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NOCLIDES JUSTINO ALVES

Itabuna / Ilhéus - Bahia2008

Memórias do submundode um afro-brasileiro

OLHOSAZUIS

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© 2007 por Noclides Justino AlvesTodos os direitos desta edição reservados à

VIA LITTERARUM EDITORAAv. Francisco Ribeiro Júnior, nº 198

Edifício Atlanta Center, sala 606Centro - 45600-921 - Itabuna, Bahia, Brasil

www.vialitterarum.com.br www.quiosquecultural.com.bre-mail: [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha catalográfica : Elisabete Passos dos Santos CRB5/533

A474 Alves, Noclides Justino. Olhos azuis : memórias do submundo de um afro brasileiro / Noclides Justino Alves. – Itabuna/Ilhéus : Via Litterarum, 2008. 112p. ISBN: 978-85-94893-41-1

Inclui entrevista com o autor.

1.Euclides – Autobiografia. 2. Ex-presidiário – Brasil– Depoimento. I. Título. CDD – 920.71

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da lei n 9.610/98.

RevisãoJorge de Souza Araujo

Editoração EletrônicaVia Litterarum

Projeto Gráfico, Diagramação e CapaMarcel Santos

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Fios desencapados

Por vezes, topamos com embaraços des-concertantes em nossas travessias com a expres-são escrita. Este é um desses momentos, que espero partilhar com meus escassos leitores, se não para escapar ao desconforto, ao menos para penitenciar-me pelas exigências da isenção que aspira à solidariedade do entendimento.

Pede-me (aliás, obriga-me, por coação afetiva, esse Quixote riograndense de Flores da Cunha, definitivamente plantado no solo árido das iniciativas culturais no sul da Bahia) Agenor Gasparetto uma apresentação para este Olhos azuis: memórias do submundo de um afro-brasileiro. Como coação não se discute — re-bela-se contra, ou cumpre-se —, eis-me aqui lavrador em considerações analíticas, cuja iden-tidade nem sempre coincide com a do autor do presente livro.

Li-o previamente e alertei o editor para al-gumas de suas lacunas. Sugeri uma entrevista com o autor, pretendendo ouvi-lo sobre deta-lhes e omissões, com o fim de complementar fatos, idéias, datas, personagens e descrições insertas em seu depoimento. Participei da con-versa inicial, que resultou fraudada pela incom-petência nossa (minha e de Gasparetto, inep-

APRESENTAÇÃO

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tos ante mecanismos escabrosos no manuseio de um simples gravador portátil). A primeira experiência (ainda que frustrada) revelou am-pliações de sentido que, se registradas adequa-damente, muito teriam contribuído para uma melhor fixação do texto de Noclides Justino Al-ves acerca de trechos lacunosos de sua narrativa. A entrevista seguinte, feita à base de perguntas e respostas escritas, perdeu muito da força da-quela instância preliminar, cujas expectativas a idéia de conversar com o autor inicialmente prenunciara.

O senso da verdade objetiva e da sensibili-dade dedutiva ante o texto de outrem aponta-me a necessidade da análise isenta, em respeito à razão, ainda que ancorando-me no respeito ao trabalho alheio. Neste sentido, tenho que dizer que o livro que irão ler é, sob muitos aspectos, lacunar e incompleto. Relevem-se os pruridos autorais, escudados em razões emocionais, sen-timentais e familiares, conforme demonstram algumas respostas escritas (sem o tempero da interlocução diligente e atenta), apostas à en-trevista, aqui publicada ao final do texto. Olhos azuis: memórias do submundo de um afrobrasilei-ro invoca um direito elementar de depoimento, confissão e denúncia que, aos poucos, vai se di-luindo em peripécias rocambolescas, tornando a obra um misto de verdade memorial corajosa e arrojada e fantasia ficcional inapropriada a obras do gênero.

Antes de tudo, porque promete (e não executa) revelações restauradoras de uma vi-são parcial deflagrada a partir do golpe militar

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de 1964, que se abateu sobre pessoas comuns, modificando-lhes o perfil pessoal e psicoló-gico, incorporando no protagonista de Olhos azuis sensíveis alterações de comportamento e identidade ideológica. Preso injustamente e condenado em justiça sumária e sem processo, a personagem deste relato confessional vê seu universo social e psicológico completamente estraçalhado, forçado a fugir por conta de epi-sódio fortuito e a ingressar na senda do crime contra a ordem pública, convivendo, a partir daí, com um formulário ativo de vida margi-nal, incluindo assaltos a bancos e outras ações periféricas, desfechados desde o planejamento a escaladas criminosas, rituais e existenciais cada vez mais subterrâneas em favelas paulistanas, Porto Alegre, Montevidéu e até Itabuna, na Bahia.

Curiosamente, quando a narrativa abando-na as escarpas da memória e flui por eventuais lampejos de ficcionalidade, ganha substância e estatutos de verossimilhança. Os encontros amorosos e sentimentais do protagonista com suas parceiras inspiram uma comoção próxima da verdade absoluta, verdade típica dos sopros de uma existência comovente, honesta e fecun-da. São bem mais verazes esses relatos que as descrições de assaltos a banco, corridas vertigi-nosas pelas ruas de São Paulo, ou as miméticas simulações de identidade dos bandidos com as ações do movimento subversivo comandado por Marighella ou Lamarca, que certas passa-gens do livro fazem supor em cópia e supos-ta parceria. Onde Olhos azuis ganha especial

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relevo é na descrição do motim e chacina na Ilha Anchieta, ação repassada em episódios de crueldade tão mais evidentes quanto mais se aproximam de uma vivência pessoal que o au-tor se recusa a admitir como própria.

Embevecido com uns Olhos azuis de que não dispõe, mas acredita ter, o autor deste livro sonega o melhor das matérias testemunhais a que sua narrativa memorial recorre e poderia apresentar, elementos contributivos que ilustra-riam flagrantes ausências da história contem-porânea. Nada ficamos sabendo sobre infância, adolescência, identidade e formação do prota-gonista-narrador, nem sobre seus pais, irmãos, amigos, lugar de nascimento, fixação em São Paulo, ingresso no submundo, destino final das outras figuras marginais com as quais conviveu etc. Na entrevista de respostas escritas, justifica as lacunas como sendo defesas ante juízos fami-liares que pretende preservar no presente. Fica claro que as marcas no corpo patenteiam trau-mas físicos e psicológicos do autor facilmente perceptíveis numa conversa honesta, como a que se verificou na primeira entrevista, fora dos registros fonográficos.

Se a auto-referencialidade, freqüentemen-te auto-compassiva, inscrita no livro suprime uma maior verossimilhança e virtude narrativa, Olhos azuis não deixa de representar testemu-nho valioso porque sincero e, sobretudo, ho-nesto, ainda que insubsistente, eventualmente superficial, lacunar e insatisfatório a uma ins-tância crítica mais rigorosa. A verdade confes-sional, mesmo panorâmica, tenho certeza, foi

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determinante para que a obra de Noclides Jus-tino Alves ganhasse – como ora ganha – a aco-lhida da Via Litterarum e a generosa repercus-são da letra impressa. Cabe agora ao leitor – a quem designo como o intérprete mais ajustado a decifrações – deduzir se tenho ou não razões para considerar esta apresentação, no mínimo, também incompleta.

Era o que tinha a declarar, salvo melhor juízo.

Jorge de Souza Araujo

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SUMÁRIO

PARTE I13

PARTE II19

PARTE III39

PARTE IV97

ENTREVISTA105

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PARTE I

Nenhum escritor escreveu tão bem quanto a vida. Tudo começou na derrubada do presi-dente da República, João Goulart, dando-se início à Revolução no país e na minha vida tam-bém. No dia da deposição, os que tomaram o poder decretaram Estado de Sítio. Quem saísse sem documento para a rua era preso e autuado com base em uma lei feita por eles chamada de vadiagem. A punição era um ano de prisão, um absurdo que não merece comentários.

Tinha me alistado e meus documentos es-tavam no Exército. Saí normal de casa sem saber da tal lei. Estava no ponto de ônibus quando uma patrulha parou e começou a revistar todos os que estavam ali e me revistaram também. Pe-diram os meus documentos e eu lhes expliquei que estavam no Exército, mas não quiseram ex-plicações e disseram que esse assunto era com o chefe. Levaram-me para um tal de D.I. (Depar-tamento de Investigações), um prédio grande no centro de São Paulo, usado como triagem de todas as pessoas presas no território nacional.

Dias depois da prisão, minha mãe, através do patrão, me localizou no D.I., mas teve como resposta que eu fui preso em flagrante de vadia-gem já com a nota de culpa na mão. Dias depois

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chegaram com uma lista de presos que seriam transferidos e meu nome estava nela. Iríamos sair em um cubículo coletivo, um rabecão, fei-to para comportar quarenta presos, mas havia mais de noventa para serem levados e todos teriam que entrar. Fui um dos últimos e não cabia mais. Fui socado ali dentro. Não dá para descrever como estava lá dentro, o grau de ca-lor que fazia. Logo que o rabecão saiu do D.I., sabíamos que iríamos para o presídio da rua da Alegria, que passou a funcionar como depósito de presos. Durante a viagem, os presos estavam inquietos. Três deles, próximos da porta, toma-ram uma iniciativa: apoiavam-se em mim e em outro preso e começaram a bater com os pés na porta. Outros, lá no fundo, faziam batucadas para disfarçar as pisadas na porta. Aos poucos, o ferrolho foi cedendo. Bastavam mais algumas pisadas e a porta iria abrir. Aconteceu. No mo-mento, passávamos em frente do mercado ve-lho. A porta cedeu. Fui empurrado para fora do rabecão, no meio da rua, com outros. Quando me vi no chão, levantei-me rapidamente para não ser atropelado pelos carros. O rabecão parou. Uma correria para todos os lados. Os policiais não sabiam a quem pegar. Confesso que fiquei muito assustado. Alertaram a escolta para saírem ao nosso encalço.

Ao ser preso, havia dado o endereço da minha casa. Por isso, não podia voltar pra lá. Após a fuga, fui para a favela da Vila Pruden-te, a única favela na época com concentração de bandidos. Quando consegui fazer o contato com a minha mãe, soube que o Exército estava

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me procurando. No dia seguinte à fuga, os jor-nais estamparam em suas manchetes uma farsa, dizendo que dois carros fecharam o rabecão e obrigaram o motorista a abrir a porta e deram fuga aos presos. Colocaram também fotos dos mais perigosos bandidos, agora fugitivos e a minha, também. “Mas como, se eu nunca ti-nha sido preso?”, perguntei-me. Para o lado que fugi, outro preso também fugira. Jorginho. Não muito longe do local da fuga, ao entrar em uma rua, vimos uma senhora. Parou o carro para consertar algo. Deixou a porta aberta, com a chave na ignição. Em segundos, Jorginho en-trou no carro e disse para mim:

– Entra aí. Entrei rápido no carro. Quando a mulher

olhou, nós já estávamos saindo em disparada. Pela primeira vez participei de um roubo. Em pouco tempo, estávamos no bairro do Ipiranga, próximo à favela. Jorginho, morador da favela do Prudente, conhecia o Ipiranga, bairro no-bre de São Paulo, em que se situa o museu e o rio Ipiranga, esse mesmo onde Dom Pedro I deu o Grito de Independência. Jorginho rou-bava carros lá também. Ele me perguntou se eu tinha para onde ir. Respondi que não. Para a casa de minha mãe não podia voltar. Jorginho me levou para a favela em que morava. Lá che-gando, levou-me para um barraco, o de sua tia. Pediu para que ficasse lá. Tomei um banho, o que mais queria naquele momento. Não sabia nem quanto tempo estava sem tomar. A tia de Jorginho me arrumou uma roupa, a de um seu outro filho, morto em um assalto. Quando ain-

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da jantava, Jorginho apareceu e perguntou-me sobre o que pretendia fazer, agora que estava so-zinho, sem ter para onde ir. Disse-lhe que não sabia ainda o que fazer. Jorginho, com muita experiência como motorista, prestava seus ser-viços aos bandidos da favela para trocar tiro com a polícia. Disse-me que tinha uma saída: me entregar para a polícia e tentar explicar tudo o que aconteceu. Meus documentos, a condi-ção de procurado. Mesmo assim, ficaria preso porque tinha sido autuado em flagrante, sem documentos e, agora, um foragido da polícia. Talvez não viesse a ser condenado, mas iria ficar preso, aguardando julgamento e teria que arru-mar advogado. Não iria mais servir ao Exército, já que o próprio me prendeu e me colocou jun-to de criminosos, me igualando a eles. Disse-lhe que pretendia ficar na favela. Afinal, não tinha pra onde ir. Jorginho leu o beabá da favela para mim e o que iria acontecer daí em diante. Dis-se que a polícia iria fazer batidas na favela e se me achasse, poderia até ser morto e que todos iriam olhar pra mim como um bandido. A fuga do rabecão foi as duas da tarde. Antes das onze da noite já estava participando de uma reunião na favela. Ao entrarmos em um barraco onde seria a reunião, Jorginho foi cumprimentado e tratado como o seu líder. Fui cumprimentado pelas pessoas que estavam participando. Perce-bi que oito delas estavam também no carro da fuga. Também eram da favela.

Recebemos uma visita inesperada de um se-nhor que passamos a chamar de Capitão. Disse que queria falar com Jorginho e Promessinha.

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Trazia recado do Rio de Janeiro, de Roberto, o Pancho. Colocaram-lhe esse apelido porque, mesmo sendo paulista, parecia um mexicano. Apresentei-me como foragido do Exército. Contei minha história. Contou, então, sobre a morte do Pancho, morto em um tiroteio com a polícia. Contou-nos também sobre a sua mu-lher Eugênia, que também acabou morta.

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PARTE II

Capitão começou falando da fuga da peni-tenciária Frei Caneca, do Pancho e seus amigos. Dois desses amigos tinham ligação com os sub-versivos da Ilha Grande, formavam uma grande quadrilha. Depois de alguns assaltos, compra-ram um sítio no estado do Rio. Capitão tinha uma idéia formada da atitude que havia toma-do e nunca se arrependeu. Ele tinha o perfil da bandidagem que freqüentava a favela da Vila Prudente, a única que existia na época da dita-dura em São Paulo, capital. Vila Prudente fica no Ipiranga, o lugar mais histórico do Brasil, quase centro da grande São Paulo, saída para o ABC. Na época, a prefeitura da capital iria canalizar o córrego Ipiranga, mas a obra parou por muitos anos. Os tubos de cimento foram jogados atrás da favela e era por onde os margi-nais fugiam quando a polícia invadia a favela. Correndo por entre eles, escapavam das balas. Os tubos mediam dois metros de altura. Não tinha como acertar quem corria entre eles.

Foi quando em noite de cerco aos subver-sivos em um sítio, no Rio de Janeiro, Pancho morreu. Quando ainda era vivo, falou com o Capitão sobre sua vida processual, Eugênia e sobre a favela da Vila Prudente. Este foi o mo-tivo que levou o Capitão para lá. Ele conhecia

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o perfil dos elementos que a freqüentavam, pela convivência que teve com Pancho. Ele estava acostumado a comandar nas forças armadas. Líder nato de uma facção subversiva e terroris-ta. Nem um psicólogo poderia conhecer mais o ser humano do que ele.

Depois do encontro com o Capitão, toda a favela e até mesmo a família de Pancho ficou sabendo como ele morreu lá no Rio de Janei-ro. Sua família não morava na favela, mas foi alertada para não comentar com os vizinhos, porque, para a justiça, ele era um foragido da ditadura, morto em tiroteio com a polícia da repressão. Ele iria para uma cova coletiva, sem identificação, em um cemitério clandestino e particular. Depois que o Capitão contou a tra-gédia do Pancho no Rio, voltou para a cidade do Rio de Janeiro.

Pancho. Seu nome verdadeiro, Roberto Cieto. Paulistano, família classe média. Pan-cho, aparência de mexicano, razão desse ape-lido. Mulato de boa aparência, olhos verdes, fazia muito sucesso com as mulheres. Por ter aprendido a dirigir carro ainda jovem, com seu pai, começou a freqüentar a favela e se apaixo-nou por uma das meninas de lá, a mais linda da favela. Só que havia um problema. Ela era menor de idade e virgem.

Jornais e revistas o transformaram em ce-lebridade. Fizeram até filme, tudo para com-bater a ditadura. Para os marginais, a ditadura já funcionava. Criaram o Esquadrão da Morte. Se prendesse um cidadão sem os documentos, já entrava com um ano de prisão. Quem o fos-

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se, em vinte e um dias, tinha que se virar para quebrar o flagrante de vadiagem. Só a trajetó-ria de Pancho daria um Livro. Por ser o único que sabia dirigir qualquer carro, roubava carros para se divertir. Foi um passo curto para en-trar no crime. A namorada da favela, Brasilina, tinha um irmão, Nico. Lindíssima, loira, de olhos verdes, um corpo lindo, ainda em for-mação em seus dezesseis anos. Nico, apelido, virou celebridade do crime, Inimigo Número Um. Caçado vivo ou morto pelo Esquadrão da Morte. Pancho também era menor de idade. Na época, Nico já estava no crime. Muito mais esperto que Pancho, notou que Roberto só ia à favela por causa de Brasilina. Estava morrendo de amor e tesão pela menina. E seu amor era correspondido. Ela havia ficado fascinada por ele também. Nico abriu a guarda para os dois. Sabia que Brasilina e Pancho não agüentariam ficar sozinhos. Então, armou um encontro com os dois e deu o flagrante. Queria os dois dei-tados na cama, Pancho deflorando Brasilina. Nico saiu do quarto e puxou a porta. Queria que Pancho terminasse o que já tinha começa-do. Mais tarde, Nico conversou com eles e fa-lou que, por enquanto, ninguém poderia saber o que aconteceu, nem a sua mãe.

No dia seguinte, Nico ofereceu dinheiro de um assalto que iriam fazer. O assalto seria feito em uma grande indústria, que pagava no dia 10 do mês. Quem sabia de todo o esquema era um soldado da Força Pública, que iria ajudar a praticar o assalto. Também ajudariam dois sol-dados da escolta do tesoureiro, que sairiam do

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banco. Estavam tramados com o soldado que, junto com os bandidos, iriam abordá-los na chegada à fábrica e tomar o malote que vinha com um dos policiais. O tesoureiro carregava uma pasta e só ele não sabia que se tratava de uma emboscada. Já existia esse tipo de esquema entre nós e a polícia. Nico foi direto ao assunto com Pancho. Falou sobre o assalto e como se-ria, sobre os policiais que iriam fazer parte do assalto e sobre o dinheiro que seria dividido em partes iguais se ele dirigisse o carro no assalto.

Pancho deve ter pensado na linda Brasili-na e o quanto gostava dela e o que isso pode-ria custar à sua vida. Pancho fez também suas exigências. Queria saber sobre todas as pessoas que participariam. Iria roubar um carro, mas não queria ninguém por perto. Acertaram tudo para o dia 10. Tudo estava certo, só aguardando o dia e a hora. Na hora certinha, Pancho che-gou com o carro, roubado em São Bernardo. 70% das empresas da capital paulista faziam pagamento no dia 10 de cada mês. Pancho, por ser a primeira vez que participava de um assal-to, estava tranqüilo. Encostou o carro no fun-do da favela e todos foram num silêncio total para o local. De onde estávamos dava para ver a entrada do banco. No horário marcado, os três saíram do banco. Um dos militares, ao sair, olhou para o local onde estávamos e fez um sinal dizendo que estava tudo certo. Tão logo passaram à nossa frente, os seguimos. Quem di-rigia o carro pagador era o tesoureiro. Ao des-cer, foi envolvido pelos bandidos. De armas nas mãos, pegaram o malote de dinheiro e fizeram

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com que eles entrassem no escritório. Os ban-didos entraram no carro e foram embora. Após praticar o assalto, foram para uma garagem va-zia, de um dos militares, não muito longe do local. O dinheiro foi dividido em seis partes. Estava combinado que o carro do assalto iria ficar com os militares lá mesmo na garagem. Despediram-se. Pancho e Nico pegaram um táxi e foram embora. Esta foi a porta de entra-da do Pancho para o crime. Poderia até parar de roubar se empregasse seu dinheiro. Esse garoto, tendo como cunhado um dos líderes da fave-la, apaixonado pela moça mais linda, apesar de desejada por todos os bandidos, mas sem dar bola para ninguém, e quem ousasse mexer com ela poderia até morrer, entrou no crime e não mais saiu. Pancho se tornou o líder com maior influência na quadrilha. Piloto número um da favela. Comprou um carro e passaram a sair para roubar carros no carro dele.

Pancho cresceu muito rápido no crime. Saiu do primeiro ano, para um vestibular, de-pois para a faculdade do crime. Dono da mu-lher mais bela da favela. Pancho e o cunhado Nico passaram a integrar várias quadrilhas com armas pesadas e duas grandes preocupações, o Esquadrão da Morte e a ditadura. Foi neste cli-ma que Pancho entrou para o crime, em uma época difícil. Havia ainda o Esquadrão. Espec-tro de morte rondando na noite. Foram muitos os assaltos, muitos roubos de carros, homicí-dios, mortes de dois ladrões que roubaram, que mataram na frente de muitas pessoas. Suspeito da morte de militares, num cerco que a polícia

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fez na favela, Pancho foi preso. Faltavam dois me-ses para ser de maior e o forçaram a assinar muitos inquéritos, dizendo ser de maior e não iria dar em nada. Foi para o R.P.M. (Recolhimento Provisó-rio de Menores), a Febem de hoje. No dia seguin-te, estava na favela, havia fugido.

Nico havia alugado uma casa fora da fa-vela. Levou Pancho e Brasilina. Pancho voltou a ocupar o mesmo lugar, piloto número um das quadrilhas. A rotina de roubos e assaltos continuou pelos quatro cantos de São Paulo. Às vezes, alguns jornais de esquerda falavam do Esquadrão da Morte.

Pancho nunca mais foi preso, até que em um assalto, num pagamento de uma fábrica, Nico e Pancho foram baleados, dois compa-nheiros mortos. Nico, mesmo baleado, conse-guiu fugir. Pancho foi preso. O assalto à fábri-ca tinha vazado. Havia dois anos que Pancho vinha sendo procurado pelo D.I. Ele fez um acordo com a equipe de policiais que estava em sua captura por assaltos e roubo de carros. Assi-nou muitos inquéritos.

Pancho ainda estava se recuperando dos ferimentos. Provavelmente iria ser transferido para a penitenciária, mas ainda estava em uma cela junto com vários presos, em liberdade. Pan-cho sabia que estava condenado perpetuamente. Seu único recurso era fugir. Notou que haviam trocado os carcereiros. Os novos não o conhe-ciam. Um preso, mendigo, iria ser posto em li-berdade. Pancho explicou a situação para ele, que concordou. Decorou o nome do pai e da mãe do mendigo. À noite, quando vieram chamar os

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que iriam ser postos em liberdade, ao chamarem o nome do mendigo, Pancho se apresentou, res-pondeu às perguntas dos carcereiros e saiu tran-qüilamente, pegou um corredor, desceu o terceiro andar, ganhou a porta da rua e foi embora.

Pancho, após essa fuga espetacular do D.I., foi procurar sua mulher Brasilina. Um parente do Pancho, advogado, sabendo de toda a sua situação processual, aconselhou-o a sair de São Paulo, se possível do Brasil. Brasilina, não quis ir para o Rio. Disse-lhe que iria depois. Pancho despediu-se do cunhado, da mulher e do filho. Foi para a estação do Braz e pegou um trem para o Rio de Janeiro. Sua fuga do D.I. não foi divulgada na época da ditadura. Os erros e falhas do sistema faziam de tudo para esconder. Na mesma noite, porém, deram falta dele.

Em pouco tempo no Rio, Pancho já havia montado uma nova quadrilha. Tinha encon-trado alguns foragidos de São Paulo. Alguns cariocas e um gaúcho, por nome de Rubinho, formavam a quadrilha.

Pancho não havia perdido o costume de roubar carro sozinho. Em pouco tempo, era líder de quadrilha no Rio de Janeiro. Não morava no morro, só o freqüentava.

Um dia, passeando na praia de Ipanema, Pancho viu deitada na areia uma moça branca, de olhar perdido no horizonte. Pancho pediu para se sentar ao seu lado, ela permitiu. Notan-do que ele era paulista, Eugênia ficou encan-tada com Pancho, mulato, olhos verdes e boa aparência. Eugênia tivera uma desilusão amo-rosa e nunca mais quis um novo amor.

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Pancho despediu-se da moça e foi embora. Passados alguns dias, passeando pelo mesmo local, Eugênia estava no mesmo lugar. Cumpri-mentaram-se e passaram a conversar assuntos va-riados. Eugênia contou-lhe que era filha única de um juiz de execuções criminais. Pancho, vendo a sinceridade da moça, revelou realmente quem era, sua situação processual, em São Paulo.

Eugênia, gostando da sinceridade do seu amigo desconhecido, passou a encontrá-lo e a fre-qüentar o apartamento de Pancho, em Copacaba-na, na rua Belford-Roxo. Eugênia apaixonou-se perdidamente por Pancho, entregando-se a ele de corpo e alma. Era o primeiro amor de sua vida.

Eugênia levou Pancho para conhecer sua mãe, que gostou muito das maneiras dele. Não é comum um afro-brasileiro ter os olhos verdes. A mãe de Pancho era loira e o pai, neto de an-golano, nascido em São Paulo.

Eugênia mudou de vez para o apartamento da Rua Belford-Roxo, em Copacabana. Brasi-lina mandou uma carta para Pancho, dizendo que estava grávida e morando com um bandido na favela e que, a qualquer dia, levaria o filho dele ao Rio de Janeiro para vê-lo. Pancho deu a carta para Eugênia ler. A quadrilha liderada por Pancho passou a ser uma das mais atuantes no Rio de Janeiro na época. Passou a financiar fugas nos presídios, incluindo a Ilha Grande, em que ficavam presos políticos. A ditadura e os Esquadrões da Morte são os culpados de ladrões comuns se unirem e usar a inteligência e coragem contra a sociedade, contra a lei.

A quadrilha liderada por Pancho era meio

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suicida e parecia que não tinha medo de mor-rer. Agia friamente por mais perigoso que fosse o acontecimento. Era de puxar o bonde e ser o primeiro a dar ou receber um tiro. Eugênia estava grávida de oito meses. A desilusão amo-rosa de Eugênia deveu-se ao fato de seus pais lhe terem arrumado um casamento com um rapaz rico, filho de um promotor. O casamento durou menos de um ano. O rapaz tinha pro-blemas de ereção e não conseguia manter uma relação sexual normal com a mulher. Este foi o motivo que fez o marido de Eugênia cair nas drogas, todo tipo de psicotrópicos, depois co-caína. Eugênia, querendo ajudar o marido no sentido sexual, submetia-se a algumas fantasias sexuais, mas só tinha coragem depois de beber uns coraçõeszinhos azul-claro. Depois achou um vidrinho do marido com um pozinho branco. Cheirou. Cocaína. Seu marido trans-formou-a em uma viciada.

Eugênia, ingênua, caiu na armadilha que o marido armou. Quando caiu na realidade, já era tarde. Viciada em drogas. Seus pais ficaram sabendo. Conseguiram interná-la em uma clínica para desintoxicação. Conseguiu se recuperar. Veio o divórcio. Quando Pancho surgiu em sua vida, estava totalmente recuperada. Com o nascimento de seu filho com Pancho, seus pais ficaram con-tentes e não queriam se separar do neto.

Na época da ditadura, a polícia prendia quem não tinha documentos e quem tinha também. Rubinho, um gaúcho de Porto Alegre, foragido da casa de correção da capital gaúcha, era do bando de Pancho. Foi preso para averi-

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guação. A polícia deu um pau-de-arara, tortura-ram bastante, até ele não agüentar mais. Assinou uma dezena de assaltos no Rio de Janeiro e deu como líder da quadrilha, Pancho, e a oficina em que a quadrilha se reunia e o encontro que tinha com Pancho. Pancho, sem desconfiar de nada, foi para o encontro com a quadrilha. Estavam plane-jando um assalto no Joquey Clube. Havia uma pessoa lá de dentro que estava dando os detalhes do assalto. Pancho havia convidado vinte bandi-dos de alguns morros, além dos bandidos de sua quadrilha, que eram nove.

Quando Pancho estacionou seu carro, a uma certa distância da garagem e ia descer, des-confiou de três “garis” varrendo a frente da ga-ragem. Fechou a porta do carro, acelerou e saiu em disparada. Todos os policiais que estavam no cerco atiraram e conseguiram acertar o carro e o motorista. Pancho, baleado, bateu o carro. Os policiais que o perseguiam cercaram o carro e prenderam o fugitivo que havia sido baleado. Recebeu quatro tiros pelo corpo.

Pancho foi direto para o hospital peniten-ciário Frei Caneca. Nos jornais do Rio foi a man-chete do dia. Os jornais de São Paulo abriam a manchete dizendo da fuga misteriosa de São Pau-lo e sua intensa vida criminal. Já estava condena-do a 100 anos de cadeia em São Paulo.

Eugênia caiu em depressão quando soube da prisão de Pancho. Mesmo sabendo que nada poderia fazer, foi com um advogado visitá-lo. Muito choro marcou a visita na enfermaria do hospital penitenciário. Pancho pediu que Eu-gênia esquecesse o advogado. Essa parte ele iria

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cuidar. Pancho já estava quase recuperado dos ferimentos. Eugênia não faltava uma visita.

Quando, na favela da Vila Prudente em São Paulo, soube-se da prisão de Pancho no Rio de Janeiro, na Frei Caneca, mandaram uma pessoa ir visitá-lo, no Rio, para ver em que po-deriam ajudá-lo em uma fuga.

Eugênia, pelo grande amor que sentia pelo pai de seu filho, caiu em depressão e veio a re-caída. Já fazia dois anos que havia deixado as drogas. Ela sabia onde conseguir drogas. Não precisava sair de Copacabana para comprá-las.

No começo, Pancho não percebeu nada, havia um parlatório onde o preso mantinha re-lações sexuais com a mulher. O preso passava todo o tempo pensando no momento de prazer que iria passar com a mulher. Não tinha tempo para verificar outras coisas que não fossem sexo. Pancho, com alguns companheiros, tinha um plano de fuga em andamento.

O motivo de Eugênia ter entrado em es-tresse e depressão, ocasionando sua morte, per-manece desconhecido. Até hoje não se sabe se ela se jogou ou caiu do quarto andar. A hipótese da polícia é que ela não se jogou, porque o seu filho dormia no quarto. Se ela fosse se matar teria levado o seu filho para a casa da mãe.

Pancho, ao saber da morte da sua mulher, caiu em desespero. Como tinha uma fuga em andamento, passou a alimentar a esperança de conseguir a liberdade. O plano de fuga era perfeito. Nico, um dos líderes da favela, ainda considerava Pancho como um cunhado. Man-dou um dinheiro para abrir uma conta no Rio.

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Somente o advogado poderia sacar o dinheiro que seria usado para a fuga.

Muitos anos atrás, uns presos que traba-lhavam na alfaiataria, que fazia uniformes para outros presídios, iniciaram um túnel que sairia da alfaiataria, perfazendo cinqüenta metros, passava por baixo da muralha e saindo na rua.

Pancho conheceu um preso antigo que es-tava há quinze anos preso e estava no presídio na época da fuga frustrada. Foi descoberto o tú-nel e os presos foram todos para a Ilha Grande. Na época, o coroa, como era chamado, traba-lhava na manutenção, no presídio, e foi escala-do pela diretoria para aterrar esse túnel. Segun-do ele informou para Pancho, ficava dormindo dentro do túnel, que aterrou apenas uns quinze metros dos trinta e cinco metros que os presos haviam cavado. Pancho mandou o advogado dar um dinheiro para a família do coroa, que se prontificou em ajudá-lo na fuga. Pancho, junto com os companheiros, só tinha que cavar quin-ze metros, porque dos trinta e cinco metros o coroa só tinha aterrado quinze. A terra estava ainda fofa e o restante já estava aberto. Exis-tia, no fundo da alfaiataria, um poço artesiano, era lá que o coroa iria jogar a terra do túnel. Pancho e seus oito companheiros de fuga tra-balharam na alfaiataria. Pancho e os seus com-panheiros chegaram à conclusão de que seria impossível iniciar o túnel sem que o mestre da alfaiataria não percebesse a movimentação. Eles teriam que correr o risco de abrir o jogo com o mestre da alfaiataria. Sabiam que ele morava no morro. Teriam que abrir o jogo com ele.

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Só um iria falar. Mediu as palavras. Come-çou fazendo uma ameaça velada a ele e à famí-lia. Em seguida, ofereceu um dinheiro, dizendo que estavam sendo financiados pela guerrilha, que, após a fuga, iriam integrar a guerrilha e lutar contra a ditadura no país, que a guerrilha já sabia o endereço dele no morro.

O mestre da alfaiataria pediu um dia para pensar. Vendo que não tinha outra saída, a res-posta foi “sim”. Pancho pediu o número da conta do mestre e pediu para o advogado depositar uma quantia em dinheiro para o mestre da alfaiataria. Iniciou, então, a escavação do túnel.

O segredo da fuga era absoluto. O co-roa, que trabalhava na manutenção do presídio, não causava estranheza mexendo no poço arte-siano. Desencaixou a tampa e jogava a terra só depois que os presos eram recolhidos para as celas. O tempo passava e tudo estava correndo bem. Com um mês de escavação, o túnel já es-tava bem adiantado.

Só podiam escavar de dia. Depois de qua-renta dias, fizeram uma medição e verificaram que já estavam embaixo da muralha. Mais dois metros e poderiam começar a subir para ganhar a rua. O túnel foi planejado por um estudante de engenharia, que não errou em seus cálculos.

Pancho e seus companheiros de fuga co-meçaram os preparativos da maior fuga da pe-nitenciária Frei Caneca. Tudo preparado para a fuga. Essa só poderia ser de dia, na hora do ex-pediente. Era necessário amarrar o mestre da al-faiataria, para não cair suspeita contra ele. Nico vinha de São Paulo com o seu carro para ajudar

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o cunhado na fuga. Uns bandidos do Rio iriam também com um carro roubado ajudar na fuga e dar uns tiros nos guardas da muralha se fosse necessário.

Tudo marcado. Pancho fez um mapa onde Nico iria estacionar o carro, para não ter proble-mas. Teria que estacionar quase na esquina da rua Heitor Carrilho, que termina na Frei Caneca. Tudo marcado para uma segunda-feira. Iriam participar da fuga e ir para a oficina na segunda. Tudo preparado. Faltava apenas uma casquinha para terminar o túnel. A oficina da alfaiataria abria o expediente às oito horas da manhã.

Nico, junto com o marido de Brasilina, seu novo cunhado, sete e quarenta da manhã, já esta-va estacionado no lugar combinado, na rua Hei-tor Carrilho, quase esquina com a Frei Caneca.

Na oficina, havia uma norma. Quando es-tavam fazendo faxina, fechavam-na e ninguém entrava nem saía. Na segunda-feira marcada para a fuga, iniciaram uma lavagem na ofici-na. Fecharam a porta, amarraram o mestre e começou a fuga. Pancho foi o primeiro a sair. O carro dos bandidos do Rio estacionou qua-se em frente ao Instituto Félix Pacheco. Nico viu quando Pancho e três elementos viraram a esquina. Ele desceu do carro e fez sinal para seu ex-cunhado. Saíram rapidamente do local. Por sorte, na hora da fuga, estavam trocando o plantão da muralha. Os bandidos do Rio não precisaram dar tiros nos guardas. A fuga só foi percebida dez minutos depois.

Nico deixou os foragidos no lugar combi-nado. Imediatamente, viajou de volta para São

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Paulo, junto com o marido de Brasilina. Na mesma noite daquela segunda, os fo-

ragidos da penitenciária se encontraram para festejar a fuga e planejar um assalto simultâneo que vinham tramando.

Um dos foragidos foi preso roubando um carro para a célula a que pertencia. Como era primário e estava sem documentos, deu o nome de um irmão paraplégico. Como foi flagrante, mandaram direto para a Frei Caneca. Era o professor de matemática, um terrível inimigo da ditadura. O professor apresentou o Capitão aos amigos foragidos.

Pancho pediu ao Capitão seis fardas do Exército. O Capitão pediu um tempo para ar-rumá-las. Enquanto aguardavam as fardas, fi-caram detalhando o assalto ao Banco do Brasil. Dias depois do encontro com o Capitão, as far-das foram entregues ao professor que iria dirigir um dos carros do assalto.

Na ditadura, as forças armadas estavam divididas, mas poucos tinham coragem de opi-nar, ou falar contra o regime.

Algumas quadrilhas em São Paulo e no Rio de Janeiro já vinham praticando alguma ação com fardas das forças armadas para confundir. Todo bandido comum é um revolucionário, sem ideologia, com organização e disciplina. São terroristas também.

Depois das fardas, marcaram o dia do assalto. A intenção de Pancho e dos demais companheiros era não chamar atenção das au-toridades para os foragidos da penitenciária. Queriam que as autoridades pensassem que fo-

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ram os subversivos.O Banco do Brasil tinha cinco militares

na segurança. Policiais fardados não gostam de trocar tiros com outros fardados. Ulisses sabia de tudo do Banco e do gerente. Sabia que na sua casa tinha um filho de seis anos.

O gerente chegava no banco às nove horas e vinte minutos. Pancho iria usar dois carros. Um com Ulisses e mais três bandidos iria direto para a casa do gerente, dois iriam ficar na casa com a família do gerente. Ulisses e mais um bandido, com o gerente, iriam para o banco. A um quarteirão do banco estaria no aguar-do deles para chegar juntos. Na ditadura, era normal um carro particular cheio de militares. Ninguém desconfiava.

Ulisses, que era muito pontual, chegou três minutos atrasado. O gerente, ao entrar no Banco, iria chamar o chefe da segurança e dizer que éramos subversivos, que sua família estava em mãos dos bandidos, para entregar as armas, ime-diatamente. Foram desarmados. Junto com Pan-cho e Ulisses, o gerente foi para a tesouraria. Fo-ram trancados rapidamente. Recolhidas as barras de ouro e o malote com o dinheiro, junto com o gerente, bateram em retirada. O grupo de Ulisses levou o gerente que, posteriormente, foi deixado em sua casa e sua família libertada.

Pancho, com saudade de seu filho, na cer-teza de que a mãe de Eugênia sabia da fuga, telefonou-lhe e marcou um encontro no local da praia de Ipanema, onde conhecera a filha.

As fotos que saíram nos jornais a respeito da fuga na Frei Caneca não tinham nada a ver

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com a sua atual aparência. Deixou crescer o ca-belo e cavanhaque. Seu filho e sua avó não o re-conheceram. Pancho havia conversado muito pouco com a mãe de Eugênia. Não sabia que possuía idéias claras com relação à ditadura. Conversaram bastante. O que ela achava in-crível é que Pancho não usava drogas. Pancho pediu o número da conta bancária, iria fazer um depósito. Haviam derretido as barras de ouro. Pancho deu o valor de umas barrinhas de ouro para depositá-lo na conta dela, para ela e o garoto. Pancho despediu-se do filho que já começava a entender alguma coisa. A mãe era linda. Eugênia tinha uma beleza envolvente. Pancho despediu-se dizendo que depois telefo-naria para eles.

Através do professor, Pancho e os demais amigos deram uma parte do dinheiro para a cé-lula. Os foragidos da Frei Caneca passaram a integrar a guerrilha urbana. Era o perfil deles. Fugiram da Frei Caneca pela liberdade. Já en-frentavam pena de morte imposta pelo Esqua-drão da Morte, criado por eles lá, para combater ou exterminar com o crime e a corrupção, que começava a tomar corpo dentro do sistema, ao ponto de um ministro da Justiça ter o seu nome envolvido em contrabando de pedras preciosas do solo brasileiro por malas diplomáticas.

Em um quartel, no Rio de Janeiro, quinze homens usando farda do Exército o invadiram. Nove subversivos e duas mulheres que estavam em uma relação de aventura que ainda estava para acontecer. O comandante desta missão foi morto em confronto com a polícia de São Pau-

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lo. Pertencia à área política.Depois que a guerrilha urbana deu aquele

ataque fatal na ditadura, seqüestrando o embaixa-dor de um país “amigo”, a ditadura do Brasil pas-sou a ser mais eficiente, fizeram uma integração nacional. Cada capital organizou um comando que atacava em conjunto: polícia civil, militar e as três forças armadas. O comando de São Paulo chamava-se Operação B. Seus membros eram os mais cruéis com os subversivos e com os ladrões comuns também, que enfrentavam choque, pau-de-arara, para não entregar os amigos. Tinham medo de cair nas mãos do Esquadrão, mas não de enfrentá-lo a bala na rua.

Bandidos comuns tinham mais medo da operação-B que do Esquadrão da Morte que ma-tava. A operação-B torturava antes de matar. Ti-nha ligação com a Interpol, policia internacional. Tinha a ficha de todos os bandidos internacionais e nacionais mais procurados. Pancho estava nessa lista. Eles achavam que havia ligação.

O governo da ditadura, pressionado por for-ças ocultas, exigiu a prisão ou morte dos elemen-tos que praticaram aquela audaciosa missão.

A operação teve uma informação que no estado do Rio de Janeiro tinha um sítio, que era uma colônia de férias, com o nome de ABC. Não havia registro com aquele nome na investigação feita pela operação-B. Concluíram que o sítio era uma célula comandada pelo braço armado da revolução. O pessoal da inteligência da operação tinha certeza que no assalto do Banco do Brasil tinha dedo da guerrilha por causa das fardas, mas executado pelos foragidos da Frei Caneca.

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Havia mandato de captura de Pancho que, além de foragido, estava condenado a 100 anos de prisão por dois latrocínios, foragido da pe-nitenciária Frei Caneca do Rio de Janeiro. Com este dossiê do Pancho, a operação-B chegou no Rio de Janeiro com missão de captura ou matar todos que estivessem no sítio. A Operação-B de São Paulo, junto com a polícia do Rio, forma-ram um só comando para atacar o sítio. Sabiam que, entre mulheres e crianças, havia umas trin-ta pessoas. Era esta a informação. Cercaram o sítio de madrugada, pegaram os vigias de sur-presa, mas, ao se aproximarem mais da casa, foram vistos. Começou o tiroteio, que durou a madrugada toda. Houve muitas tentativas de furar o cerco. Todas foram em vão. A última foi de Pancho e dois companheiros de fuga. Foram atingidos por dezenas de tiros. Vieram a morrer na tentativa de escapar. O comando avançou e invadiu as casas do sítio, fazendo algumas pri-sões. Descobriram um porão camuflado onde prenderam algumas pessoas.

O saldo do tiroteio foi trágico. Quando amanheceu, começou a contagem dos mor-tos. Dizem, ninguém tem certeza, que o total de mortos foi quatorze pessoas, mas só foram contabilizados os mortos que estavam no sítio. Segundo dizem, viram quatro corpos de inva-sores sendo retirados. Quatro crianças e cinco mulheres foram presas, além de seis subversi-vos. Foi apreendida uma grande quantidade de armas e munições. Aquela era uma célula-mãe. Entre as mulheres presas, uma filha de um mili-tar graduado, fiel ao regime, filho da ditadura.

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PARTE III

Continuou o Capitão: “Amigos, prestem atenção para as palavras que vou dizer. Hoje eu sou a pessoa mais procurada do território nacio-nal. Procuram-me, não para prender, mas para matar. Eu tenho a obrigação de combater esta situação. Fugi do quartel com alguns compa-nheiros sabendo que daríamos nossas vidas pela pátria. Nós somos os verdadeiros patriotas. Se-guimos Joaquim Xavier, que implantou o germe da luta pela liberdade, já inspirado pelo rei Zumbi dos Palmares na sua luta pela libertação do jugo. ..... nós não éramos mais considerados crimino-sos comuns. Vários de nós estavam sendo dou-trinados pelos subversivos. Jorginho, líder da favela, escolheu dez elementos incluindo-me, por motivos que nunca fiquei sabendo. Disse-me que me escolheu para o lugar de tenente da quadrilha. Não foi pelos meus olhos azuis, sobre os quais, mais na frente, falaremos, bem como sobre minha origem egípcia. Jorginho sabia que eu não tinha experiência no crime, mas tinha determinação, dizia ele. As armas enviadas pelo Capitão foram distribuídas entre a quadrilha. Jorginho recebeu um recado do Capitão informando sobre um trabalho e que aguardássemos. Numa noite, sem esperarmos, o Capitão, com três guarda-costas, apareceu na