinzentam-se as diferenças, esfacelam-se as nuances e diluem-se os

antagonismos sociais, aspectos que continuaremos desvendando no transcorrer da

análise empírica.

Nessa acepção, percebemos certa apropriação do conceito de sociedade civil

de Gramsci (1980) e consequente deturpação deste. Afinal, há diferenças

significativas entre a sociedade civil convocada pela Reforma do Estado e seu

conceito clássico. Para Marx & Engels (1984), a sociedade civil expressa todo o

intercâmbio material dos indivíduos de acordo com o presente desenvolvimento das

forças produtivas; Gramsci (1980) admite a mesma compreensão, mas reforça a

dimensão superestrutural em relação dialética com essa base material.

O equívoco consiste em associar a teoria gramsciana, por meio da qual se

compreendem as formações sociais ocidentais como resultantes históricas das

transformações econômicas e da dinâmica relação entre as duas esferas societárias

que compõem o Estado: a sociedade civil e a sociedade política, com a práxis do

chamado terceiro setor31, visto como sociedade civil. Não podemos sustentar essa

incoerência; afinal, dada a relação de dependência do financiamento e da agenda de

países avançados ou organismos internacionais, bem como a dependência de

recursos estatais e empresariais, o terceiro setor (ONG, OSC, Fundação e OSCIP)

não deve ser comparado à sociedade civil em geral, que se constitui de modo

heterogêneo com diferentes orientações políticas e projetos sociais distintos, cujas

ações podem ou não ser organizadas nos movimentos sociais (DAGNINO, 2005).

Nesse caso, parece mais adequado nomeá-las como sociedade civil burguesa,

conforme definiram Marx e Engels (1984).

31

Neste trabalho, compreendemos o terceiro setor ou sociedade civil como um setor social situado entre o Estado e o Mercado (DAGNINO, 2005, p. 59).

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Dessa forma se constitui o poder híbrido – público (Estado) e privado

(sociedade civil burguesa). Para o primeiro, há redução de gastos, resultados

quantitativos baseados no princípio da competição relativa à maior qualidade e

eficiência das prestações, prestígio social diante do cidadão-cliente e manutenção

do poder político. Para o segundo, há a possibilidade de operar como instituições

ideologicamente eficientes, cujo status, a autoridade e o prestígio foram cedidos

pelos espaços públicos por eles administrados, o que reforça o seu poder simbólico

(DUNCAN, 1995). Neste contexto se inscreve o poder corporativo.

Criação do Ministério da Cultura:

um novo legado para a política cultural nacional

Desde 1953, com a instalação do Ministério da Educação e Cultura, as ações

de ambos os setores estiveram articuladas. Nos anos que seguiram, marcados pelo

regime ditatorial militar (1964-1985), notou-se que a junção Educação e Cultura num

único ministério foi muito pouco benéfica à segunda parte, tanto pelo desequilíbrio

orçamentário e quantitativo entre uma e outra, quanto pela competição em nível de

importância e repercussão social a curto prazo. Além disso, a arte produzida foi

duramente submetida à censura e à repressão (SEMPERE, 2011).

De acordo com a filósofa Marilena Chaui (2006), duas concepções de política

cultural foram hegemônicas antes da criação do Ministério da Cultura (MinC): 1-) a

política cultural populista (1950-1960) e 2-) a política cultural oficial do Estado (no

Estado Novo e nas décadas de 1960 a 1970). Na primeira, esteve presente o

vanguardismo político do Partido Comunista, o qual acreditava no papel pedagógico

do órgão público como responsável pela apropriação da cultura popular para a

formação do povo. Admite-se, nesta visão, a dicotomia entre cultura de elite e

cultura popular. Já na segunda, evidentemente forte durante os períodos ditatoriais,

o poder público detém a centralidade da difusão cultural e é ainda produtor de

cultura. Dessa forma, os critérios são definidos pela elite política, como um reforço

de sua ideologia.

O Ministério da Cultura, marco importante da conscientização política de uma

sociedade em relação ao setor cultural, foi criado em 1985, logo após o término do

período ditatorial no país. Pretendia-se determinar uma parcela orçamentária para

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investimento no setor. O ministro convidado a assumir esse desafio, em 1986, foi o

economista e líder intelectual do desenvolvimentismo, Celso Furtado. Pouco antes

de sua investidura no cargo, ele esteve em missão diplomática brasileira na

Comunidade Econômica Europeia durante alguns anos em Paris (FURTADO, 2012).

No livro organizado por Rosa Furtado, Ensaios sobre cultura e o Ministério da

Cultura (2012), encontram-se textos de autoria de Celso Furtado sobre cultura e

desenvolvimento. É possível identificar duas fases de sua gestão no ministério: a do

ministério visionário e do ministério pragmático, sendo elas não compreendidas

como linhas evolutivas, mas como processos intercambiáveis.

A princípio, Celso Furtado ressalta o engajamento de Mario de Andrade32 e o

movimento de vanguarda de 1922, por serem pioneiros na questão identitária e de

criatividade do povo brasileiro, vislumbrando, com isso, um desenvolvimento futuro

da nação, do ponto de vista cultural. Para o ministro, pensar “o que somos” é o

ponto de partida para o estabelecimento de uma política cultural e um projeto de

desenvolvimento do país. Neste caso, o movimento de vanguarda torna-se fonte de

inspiração para o momento contemporâneo de crise pós-ditadura (FURTADO, 2012,

p. 40): “[...] a interação da cultura como sistema de valores com o processo do

desenvolvimento das forças produtivas; a interface entre a lógica dos fins, que rege

a cultura, e a dos meios, razão instrumental inerente ao desenvolvimento da

capacidade produtiva”.

Para o economista, o objetivo central de uma política cultural é estimular e

incentivar as forças criativas da sociedade. Nesse sentido, seria possível um

desenvolvimento autônomo do país, libertando-se do paradigma do desenvolvimento

dependente. Para ele, desenvolvimento “é a utilização de um excedente, o qual abre

um horizonte de opções, vale dizer, um excedente adicional cria um desafio à

inventividade” (FURTADO, 2012, p. 43).

Contudo, mesmo sendo essa visão um dos primórdios do pensamento da

economia criativa que dela se apropriou, ela ressalta um aspecto essencial para nós:

a associação da ideia de cultura ao trabalho, do ponto de vista marxista, conforme já

destacamos.

32

A passagem de Mário de Andrade pelo Departamento de Cultura da Prefeitura da cidade de São Paulo (1935-1938) é um dos episódios mais referenciados da história da política cultural brasileira. Segundo Rubim (2007), Mário de Andrade inovou, ao admitir a intervenção estatal sistemática em diferentes áreas culturais, como demanda social essencial, e também na sua visão ampla de cultura (das belas artes às culturas populares).

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Ele problematiza, inclusive, o fato de o espaço destinado à criatividade em

nossa sociedade, ser delimitado pela racionalidade instrumental, o que se torna

limitador para a potencialidade humana. Do mesmo modo, a criatividade artística foi

submetida progressivamente, nesse processo, à diversificação dos padrões de

consumo, tornando-se instrumento da acumulação. Porém, diferentemente da visão

econômica dos processos produtivos, na qual o trabalho é um simples meio, fator de

produção, e mensurado nos padrões de produtividade capitalista, o trabalho artístico

é também meio e fim. Nesse sentido, um espetáculo ao vivo: orquestral, teatral, de

canto ou dança, é um fim em si mesmo, que não se pode submeter ao conceito de

produtividade (FURTADO, 2012).

Complementando essa visão, o autor ressalta a preocupação com a essência

da democracia e a redemocratização do país, especialmente pelo trauma causado

durante anos com a centralização do Estado, de um ponto de vista repressivo e

autoritário. Ele defende que a ideia de Estado antecedeu a de nação em nosso país.

Todavia, a cultura antecede a existência do Estado, pelo fato de a capacidade

criativa do homem estar sempre presente diante de problemas em seu cotidiano, o

que permite a intervenção no presente como meio de transformar o próprio futuro.

Com suas palavras: “No campo da cultura, o Estado não deve sobrepor-se à

sociedade, mas terá de suprir as insuficiências desta” (FURTADO, 2012, p. 55).

Por outro lado, Furtado (2012) destaca, de modo otimista e atento, o

desenvolvimento da indústria cultural atrelado à criação de postos de trabalho nesse

período. Mas considera a importância de uma política cultural regular esse processo,

pois observa o movimento da grande indústria cultural como restritivo a

determinados tipos de espetáculos, o que não considera benéfico para a economia

da cultura em geral. Além disso, ocorre a substituição de trabalho por não trabalho,

reprodução; o trabalho vivo tende a ser substituído pelo trabalho cristalizado nas

difusões midiáticas e fonográficas.

A elaboração teórica, a concepção e as discussões da política cultural

nacional em diversos âmbitos33, no período de seu ministério, demonstram a

33

I Encontro Nacional de Política Cultural, em Belo Horizonte (23 de abril de 1984); Seminário Interno do Instituto de Promoção Cultural, em Brasília (24 de novembro de 1986); Conferência na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro (3 de setembro de 1986); 124ª Reunião do Conselho da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (13 de janeiro de 1987); Fórum de Secretários da Cultura, em Brasília (9 de abril de 1987); Estudo “Economia e cultura: reflexões sobre as indústrias culturais no Brasil”, realizado pela Fundação João Pinheiro, em Brasília, Instituto de Promoção Cultural, Ministério da Cultura, 1988 (FURTADO, 2012).

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capacidade crítica, ideológica e moderna de sua proposta política, o que podemos

caracterizar como ministério visionário. A principal ênfase dada pelo MinC no

período foi sobre o conceito de identidade cultural, no qual se mantém com o

passado uma relação enriquecedora do presente. Além disso, foram elaboradas

quatro diretrizes34 para a política cultural ministerial, incluindo ações específicas no

campo da música, que foram:

[...] programa de apoio às orquestras sinfônicas de todo país, ameaçadas de desaparecimento pela rápida elevação de seus custos operacionais. Nosso objetivo é assegurar a circulação das orquestras, facilitando o acesso de segmentos crescentes da população a esse maravilhoso instrumento de interpretação musical. O programa de apoio às bandas de música vem sendo intensificado, com cursos de reciclagem para seus mestres e distribuição de instrumentos para seus integrantes. Os já consagrados programas de música popular continuam a produzir espetáculos a preços quase simbólicos, permitindo ainda, por seu caráter itinerante, revelar grupos emergentes em todos os estados. (FURTADO, 2012, p. 80)

O formato legal concebido para promover as ações do MinC no campo

cultural foram as fundações e seus conselhos deliberativos compostos por

representantes das categorias sociais interessadas. É interessante observar o

argumento de Celso Furtado (2012, p. 85) a esse respeito, pois veremos este

discurso novamente com frequência:

Cria-se, assim, um vínculo entre a comunidade e os agentes culturais locais, sem a interferência ou o monitoramento do Estado. Evita-se a tutela de autoridades distantes. Eliminam-se os custos administrativos, inevitáveis, se os recursos tivessem que ser arrecadados pelo governo federal e aplicados com intermediação da máquina burocrática. Estimula-se a iniciativa e reduzem-se os custos operacionais.

Neste caso, as formas sociais interessadas eram: as instituições culturais,

seus agentes culturais locais e as empresas patrocinadoras. Com isso, vemos mais

uma vez o reforço do processo de publicização e o progressivo afastamento da

esfera estatal na promoção de ações culturais públicas, sob o argumento de que

34

“1- a preservação e o desenvolvimento de nosso patrimônio cultural, visto como um todo orgânico que deve se integrar no cotidiano da população; 2- o estímulo à produção cultural, sem interferir na criatividade, mas prestando o necessário apoio ali onde ela se materializa em bens e serviços de ampla circulação; 3- o apoio à atividade cultural ali onde ela se apresenta como ruptura com respeito às correntes dominantes, ou como expressão de grupos diferenciados por raízes étnicas, históricas, sociais e mesmo geográficas; 4- o estímulo à difusão e ao intercâmbio culturais visando democratizar o acesso ao nosso patrimônio e a bens e serviços culturais dentro do país e além de nossas fronteiras.” (FURTADO, 2012, p. 78-9)

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uma suposta associação democrática pudesse substituí-la. Isso até poderia ser real,

se não fosse a sociedade civil burguesa ser a classe social protagonista nesse

processo e o controle estatal ser tão rigoroso.

Dessa forma, desenha-se a primeira política de fomento à ação cultural.

Trata-se da lei de incentivo fiscal para financiar a cultura, nomeada Lei Sarney - Lei

7.505 (BRASIL, 1986). Seu formato já apresenta os efeitos da introdução do

neoliberalismo no país. Neste caso, o próprio Estado passou a transferir para a

iniciativa privada o recolhimento dos recursos para investir na área; no entanto, o

dinheiro era público, oriundo do mecanismo de renúncia fiscal.

O Ministério da Cultura: ontem e hoje

Com o advento da Lei Sarney, a investida do MinC mudou sua orientação ou

a subverteu, ao mesmo tempo em que reconheceu seus pontos favoráveis como

solução viável para o período, admitindo sua relação com o projeto de

desenvolvimento que se iniciava no país. Para Furtado (2012, p. 85), nas sucessivas

discussões que promoveu acerca do tema com críticos dessa lei, “trata-se, portanto,

menos de um mecenato do que de aplicação de fundos públicos dos quais o

governo abre mão para colocá-los à disposição de entidades culturais surgidas e

administradas pela própria sociedade”.

Por outro lado, foi lançado para as instituições culturais o problema de

administrar os interesses das empresas patrocinadoras (promoção de sua imagem

perante os consumidores). Além disso, foi reconhecida e estimulada, mediante a lei,

a autoafirmação e o fortalecimento das atividades empresariais, dentro e fora do

país, vinculadas ao interesse cultural. Assim, o potencial criativo dos empresários

(empreendedores culturais) pode traçar com liberdade o projeto de desenvolvimento

nacional almejado. Furtado (2012) mal poderia prever o desdobramento futuro dessa

ação política.

Já no governo de Fernando Affonso Collor de Mello (1990-1992), a Lei Sarney

foi extinta, mas deu lugar a um mecanismo semelhante, a Lei Rouanet35 (BRASIL,

35

A Lei Federal de Incentivo à Cultura - Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, foi promulgada em fins de 1991 e regulamentada somente em 1995.

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1991)36. Tal forma de incentivo à cultura se concretiza, na relação público-privado, a

partir de recursos oriundos de deduções de impostos devidos à população ou às

empresas, que passam a custear os projetos culturais. O Programa Nacional de

Apoio à Cultura – PRONAC – é o órgão governamental responsável por administrar

essa relação de financiamento cultural, e para efetivar seus objetivos de captação e

canalização de recursos foram estabelecidos três mecanismos: o Fundo Nacional de

Cultura (FCN), o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (FICART) e o Incentivo a

Projetos Culturais (Mecenato). Essa legislação encontra-se vigente até hoje, como

componente vital do financiamento à cultura.

Segnini (2014) analisa os dados disponíveis no período 1996 - 2006, onde se

percebe a crescente e constante captação de recursos por meio da política de

renúncia fiscal traduzidos em valores. A modalidade de captação por mecenato,

nesse período, é de R$ 4, 2 bilhões. Considerando sua distribuição pelas regiões

administrativas do país, visualizamos a relevante concentração de recursos na

Região Sudeste – R$ 3,4 bilhões (80%), na Região Sul – R$ 417,1 milhões (10%),

no Nordeste – R$ 257, 3 milhões (6%), no Centro-Oeste – R$ 140,4 milhões (3%) e

no Norte – R$ 35,9 milhões (1%). No caso específico da música, o valor captado no

mesmo período – de R$ 20,3 milhões – cresce para R$ 78,6 milhões, tendo por base

somente a Lei Rouanet, de âmbito federal. O art. 18 da lei possibilita ao contribuinte,

pessoa física ou pessoa jurídica, o abatimento integral, no imposto de renda, do

incentivo realizado em segmentos culturais determinados, conforme explicitamos

anteriormente (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2009, p. 182; 185). (SEGNINI, 2014, p.

256-7)

Nesse sentido, as leis de incentivo tornam-se a própria política cultural, numa

identidade entre Estado e mercado (Castello, 2002), onde Cultura é um bom

negócio38 (MINISTÉRIO DA CULTURA, 1995). Essa lógica se intensifica durante o

governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), paralelamente à introdução,

sistemática e amadurecida, do projeto político-econômico neoliberal, que ganha

projeção internacional a partir dos anos 1990, por meio do Consenso de

Washington.

36

Esta legislação permite a transferência, para a iniciativa privada, do poder de decisão sobre o que deveria ou não receber recursos públicos incentivados, estruturando o financiamento da cultura sob a lógica do investidor privado (CALABRE, 2007, p. 08). 38

Publicação amplamente difundida pelo Ministério da Cultura em 1995, uma espécie de cartilha sobre o modo de investir em cultura no Brasil (ALMEIDA JUNIOR, 2001).

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Retomando Chaui (2006), a terceira concepção de política cultural

hegemônica é inaugurada a partir dos anos 1980. Nela, o papel do Estado é

minimizado, e a crítica da autora explora os elementos decorrentes desse processo

no campo cultural:

[...] coloca os órgãos públicos de cultura a serviço de conteúdos e padrões definidos pela indústria cultural e seu mercado. Por ser ideologia em estado puro, acredita na capacidade quase mágica da iniciativa privada não só como parceira principal das atividades culturais, mas sobretudo como modelo de gestão, isto é, como culminância administrada. Em outras palavras, a tradução administrativa dessa ideologia é a compra de serviços culturais oferecidos por empresas que administram a cultura a partir dos critérios do mercado, alimentando privilégios e exclusões. Expressa-se pelo efêmero, liga-se ao mercado de consumo da moda, dedica-se aos espetáculos enquanto eventos sem raiz e proliferação de imagens para consagração do consagrado, e volta-se para os aspectos intimistas da vida privada, isto é, para o narcisismo. (CHAUI, 2006, p. 68)

Com o advento dessa legislação, o poder corporativo é convocado a compor

a relação de poder híbrido – público (Estado) e privado (terceiro setor) –, o que

inaugura uma nova configuração das políticas culturais em âmbito nacional.

Primeiramente, observamos uma transformação das instituições estatais, que

outrora foram criadas para ser um contraponto à lógica comercial do mundo das

artes e, no presente momento, são revestidas pela ideia de tornar seus espaços

atrativos ao mercado da arte (WU, 2006). Basta verificar como funcionam as

grandes salas de concerto, como a Sala São Paulo e o Theatro Municipal de São

Paulo, captando recursos por meio do aluguel desses espaços para apresentação

de outros grupos musicais e eventos privados da alta sociedade paulistana, tal como

da oferta de concertos da orquestra oficial em eventos privados de grande prestígio.

Além disso, os conceitos de patrocínio são remodelados para o exercício de

propaganda e marketing e de compromisso com as artes, no intuito de reunir e

envolver os empresários com a causa artística. E, de certo modo, o poder simbólico

das instituições estatais é mobilizado para legitimar o poder corporativo.

Participar de conselhos de museus é essencialmente uma ‘roupagem obrigatória’ na vida social da elite. [...] Tal como a associação a um clube fechado, cuja exclusividade é parte do quebra-cabeça das redes de relações, amizades e conhecimentos da alta classe. Mas museus, afinal, são clubes fechados; operam e funcionam na esfera pública e detêm uma autoridade e um respeito públicos significativos.

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Para qualquer pessoa que tenha status de curador, essa posição oferece um meio institucional de exibir poder considerável na sociedade; é uma avenida importante em uma democracia capitalista. (WU, 2006, p. 110)

A rede de relações formada por executivos de empresas, em sua maioria

advogados, banqueiros, contadores ou outros especialistas em finanças, que por

meio da arte se encontram e estabelecem parcerias nos negócios, também

estabelece laços consanguíneos, matrimoniais, de amizade e de sociedade. Esse

encontro torna-se um elemento desejável para a acumulação de capital das

corporações financiadoras de arte e, como consequência disso, o seu poder

econômico transforma-se em poder cultural39. A propriedade e o controle dos meios

de produção cultural tornam-se um setor dentro da propriedade e do controle mais

amplos de uma área produtiva e financeira, no caso, as grandes corporações

(WILLIAMS, 2008).

No mesmo sentido, a análise de Williams (2008) reitera que as relações de

produto e mercado se tornaram predominantes na atualidade. Afinal, as empresas

industriais e comerciais consolidaram um patronato de segundo tipo, análogo ao das

cortes e das famílias nobres (forma anterior de mecenato). Neste caso, há uma

apropriação das obras para uso próprio, e de forma mais atualizada, como um meio

de investimento ou propaganda institucional. No final do século XX, ressalta o autor,

muitas outras instituições culturais passam a ser dependentes do rendimento ou do

patrocínio dessa instituição específica do mercado – a propaganda.

Acerca das redes sociais e corporativas que esses grupos criam entre si e a

concentração de poder que circula entre elas, Chin Tao Wu (2006) sintetiza, a partir

de sua pesquisa, três aspectos que podemos mencionar, a fim de verificar sua

ocorrência em nosso estudo de caso: 1- a relação entre poder corporativo e poder

político por meio do financiamento de campanha eleitoral; 2- a promoção de

empresários a cargos formais na administração das instituições culturais, o que

manifesta não somente o controle governamental sobre a instituição, mas também a

valorização da “cultura empresarial” e seu papel ideológico, tal como podemos

39

Este termo foi adotado por George Yúdice (2006, p. 45) para expressar a extensão do biopoder na era da globalização. No contexto em que o utilizamos, ele explicita uma das razões fundamentais pelas quais a política cultural se tornou o mote para repensar acordos coletivos, pois o termo reúne o que na modernidade fazia parte do desejo de emancipação, por um lado, e que se converte atualmente em processo de regulação, por outro. Nisso consiste a expressão mais evidente da conveniência da cultura, tese que o autor defende no trabalho citado.

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verificar nas Fundações e Associações de Amigos da Arte, especialmente, entre os

membros dos conselhos40; e 3- a combinação entre poder aquisitivo e poder

econômico, que oferece acesso privilegiado a certos indivíduos à administração de

conselhos, instituições de caridade, hospitais e escolas, o que amplia seu grau de

influência na sociedade (já pudemos verificar que, a partir dos anos 2000, várias

empresas patrocinadoras do Projeto Guri constituíram Organizações Sociais

próprias).

Plano Nacional de Cultura (2010):

cultura e desenvolvimento econômico afinados

Para prosseguir com a análise, refletiremos sobre o que foi feito durante o

governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e, na continuidade, com o governo

atual de Dilma Roussef. Trata-se de um esforço para recuperar as rupturas e as

continuidades com o estabelecido no governo anterior, admitindo, tal como em

algumas análises, a proximidade ideológica desse governo com a herança do novo

trabalhismo inglês (CARCANHOLO, 2008; FILGUEIRAS, 2010).

O governo Lula e a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura lançaram

esforços no que tange à reformulação das políticas culturais, promovendo canais de

diálogo com representantes dos segmentos artísticos e com a sociedade civil. Isso

se tornou efetivamente possível com a implementação das Câmaras Setoriais de

Cultura em 2004, compostas pelos segmentos Teatro, Dança, Música, Artes Visuais,

Circo, Livro e Leitura, cujos objetivos são: dialogar, formular e pactuar diretrizes

políticas para o desenvolvimento cultural brasileiro; além de estudar, diagnosticar e

propor alternativas para a superação de entraves existentes nesse processo,

fazendo isso em caráter contínuo, conforme síntese elaborada pela socióloga e

pesquisadora (UFF), Maria Aparecida Alves (2012). Porém, para as entidades,

coletivos, pesquisadores e artistas independentes que participaram desse processo,

o conteúdo a ser elaborado coletivamente já havia sido pré-elaborado, causando

40

Na Fundação Osesp, destacamos os seguintes nomes do Conselho de Orientação associados à cultura empresarial: Horácio Lafer Piva, economista e administrador de empresas brasileiro, é um dos acionistas da Irmãos Klabin & Cia, e Celso Lafer, jurista e membro efetivo do conselho administrativo da Klabin Papel e Celulose; Pedro Moreira Salles, economista e presidente do Conselho de Administração do Itaú Unibanco Holding; José Ermírio de Moraes Neto, administrador de empresas do Grupo Votorantim, “um negócio familiar”.

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limites para o diálogo. Além disso, o financiamento da cultura manteve-se,

substancialmente, por meio da Lei Rouanet.

Também foram formuladas emendas constitucionais, sobretudo nos anos de

2003 e 2005, além de 2012 (na continuidade com o governo de Dilma Roussef).

Formalmente, a primeira Conferência Nacional de Cultura (instituída através da

Emenda Constitucional n° 48, de 1º de agosto de 2005), que mobilizou conferências

municipais, estaduais e interestaduais, coletando propostas de diretrizes, foi uma

das etapas do processo de elaboração do Plano Nacional de Cultura (2010). Toda

essa reflexão e debate nacional sobre a situação da cultura, avaliação de

perspectivas de atuação, definição de problemas e soluções viáveis, contribuíram

para a institucionalização da cultura, para que ela pudesse ser compreendida como

um ramo das políticas públicas do Estado, deixando de ser refém de instabilidades e

descontinuidades nas políticas de governo. Contudo, estamos ainda distantes de

estabelecer uma democracia participativa no âmbito das tomadas de decisões.

Durante a gestão de Gilberto Gil (2003-2008) houve ainda uma redefinição

político-administrativa no Ministério da Cultura, com ampliação dos órgãos

vinculados e suas relações com o sistema de governo (ALVES, 2012), a saber: a

Secretaria de Articulação Institucional, a Secretaria de Políticas Culturais, a

Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura, a Secretaria de Programas e Projetos

Culturais, a Secretaria do Audiovisual e a Secretaria de Identidade e Diversidade

Cultural.

Segundo Luciana Requião42, musicista e pesquisadora (UFF), o ex-ministro

Gilberto Gil admitia a parceria do governo com a iniciativa privada como financiadora

dos setores culturais. E expôs dados elaborados pela Unesco (2006) para justificar

seus argumentos:

Atualmente, de acordo com dados da Conferência das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), 8% da riqueza gerada em todo o mundo tem origem na economia criativa. Outro estudo das Nações Unidas revela que a movimentação financeira de produtos e serviços culturais atinge cerca de US$ 1,3 trilhão em todo o mundo, com expectativa de crescimento médio à taxa de 10% ao ano. (GIL apud REQUIÃO, 2009, p. 154-155)

Consequentemente, a ampliação desse conceito de cultura gerou maior

aproximação desse setor às atividades comerciais, sendo a cultura, assim,

42

Resultados da pesquisa de Pós-Doutorado intitulada: A cultura como mercadoria: manifestações culturais a serviço da valorização do capital (2008 a 2009). (REQUIÃO, 2009).

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66

compreendida como mercadoria: “O setor cultural foi definido de uma maneira

empírica, tomando-se como referência inicial a definição da Unesco sobre as

atividades culturais relacionadas [...] à criação, produção, e comercialização de

conteúdos que são intangíveis e culturais em sua natureza” (IBGE, 2007, p. 15-6).

Além disso, temos como resultado desse processo o Plano Nacional de

Cultura (2010) e a constituição de um Sistema Nacional de Cultura (Artigo 216 A,

Emenda Constitucional nº71, 2012), em regime de colaboração entre os entes da

federação (por adesão) e a sociedade (segmentos artísticos, civis, iniciativa privada

e associações civis). Aos entes federados foi dada a liberdade para que produzam

sistemas de cultura com leis próprias, e aqueles que aceitarem compor o SNC terão

apoio técnico e financeiro do governo federal. No entanto, até o ano de 2014,

poucos estados e municípios haviam aderido, incluindo a cidade e o estado de São

Paulo. Mais uma vez o modelo gerencial das Organizações Sociais é reafirmado

nessas parcerias, ainda que possam existir outras iniciativas vinculadas ao poder

municipal, que configuram exceções ao modelo dominante (por exemplo, o Fundo

Municipal de Cultura da cidade de São Roque e o Fundo de Investimentos Culturais

de Campinas - FICC).

Cabe mencionar ainda que o Plano Nacional de Cultura expressa uma noção

ampliada de cultura como “fenômeno social e humano de múltiplos sentidos,

considerada em sua extensão antropológica, social, produtiva, econômica, simbólica

e estética” (PLANO NACIONAL DE CULTURA, 2010). Muito embora esta seja uma

visão inovadora e positiva, há também uma relação de compromisso com as

demandas geradas pela nova fase do crescimento econômico. Sendo assim, as

ações do Ministério estão articuladas com as diretrizes formuladas pela Unesco e

outras iniciativas relacionadas à economia da cultura, com seminários internacionais

para ampliação deste debate (YÚDICE, 2006).

Nesse sentido, Requião (2009) analisa a contradição existente entre a

intenção de fazer da cultura um “fator de desenvolvimento econômico” (visando à

valorização do capital) e a intenção de que a cultura, por meio do campo produtivo,

defenda a “identidade de um povo”, a “democratização do acesso à cultura” e a

“diversidade cultural”. Esses elementos estão presentes desde a atuação de Celso

Furtado no MinC, que, por sua vez, acreditava ser esse um projeto de

desenvolvimento humano por meio da cultura. Contudo, Requião reitera que as

práticas e as políticas somente mencionam em seu discurso uma preocupação com

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a ideia de acesso à cultura, diversidade cultural e identidade cultural do povo

brasileiro, quando, na verdade, se valem da cultura como um meio para atingir outro

fim: a valorização do capital.

Diante do agravamento da questão cultural em nosso país, onde a

privatização da cultura ganha maior destaque, em detrimento da garantia do domínio

público na cultura, aparentemente nos vemos presos a um amplo mosaico social

atravessado por contradições, no qual as ações do Ministério da Cultura são

influenciadas pelo pragmatismo cultural. Por isso, o questionamento elaborado por

Ridenti (2000, p. 323) se torna vital para nós: “É possível veicular ideias

transformadoras da ordem por intermédio dos meios de comunicação de massa

capitalistas ou das estruturas de Estado capitalistas ou ainda das estruturas privadas

de interesse público?” E as obras de Walter Benjamin A obra de arte na era de sua

reprodutibilidade técnica e O autor como produtor, inspiram sua resposta, tal como a

nossa: “não abastecer o aparelho de produção, sem o modificar, na medida do

possível, num sentido socialista” (RIDENTI, 1993, p. 127).

Política Cultural Experimental

No mesmo período descrito e analisado acima, uma experiência de gestão

cultural na esfera pública marcou sua posição crítica no cenário neoliberal que

perdura na atualidade. Para a presente pesquisa, ela foi fundamental, pois nos

permite vislumbrar uma concepção de política cultural sob o referencial teórico que

adotamos. Além disso, o Projeto Guri Santa Marcelina, nosso estudo de caso,

admite como referência e fonte inspiradora a Política da Cidadania Cultural de

Marilena Chaui, que pretendemos analisar nesta seção.

A filósofa Marilena Chaui (1941 - ) foi secretária municipal de cultura de São

Paulo, de 1989 a 1992, durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1993). A

concepção de cultura por ela elaborada e apresentada na obra que resume o seu

legado durante o mandato de Secretária Municipal da Cultura em São Paulo,

Cidadania cultural (2006), é a de que a cultura passa a significar o campo

materialmente determinado das formas simbólicas e dos modos de vida de uma

sociedade onde a divisão social de classes expressa processos de distinção (cultura

dominante X cultura popular). Por isso, torna-se imperativo para a formulação de

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uma política cultural um posicionamento político claro quanto ao modo de inserção

da cultura na sociedade de classes e na democracia (CHAUI, 2006, p. 69).

A proposta de Chaui (2006) não pretendia reproduzir as concepções de

cultura oficiais do Estado (populista ou neoliberal), nem tampouco reduzir a sua

política cultural a um conjunto de atividades e serviços culturais, conforme elaborou

a política cultural do estado de São Paulo no mesmo período. Seu objetivo era a

elaboração de uma política cultural com princípios e ações bem delimitados:

Numa perspectiva democrática, as prioridades são claras: trata-se de garantir direitos existentes, criar novos direitos e desmontar privilégios. [...] a política cultural de um órgão público precisa ir além do campo clássico, definido no século XVIII, da cultura identificada com a esfera das belas-artes, e caminhar para a efetuação da política cultural e da cultura política. (CHAUI, 2006, p. 65) [...] Entre três escolhas possíveis [...] fizemos uma quarta: aquela que restringe o Estado à condição de assegurador público de direitos, prestador sociopolítico de serviços e estimulador-patrocinador das iniciativas da própria sociedade, enfatizando a natureza de classe da nossa sociedade e a obrigação de uma política, se quiser ser moderna e democrática, de garantir direitos, quebrar privilégios, fazer ser público o que é público, abrir-se para os conflitos e para as inovações. (CHAUI, 2006, p. 102)

Enquanto secretária de cultura, para enfrentar a relação de mútua

dependência e disputa de classes – cultura dominante X cultura popular –, ela

alegou que foi preciso adotar como premissa a Democracia43. Para tanto, foi

estabelecida uma relação de complementariedade entre as noções de Estado como

elemento integrante da cultura – e não como produtor de cultura – e a cultura como

trabalho, do seguinte modo: ao Estado coube o dever de garantir o direito do

cidadão à fruição, criação das obras e participação nos assuntos referentes às

políticas culturais, enquanto a cultura como trabalho permitiria transformar o

existente em algo novo, por meio do resultado cultural (a obra), que está ao alcance

de todos os sujeitos sociais (CHAUI, 2006, p. 136).

A definição de cultura elaborada pela autora diferencia-se das belas artes –

às quais era costumeiramente associada – e nos ressalta sua dimensão

antropológica: “sentido antropológico mais amplo de invenção coletiva, de símbolos,

43

“No sistema político democrático, a existência do conflito legitima as tomadas de decisões e também não se admite o privilégio, pois a ideia de direito é um princípio, inclusive, fundador de direitos novos. Além disso, não se restringe à sociedade política, e o Estado, faz-se presente nas relações sociais e nas instituições regidas sob esse preceito”. (CHAUI, 2006, p. 139)

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ideias e comportamentos de modo a afirmar que todos os indivíduos e grupos são

seres culturais e sujeitos culturais [...]” (CHAUI, 1995, p. 81). É, com efeito, reiterada

a relação entre cultura e trabalho:

[...] trabalho da sensibilidade e da imaginação na criação das obras de arte e como trabalho da inteligência e da reflexão na criação das obras de pensamento; como trabalho da memória individual e social na criação de temporalidades diferenciadas nas quais indivíduos, grupos e classes sociais possam reconhecer-se como sujeitos de sua própria história e, portanto, como sujeitos culturais. (CHAUI, 1995, p. 82)

Assim foi construída a Política da Cidadania Cultural inspirada no pioneirismo

de Mario de Andrade e Sábato Magaldi44. O primeiro passo para instituir o campo

democrático dos direitos culturais foi o reconhecimento da divisão social na cidade

de São Paulo: nos extremos encontram-se o polo da carência absoluta (moradia,

alimentação, saúde, educação e trabalho) e o polo do privilégio absoluto, observável

pela naturalidade com que trata o público como se fosse privado.

Por isso, as metas da política cultural se estabeleceram a partir de uma visão

cosmopolita de intervenção na cidade, extrapolando limites de separação entre

centro e periferia. Uma das ações mais expressivas para contemplar esse ponto foi

a criação das Casas de Cultura45 (CHAUI, 2006).

Desde 1987, durante a gestão do governador Orestes Quércia (1987-1991),

estavam em fase de implementação as Oficinas Culturais na SEC-SP, cujo intuito

era semelhante ao pretendido com as Casas de Cultura. As Oficinas Culturais e as

Casas de Cultura se desenvolveram quase simultaneamente. Contudo, no mesmo

ano, criou-se a Secretaria do Menor do Estado de São Paulo, com o objetivo de

desenvolver atividades culturais e artísticas para a infância e juventude pobre46 –

conforme análise elaborada no primeiro capítulo.

44

Foi o primeiro Secretário Municipal de Cultura de São Paulo, de abril de 1975 a julho de 1979, durante o governo de Olavo Egydio Setúbal. Sábato Magaldi dedicou sua carreira acadêmica ao teatro brasileiro, formando gerações de artistas na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo desde 1970. 45

“Com a descentralização implementada com a criação, em bairros e nas periferias da cidade, das Casas de Cultura, estas buscaram instituir, ainda que precariamente e com muitos percalços, conselhos de co-gestão com as comunidades locais”. (CHAUI,2006, p. 78) 46

Por meio da análise elaborada por Laura Pronsato (2014), compreendemos o papel da extinta Secretaria do Menor do Estado de São Paulo na gênese dos trabalhos socioeducativos em arte e

educação – atualmente, coordenados por ONGs e OSCs.

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Com a entrada de Fernando Moraes (1988-1991)47 como secretário de cultura

do estado de São Paulo, houve a tentativa de construção de uma política cultural

com princípios estritamente artísticos e culturais, por meio do estímulo à produção

cultural com contrapartida pedagógica. Mas, conforme crítica de Chaui (2006), não

se superou a falta de organicidade e o caráter fragmentário das atividades e dos

serviços culturais estruturados nessa gestão, e reforçamos ainda que a conotação

de política social focalizada na pobreza não foi superada pelos resquícios da

produção cultural estabelecida durante a extinta Secretaria do Menor.

Posteriormente, durante a gestão de Marta Suplicy (2001-2005) na Prefeitura

de São Paulo, e do secretário municipal de cultura Celso Frateschi48 (2003-2004),

iniciativa semelhante às Casas de Cultura foi construída: os Centros Unificados de

Educação – CEUs. O CEU é um complexo educacional, esportivo e cultural que

agrega um Centro de Educação Infantil (para crianças de zero a 3 anos), uma

Escola Municipal de Educação Infantil (para crianças de 4 a 5 anos), uma Escola

Municipal de Ensino Fundamental com a oferta de Ensino de Jovens e Adultos, e,

além disso, possui quadra poliesportiva, teatro, playground, piscinas, biblioteca,

telecentro, espaços para oficinas, ateliês e reuniões. De arquitetura moderna e

impactante, ao mesmo tempo que engendra uma perspectiva de descentralização

cultural – inspirada nas Casas de Cultura – , assume também a estratégia de

isolamento da pobreza dos grandes centros culturais. Admitimos esta compreensão,

pois, na observação de dois polos do Projeto Guri – Santa Marcelina, sediados nos

CEUs –, verificamos que a produção cultural existente nesses espaços é ainda

inferior, se compararmos com as produções nos equipamentos do centro da cidade.

Seria necessário um equilíbrio para concluir que a descentralização cultural de fato

aconteceu.

47

Fernando Moraes (1946 - ) é jornalista, historiador, político e escritor. Tem se dedicado à atividade literária, dando especial ênfase ao gênero da biografia. Ele desenvolveu, em âmbito estadual, 12 oficinas culturais, fundou a Universidade Livre de Música, deu maior ênfase à programação do memorial e da TV educativa do Estado (PRONSATO, 2014, p. 110). 48

Celso Frateschi, ator, diretor e professor na Escola de Artes Dramáticas (ECA – USP), esteve à frente da Secretaria de Cultura de Santo André, durante a administração do prefeito Celso Daniel, em seus dois primeiros mandatos (1989 a 1998). A ênfase do trabalho de Celso Frateschi no município de Santo André foi sobre a formação e a informação, no intuito de consolidar uma proposta cultural alternativa à tendência cultural homogeneizadora. Ele participou também de outras experiências governamentais relevantes no campo da cultura, como: Diretor do Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; Secretário Municipal de Cultura em São Paulo – SMC, na gestão de Marta Suplicy, em 2003 e 2004; Presidente da Fundação Nacional de Artes – Funarte, a convite do ex-ministro da cultura Gilberto Gil, de 2006 a 2008; e Secretário Municipal de Cultura de São Bernardo do Campo em 2009 (RIDENTI, 2000).

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Retomando o trabalho de Marilena Chaui à frente da SMC, foram

estabelecidos os seguintes direitos pela Cidadania Cultural: direito à informação;

direito à fruição cultural por meio da gratuidade, acessibilidade e disseminação dos

eventos por toda a cidade; direito à participação e direito à produção cultural,

esforçando-se para assegurar o trabalho estável, formal, o incremento das

condições de trabalho e a valorização dos trabalhadores. Em relação a intenção de

garantir relações de trabalho formal e com direitos, havia um plano bem estruturado

para os trabalhadores ligados aos equipamentos públicos municipais, conforme

vemos a seguir, mas essa meta não se concretizou ao final do processo:

- por meio da criação da Orquestra Experimental de Repertório, da reimplementação da Orquestra Sinfônica Jovem e da valorização dos Corpos Artísticos Estáveis do Teatro Municipal (orquestra, coral e balé) e dos Corpos Docentes das Escolas Municipais de Arte (Dança, Música e Iniciação Artística), graças ao novo sistema de cargos e carreiras; bem como revalorização dos historiógrafos, arquivistas e museólogos do Departamento do Patrimônio Histórico, também com projeto de criação e reestruturação de cargos e carreiras; - por meio do financiamento e da produção integral (libreto, música, coreografia, cenografia, iluminação, figurinos) de três óperas brasileiras, pelo Teatro Municipal: Zero, Dom Casmurro e Ópera dos 500. (CHAUI, 2006, p. 99-100)

O modelo de gestão pretendido para a Secretaria Municipal de Cultura (SMC)

privilegiava ações propostas pela própria sociedade, sob orientação, coordenação e

financiamento da SMC. Ao que parece, a ideia de atividades culturais autônomas e

livres, produzidas pela sociedade, também foi o desejo de Celso Furtado,

concretizado na gestão de Marilena Chaui; entretanto, não pelo viés neoliberal. Os

Projetos Especiais foram um laboratório de estudo e concretização do ideal político

da cidadania cultural, mas, ao que parece, não tiveram continuidade. Permanece

como questionamento latente o que aconteceu com os seguintes projetos: Cidade,

cidadão, cidadania. 1º de Maio: a batuta com os trabalhadores (1989); Dissonâncias.

Artistas e intelectuais e a cultura no Brasil (1990); Ciclo Mário Pedrosa. Arte e

Política (1991); e 500 Anos. Caminhos da memória, trilhas do futuro: 1992,1922,

1792, 1492 (1992) (CHAUI, 2006, p. 96).

Contudo, a execução de uma política como essa se deparou com alguns

bloqueios políticos, componentes da estrutura hegemônica de gerenciamento do

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Estado, que são: a tradição clientelista, o sistema burocrático, a parceria com a

iniciativa privada e o caráter dúbio da jurisprudência49.

Sobre o sistema burocrático, tal como analisou o sociólogo Marco Aurélio

Nogueira (2005) acerca da incompatibilidade da democracia com a burocracia,

Chaui (2006, p. 76) identifica que os preceitos da burocracia – “hierarquia, segredo,

rotina, repetição administrativa e rigidez autoritária” – constituem um entrave ao

pleno desenvolvimento da Política de Cidadania Cultural, por serem incompatíveis

com a democracia e a cultura na perspectiva adotada. Além disso, alimentam outro

inimigo da concepção de cultura como bem público e como direito, a tradição

clientelista:

A burocracia não é uma ‘máquina administrativa’ e sim um sistema de poder movido por gente, e no qual a vontade dos indivíduos-burocratas é mais determinante e imperiosa do que as leis e os procedimentos. Os hábitos burocráticos operam para a manutenção de mando e poderes e não para a proteção efetiva da coisa pública. Assim, sob a máscara da impessoalidade racional (tão louvada por Weber), imperam vontades pessoais e personalizadas, que representam grupos e interesses políticos, sociais e econômicos. (CHAUI, 2006, p. 76-7)

Se, por um lado, Chaui (2006) afirma que enfrentou e superou a tradição

clientelista e de favor em sua gestão na SMC, por outro lado, podemos inferir que

esse sistema de redes dominado por vontades pessoais e interesses políticos

somente se fortaleceu em sua dimensão institucional burocrática a serviço da arte,

tal como analisou o sociólogo do trabalho artístico Menger (2005), ao definir as

relações sociais e interpessoais de proteção e ajuda mútua no meio artístico.

Menger (2005) refere-se ao processo de individualização do trabalhador artista em

relação à produção da obra de arte e de um consequente individualismo que torna o

mercado de trabalho na área ainda mais competitivo. Além disso, as diferenças de

recursos individuais ligados à origem social e às formações adquiridas geram

desigualdades de sucesso e associações seletivas dos profissionais que endossam

as lógicas do talento, a reputação e o prestígio do artista, ao reafirmá-los em

benefício próprio, constituindo assim redes densas de interconhecimento e de

colaboração mútua que só reiteram as desigualdades de emprego e remuneração.

49

A jurisprudência municipal teria o papel de garantir a legalidade na execução da política cultural, mas, com seu positivismo e formalismo jurídico, torna ineficaz a sua própria ação. Além disso, segundo Chaui (2006), seus procedimentos legais acreditavam ser superiores ao poder político (cidadãos politicamente organizados e representados) e acabavam por decidir quais políticas podem ser concretizadas por governos eleitos.

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A autora também observou a relação clientelista e de favor com o poder

legislativo na Câmara Municipal de São Paulo, que “[...] leva os vereadores a

solicitar eventos, serviços, espaços, construção de edifícios, cargos, sem qualquer

preocupação com as diretrizes definidas pela Secretaria” (CHAUI, 2006, p. 83).

Quanto à parceria com a iniciativa privada para a produção cultural,

diferentemente de Celso Furtado (2012), que a percebe como fator de

desenvolvimento, Chaui (2006, p. 75) não acredita ser possível conciliar as duas

diretrizes básicas da Cidadania Cultural – “a cultura como direito dos cidadãos e

como trabalho de criação dos sujeitos culturais” – com a parceria fundada em

interesses econômicos ou de prestígio e reforço dos privilégios da classe dominante

paulistana, embora considere a existência de exceções: empresários fomentadores

de projetos culturais contra-hegemônicos, cuja identidade eles preferem manter em

sigilo.

Acrescentamos, à análise de Chaui (2006) e ao resumo de sua experiência na

SMC, que o próprio conceito de público e privado interfere na concepção de uma

política cultural. Conforme a síntese de Wu (2006, p. 43), na teoria política liberal,

“público” expressaria o poder político institucionalizado, ou seja, se traduz na

autoridade de um Estado soberano, é sinônimo de estatal; já o “privado” conforma

as atividades econômicas privadas e o âmbito doméstico. Raymond Williams (2007)

define, como sentido primário de privado, o privilégio (participação ou acesso

limitado) e, por meio disso, explica como se transfigura o “público” como “privado”; o

“público”, para o autor, se apresentaria como sem restrições, aberto ao públ ico em

geral ou à disposição deste.

Com base nisso, podemos inferir que a política cultural elaborada por Chaui

(1989 a 1992), por estar inscrita numa ordem governamental em que a estrutura do

Estado é capitalista, admite, por essa razão, a teoria política liberal. Contudo, suas

práxis se aproximaram da concepção de público elaborada por Williams (2007).

Quanto ao terceiro setor, estrutura predominante de gestão dos equipamentos

públicos de cultura no Estado de São Paulo, conforme apresentamos, podemos

inferir que constitui natureza ambígua, por estar inscrito no poder híbrido – público e

privado. A ambiguidade consiste em admitir, ao mesmo tempo, a gratuidade dos

serviços oferecidos ao público, a utilização do patrimônio público e o financiamento

público do Estado, junto a condução e concepção por uma gestão distante do

aparelho de Estado e atrelada ao financiamento das grandes corporações.

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74

Consideramos que esse balanço das políticas culturais elaboradas de 1985

até o presente momento informa historicamente a política cultural elaborada pelo

estado de São Paulo. Sua análise permitiu compreender com maior densidade de

que modo a relação entre arte e cultura foi apropriada pelo capital como ferramenta

política para minimizar tensões sociais ou estimular o crescimento econômico por

meio dos projetos de desenvolvimento cultural (YÚDICE, 2006). O Projeto Guri

(1995 – ) traz elementos substantivos para a compreensão dialética das políticas

referidas.

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CAPÍTULO III

DUAS CONCEPÇÕES DE PROJETO GURI: PARALELOS E PARADOXOS

__________________________________________________________

O objetivo deste capítulo é apresentar uma descrição das ações do Projeto

Guri Santa Marcelina e analisá-las teoricamente, à luz do referencial teórico

elaborado ao longo desta dissertação. O cenário construído nos capítulos anteriores

é fundamental para a montagem dessa teia de relações. Estabeleceremos uma

análise comparativa das duas propostas em torno do Projeto Guri: a da Associação

de Amigos do Projeto Guri (AAPG) e a do Guri Santa Marcelina (GSM), explorando

aspectos divergentes, continuidades e rupturas. Além disso, o exercício de

compreensão acerca do trabalho do Guri Santa Marcelina será feito na relação com

a ascensão do modelo de Organizações Sociais como referência hegemônica na

condução de políticas culturais, conforme se estruturou no decorrer dos últimos 15

anos.

Uma nova Organização Social na gestão do Projeto Guri

Concomitantemente à ampliação do número de polos do Projeto Guri e ao

consequente aumento de sua extensão pelo estado de São Paulo, a Associação de

Amigos do Projeto Guri foi alvo de críticas quanto a sua administração. Durante a

gestão do secretário de cultura João Sayad (2007-2010) e do governador José Serra

(2007-2010), algumas declarações públicas, como a do maestro John Neschling e a

resposta de João Sayad, refletem as preocupações e as tensões que iriam

impulsionar a ação direta da Secretaria de Estado da Cultura.

Existe um orçamento dado pelo Estado, de R$ 43 milhões. Há com ele um contrato de gestão que prevê metas. Entre elas fazia parte a Academia (escola da orquestra para aperfeiçoamento de músicos já formados) e as turnês internacionais. O secretário é mal informado por seus assessores. Ele disse à Folha que em 2008 a Academia tinha oito alunos e custou R$ 1 milhão. Não é verdade. Neste ano ela custa R$ 680 mil e atendeu a 21 alunos. É a salvação da Osesp. Na secretaria, o Projeto Guri custa R$ 60 milhões e não forma um só músico. (NESCHLING, 2008, número de página ilegível)

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São 60 mil alunos. A crítica que músicos fazem é de que o projeto tem um aspecto social muito maior do que o musical. Acho que isso é imutável. Mas é necessário extrair um valor maior do ensino de música. (SAYAD, 2007, número de página ilegível)

O secretário de cultura, João Sayad, deu continuidade ao trabalho iniciado

pela ex-secretária Claudia Costin (2003-2005), que os dois chamaram de “gestão

compartilhada dos equipamentos culturais com a sociedade civil”. O que também

pode ser compreendido como um processo de terceirização das estruturas e dos

programas culturais da secretaria, conforme apontamos no capítulo anterior.

Contudo, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo (27/11/2008), Sayad – como

já dissemos – refere-se a uma “herança maldita” no interior da Secretaria: os

contratos de trabalho irregulares dos funcionários, conhecidos como

credenciamentos; e assume a proposta de regularização via Consolidação das Leis

Trabalhistas (CLT).

Esse processo gerou discussão e discordâncias quanto ao modelo e às

estratégias de transição, e um dos grupos que se posicionou em relação a isso foi a

Cooperativa de Música do Estado de São Paulo. Naquele momento, ela era

responsável pelo pagamento dos funcionários da Associação de Amigos do

Conservatório de Tatuí; da Associação de Amigos do Projeto Guri; e da Associação

de Amigos do Centro de Estudos Musicais Tom Jobim, que reunia a antiga ULM, a

Orquestra Jazz Sinfônica e a Banda Sinfônica do Estado. Tratava-se de um contrato

estabelecido com essas OSCs, na tentativa de burlar o pagamento direto à pessoa

física. Além disso, os profissionais do Projeto Guri eram considerados instrutores, o

que prevê outra faixa de remuneração e outra relação com o trabalho educacional,

que, consequentemente, deslegitima o ofício do músico professor (SÃO PAULO,

2012, p. 51).

Mas o fato é que a Cooperativa destacou um aspecto importante nesse

processo: a situação dos profissionais. Segundo Carlos Zimbher, presidente da

Cooperativa de Música, cerca de 600 profissionais prestaram serviços durante anos

nas escolas estaduais de música, e ele defendeu a incorporação do quadro docente

e técnico, mesmo que com avaliações periódicas: “Nada temos a opor quanto à

celetização (CLT), à regularização dos contratos. Mas estas pessoas estão aí há 5,

10, 20 anos prestando serviços. Elas sedimentaram o nome e o prestígio dessas

instituições. Não é humano ignorá-las” (ZIMBHER, 2008, número de página ilegível).

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Durante as observações do trabalho de campo, realizado em quatro polos do

Guri Santa Marcelina53 – dois deles sediados nos CEUs –, nas regiões sul, leste,

centro-oeste e centro, entrevistamos profissionais que atuaram simultaneamente em

ambos os projetos (AAPG e GSM). No geral, eles confirmaram o chamado

credenciamento da AAPG e o pagamento por serviço via Cooperativa de Música do

Estado de São Paulo, além da ausência de direitos como férias, décimo terceiro

salário, licenças saúde e maternidade. O depoimento da professora de música que

vivenciou a experiência de contrato precário com a AAPG demonstra o impacto

dessa condição sobre as relações de trabalho.

As condições de trabalho vivenciadas na AAPG, do ponto de vista pedagógico e salarial eram muito ruins. Acredito que hoje em dia isso tenha mudado, mas não tive mais contato com eles. Ter acesso aos direitos trabalhistas traz maior segurança para nós profissionais. Atualmente posso planejar melhor a minha vida e de minha família, concretizar a maternidade com estabilidade. Isso me leva a avaliar que o GSM é melhor, e me sinto realizada profissionalmente por trabalhar aqui. (Professora de Música, Guri Santa Marcelina, 2015)

Nos últimos anos, a Associação de Amigos do Projeto Guri passou por

sucessivas transformações, para se adequar ao novo formato exigido pela

Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, a partir da gestão de João Sayad.

Destacam-se a reconfiguração da equipe de administração e o aumento no número

de cargos, a reformulação da proposta pedagógica e social, a reorganização dos

polos e das sedes administrativas. Porém, pouco se sabe quanto aos processos

seletivos e às condições de trabalho dos músicos-professores e dos funcionários.

Sabemos que o último processo seletivo ocorreu em 2009, com contratação de

cerca de 1.600 profissionais, e, conforme a seção Trabalhe Conosco de seu

endereço eletrônico, são divulgadas vagas disponíveis e temporárias (para cobrir

licenças para tratamento de saúde e licenças-maternidade, por exemplo), para

possível candidatura via cadastro curricular. Ali aparecem alguns direitos concedidos

(tratados por eles como benefícios): Vale Alimentação, Vale Refeição, Vale

Transporte, Assistência Médica e Seguro de Vida, contudo não se sabe quais os

critérios para a seleção desses currículos.

53

A fim de preservar a identidade de professores, assistentes, agentes de apoio e alunos que colaboraram neste processo de pesquisa, optamos por não revelar os polos pesquisados, assim como a identidade das pessoas, conforme anunciamos na introdução.

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78

Outro ponto sobre o qual precisamos refletir é por que, nesse momento de

reestruturação, se optou pelo estabelecimento de contratos no regime da CLT e não

pelo enquadramento funcional como servidores públicos estatutários. Sabemos que

há implicações, do ponto de vista jurídico, para organizar um concurso público que

possa contemplar os trabalhadores que dedicaram anos e anos de sua carreira

profissional para sedimentar o prestígio dessas instituições de ensino. Mesmo

assim, seria possível encontrar uma saída legal para esse problema. Por outro lado,

investir no regime da CLT é uma escolha política e social que assume sua

articulação com o processo de desregulamentação do trabalho iniciado no período

da Reforma do Estado, nos anos 1990, durante a gestão de Fernando Henrique

Cardoso.

Desde o início daquela gestão (1995-2003) no governo federal, a legislação

trabalhista sofreu alterações que, por sua vez, redefiniram o estado de

regulamentação do trabalho no âmbito da CLT. Foram sucessivas tentativas de

reforma dessa legislação, e da Constituição Federal (1988), em seu artigo 7º, que

discorre sobre os direitos trabalhistas. E, sob muita pressão social e política, tais

tentativas de mudanças radicais foram infrutíferas. Porém, ao assumir os postulados

estabelecidos pelo Fundo Monetário Internacional, não restava escolha a não ser

acatar as prerrogativas do fundo internacional e redefinir as relações entre capital e

trabalho por meio da flexibilização de direitos trabalhistas de forma paulatina. O

jornalista Altamiro Borges (2002), em obra publicada com o economista Marcio

Pochmann, analisa as principais alterações nesse período:

MP nº 1.053, convertida na Lei nº 8.542, [de 1992]. No bojo do

Plano Real, determinou a ‘livre negociação’ entre as partes, proibindo a indexação dos salários. [...]

Portaria nº 02, de maio de 1996. Dobrou o tempo do serviço

temporário de três para seis meses e flexibilizou os critérios para contratação. [...]

MP nº 1.530, convertida na Lei nº 9.468, de 1997. Instituiu o

Plano de Demissão Voluntária dos servidores federais, sendo depois seguida pelos estados e municípios;

Lei nº 9.601, de 1998. Aprovado em dezembro de 1997, esta PL

do Executivo instituiu o “contrato por tempo determinado”, o conhecido “contrato temporário”. O trabalhador contratado por este mecanismo não tem direito ao aviso prévio e à multa de 40 % sobre o FGTS quando da sua demissão. Além disso, o valor do depósito no FGTS é reduzido de 8% para 2%, assim como são reduzidas as contribuições para o Incra, salário-educação, seguro acidente de trabalho e o “Sistema S”. [...]

MP nº 1.709, renumerada para 1.779 e 2.168. Vigorando desde

1998, criou a figura do contrato parcial de trabalho. Permite a

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jornada semanal de no máximo 25 horas, com redução proporcional do salário e do tempo de férias – que pode ser de oito dias;

MP nº 1.726, de 1998. Instituiu a “demissão temporária”, com

suspensão do contrato de trabalho por cinco meses. [...]

MP nº 1.960, convertida na Lei nº 10.206, de março de 2001.

Num ajuste do Plano Real, proibiu a indexação salarial e a correção automática dos salários (o “gatilho”). (BORGES, 2002, p. 67-71)

A relação de trabalho mediada por uma OSC contratada pelo Estado tem sido

regulamentada pela CLT ou por pagamentos por serviço feitos geralmente à pessoa

jurídica. Em uma das entrevistas com um(a) professor(a) do Guri Santa Marcelina,

esse ponto é problematizado e ampliado, trazendo aspectos da precarização do

trabalho que recaem igualmente sobre o regime estatutário na atual conjuntura:

[...] mas existe uma tendência política forte em desprezar as OSs, né? Principalmente a esquerda, terceirização e tudo mais. Eu não tenho uma opinião muito formada, tenho uma tendência mais de esquerda só que...Mas eu acho que o que faz o Guri funcionar, no sentido de dar um salário melhor para o professor, é justamente ser uma OS, porque, em qualquer outro projeto de Estado ou escola pública, os professores ganham muito mal, minha mãe é professora do Estado. Nas ETECs e FATECs, o salário também é muito baixo em vista do Guri, por exemplo. Então eu acho que o fato de ser uma OS garante algumas coisas melhores, mas aí é uma discussão que eu não sei fazer. (Professor(a) de Música, Guri Santa Marcelina, 2015)

Conforme já dissemos, nos programas de formação em música do estado de

São Paulo, a experiência de enquadramento funcional estatutário nunca existiu: em

seu lugar estavam os contratos por tempo determinado e pagamento por ordem de

serviços – relação mediada pela Cooperativa de Músicos do Estado de São Paulo. A

falta de referências positivas e o enfraquecimento do regime estatutário moral e

salarialmente - no caso dos professores estaduais de São Paulo - induzem a uma

falsa interpretação da realidade. O depoimento deste professor(a) expõe uma tensão

e, ao mesmo tempo, uma coerência com sua condição de vida, porém que faz parte

de um jogo político que visa justamente sustentar que as Organizações Sociais são

um modelo de gestão bem sucedido.

Embora a CLT tenha sofrido sucessivas alterações, que beneficiam, em sua

maioria, o empregador, os músicos que trabalham nessa condição se sentem

protegidos e relativamente estáveis em seus empregos. Pois, ao compararmos essa

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realidade, a maior parte dos projetos em arte-educação conduzidos por ONGs e

OSs, conforme analisou Pronsato (2014), veremos vínculos temporários de trabalho

na condição informal, de trabalho parcial, e na relação salarial entre o empregador e

a pessoa jurídica.

Outro impasse que ocorre na CLT diz respeito a classificação das funções e

atribuição dos salários, nem sempre coerente com a relação entre tempo e trabalho

desempenhado. Esse ponto foi notado por um funcionário(a), embora mais uma vez

seja mencionado o reconhecimento de que o Guri Santa Marcelina oferece bons

salários.

“Eu não acho o Guri uma empresa ruim de se trabalhar. Na questão da remuneração da minha função, eu acho pouco. Na verdade, o que é o agente de apoio, não existe essa categorização, então a gente pode enquadrar como auxiliar de serviços gerais. Mas por não ter categorização, a função que a gente desempenha é totalmente diferente, é bem mais complexa. A gente precisa de um extremo cuidado, a gente está direto com os alunos, então não é um auxiliar de serviços gerais ou um ajudante geral. Os outros cargos também, tanto o assistente social como o monitor, a faixa salarial do Guri é muito melhor que o mercado. Então quem trabalha nessas funções no Guri, comparando com o mercado de trabalho atual, tem uma faixa salarial bem melhor. Só que para quem é agente de apoio, como eu, acho que teria que ser melhor.” (Funcionário(a), Guri Santa Marcelina, 2015)

O que é possível compreender sobre o processo de reestruturação do Projeto

Guri no estado de São Paulo, considerando suas contradições, é que a opção pela

CLT revela a escolha por uma política em âmbito governamental que já se estrutura

há 20 anos. Pode parecer incoerente expor elementos negativos em relação a

introdução da CLT, enquanto os trabalhadores enxergam-na como uma vitória, mas

não é. O que vemos é a dissolução progressiva do regime estatutário de trabalho,

tanto do ponto de vista moral e salarial, quanto do ponto de vista do vínculo

trabalhista e relação de trabalho no serviço público. Essa tendência vem se

generalizando no campo da saúde, cultura e educação básica no estado de São

Paulo, e seu estímulo por parte do poder político anuncia os rumos futuros para

outros setores das políticas públicas.

Retomando o processo de reestruturação das políticas culturais da Secretaria

de Estado da Cultura, foi realizada uma avaliação dos programas de educação

musical e de escolas de música mantidas pelo governo do estado de São Paulo,

durante a gestão de João Sayad e da assessora de música Claudia Toni, em 2007.

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Para tanto, foi composta uma comissão de avaliação e estudo da qual participaram:

Yara Casnók e Marcos Pupo Nogueira (UNESP); Luciana Sayuri, Henrique Autran

Dourado e Pedro Paulo Salles (USP); Silvio Ferraz e Esdras Rodrigues da Silva

(UNICAMP); Ilza Joly (UFSCAR); e Paulo Zuben (FASM). Os principais pontos

destacados pela comissão foram:

Qualidade do ensino musical pouco satisfatória;

Baixo envolvimento dos alunos com o projeto, consequente rotatividade e pouca adesão à proposta;

Trabalho social desenvolvido por profissionais sem formação na área;

Vários programas da política cultural do Estado funcionando isoladamente, sem constituir um sistema integrado de formação em música;

Ausência na estrutura do Estado de grupos corais e orquestras infantis e juvenis;

Baixa valorização dos professores de música com contratos precários de trabalho. (SÃO PAULO, 2012, p. 12-3)

Os elementos elucidados pela comissão são de grande relevância e sugerem

caminhos para uma mudança estrutural na SEC-SP. Contudo, o encaminhamento

dado pela Secretaria não correspondeu às expectativas traçadas. Pelo contrário,

manteve-se o modelo de gestão por meio de OSCs e, depois de finalizado o trabalho

dessa comissão, em 2007, a convite da SEC, uma nova organização assumiu a

gestão dos polos do Guri na Grande São Paulo e na Capital: o Instituto das Irmãs

Marcelinas.

Esse Instituto é uma associação “de direito privado, de natureza confessional,

educacional, cultural, assistencial, beneficente e filantrópica, sem fins econômicos e

lucrativos, constituída sob os ensinamentos e carisma do Beato Monsenhor Luigi

Biraghi”54. Sobre uma possível relação entre a sua natureza confessional e o ensino

de música ministrado no projeto, não temos elementos suficientes para intuir que a

questão religiosa tenha relevância sobre a gestão do projeto; há somente algumas

evidências de críticas pelos participantes que não desejavam apresentar-se nas

igrejas católicas paulistanas por princípios laicos e/ou de ordem religiosa (BRUNO,

2013). Porém, do ponto de vista musical, a formação de coros está associada

historicamente às igrejas, prova disso é a vasta produção musical sacra para esses

54

Estatuto Social da Associação de Cultura, Educação e Assistência Social Santa Marcelina, São Paulo. Disponível em: www.gurisantamarcelina.org.br/secao.aspx?id=41. Acesso em: 15 out. 2013.

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grupos vocais. Daí compreende-se a escolha desses espaços também privilegiados

por sua acústica. De qualquer modo, não nos delongaremos sobre esse tema.

A justificativa do Instituto das Irmãs Marcelinas para o convite feito pela SEC-

SP baseia-se na sua experiência de gestão há mais de 15 anos na parceria público-

privado e na filantropia no campo da saúde (administrando hospitais de grande porte

e programas da rede básica de saúde), além de sua atuação no campo das artes,

com a oferta de Ensino Superior privado, pois a Faculdade de Artes da Santa

Marcelina foi uma das primeiras nesse campo no Brasil (BRUNO, 2013).

A coordenadora da área de assistência social do Projeto Guri – Santa

Marcelina, Marta Bruno (2013), em sua pesquisa de doutorado, analisa as ações do

Programa Guri Santa Marcelina. E, sobre essa questão, ela ressalta que a

justificativa para a decisão da SEC-SP reflete a necessidade de reformulação do

Projeto Guri, motivada tanto pelo aumento do número de polos em curto espaço de

tempo quanto pela necessidade de requalificar a própria ação do projeto.

As condições para que a Santa Marcelina assumisse o Guri, de acordo com a

assistente social Marta Bruno (2013, p. 53), foram: a autonomia para a execução de

proposta própria; e recursos financeiros para realizar um trabalho de qualidade tal

como em sua rede particular, assegurando, inclusive, condições adequadas aos

trabalhadores e abertura de novos polos. A concepção para o Programa Guri Santa

Marcelina (GSM) foi pensada por profissionais da área de educação musical e

assistência social. Dessa forma, eles delimitaram os seguintes princípios:

1- trabalhar a educação musical na perspectiva do direito; 2- rejeitar e se opor a qualquer conotação salvacionista da arte na vida de crianças e adolescentes; 3- optar por uma educação crítica, emancipatória e libertadora; 4- ter no trabalho social acoplado à educação musical o aporte para consolidar mecanismos facilitadores de inclusão sociocultural. (BRUNO, 2013, p. 54)

O compositor Paulo Zuben, coordenador pedagógico do curso de graduação

em música da Faculdade Santa Marcelina, foi convidado para iniciar a estruturação

do Programa Guri e, desde então, é diretor artístico-pedagógico do programa. Ele

convidou, naquele momento, o professor e pesquisador do Instituto de Artes da

UNICAMP, Silvio Ferraz55, para liderar o processo de reestruturação da Escola de

Música do Estado de São Paulo. Todos aqueles que participaram da avaliação dos

55

Atualmente é professor da ECA-USP.

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programas mencionados acima posteriormente colaboraram com sua reestruturação

– processos de seleção, coordenações artístico-pedagógicas, entre outras (SÃO

PAULO, 2012, p. 13 e p. 35).

Para exemplificar, durante as edições anuais do Festival Internacional de

Inverno de Campos do Jordão, no triênio 2009-2011, houve a participação da

comissão supracitada juntamente com a Santa Marcelina Cultura, sob direção

pedagógica de Silvio Ferraz (nas edições 2009-2010). Nessas edições do festival,

ocorreram mudanças pedagógicas, com o retorno de categorias esquecidas há anos

pelo festival, como violão, música antiga e de câmara e composição. Também houve

preocupação em deixar um legado artístico à comunidade do município de Campos

do Jordão, buscando selecionar um músico da cidade como bolsista, pois, nos 40

anos de existência do festival, isso nunca havia ocorrido (SÃO PAULO, 2012, p.

147).

Para tanto, a Santa Marcelina Cultura encomendou uma pesquisa histórica do

festival, que resultou na obra Música nas montanhas: 40 anos do festival de inverno

de Campos do Jordão, desenvolvida pela jornalista e pesquisadora Camila Frésca e

por Maurício Ayer. A compreensão acerca do legado histórico do festival possibilitou

traçar perspectivas futuras, o que se concretizou desde 2009 e aperfeiçoou-se com

o programa intitulado Festival na comunidade, em 2011, em parceria com a UNESP

e a UFSCAR, o qual realizou cursos de iniciação musical, capacitação de

professores e formação para músicos e agentes culturais de Campos do Jordão e

região. Além disso, alguns professores do festival ministraram aulas aos músicos

locais não selecionados no processo seletivo de bolsistas regulares, e também

houve ampliação dos concertos e dos recitais em instituições como hospitais e asilos

(SÃO PAULO, 2012, p. 148-150). A declaração de Paulo Zuben durante a edição de

2009, enquanto diretor artístico-pedagógico do evento, expressa essas

preocupações:

Desde 2009, buscamos nos envolver com a comunidade local e enxergar suas necessidades. O público é muito bem recebido durante a temporada de inverno, mas a realidade de Campos do Jordão no resto do ano é bem contrastante. Queremos provocar nas pessoas essa percepção. (SÃO PAULO, 2012, p. 176)

Reconhecemos a relevância e o engajamento institucional diante dessas

questões sociais não privilegiadas. Por outro lado, observamos algumas

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inconsistências no discurso que precisam de maior esclarecimento. Quanto ao

processo seletivo de bolsistas estudantes no festival, a avaliação dos candidatos,

baseada no mérito, sofreu um processo de digitalização, o que garantiu, de certa

forma, a ampla participação dos candidatos para além da região sudeste do país: a

inscrição de vídeos no YouTube tornou pública, inclusive, a apreciação da banca

sobre eles. Além disso, foram realizadas audições específicas no Rio de Janeiro e

em Belo Horizonte para contemplar esses “importantes centros de formação” (SÃO

PAULO, 2012, p. 151). Dessa forma, verificamos mais uma vez a supremacia da

região sudeste concentrada no eixo Rio-São Paulo-Minas e a reiteração da ausência

de músicos locais no festival. Ressaltamos que essas edições do festival foram

produzidas pela Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP - Tom Jobim).

O paradoxo aparece na seguinte fala, pois sugere que o festival de inverno seja uma

espécie de “curso de férias” da EMESP Tom Jobim. Questionamos se esse era, de

fato, o objetivo inicial. “O Festival era um período muito especial de imersão em

música, que por outro lado está totalmente conectado a um processo artístico-

pedagógico permanente, que acontece durante o ano todo na EMESP Tom Jobim”

(SÃO PAULO, 2012, p. 151, grifo nosso).

Há também, historicamente, a escolha política de privilegiar o repertório da

música erudita no festival, o que, de certa forma, tem sua importância, mas pode

recair como fator limitante na participação de músicos em formação, especialmente

se pensarmos que os próprios músicos não reiteram a cisão entre música erudita e

música popular, pois eles compõem uma única categoria profissional.56

Paralelos

Antes de nos aprofundarmos na análise do Guri Santa Marcelina, convém

estabelecer alguns aspectos comparativos em relação às duas organizações

responsáveis pelo Projeto Guri. Começaremos pela caracterização do público

participante do projeto. O público alvo é composto por crianças e jovens de 6 a 18

anos, em especial, oriundos de “comunidades pobres e carentes em situação de

vulnerabilidade social e econômica”, conforme caracterização dos responsáveis. Sob

56

De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações/CBO, documento que organiza, nomeia e descreve as ocupações do mercado de trabalho no Brasil, temos: músicos intérpretes, músicos compositores, arranjadores, regentes e musicólogos.

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a responsabilidade da AAPG encontram-se 35 mil alunos no interior, no litoral e na

Grande São Paulo, distribuídos em 370 polos57, conforme apontamos no capítulo

um; já com a Santa Marcelina Cultura, são 46 polos na capital e na Grande São

Paulo, com 16.188 alunos58; e a Escola de Música do Estado de São Paulo – Tom

Jobim, com 1.800 alunos. Segue a distribuição dos polos do GSM:

Tabela 3 - Distribuição dos polos do Guri Santa Marcelina por regiões e parcerias público ou público-privado, em 2014.

Regiões

Polos da Capital de SP Centros Educacionais Unificados – CEUs

Polos da Capital de SP Organizações não governamentais e governamentais parceiras

Polos da Grande SP Organizações não governamentais e governamentais parceiras

Norte Perus, Pera Marmelo, Jardim Paulistano e Vila Atlântica.

Leste Parque São Carlos, Vila Curuçá, Parque Veredas, Jambeiro, Inácio Monteiro, São Rafael, São Mateus, Três Pontes, Quinta do Sol, Sapopemba e Rosa da China.

ACETEL – Cid. Tiradentes, CCA – Itaquera, Obra Social Dom Bosco, PEFI Imigrantes e Casa de Cultura da Penha.

Sul Meninos, Alvarenga, Navegantes, Cidade Dutra, Vila Rubi, Parelheiros, Casa Blanca, Paraisópolis, Campo Limpo e Capão Redondo.

Espaço Aberto Jardim Miriam e Brooklin.

Centro Achiropita, Amácio Mazzaropi e Júlio Prestes.

Oeste Parque Anhanguera Ponte Brasilitália.

Grande São Paulo

Vila do Sol Arujá, Biritiba Mirim, Guararema, Poá, Santa Cruz - Guarulhos, AME-Osasco, Osasco e Cesa Cata Preta - Santo André.

Fonte: Site institucional do GSM. Elaboração própria.

57

Relatório de Atividades AAPG, 2013, p.18. 58

De acordo com os dados informados na Prestação de Contas publicada em Diário Oficial do dia 27 de fevereiro de 2015.

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Figura 5 - Mapa da distribuição dos polos do Guri Santa Marcelina, em 2014.

Fonte: http://gurisantamarcelina.org.br/como-estudar-aqui/polos-de-ensino#.VncXTbYrK1s

Considerando o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (2005) apresentado no

primeiro capítulo, dos 38 polos situados no município de São Paulo, 18 encontram-

se em áreas pobres, 17 em áreas de classe média baixa, 1 em área de classe média

e 2 em áreas ricas.

Cada polo conta com uma equipe de funcionários: um(a) assistente social,

um(a) monitor(a) – geralmente pedagogo ou psicólogo –, um(a) agente de apoio, e

os professores(as) de música com número variável, de acordo com a grade definida

para o polo e com a condição estrutural de atendimento aos alunos.

Vimos que mais da metade dos polos do GSM se concentra nos Centros

Unificados Educacionais – CEUs, utilizando seu espaço físico e seus instrumentos

musicais. No capítulo anterior, informamos que eles estão dispersos pelas periferias

da cidade de São Paulo e atuam numa perspectiva de descentralização cultural, ao

mesmo tempo em que adotam a estratégia de isolamento dos bairros periféricos em

relação aos centros culturais dos pontos centrais da cidade. Admitimos essa

compreensão, pois, na observação dos dois polos do Projeto Guri – Santa

Marcelina, sediados nos CEUs, verificamos que a produção cultural ali existente é

ainda inferior, se compararmos com as produções nos equipamentos do centro da

cidade. Seria necessário um equilíbrio, para concluir que a descentralização cultural

de fato aconteceu.

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Contudo, pudemos ver também o significado dos CEUs para as comunidades

que deles usufruem. Em entrevista ao Programa Roda Viva (2007)59, quando

questionado sobre os efeitos da chegada dos projetos sociais coordenados por

ONGs e da construção do CEU na comunidade do Capão Redondo, Mano Brown

expressa bem esse significado: revela que, ao compor o rap “Fim de semana no

parque”, ele pensou exatamente num lugar como o CEU para sua comunidade:

Aqui não vejo nenhum clube poliesportivo. Pra molecada frequentar, nenhum incentivo. O investimento no lazer é muito escasso. O centro comunitário é um fracasso. Mas aí, se quiser se destruir, está no lugar certo. Tem bebida e cocaína sempre por perto. A cada esquina, 100, 200 metros. Nem sempre é bom ser esperto. [...] Alcoolismo, vingança, treta, malandragem. Mãe angustiada, filho problemático. Famílias destruídas. Fins de semana trágicos. Vamos passear no Parque. Deixa o menino brincar. Fim de semana no parque. (Mano Brown e Edy Rock. Fim de semana no parque, 1993)

Mano Brown certamente pensou em um local onde as crianças e suas

famílias pudessem ter acesso a quadras, piscinas, cinema – enfim, um lugar

tranquilo para que as crianças pudessem brincar. Por isso, podemos dizer que o

CEU cumpre com a finalidade de lazer para as classes trabalhadoras, pois trata-se

de um equipamento público distribuído nas zonas periféricas da cidade de São

Paulo, mantendo o mesmo formato e atividades comuns. A imagem a seguir é um

indicador social de onde se instalam os CEUs e qual é seu público alvo.

59

Disponível em: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/470/entrevistados/mano_brown_2007.htm. Acesso em: 10 dez. 2015.

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88

Figura 4 - Aluno do Guri Santa Marcelina, em polo do CEU na zona sul de São Paulo.

Fonte: SÃO PAULO, 2012, p. 26

Em seus primeiros anos de existência durante a gestão de Marta Suplicy

(2001-2004), os CEUs possibilitavam a realização de múltiplas ações culturais. Os

relatos de profissionais da dança que atuavam nesses equipamentos, apresentados

na tese de Laura Pronsato (2014, p. 178), destacam alguns aspectos que

configuravam condições adequadas para o desenvolvimento do trabalho: o espaço

físico amplo e diversificado, uma equipe de trabalho numerosa, integrando as quatro

linguagens artísticas (dança, artes cênicas, música e artes visuais), a inscrição de

alunos conforme seu próprio interesse nos cursos e a adequação no número de

alunos por professor.

Por outro lado, os trabalhadores artistas que atuavam nesses espaços eram

contratados como arte-educadores de modo informal e temporário e atuavam na

prestação de serviços, submetidos a eventuais atrasos nos pagamentos. Além disso,

nota-se uma perpetuação das orientações contidas nos programas da Secretaria do

Menor do Estado de São Paulo, nas quais não havia preocupações ou

fundamentações teórico-práticas em relação à arte, conforme analisamos no

primeiro capítulo (PRONSATO, 2014, p. 183).

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Outro ponto negativo ressaltado por esses artistas foi a descontinuidade dos

projetos ao longo dos anos, por ser de caráter temporário a contratação de arte-

educadores e também pelas sucessões do poder municipal, que não se

comprometiam a dar continuidade aos projetos em desenvolvimento. Em 2005, o

projeto de Iniciação Artística dos CEUs foi terceirizado: em seu lugar, entraram as

parcerias com ONGs para realizar projetos diversos. Isso aconteceu durante a

gestão municipal de José Serra e, posteriormente, com seu sucessor, Gilberto

Kassab (2005-2008). Nesse momento, os trabalhadores passaram a ter registro pela

CLT, porém eram contratados como monitores, o que prevê uma faixa salarial mais

baixa. Além disso, foram obrigados a receber uma média de 40 alunos advindos da

escola formal também sediada no CEU, que eram obrigados a participar do projeto,

o que gerou condições de trabalho desfavoráveis (PRONSATO, 2014, p. 190).

De 2005 a 2008, os espaços dos CEUs foram abandonados, e os

trabalhadores, transferidos para as escolas públicas. Ao assumir a gestão municipal

em 2006, Gilberto Kassab deu origem a um novo projeto – paralelo e similar ao CEU

–, o projeto PIÁ, sediado em prédios próprios, com infraestrutura inferior ao CEU,

ocasionando mais uma transferência dos trabalhadores: da escola para o projeto

PIÁ (PRONSATO, 2014, p. 192).

Atualmente, há uma parceria entre o Guri Santa Marcelina e o CEU. Do ponto

de vista de constituição de uma política cultural para a cidade, essa união é algo

significativo, pois consolida uma proposta de educação musical num espaço já

existente, independentemente de questões partidárias. Na entrevista com um(a)

funcionário(a) do GSM observamos essa relação:

Aqui a gente não tem nenhum tipo de problema, pelo contrário, eu acho que a parceria entre o CEU e o "Guri" aqui funciona de verdade, mas houve uma aproximação por parte da nossa equipe com a gestão. A gestão trocou, né? A gente tinha a gestão da prefeitura pelo PSDB e hoje entrou o pessoal da gestão do prefeito Haddad que é do PT. Não que eu queira mencionar uma questão partidária ou aspiração política, mas eu sinto uma diferença da gestão atual com a anterior, talvez porque eu tenha mais tempo - eu cheguei no final da outra gestão - mas é nítido, eu posso afirmar com clareza, que tanto a questão de investimento na infraestrutura do CEU, a questão da parceria e de vir procurar o "Guri" e ter essa aproximação. Até na coisa mais básica que é o fato de chegar e cumprimentar, com essa gestão é muito melhor. Talvez isso tenha sido um facilitador para a aproximação que existe hoje. A gente tem liberdade para circular pelo CEU, trabalhar e utilizar todos os espaços para fazer qualquer atividade, utilizar quadra para fazer concerto, sala multiuso e, em contrapartida, se tem alguma

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apresentação no CEU, algum evento, algo de caráter musical pra ser apresentado, a gente também faz essa parte com eles. A gestão aqui nesse polo não tem problema nenhum. (Funcionário(a), Guri Santa Marcelina, 2015)

Quanto às informações relativas a classe social, gênero, cor da pele,

condições de moradia e infraestrutura de equipamentos públicos nas regiões onde

se encontram os polos do Guri, ambas as organizações optaram por não delimitar

ou não tornar público esse perfil socioeconômico do público participante.

Obtivemos alguns dados por meio da análise de duas pesquisas

encomendadas: Pesquisa de avaliação de impacto do Projeto Guri entre os anos

2011, 2012 e 2013 (AAPG) e Avaliação da satisfação de pais e alunos do curso

sequencial anos 2013 e 2014 (GSM). A primeira foi realizada pela Ipsos Public

Affairs, que desde 1997 é a maior empresa de pesquisas survey based do mercado;

portanto, seus resultados são somente quantitativos60. A segunda foi elaborada pela

Ábaco Marketing Research, desde 1975 especializada em pesquisas a serem

apropriadas para uso em situação de marketing das empresas interessadas. Para

tanto, utiliza-se da metodologia qualitativa e quantitativa. Sabemos da limitação

dessas fontes, mas, em certa medida, seus dados permitem visualizar o perfil

socioeconômico dos participantes do Projeto Guri, uma informação relevante que

pode caracterizar ambos os programas (AAPG e GSM).

Na Associação de Amigos do Projeto Guri, as amostras consideradas para os

grupos de alunos do projeto e para seus familiares, em 2013, são, respectivamente:

361 e 398. Em resumo, este é o conjunto de informações obtidas:

Perfil socioeconômico dos participantes da AAPG: Não se aborda o

conceito de classe social, é utilizado o Critério de Classificação

Socioeconômica Brasil elaborado pela Associação Brasileira de Empresas de

Pesquisa (ABEP, 2013)61. Em 2013: 57% são da classe B; 35%, da classe C;

5%, da classe A; e 3% da classe D. Aparentemente, há predominância do

sexo feminino entre os participantes, em 2013: 52% são mulheres. Quanto à

60

Na exposição dos dados, a Ipsos compara os dados referentes ao Projeto Guri com aqueles referentes ao Grupo Controle - GC (outros projetos sociais nas áreas de cultura e esportes nas mesmas regiões onde se situam os polos pesquisados do Guri). Há uma aparente intenção de demonstrar que os participantes do PG apresentam sempre índices positivos em relação ao GC. Por exemplo, menores índices de reprovação escolar, maior participação em eventos culturais, baixos índices de violência, renda familiar superior, nível de escolaridade superior, entre outros (SÃO PAULO, 2013). 61

Disponível em: http://www.abep.org/criterioBrasil.aspx. Acesso em: 22 mar. 2015.

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cor da pele declarada, em 2013, 56% autodeclaram-se brancos; 29%, pardos;

e 10%, negros (SÃO PAULO, 2013, p. 16-8).

Renda Mensal Familiar: Em 2013, 19% recebiam de 0 a 2 salários mínimos;

47%, de 2 a 4 salários mínimos; 11%, de 4 a 5 salários mínimos; 16%, acima

de 5 salários mínimos; e 7% se recusaram a responder (SÃO PAULO, 2013,

p. 68).

Escolaridade dos pais e responsáveis: Em 2013, 35% possuíam ensino

médio completo; 8%, nível superior incompleto; 22%, ensino superior

completo ou alguma graduação superior; 4%, analfabeto/ensino fundamental

incompleto; 5%, ensino fundamental completo; 10%, anos finais do ensino

fundamental incompleto; 10%, anos finais do ensino fundamental completo; e

5%, ensino médio incompleto (SÃO PAULO, 2013, p. 67).

O critério adotado para o termo “classe” nessa pesquisa é semelhante à

análise de grupo socioeconômico: estima-se o poder de compra das pessoas e das

famílias urbanas. Os critérios utilizados para a estimativa são: bens de consumo na

residência e serviços domésticos mensalistas, grau de instrução do chefe de família

e renda média bruta familiar no mês, a partir de levantamento dos dados

socioeconômicos do IBOPE Media, 2011.

No caso do Guri Santa Marcelina, na pesquisa de opinião realizada com pais e

alunos do curso sequencial, o Ábaco compara dados obtidos em 2013 e 2014, cujas

amostras foram: 520 alunos em 2013 e 883 alunos em 2014; 319 familiares em 2013

e 380 familiares em 2014. Em resumo, temos:

Perfil socioeconômico dos participantes do GSM: Não se aborda o

conceito de classe social ou qualquer outra referência ao tema.

Aparentemente, há uma predominância de participantes no projeto do sexo

feminino: 54% em 2013 e 53% em 2014. Quantos aos adultos responsáveis

pelo acompanhamento dos alunos no projeto, 82% são mulheres, nos dois

anos considerados. Dentre os adultos responsáveis, 62% estão inscritos na

População Economicamente Ativa (PEA) e 32% das mulheres declaram ser

donas de casa (SÃO PAULO, 2014, p. 12 e p.15).

Renda Mensal Familiar: Em 2013, 75% dos responsáveis declaravam renda

de até 5 salários mínimos, sendo que, destes, 52% recebem até 3 salários

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mínimos. Apenas 7% recusaram-se a responder e/ou não sabiam informar

(SÃO PAULO, 2014, p. 16).

Escolaridade dos pais e responsáveis: No geral, em 2013, 51% concluíram

o ensino médio e 16% possuem ensino superior completo (SÃO PAULO,

2014, p. 11).

Avaliação do bairro onde mora: Na percepção dos participantes do projeto,

as notas que aferem a 1) facilidade de acesso a transporte público; 2)

quantidade de escolas públicas; e 3) atividades culturais em seus bairros são,

respectivamente: 1) 5,3 em 2013 e 7,1 em 2014; 2) 6,6 em 2013 e 6,8 em

2014; e 3) 5,8 em 2013 e 5,8 em 2014. Já os responsáveis apresentam razão

semelhante, respectivamente: 1) 4,4 em 2013 e 6 em 2014; 2) 6,2 em 2013 e

6,4 em 2014; e 3) 4,9 em 2013 e 5,3 em 2014 (SÃO PAULO, 2014, p. 39-40).

Considerando esses dados, a discussão iniciada no primeiro capítulo acerca da

pobreza compreendida “situação de risco” e da participação dos filhos e filhas das

classes trabalhadoras no Guri, notamos que a maioria dos familiares em ambos os

projetos (AAPG e GSM) declara possuir renda e estar inscrita na População

Economicamente Ativa (PEA). Além disso, em relação ao grau de escolaridade, a

maioria possui de Ensino Médio à Ensino Superior. Já em relação a avaliação da

região onde moram, há um destaque sobre a escassez de equipamentos públicos e

sua baixa efetividade, o que na análise do Índice de vulnerabilidade juvenil (2005) foi

classificado como regiões pobres ou de classe média baixa.

Por outro lado, podemos entender a baixa e pouco efetiva oferta de serviços

públicos nessas regiões como uma ausência do Estado, e substituição deste por

ONGs e OSs que constituem a principal referência em serviços públicos culturais e

no campo da saúde, conforme observamos durante o trabalho de campo. Conforme

vimos anteriormente, a construção social do medo e da violência atribuída a essas

regiões e, consequentemente, a todos que nelas vivem, fez parte do Projeto Guri e

de outras instituições sociais. Ao fazerem isso, desconsideravam ou omitiam a

presença das classes trabalhadoras que também residem nesses espaços da malha

urbana, cujos filhos e filhas participam majoritariamente do Projeto Guri. Com base

nisso, podemos inferir que o discurso do medo e da situação de risco, na verdade,

se aplica também às classes trabalhadoras no contexto do Guri.

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Outro ponto que merece nosso destaque é a participação das mulheres no

acompanhamento dos filhos que frequentam o Guri. No caso do Guri Santa

Marcelina, 82% dos adultos responsáveis pelos alunos no projeto são mulheres nos

dois anos considerados (2013 e 2014). Dentre os adultos responsáveis, somente

62% estão inscritos na PEA e 32% das mulheres declaram serem donas de casa, ou

seja, boa parte do total de mulheres não exerce atividade remunerada. Isso

demonstra que os homens ainda constituem a maioria na participação econômica

em âmbito familiar.

A criação do Coral de Familiares no Guri Santa Marcelina em 2014 somente

reitera as informações destacadas acima. Sua composição é de 80% de mulheres e

20% de homens, realizando ensaios aos sábados, semanalmente. Essa presença

feminina na educação e no cuidado dos filhos evidencia, por outro lado, a ausência

masculina, e os resquícios de uma constituição familiar patriarcal. Embora, em

contexto nacional, as mulheres tenham 45,1% de participação na população

economicamente ocupada e os homens 54,9%, de acordo com estudo do IBGE

(2010, p. 02), notamos que seu ingresso recente e crescente no mercado de

trabalho mantém-se atrelado à função do cuidado e educação das crianças entre

outros afazeres domésticos com baixa divisão sexual do trabalho doméstico.

Além disso, percebemos uma participação predominante de alunas do sexo

feminino nos dois projetos, dado que não se assemelha ao quadro geral de

ocupação profissional no campo da música, o qual é tomado, em sua maioria, por

homens. Nas pesquisas desenvolvidas por Liliana Segnini (2014, p. 80), por meio

dos dados sistematizados pela Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio

(IBGE/PNAD) e pela Relação Anual de Informações Sociais (MTE/RAIS), podemos

verificar a evidência da participação de homens na ocupação em música nos anos

2000: “em 2003, eles representavam 87% (112.367) do grupo (129.418); em 2011,

85% (108.127) de um total de 127.972 ocupados que se declaravam músicos

intérpretes ou regentes, compositores, arranjadores e musicólogos”.

Durante o trabalho de campo, em que acompanhamos, durante um mês, os

ensaios e as apresentações dos Grupos Infantis e Juvenis (GIFs) do GSM, nos fins

de semana, pudemos verificar a questão silenciada ou não referida pelos gestores

do projeto: a participação segundo o sexo dos participantes. Ao todo, constituem 373

participantes, distribuídos em: Orquestra Sinfônica Infanto-Juvenil (40,7% de

mulheres e 59,3% de homens); Orquestra de Cordas Infanto-Juvenil (57,8% de

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mulheres e 42,2% de homens); Coral Infantil (68,8% de meninas e 34,2% de

meninos); Camerata de Violões Infanto-Juvenil (22,6% de mulheres e 77,4% de

homens); Big Band Infanto-Juvenil (31,6% de mulheres e 68,4% de homens); Banda

Sinfônica Juvenil (35,9% de mulheres e 64,1% de homens); Coral Juvenil (62% de

mulheres e 38% de homens) e Banda Sinfônica Infanto-Juvenil (39% de mulheres e

61% de homens). Dada a pluralidade e a quantidade de grupos, optamos por

acompanhar diretamente dois grupos: Coral Juvenil e Banda Sinfônica Infanto-

Juvenil, cuja composição expressava contrastes: de um lado, maioria feminina; de

outro lado, maioria masculina. No total geral, observamos uma predominância de

participantes do sexo masculino, e somente nos corais e na orquestra de cordas há

uma presença significativa de participantes do sexo feminino. Os dados do Coral

Juvenil estão sistematizados na Tabela 4 e no Gráfico 4.1. Na Tabela 5 e no Gráfico

5.1 encontram-se os dados referentes à Banda Sinfônica Infanto-Juvenil:

Tabela 4 – Distribuição, segundo o sexo, dos integrantes do Coral Juvenil do Guri, temporada 2014, em números absolutos.

Polos de Ensino Jovens

Mulheres Homens

CEU Inácio Monteiro 2 3

CEU Parque Veredas 2 1

CEU Parque São Carlos 2 1

CEU Cidade Dutra 2 3

CEU Parque São Rafael 8 2

CEU Casa Blanca 2

CEU Vila Curuçá 2 2

CEU Jambeiro 3 1

Júlio Prestes 2

CEU Perus 1

CEU Rosa da China 1 1

CEU Alvarenga 2

CEU Vila Atlântica 1

PEFI Imigrantes 3

CEU Campo Limpo 1 2

CCA Itaquera 1 2

CEU São Mateus 1 1

CEU Meninos 1

CEU Navegantes 1

Brooklin 1

Total 36 22

Total (porcentagem) 62% 38%

Fonte: Santa Marcelina Cultura. Elaboração própria.

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Tabela 5 – Distribuição, segundo o sexo, dos integrantes da Banda Sinfônica Infanto-Juvenil do Guri, temporada 2014, em números absolutos.

Polos de Ensino Jovens

Mulheres Homens

CEU Parque Veredas 1 2

CEU Parque São Carlos 1

CEU Cidade Dutra 1

CEU Parque São Rafael 2

CEU Casa Blanca 1 1

CEU Vila Curuçá 3 4

CEU Jambeiro 2 5

Júlio Prestes 2

CEU Alvarenga 1 1

CEU Vila Atlântica 1 1

Amacio Mazzaropi 2

CEU Campo Limpo 3

CEU Navegantes 1

Brooklin 1 2

CEU Vila Rubi 1

Osasco 1

Ponte Brasilitalia 1

Total 16 25

Total (porcentagem) 39% 61%

Fonte: Santa Marcelina Cultura. Elaboração própria.

62% 38%

Gráfico 4.1 - Distribuição, segundo o sexo, dos integrantes do Coral Juvenil do Guri, temporada 2014, em

porcentagem.

Homens

Mulheres

Fonte: Santa Marcelina Cultura. Elaboração própria

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A Tabela 6 e o Gráfico 6.1 expõem a distribuição dos grupos infantis e juvenis

segundo o sexo, nos diversos polos.

Tabela 6 – Distribuição, segundo o sexo, dos demais grupos infantis e juvenis do Guri, temporada 2014, em números absolutos.

Polos de Ensino Jovens

Mulheres Homens

CEU Inácio Monteiro 5 4

CEU Parque Veredas 6 6

CEU Parque São Carlos 1 6

CEU Cidade Dutra 5 4

CEU Parque São Rafael 5 4

CEU São Mateus 5 8

CEU Casa Blanca 3 1

CEU Vila Curuçá 2 8

CEU Jambeiro 10 14

Júlio Prestes 17 12

Casa de Cultura da Penha 1 3

Amacio Mazzaropi 1 2

CEU Perus 6 7

CEU Rosa da China 6 6

CEU Alvarenga 2 12

CEU Vila Atlântica 4 11

CEU Pêra Marmelo 3 2

CEU Campo Limpo 5 7

Acetel 1

CCA Itaquera 1 3

Espaço Aberto Jardim Miriam 3 1

CEU Meninos 4 1

Osasco 2 3

Poá 1

Obra Social Dom Bosco 2 3

CEU Navegantes 4 6

Brooklin 4 6

Total (incluindo Coral Juvenil e Banda Sinfônica Infanto-

Juvenil)

161 212

Total (em porcentagem) 43,2% 56,8%

Total Geral (incluindo Coral Juvenil e Banda Sinfônica Infanto-Juvenil)

373

Fonte: Santa Marcelina Cultura. Elaboração própria.

61% 39%

Gráfico 5.1 – Distribuição, segundo o sexo, dos integrantes da Banda Sinfônica Infanto-Juvenil do Guri,

temporada 2014, em porcentagem.

Homens

Mulheres

Fonte: Santa Marcelina Cultura. Elaboração própria.

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Elaboramos interpretações acerca da participação segundo o sexo no Guri,

comparando esse quadro atual com a realidade de outros teatros e suas orquestras,

pesquisados por Liliana Segnini (2006). Ao analisar o Theatro Municipal de São

Paulo (1911 - ) e o Théâtre de l’Opéra National de Paris (1875 - ), Liliana Segnini

(2006) ressalta que as mulheres chegaram às orquestras recentemente, sobretudo a

partir dos anos 1990. Alguns fatores que contribuíram para isso foram: a

possibilidade de realizar audições atrás de biombos; e, anteriormente a isso, o

pertencimento a famílias de músicos que gozavam de prestígio social e a indicação

por músicos e regentes influentes (RAVET, 2000; SEGNINI, 2006).

No contexto da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, as mulheres

representavam 26% dos músicos, em 200362, o que configura uma minoria. Se

pensarmos especificamente nos dados referentes ao GSM, veremos diferenças de

ambos os lados: de um lado, os Coros, concentrando maioria feminina; de outro, a

Camerata de violões, a Big band e as Bandas sinfônicas, concentrando maioria

masculina. Mas, no total geral, considerando todos os grupos63, há certo equilíbrio

entre os gêneros, algo que, inclusive, provoca a reflexão acerca de um dos

fundamentos que alimentam ou alimentavam a ideologia do Projeto Guri, “o de

retirar os jovens (homens) da exposição à criminalidade e à violência a que são

62

Fonte: Theatro Municipal de São Paulo. Festival 92 anos. São Paulo, 2003. In: Segnini (2006, p. 330-1). 63

Excetuando o Coral de Familiares, que não pudemos classificar na relação de participantes em seus respectivos polos de origem, na temporada 2014.

56,8% 43,2%

Gráfico 6.1 – Distribuição, segundo o sexo, dos demais grupos infantis e juvenis do Guri, temporada

2014, em porcentagem.

Homens

Mulheres

Fonte: Santa Marcelina Cultura. Elaboração própria.

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submetidos em seu contexto social”, o que, no limite, está vinculado até ao nome do

projeto: “Projeto Guri”.

Em sua pesquisa sobre juventude e poder local, Marilia Sposito (2006, p. 243)

ressalta que a discussão em torno do emprego/desemprego juvenil é recente, e não

conseguiu se desviar ainda da lógica de que o tempo livre juvenil aparece como

sintoma de perigo, especialmente quando associado aos sujeitos do sexo masculino,

pobres e de origem negra. Contudo, ela reitera que essa questão do desemprego

não considera as jovens, que permanecem sendo as mais afetadas por ele; e infere

que as mulheres jovens não constituem uma prioridade nessas políticas, pois, diante

das formas de socialização predominantes, não representam ameaça social.

Há poucos registros sobre a trajetória profissional de mulheres na música entre

os séculos XVIII e XIX, porém, historicamente, elas estão presentes, mas são pouco

citadas. No campo da música, o que sabemos sobre a trajetória profissional de

Maria Anna Mozart ou “Nannerl”, irmã de Wolfgang Mozart, que pela rivalidade

estimulada nas lições diárias de piano que o pai dava a eles, acabou sendo

silenciada? (ELIAS, 1995, p. 79); o que sabemos sobre Clara Schumann, esposa do

compositor Robert Schumann, a qual era compositora e pianista de talento

considerável?; e sobre Isabella Colbran, cantora e primeira esposa do compositor

Gioacchino Rossini?, entre outros nomes que nós desconhecemos. De fato, o que

defendemos não é a supremacia de um sexo sobre ou outro, mas a igualdade na

inserção profissional de ambos os sexos que compõem nossa sociedade.

Aspectos contrastantes: AAPG e GSM

Após essa breve caracterização do público participante dos dois Guris, temos

ainda alguns aspectos divergentes nas duas propostas. A começar pela elaboração

do Projeto Político-Pedagógico que, no caso do GSM, foi uma condição para a

implantação de seu programa em 2008. Já a AAPG elaborou seu Projeto Político-

Pedagógico somente em 2008, após 13 anos de atuação. Este elemento, em si,

revela a transparência e clareza quanto aos princípios pedagógicos e políticos de

cada projeto.

No caso do GSM, o intuito é construir uma pedagogia social musical na

perspectiva de Paulo Freire. Trata-se de uma proposta original, adequada ao seu

contexto de execução, mas que, por outro lado, mantém um diálogo com a história e

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com a experiência de outros programas de educação musical brasileiros, no sentido

de identificar e comparar necessidades, contextos, objetivos e resultados. As obras

referenciais utilizadas são: Pedagogia do oprimido, Pedagogia da autonomia e

Pedagogia da esperança; elas foram, inclusive, distribuídas para todos os

educadores do projeto (BRUNO, 2013, p. 45; 58).

Não temos evidências suficientes para compreender até que ponto a obra de

Paulo Freire é uma referência ou simplesmente uma estratégia de legitimidade do

Guri Santa Marcelina. Tanto no material empírico observado, quanto na orientação

pedagógica de seus materiais de divulgação e relatórios, não encontramos uma

relação clara com a práxis ou a orientação filosófica de Paulo Freire. Na tese de

Marta Bruno, encontramos reflexões teóricas inspiradas em Paulo Freire que, por

sua vez, podem influenciar a perspectiva de atuação da assistência social no Guri

Santa Marcelina. Porém, durante o trabalho de observação das atividades do Guri e

entrevistas realizadas com os profissionais, quando questionamos qual seria a

perspectiva de ensino e/ou concepção pedagógica do projeto, não foi feita nenhuma

menção às ideias ou obras de Paulo Freire.

Já a AAPG, conforme vimos, admite inicialmente uma perspectiva salvacionista

da música na vida de crianças e jovens. Em 2007, por meio de reformulação plena

do quadro diretivo, foi composto um novo plano de metas e ações internas e

externas que culminaram em correções e inovações nos setores administrativo,

educacional e social do projeto. De acordo com algumas informações do material de

divulgação, no que se refere ao Projeto Político-Pedagógico, há uma miscelânea de

conceitos que não necessariamente admitem uma coerência teórica e política. De

um lado, está o referencial da educação musical como formação necessária para o

pleno desenvolvimento humano, ou seja, como um direito, endossado pelos

seguintes autores, citados com frequência pelos pesquisadores da Associação

Brasileira de Educação Musical (ABEM): o educador inglês, Keith Swanwick (1979,

2003), Christopher Small (1996) e Vanda Freire (1992). De outro, uma visão social

conservadora, que adota como referencial as metas estabelecidas no documento

Educação para a Paz, organizado pela Unesco em 2000, com a colaboração do

sociólogo francês Edgar Morin, que visa à conformação dos indivíduos ao seu grupo

de origem, ao protagonismo social, à noção de equipe, tolerância e cooperação.

Esse é o conjunto de valores a serem interiorizados pelos participantes.

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100

Podemos verificar todos esses aspectos na orientação mais recente do

mercado de trabalho, proveniente da racionalidade capitalista pós-reestruturação

produtiva, em que são mobilizadas as competências atitudinais, como a polivalência,

o empreendedorismo, a flexibilidade, a criatividade e a liderança. Vemos muitas

semelhanças entre esse processo de formação de futuros trabalhadores conduzido

pelo Projeto Guri e os instrumentos disciplinadores utilizados pelo Banco Brasileiro

de Descontos S.A. – Bradesco, durante os anos 1980, na formação de sua força de

trabalho, amparado nos objetivos e nos ideais organizacionais, conforme analisou

Liliana Segnini (1988) em sua tese de doutorado.

Não podemos deixar de mencionar que algumas ações foram executadas por

ambas as propostas do Guri, com intuito de proporcionar um espaço de

aperfeiçoamento de alunos com nível avançado e que aspiram à profissionalização.

No caso do GSM, os Grupos Infanto-Juvenis compostos por: Bandas Sinfônicas,

Camerata de Violões, Corais, Orquestra de Cordas e Orquestra Sinfônica estimulam

maior vivência musical e aprofundamento dos conhecimentos na área, por meio de

apresentações locais, turnês em outros estados, turnês internacionais e ensaios

regulares, proporcionando financiamento de todas as atividades, ensaios e

concertos. Já a AAPG criou os Grupos de Referência (2010) compostos por

Orquestra, Camerata, Big band, Coro, Banda e Grupo de percussão, sendo no total,

12 grupos espalhados pelo estado de São Paulo. No caso da AAPG, ocorre um

processo de seleção interna em cada polo anualmente. Por meio deste processo,

são contemplados alunos bolsistas ou não. O programa oferece duas modalidades

de bolsa: a Performance, no valor de R$300,00 para alunos e ex-alunos entre 12 e

20 anos, com frequência mínima de 85% nas atividades dos GRs; e Aprendiz, no

valor de R$500,00, para alunos, ex-alunos e jovens músicos convidados, com idade

entre 16 e 21 anos.

Esses foram alguns aspectos comparativos que nos permitiram compreender o

processo de transição, com a avaliação crítica da atuação da AAPG, culminando na

reformulação e no ingresso de uma nova OS, no caso, a Santa Marcelina Cultura.

Esta assumiu alguns polos do Guri, outrora da AAPG, e também novos polos na

cidade de São Paulo e na Grande São Paulo. Além do Projeto Guri, a Organização

Social Santa Marcelina administra a Escola de Música do Estado de São Paulo –

Tom Jobim (EMESP Tom Jobim). Isso expressa uma possível relação de

continuidade na formação, possibilitando, quiçá, o ingresso no ensino superior.

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101

Projeto Guri Santa Marcelina e EMESP Tom Jobim:

paradoxos

A coordenação artístico-pedagógica do Guri Santa Marcelina e da EMESP Tom

Jobim é composta em sua maioria por músicos e musicistas com ampla experiência

no ensino de música. O principal intuito da Santa Marcelina, ao assumir os

programas, foi superar os entraves de uma educação musical tida como tradicional –

modelo das aulas particulares no qual um mestre guia seu aluno até o

amadurecimento artístico e a passagem para outro mestre – e reinventar uma

pedagogia musical mais adequada ao seu contexto social e à realidade cultural e

humana contemporânea (SÃO PAULO, 2012, p. 35-6).

Ao assumir os dois programas – GSM de caráter social e EMESP de caráter

profissionalizante –, o intuito da instituição Santa Marcelina, do ponto de vista

pedagógico, foi estabelecer uma relação de transição e continuidade entre as duas

modalidades de ensino para aqueles que desejavam se profissionalizar no campo da

música. Contudo, esse movimento não é tão natural como parece, pois é

atravessado pela lógica do mérito, que submete os candidatos à competitividade e a

processos de exclusão. Nisso consiste o paradoxo em torno dos dois programas que

buscamos compreender.

A princípio, o seu propósito com a formação musical muito se aproxima do

conceito de cidadania cultural elaborado por Marilena Chaui (2006), conforme

analisamos no segundo capítulo:

A organização concebe a formação musical na perspectiva do direito universal ao acesso dos bens culturais (materiais e imateriais) da humanidade. Há, portanto, uma necessidade flagrante de que os programas de formação sejam construídos na perspectiva da inclusão social, visto que o direito do cidadão à cultura – incluindo o direito de ser transformado pela música – ainda não é garantido para uma importante parcela da população. (SÃO PAULO, 2012, p. 27)

O apelo midiático do Projeto Guri também sofreu alterações nos últimos anos,

rompendo, em parte, com o paradigma da pacificação de crianças e jovens pobres

por meio da música e compondo um novo – o do herói ou heroína capaz de superar

todos os limites impostos à sua condição de classe. Estamos falando do ideário do

protagonismo juvenil. De acordo com o Ministério da Previdência e Assistência

Social (2001), o que é o protagonismo juvenil? O protagonismo é entendido como

uma forma de estimular que o jovem possa construir sua autonomia, por intermédio

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da criação de espaços e de situações propiciadoras da sua participação criativa,

construtiva e solidária.

Vejamos somente alguns títulos que denotam essa preocupação a partir dos

anos 2000, no acervo da mídia impressa em São Paulo, responsável por alterar o

imaginário social acerca do Projeto Guri. No jornal O Estado de S. Paulo: “O dia em

que Brahms mudou a vida de Raylane” (14/09/2003b), “Em busca de um sonho”

(21/06/2003a), “A violoncelista improvável. De família pobre, Milena Salvatti

aprendeu a tocar violoncelo no Projeto Guri; agora terá bolsa para estudar na Suíça”

(22/05/2009), “Ler partitura e tocar um instrumento é essencial” (01/12/2013); e no

jornal Folha de S. Paulo “Eles não ouvem Britney: jovens que se dedicam ao

aprendizado de música erudita têm rotina de estudos diferente da de seus colegas”

(08/04/2002). Vemos o mesmo princípio na prática de transformar trajetórias que

configuram exceções em realidade comum a todos os participantes, no relatório

Música para formar pessoas: cinco anos de Santa Marcelina Cultura, 2008 a 2012

(SÃO PAULO, 2012), onde se exploram algumas histórias de sucesso de seus

alunos: “Sonhos”, “Viajando com a música”, “Um jovem artista da música popular

brasileira”, “Cantar mais um sonho” e “Um trombone em Nova Iorque”.

A ênfase em aspectos comportamentais imputa a todo e qualquer jovem,

independentemente do momento histórico e da configuração social, a tarefa de

provocar mudanças, o que traduz um golpe contra a própria juventude, pois o limite

da perspectiva do protagonismo juvenil consiste em não considerar que existem

condições fundamentais para que o jovem seja agente da mudança: a sociedade

precisa reconhecer e criar mecanismos para isso e perceber no jovem um sujeito de

direitos em primeiro lugar (SPOSITO; CARVALHO E SILVA; SOUZA, 2006, p. 252).

Retomaremos a discussão sobre o protagonismo juvenil posteriormente.

Neste momento, passaremos para a análise do plano pedagógico do GSM, tecendo

possíveis comparações com o anteriormente descrito em relação à AAPG. Os

cursos do GSM foram estruturados numa grade curricular, de forma a atender um

processo de formação do básico ao avançado. E eles são definidos em três tipos:

Iniciação: voltado para crianças de 6 a 9 anos, com duas aulas por semana,

durante dois anos. Os conteúdos abordados referem-se a “discriminação auditiva,

coordenação motora global, desenvolvimento do senso rítmico-melódico, utilização

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da voz como expressão musical, introdução à escrita musical (criação, memória,

improvisação, concentração)”.65

Sequencial: voltado para jovens de 10 a 18 anos, com quatro aulas coletivas

e um dia de estudo do instrumento durante oito semestres progressivos. As aulas

neste módulo são de instrumento ou canto, prática de conjunto, canto coral e teoria

e constituem-se como aulas obrigatórias.66

Modular: voltado para jovens de 10 a 18 anos, com uma aula por semana,

durante um semestre. Trata-se de projetos semestrais livres, envolvendo montagem

de peças musicais, criação e construção de instrumentos, pesquisas sobre ambiente

e poluição sonora, ateliês de choro, de bossa nova ou de música orquestral, entre

outras formações.67

Diferentemente do Guri AAPG, que optou por cursos segmentados – e sem a

obrigatoriedade do curso de teoria e canto coral – nas áreas de: Canto Coral,

Cordas Dedilhadas (bandolim, cavaco, contrabaixo elétrico, guitarra, viola caipira e

violão), Cordas Friccionadas (rabeca, viola, violino, contrabaixo acústico, violoncelo),

Iniciação Musical, Percussão e Bateria, Sopros Madeiras (clarinetes, flauta

transversal, saxofone alto e tenor), Metais (eufônio/bombardino, trombone, trompa,

trompete, tuba) e Teclas (acordeom, piano/teclado), o Guri SM estruturou um

currículo sequencial capaz de transmitir os conhecimentos musicais necessários

para formar um músico autônomo. No processo de transição para o GSM de alguns

polos que eram da AAPG, observou-se especialmente a resistência de alguns

alunos quanto à obrigatoriedade das aulas de teoria e canto coral, para eles

definidas como “chatas” ou “maçantes”, conforme relatos obtidos durante o trabalho

de campo no GSM. Foi construído, pelo GSM, um longo caminho de convencimento

sobre a importância desses conteúdos para uma formação musical.

Percebe-se que o currículo proposto pelo GSM oferece as condições

necessárias para a inserção profissional de jovens nos programas gratuitos de

caráter profissionalizante, também administrados por OSs: a EMESP Tom Jobim, a

Escola Municipal de Música e o Conservatório de Tatuí. Por outro lado, esse

processo de transição está baseado na competição e na lógica do mérito, pois, para

65

Disponível em: http://gurisantamarcelina.org.br/como-estudar-aqui/nossos-cursos#.VR8eo9zF_1Y. Acesso em: 30 mar. 2015. 66

Idem. 67

Idem.

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participar desses programas é necessário passar por um processo de seleção

baseado no mérito artístico, o que está muito distante de abarcar a todos.

Sabemos que a lógica da competitividade historicamente acompanhou o

processo de inserção profissional dos músicos, devido ao acirramento da

individualização do trabalhador artista em relação à produção da obra de arte e às

diferenças de recursos individuais ligados à origem social e às formações adquiridas

que geram desigualdades de sucesso, conforme analisou Menger (2005). Contudo,

questionamos se cabe a Santa Marcelina, em especial ao seu programa Guri,

estimular a inserção de seus alunos(as) dentro dessa lógica competitiva. Pensamos

que proporcionar uma educação musical pela arte, cuja premissa seria o direito

cultural à experiência artística musical, já seria uma contribuição e se desviaria

desse modelo excludente que causa desigualdades de emprego e remuneração.

A formação em música no Brasil desempenhada nos conservatórios, nas

escolas de belas-artes, nas escolas superiores de artes, nos cursos privados e em

outros projetos é ainda influenciada por um ideal romântico da profissão e por uma

tradição eurocêntrica. Sendo assim, cada músico se submete a um trabalho de

autodesenvolvimento de sua arte, de forma solitária e individual, com o intuito de

tornar-se um solista. Os músicos-professores brasileiros exigem esse grau de

disciplina e autorregulação de seus alunos, pois a expectativa profissional desses

artistas consiste em ser solista ou músico de orquestra. Na cidade de São Paulo,

considerada pela maioria dos estudantes um campo de efervescência cultural,

temos somente quatro orquestras profissionais (OSESP, OSM, Jazz Sinfônica e

ORTHESP); se considerarmos somente os 373 participantes dos Grupos Infanto-

Juvenis do GSM, desconsiderando outros participantes inseridos no grupo total dos

16.188 alunos(as) do projeto, logo veremos um desequilíbrio entre oferta e

demanda. É nítido que para muitos desses estudantes – considerando inclusive o

processo formativo seletivo e excludente das escolas até a universidade – a

experiência do trabalho no campo da música não irá se concretizar, por isso, insistir

nesse modelo e na profissionalização é um erro que leva muitos à frustração, além

de não promover a experiência artística como objetivo maior.

Destacamos esse ponto na discussão, pois a expectativa profissional é

estimulada pela Santa Marcelina no momento que ela faz a opção por pensar os

dois programas de forma integrada: Guri e EMESP Tom Jobim, elaborando um

plano artístico-pedagógico para conectar ambos os currículos. Lembrando que o

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objetivo do Guri é ser um projeto de inclusão sociocultural, já a EMESP, tem como

objetivo uma formação técnica e profissionalizante em música.

Atualmente a EMESP tem 1.800 alunos, dos quais aproximadamente 214 são

bolsistas dos grupos jovens; e 171 professores, alguns dos quais dão aulas

simultaneamente no Guri e na EMESP. O principal objetivo do currículo é garantir

uma pré-profissionalização (preparação necessária para formação em nível

superior), e este se organiza da seguinte forma:

Ciclo 1: Para alunos de até 13 anos, tem duração de três anos e pretende

constituir uma formação sólida em instrumento, articulada a demais disciplinas

teóricas.

Ciclo 2: Para alunos de até 16 anos, tem duração de três anos e admite

estrutura similar ao primeiro ciclo.

Ciclo 3: Para alunos de até 21 anos, tem duração de dois anos e admite

estrutura similar ao segundo ciclo.

Disciplinas Optativas: Paralelamente ao currículo mínimo obrigatório e às

práticas de conjunto ou música de câmara, há outras possibilidades de práticas de

grupo optativas.

Ciclo 4: É destinado à formação avançada, com duração de dois a quatro

anos e não há limite de idade para o ingresso, porém o nível de conhecimento do

aluno deve ser compatível com o de um aluno regular do terceiro ciclo.

Dentre os grupos jovens, reconhecidos como complementares na formação,

destaca-se a Orquestra Jovem do Estado de São Paulo, grupo com o maior número

de programas (dez programas com dois concertos cada, duas semanas

consecutivas de ensaios e dez concertos na Sala São Paulo), incluindo turnês

internacionais. Há uma seleção anual para a composição do grupo e concessão de

bolsas incentivo no valor de R$ 1.565 (cerca de 1/3 é financiado pelo Banco Itaú –

R$ 565,00 – e o restante, pelo Governo do Estado – R$ 1.000,00). O orçamento da

orquestra é de R$ 22 milhões, e os alunos representantes podem participar da

gestão da orquestra. Os demais grupos jovens ligados à EMESP (Banda Jovem e

Coral Jovem) também passam por seleções anuais para a sua composição, que

oferecem bolsas no valor de R$ 650, e se apresentam em seis concertos ao ano68.

68

Informações obtidas durante a exposição da coordenadora artístico-pedagógica da EMESP, a violista e professora Adriana Schincariol Vercellino, no Fórum “Gestão Orquestral e Compromisso Social” na UNICAMP, em 24 de março de 2015.

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Percebe-se o fator de integração entre os currículos dos dois programas

geridos pela Santa Marcelina Cultura por meio do ingresso de alunos do Guri nos

grupos jovens e na EMESP Tom Jobim. Sobre isso, a violista e coordenadora

artístico-pedagógica da EMESP, Adriana Schincariol Vercellino, faz a seguinte

colocação:

[...] vários alunos formados pela EMESP Tom Jobim tornaram-se, nos últimos anos, professores do Guri. “Temos estudantes que estavam no Guri, passaram pelos grupos infantis e juvenis, entraram nos grupos jovens da EMESP, aprimoraram-se e posteriormente fizeram o processo seletivo para professor. Hoje são nossos colegas. É a conclusão de um ciclo – de aluno a profissional de música.” (SÃO PAULO, 2012, p. 60)

Os Grupos Infanto-Juvenis (GIFs) do GSM são 10 no total, aos quais nos

referimos na seção anterior. Pudemos observá-los no trabalho de campo durante um

mês, acompanhando os ensaios e as apresentações nos fins de semana. Neles

participam os alunos selecionados via processo seletivo anual, ou seja, aqueles que

mais se destacam em seus respectivos polos e que possuem interesse em aprimorar

seus conhecimentos musicais. Nota-se que alguns desses alunos já estão inseridos

numa trajetória de profissionalização na área musical ou estão se preparando para

isso por meio de ingresso nos grupos jovens e na EMESP, na Escola Municipal de

Música, na Escola Técnica de Artes – ETEC –, nos Vestibulares (UNESP e UFSCAR

são especialmente citados) e no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), no

projeto desenvolvido no Auditório do Ibirapuera, na Orquestra Jovem de Heliópolis –

Instituto Baccarelli – e ingresso na Faculdade de Artes da Santa Marcelina – FASM

– por meio de bolsas concedidas pela Santa Marcelina nos cursos de licenciatura

em música e composição69.

Esses jovens estão na faixa etária entre 08 e 20 anos e começaram a estudar

música há aproximadamente 3 a 8 anos. No total, eram 373 alunos em 2014. Por

estarem imersos no meio musical paulistano, já possuem elementos para comparar

seus níveis de conhecimento musical. Eles reconhecem que não apresentam o nível

técnico e artístico para candidatar-se a outros programas de ensino: “Já tentei

EMESP duas vezes. Este ano não estou preparada para tentar novamente!”

(Trompista do GIF, polo CEU São Rafael). Outros depoimentos expressam

69

Ressaltamos que a oferta de bolsas pela Faculdade de Artes da Santa Marcelina – FASM ocorreu pontualmente no ano de 2014 por meio de demanda da gestora Giuliana Frozoni às Irmãs Marcelinas.

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insegurança quanto a defasagens técnicas, pois os alunos acreditam ter idade

avançada para evoluir no instrumento e, consequentemente, conquistar um espaço

no mercado de trabalho tão pequeno e fechado, conforme eles qualificam.

Alguns apontam como dificuldade a falta de instrumento: “Passei o feriado

sem estudar, o polo estava fechado, só posso estudar lá ou com um amigo. Mas

isso vai mudar logo, estou trabalhando para isso” (Trompista do GIF, Polo Inácio

Monteiro). A produtividade desses Grupos Infanto Juvenis é muito grande. Cada um

faz em média uma apresentação por mês, com ensaios regulares e apresentações

aos fins de semana (são, no total, 300 ensaios/ano, que, divididos entre os grupos,

resultam em 3 ensaios/mês para cada um), o que se torna, para grupos amadores

(em processo de aprendizagem), muito desgastante. É preciso questionar a

supervalorização da performance musical no âmbito dos dois projetos, pois dois

aspectos são notáveis: 1-) o significado desta experiência para a aprendizagem e a

autoestima de seus participantes; 2-) o ideal de propaganda do produto musical e o

reforço social da relevância de ambos os projetos.

Durante a observação do último ensaio, antes da apresentação de um Grupo

Sinfônico, foi notável o desânimo por parte dos jovens músicos: todos estavam

exaustos, pareciam frustrados diante da véspera do concerto. O regente confessou

que o contexto era desfavorável para a apresentação, pois, em menos de um mês,

eles haviam realizado outro concerto, e ainda havia problemas na execução do

repertório. Naquele mês haviam tido somente dois ensaios seguidos de

apresentação.

Por serem músicos aprendizes e se encontrarem em níveis de aprimoramento

musical muito diferentes, no geral, apresentavam baixa performance e compreensão

musical. Executavam tecnicamente o repertório, mas pareciam não compreendê-lo

musicalmente. Suas falhas eram de afinação, intensidade (tocam forte quando se

pede piano), não estavam atentos às recomendações do maestro e pareciam tocar

individualmente, enquanto faziam música em conjunto. Diante da falta de

amadurecimento artístico desses jovens, cogitamos para que serve uma temporada

tão extensa de concertos (60 ao total): para a formação artística, cultural e musical

de seus participantes ou para a divulgação dos resultados e consequente reforço do

status do Projeto Guri para a sociedade e o governo do Estado? Sabemos que, em

seus Relatórios Anuais de Atividades há metas, em sua maioria quantitativas, e o

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número de apresentações e do público presente é um critério avaliado pela SEC-SP.

O depoimento de um (a) funcionário (a) do GSM reitera esse ponto de vista:

O Guri ganhou bastante notoriedade com os grupos infanto-juvenis, né? Você tem os polos oficinas, onde o trabalho é desenvolvido, e esse trabalho vai formando os alunos, capacitando para que eles ingressem nos grupos infanto-juvenis. Começou com a banda, hoje a gente tem nove grupos. E é o resultado final de todo o trabalho que é desenvolvido no programa Guri, né? [...] eu acredito que grande parte da notoriedade que o Guri tem hoje é graças a esses grupos, que nada mais é do que o resultado final do projeto. Mas eu acredito que essa redução de custos no polo não afetou tanto, acho que eles quiseram manter os grupos funcionando bem porque eles precisam mostrar esse resultado para manter a verba, enfim.

Um exemplo concreto dessa dimensão se inscreve nas duas últimas

apresentações de encerramento das temporadas anuais da Orquestra Jovem do

Estado de São Paulo (grupo ligado à EMESP, conforme anteriormente referimos) em

dezembro de 2014 e em dezembro de 2015. Como de costume, essas

apresentações reúnem alunos da EMESP e dos GIFs do GSM. No ano passado, o

repertório escolhido foi a Abertura 1812, de Piotr Ilitch Tchaikovski, em concerto

realizado na Sala São Paulo, com participação do Coral Juvenil do Guri. Neste ano

de 2015, mais de 250 vozes reuniam: o Coral Infantil, o Coral Juvenil e o Coral de

Familiares do GSM, a soprano Marília Vargas, o tenor Jabez Lima e o barítono Erick

Souza, além do Coral Jovem do Estado, o Coral Juvenil EMESP e o Coro Adulto

EMESP, para apresentar a obra mais conhecida do compositor alemão Carl Orff,

Carmina Burana, também na Sala São Paulo. A divulgação dessas apresentações

teve ampla difusão na mídia, com matéria no jornal SPTV da rede Globo em São

Paulo em suas duas edições (2014 e 2015) e também na revista Concerto, de

grande repercussão no meio erudito. Nessa ocasião de encerramento do ano,

celebra-se o prêmio Ernani de Almeida Machado, que oferece R$ 120 mil para

bolsas de estudo no exterior e aquisição de instrumentos entre os cinco bolsistas de

destaque da Orquestra Jovem do Estado de São Paulo.

Os alunos do Guri consideram esse evento o ápice de sua conquista no campo

musical, simplesmente porque se trata de uma apresentação na Sala São Paulo. Por

sua vez, os professores do Guri também contribuem e reforçam essa compreensão,

pois essa ideologia também faz parte de sua formação. A venda de ingressos

legitima o valor do evento em si e sua importância para a cena paulistana: os

ingressos custam R$ 30 e R$ 15 (meia). É importante lembrar que todos os eventos

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realizados exclusivamente pelo Guri são gratuitos e acontecem em outros espaços,

como: Auditório do Ibirapuera, Auditório do Masp, Biblioteca de São Paulo, CEUs,

Praça Victor Civita, Pinacoteca do Estado, Museu de Arte Moderna, Centro Cultural

São Paulo, Museu da Casa Brasileira, Fábricas de Cultura, entre outros.

Além disso, as programações, que gozam de ampla repercussão social e

legitimam o projeto, estão relacionadas aos patrocínios externos. Outro projeto

especial do Guri Santa Marcelina que possui patrocínio é a Série de Concertos

Horizontes Musicais, financiada desde 2011 pelo Bank of America Merrill Lynch.

Trata-se de uma iniciativa que visa atingir musicalmente o público nas regiões

periféricas da cidade onde se concentram os polos do GSM sediados nos Centros

Educacionais Unificados (CEUs) e nas salas de concerto de São Paulo. Nesse

período, o projeto realizou 205 concertos com a presença de 102 grupos musicais

profissionais brasileiros e internacionais. O repertório privilegiado vai “da música

popular brasileira à música contemporânea, da música erudita à world music,

passando pelo jazz, choro, samba, música renascentista, música cênica e

eletroacústica” (SANTA MARCELINA, 2014, p.04-9).

Durante quase oito anos de existência, o Programa Guri Santa Marcelina

contou com intenso patrocínio de empresas, via Lei Rouanet e Fumcad, mas em seu

último Relatório Anual de Atividades (2014), publicado em 27 de fevereiro de 2015

no Diário Oficial de São Paulo, revela ter perdido boa parte de seus financiadores:

Apesar [de] todos os esforços para o alcance da meta de captação de recursos de 2014, do Programa Guri Capital e Grande São Paulo, observou-se que o resultado ficou aquém da meta estabelecida, tendo sido captado o valor total de R$ 1.079.089,35, 60% da meta do programa, pelas considerações e motivos expostos abaixo: I. A metodologia adotada pela Secretaria de Estado da Cultura (SEC) para verificação da meta é pelo regime de competência. [...]. II. Registrou-se um impacto no resultado em função da revisão da meta de captação e a consequente alteração da métrica de avaliação: até meados de 2012, a meta era estabelecida em 2% do total do Contrato de Gestão. Para 2013, a meta passou a ser um valor absoluto, fixado em relação ao resultado de captação do ano anterior, quando tivemos um expressivo aporte do Banco Safra. Com isso, a meta foi fixada em R$ 1.800.000,00 no ano de 2013, permanecendo desta forma também em 2014. III. No ano de 2013, a Instituição não conseguiu captar a totalidade de recursos da Meta estabelecida pela SEC, uma vez que o Banco Safra não renovou seu patrocínio ao Programa. [...]. V. Durante o ano de 2013, com a mudança de estratégia de captação da SMC, foram conquistados novos parceiros para honrar a meta anual, que conseguimos manter e ampliar sua participação em 2014. Entretanto, devido ao mercado

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desaquecido e o resultado decrescente da economia brasileira, as empresas de segundo setor foram mais conservadoras em investir em leis de incentivo, alegando pouca disponibilidade de recursos em função do baixo resultado anual. VI. Outrossim, cumpre ressaltar que a Santa Marcelina Cultura preza desde a primeira hora pela manutenção do modelo das Organizações Sociais, estruturando e mantendo uma área de Desenvolvimento Institucional, cuja finalidade é engajar outros setores da sociedade no Brasil e no exterior. Tal engajamento se dá por meio da difusão da causa do Programa Guri e da mobilização e manutenção de parceiros nacionais e internacionais, por meio de recursos físicos, financeiros e conceituais, com o fim de preservar o Programa público e, por conseguinte, o modelo das OSs. Neste sentido, outras empresas “prospects” têm sido cultivadas dentro da estratégia de relacionamento institucional desde o final de 2012. Com isso, espera-se que novos parceiros passem a integrar a rede de empresas engajadas financeiramente com a causa defendida pelo Guri Capital e Grande São Paulo. Um excelente exemplo refere-se ao caso do Grupo Verzani & Sandrini, cujo início de parceria se deu em 2013, como apoiador de quatro Grupos Sinfônicos do Guri, vertendo-se em patrocinador de todos os grupos em 2014, em função do crescente envolvimento e a consequente alta aderência da empresa à causa da educação musical e inclusão social entoada pelo Guri Capital e Grande São Paulo.

A consubstancialidade da relação entre poder político (Estado), poder

simbólico (Organização Social da Cultura) e poder corporativo (grandes

corporações) é reafirmada nas exigências quantitativas de avaliação da SEC, e no

discurso empresarial admitido pela Santa Marcelina Cultura em seu plano de metas

de captação e estratégias de propaganda e marketing para obter apoio das

empresas e desenvolver seu negócio cultural. Conforme analisou Williams (2008),

as relações de produto e mercado tornaram-se predominantes na atualidade.

Observamos nitidamente uma apropriação dos produtos culturais para benefício

próprio, como um meio de investimento ou propaganda institucional. Nesse caso, já

não sabemos localizar qual é o interesse que está em jogo: se é a manutenção da

Santa Marcelina e do modelo Organização Social ou se é a manutenção do

Programa Guri, pois os interesses de mercado parecem subverter o próprio objetivo

institucional.

Podemos verificar o esforço de investimento em seu produto, inclusive com as

parcerias pedagógicas internacionais valorizando a autoimagem do GSM, para

posteriormente encontrar espaço no mercado de patrocínios, visando à manutenção

do modelo de OS. Estas são as empresas que historicamente apoiaram

financeiramente o Guri Santa Marcelina:

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AstraZeneca (2011, 2012 e 2013), é uma fusão entre duas companhias do

setor biofarmacêutico, a sueca Astra AB e o Zeneca Group PLC, do Reino

Unido; Banco Bradesco e American Express Brasil (2009/2010/2011); Banco

Safra (2012); Barkley (2012), empresa de acessórios para instrumentos de

sopro de produção nacional, cuja especialidade são as boquilhas; Burti

(2011/2012), empresa nacional gráfica e de processamento de arquivos

digitais; CETIP (2012), uma companhia de capital aberto que oferece

serviços de registro, central depositária, negociação e liquidação de ativos e

títulos. Ela integra o mercado financeiro por meio de mais de 15 mil

instituições participantes e também é a maior depositária de títulos privados

de renda fixa da América Latina e a maior câmara de ativos privados do

país; CIELO (2010 e 2011), empresa multinacional em soluções

transacionais e serviços de rede (pagamentos móveis, e-commerce e call

center na América Latina e facilitadora de pagamentos online e carteira

digital); Cozinha da Montanha (2009, 2010 e 2011), associação de

gastronomia de Campos do Jordão; Hospital SP (2011); Hotel Mendehall

(2009/2010); Hotel Satélite (2009); Imprensa Oficial (2009, 2010); Camargo

Corrêa S.A (2009/2010), uma empresa holding de capital fechado e controle

familiar que atua na área de engenharia e construção, concessões de

energia e de transporte e mobilidade urbana, cimento, indústria naval

offshore, incorporação imobiliária, e na gestão de marcas consagradas no

setor de vestuário e calçados; Interlocadoras (2009/2010/ 2011), agência de

aluguel de carros; ISA CTEEP (2009/2010/ 2011/2012), uma das principais

concessionárias privadas de transmissão de energia elétrica em atuação

nacional, responsável por cerca de 60% da energia consumida na região

sudeste, o que equivale a cerca de 30% da energia transmitida pelo Sistema

Interligado Nacional – SIN; Kopenhagen – Chocolates Finos e Brasil Cacau

(2010 e 2011); KPMG (2011), composta por firmas que atuam na prestação

de serviços nas áreas de Audit, Tax e Advisory do mundo e contam com

162.000 profissionais em 155 países; Mattel do Brasil (2011/2012), possui

marcas próprias e representativas no setor de brinquedos e atua com

empresas parceiras na produção de brinquedos, eletrônicos, roupas,

sapatos, alimentos, publicações, entre outros produtos de diferentes

segmentos, totalizando 200 milhões de unidades ao ano com as marcas

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Mattel; Melhoramentos e Dualette (2009, 2010 e 2011) atua

concomitantemente no setor gráfico e editorial, na fabricação nacional de

papel higiênico e produção de celulose; Perdigão (2010), desde 2009, ao se

associar à Sadia, tornou-se uma das maiores empresas do setor alimentício,

com diversas marcas consagradas, entre as quais Perdigão, Sadia, Batavo e

Elegê; Prefeitura de Campos do Jordão (2009, 2010 e 2011), apoio cedido

em decorrência de as três edições do Festival Internacional de Campos do

Jordão terem sido organizadas pela SMC; Redecard (2011), companhia do

mercado nacional de meios de pagamento eletrônico, responsável por

credenciamento, captura, transmissão, processamento e liquidação

financeira de transações com cartões de crédito e débito; Roland

(2011/2012), que, além da área de instrumentos musicais eletrônicos, atua

no segmento de impressoras digitais de grande formato, máquinas

compactas de usinagem (Roland DG) e equipamentos para áudio e vídeo

profissional (Roland Systems Group – RSG) em parceria com a Roland

Corporate Japan (fundadora da marca); Sabesp (2009); Secretaria do Meio

Ambiente do Estado de SP (2011); SESC - SP (2009/2010/

2011/2012/2013); Tégula (2011), uma empresa do grupo Eternit, a única

empresa do setor com seis fábricas no país, dotadas da mais alta tecnologia

de produção de telhas e complementos para telhado; Telefônica (2009, 2010

e 2011), sua presença no Brasil está atrelada ao processo de privatização

das telecomunicações, constitui um dos maiores conglomerados de

comunicação, informação e entretenimento especialmente ao fundir-se ao

Instituto Vivo; UNIMED (2009, 2010), maior rede de assistência médica do

Brasil, presente em 84% do território nacional; Vedacit (2011), responsável

pela maior parte de produtos químicos para construção no país, possui 2

fábricas, em São Paulo e Salvador, atende 30 mil pontos de venda por meio

de 09 filiais e mais de 100 representantes em todos os estados brasileiros e

distribuidores em países da América Latina, como Bolívia, Chile, Paraguai e

Uruguai; Vinhos Nieto (2011).70

70

Todas as informações referentes às empresas citadas foram obtidas em suas respectivas páginas eletrônicas.

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Tal como observamos no levantamento feito acerca da AAPG no primeiro

capítulo, as relações entre poder simbólico (Organizações Sociais da Cultura) e

poder corporativo (empresas patrocinadoras) se consolidam por meio da ideologia

veiculada por ambos. Há um forte discurso de defesa de um capitalismo sustentável

que viabilize o desenvolvimento do país e o aumento dos lucros das empresas, com

ênfase na responsabilidade social e na sustentabilidade. Desse modo, não é

possível conciliar as duas diretrizes básicas da cidadania cultural (CHAUI, 2006, p.

75) – “a cultura como direito dos cidadãos e como trabalho de criação dos sujeitos

culturais” – com a parceria fundada em interesses econômicos ou de prestígio e

reforço dos privilégios da classe dominante paulistana.

Assim como no caso das patrocinadoras da AAPG, as empresas que outrora

financiaram o GSM hoje possuem projetos sociais próprios, tais como: AstraZeneca

- Programa Adolescente Saudável e Projeto Viva a Cultura!; Instituto Redecard –

associação sem fins lucrativos; Fundação Telefônica; Teatro CETIP; KPMG –

Cidadania Corporativa, signatária do Pacto Global e Programa das Nações Unidas

para o Desenvolvimento (PNUD); Mattel e Programa Rede do Brincar; CIELO –

Objetivos do Milênio da ONU; ISA CTEEP - Amigos da Energia e Energia Solidária;

UNIMED – signatária do Pacto Global e Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD); e Instituto Camargo Côrrea – Programas Infância Ideal,

Escola Ideal, Futuro Ideal e Ideal Voluntário. As áreas privilegiadas são: cultura,

educação, saúde, meio ambiente, programas de capacitação de micro e pequenos

empreendedores e estímulo ao voluntariado e inovação social. Uma possível

hipótese para o rompimento com o GSM seria a oportunidade de as empresas

proporem projetos próprios. Afinal torna-se mais atrativo ao poder corporativo

veicular sua ideologia sem intermediários e, assim, formar seus beneficiários.

Além disso, a equipe do GSM empreendeu esforços próprios de reflexão e

análise do trabalho realizado ao longo dos cinco primeiros anos de existência (2007

a 2012), suas ações pedagógico-musicais e sociais estão expressas em seu projeto

político-pedagógico, em currículos, projetos especiais, entre outros documentos

institucionais. Este ponto revela uma possível contradição entre os interesses do

poder corporativo e o poder simbólico exercido pela Organização Social Santa

Marcelina. Observamos a constituição de um campo de disputas no interior da

instituição Santa Marcelina Cultura: de um lado, temos o argumento pedagógico-

musical elaborado por gestores e coordenadores cuja formação é na área de música

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e assistência social; do outro lado, temos o argumento que sustenta a cultura como

um negócio e fator de desenvolvimento, elaborado por especialistas na área de

comunicação que atuam no campo da propaganda e marketing, supervisores de

tecnologia da informação, administradores, gerentes corporativos financeiros e de

prospecção, contadores e especialistas em logística. Esse movimento é o que induz

as contradições internas no grupo e algumas expressões de resistência nas ações

pedagógicas.

Trabalho Social e Trabalho Musical:

interesses em conflito

Embora admita maior coerência em relação aos propósitos musicais e sociais,

o GSM destaca o trabalho social como eixo estruturante do qual derivam a educação

musical e a inclusão sociocultural. Com isso, um problema torna-se latente:

privilegia-se o trabalho social em detrimento do ensino de música. Percebe-se uma

tensão entre o previsto pelo trabalho social/profissionais da assistência social e os

anseios dos professores de música. Marta Bruno (2013, p. 62 e p. 100) expressa os

resultados do trabalho social realizado no GSM, que são: a integração com os

sistemas de segurança e proteção social (educação, saúde, assistência social,

operadores de direitos, geração de renda, entre outros) nos âmbitos locais,

regionais, municipais, estaduais e nacional; e constituição de coletivos nas

comunidades e agentes jurídicos populares, com reuniões regulares para discutir

diversos assuntos de interesse local (rodas de conversa).

Contudo, as crianças, os jovens e os familiares que procuram o Guri acreditam

que ali irão aprender música e, quiçá, poderão se profissionalizar. Tal expectativa

não acontece por acaso: ela é estimulada pelo projeto. Além disso, os professores

de música expressam em suas declarações uma crítica à ausência de formações e

discussões no âmbito da educação musical. Eles denunciam também condições de

trabalho impróprias para atender ao grupo de alunos de forma ideal, especialmente

com um número expressivo de faltosos, ingressantes a cada aula, alunos com

necessidades educacionais especiais (deficientes) e problemas de indisciplina.

Vejamos a declaração de alguns professores de música do GSM:

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Mas, em muitos momentos, preciso ser menos rigorosa musicalmente e mais uma educadora geral e pensar “esse aluno conseguiu somente isto, mas já evoluiu”. Confesso que não é fácil. É um trabalho diário para encontrar um equilíbrio, pois claro que, como musicista, gostaria e seria extremamente prazeroso formar bons músicos (profissionais), mas, cada dia, vou amadurecendo a ideia de que para muitos a música vai fazer parte de suas vidas, talvez nunca trabalhem com música. Espero poder contribuir ao menos um pouquinho no crescimento humano destas crianças e adolescentes. (BRUNO, 2013, p. 120)

Em tese, seria um binômio (educação musical de qualidade – inclusão social) ideal e complementar. Acredito nisso e me empenho para realizá-lo. Houve, porém, em outros momentos, sensível prejuízo e desestímulo aos alunos mais esforçados, comprometidos e talentosos, pois somos obrigados a aceitar alunos novos a cada aula. Temos que manter e aceitar alunos displicentes, de frequência irregular e indisciplinados, sob a guarida da “inclusão social”. Não considero isso um fardo ou sentença de anuência para com qualquer “aluno problema”, mas vejo sim alguma desconexão entre os setores (pedagógico e social). (BRUNO, 2013, p. 117)

O trabalho social versus o programa educacional do Guri sincronia [sic] e relevância de ambas as partes; mas, algumas vezes, vejo que há dilema entre os aspectos musicais e socioculturais. Até onde a inclusão pode e é necessária? (BRUNO, 2013, p. 117)

Em sua pesquisa, Bruno (2013) questiona a equipe de profissionais que atua

no GSM e também as famílias e os alunos, acerca da sua transformação pessoal

após o ingresso no projeto.

Assistente Social

Descobri também novos potenciais, novos olhares que posso ter, através da troca de experiências com as crianças e adolescentes do Programa. Tive a oportunidade de trabalhar com autonomia, exercitar a criatividade e acreditar/incentivar o sonho do aluno ou familiar e ver os resultados concretos desta ação, através da realização dos objetivos, e é claro, presenciar e comemorar muitas destas vitórias. (BRUNO, 2013, p. 89)

Monitor(a)

[...] o mundo da música para mim era desconhecido; hoje, adquiri alguns conhecimentos importantes, como os instrumentos que existem, as escolas de música, as orquestras, as bandas. E principalmente o que a música pode proporcionar às crianças, aos adolescentes e adultos que têm interesse em aprender. (BRUNO, 2013, p. 94) Agente de Apoio Minha vivência no mundo musical está sendo ótima, porque estou muito próximo vendo tudo acontecer, isso pra mim faz toda a diferença. Minha relação com a música mudou, agora, sempre presto

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mais atenção no som de temas de filmes, desenhos, entre outros, e fico tentando descobrir qual instrumento está sendo tocado. (BRUNO, 2013, p. 94) Aluno(a)

Guri não me forma apenas como músico, mas, sim, também como cidadão com uma visão diferente do que alguns veem. O Guri me estimula muito a valores éticos que preciso ter, fazendo parte desse incrível projeto que não forma apenas músicos, mas sim grandes cidadãos com grandes valores éticos impostos na sociedade. (BRUNO, 2013, p. 95) Aluno(a)

Gostaria muito que o Guri fosse um lugar onde profissionalizasse os alunos com mais tempo de Guri e que os encaminhasse para o mercado de trabalho, sendo este musical, é claro. É ruim ter que abrir mão do Guri, porque temos que trabalhar por causa da pressão que os pais (a maioria deles) fazem e também pela necessidade de investir em nossas vidas (carreira) que os pais não podem bancar. Amo a música e quero trabalhar com ela, viver dela. (BRUNO, 2013, p. 100) Famílias [...] é gostoso, porque os pais eles conversam, eles contam sobre os filhos, eles se ajudam, não só em coisas do Guri, mas com diversas outras coisas relacionadas à família mesmo, ou algum conhecimento maior sobre o lugar, sobre alguma coisa, são nesses momentos que a gente tem essa interação, eu acho muito legal. (BRUNO, 2013, p. 83) Eu já precisei do serviço social do Guri referente à minha filha e fui totalmente amparada, totalmente orientada [...] eu vejo uma preocupação do serviço social com cada aluno [...] saber como é que está o aluno. Não simplesmente se o aluno chegou e entrou; o serviço social está ali para ver o que é que está acontecendo, se o aluno precisa de alguma coisa. Isso é muito bom. (BRUNO, 2013, p. 111)

Podemos observar, por essas declarações, que o descompasso entre

trabalho social e educação musical, notado por alguns professores e alunos, não é

percebido pelos profissionais que atuam diretamente no setor de assistência social

(assistentes sociais e monitores), como entre os agentes de apoio e alguns alunos

(a maioria, aliás). Porém, as contradições apareceram no palco principal e

envolvendo os protagonistas desse projeto que visa a uma educação musical – no

caso, professores de música e alunos.

De acordo com a pesquisa de campo realizada nos GIFs e nos polos,

pudemos observar, de modo geral, que os alunos se demonstram satisfeitos com o

programa de educação musical, valorizados, inspirados por seus professores de

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música e confortados pela equipe de assistência social. Sobretudo, percebe-se uma

transformação essencial, mais subjetiva do que objetiva. O depoimento de duas

alunas de canto e coral imprime bem este significado:

Entrei no guri em agosto de 2008 para fazer aulas de canto, que sempre foi um sonho que tive, desde criança, porém não conseguia realizar, pois meus pais não tinham condições de pagar as aulas, então fiquei sabendo do Projeto Guri e como minha mãe sabia que esse era o meu maior sonho, ela me inscreveu [...]. Tive que fazer o teste quatro vezes para conseguir entrar no Coral Juvenil GSM e só consegui em 2012, o que não foi ruim, porque fui aprendendo com os mesmos erros e vendo que esse caminho não será nada fácil, porém não será impossível, essa foi uma das principais lições de vida que eu tive no Guri. A outra lição foi a de valorizar cada ensaio e cada concerto do Coral GSM, pois lutei muito para conseguir, tanto que em três anos que participei do coro tive três faltas em ensaios, todas justificadas, não faltei em nenhum concerto, e o estudo semanal das peças do coro está sempre na minha agenda de tarefas para um melhor desempenho por uma vaga que lutei muito para conseguir...

se não fosse o Guri, eu com certeza estaria nesse momento trabalhando em um escritório fechado com um computador na minha frente, triste e sem esperanças de um futuro [...]. O que ainda não mudou mas vai mudar, é que o Guri na parte musical nos dá apenas a base, o alicerce, e temos que caminhar sozinhos de agora em diante, ir atrás das universidades, trabalhar, provar para as pessoas que criticam o quanto estão erradas e mostrar pra elas que tudo é possível; tem sido uma caminhada difícil, com muitos obstáculos e fracassos no caminho. Gostamos de dizer que, além de músicos, o Guri forma cidadãos de caráter e ética que lutam e fazem o que for preciso por seus sonhos, para viver em um mundo onde quase não existe esperança. O Guri foi a minha esperança, assim como é a de milhares de crianças e adolescentes da Grande São Paulo. Por isso,

o que eu mais desejo agora é me formar professora na universidade que começarei ano que vem, voltar para o Guri, mas dessa vez como professora e mudar a vida das crianças, assim como a minha foi mudada. [...] essa é a minha maior meta de vida, não pensar só em mim, mas em toda a população que necessita e merece ter acesso a cultura. (Estudante de canto, Coral Juvenil GSM, 2014, grifos nossos) Devo muito do que aprendi ao Projeto Guri, mas tenho uma crítica em relação às aulas de teoria. Eles misturam muito a turma, tem pessoas de diferentes níveis aprendendo junto com os iniciantes que entram. Então, o professor acaba se esforçando para fazer com que o aluno iniciante alcance os demais, enquanto aqueles que estão avançados não conseguem progredir, permanecem estacionados. Eu só consegui superar algumas dificuldades quando entrei na ETEC de Artes. (Estudante de canto, Coral Juvenil GSM, 2014)

As estudantes reiteram a crença no projeto e seu sentimento de dever, mas

ressaltam as dificuldades de inserção profissional e de limites do ensino de música

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realizado no projeto. Revelam em suas reflexões que, nesse processo comunicativo

entre a proposta educacional e sua recepção, existe um lapso, e este, por sua vez,

aponta divergências de entendimento. Sobretudo, o primeiro depoimento da

estudante que expressa o desejo de retornar ao projeto na condição de professora

de música, destaca uma repercussão inesperada pelos idealizadores, no entanto,

desejável para consolidar uma perspectiva de atuação engajada com a causa do

projeto.

Já o segundo depoimento aponta para uma contradição que assume relação

direta com a lógica competitiva e excludente do mercado de trabalho musical. Ao

problematizar o acolhimento da heterogeneidade pelo projeto e a constituição de

turmas mistas com alunos em diferentes níveis de aprendizagem, sem perceber, a

estudante está reforçando a ideia de mérito e competitividade no meio musical a que

foi induzida em seu processo formativo. Porém, o outro lado da contradição esconde

uma falha no projeto pedagógico, pois ao promover o acolhimento da

heterogeneidade ele não oferece às condições adequadas de formação e trabalho

aos alunos(as) e professores(as), o que prejudica a qualidade do ensino e se afasta

de um ideal de promoção do mérito artístico reiterado por seus próprios

coordenadores.

A desilusão com a escola pública como espaço de formação humana também

aparece como um fator que conduz ao espaço do projeto social como local de

redenção, porto seguro. A crítica presente em alguns depoimentos evidencia uma

tensão relacionada a práticas de hostilização que eles vivenciaram.

Porque eu comecei estudando na escola do meu bairro, que é aqui próximo, e eu tive vários problemas na minha escola. Principalmente em relação ao contato com outras pessoas, porque eu sempre fui uma pessoa bastante tímida. De um tempo pra cá eu perdi certo grau de timidez. Mas eu sempre fui uma pessoa sempre na minha, muito solitária. E tanto essa questão, quanto o fazer musical, de já ter uma perspectiva artística mais aguçada, de certo modo incomodava as pessoas da escola. Principalmente porque eu sempre fui uma pessoa

muito aplicada [...]. Sempre era muito perto dos professores e de certo modo isso incomodava os alunos da escola, então muitos alunos mexiam comigo, caçoavam, já sofri muito bullying na minha época de escola. (Estudante de canto e composição, Coral Juvenil

GSM, 2015) Digamos que eu era uma daquelas pessoas que sofre um certo bullying na escola, ficavam zoando. Então na escola eu não me via muito bem. Acho que desde a quinta série eu já botei na cabeça que

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precisava tirar 5 de média e era o suficiente para passar. Eu não me preocupava muito, chegava ao ponto de ganhar presença e tirar nota básica. [...] Na escola eu só pensava em terminar porque eu não queria mais ficar na escola, a escola não me propiciava nada. Infelizmente, minha mãe é professora da primeira à quarta série e então eu já cheguei na escola sabendo ler e escrever e os outros alunos não sabiam, então ficava aquele negócio. (Estudante de percussão, Orquestra Jovem Heliópolis, 2015)

Na análise de Marta Bruno (2013), em que ela se baseia no conjunto da obra

de Paulo Freire, percebemos certo desprestígio da escola pública por ela não ter

conseguido promover o princípio da educação popular, segundo o qual todos os

usuários da escola, incluindo familiares e comunidade, pudessem apropriar-se do

espaço como lugar de elaboração da cultura. Sabemos que esse processo de

democratização da escola pública ainda se encontra em andamento, por isso, seria

precipitado julgá-lo como mal sucedido. Contudo, a autora salienta que no projeto

Guri os familiares encontraram espaço adequado para concretizar essa expectativa,

reiterando assim a crítica dos familiares à escola pública e a superação desta no

projeto liderado pela Organização Social.

De modo geral, as famílias ressaltam somente aspectos positivos, e

curiosamente nenhum deles está diretamente associado ao conhecimento musical, à

relação professor/aluno, ao aprendizado de um instrumento e ao acesso a

equipamentos culturais. Em sua maioria, destacam o convívio social com outras

famílias e assistentes sociais, a relação de proteção e cuidados que o projeto

expressa com seus participantes, o acesso a informações que garantem a inserção

social por meio de estudos e emprego, programas de distribuição de renda e

melhora no comportamento das crianças e jovens em casa (disciplina e

responsabilidade). Ressaltamos, inclusive, a realização de oficinas de trabalho,

fomentadas pelas assistentes sociais nos polos, que levam as mulheres a produzir

artesanatos e, ao mesmo tempo, orientam formas cooperativadas de trabalho,

independência financeira das mulheres e complementação da renda de suas

famílias. Porém, trata-se de uma prática que ainda não ocorre em todos os polos.

Desde 2011 são realizadas pesquisas de satisfação Datafolha com os alunos

dos programas Guri e EMESP. Em 2011, dos 1.100 entrevistados, 90% dos alunos

demonstraram estar satisfeitos com o ensino de música do Guri e, em 2012, 98%

dos alunos do curso sequencial consideraram o Guri ótimo ou bom. Além disso, 89%

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dos alunos do sequencial afirmam que, fazendo cursos do GSM, terão melhores

chances na vida do que seus pais tiveram (SÃO PAULO, 2012, p.73).

Em parte, consideramos real a avaliação. Por outro lado, devemos

problematizá-la. Como já dissemos em outro momento, o que está ocorrendo é uma

reorganização do espaço público, distante da noção de Estado e atrelado a

instituições privadas (ONGs, OSs e OSCIPs). A experiência do Guri Santa Marcelina

perante a sociedade torna-se parâmetro para a avaliação da rede de educação

pública, o que evidencia um grande risco social por tratar-se de projetos de

educação distintos. Reforçar a tese que a substituição do Estado pela OS, e a

consequente troca da gestão democrática pela gestão empresarial, resolveriam os

problemas da escola pública, significa rejeitar todo o processo de constituição da

escola pública, sua democratização e caráter universal, em curso no Brasil desde os

anos 1930.

O governo do estado de São Paulo privilegia programas como o Guri e outras

atividades desenvolvidas por OSs, em detrimento de outros setores como, por

exemplo, as escolas públicas estaduais. Há 20 anos, observamos um processo que

tem provocado verdadeiro desmonte da escola pública: desvalorização do corpo

docente com plano de cargos e salários pouco atrativos para o exercício da

atividade; desmoralização da carreira por meio da introdução do sistema apostilado

que retira do professor(a) a autonomia sobre sua aula; estímulo a competição e

exposição pública por meio de avaliações do rendimento de alunos atrelada ao

sistema de bonificação dos profissionais; e recente rompimento de contrato entre o

Estado e a empresa terceirizada responsável por equipamentos de xérox e

impressão, o que culminou com o retorno do mimeógrafo. Além disso, em 2015, o

governo do estado por meio da Secretaria de Educação pretendia lançar um projeto

de reorganização das escolas estaduais, cujo teor tampouco foi esclarecido para a

sociedade civil, mas que gerou polêmica e forte reação da principal parte a ser

afetada: os estudantes, e, somente por isso, o projeto fracassou.

Diante de tantas evidências de maus tratos do poder público em relação a

escola estadual, devemos refletir se de fato ela é uma prioridade para o governo do

estado e se com essas condições de trabalho é possível realizar uma educação de

qualidade. Por outro lado, o Projeto Guri - uma iniciativa do Estado sob a gestão de

OSs desde 2004, que atende aproximadamente 51.188 alunos(as) distribuídos em

todo o estado de São Paulo - , goza de um prestígio social considerável enquanto

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serviço público, além de reunir interesses do poder político e poder corporativo,

entorno de objetivos comuns. Desse modo, podemos inferir que o Guri representa

para o poder político uma fonte de propaganda capaz de atravessar o Estado e

chegar aos locais mais longínquos, como um efetivo investimento social a baixo

custo.

Os efeitos dessa ideologia que tentamos apresentar, direta ou indiretamente

alimentada pelo GSM, provocam a alienação dos familiares e jovens que participam

do projeto. Isso é visível no posicionamento político desses jovens diante do corte de

verbas do governo do Estado que provocou a demissão de professores da EMESP e

do Conservatório de Tatuí em 2015. Em resposta à matéria publicada na página

eletrônica de Luís Nassif (24/04/15) e enviada pelo movimento Salve Emesp,

intitulada Alckmin e Santa Marcelina continuam desmonte da Emesp, o Grêmio

Estudantil da Emesp (25/04/15) pede uma correção do texto:

Este artigo não condiz por completo com o que o Grêmio da EMESP defende e algumas afirmações errôneas foram inseridas no texto. Ainda assim, agradecemos a intenção em ajudar e a propagação dos contatos do Grêmio que infelizmente não foi consultado antes da divulgação desse texto. Nossa intenção não é atacar a Santa Marcelina e nem desmerecer o trabalho dos nossos coordenadores.

Nossa luta é contra o corte decretado pelo Governador Geraldo Alckmin e contra a forma como a Secretaria de Cultura administrou essa redução. Não concordamos com a atitude antiética de divulgar o nome dos professores injustamente demitidos e nem de contrariar a frase que representa o nosso corpo docente. Nós temos os melhores professores de música do Brasil, sim! E precisamos defendê-los! Sem eles não teríamos a vaga pela qual estamos tanto batalhando. Vamos nos unir e não causar discórdia! Tenhamos o mesmo objetivo! Nosso real inimigo é aquele do outro lado da rua que despreza a educação musical. Pedimos, por gentileza, e com urgência, a retirada dos nomes dos professores citados, que o autor do texto reformule-o para não parecer que a OS Santa Marcelina é contra a EMESP e que altere a hora da manifestação do dia 29/04.

(grifos nossos)

Por meio dessa declaração, temos a triste constatação de que esses

estudantes mal compreendem quais são as implicações e os constrangimentos de

um contrato de gestão entre o governo do Estado e uma Organização Social. Ao que

parece, um longo processo de educação e convencimento os fez pensar dessa

maneira: “Por estarmos em uma escola que tem reconhecimento, nome forte, os

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122

espetáculos funcionam como uma vitrine” (Kafé, estudante da EMESP Tom Jobim.

In: SÃO PAULO, 2012, p. 99). Eles defendem a OS Santa Marcelina e os seus

professores, uma defesa no mínimo contraditória.

O depoimento de um(a) funcionário(a) do GSM sobre o corte de verbas

efetuado pelo governo do Estado nos programas desenvolvidos pela Santa

Marcelina Cultura aponta uma compreensão mais realista sobre o fato.

Ao meu ver, do tempo que eu entrei até hoje, eu consigo notar algumas coisas: hoje a gente tem menos atividades externas, quando eu entrei no "Guri" a gente recebia lanche em qualquer atividade que era realizada no polo, material pra trabalhar. Hoje em dia tá um pouco menos, a verba diminuiu. No final de 2012 a gente teve um corte que foi avassalador e eu acredito que a verba vem diminuindo com o tempo e é claro que se isso acontece, pra continuar atendendo a demanda de alunos e serviços, a gente precisa reduzir alguns custos e isso é notável. As atividades externas eram bem legais, ajudavam a ampliar o horizonte deles. Semana passada, por exemplo, a gente foi no MIS (Museu da Imagem e do Som de São Paulo). Tem alunos que vão viver uma vida e não vão saber que esse museu existe. É claro que o interesse parte de cada um, mas o "Guri" proporcionava mais isso para os alunos: vamos conhecer lugares, estilos musicais que vocês nem sabem que existem em São Paulo. Os intercâmbios eram maiores, profissionais que vinham de fora da área da música ou que vinham trabalhar com os alunos, tinha bem mais do que agora. E também tem a questão dos grupos. Talvez alguém que você entrevistou pode ter dito que nada mudou, os investimentos que tinha nos grupos é o mesmo, mas eu não sei dizer. Eu acho que com a redução da verba tudo foi diminuído. (Funcionário(a), Guri Santa Marcelina, 2015)

Retomando a questão do protagonismo juvenil, reforçamos que este tema

orienta as ações da assistência social no âmbito do GSM. Destacamos o projeto

Protagonismo Infanto-Juvenil, que, segundo seus idealizadores, visou ao despertar

desses sujeitos sobre suas histórias de vida, de seus grupos e/ou da classe social à

qual pertencem. No entanto, quando apresentam os princípios difundidos, reiteram

mais uma vez as prerrogativas da UNESCO em seu documento Educação para a

Paz:

É nesse sentido que o projeto Protagonismo Infanto-Juvenil vem contribuir para formar redes sociais na cidade de São Paulo, tendo como perspectiva a construção de uma sociedade diferente balizada pela cultura de paz, democracia, liberdade, justiça social e econômica e pela autonomia humana. (SÃO PAULO, 2012, p. 69)

Sposito, Carvalho e Silva e Souza (2006, p. 243) consideram que a questão

social no país, durante boa parte do século XX, foi compreendida como “questão de

polícia”. A presença da assistência social no intuito de reformular essa questão veio

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de forma gradativa, trazendo-a para a esfera dos direitos, por meio de lutas e

debates acerca dos processos de exclusão que assolam nossa sociedade. Contudo,

ainda emerge um consenso dominante: as iniciativas públicas devem orientar ou

conter possíveis condutas violentas e de risco dos jovens pobres. De modo

específico, nos projetos de cunho artístico, notamos que a atuação da assistência

social se localiza entre a esfera do Estado e a esfera da polícia, mediando e

atenuando possíveis tensões.

A ideia de protagonismo juvenil propagou-se nos anos 1990 e permanece

como objeto de críticas (CASTRO, 2002; FERRETI et al., 2004). Seu princípio

imputa aos jovens uma posição não só de aprendizes, mas de sujeitos atuantes em

seu meio social e cada vez mais autônomos em suas ações. Sposito, Carvalho e

Silva e Souza (2006) problematizam um possível deslocamento do sentido

sociopolítico, ao afirmar o ponto de vista do protagonismo e abandonar a expressão

“participação”: o princípio educativo do protagonismo juvenil pode agir na forma de

ações individuais isoladas, promovendo o individualismo em detrimento do

coletivismo e da partilha das decisões no âmbito da esfera pública. Parece que as

ações inspiradas pelo protagonismo assumem mais uma concordância política com

os preceitos do voluntariado, ao privilegiar benefícios diretos à sociedade, em

prejuízo do engajamento em torno da garantia de direitos como cidadãos. A análise

de Evelina Dagnino (2005, p. 54-5) converge com a nossa compreensão: “O

protagonismo juvenil atua no âmbito da despolitização da participação juvenil em

seu significado político e potencial democratizante transfigurando-se em formas

individualizadas de compreensão da desigualdade social e da pobreza”.

Quanto aos outros projetos especiais no âmbito da assistência social,

aprovados e financiados em 2012, via Fundo Municipal da Criança e do Adolescente

(FUMCAD), temos: Trabalhando a Deficiência (formação de educadores da Santa

Marcelina Cultura para melhor atender alunos com deficiência), Guri pra VaLER

(trabalho de estímulo à palavra, leitura e escrita por meio do contato com outras

artes) e Protagonismo Infanto-Juvenil (SÃO PAULO, 2012, p. 66-7). A seleção foi

feita pelo Conselho Municipal da Criança e do Adolescente de SP (CMDCA) em

2009; entretanto, a captação71 se concluiu somente em 2011. Os três projetos

71

Uma das modalidades de financiamento das ações culturais por meio de editais públicos se dá via captação de recursos junto às empresas na forma de patrocínio: por abatimento do imposto de renda ou doação.

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124

mencionados beneficiaram 7 mil alunos do programa e proporcionaram 700

capacitações para a equipe de profissionais da Santa Marcelina Cultura e 21 oficinas

para aproximadamente 700 jovens protagonistas indicados pelos polos e que

puderam retribuir os conhecimentos adquiridos em seu local de origem. As

empresas envolvidas com esse patrocínio foram: Bank of America, Grupo Camargo

Côrrea, Redecard, ISA-CTEEP e AstraZeneca.

É preciso salientar também que não atribuímos ao Projeto Guri a

responsabilidade de formar músicos ou profissionalizá-los. Afinal, nem todos os

participantes almejam isso. A expectativa social que se aplica a ele é a de garantir o

ensino de música como um direito das crianças e dos jovens e encaminhar/estimular

aqueles que aspiram à profissionalização. Porém, segundo a pesquisa Datafolha

encomendada pelo programa em 2011, 96% desses gostariam de ser músicos

profissionais e 13% desejam ser professores (SÃO PAULO, 2012, p. 57). Nesse

sentido, alguns impasses foram notados entre a expectativa dos alunos e os

objetivos do projeto e, em especial, a incorporação do discurso dos coordenadores

na fala dos professores de música:

Professor(a) de música

É ser um educador. É participar da formação de pessoas. É muito mais do que ser um professor de música. (BRUNO, 2013, p. 121) Professor(a) de música

Sou uma educadora que busca ampliar as possibilidades de percepção e interação dos nossos sujeitos com o mundo que o cerca através de um trabalho musical coletivo, focado no fortalecimento das relações sociais e na transmissão e transformação cultural. (BRUNO, 2013, p. 121) Os professores(as) passaram a assumir-se como educadores (as), entendendo que sua tarefa incide na formação humana do (a) aluno (a), indo muito além do ensinar exclusivamente música, colocando-se como mediadores do aprendizado e reconhecendo a sua responsabilidade de serem referência na vida de seus educandos. (BRUNO, 2013, p. 120-1) Mais que um professor de música, o modelo do Guri exige um perfil de educador. Ou seja, esse professor tem que entender como os outros elementos da equipe podem ser articulados. “Não queremos que o professor vá resolver o problema da família do aluno, mas ele tem que ter sensibilidade para perceber que algo está errado e acionar o assistente social, dotado das ferramentas e competências adequadas para atuar na questão”, explica Giuliana Frozoni, regente de coros e gestora do Guri Santa Marcelina. (SÃO PAULO, 2012, p. 51)

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Conforme essas declarações, vemos uma deturpação do discurso acerca do

que é ser educador na concepção de Paulo Freire. Na obra Pedagogia do oprimido

(FREIRE, 2005, p. 78), ao expor o papel do educador problematizador no mundo,

ele adverte: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se

educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Portanto, vemos no seu conceito de

educador uma aproximação com a compreensão marxista, na qual todos somos

educadores. Já os professores de música, com formação para exercer essa função,

atuam na sociedade conforme seu ofício e, desse modo, colaboram para a formação

humana dos sujeitos. Como trabalhadores em um projeto social, devem, sim, afinar

a sua atuação junto dos demais profissionais, e nisso consiste a real compreensão

global de que todos são educadores. Mas a atividade fundamental dos professores

de música é o ensino de música, pois assim formam humanisticamente seus alunos.

Esse apagamento das relações sociais de trabalho, de formação e atuação

profissional dos trabalhadores docentes no Guri é o que alimenta a ideologia do

educador/mediador nessa acepção, ou seja, os professores se transformam, no

exercício da função no Guri, mudando suas expectativas quanto ao próprio ofício, o

que frequentemente é acompanhado por frustração, como se pode observar por

suas declarações.

O processo de seleção dos professores de música, pelos seus critérios,

demonstra seriedade e alto nível de exigência para os candidatos. Ele é composto

por cinco fases: análise de currículo; exame de teoria e percepção; prova de

instrumento e apresentação do plano de aula pelo candidato; prova de solfejo

melódico e rítmico e de leitura à primeira vista; e entrevista (SÃO PAULO, 2012, p.

51). O perfil de educador musical buscado pelo GSM se descreve do seguinte modo:

O professor do Guri é, geralmente, jovem. Tem em média 24 anos e formou-se no ensino superior há pouco tempo. Entretanto, sua qualificação e desempenho podem ser medidos por sua capacidade de inspirar nos alunos o desejo de seguirem a carreira musical e até mesmo a trajetória como docentes. (SÃO PAULO, 2012, p. 57)

Quem são os professores do GSM? O filme de Sérgio Machado, Tudo que

aprendemos juntos (2015)72, destaca a trajetória de um jovem músico à procura de

72

O filme é baseado na peça teatral “Acorda, Brasil”, de Antônio Ermírio de Moraes, que discorre sobre a história de fundação do Instituto Baccarelli na formação musical de crianças e jovens pobres, especialmente, aqueles nascidos em Heliópolis. O maestro Silvio Baccarelli iniciou esse trabalho sensibilizado pela tragédia em virtude de um incêndio que destruiu boa parte da favela, em 1996.

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trabalho ou, melhor dizendo, buscando uma vaga de violinista numa orquestra,

possibilidade mais estável para a sua profissão. No caso, ele aspira a uma vaga na

Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – Osesp. Diante de frustradas

tentativas, às vésperas de ser despejado, ele se depara com uma vaga de emprego

numa ONG em Heliópolis para dar aulas de violino. A princípio, ele rejeita, mas, pela

sobrevivência, aceita posteriormente. Digamos que o caso de Laerte é mais comum

do que parece; pois bem, a docência para muitos professores do Guri também

acontece quase acidentalmente.

Então, quando a gente escolhe uma área como composição ou mesmo artes, a gente já está preparado pra dar aula, não no sentido de formação, mas a gente sabe que vai ter que dar aula por uma questão de sobrevivência. [...] Então esse negócio de ser professor tá muito ligado à nossa vida artística e às instituições de ensino. Então é meio que um caminho natural chegar no Guri porque é um emprego que tem uma mínima estrutura para ser um professor. (Professor(a) de Música, Guri Santa Marcelina, 2015)

Aluno: Ô professor, quando eu tiver suave dá pra tirar uma grana tocando violino? Quanto mais ou menos? Laerte: Gente isso aí é que nem qualquer profissão, que nem jogador de futebol. Tem uma meia dúzia que ganha muito e a grande maioria vai se virando como dá. Aluno: Merreca! (MACHADO, 2015, trecho do filme)

A formação em música desempenhada historicamente nos conservatórios,

nas escolas de belas-artes, nas escolas superiores de artes, nos cursos privados e

em outras instituições encontra-se estimulada por um ideal romântico da profissão e

por uma tradição eurocêntrica. Sob esse ideal, a exigência é de que o músico estude

arduamente para que se torne solista. Durante muito tempo, a referência dos

músicos-professores brasileiros foi essa, e a perspectiva profissional consistia em

tornar-se solista ou músico de orquestra. Conforme sintetiza Juliana Coli (2006b, p.

27): “faltava uma interação realista com o mundo do trabalho”.

Obviamente, nem todos cabem nesse rol de oportunidades, o que gera um

processo de superprodução de alunos e professores no campo da música e

consequente desequilíbrio entre oferta e demanda. Ao mesmo tempo, a recente

Conforme matéria publicada na Revista Concerto (2015, p. 30), edição de dezembro/2015, dois aspectos foram destacados no filme: 1- o trabalho consolidado pela Osesp como uma referência em qualidade e prestígio na gestão de uma orquestra; e 2- o trabalho de projetos sociais que assumem a música como instrumento de transformação social.

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ampliação na demanda por espetáculos e trabalhos sociais envolvendo o ensino de

música acaba direcionando os músicos e as musicistas à atividade de ensino como

alternativa à sobrevivência do artista, tal como de sua arte, que pode se realizar em

outros projetos paralelos.

Esse movimento segue acompanhado pela recente abertura e proliferação

dos cursos superiores de licenciatura em música, presenciais, semipresenciais e a

distância73. Por isso, podemos inferir que a categoria profissional professores-

músicos se encontra ainda em construção.

Para ser professor no GSM, além de ser bom músico e ter interesse pela

atividade de ensino, é preciso ter “sensibilidade para questões humanas e sociais

que vão além dos conteúdos musicais e disponibilidade para atuar em polos

situados a muitos quilômetros de distância da região central da cidade de São

Paulo” (SÃO PAULO, 2012, p. 50). Sabemos que a formação em música

consolidada nas instituições superiores de ensino de amplo reconhecimento – USP,

UNESP, UNICAMP, UFMG, UFRJ, UFRN, entre outras –, ainda não abarca essas

questões supracitadas. Por isso, torna-se um desafio para os músicos-professores

ensinar música nessas condições. O que, evidentemente, os mantém no GSM são

as condições de trabalho oferecidas: a garantia de estabilidade no emprego, a

formalização nos contratos de trabalho, os direitos trabalhistas reunidos na CLT e o

salário, para eles, atrativo. Portanto, havendo outra oportunidade com melhores

condições, a grande maioria não hesitará em mudar de emprego.

Além disso, outro aspecto precisa ser superado na formação em música: a

baixa frequência da participação profissional das mulheres como professoras.

Verificamos, no GSM, um quadro semelhante ao da Orquestra Sinfônica Municipal

de SP, em relação à participação, segundo o sexo, de músicos-professores. Durante

o trabalho de campo, foi possível notar, durante uma prova em um dos polos

pesquisados, a diferenciação no tratamento dado às jovens e aos jovens: duas

jovens choraram diante da situação de pressão no teste. E os comentários dos

professores homens reproduziram alguns preconceitos, como: a extrema

73

Considerando algumas universidades, nesse campo, no estado de São Paulo temos os seguintes exemplos: Licenciatura em Música no IA-UNICAMP, data de abertura 07/05/1984; Licenciatura em Música no IA-UNESP, data de abertura 18/11/2005; Licenciatura em Música com Habilitação em Educação Musical no CECH-UFSCAR, abertura em 2004; Licenciatura em Educação Musical na UAB-UFSCAR (modalidade a distância), abertura em 2006. Em âmbito privado, Licenciatura em Música na Faculdade Paulista de Artes, data de abertura 21/12/12; Licenciatura Plena em Música na FIAM-FAAM (pertence a FMU), data de abertura 02/08/2011.

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sensibilidade das mulheres atribuída à sua fraqueza diante de situações difíceis; a

docilidade; enfim, “em situação de prova sempre há uma jovem que chora”, de

acordo com a fala de um deles. Sem uma devida adequação no quadro docente de

forma equilibrada entre os sexos, não é possível consolidar outros referenciais

formativos. As Tabelas 7 e 8 e os Gráficos 7.1 e 8.1 expõem a relação de docentes,

segundo o sexo, nos dois programas da Santa Marcelina Cultura: GSM e EMESP

Tom Jobim.

Tabela 7 – Distribuição do corpo docente do GSM, segundo o sexo e o instrumento, em 2012 (números absolutos).

Instrumentos

Docentes

Mulheres Homens

Canto 9 3

Cavaquinho 2

Clarinete 3 8

Contrabaixo Acústico 1 12

Contrabaixo Elétrico 1 3

Coral 18 11

Flauta Transversal 6 2

Guitarra 6

Percussão 3 18

Piano 1 1

Piano - correpetição 22 12

Prática de Banda 5

Saxofone 6

Teoria 3 6

Trombone, Tuba e Eufônio 1 11

Trompa 7

Trompete 12

Violão 2 17

Violino e Viola 5 8

Violoncelo 3 6

Total 78 156

Total geral 234

Total em porcentagem 33,3 66,7 Fonte: Santa Marcelina Cultura. Elaboração própria.

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Tabela 8 – Distribuição do corpo docente da EMESP-Tom Jobim, segundo o sexo e o instrumento, em 2012 (números absolutos).

Instrumentos Docentes

Mulheres Homens

Acordeom 1

Bandolim 1

Bateria 1 3

Canto Popular 3 1

Cavaquinho 1

Clarinete Popular 1

Contrabaixo Acústico Popular 2

Contrabaixo Elétrico 4

Flauta Transversal Popular 1 1

Guitarra 4

Percussão Popular 4

Piano Popular 3

Saxofone Popular 1 1

Trompete Popular 1

Trombone Popular 1

Vibrafone Popular 1

Viola Caipira 1

Violão Popular 1 2

Violão Sete Cordas 1

Prática Vocal 1

Violonista Acompanhador (Canto) 1

Pianista Acompanhador (Sopros) 1

Alaúde 1

Canto 2 1

Clarinete 1 3

Contrabaixo Acústico 3

Cravo 1

Eufônio e Tuba 1

Fagote 1

Flauta Doce 2

Flauta Transversal 2 2

Traverso Barroco 1

Harpa 1

Oboé 1

Oboé Barroco 1

Percussão 3

Piano 8 3

Saxofone 1 2

Trompete 4

Trombone 3

Trompa 2

66,7% 33,3%

Gráfico 7.1 - Distribuição do corpo docente do GSM, segundo o sexo e o instrumento, em 2012.

Homens

Mulheres

Fonte: Santa Marcelina Cultura. Elaboração própria.

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130

Violão 6

Violino 7 6

Violino Barroco 1

Viola 1 2

Violoncelo 4 2

Violoncelo Barroco 1

Prática Coletiva – Cordas 1

Música de Câmara 3

Correpetidores – Piano 6 2

Correpetidores – Cravo 1

Análise Musical 3

Coral 6 1

Criação 2

Escritura 1

Harmonia Popular 1

História da Música – Erudita 1

Interpretação teatral para cantores 1

Percepção/Leitura 1

RAD 3

RAD/Rítmica 1 2

Rítmica 1

Consciência Corporal 1

Musicografia Braile 1

Técnica Corporal Cantores 1

Solfejo e Percepção Cantores 1

Prática de Ópera Estúdio 1

Iniciação de Percussão 1

Regência Coral Jovem 1

Iniciação ao Violão 1

Repertório Orquestral – Clarinete 1

Repertório Orquestral – Oboé 1

Total 62 109

Total geral 171

Total em porcentagem 36,2% 63,8%

Fonte: Santa Marcelina Cultura. Elaboração própria.

Os dados revelam uma relação semelhante entre os sexos nos dois

programas de ensino da Santa Marcelina Cultura, o que indica que, em todo o

processo de formação anterior à universidade, a presença de músicos-professores

63,8% 36,2%

Gráfico 8.1 - Distribuição do corpo docente da EMESP- Tom Jobim, segundo o sexo e o instrumento, em 2012.

Homens

Mulheres

Fonte: Santa Marcelina Cultura. Elaboração própria.

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131

de ambos os sexos é muito pouco equilibrada. É provável que encontremos essa

mesma configuração na universidade. A pesquisa desenvolvida por Carmen Lúcia

Arruda (2012, p. 154) acerca da inserção dos artistas no trabalho docente nas

universidades, especificamente no Instituto de Artes da UNICAMP, que foi seu

campo empírico, aponta, no Departamento de Música, 83% de docentes do sexo

masculino e 17% de docentes do sexo feminino. Por um lado, vimos a participação

feminina significativa na formação em música, o que permitiu, na história recente, o

seu ingresso no mercado de trabalho nesse campo. Por outro lado, há ainda muito a

ser conquistado em termos numéricos. E aqui nós estamo-nos referindo somente a

uma face da exclusão de um grupo social. Existem outras, silenciadas, sobretudo

vinculadas à condição de classe e à cor da pele.

O esforço deste capítulo consistiu em descrever, analisar e compreender o

Projeto Guri de um ponto vista histórico e sociológico, especialmente na transição

que ocorreu a partir de 2007, colocando duas OSs à frente do programa

governamental do estado de São Paulo. Foi nosso objetivo explorar as contradições

e também os pontos altos da gestão consolidada com a Santa Marcelina, e o

fizemos a partir de documentos institucionais e do trabalho de campo. Na Santa

Marcelina encontramos, em parte, a quebra com o paradigma do salvacionismo

aplicado à educação musical historicamente presente na AAPG. Por outro lado,

notamos o esforço na construção de outro paradigma: a lógica do mérito. A

linguagem empresarial do GSM, em certa medida reitera a história dos que

venceram e oculta a dos que permanecem onde estão. Independentemente da

inserção – ou não – desses estudantes no campo profissional da música, buscamos

problematizar as razões pelas quais o discurso institucional acredita que a melhor

resolução para a vida desses estudantes consistiria na venda de sua força de

trabalho.

Analisamos o esforço para consolidar um ensino de música de qualidade –

apesar de atravessado por uma concepção institucional de cultura como um negócio

– em ambos os programas vinculados à Santa Marcelina: Projeto Guri e EMESP

Tom Jobim. Retomamos as questões elaboradas no primeiro capítulo: “Como se

formam os músicos no Projeto Guri?”, “Quais as condições sociais e políticas dessa

formação?”. E acrescentamos, no desenvolvimento da pesquisa, pelas evidências

observadas: “Quais as inter-relações entre pobreza, política e música?”.

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132

Encontramos, na perspectiva da assistência social que defende o protagonismo

juvenil, novas bases para compor essas inter-relações, que, em síntese, corroboram

a inserção dos jovens no mercado de trabalho atual. Além disso, quando o GSM

retoma o conceito de cidadania cultural elaborado por Marilena Chaui (2006), isso é

feito de maneira confusa: ora se aproximam, ora se afastam desses pressupostos,

pois, sem o reconhecimento e a afirmação da questão de classe e da luta de

classes, conforme propôs a filósofa, e sem as noções de gênero e cor da pele

atreladas a essa questão, não é possível estruturar um campo materialmente

determinado das formas simbólicas e dos modos de vida de uma sociedade na

esfera pública.

Havia, sim, uma preocupação latente, por parte dos coordenadores, de que o

programa Guri Santa Marcelina deveria ser pensado efetivamente como uma política

pública, com possíveis articulações com outras políticas correlatas. E, diante da

inviabilidade disso por parte da SEC-SP, eles construíram e planejaram suas ações,

articulando-se a outros equipamentos e serviços públicos, associações comunitárias,

escolas, hospitais, cumprindo a expectativa de uma política pública por meio de

outras políticas sociais, mas não no campo da cultura propriamente dito (SÃO

PAULO, 2012, p. 66).

Conciliação é a palavra-chave na relação entre música e pobreza. O esforço

da Santa Marcelina concentra-se na construção de uma estratégia – ou escada,

conforme Williams (2011) – capaz de interligar os dois mundos pacificamente, por

acreditar no poder de transformação que a música exerce na vida das pessoas. Não

duvidamos deste potencial, mas tampouco estamos convencidos da quebra dos

muros que separam esses mundos. Conforme salientou Edmilson Venturelli

(Concerto, 2015, p. 30), diretor de relações institucionais do Instituto Baccarelli,

acerca do filme supracitado: “esses dois mundos são complementares e enriquecem

um ao outro”. Boa parte dos projetos sociais que envolvem o ensino de música

pensa dessa forma, inclusive o GSM. Contudo, julgamos que esses mundos são

interdependentes, pois a existência de um está condicionada à existência do outro, a

riqueza de um está condicionada à pobreza do outro, e somente uma resposta

categórica pode dar conta disso. Do contrário, a conciliação como resposta

impossível continuará atuando de modo paliativo. “A cultura está sendo invocada

para resolver problemas que antes eram de domínio da economia e da política”,

conforme observou George Yúdice (2000, p.10).

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133

CONSIDERAÇÕES FINAIS

__________________________________________________________

Daniel Barenboim: A minha única doutrina em termos de música e execução musical decorre basicamente da natureza do paradoxo: é preciso ter os extremos; é preciso encontrar um jeito de juntar os extremos, sem necessariamente diminuir a extremidade de cada um, para criar a arte da transição. Edward Said: Eu concordo. Também não vejo necessidade de conciliar, diminuir ou atenuar os extremos. (BARENBOIM; SAID,

2003, p. 81)

O Projeto Guri Santa Marcelina cria, entre os extremos, uma escada, na qual

o contato com a música mediaria e minimizaria tensões sociais. Mas não seria

possível pensar de outra maneira, com as condições que temos? Um encontro, nos

anos 1990, entre dois sujeitos singulares possibilitou a fundação, em 1999, da West-

Eastern Divan Orchestra, cujo objetivo é unir na mesma orquestra jovens músicos

israelenses e palestinos, não para conter conflitos históricos naquela região, mas no

intuito de uni-los, sem apagar suas distinções e lutas. Edward W. Said, escritor e

crítico literário, palestino, exilado e educado no Egito, de religião cristã com algumas

influências do anglicanismo (principalmente ao se estabelecer nos EUA), mais tarde

tornou-se professor na Universidade de Columbia (EUA). E Daniel Barenboim,

pianista e diretor artístico da Orquestra Sinfônica de Chicago, portenho, de família

judia, formou-se em Israel e consolidou sua carreira nas principais capitais mundiais.

Os aspectos biográficos dos autores e seus diálogos sobre o tema música e

sociedade, publicados no livro Paralelos e paradoxos: reflexões sobre música e

sociedade, nos inspiram a reformular nossas respostas e refletir sob novos

horizontes para o tema.

A partir do século XX, como dissemos na introdução, vivemos numa

sociedade transicional, na qual a estrutura de sentimentos restrita ao industrialismo

tornou-se névoa, poeira, e tudo está disperso nas histórias de vida e envolto na

crise. O autor sustenta a hipótese de que, a partir de George Orwell e seus escritos,

vivemos a expressão do paradoxo, em que os contrastes não estão mais nítidos,

pois as oposições não existem mais, tudo é uma coisa só, uma totalidade (o abstrato

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e o absoluto). A metáfora que iremos adotar para pensar essa noção de paradoxo

será a encruzilhada (WILLIAMS, 2011).

No caso brasileiro, de modo específico, dois projetos societários antagônicos

são observados: o projeto democratizante e participativo e o projeto neoliberal.

Vimos no projeto dominante neoliberal, que a associação entre a cultura e as

grandes corporações atuantes nas políticas culturais dá notícia de um novo

momento do capital, no qual se instaura a megalomania e a impessoalidade na

dominação capitalista. A cultura tornou-se sinônimo de filosofia do dinheiro na

modernidade, afinal demonstra ser uma das maneiras do dinheiro se movimentar de

modo bem lucrativo. Vimos, com outras palavras, que a cultura como experiência ou

trabalho intelectual e criativo do homem transfigurou-se em abstração, na medida

em que se torna mercadoria, modificando-se em um processo de gestão da vida que

passa por práticas culturais: pelo entretenimento, pelo espetáculo, pelo

empreendedorismo, pelo protagonismo e pelo status.

A imagem da névoa, poeira ou zona cinzenta da qual nos apropriamos,

esconde esse lugar de destruição em curso pelo projeto neoliberal. Esse lugar onde,

aparentemente, não há espaço para contradição, onde há pouco espaço para

reação. Porém, onde também persiste o projeto societário alternativo,

democratizante e participativo, na disputa e resistência contra esse processo geral

dominante. Sob este primado, tentamos recuperar a cultura do trabalho como motor

da história e apontar que a cultura é trabalho concreto. A cultura como atividade

humana relacional que não se encerra no produto, pois se baseia na produção de

riquezas em torno de valores de uso, devolve ao homem a capacidade de construir a

si mesmo e a sociedade na qual se insere, como conhecedor do processo de divisão

do trabalho e das relações entre as produções culturais e as coerções capitalistas. O

homem ainda resiste por meio de sua atividade intelectual ou artística. Parece

oportuno relembrarmos Os anos de viagem de Wilhelm Meister, de Goethe e a

análise de Alexandro Paixão (2012, p. 173) que traz com outras palavras, o sentido

que desejamos construir nesse campo de disputas como uma forma de resistência

nessa zona cinzenta:

O trabalho representa, portanto, não somente um valor econômico, social e político, mais um valor abstrato, uma visão moral do homem como um homem econômico, alguém que realiza uma atividade. Neste sentido, o trabalho é dotado também de um valor espiritual,

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garantia de sua universalidade. Em Goethe, portanto, o trabalho é a união de uma ordem material e espiritual dentro de cada indivíduo. Uma força que o arranca da sua inércia e o submete a uma agitação que se transforma em atividade regrada ou permanente. O trabalho canaliza toda a agitação interior do homem e lhe dá um objetivo exterior, ou melhor, social. Esta atividade braçal e/ou das ideias é resultado da tomada de consciência do homem em relação ao seu ser e suas necessidades.

Retomando a expressão do paradoxo em que vivemos e a metáfora da

encruzilhada, quando questionado sobre uma possível doutrina, um caminho

desejável à formação em música no qual acredite, Daniel Barenboim (2003, p.81)

salienta, conforme a epígrafe, que a resposta para ele está na natureza do

paradoxo. Tendo em vista a imagem da encruzilhada em nossa sociedade, podemos

ver nitidamente um ponto crítico, instável, lugar de cruzamento e possível encontro:

entre os extremos.

Contudo, o problema de alguns projetos em arte e educação consiste em

insistir nas inter-relações pobreza, política e música, para reforçar que a violência ou

a atitude ameaçadora, quando pacificada, elimina a necessidade de afirmação da

luta de classes. Esses projetos utilizam palavras ou sentidos, tais como: situação de

risco, inclusão social e conciliação, introduzindo a música, mesmo que num nível

inconsciente, como descrição dessas ideias, quando, na verdade, seus objetivos

deveriam envolver a comunicação da expressão musical no mundo do som e das

relações sonoras, dando liberdade aos alunos de adaptar esse aprendizado à sua

condição de vida (BARENBOIM; SAID, 2003, p. 63).

Enquanto discutem sobre o papel do intelectual na nossa sociedade, marcada

pela desigualdade social e pela exclusão, Edward Said, como intelectual e militante

político nos Estados Unidos, insiste que seu papel no campo literário foi o de

desconfiar e pôr em questão as certezas, porém ele interroga Barenboim no sentido

de saber se há um paralelo dessa atitude na música. Barenboim responde a essa

questão de modos diferentes, porém complementares entre si:

E aí você tem de se perguntar: a música tem um propósito, um propósito social? E qual é? É proporcionar conforto e entretenimento, ou é inspirar perguntas incômodas no executante e no ouvinte? Veja o papel que a música – e, muito mais que a música, o teatro e a ópera – desempenhou na sociedade e nos regimes totalitários: ela foi o único campo em que se podiam criticar ideias políticas e o totalitarismo social. Em outras palavras, uma apresentação de Beethoven no regime nazista ou em qualquer outro regime totalitário, de esquerda ou de direita, assume de repente o caráter de um grito

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de liberdade, torna-se até mesmo uma crítica bem direta da política do regime e, portanto, é realmente uma coisa muito mais incômoda e, ao mesmo tempo, enaltecedora. (BARENBOIM; SAID, 2003, p. 58)

Não há uma espécie de paralelo do processo pelo qual todo ser humano tem de passar na sua vida interior para primeiro chegar à afirmação do que é e depois ter a coragem de soltar essa identidade para encontrar o caminho de volta? Acho que a música é isso. Eu não diria que é sempre uma crítica da sociedade ou do ser humano, mas é um paralelo do processo interior dos pensamentos e sentimentos mais íntimos de um ser humano. Acho que Beethoven é isso. Não sei se convenci você. (BARENBOIM; SAID, 2003, p. 61)

Podemos compreender essa afirmação por meio do contato com jovens que

passam pela experiência da educação musical no Projeto Guri Santa Marcelina e,

por extensão, reiterando a pesquisa de Hikiji (2006), no Projeto Guri da Associação

de Amigos. Em todos os depoimentos coletados nesta pesquisa, bem como

naqueles apresentados por Bruno (2013) e Hikiji (2006), observamos uma mudança

interna, subjetiva, nesses jovens. Aspectos como a socialização, a construção de

identidades, a noção de pertencimento social e os vínculos no grupo, são

recorrentemente mencionados por eles. A relevância desses aspectos revela,

simultaneamente, que a experiência da música foi exitosa, mesmo que em contextos

controversos e contraditórios.

O problema aparece quando essa avaliação dos alunos se confunde com os

valores e a ideologia da instituição, que, intencionalmente ou não, continua a insistir

em outros aspectos como inerentes à prática musical: disciplina, concentração,

responsabilidade, resiliência, cooperação, tolerância, protagonismo e cidadania. Não

negligenciamos a existência desses valores, apenas verificamos a conexão entre

eles e a orientação mais recente do mercado de trabalho, proveniente da

racionalidade capitalista pós-reestruturação produtiva, em que são mobilizadas as

competências atitudinais, como a polivalência, o empreendedorismo, a flexibilidade,

a criatividade e a liderança.

A cidadania certamente é um valor importante, porém nesses projetos

mantém-se desfigurada, pois ora se confunde com a noção de autoestima e inclusão

social e ora se associa ao ideal de protagonismo juvenil. Nem ao menos se discutem

as categorias classe social, gênero, cor da pele e desigualdade social na cidadania e

o reconhecimento dos direitos de cidadania, o que gera uma compreensão

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equivocada nos participantes. Na perspectiva de análise de Dagnino (2005), vimos

que essa crise discursiva e as armadilhas da homogeneidade desse vocabulário

comum geram a apropriação neoliberal da noção de cidadania: “ser cidadão passa a

significar uma integração individual ao mercado, como consumidor e como produtor

– subjacente aos programas que auxiliam as pessoas a adquirir cidadania”

(DAGNINO, 2005, p. 55). Essa névoa provoca a reiteração dos princípios que vimos

na origem do Projeto Guri, conforme podemos verificar no depoimento de um pai

sobre a visão que ele tem do GSM:

A questão da sociedade é legal. Porque está dando oportunidade para muitas crianças, como eu disse no começo, que nós não tínhamos [antes]. E hoje eles têm a oportunidade de conhecer o mundo musical, talvez não pra poder tocar numa filarmônica famosa, mas para criar uma certa ética, uma cultura. Sair um pouco dessas vidas das drogas, do álcool e colocar um instrumento no lugar disso. Para poder, vamos dizer assim, “culturar” essas crianças. E elas crescerem um pouquinho mais com ética, amor e respeito ao próximo. (Pai de aluno, 2015)

Entendemos que as receitas adotadas pelo Guri, nos primórdios, sob a gestão

da AAPG, uma espécie de “formação musical para populações de risco tornarem-se

civilizadas”, e na sua nova versão desenvolvida pelo GSM, em resumo, “a promessa

de profissionalização e inserção no mundo do trabalho musical”, ambas inscritas no

aparato institucional descrito e analisado nesta dissertação, não trouxeram os

resultados esperados. Nos depoimentos dos jovens analisados, pudemos identificar

que a experiência musical não se reduziu a domesticação desses sujeitos e, mesmo

em contextos controversos e contraditórios, tornou-se um meio de ressignificação de

suas vidas. Já a profissionalização e a inserção no trabalho musical se

concretizaram para poucos e parcialmente, pois há um desequilíbrio entre oferta e

demanda no mercado de trabalho musical que mantém um excedente de músicos

profissionais desempregados ou realocados em outros empregos. Por isso,

insistimos que o projeto deveria reformular seus objetivos e proporcionar uma

educação musical visando a experiência artística em si, sem apelo à competitividade

e noção de mérito artístico, tendo somente como objetivo o cultivo da experiência

musical. Essa ênfase não se encontra entre as justificativas e práticas do projeto e

seria uma contribuição relevante.

Porém, configura um exercício instigante ao pesquisador a constante revisão

das suas fórmulas para que não fique preso ao engodo capaz de transformar todos

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à condição de massas ou turba74. Williams (2011) nos alerta a estarmos atentos aos

efeitos da maquinaria nos modos de vida, pois ela trabalha no sentido de negar a

natureza humana e a cultura constituída nas relações sociais, corrompendo assim

nossa existência. Por isso, devemos sempre questionar, num processo de

comunicação que se molda pela maquinaria, como é o caso do Projeto Guri: o que é

o engodo e o que é a crise? Neste limiar, onde se encontra a medida do futuro, onde

estão as sementes de vida e as sementes de morte? “[...] embora o punho fechado

seja um símbolo necessário, o fechamento nunca deve ser tão forte que impeça a

mão de abrir e os dedos de se estenderem para descobrir e moldar a realidade que

está se formando” (WILLIAMS, 2011, p. 358).

Vimos, no engajamento profissional e afetivo de gestores do GSM, em sua

maioria músicos e musicistas, um esforço para consolidar um ensino de música de

excelência e dentro de uma perspectiva de transformação social. Não há como

negar o empenho individual dos trabalhadores, que, de acordo com as condições de

trabalho vivenciadas, ofereciam o seu melhor aos alunos e às alunas nos polos. Eles

demonstram estar absolutamente convictos da relevância musical e social do

projeto. Toda essa expectativa no aprendizado por meio de um processo

educacional comunicativo consolida, certamente, pulsões de vida.

Uma das experiências mais significativas que pudemos vivenciar no trabalho

de campo foi durante o concerto de encerramento da série Horizontes Musicais, em

novembro de 2014, com a Orquestra Jovem do Estado sob a regência do maestro

venezuelano, Diego Guzmán, do Sistema Nacional de Orquestas y Coros Juveniles

e Infantiles de Venezuela (1975 - ). No programa do concerto ouvimos obras de

compositores latino-americanos: de Gonzalo Castellanos-Yumar, “Antelación e

Imitación fugaz”; de Carlos Chávez, “Sinfonia India”; de Silvestre Revueltas,

“Sensemayá”; de Giancarlo Castro, “Concerto para clarinete e orquestra”; de Alberto

Ginastera, “Danzas del Ballet Estancia”; e de Arturo Márquez, “Danzon nº 2”. O

público era composto por estudantes do Projeto Guri e seus familiares, além de

familiares dos músicos da orquestra. A impressão é de que todos os lugares da Sala

São Paulo estavam ocupados, mas desta vez não era a elite paulistana quem estava

lá, e, sim, o povo da região metropolitana de São Paulo. Não é possível explicar o

74

Segundo Williams (2011), a palavra “massas” é uma palavra nova para o termo original “turba”. Na definição do dicionário temos: “turba 1 grande número de pessoas, esp. quando reunidas; multidão, turbamulta, turbilhão 2 multidão em movimento ou desordem, potencialmente violenta; 3 conjunto dos menos favorecidos de uma comunidade; o vulgo, o populacho” (HOUAISS, 2009, p. 1894).

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que aconteceu naquele dia, só podemos dizer que o calor humano, o ambiente vivo

e animado dentro de outros códigos, por algum motivo, incomodaram algumas

pessoas. Observamos que elas conversavam entre si, diziam-se frequentadoras

assíduas da Sala e questionavam-se mutuamente se aquele concerto fazia parte da

programação regular da Osesp. Elas pareciam desconfortáveis. Antes de iniciar o

concerto, elas perceberam que ele fazia parte de uma programação diversa e se

retiraram. Giuliana Frozoni, gestora e regente de coros do GSM, comentou,

momentos antes do concerto, que viveríamos uma experiência incrível e que ela

estava com boas expectativas; concordamos com ela e, pelo vigor dos aplausos e

pela participação do público, pensamos que todos os presentes tiveram essa

impressão. Em um diálogo anterior a esse concerto, ela fez referência a “El Sistema”

como um projeto exitoso, uma fonte de inspiração para eles. Acreditamos que o

GSM está muito longe de ser “El Sistema”75, até mesmo porque são contextos muito

distintos de inserção, pensamento e financiamento, mas sua colocação traz, no

mínimo, um pouco de esperança.

Nesse momento, já sabemos o que é o Guri Santa Marcelina, mas

precisamos encontrar o caminho de volta. Retomaremos, então, as imagens da

encruzilhada , da escada e a ideia de conciliação. A atuação do GSM contempla

aquilo que Williams (2011) chamou de serviço à comunidade, apresentado à classe

trabalhadora como sinal de solidariedade. Contudo, ele se dá por uma oportunidade

individual realizada pela ideia de escada na educação musical. E o que é a escada?

”A escada, no entanto, é um símbolo perfeito da ideia burguesa da sociedade

porque, embora sem dúvida alguma ofereça a oportunidade para subir, é um artifício

que só pode ser usado individualmente: você sobe a escada sozinho.” (WILLIAMS,

2011, p. 354-5) Com isso, instaura-se a lógica do mérito, e a noção de direitos se

perde, pois o benefício a ser oferecido à classe trabalhadora é a escada. Sabemos

que, por meio deste alicerce, muitos subiram e se estabeleceram do outro lado, e

muitos tentaram subir em vão e permaneceram onde estavam. Por isso, a ideia de

75

Sistema Nacional de Orquestas y Coros Juveniles e Infantiles de Venezuela, popularmente conhecido como “El Sistema”, foi concebido e fundado, em 1975, pelo maestro e músico venezuelano, José Antonio Abreu. Seu objetivo é sistematizar a instrução e a prática coletiva e individual da música por meio de orquestras sinfônicas e coros, como instrumentos de organização social e desenvolvimento humano. Atualmente, encontra-se sob a gestão da Fundação Musical Simon Bolívar (Decreto nº 8078 publicado na Gazeta Oficial nº 39626, de 2011), órgão do Ministério do Poder Popular de Despacho da Presidência e Seguimento da Gestão do Governo da República Bolivariana da Venezuela. (Prensa FundaMusical Bolívar, 15/08/13). Trata-se de uma política pública do Estado desenvolvida em âmbito nacional e financiada com recursos do petróleo venezuelano.

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conciliação que envolve todo esse esquema de solidariedade é uma resposta, além

de impossível, perversa. E por que a escola pública não pode ensinar música?

A escolha política de investir em projetos de educação musical elaborados e

desenvolvidos por Organizações Sociais é uma possível resposta para essa

pergunta. De certo modo, vimos que o trabalho desenvolvido no GSM reitera,

conscientemente ou não, a descrença na escola pública como espaço de formação

humanística. É preciso recuperar, em nosso trabalho, em que ponto e por que foi

negado às classes trabalhadoras o direito de acesso ao ensino de música na escola

pública.

Desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1971

(BRASIL, 1971), que substituiu o ensino de música pela educação artística, a

disciplina educação musical foi extinta do sistema educacional, assim como as

disciplinas latim e francês foram retiradas do currículo das escolas de ensino

fundamental e de ensino médio. Temos duas explicações possíveis para o fato de o

ensino de música não fazer parte da grade curricular das escolas regulares. A

primeira é que, com o advento da compreensão de cultura associada ao mercado e,

por consequência disso, seus produtos serem comercializados na forma de

mercadoria, conforme discutimos no segundo capítulo, fomos perdendo a

compreensão de cultura como trabalho intelectual e criativo do homem, a qual se

expressa como experiência humana relacional que não se encerra no produto, pois

se baseia na produção de riquezas em torno de valores de uso. A segunda é que,

numa sociedade do espetáculo como é a nossa, na qual o consumo é a principal

fonte de realização humana, a arte e a música tornam-se artigos de luxo, que

confirmam o poder e o fascínio de uma espécie de símbolo de prosperidade da

sociedade por meio da instituição orquestra, do teatro de ópera, da companhia de

balé e do museu (BARENBOIM; SAID, 2003, p. 59).

É preciso salientar que, a partir da década de 1990, houve uma maior

compreensão da infância e da juventude, de seus direitos e deveres, de modo

especial, os direitos culturais. Nesse sentido, foram lançados diversos projetos na

área de ensino artístico e, sobretudo, a educação musical foi a atividade privilegiada

na maioria deles. Contudo, a concepção desses projetos está sob a

responsabilidade de instituições privadas na forma de ONGs, OSs e OSCIPs,

oferecendo à população serviços culturais gratuitamente, apoiados com recursos

públicos estatais, mas distantes do aparelho de Estado e independentes de uma

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visão global proposta por uma política pública cultural elaborada por esse órgão. A

visão que permeia esses projetos é de promover a inclusão social de crianças e

jovens considerados em situação de vulnerabilidade social e, com isso, reduzir

índices de violência, criminalidade e conformação social desses sujeitos, conforme

analisamos ao longo deste trabalho.

Discutimos, no segundo capítulo, alguns dos interesses ligados a essa

escolha por parte do poder público estatal; por isso, vamos nos concentrar, neste

momento, em desenvolver as implicações dessa escolha e apontar algumas

propostas possíveis de intervenção.

Pesquisas recentes, como as de Vanda Freire (2007), representante na área

de música junto à Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (MinC) durante cinco

anos, e levantamentos em torno do MinC e FUNARTE apontam para o fato de que

os projetos de curta duração aprovados por editais e premiações geralmente

integram política educacional e política cultural, numa proposta de educação musical

em conformidade com as exigências, desses editais, de produzir resultados

quantificáveis com eficiência e eficácia no uso dos recursos financeiros. Essa

tendência se ampliou, contraditoriamente, com a homologação da Lei federal nº

11.769 (BRASIL, 2008), cujo propósito era tornar o ensino de música obrigatório no

ensino fundamental e médio das escolas brasileiras.

Conforme analisa Vanda Freire (2007), a visão mercadológica se impõe sobre

os projetos no campo da cultura, sobretudo na interface cultura e educação.

Segundo a autora, a expressão “indústria da cultura” é o que prevalece nesses

projetos sociais, conforme valorizam seus patrocinadores e proponentes: banqueiros

e produtores culturais, respectivamente.

Porém, mesmo com o estímulo à obrigatoriedade do ensino de música na

educação básica regular, os estados e os municípios têm se mostrado pouco

receptivos à sua implementação. A propósito, seu conteúdo deveria ter sido

devidamente implementado em 2011. Sendo assim, o maior desafio no atual

momento é o de garantir o cumprimento da obrigatoriedade do ensino de música em

toda a escola brasileira, com contratação, via concursos públicos, de profissionais da

área da música, conforme reivindicações da Associação Brasileira de Educação

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Musical (ABEM) e das indicações traçadas pelo Colegiado Setorial de Música no

âmbito da FUNARTE76.

De acordo com levantamento realizado por Cáricol (2012), no qual foram

consultadas todas as secretarias estaduais de educação em 201177, a maioria se

refere à implementação do ensino de música de forma vinculada ao ensino de artes,

e ainda ministrado pelo professor de educação artística, além de parcerias com

projetos sociais locais, especialmente, o programa Mais Educação78, promovendo

atividades extracurriculares de conteúdo musical. Somente alguns estados, como:

Bahia, Distrito Federal, Goiás, Paraná, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul, se

referem à contratação, via concurso público, de profissionais com formação em

música, o que, de fato, reflete a inserção desse conteúdo no currículo com

qualidade. Portanto, o que podemos compreender acerca dessa situação é que há

uma espécie de resistência e manipulação dos poderes educacionais locais, no que

diz respeito à real implementação da Lei nº 11.769. Em linhas gerais, é possível

visualizar, na resposta do estado de São Paulo – o que nos interessa nesta pesquisa

–, os argumentos dos demais estados:

A Secretaria de Estado da Educação de São Paulo informa que os conteúdos da linguagem musical já são contemplados nas aulas de Arte. A disciplina Arte é oferecida aos alunos em duas aulas semanais, em todos os anos do Ensino Fundamental e nos dois primeiros anos do Ensino Médio. Teatro, dança, artes visuais e música são as quatro linguagens artísticas abordadas na disciplina. Cada uma dessas linguagens possui conteúdos específicos, que são desenvolvidos nas situações de aprendizagens propostas no Caderno do Professor e no Caderno do Aluno, materiais de suporte ao Currículo implantado pelo Estado. Para aprimorar a qualidade de ensino, a secretaria desenvolve e viabiliza um conjunto de ações educativo-musicais, por meio de parcerias com instituições culturais, projetos e cursos descentralizados com o objetivo de ampliar e fortalecer o desenvolvimento cultural e musical de alunos e professores das escolas estaduais. (CÁRICOL, 2012, p. 36)

76

Vide Relatório de Atividades da Câmara e Colegiado Setorial de Música/FUNARTE - 2005-2010. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/. Acesso em: 20 mar. 2014. 77

Somente Amapá, Rondônia e Roraima não responderam. 78

“Este é um projeto vinculado à iniciativa privada. Uma parceria entre empresas privadas e o Projeto Vitae, que desde 2003 financiava ações de parceria entre ONGs e instituições educacionais públicas, resultou na constituição do Fundo Juntos pela Educação, que visava ampliar as investidas do Programa pela Educação em Tempo Integral. Atualmente, a proposta contempla dois territórios: a cidade de Campinas (SP) e a Região Metropolitana de João Pessoa, que soma 47 organizações parceiras, que financiam projetos com ações voltadas para letramento, ações de esporte, cultura, oficinas profissionalizantes, nos municípios de João Pessoa, Santa Rita e Lucena.” (PENNA, 2011, p.142)

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Sabemos que a referida lei federal permite, em certa medida, uma autonomia

por parte dos municípios para sua implementação, e isso eventualmente produz

algumas ambiguidades. Contudo, a nossa preocupação consiste na garantia da

formação musical nas escolas públicas com qualidade e, quanto a isso, podemos

inferir que a opção do estado de São Paulo não segue esse princípio. Pensamos

que o estímulo estatal atende às ações educativo-musicais de instituições privadas,

oferecendo, para tanto, investimentos milionários que dificilmente poderão atingir a

todos.

Por outro lado, quando salientamos a importância de o ensino de música

compor os currículos das escolas, estamos falando no limite de uma educação

progressista e de uma escola pública progressista, capaz de restituir aos cidadãos o

direito de cultivar a experiência musical, que lhes foi cerceado por todo um sistema

de dominação, cujas relações de poder buscamos apresentar ao longo deste estudo.

Recentemente, vimos a explosão dessa necessidade formativa na luta de

estudantes das escolas públicas estaduais, um levante que ficou conhecido,

respeitado e amplamente apoiado: a escola de luta.

O tema da cultura, quando adequado a uma perspectiva de desenvolvimento

da cultura comum, conforme elaborou Williams (2011, p. 359), deve ser pensado do

ponto de vista do cultivo do crescimento natural, a ser proporcionado pela via

comunicativa da educação à sociedade como um todo. E, quando damos ênfase ao

crescimento natural, em certa medida, estamos permitindo que todos participem do

progresso geral da sociedade. Por isso, a noção de direito à cultura deve ser a

premissa de uma sociedade democrática de fato, pois trata de algo que pertence e

interessa a todos.

Desejamos destacar a seguinte proposta: a existência de projetos em arte e

educação não pode excluir a necessidade de cultivo da música nas escolas

regulares. Antes de privilegiar iniciativas pontuais desenvolvidas por projetos como o

Guri – que podem naturalmente atuar como complementares –, defenderemos como

de responsabilidade da educação regular o ensino de música, pois este, sim, é

garantido a todos – pobres, negros, brancos, homens, mulheres, deficientes,

indígenas, quilombolas –, em condições plenas de igualdade.

Sobretudo nas relações estabelecidas com os jovens participantes do Guri

Santa Marcelina, por meio de seus depoimentos e das entrevistas concedidas,

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notamos que a prática musical possibilitou, em certa medida, a resistência aos

processos gerais de aculturação e construção de novos meios para compor suas

realidades, o que é possível verificar nas seguintes declarações. Por isso, indicamos

duas questões de pesquisa para futuros trabalhos relacionadas a esses jovens: 1- A

trajetória e a inserção profissional dos jovens egressos do Projeto Guri; e 2- A

relevância da aprendizagem da música na vida desses jovens.

O único problema que eu tive foi quando eu fiz 18 anos, porque minha mãe falou: “Olha, você vai ser músico, tudo bem, mas você vai ter que trabalhar”. Tanto é que eu fui trabalhar por causa disso, arranjei um emprego no Burger King e graças a Deus eu fiquei só um mês lá trabalhando, exatamente porque quando deu um mês apareceu a vaga [na Orquestra Jovem de Heliópolis] e eu ainda faltei um dia do serviço para poder fazer a prova pra tocar no Baccarelli. E graças ao “Guri” aqui estou eu, né? Hoje tocando lá no Baccarelli e na faculdade, eu gosto de assinalar isso, mas se não fosse o “Guri” eu não estaria lá e digamos assim, não estaria fazendo o que eu gosto, né? Porque a melhor coisa do mundo é você trabalhar na área que você gosta. (Estudante de percussão, Orquestra Jovem

Heliópolis, 2015) Eu vejo a música como uma estrada sem fim. Como uma linha reta, sem curvas. Porque, por mais que o mundo da música seja pequeno, nele eu consigo realmente atingir minhas metas e ir cada vez mais longe. Em certo sentido, eu adotei a música como profissão pela questão de se expressar. De estar bem fazendo música e se doar inteiramente para aquilo. [...] Boa parte da minha vida durante esses 7 anos eu passei aqui dentro. Mas chegou uma hora que estagnou, parou. E aí eu tive que buscar outras coisas fora. Porque, querendo ou não, um dos ideais do projeto é ensinar para a periferia, aos jovens, músicas de qualidade. Só que uma das coisas que eu começo a perceber é que as pessoas daqui aprendem música, mas essa música que elas aprendem não é difundida aqui. É uma música para a elite ouvir. Então eu acho que deveria ter uma abertura maior, já está acontecendo faz um tempo essa abertura para as pessoas da periferia começarem a ter mais contato. Mas eu acho que ainda tem que, como diria minha vó, colocar muita lenha na fogueira. Ainda tem muito que expandir para que as pessoas da periferia da região de Guaianases e de outras periferias consigam cada vez mais ter contato. Porque, mesmo tendo essa abertura, por exemplo, do Horizontes Musicais, que já é mais acessível à população de baixa renda, ainda fica uma música meio elitizada, para eruditos literalmente, e não para pessoas mais - correlacionando com a história do passado - não para os "plebeus", o "povão", com a população mesmo, os pobres e as pessoas mais afastadas do centro. Querendo ou não, é uma das coisas que eu levo para a minha vida: a música é uma linguagem universal. Ela não é uma linguagem só para pessoas que realmente tenham estudo sobre música ou estudo mais apurado sobre várias coisas para poder entender. Não, ela tem que ser uma linguagem que toca no coração

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de cada um, seja ele branco, negro, rico, pobre, independente disso. Tem que ser uma linguagem que atravessa mares e atravessa preconceitos entre outras coisas. (Estudante de canto e composição, Coral Juvenil GSM, 2015)

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