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Cadernos do CNLF, Vol. XVI, Nº 04, t. 1 – Anais do XVI CNLF, pág. 1033 ONTOLOGIA DA POSSIBILIDADE 181 : RESGATE FILOLÓGICO-FILOSÓFICO DA ONTOLOGIA HEBRAICA Paulo Cabral da Silva Junior 182 (UERJ) [email protected] Nos livros do Tanach 183 , o antropomorfismo, o antropopatismo, a mitologia, a simbologia, a profecia, a história, a linguagem e a língua de- senham uma infinitude inconfundível de eventos que explicitam o imagi- nário hebreu e a sua firme crença na Ontologia da Possibilidade 184 . Para resgatar este primitivo conceito de Movimento e Mudança Permanentes, enquanto fatores inerentes ao ser, o artigo fundamentar-se-á, basicamen- te, em uma das perícopes mais importantes da Torá 185 , no livro de She- 181 Uma versão deste trabalho foi apresentada no "IV Simpósio Nacional de Estudos Filológicos e Linguísticos", na Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, em 02 de abril de 2012; e publicado no suplemento on line da "Revista Philologus", do Círculo Fluminense de Estudos Filoló- gicos e Linguísticos - (CiFEFiL), em abril de 2012. 182 Estudante de Filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Uerj; autodidata no apren- dizado da língua e da cultura hebraicas; autor dos livros: “Lendas de um Coração” – Poesia em de- fesa do amor, e “Lendas de um Coração” – Poesia em defesa da igualdade; membro da Academia Cascavelense de Letras – ACL, Cadeira 25, no Paraná. (http://escritoralef.blogspot.com e http://escritortav.blogspot.com ) 183 תנ'' ך/ Tanach – Um acrônimo que abrange os três grandes grupos de livros canônicos do judaísmo: תורה/ Torá (Pentateuco), נביאים/ Neviim (Profetas), e כתובים/ Ketuvim (Escritos). Foram redigidos originalmente na língua hebraica (com alguns trechos em aramaico). Juntos correspondem ao que os cristãos denominaram, pejorativamente, de “Antigo Testamento da Bíblia”. Em meados do século II, a.EC, o Tanach foi traduzido ao grego (A Septuaginta – expressão oriunda do latim Inter- pretatio septuaginta virorum / tradução dos setenta intérpretes" – conforme a denominou Agostinho.). E, por volta do final do século IV, da E.C, Jerônimo traduziu o Tanach ao latim (A Vulgata – abrevia- ção de vulgata editio ou vulgata versio ou vulgata lectio / edição, tradução ou leitura de divulgação popular"). 184 O termo “Possibilidade”, apesar de fazer certa alusão inicial à “Ontologia da Mobilidade”, de Herá- clito, também pega emprestado o conceito de “Movimento” da Mecânica Quântica – a fim de de- monstrar que a mitologia hebraica, uma vez compreendida a partir dos textos originais do Tanach, torna-se demasiada relevante para o “resgate de uma tradição ontológica” que é capaz de encontrar eco e sustentação conceitual nos mais revolucionários campos da ciência moderna: desde a física nuclear à biologia molecular. 185 תורה/ Torá (Pentateuco), que engloba cinco livros: בראשית/ Bereshit (Gênesis), שמות/ Shemot (Êxodo), ויקרא/ Vaicrá (Levíticos), במדבר/ Bamidbar (Números), e דברים/ Devarim (Deuteronômio).

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    ONTOLOGIA DA POSSIBILIDADE181: RESGATE FILOLGICO-FILOSFICO

    DA ONTOLOGIA HEBRAICA

    Paulo Cabral da Silva Junior182 (UERJ) [email protected]

    Nos livros do Tanach183, o antropomorfismo, o antropopatismo, a mitologia, a simbologia, a profecia, a histria, a linguagem e a lngua de-senham uma infinitude inconfundvel de eventos que explicitam o imagi-nrio hebreu e a sua firme crena na Ontologia da Possibilidade184. Para resgatar este primitivo conceito de Movimento e Mudana Permanentes, enquanto fatores inerentes ao ser, o artigo fundamentar-se-, basicamen-te, em uma das percopes mais importantes da Tor185, no livro de She-

    181 Uma verso deste trabalho foi apresentada no "IV Simpsio Nacional de Estudos Filolgicos e Lingusticos", na Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, em 02 de abril de 2012; e publicado no suplemento on line da "Revista Philologus", do Crculo Fluminense de Estudos Filol-gicos e Lingusticos - (CiFEFiL), em abril de 2012.

    182 Estudante de Filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro Uerj; autodidata no apren-dizado da lngua e da cultura hebraicas; autor dos livros: Lendas de um Corao Poesia em de-fesa do amor, e Lendas de um Corao Poesia em defesa da igualdade; membro da Academia Cascavelense de Letras ACL, Cadeira 25, no Paran. (http://escritoralef.blogspot.com e http://escritortav.blogspot.com)

    183 '' / Tanach Um acrnimo que abrange os trs grandes grupos de livros cannicos do judasmo: / Tor (Pentateuco), / Neviim (Profetas), e / Ketuvim (Escritos). Foram redigidos originalmente na lngua hebraica (com alguns trechos em aramaico). Juntos correspondem ao que os cristos denominaram, pejorativamente, de Antigo Testamento da Bblia. Em meados do sculo II, a.EC, o Tanach foi traduzido ao grego (A Septuaginta expresso oriunda do latim Inter-pretatio septuaginta virorum / traduo dos setenta intrpretes" conforme a denominou Agostinho.). E, por volta do final do sculo IV, da E.C, Jernimo traduziu o Tanach ao latim (A Vulgata abrevia-o de vulgata editio ou vulgata versio ou vulgata lectio / edio, traduo ou leitura de divulgao popular").

    184O termo Possibilidade, apesar de fazer certa aluso inicial Ontologia da Mobilidade, de Her-clito, tambm pega emprestado o conceito de Movimento da Mecnica Quntica a fim de de-monstrar que a mitologia hebraica, uma vez compreendida a partir dos textos originais do Tanach, torna-se demasiada relevante para o resgate de uma tradio ontolgica que capaz de encontrar eco e sustentao conceitual nos mais revolucionrios campos da cincia moderna: desde a fsica nuclear biologia molecular.

    185 / Tor (Pentateuco), que engloba cinco livros: / Bereshit (Gnesis), / Shemot (xodo), / Vaicr (Levticos), / Bamidbar (Nmeros), e / Devarim (Deuteronmio).

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    mot186, captulo 3. E deter-se- anlise exegtica dos fragmentos 13 e 14, quando Moshe187 obtm respostas sobre a Mobilidade e Mutabilidade da prpria natureza divina o que contraria 20 sculos de tradio cris-t188.

    Em princpio, no verso 3.13, as principais verses bblicas em portugus apresentam a seguinte fala de Moshe: Qual o nome de-le?. Dito desta forma, soa como curiosidade, tipo de cumprimento, ou mera introduo ao dilogo. No original, a pergunta : Ma shimo189?. Isso quer dizer exatamente: O que o nome dele? / O que ele ?. Ape-sar de as tradues no estarem necessariamente equivocadas, ainda as-sim no fornecem o sentido ontolgico190 da indagao. Porque os nomes em hebraicos no eram escolhidos aleatoriamente, por motivos estticos, mas representavam alguma significao relevante essncia e a natureza da coisa em si. Ento, em outras palavras, Moshe queria apenas compre-ender o primordial: O que o Ser?.

    186 / Shemot Corresponde ao livro de xodo. 187 / Moshe o nome original de Moiss. 188 O texto original e a ontologia hebraica foram intencionalmente ignorados pela Igreja, que preferiu adotar a traduo da Septuaginta como principal referncia. A tradio crist tambm sacralizou a Ontologia da Imobilidade, de Parmnides e a incorporou ao seu prprio Deus transformando-a num dos principais dogmas do Novo Testamento, como base da teologia Catlica e Protestante. Po-rm, atribuir tal conceito de imobilidade ao Tanach configura-se num srio descaso exegtico e em anacronismo filosfico, conforme demonstra este artigo.

    189 - / Ma Shimo/ O que o nome dele? O sufixo (vav) no final da palavra (shem/nome) indica a terceira pessoa do masculino, no singular. Ainda hoje, os israelitas mantm a tradio de adotar nomes com real significado. Ento, mesmo em hebraico moderno, quando esta expresso usada no cotidiano: / ma shimch? / o que o seu nome?, usual simplificar a traduo para qual seu nome?. Mas quem conhece a lngua hebraica e ouve, por exemplo, a resposta: / Shimi Shemuel / Meu nome Samuel, compreende rapidamente que h um sentido mais profundo na resposta, porque Samuel um substantivo composto: / shimo / nome dele, e / el / Deus Ou seja: Meu nome O nome dele Deus. Poeticamente bvio o que est subentendido: meu nome no importa, mas o nome dele (aluso a quem importa) Deus como um testemunho pblico de f, humildade e submisso.

    190 Conforme a nota anterior, era natural a significao do nome associada a um evento histrico e seu contexto. Mas para que haja algum sentido em portugus, os nomes prprios do Tanach deveri-am ser traduzidos assim: Meu nome Curado por Deus ( /Rafael), meu nome Aquele que lutou com Deus (/Israel), meu nome Tirado da gua / ( /Moshe / Moiss), meu nome Barro-vivo, ou Tirado do barro, ou Vermelho ( /Adam /Ado), etc. Em /Shemot (xodo 3.13), a indagao busca sondar o que o nome revelaria de surpreendente sobre a natureza da e-xistncia divina. Portanto, deve-se interpretar o questionamento de Moshe diretamente sob a pers-pectiva ontolgica: O que significa o Ser?.

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    Para compreender o referido questionamento, faz-se necessrio visualizar um pouco do imaginrio hebreu e do seu estilo literrio. As-sim, justo transferir, inicialmente, a pergunta ao primeiro personagem da Tor: O que adam /ado?. O nome est longe de representar ape-nas um indivduo especfico ou nome prprio: em suas 555 aparies no Tanach, ele tambm indica o gnero humano e toda a humanidade. Eti-mologicamente, no entanto, adam o masculino da palavra ada-m191: algo como um montculo de terra frtil. Metaforicamente, a matria-prima da criao, que foi modelada e vivificada pelo Deus-oleiro, conforme sua imagem e semelhana . Tambm atravs da a-dam que o oleiro-adam traz luz os seus utenslios de cermicas, as argamassas, os frutos da lavoura e da pecuria, e as riquezas em geral. Analogamente, adam tornou-se um ser-vivo192, pensante, mutante, a-daptvel, com a infinita possibilidade de criar e de se recriar em todas as esferas da existncia.

    Adam seria apenas um dolo de barro inanimado, esttico e intil se no tivesse interiorizado e absorvido o divino movimento do vento193. Em princpio, apesar da inteligncia, ele tornou-se apenas um

    191 / Adam /terra no representa a mesma terra que / rtz (que aparece 2190 vezes no Tanach), apesar de sempre traduzi-las ao portugus com a mesma grafia e significado comum de terra. retz, geralmente, tem sentido de planeta; surge em oposio ao mar ou ao cu; ou como territrio, pas, regio. Em / Bereshit (Gnesis 2.5-9; 2.15,19; 3.19), adam aparece so-mente como terra frtil, cultivvel; terra do jardim do den; terra de onde brotam as rvores; de onde Deus cria tanto os animais quanto a humanidade. possvel que adam fosse um tipo de terra vermelha ou barro, porque dela tambm derivam as palavras: / odem (rubi), / adom (vermelho); e / dam (sangue). No livro de / Ieshaihu (Isaas 45.9) tambm fica evidenciado que o / cheresh (barro j cozido) vem de adam (terra/argila). Mas em suas 217 aparies no Tanach, adam, frequentemente, est associada fertilidade, criao e agricultu-ra. 192 Em / Bereshit / Gnesis 2.7 est escrito que adam recebeu a / nishmat chaim (flego da vida / sopro da vida / respirao) e ento tornou-se / nefesh chai (alma-vivente / ser-vivo). Ao ler /Vaikr (Levtico 17.11): / ki nfesh habassar badam (porque a alma da carne est no sangue.), pode-se compreender, numa hermenutica mais moderna, que quando adam recebeu o divino sopro da vida, isto vivificou todas as partculas de p / clulas, criou as veias e artrias, permitindo que o corao pulsasse o sangue com o ar /oxignio por todo o corpo / carne, mantendo-o na condio de ser-vivo.

    193 / Ruach / Vento, substantivo feminino. Aparece 363 vezes no Tanach. A mesma palavra uti-lizada para se referir ao Esprito de Deus, dos homens, da vida, dos animais, e da respirao. / Bereshit (Gnesis 1.2, 3.8, 6.3, 6.17, 7.15, 22; 8.1; 26.35; 27.27; 41.38); / Shemot (xodo 10.13; 31.3) / Bamidbar (Nmeros 11.17, 25, 26, 31); / Shemuel lef (I Samuel 16.14, 23; 18.10); / Melachim lef (I Reis 21.5, 22.22-24; 18.45; 22.21); / Melachim Beit (II Reis 2.9; 2.15, 16; 3.17; 19.7); / Divrei Haiamim lef (I Crnicas 5.26; 9.24; 12.19; 28.12); / Divrei Haiamim Beit (II Crnicas 9.4; 15.1; 18.20-23; 20.14; 21.16;

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    barro-vivo, com alma, sem nada que o diferisse completamente dos demais animais. At que, em Bereshit194 2.22,23, aparecem, pela primei-ra vez, as palavras ish e ish195, quando o casal passa a ser reconhe-cido como homem e mulher. Foi ali que, repentinamente, por meio do fogo196, que adam tambm se tornou um ser de luz197. Assim, o fo-go-divino contido no Ish e na Ish alimentado por meio da / nesham (respirao / flego) e pela / Ruach (vento / esprito) de Deus. E isto completa a composio dos quatro elementos da natureza humana: gua e terra na formao do corpo, ar e fogo na composio da alma ou esprito todos potencialmente dinmicos e mutveis, agentes e reagentes, semelhana do seu criador.

    36.22); / Ester (Ester 4.14); / Kohlet (Eclesiastes 1.6; 3.19, 21; 12.7); / Iv (J 4.9; 4.15; 7.7, 11; 6.4; 19.7; 27.3; 37.10); / Tehilim (Salmos 143.4; 147.18); / Ieshaihu (Isaas 26.9; 41.16; 42.5; 59.21); / Iechezkel (Ezequiel 3.14; 36.27; 37.5; 37.9; 39.29); / Daniel (Daniel 2.3; 4.9; 5.11, 14; 7.2, 15); / Iol (Joel 3.1, 2); / Zachari (Zacarias 5.9, 6.8; 12.10); / Malachi (Malaquias 2.15; 2.16). 194 / Bereshit / Gnesis. 195 / Bereshit / Gnesis 2.23: / Lezot ikre ish ki meish lakacha-zot. / Cham-la-ei de Ish (mulher) porque do Ish (homem) esta foi tomada. Segundo a tradio judaica, a palavra (esh / fogo) recebe a primeira letra do nome de Deus: (iod / i) e forma a expresso (ish) para representar o adam recm animado pelo sopro da vida. Em seguida, a palavra (esh / fogo) recebe a ltima letra do nome divino: (he) e cria a forma feminina (ish) para nominar a criatura recm extrada da carne de adam. Ento, na unio destes opostos manifesta-se a palavra / I (forma simplificada do tetragrama sagrado / / Ihwh, que o nome de Deus). a mesma expresso encontrada no nome do profeta / Elihu / Elias ( / El / Deus + / I / o nome de Deus = Deus I ou I Deus). Esta palavra aparece no total de 45 vezes no Tanach, tal como em sua primeira apario, em / Shemot (xodo 17.16); ou na forma composta - / hallu-I / aleluia (louvado seja I), conforme / Tehilim (Salmos 115.18). 196A palavra / esh (fogo) aparece 144 vezes no Tanach. E tambm / or / ur (luz / fogueira), que s vezes sinnimo de fogo, aparece 158 vezes. De um modo geral, so fortes cones que se referem natureza de Deus, sua apario, sua ira, ou aos holocaustos queimados em sua ado-rao. Algumas das principais referncias: / Bereshit (Gnesis 1.3,4); / / Shemot (xodo 3.2-6; 24.17); / / Devarim (Deuteronmio 4.33, 36; 5.24-26; 9.3); / / Shemuel Beit (II Samuel 22.9); / / Ieshaihu (Isaas 2.5; 10.17; 29.6; 30.27,30,33; 45.7; 58.8,10; 60.20); / / Irmihu (Jeremias 4.4; 5.14; 21.12; 23.29); / / Iechezkel (Ezequiel 1.4-7, 13,14, 27,28; 8.1-3; 10.6,7; 21.31; 22.20-22; 22.31; 28.14-18); / / Tehilim (Salmos 4.7; 18.9-15; 21.10; 27.1; 43.3; 44.4; 97.3; 104.2,3-9); / / Daniel (Daniel 2.22; 7.9,10; 10.6). 197Segundo os Manuscritos de Qunran ( ), os essnios, que faziam parte de uma faco judaica, acreditavam firmemente que Deus Luz e que eles eram os Filhos da Luz. Note-se que desde os primrdios, as nicas formas de luz / iluminao conhecidas eram a fogueira, lamparina, raio, relmpago, incndio, sol, e Deus todos concebidos como manifestaes diferentes do fogo. Ento, mais apropriado traduzir: Deus Fogo; e o homem Filho do Fogo.

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    A anlise minuciosa das mltiplas ideias mticas, contidas apenas no nome adam ou no nome de qualquer outro personagem do Tana-ch possibilita o resgate de inmeros conceitos, paradigmas e axiomas primitivos sobre a existncia. A mitologia hebraica sempre esteve povo-ada pelos quatro elementos, que so representaes naturais de movi-mentos imprevisveis e transformaes continuadas, tal como num evolu-tivo salto quntico: o Uno-incriado tirou da gua, a terra; da terra, o ho-mem; do homem animado pelo ar e pelo fogo, a mulher; dos opostos homem-mulher, a unidade em outro ser; da combinao de cada novo ser com outro novo ser, milhares de infinitas possibilidades: tnicas, biol-gicas, simbiticas, sociais, polticas, religiosas, intelectuais, cientficas, culturais, filosficas e cosmolgicas.

    Inclusive, segundo a tradio judaica da Kabal198, a expresso shem / nome j carrega, em sua prpria unidade, elementos distin-tos e pulsantes. Porque o ideograma shim () representa o fogo; o mem199 (), a gua; subentendendo-se que cada ser, passvel de receber um nome, tambm possua o antagonismo200 como sinergia primordial da vida, visto que a combinao das diferenas atua como fora propulsora de todo movimento. Porque o fogo e a gua, juntos, so geradores de possibilidades harmonizantes e conflitantes, que se contradizem e se complementam, se ajudam e se atrapalham, se impelem e se repelem, se potencializam e se anulam forando a continuada fluidez da vida. En-to, enquanto agentes e reagentes, eles promovem e sofrem simultane-

    198 / Kabal / Tradio mstica do judasmo. Tambm se dedica a decodificar os subtextos ocultos nas composies de certos ideogramas do Tanach.

    199 A letra mem (), quando escrita no final de uma palavra apresenta uma forma diferenciada, denominada /mem sofit / mem final, e fica assim:. 200 O conceito de fogo e gua, enquanto fatores coexistentes e interdependentes, explica porque a literatura hebraica poetiza tantos dualismos: homem e mulher, guerra e paz, pecado e santidade, criao e destruio, amor e dio, sabedoria e tolice, corpo e esprito, bem e mal, luz e trevas, bn-o e maldio, vida e morte... Tais elementos, em si prprios, tambm apresentam infinitas varia-es e nuanas: uma fagulha pode acender fogueiras, ou incendiar florestas; tal como a gua pode saciar a sede ou provocar dilvios. Alm disso, um tem o poder de modificar o estado do outro: a a-o do fogo pode aquecer e evaporar a gua, sua ausncia pode congel-la; a gua pode temperar e extinguir o fogo; e os dois juntos podem ser complementares na provocao de novos fenmenos, sejam bons ou ruins. Outro fator relevante que a gua existe para a terra (corpo), assim como o fogo existe para o ar (esprito) o que significa dizer que, implicitamente, a expresso shem com-bina novamente os quatro elementos no ser. Tais pensamentos tambm coincidem com a ontologia de Herclito: Tudo se faz por contraste; da luta dos contrrios nasce a mais bela harmonia (Frag-mento 08).

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    amente, e alternadamente, e em diferentes intensidades aes imprevi-sveis, sujeitas s mltiplas variaes aleatrias no tempo-espao e fora dele, tal como postulam modernamente o Princpio da Incerteza, de Heisenberg; e o Efeito Borboleta, de Edward Lorenz.

    Assim tambm possvel exemplificar o contraditrio contexto do protagonista Moshe: Ele aquele que foi tirado da gua201 () e poupado da morte; depois contemplou a sara que pegava fogo202 (), mas no queimava; e, em seguida, falou diretamente com Deus203 () sem ser consumido esta exata ordem de inusitadas possibilidades forma a palavra Moshe204 (). O ideograma he (), posto ao final da palavra shem / nome (), tal como tambm foi acrescentado aos nomes de Abrao205 e Sara, um sinal da sagrada aliana com o divino. E no coincidncia que o nome de Moshe, lido ao contrrio, seja hashem206 () o que sugere outra ambiguidade hebraica: Deus como o homem e o homem como Deus, sendo um semelhante ao outro.

    201 / Shemot / xodo 1.22; 2.1-10. 202 / Shemot / xodo 3.1-3. 203 / Shemot / xodo 3. 4-6 204 O nome tambm vem da raiz verbal masha (tirar, extrair), porque ele foi tirado da gua; ou de mashe (dvida, emprstimo), porque ele foi emprestado prpria me. Ambos os fatos esto narrados em / Shemot / xodo 2.5-10. 205 Em / Bereshit / Gnesis17. 1-5, Deus chama /Avram (Abro) e troca seu nome para /Avraham (Abrao). Em 17. 15-19, muda o nome de (Sarai) para (Sara). Observa-se que, em ambos os nomes, foi acrescentada a principal letra (he) do nome de Deus ( / "Ihwh"), simbolizando, dentre outras coisas, um pacto, ou memorial da presena divina neles. Os cristos traduzem-no, equivocadamente, como Jeov, Jav, Iav. Ao observar o nome divino, Ihwh (), percebe-se que a primeira letra o iod (), que tem som de i (em hebraico nunca existiu letra alguma com som de j). Parte da confuso por conta da transliterao feita do alemo (Jaw), cujo j tem o som de i para eles. Os brasileiros, por desconhecerem tal fato, lem-no como se fosse o j em portugus. As outras vogais sequer existiram no alfabeto, que estritamente consonantal. Devido tradio de no pronunciar o nome de Deus em vo, os sons voclicos foram totalmente esquecidos. Assim, o restante da pronncia inventado por meio de um tardio hibridismo lingustico com a palavra / adonai. 206 - L-se Hashem, que significa o nome; ou hasham, que o l (aquele que est l frente, adiante, no no-lugar). A letra he (), no incio da palavra, indica o artigo definido. A expres-so Hashem, no entanto, s comeou a ser usada para se referir a Deus entre os sculos IX a XV, pelos / Rishonim os primeiros rabinos e estudiosos do judasmo a comentarem o / Talmud. Hoje os judeus utilizam-na, informalmente, a fim de no usarem o nome de Deus em vo.

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    Por isso Moshe, enquanto bom hebreu, inquiriu a Deus: O que voc? ele esperava desvend-lo por meio da revelao do nome: sua origem, sua essncia, sua natureza, seu construto, sua potencialidade, sua personalidade, seu destino, seu atributo maior... pergunta, caberia per-feitamente uma resposta usual: fogo consumidor207; Deus de Avra-ham, Itzchak e Iakv208; Senhor dos exrcitos209; ou alguns dos muitos ttulos atribudos a ele no prprio Tanach. Mas Deus no endossou ne-nhuma ideia teolgica, teleolgica, antropolgica, mtica, idealstica, t-nica, moral, religiosa... Tampouco se dogmatizou em alguma absolutista e delimitadora verdade, que pudesse ser integralmente definida, compre-endida, imobilizada, canonizada e reproduzida.

    Ao contrrio: Percebe-se, pela resposta, em Shemot 3.14, que Deus tirou a discusso do instante em questo e a lanou duplamente frente, adiante num vcuo de infinitas possibilidades interpretativas num momento onde, talvez, nem Moshe, nem qualquer hermeneuta, ja-mais pudesse ver, ouvir, ou legitimar respostas definitivas e imutveis sobre a natureza dele. E, tal como numa pequena frmula-quntica que seja capaz de apontar o tamanho e a diversidade do universo ele apre-sentou a mais misteriosa, complexa, sinttica e potica frmula-verbal j concebida: eheie asher eheie210 /serei o que serei211/ ou estarei o

    207 / Devarim /Deuteronmio 4.24 diz assim: / Ki Ihwh elohecha esh ochla / Porque Ihwh, seu Deus, fogo que consome. Em Devarim 9.3 confirma: - / Ki Ihwh elohecha hu hover lefanecha esh ochla / Porque Ihwh, seu Deus, aquele que passa diante de voc, fogo consumidor.

    208 /Elohei Avraham elohei Itzchak Elohei Iakv / Deus de Abrao, Isaque e Jac ( / Shemot / xodo 3.15). 209 / Ihwh tzvaot / Senhor dos Exrcitos. H centenas de casos como estes em: / Shemuel lef (I Samuel 1.3; 4.4); / Tehilim (Salmos 24.10; 89.9); / Ieshaihu (Isaas 6.3, 5).

    210 / eheie asher eheie O verbo ser / estar aparece duplamente conjugado na primeira pessoa do singular, no modo incompleto. As tradues crists, comprometidas apenas com a interpretao fundamentalista da ontologia de Parmnides, com a Septuaginta e a Vulgata Latina, traduzem a expresso eheie asher eheie ao tempo presente (eu sou o que sou), o que consiste num grave equvoco, por 5 motivos elementares: 1) No hebraico clssico nunca existiu o tempo ver-bal no presente; 2) Mesmo o hebraico moderno tendo adotado a conjugao verbal no presente, ela ainda no existe para o verbo ser / estar; 3) Nas outras 39 vezes em que aparece o verbo eheie no Tanach, os exegetas cristos o traduzem ao portugus como eu serei / eu estarei compro-vando que no correto conjug-lo no tempo presente ou passado; 4) No existe justificativa lingus-tica, gramatical, contextual ou cultural para traduzir apenas o versculo 3.14 para o tempo presente, exceto por causa da inquestionvel influncia da ontologia parmenidiana levada a seus extremos; 5) A ontologia hebraica, do Movimento, aproxima-se mais de Herclito, sendo diametralmente oposta

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    que estarei212 revelao capaz de velar novamente a sua infinita e atemporal pluralidade de possibilidades existenciais.

    Segundo a traduo literal feita pela professora Izabela Bocayu-va213, o fragmento da Septuaginta, desde o incio, apresenta-se corrompi-do: Eu sou aquele que .214. Foi traduzido desta forma para o grego

    e incompatvel quela adotada pela Igreja Catlica, que dogmatizou a Deus como um Ser plenamen-te imvel e esttico.

    211 A verso judaica, bilngue, com base no referido texto massortico, traduz ao portugus da seguinte forma: E disse Deus a Moiss: Serei O que serei. E disse: Assim dirs aos filhos de Israel: Serei en-viou-me a vs (Tor A Lei de Moiss, de 2001, da Editora e Livraria Sfer em parceria com o Templo Israelita Brasileiro Ohel Iaacov, e com o Centro Educativo Sefaradi em Jerusalm). A Bblia Hebraica, por David Gorodovits e Jairo Fridlin, de 2006, Editora e Livraria Sfer, tambm traduz exatamente da mesma maneira que a anterior. Mas por falta de uma palavra, em portugus, que me-lhor corresponda ao sentido original da expresso eheie, sem precisar fazer uso de imensas expli-caes no rodap, ento, realmente, a traduo mais prxima ao sentido original ainda o verbo serei/ estarei, na primeira pessoa do singular, no tempo futuro questo que ser devidamente esclarecida mais adiante.

    212 O verbo / lihiot / pode ser traduzido como ser ou estar, o que significa basicamente a mesma coisa para os hebreus. Se algum diz fui verde, ento no se tratava de um verde perma-nente, mas de um estado temporrio. Se outro diz: serei verde, porque inda no verde, eviden-ciando a mudana do ser. E ningum diria sou verde, porque alm de tal condio absolutista pa-recer inconcebvel ao hebreu, sequer h o verbo no tempo presente. Para eles, ser e estar so igualmente temporais e transitrios. Ento, mesmo que fosse correto mas no traduzir o frag-mento como sou o que sou, ainda assim isto teria o mesmo sentido que estou o que estou. Ou seja: longe de representar uma realidade plena e esttica, continuaria simbolizando o movimento e a mudana do ser. O mesmo raciocnio se observa em relao ao verbo ter, que no existe em he-braico: Eles utilizam a partcula / iesh li / existe para mim (transmitindo a ideia de que no momento est comigo, sob meus cuidados), porque no consideram a possibilidade de se apropri-arem definitivamente de algo. Tais peculiaridades indicam que o pensamento, a lngua e a cosmovi-so hebraica no percebem nada como fixo, imvel, imutvel, definitivo. Por isso, o Deus dos he-breus sempre se manifesta instvel como o fogo e a gua, ou voltil como o ar.

    213 Atualmente professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Uerj. membro do PEC Polo de Estudos Clssicos do Estado do Rio de Janeiro. Coordena o NOESIS Laborat-rio de Estudos em Filosofia Antiga da UERJ (www.noesisfilosofia.com.br). Faz parte do projeto CA-PES/COFECUB atualmente em andamento entre o Centre Lon Robin de l'Universit de Paris IV Sorbonne e o Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense. Pertence ao Corpo Editorial da Revista Sofia (UFES), da Revista Anais de Filosofia Clssica (Laboratrio OUSIA/UFRJ) e da Revista taca (UFRJ). Tem experincia na rea de Filosofia, sobretudo Filosofia Antiga, com n-fase em Pr-socrticos e Plato.

    214 / E Deus disse a Moiss: Eu sou aquele que . Disse mais: Assim dirs aos filhos de Israel: aquele que me enviou a vs. (Traduo: Izabela Bocayuva). A verso catlica, a Bblia de Jerusalm, tambm traduz no tempo presente: Deus respondeu a

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    num presente esttico e absoluto porque era inconcebvel a ideia do ser no futuro, ou do ser em movimento. Sculos antes Parmnides j havia consolidado seu pensamento: o ser que ser, ele ainda no-. No poderia o ser no ser, porque isto fere o princpio da identidade, im-plicando numa contradio lgica. No entanto, no ocorreu implausibili-dade ontolgica por parte dos hebreus, mas sim uma negligncia215 exe-gtica: No pensamento hebreu, o verbo no modo imperfeito216 tradu-zido inadvertidamente para o futuro jamais esteve associado ques-to cronolgica. O verbo mostra apenas o ser, o deslocamento do ser, a ao continuada e inacabada do ser que j existe e continua existindo: semelhana de um caminhante caminhando, um criador criando, um cr-culo circulando, um ser sendo. Diante desta singularidade lingustica, e da pseudocontradio filosfica, a resposta divina foi traduzida ao grego no tempo presente: sou aquele que conceito idntico ao de Parm-nides: o ser . Mas, para a Igreja, esta declarao transmite a ideia de um ser absolutamente pleno, distante, esttico e imutvel transforman-

    Moiss: eu sou aquele que sou. E ajuntou: Eis como responders aos israelitas: (Aquele que se chama) eu sou envia-me junto de vs.. E a verso protestante, Almeida Corrigida e Revista Fiel, a-presenta a mesma verso: E disse Deus a Moiss: eu sou o que sou. Disse mais: Assim dirs aos filhos de Israel: eu sou me enviou a vs.. E nenhuma outra tradio crist traduz ao portugus em conformidade com o texto original, em hebraico, ou precisaria desconstruir o dogma helnico sobre a natureza divina. 215 Por culpa de inmeras questes deficitrias como esta, o / Talmud narra: O dia da tradu-o foi to doloroso quanto o dia em que o Bezerro de Ouro foi construdo, pois a Tor no poderia ser acuradamente traduzida. Alguns rabinos disseram que as trevas cobriram a Terra por trs dias quando a Septuaginta foi escrita.. Jernimo, aps ter comparado os manuscritos da Septuaginta com manuscritos em hebraico, afirma: Seria tedioso agora enumerar as muitas adies e omisses que a Septuaginta fez (...). Os judeus geralmente riem quando ouvem nossa verso (...). Mas co-mo ns devemos lidar com os originais em hebraico nos quais estas passagens e outras como estas esto omitidas, passagens to numerosas que reproduzi-las ir requerer livros sem conta? (Carta LVII de Jernimo). O pastor Joo Ferreira de Almeida usou as lnguas originais para sua traduo. Porm, ele mesmo, aps a publicao da bblia, em 1637, fez uma lista de dois mil erros nela encon-trados a maioria por conta da comisso holandesa, que procurou harmonizar a nova traduo com a verso j existente. Tudo isto confirma a necessidade de traduzir o Tanach com base nos originais, sem curvar-se aos interesses ideolgicos da tardia tradio crist. 216 Conforme o iderio hebreu, o ser no est no passado, nem no presente, nem no futuro. Ele al-go em movimento e suas aes esto inteiramente desconectadas do sentido cronolgico. Por is-so, o tempo verbal est vinculado apenas : 1) ideia de uma ao completa aquela que foi to-talmente executada e concluda (modo perfeito); 2) ideia de uma ao incompleta o mesmo que ao continuada, que ainda est sendo realizada, que no foi plenamente completada (modo imper-feito). Porm, devido ao processo de intensa ocidentalizao da hermenutica dos textos hebreus, introjetou-se a concepo cronolgica nos dois tempos verbais primitivos, misturando-os, confun-dindo-os, e traduzindo-os, popularmente, com o inapropriado sentido temporal de passado, presente e futuro.

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    do-o num paradigma contraditrio vida, natureza, e ao Deus hebreu; e tornando-o cada vez mais distante do prprio ser parmenidiano.

    Sob outra perspectiva, percebe-se que o Deus hebreu no escolheu um substantivo ou adjetivo para definir sua natureza, mas optou pelo verbo217. Por trs vezes consecutivas, reafirmou ser ele prprio uma a-o viva em si mesma: fluda, dinmica e renovvel. Ele se entrega en-faticamente ao continusmo da incompletude e se transmuta pelo eter-no movimento, ao ponto de tornar-se insondvel, imprevisvel e incom-preensvel visto que apenas uma ao completa pode ser seguramente conhecida e avaliada. Alm disso, ele tambm no afirmou: estou sendo o que sempre fui para forjar uma idntica reproduo do prprio eu, numa suposta invariabilidade. O Deus hebreu no poderia revelar-se co-mo uma ao completada, passada, acabada, porque isto representaria o apagar da chama e o fim da existncia. Consequentemente, tomando por base apenas o referido fragmento hebraico, ou qualquer outra percope do Tanach, no possvel extrair ou sustentar a doutrina da imobilidade e imutabilidade do ser.

    A frase demonstra, explicitamente, que o ser est sendo apenas aquilo que ele mesmo est sendo, de acordo com sua vontade e com aquilo que sua natureza permite que ele seja. Est sendo igual a si pr-prio, em comparativo somente a ele mesmo, numa aceitao plena e ir-restrita da sua condio existencial. Est sendo em si mesmo, no pr-prio construto, sem que haja nenhum outro ser, modelo, referencial ou paradigma anlogo a ele o que o torna nico. Ele est sendo uma e-terna possibilidade em movimento, tal como tudo o que criou. Por ou-tro lado, identifica-se como o Deus dos antepassados de Moshe, garan-tindo certa conservao do ser: porque algo da existncia sempre perma-nece, enquanto algo sempre acrescentado e tirado durante o movimen-to.

    A mitologia hebraica concilia, em si, um pouco das ontologias de Parmnides e Herclito: Por um lado, se assemelha ao conceito de ser, num presente permanente, porque o verbo quase igual ao gerndio, em portugus. Mas no exatamente o presente, e, muito menos, imvel, pleno, ou imutvel. Mas uma ao contnua sem passado e sem futuro e una, como uma msica tocada nota a nota, sem que jamais seja inter-

    217 Qualquer verbo em qualquer tempo e em qualquer lngua j demonstra ao, movimento, mudana.

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    rompida. Ou como o fogo que sempre o mesmo fogo e, no entanto, nunca igual a si mesmo ou a qualquer outra coisa alm dele. Um misto de movimento e permanncia, de pluralidade e unidade, de diferena e igualdade, de ser e no ser, Alm disso, o ser que est sendo apenas si mesmo gerando a si mesmo, modificando a si mesmo e no revela o que ele est sendo ou em que ele est se transformando, caracteriza-se como algo intrinsecamente complexo e imperscrutvel. E o que mais instigante razo: O Ser sequer insinua se as coisas existentes fora dele criao, vida, e movimento so, de fato, uma slida realidade ou torpe iluso.

    O Tanach ensina que o mundo criado e forjado seja pela reali-dade ou pela iluso apresenta o ser como algo-vivo, vibrante, fludo. Apenas o dolo218 considerado plenamente imvel o que indica si-nal de impotncia e, por isso, os hebreus condenam a sua fabricao. Fabricar dolos o mesmo que forjar conceitos, formas ou valores por meio da imaginao e da arte. como modelar o ouro, o barro, as ideias, ou as palavras para tentar reproduzir uma cpia vulgar da existncia. Al-go como petrificar e venerar somente o instante, o adjetivo, o detalhe, ou a iluso do ser artifcio que o reduz a uma condio inanimada e nfi-ma. Por isso a mitologia hebraica insiste numa ontologia completamente inversa, a de que adam foi modelado como um dolo para receber o sopro divino e alcanar a condio de ser: com vida, respirao, percep-o, sentimento, pensamento, antagonismo, movimento, ao, mutao, imprevisibilidade, possibilidade semelhana do Deus-vivo219.

    Ento, o hebreu, em sua observao empirista e concreta da vida, construiu sua mitologia pautada numa espcie de Filosofia da Nature-

    218 / Atzav / dolo. Veja: / Tehilim (Salmos 115. 2-9; 135. 13-18); / Bamidbar (Nmeros 12.4-9); / Hosha (Osias 13.2); / Iv (J 10.7-13); / Havakuk (Habacuque 2.19). O homem foi feito semelhana de Deus. O que significa dizer que, antropomorficamente, o Deus dos hebreus tambm semelhante ao homem e contrrio ao dolo: Ele cria, fala, escuta, anda, visita, cura, guerreia, acompanha, promete, abenoa... num movimento eterno.

    219O ttulo aparece em trs formas distintas, mas com o mesmo significado: 1) / Elohim-Chaim / Deus-vida; 2) / El chai / Deus-vivo; 3) / Elohim chai / Deus-vivo. Referncias: / Devarim (Deuteronmio 4.34); / Iehosha (Josu 3.10); / Shemuel lef (I Samuel 17.26, 36); / Melachim Beit (II Reis 19.4, 16); / Tehilim (Salmos 42.2; 84.2); / Ieshaihu (Isaas 37.4, 17); / Irmihu (Jeremias 10.10; 23.36 ); / Iechezkel (Ezequiel 5.11; 14.16, 18, 20; 16.48; 17.16, 19; 18.3; 20.3); / Daniel (Daniel 6.20, 26); / Hosha (Osias 1.10); / Zechari (Zacarias 2.9).

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    za220. Somente por isso conseguiu compreender que o Deus que se faz representar pelo fogo, pelo vento, pelo verbo, pela criao, e pela vida; que fomenta todo tipo de transformaes e possibilidades inovadoras; que impe o movimento como expresso primordial do universo; no po-de ser considerado imvel como os dolos inanimados. E esta conclu-so221 transcende qualquer discusso meramente filolgica ou filosfica: O no-movimento dos seres representa a falncia absoluta dos organis-mos biolgicos, ideolgicos, sociais, cosmolgicos e divinos constitui-se na morte definitiva de toda a existncia, ou no fim de toda iluso.

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    220 Tambm um fato curioso que justamente os hebreus: Moiss, Jesus, Freud, Marx, Durkhein, Spinoza e Einstein tenham promovido o movimento de inusitadas possibilidades conceituais, cau-sando insuperveis revolues no campo das concepes humanas.

    221 A Ontologia do Movimento e da Mudana, que surgiu, primitivamente, h mais de 2.500 anos, foi to bem elaborada a partir das leis macroscpicas da natureza, que agora tambm ressurge com a imensa plausibilidade terica de cincias como a Geografia, Estatstica, Meteorologia, Cosmologia, Mecnica Quntica e a Biologia Molecular. Paradigmas como o Princpio da Incerteza, a Teoria da Relatividade, e a Teoria das Cordas tm revitalizado e ampliado o conceito de Movimento ao ponto de inspirar e motivar fsicos renomados, como Fritjof Capra, Frank J. Tipler, Amit Goswami, a busca-rem, inclusive, um novo elo entre a teoria e a mtica, entre a fsica e a mstica.

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