Olhares sobre temas definidores do Estudo das Religiões

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A dinâmica positiva da secularidade como fundamento ético-religioso da ordem social que visa o bem comum e a felicidade privada

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  • Parte III

    Olhares sobre temas definidores

    do Estudo das Religies

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  • REViSta LuSfOna DE CinCia DaS RELigiES ano X, 2013 / nn. 18-19 259

    1. o recentramento antropolgicoe a dinmica da desmitificao

    e dessacralizao

    a organizao social e poltica tem por objetivo con-cre tizar o desejo universal dos homens para a felici-dade ou Soberano Bem, como refere aristteles na ticaa Nicmaco, cuja realizao plena e definitiva s seatinge na beatitude espiritual da ordem sobrenaturaleter na, proporcionada pela graa da redeno: momen -to do perfeito conhecimento e unio com Deus.

    Este bem gera um sentimento de satisfao na me-dida em que a existncia se ordena continuamente nasua procura, atravs da conformao da ao inteli-gn cia integral que na sua unidade plural de razo ef, de intuio e emoo , configura na ordem tempo-ral da incompleta felicidade terrena a participao dasde lcias da cidade de Deus. Em colaborao com agraa celestial, o homem, na unidade da sua razo e dasua vontade, pode amar os bens do mundo em confor-mi dade com a vontade divina 1 e, por isso, no reconhe-cimento de que o bem comum encerra uma continui-dade recproca entre o interesse privado e o interessep blico, sendo, por isso, fonte de satisfao individual,a ao governativa ter como finalidade ltima a salva -o comum e a utilidade pblica.

    O estatuto de cidadodecorrente desta forma de

    moderno estado secular,em que a unidade poltica

    est diferenciada darealidade espiritual, deixa

    de ser compreendido emtermos de subordinao

    e dominao, para conteruma relao de

    participao determinantenos destinos da cidade e

    da sua organizao social.

    samuel dimasCentro de Estudos de Filosofia

    da Faculdade de CinciasHumanas da Universidade

    Catlica Portuguesa

    e s t u d o d a s r e l I g I e s

    a dinmica positiva da secularidade

    como fundamento tico-religiosoda ordem social que visa o bem

    comum e a felicidade privada

    1 Cf. SantO agOStinhO, De Trinitate, XiV, 14, 18.

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  • a formulao das normas e regras de ao, com vista a garantir os bens sociaispri mordiais constitudos pelos direitos humanos, pelas liberdades e pela riqueza pro-duzida, deve ser feita por todos os que cooperam nessa ao, atravs dos seus re-presentantes, num processo de argumentao e deliberao coletivas que exprima avontade geral e proporcione a felicidade dos cidados. E apesar de todas as dificul-dades e limitaes, no parece haver alternativa credvel ao sistema social e polticoconstitudo pelo vnculo entre a democracia parlamentar representativa e a econo-mia de mercado, pondo ao servio da utilidade pblica e do bem comum uma partedos lucros gerados pelo capital, atravs da criao de emprego e melhoria das con-dies de vida na garantia da liberdade de propriedade e de expresso, defesa e se-gurana pblica, acesso educao e aos cuidados mnimos de sade.

    a noo atual de cidadania, constitutiva da ordem poltica e social das demo-cracias ocidentais, segundo a qual, o cidado quem determina, no s o regime dego verno da cidade como tambm o grau de poder e a forma de exerccio das suasinstituies, configura-se no mbito da rutura com a ordenao mtica do real, esta-belecida pela emergncia da Polis grega. De acordo com Samuel Eisenstad, esta tran-sio aconteceu entre a idade mtica da civilizao egpcia e a idade nova da Grcia como diria Plato , num perodo (tempo) situado entre 500 a C. e o sculo V da eracrist e num eixo (espao) delineado pela China, mesopotmia, israel e grcia, ondeviriam a surgir um conjunto de personalidades e movimentos institucionais que en-tram em rutura com as sociedades cosmolgicas, na medida em que introduzem umelemento antropolgico no ordenamento das mesmas 2.

    Estamos na denominada idade axial onde a experincia da ordem para a socieda -de, como explica Eric Voegelin, j no patenteada por uma interpretao mtica, se-gundo a qual, a compreenso da existncia entendida como um nico cosmos, emque a sociedade ordenada sua imagem o mesmo dizer, segundo o ritmo dana tureza e dos rituais sagrados propiciatrios e adjuvantes das atividades humanas, mas sim por uma interpretao notica, que encerra a explicitao das conscin-cias e o crtico reconhecimento da alteridade e da dessacralizao 3.

    neste perodo, a religio tradicional recentrada na ao humana: a realidadedeixa de estar pr-determinada pelas leis csmicas, o homem que parte a caminho(xodo) e comea a ter conscincia que, de algum modo, tambm pode escolher o seudestino, num progressivo alargamento das possibilidades de participao cvica,que at aos dias de hoje, vai contribuindo para a transformao do sbdito em cida-do. D-se um recentramento antropolgico da existncia humana e da sociedade. Oquestionamento de sentido (dvida e inquietao), que busca o fundamento detodos os seres e que se divide nas componentes do desejo e do conhecimento, feitoa partir da experincia humana e atravs de uma interpretao da conscincia a simesma (exegese notica), onde muitas vezes, o divino, ou relegado para um do-m nio particular, ou j nem sequer invocado.

    Este dinamismo tem a sua manifestao concreta mais significativa nos dina-mismos da dessacralizao e secularidade, desenvolvidos no mundo ocidental pela

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    2 Cf. SamuEL n. EiSEnStaDt, A dinmica das civilizaes, Lisboa, Edies Cosmos, 1991, p. 47.3 Cf. ERiC VOEgELin, the Consciousness of the ground, in Anamnesis, university of missouri Press,

    Columbia & London, 1990, pp. 147-174.

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  • separao institucional grega entre a religio de estado e a escatologia do mistrio 4

    e pela separao judaico-crist entre o poder espiritual e o poder temporal que, a par-tir da noo de criao atravs de leis prprias e autnomas por um Deus livre e trans-cendente 5 e atravs da noo evanglica Dai, pois, a Csar o que de Csar, e a Deuso que de Deus 6, promovem a constituio de uma organizao social e pol tica pro-motora dos valores da autonomia, da igual e absoluta dignidade de todas as pessoas,da solidariedade social, da liberdade religiosa e da liberdade de expresso.

    a no configurao da ordem social como uma emanao da ordem divina e arecusa da interpretao literal do texto revelado, pela introduo da crtica literriae histrica, viria a permitir a constituio de uma ordem poltica e social respeitadorados direitos humanos, assente nos valores fundantes da liberdade e solidariedade,promotora da ordem jurdica universal e da moral social da absoluta dignidade detodas as pessoas 7.

    no mbito deste novo paradigma configurador do real, eminentemente racionale antropolgico, consolidado na hermenutica social e poltica da idade Axial, o ho -mem, como ser autnomo, cuja finalidade natural consiste em viver socialmente, coo-pera livremente com os seus semelhantes na construo e ordenamento da cidade, en-quanto forma de comunidade de cidados num determinado regime que se altera deacordo com a forma de governo 8. neste contexto que, a partir dos sc. Vii -Vi a.C.,florescem na grcia as cidades-Estado com a sua ordem poltica, a qual, essencial-mente humana, apresenta-se de forma muito diversificada, isto , sob diversos re-gimes ou ordens.

    2. a ordem da cidade justa no contributo para a vida de cada cristo

    De acordo com o testemunho de Scrates, a tarefa primordial da cidade ou daao poltica, pela educao que realiza e pelas leis que impe, desafiar cada umdos seus membros ou cidados a tornarem-se homens justos e pessoas de bem, im-pedindo a tirania, porque a injustia um mal em si mesma, provocando a infelici-dade no s daquele que a sofre, mas tambm daquele que a comete 9. no reconhe-cimento de que a bondade intrnseca das coisas reside na sua harmonia, ordem e pro-poro, Plato define a cidade justa como aquela em que reina uma hierarquia ra-cional das suas diferentes funes e classes: produtiva (artesos e agricultores) e mer-cantil (comerciantes), em que deve imperar a virtude da temperana nos desejos;militar e policial (guardies), em que, para alm das anteriores, deve haver coragem;governativa (filsofos-reis), que deve possuir a inteligncia do Bem.

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    4 Cf. iDEm, Estudos de ideias Polticas, de Erasmo a Nietzche, apresentao e traduo de mendo Castrohenriques, Lisboa, Edies tica, 1996, p 159.

    5 Cf. fRiEDRiCh gOgaRtEn, Destino y esperanzas del mundo moderno, Barcelona, fontanella, 1971.6 Luc 20, 25.7 Cf. JOSEPh RatzinguER-JRgEn haBERmaS, Dialctica de la secularizacin, madrid, Encuentro, 2006,

    p. 42.8 Cf. aRiSttELES, Poltica, 1276, linhas 1-3.9 Cf. PLatO, Repblica, ii, 367a-e; iii, 368c.

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  • a partir do momento em que se realizarem estas condies a cidade uma cidadejusta, uma Repblica, funcionando como um cosmos harmonioso, em que os cidadosvivem em perfeita concrdia e sem distrbios. nas relaes recprocas e no contri-buto de cada um para o bem comum, os cidados, podem ter, na cidade justa, umavida feliz: a felicidade comum da cidade realiza-se na felicidade individual da aojusta, que se adquire pela unidade das virtudes da temperana, da coragem e da sa-bedoria, num acordo interior e amizade consigo mesmo 10. afirmando que s aqueleque est da posse da sabedoria que conhece a verdadeira justia e sabe ser justo,Plato afirma que s o filsofo verdadeiramente poltico: governante de si mesmona orientao para o Bem, s ele capaz de governar os outros de forma reta.

    tal como apresentado por aristteles, o cidado aquele que participa no de-bate da vida pblica e pela legislao e participao nas decises, determina a formade estar da cidade. na procura do bem ou felicidade, exequvel e realizvel, que melhor para si (vida boa), o cidado exerce o governo da cidade: individualmentena forma de monarquia (governo de um) ou em grupo sob a forma de uma aristo-cracia (governo de alguns) ou de uma democracia (governo da generalidade).

    Em cada um destes regimes a distribuio dos poderes realizada de modo di-ferente e dentro de cada um deles tambm existem alteraes substanciais, de acordocom as exigncias sociais das pocas e das diferentes culturas. no entanto, todas ascidades so consideradas comunidades de necessidades econmicas; de salvaguardada segurana que atravs de leis e contratos defendem os homens de injustias rec-procas; de educao moral e de amizade, criando condies para que os lares e asfamlias possam viver felizes de forma plena e auto-suficiente 11.

    E, assim, quando a constituio da cidade saudvel, a virtude tica que realizaa funo de homem no cumprimento natural de si, pela temperana e autonomia,para o bem mais excelente que a felicidade , prolonga-se na virtude poltica, querea liza a sua funo de cidado e lhe permite governar, numa continuidade naturalentre o homem privado e o homem pblico 12. Para que as melhores leis sejam efeti-vamente respeitadas necessrio que, atravs de uma formao apropriada (paideia),impregnem os costumes e os hbitos, gerando uma tica coletiva e uma moral cvicaque permita a vida poltica e feliz da cidade.

    ao contrrio de aristteles, por exemplo, em Epicuro, esta teoria acerca da feli-ci dade e da vida comunitria no conduz necessariamente a um compromisso cvico,porque, no seu entender, s no governo de si prprio atravs do conhecimento edo afastamento do medo da morte que cada um pode atingir a excelncia da sabe-doria e receber da filosofia o dom da felicidade: a cidade, atravs do seu direito po-sitivo, tem apenas a funo utilitria de garantir a segurana necessria obtenodessa felicidade 13.

    nesta nova ordem pblica, em que o cidado determina o regime de governo dacidade, bem como a forma de pertena e de exerccio das suas instituies, pela ava-liao nas assembleias democrticas mediante a virtude da inteligncia prtica (phro-

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    10 Cf. ibidem, iV, 420 c.; iV, 443b.11 Cf. aRiSttELES, Poltica, iii, 9, 12.12 Cf. ibidem, 1288a, linha 35 a 1288b.13 Cf. CCERO, mximas Capitais, Viii.

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  • nesis), determinando a ordenao dos seus habitantes 14, a cidade constitui-se comouma realidade composta, uma multido diversificada (plethos), de que cada cidado uma parte, e, nesse sentido, ser cidado no significa, apenas, habitar num deter-minado lugar nem partilhar os mesmos direitos cvicos (cidados incompletos), massignifica poder participar na administrao da justia e no governo (cidados emabsoluto) 15, isto , nos cargos deliberativos e judiciais da cidade (vida poltica) 16.

    Reunidos na assembleia do povo (eclsia), os cidados decidiam a guerra e a paz,as finanas e as obras pblicas, os tratados e as leis, por maioria simples dos presen -tes. Recorde-se que no era critrio de cidadania habitar num determinado lugar,pois tambm, as mulheres, os estrangeiros residentes (metekoi) e os escravos pos-suam um local para habitar e, nesta poca, no eram considerados cidados. Do mes -mo modo, gozar de direito tambm no era critrio, uma vez que os estrangeiros po-diam ter uma jurisdio especfica (tambm tinham o direito de acusar e de se de-fenderem num tribunal), no deixando de ser estrangeiros. a cidade uma plurali-dade de cidados, pelo que a dimenso pblica da felicidade da cidade deve-se rea-lizao na dimenso privada da felicidade efetiva dos cidados, embora isso nopossa impedir que em algumas circunstncias, como no caso de uma guerra, os ci-dados sacrifiquem a sua vida pela cidade.

    a cidade justifica-se, assim, ao proporcionar uma vida boa a cada um (eupraxia),sendo o melhor regime poltico, aquele em que o grupo de governantes exibir a exce-lncia humana, em particular as virtudes ticas e dianoticas. O homem, juiz ou titu-lar de cargos pblicos, que tiver estas virtudes, capaz de distribuir com justia e equi-dade os cargos, as distines e as sanes, operando de forma til com vista con crdiacoletiva e ao bem comum. a utilidade no tem conotao moral e diz respei to apenas conservao daquilo que se tem: a utilidade das leis est no facto enunciar e decre-tar o justo e o injusto. Embora conceda que uma cidade pode sobreviver sem homensmoralmente virtuosos, desde que sejam bons cidados17, aristteles reconhece que huma situao na experincia poltica que requer o exerccio simultneo da virtude ticado homem bom e da virtude cvica do bom cidado: o exerccio da autoridade.

    Efetivamente, o governante, o poltico, para alm de bom cidado deve ser umho mem prudente 18. Esta virtude sapiencial da sabedoria prtica capacita o gover-nante para exercer bem a capacidade de mando sobre os governados, a quem seexige, pelo menos, que sejam bons cidados. 19 Este elemento permite-nos verificarque abusiva a interpretao que atribui poltica aristotlica uma ciso absolutaentre a dimenso tica e poltica do agir humano. Para aristteles o melhor regime aquele que no procura apenas perpetuar-se, mas que se preocupa, fundamental-men te, em governar para o bem comum, isto , aquele que se adapta verdadeirafi n alidade da vida poltica, que a de promover, mediante uma boa legislao, a vir-tude e a felicidade de todos os cidados, e no apenas de alguns 20.

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    14 Cf. aRiSttELES, 1274b, linha 37. 15 Cf. ibidem, 1275a, linhas 25-26.16 Cf. ibidem, 1275b, linhas 18-19.17 Cf. ibidem, 1276 b. - 1277 a.18 Cf. ibidem 1277 a.19 adverte aristteles que o legislador dever assegurar que os cidados se tornem bons, possuindo

    a virtude de obedecerem melhor parte da alma que aquela que tem a razo. Cf. ibidem, 1333 a.20 Cf. ibidem, 1279 a.

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  • Estamos como bvio, a falar de cidadania num regime democrtico, onde o ci-dado tem capacidade de participar na administrao da justia e do governo, no en-tanto, importante recordar que, embora aristteles vivesse na democracia ate-niense, era originrio de Estagira, vizinha da macednia na qual existia um governodesptico. Recorde-se que ele viria a fazer parte da corte deste imprio, como mes-tre de alexandre magno. Este contacto com outras cidades e outras culturas permi-tiu-lhe conhecer regimes muito diversos e com definies de cidadania muito dife-rentes, mas com algo em comum: a cidade o conjunto de cidados suficiente paraviver em autarquia. h aqui um sentido de auto-suficincia: so os cidados que con-ferem o poder a eles prprios e no sos os deuses ou o Sol, como era entendido pelaordem mtica. a polis, a ordem poltica, assenta no princpio antropolgico e no cosmolgico.

    a partir das noes da moral estoica, cuja finalidade consistia em cumprir a na-tureza humana parcela do todo do cosmos cuja ordem e unidade se deve presenaimanente de um deus providente , atingindo, dessa forma, a felicidade, num simul -tneo movimento entre a adaptao tendncia natural ou orientao primordial eo salto qualitativo da transformao participativa na sabedoria da vida divina, quesupe uma iniciativa do agente atravs do querer o reto e o justo 21, estabelece-se, parao quotidiano, a elaborao de regras de vida, adaptadas s circunstncias, com o objetivo de conduzir os homens ao bem ou honestidade 22 que se identifica com asabedoria, temperana, prudncia, coragem, fortaleza e amizade virtuosa, por con-traposio com o mal que se identifica com a ignorncia, intemperana, injustia ecobardia. Pelo dever aquele que no sbio tem a possibilidade de viver razoavel-mente em conformidade com a sua prpria razo natural: a justia expresso dalei que a reta razo 23.

    a lei transforma em obrigao a tendncia primordial de conservao natural, deforma que todos os concidados possam participar desse amor e agirem com justia.Deste modo, no imprio Romano a cidadania compreende-se no mbito do termores publica, que designava o conjunto dos habitantes e dos bens que pertenciam aRoma, estendendo-se aos territrios que as conquistas lhe acrescentavam e que eranecessrio governar. no contexto das formas de governo, a noo de direito con-ce bida como um todo racional e coerente que prope a criao de uma sociedadejusta, na qual o indivduo pode usufruir em pleno dos seus bens, na condio de serdo sexo masculino, chefe de famlia e homem livre.

    O sistema legislativo caracterizado pela preciso, a firmeza, a exatido, elimi-nando a arbitrariedade do juiz e garantindo a liberdade do cidado romano, assentada noo da igualdade natural dos homens, pressupondo que a desigualdade e a es-cravatura resultam sempre das convenes culturais 24. no entendimento da polticacomo conquista do poder, herdmos do sistema romano, as eleies, as campanhaseleitorais, os debates, o papel da eloquncia e os partidos. no entanto, a sociedaderomana no era democrtica. O exerccio do poder cabia a uma aristocracia poltica,com capacidade retributiva e relevncia social. a concesso do direito de cidadania

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    21 Cf. SnECa, Cartas a luclio, 20, 5.22 Cf. CCERO, Dos Fins dos Bens e dos males, iii 10.23 Cf. idem, Repblica, iii, 33.24 Cf. idem, leis, i, X.

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  • tinha uma funo integradora, de assimilao dos homens livres das regies con-quistadas, e, para o comum dos cidados, o exerccio da cidadania coincidia com orespeito pelo Estado de direito que impunha a observncia das leis e, atravs da cria-o de instituies permanentes como o exrcito, a administrao e os impostos, con-duzia os indivduos a abdicar dos interesses pessoais em favor do todo.

    afastando-se da posio de Epicuro que separava radicalmente o sbio, possui-dor da felicidade, dos outros indivduos, Ccero considera que o sbio no pode viverisolado e que todos os homens so cidados do universo que regido por uma leinatural que imanente ordem do mundo, pelo que, a sociedade humana forma-seem virtude dessa tendncia natural dos homens em se associarem para a sua con-servao, reproduo e partilha de conhecimentos 25. a lei natural, cujo conheci-mento se d pelas noes comuns de bem e justia, define os direitos e deveres de cadaum perante a comunidade 26.

    neste sentido, a justia a regra que determina que se deve atribuir a cada umaquilo que lhe convm no sentido de subordinar a utilidade privada utilidadecomum 27, defendendo o direito romano da utilitas publica, em contraposio com ogrupo de amigos de Epicuro, fundado na partilha do saber e da procura comum daverdade com o objetivo de proporcionar a vida feliz a cada um dos seus membros,numa vida pautada pela preocupao da igualdade e da fraternidade. O pensadorromano defende uma identidade ou sobreposio entre a utilas coletiva e a utilas sin-gulorum , excepto nas situaes em que a utilas da respublica implica o prejuzo indi-vidual, sublinhando que cada homem deve subordinar o seu egosmo utilitas dasociedade humana (utilitas communis), constituindo-se o interesse pblico como ofundamento da justia.

    3. a cidade perfeita e a felicidade plena no se concretizam no mundo terreno

    Se na antiguidade greco-romana so bem-aventurados os deuses que na suaimortalidade gozam a paz de uma vida plena de conhecimento e amor por si mes-mos e so bem-aventurados os cidados sbios e homens justos que se lhes asseme-lham pela orientao ao ideal de sabedoria, autodomnio e autonomia, na idademdia crist, a organizao pblica reintegra estes valores no plano salvfico doamor misericordioso de Deus e no sentido da renncia pessoal. Como refere Santoagostinho, cidade terrestre daqueles que por egosmo se tomam como o fim dassuas aces, ope-se a cidade celeste, comunidade dos que vivem segundo a lei di-vina e por ela desejam atingir a felicidade 28 s plenamente acessvel, atravs dagraa, na imortalidade da vida celeste em unio com Deus 29.

    a lei eterna que, permanecendo idntica a si mesma se desmultiplica inscre-

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    25 Cf. CCERO, Tratado das leis, i, 11, 32.26 Cf. idem, Acerca dos deveres, i, 7, 22.27 Cf. ibidem, p. i, 7, 22.28 Cf. agOStinhO DE hiPOna, De trinitate, Xiii, iV, 7.29 Cf. idem, De Ordine, ii, 5-6.

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  • vendo-se como lei natural em cada conscincia humana 30, conduz o homem para avida feliz pela virtude da caridade na construo de uma comunidade de justos 31.mas essa cidade perfeita do amor de Deus no se concretiza na histria, pois, ao con-trrio da imanentizao e laicizao que vir a ser defendida por hegel, o Reino deDeus no vem deste mundo, mas realiza-se para alm dele no fim dos tempos, porlivre e transcendente iniciativa divina. a ideia milenarista de um reino universal depaz, justia e prosperidade, concretizado atravs de uma salvao colectiva, terres-tre e imanente, recusada por Santo agostinho e pela doutrina oficial da igreja, noen tendimento de que a ressurreio durante o tempo da igreja, de que fala Joo, aressurreio daqueles que, j na vida atribulada do mundo de dios e de guerras,pela f, esperana e caridade, seguem a lei de Cristo, provando desde j as coisas doalto.

    Para a teologia escolstica, a ao moral a orientao dos bens terrenos com vistaa finalidade suprema do Soberano Bem que Deus, identificado com o Ser, a Ver-dade, o Bem e a Beleza, de que todo o ser participa por natureza da criao. inte-grando a reflexo tica na doutrina da criao, todos os pensadores cristos destapoca so unnimes em afirmar que a razo humana s pode ser moral e legisladora(lei temporal), na medida em que informada pela lei divina. a lei eterna que coin-cide com o querer divino apresenta-se ao homem pela voz da conscincia e a von-tade conforma-se sua ordenao, pelo que, como defende So toms o ato s moral se se conformar com o ditame da conscincia.

    O homem deseja o seu fim, que a felicidade em Deus, e tende naturalmente paraele, movendo-se por si mesmo e pelo seu arbtrio atravs da vontade e da escolha apartir dos juzos racionais que apresentam a alternativa dos atos possveis. Da mesmamaneira que o homem, enquanto parte do bem universal, ama a Deus sobre todasas coisas e renuncia a si por Ele, o cidado, pela caridade, deve sacrificar a sua partepelo todo da cidade, pelo que a lei tem essa funo de ordenar a razo para o bemcomum. Durante muito tempo, a ordem poltica medieval confia ao senhor feudalo governo do bem comum, estabelecendo a vinculao dos sbditos ao senhor e terra. Em troca dos deveres de fidelidade e vassalagem, havia a possibilidade de be-neficiar, face aos demais poderes, da proteco do seu senhor.

    Progressivamente, comea a manifestar-se a reivindicao de mais direitos e li-berdades. no mbito da intensificao do comrcio, da formao de influentes aglo-merados urbanos, da crescente afirmao da burguesia, a proliferao da doutrinacrist na defesa da igualdade de todos os homens perante Deus acaba por legitimara substituio do contrato individual de servio e fidelidade pelas cartas coletivas quegarantam o bem comum do grupo. a finalidade da vida humana a beatitude e estas pode ser atingida na obedincia lei, enquanto ordenao da razo para o bemcomum 32, mas para alm das aristotlicas virtudes da prudncia, fora, justia etemperana, toms de aquino afirma a necessidade da caridade, no porque a na-tureza humana, por si, seja incapaz de amar o supremo Bem (Deus), mas porque, noestado histrico de pecado, a vontade cede tentao de amar apenas o seu prprio

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    30 Cf. idem, De Trinitate, XiV, XV, 21.31 Cf, idem, De Civitate Dei, XiV, 28.32 Cf. tOmS DE aquinO, Summa Theologiae, i-ii, q. 90, art.2, respondeo.

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  • bem e no o bem racional, verdadeiro e universal, pelo que a graa de Deus, pelomandamento da caridade, restaura a razo e facilita-lhe a virtude.

    a legislao humana, realizada de acordo com as capacidades naturais, com-pletada pela perfeita legislao divina, capaz de julgar tambm os atos internos, masporque esta virtude perfeita s concedida a quem tem temor e obedincia aDeus 33, o governo real, que na perspetiva do santo, seria o melhor regime, muitasvezes corrompido, degenerando em tirania. Sem deixar de admitir que ao governantese deve exigir absolutamente a posse da virtude cvica e da virtude tica, o filsofomedieval, mesmo quando se refere ao melhor dos regimes, no nos est a falar deum Estado ideal, utpico, absolutamente perfeito como se todos os homens que oconstitussem possussem a virtude perfeita.

    toms de aquino um homem realista e atento ao seu tempo e, como tal, a suareflexo visa, com certeza, a melhor ordenao do real, mas no reconhecimento deque a lei humana feita para a multido dos homens, composta na sua maior partede homens de virtude imperfeita e, nesse sentido, no pode proibir todos os v-cios de que os virtuosos se abstm, mas s os mais graves, essencialmente os que cau-sam dano a outrem, ou aqueles, sem cuja proibio a sociedade humana no podesubsistir, como so os casos concretos do homicdio e do furto 34.

    4. a dinmica positiva da secularidade como condio do exerccio da cidadania na inter-relao

    entre a felicidade privada e o bem pblico

    a organizao social no renascimento vai revelar uma emancipao do enqua-dramento religioso tradicional, por um lado, com o regresso s perspetivas mticase elaborao dos humanismos utpicos e, por outro lado, com uma acentuao dodinamismo da secularidade e um franco desenvolvimento das perspetivas raciona-listas e individualistas, que se viriam a consolidar na aurora da modernidade com omecanicismo e o cienticismo. Contudo, a tradicional noo de ordenao da razopara o bem comum, que prpria de todo o povo ou da pessoa pblica que governaem nome dele e que se plasma na legislao, em forma de Direito, de forma a garantira sobrevivncia das comunidades, vai estar na base da organizao social e polticadas democracias modernas e contemporneas, apelando renovadamente a novas exi-gncias de cidadania.

    uma cidadania que se desenvolve no reconhecimento de que a ordenao legalderiva da existncia natural da sociedade e no de uma qualquer confisso religiosa(Estado e igreja so sociedades distintas), exprimindo-se a lei natural nos direitos na-turais individuais maneira do que apresentado por hobbes e Rousseau. a noode cidadania, tal como foi sendo desenhada pela democracia grega e pela tradiocrist, ressurgir com a reaco contra o absolutismo monrquico (degenerao darealeza virtuosa de que falara toms de aquino), desencadeada pela Restaurao in-

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    33 Cf. ibidem, i-ii, q.105, art. 1, ad secundum.34 Cf. idem, Summa Theologiae, i-ii, q. 96, art. 2., respondeo.

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  • 35 Cf. ERiC VOEgELin, Estudos de ideias Polticas, p. 158.36 Parte desta breve abordagem da gnese histrica do conceito de cidadania est resumida, por ns,

    no mdulo zero da segunda edio do manual Educao para a Cidadania, editado pela Pltano Editora em2006, numa colaborao que se ficou a dever ao gentil convite do Prof. mendo Castro henriques: consulte--se mEnDO CaStRO hEnRiquES, JOO REiS, LuS LOia, Educao para a Cidadania, Lisboa, Pltano Editora, 2006,pp. 15-17.

    glesa (1688) e a Revoluo americana (1774-1776), sendo, no entanto, a Revoluofrancesa (1789) a definir a formao do conceito moderno de cidadania.

    a Declarao dos Direitos do homem e do Cidado (1789) contm os princpiosque esto subjacentes definio actual dos direitos e garantias fundamentais doscidados e a afirmao da soberania da vontade popular, da lei e do Estado-nao.Os princpios definidos por esta declarao referem-se afirmao da liberdade eigualdade em direitos por parte de todos os homens, direitos esses que so a liber-dade de expresso e de livre opinio, a propriedade, a segurana e a resistncia opresso; defesa da soberania que reside essencialmente na nao e definio deque nenhum indivduo pode exercer autoridade que dele no emane expressamente,bem como determinao de que a lei a expresso da vontade geral.

    Os ideais democrticos e igualitrios veiculados por diferentes movimentos so-ciais foram progressivamente conduzindo ao alargamento dos poderes cvicos paraalm de uma classe de cidados instrudos e proprietrios, introduzindo no tecidosocial e nos seus cdigos (tanto ticos como jurdicos) os significativos impulsos tra-zidos pelas lutas pela emancipao das mulheres, o abaixamento da idade de voto,a liberdade de imprensa ou a transparncia nos processos de governao. Com a for-mao do Estado moderno a vinculao de cidadania estabelece-se j no entre doisindivduos, mas entre o indivduo e uma comunidade organizada a que se d o nomede Estado, centrando-se a reflexo poltica em torno dos regimes e constituies, administrao, governo e diviso de poderes.

    O estatuto de cidado decorrente desta forma de moderno estado secular, em quea unidade poltica est diferenciada da realidade espiritual, deixa de ser compreen-dido em termos de subordinao e dominao, para conter uma relao de partici-pao determinante nos destinos da cidade e da sua organizao social 35. a partirde ento, ao cidado, ao nacional, ope-se o estrangeiro, que no dispe de quais-quer dos direitos que integram a cidadania. Entretanto, tambm essas diferenas seesbateram, havendo hoje plena equiparao entre ambos no domnio dos direitos pri-vados, reduzindo-se o relevo especfico da cidadania aos direitos pblicos de carc-ter poltico. Com a criao dos espaos supra-estaduais, de que exemplo a unioEuropeia o estatuto de cidadania engloba direitos e deveres privados e pblicos queassistem de modo igual e exclusivo aos nacionais dos vrios Estados membros 36.

    mas este ltimo percurso no foi feito sem srias e dramticas dificuldades, poisa progressiva excluso da vida espiritual da ordem pblica, no mbito do movimentode degenerao da dinmica da secularidade no alienante secularismo e o afasta-mento da tradio da lei natural em cujas regras universais todas as religies e cul-turas se poderiam enquadrar pelo exerccio racional , viriam a originar a corrupoda comunidade atravs da intolerncia totalitria do sculo XX de ordens polticascomo o comunismo e o nazismo. Recuperando os princpios da clssica lei natural, no terreno da proclamao dos direitos fundamentais ou naturais dos seus cida-

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  • dos que cada Estado tem a funo de proteger , que a sociedade pluralista con-tempornea pode contabilizar o interesse pblico das exigncias democrticas da li-berdade e da tolerncia com o interesse privado e comunitrio das normas religiosas 37.

    no reconhecimento da existncia de bens morais e sociais transtemporais etransculturais pertencentes comunidade existencial histrica, enquanto expres-so natural ou smbolo da ordem do ser que tem origem na transcendncia de Deus, que se pode desenvolver o exerccio integral de uma cidadania saudvel e harm -nica. a vida associativa ordenada por um poder regulador, cuja forma jurdica sefundamenta, no na subjetividade histrica das tradies culturais e religiosas, de-fendida pelos vrios movimentos relativistas da modernidade, mas sim na razo hu-mana universal que como defende Surez na tradio de Ccero, santo agostinhoe So toms , na sua ordenao para o bem a participao da lei eterna de Deus 38.

    O tempo atual traz novos desafios ao exerccio da cidadania, que no mbito daaprendizagem da vida em sociedade com vista sobrevivncia da espcie e ao bemcomum de acordo com as circunstncias culturais, religiosas, econmicas e polti-cas e respetivas exigncias de relao interpessoal e relao intercomunitria , exigereconhecer no ordenamento jurdico do texto constitucional, no apenas os direitos,li berdades e garantias, mas tambm as regras e os deveres. no entanto, como advertemendo Castro henriques, o exerccio da cidadania no se pode reduzir na corres-pondncia entre os limites impostos por cada Estado e os direitos do cidado, mastem de ser pensado, consagrado e praticado em horizontes de mltiplas pertenas eidentidades, da escala local escala global (cidadania europeia e cidadania global).

    na educao para a cidadania devem cruzar-se, por isso, preocupaes de for-mao individual e grupal, nacionais, europeias e globais, apelando a uma constantebusca de equilbrio entre os valores de proximidade e a responsabilizao e partici-pao de carcter no s transnacional como at intergeracional. a proliferao dosmovimentos migratrios por todo o mundo evidencia a ideia do indivduo singularcomo ser de direito, igual a todos os outros em direitos concomitantes com respon-sabilidades em termos de interveno social, numa concepo de desenvolvimentocomunitrio. a exigncia de uma participao cvica e responsvel no se esgota hoje,em fazer valer os nossos direitos e cumprir os nossos deveres ao nvel das associa-es de moradores, ao nvel da nossa povoao ou do nosso pas, mas implica umaresponsabilizao global, uma participao nas causas comuns da humanidade comosejam a defesa dos direitos humanos, a preservao do meio ambiente, a tolernciaentre povos e culturas no respeito e compreenso pela diferena.

    mas a participao e efetivao de uma cidadania de dimenso global, implicatambm o reconhecimento das novas instituies, as quais exigem a nossa adeso ea responsabilizao daqueles em quem delegado o poder. Podemos citar comoexemplos, no contexto portugus, a unio Europeia e a nato. Conhecer a Constitui -o da unio Europeia e a influncia das polticas e do Direito Comunitrio na nossavida diria, saber quais so as competncias dos nossos representantes no parla-mento europeu, perceber a ao da Organizao do tratado do atlntico norte na

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    37 Cf. mEnDO CaStRO hEnRiquES, francisco Surez. apresentao ao leitor do Sc. XXi, in fRanCiSCOSuREz, De legibus, livro i, traduo de Lus Cerqueira, Lisboa, 2004, pp. 47-51.

    38 Cf. fRanCiSCO SuREz, De legibus, livro i, 9.

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  • manuteno da paz, da segurana e da ordem mundial, assumir responsavelmenteas novas pertenas, enquanto cidados do mundo, contribuindo ativamente para apromoo da democracia e dos valores que a sustentam.

    novos fenmenos atravessam hoje o quotidiano das nossas sociedades demo-crticas: sinais de degradao da esfera pblica; o afastamento dramtico entre o fun-damento comunitrio do discurso democrtico e a aceitao dos nveis crescentes deexcluso social justificados pelos padres de racionalidade econmica e cultural; osfe nmenos de apatia cvica e, tambm, a acentuao da composio e natureza mul-ticulturais das sociedades dos pases da unio Europeia, com o crescimento do n-mero daqueles que no se identificam com as regras, instituies e procedimentosvigentes. factos como o terrorismo internacional, as guerras civis, os conflitos sociais,a violao dos direitos fundamentais, ou os assaltos e agresses na nossa rua e nasnossas escolas, associados, muitas vezes, a motivaes de racismo, xenofobia e excluso, consumo de lcool ou de drogas, so problemas de cidadania que nosocupam e preocupam diariamente. factos como a perda de sentido da vida comu-nitria e a indiferena nas relaes interpessoais, revelam-se em atitudes de indivi-dualismo egosta, procurando o sucesso econmico, social e poltico pessoais atra-vs da manipulao, explorao e utilizao dos outros.

    Este desrespeito pela dignidade humana geralmente atribudo a estruturas im-pessoais, pelo que a alienao experimentada considerada vir da sociedade para apessoa: a culpa atribuda poltica, economia, comunicao social, justia, educao, polcia, e ao Estado. Por isso, as pessoas abstm-se nos atos eleitorais, re- metem a educao para as escolas e professores, no pagam impostos, desrespeitamas regras de trnsito, desrespeitam os direitos dos outros e as instituies, atrope landoou abusando da lei. a criminalidade, o declnio dos laos familiares e comu nitrios,o individualismo e o relativismo cultural e moral, enfraqueceram os nveis de capi-tal social, minando os fatores estruturantes de uma sociedade civil saudvel.

    Contudo e, ao mesmo tempo, reconhece-se uma recente reconstruo social, te-cida com novos laos no s de vizinhana, como tambm das estruturas familiar ede trabalho, as quais perante a impotncia do Estado-Providncia, incapaz de res-ponder s necessidades e aspiraes dos cidados, e a crescente fora de um mun-dial sistema de poder sem rosto , comeam a afirmar-se numa sociedade civil, re-presentada a vrios nveis por grupos informais, associaes, instituies, igrejas, or-ganizaes e redes, independentes do Estado. Estas estruturas participam na vida p-blica e intervm em reas como a proteo do ambiente, a luta contra a corrupo,a excluso social e outros problemas sociais e polticos.

    neste cenrio, que se tem invocado a educao para a cidadania como meio efi-caz para mostrar que a renovao da vida comunitria principia pela atitude indi-vidual, na convico de que a sustentao da vida democrtica resulta de pessoasmais autnomas e mais dispostas a partilharem tarefas de bem comum. trata-se deuma educao no mbito dos bens, dos conhecimentos e das atitudes que capaciteas pessoas a construrem uma sociedade mais justa, democrtica e solidria. O xitodesta tarefa reside na construo de uma sociedade educadora: mais que uma so-ciedade com boas escolas, significa uma sociedade com um sentido saudvel do bemcomum, com uma moral social e esprito pblico e com uma memria viva do seupassado cultural. neste plano europeu da educao para a cidadania e da formao

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  • do carcter humano, no podemos deixar de recuperar as tradicionais interpelaesde aristteles e So toms, no sentido de admitir uma certa tenso entre formaotica e a formao cvica.

    nesta relao deve ter-se em considerao que nem todas as exigncias cvicas soexigncias morais e que no se tratando de duas reas distintas e separadas, mas dedois domnios parcialmente sobrepostos, a educao para a cidadania implica umatenso necessria entre a tica e a poltica, entre a idealidade dos valores e a reali-dade dos factos, porque, como diz So toms, o homem ordena-se ao fim da beati-tude eterna, que excede a capacidade das faculdades naturais e a exigncia utilit-ria do direito civil (homens relativamente bons em ordem a um determinado regime),sendo necessrios os valores da lei divina, para que o homem, reconhea, sem d-vida o que deve fazer e o que deve evitar para garantir essa felicidade plena (homensabsolutamente bons) 39, a qual, em termos universais, s totalmente consumada naordem sobrenatural.

    5. a fundamentao tica da organizao social e poltica democrtica numa ordem do mundo,

    cuja plenificao transcende a temporalidade histrica

    a dinmica de dessacralizao e de secularidade, desenvolvida no seio do cris-tianismo a partir da afirmao do logos socrtico e da concepo positiva da criaodo mundo, permitiu sociedade ocidental organizar-se em torno de uma noo deredeno que, visando no apenas a superao gnstica da queda pela sabedoria,mas, sobretudo, a colaborao com a graa divina pela ao amorosa 40, espera ati-vamente, na construo social e poltica, a felicidade comum, cuja plenitude se con-sumar no final dos tempos com a glorificao integral da realidade na Parusia.

    nesta concepo o mundo no uma realidade estranha e m que deve ser re-jeitada, mas uma realidade boa e admirvel, cuja ordem estabelecida por Deus, preciso cuidar numa renovada e permanente doao de sentido para a sua existn-cia, cuja origem est alm do ser do mundo na eternidade transcendente que a razohu mana no pode aceder de forma absoluta, mas apenas de forma analgica e m-tica, colaborando para erguer j na terra as delcias da cidade celeste 41. no entanto,o desenvolvimento deste caminho doloroso e atribulado, cujos desvios das tiraniasmonrquicas e dos regimes totalitrios fascistas e comunistas, se ficam a dever a umexerccio da razo humana, que em vez de uma humilde relao amorosa com a rea-lidade, exercem uma ao violenta sobre a mesma, pretendendo alterar a ordem doser da sua origem transcendente para o imanentizao ao mundo, na utopia idealistade construir uma sociedade perfeita na terra, atravs de uma vontade de poder quese substitua providncia divina 42.

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    39 SO tOmS DE aquinO, Summa Theologiae, i-ii, q.91, art. 4 respondeo. Cf. ibidem, i-ii, q. 92, art. 1, respondeo.

    40 Cf. ibidem, Cincia, Poltica e Gnose, Coimbra, trad. de alexandre S, ariadne Editora, 2005, p. 19.41 Cf. ibidem, pp. 16; 54.42 Cf. ibidem, Cincia, Poltica e Gnose, Coimbra, ariadne Editora, 2005, pp. 116-117.

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  • Como explica Eric Voegelin ftil procurar um estado ideal, porque este, se-melhana do que fez aristteles, St. agostinho e toms de aquino, deve ser com-preendido, no como um mito da nao da idade de ouro ou do paraso terreno, mascomo um fenmeno histrico que, na integralidade do seu misterioso fim, no est absoluta disposio da vontade, pois s se cumpre para alm da efmera vida ter-rena. O reino da perfeita harmonia entre os homens no deste mundo, embora sepossa comear a preparar nele no exerccio das virtudes tica e cvicas. a unidadeda fora compatvel com a pluralidade das liberdades, na pressuposio de que,como explicita Bernard Lonergan, se efetiva o exerccio do bem da ordem social, atra-vs da poltica, da economia e da famlia, em que esto contemplados os mecanis-mos de proteo dos desvios egostas individuais e de classe, cuja ao para ser maiseficaz implica, no entanto, a transposio do problema ao nvel policial, judicial, di-plomtico e blico, para o nvel da cultura e da moralidade 43.

    no reconhecimento de que o conceito de cidadania se refere ao estatuto de per-ten a de um indivduo a uma comunidade politicamente articulada e que lhe con-fere um conjunto de direitos e deveres, dependendo das leis prprias de cada Estado,podemos dizer que num Estado democrtico, defensor da solidariedade e da igual-dade social, aplicando o direito na regulao das relaes humanas, a cidadaniaexerce-se tendo em conta a liberdade e responsabilidade no cumprimento dos valo-res ticos do bem comum e dos valores cvicos da organizao poltio-social, comopor exemplo no cumprimento das obrigaes fiscais e na eleio dos representantespelo voto. no mbito do cumprimento desse exerccio do bem comum, continuamosa alargar o mbito do conceito de cidadania: aos direitos individuais, cvicos e pol-ticos, vieram juntar-se os direitos de natureza social, econmica e cultural e os cha-mados direitos das geraes futuras ao ambiente, paz e ao desenvolvimento sus-tentvel, os quais exprimem, assim, uma crescente conscincia da unidade da terrae do gnero humano, isto , do nosso destino comum, como bem o expressa a De-cla rao universal dos Direitos humanos.

    a organizao da vida pblica das sociedades democrticas contemporneasno se restringe ordem jurdica representativa, centrada no vnculo estatal entre go-vernantes e governados em que apenas exigido ao cidado o exerccio das com-petncia cvicas, referentes observncia das leis, regulamentos e tratados , mas am-plia-se ordem participativa relativa interveno na vida pblica, pela livre ex-presso de opinio, no s atravs da atividade partidria, mas tambm pela atua-o em organizaes no-governamentais e outras instituies da sociedade civil 44.no modo de convvio entre a autonomia da ordem social e os poderes institudos,foram decisivas as consequncias das revolues liberais. na verdade, se um factoque o sentido das sociedades se tornou h muito autnomo de uma cosmoviso deleitura mtica, no menos verdade, que as instituies governativas da Europa vi-riam a centralizar sobre si todos os poderes retirando autonomia s instituies lo-

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    43 Cf. BERnaRD LOnERgan, Collected Works of Bernard lonergan, n. 3 insight: A Study of Human Un-derstanding, Edited by frederick E. Crowe and Robert m. Doran, toronto, university of toronto Press,1997, p. 620.

    44 Cf. mEnDO CaStRO hEnRiquES, Perspectivas conceptuais da Educao para a Cidadania, in Nao eDefesa, Lisboa, n. 93, 2. srie (Primavera de 2000), p. 41.

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  • cais e deformando os princpios de cidadania veiculados no regime democrtico daantiguidade.

    nos alvores da modernidade, a passagem do antigo Regime constitutivo deuma classe social estratificada clero, nobreza, burguesia e povo para um regimeliberal de raiz democrtica onde se proclamam iguais oportunidades para todos,levou a que por toda a Europa se reforasse o poder do Estado. Estabelecem-se osdi reitos e os deveres dos cidados, os quais passam a ter poder legislativo, executi -vo e judicial (Revoluo Liberal Portuguesa de 1820 e respetiva Constituio de 1822onde so indicados os princpios fundamentais da nao). O Estado, passou a ser uni-formizador, apoderando-se de poderes que pertenciam sociedade civil, como erampor exemplo o caso da Educao e da sade. Este processo negativo de secularizao,por oposio dinmica positiva da secularidade 45, foi de tal forma violento, que,no meadamente em Portugal e Espanha, a sociedade civil fica terrivelmente fragili-zada e absolutamente dependente do aparelho central.

    curioso verificar que nos E.u.a., ao contrrio, este processo de revoluo libe-ral manteve intacto o tecido da sociedade civil e, esta, atravs das suas instituiesre ligiosas, associaes de vizinhana, de solidariedade, de sade e de educao,sem pre resolveram os seus prprios problemas dispensando a interveno do Estado(a este nvel da poltica interna). Estas caractersticas mantiveram-se at aos dias dehoje e no difcil apercebermo-nos do peso que, por exemplo, as igrejas, as uni-versidades e as Bibliotecas, tm no desenvolvimento cultural desse pas. ao Estadofica reservado, apenas, o papel de manter a lei e a ordem, a preveno e a justia (m-quina militar a nvel interno e externo). Esta incapacidade das sociedades civis se or-ganizarem na Europa, foi criando uma desigualdade crescente na populao, a quallevou proliferao de um proletariado externo e a todas as desigualdades queacompanharam a Revoluo industrial.

    O Estado s se preocupava com a igualdade formal e no com a material, no seassumindo como um Estado de Providncia, e por outro lado, a sociedade civil tam-bm no tinha capacidade para resolver os seus problemas. neste contexto, surgecada vez mais urgente, a exigncia de uma igual distribuio de todos bens, mate-riais e espirituais. , pois com naturalidade, que vemos nascer os totalitarismos e abso lutismos, primeiro, dos regimes socialistas e depois dos regimes de direita, pro-metendo a soluo para os desequilbrios sociais e polticos verificados entretanto,absorvendo os indivduos e fazendo diluir a sociedade civil.

    no entanto, a realidade da organizao da vida pblica democrtica atual assistea uma devoluo de poderes sociedade civil, com a sua rede de instituies priva-das de finalidade pblica, ao nvel daquilo a que mendo Castro henriques chamadas instituies de cuidados, que desempenham funes sociais de assistncia fa-mlia, infncia, terceira-idade, sem-abrigo, deficientes, marginais e at assistnciahospitalar; instituies de cultura, cuja ao se concretiza ao nvel da educao, reli-gio, desporto, arte, cincia e lazer; instituies de capital, que desempenham funessociais no mercado em termos de agrupamento profissionais empresariais, sindicais

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    45 acerca do estudo aprofundado sobre a distino entre o processo negativo da secularizao e adinmica positiva da secularidade deve consultar-se: SamuEL DimaS, a convergncia entre a Dessa-cralizao e a Secularizao na Organizao social da Cidade, in Deus, o Homem e a Simblica do Real: Es-tudos sobre a metafsica Contempornea, Lisboa, inCm, 2009, pp. 643-723.

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  • e patronais; e tambm instituies de cidadania, que exercem funes cvicas e pol-ticas, como por exemplo as organizaes no governamentais na defesa de causascomuns como os direitos humanos, o ambiente e o patrimnio 46.

    a ttulo exemplificativo deste atual reforo do poder das instituies da sociedadecivil, podemos citar a reforma do sistema educativo europeu e portugus, que pro-cura alterar o quadro de uma histria recente de prolongada centralizao do podere dos servios pblicos. Efetivamente, o poder coercivo da administrao foi intro-duzindo na Escola reformas e inovaes que apenas comearam a ser questionadasna segunda metade da dcada de setenta, por fora da alterao do sistema polticoexistente. a participao direta no processo da tomada de deciso foi-se fazendoouvir na Escola e ela configurada com um novo modelo de gesto, mais democr-tico, consubstanciado por Decreto-Lei.

    O conceito redutor de Escola, alimentado pelo Estado novo, foi sendo alteradoe, progressivamente, esta, passou a ser considerada como uma Comunidade Edu-cativa. Deste modo, tecido um modelo descentralizado da administrao pblica,previsto na Constituio, que d um papel de relevo sociedade civil, dentro dosprincpios da participao dos interessados, de aproximao dos servios popula-o e de desburocratizao, assumido, de modo coerente, na Lei de Bases do SistemaEducativo. a noo atual de Comunidade Educativa onde se inserem os propsitos daeducao para a cidadania, recupera esse sentido da comunidade social e polticacomo o lugar de realizao da natureza do indivduo humano, sem a qual se com-porta como um deus ou uma besta - como diria aristteles -, baseando-se na con-vico de que existe uma diferena radical entre educar e instruir ou ensinar, alertandopara a importncia da aprendizagem de valores, competncias e atitudes que asse-gurem a convivncia livre, a paz ativa e a responsabilidade crtica.

    as nossas sociedades de cariz eminentemente cientfico tm-se preocupado so-bretudo com as competncias tcnicas, produzindo estruturas educacionais em quese acentua o ensino como uma imposio de um exaustivo conjunto de informaes.trata-se do predomnio da boa educao que visa resultados imediatos e prticos, emdetrimento de uma educao boa, a qual entendida como um processo dinmico e dia-lgico onde a comunidade educativa no fornece apenas disciplinas cientficas, sejamelas, humansticas ou matemticas, mas preocupa-se essencialmente em fazer comque o indivduo se torne pessoa, isto , adquira uma sabedoria de insero social pro-porcionadora no s de xito profissional mas tambm constitutiva de realizao pes-soal e de harmonia social.

    O princpio de que a passagem para o estado adulto, no se faz por natureza, massim por paideia, permite conceber a educao como uma ao que, desde criana, sedeve exercer sobre o ser humano a fim de o exercitar na virtude e de lhe inspirar ovivo desejo de ser um cidado perfeito que saiba governar e ser governado de acordocom a reta justia (ideal de politeia - viver harmonicamente a vida social). assimentendida, a educao, extravasa cada vez mais o mbito escolar restrito para se re-lacionar com todas as influncias que a sociedade, atravs das suas estruturas cul-turais, econmicas e ideolgicas, exerce, direta ou indiretamente, sobre os indiv-duos, mas nunca perdendo de vista o reconhecimento de que a universalidade dos

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    46 Cf. idem, que h de novo na Sociedade Civil?, in Cultura, revista de Histria e Teoria das ideias, Lis-boa, vol. XVi XVii /2003, ii. Srie, pp. 287-288.

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  • valores que conduzem ao bem comum local no reside no consenso cultural, mas simna capacidade que cada um tem de aceder ao critrio de bem ou de justia atravs douso da razo.

    6. a ordenao da razo democrtica para os bens privados e bens comuns

    a sociedade atual deve reger-se no apenas por interesses materiais e preocupa-es de identidade territorial, mas tambm por valores racionais de negociao e decompromisso e valores morais de promoo do bem comum, desenvolvendo uma ci- dadania democrtica capaz de arbitrar e minorar conflitos graves alimentados por pai-xes raciais, fundamentalismos poltico-religiosos e lgicas de excluso social. Esta ta-refa exige uma cidadania ativa que v para alm do mnimo estabelecido pela ordempblica instituda. tratando-se de um vnculo jurdico-poltico de pertena comu-nidade nacional, a cidadania, que no depende de pertenas como a lngua, religio,etnia e estatuto econmico, desenvolve-se, no apenas no plano das clssicas res-ponsabilidades polticas de soberania (magistratura, finanas, administrao inter na,e defesa), mas tambm no mbito da satisfao dos direitos econmicos, sociais e cul-turais. Economicamente, a cidadania traduz-se na capacidade do Estado re colhercontribuies e impostos e de os redistribuir atravs da oferta de bens pblicos.

    Politicamente cria laos de legitimidade entre governantes e governados que noquadro das democracias europeias atuais se prolongam em obrigaes para alm dasfronteiras nacionais. Sociologicamente, prende-se com a aquisio de vnculos queoferecem coeso social. no contrato que cada cidado estabelece com os poderes po-lticos, o sentimento de comunidade e solidariedade que fundamenta direitos e de-veres recprocos. neste sentido, a consolidao dos Estados-nao na Europa e nasamricas deu-se a par da consagrao de legislao que procurava refletir as suces-sivas conquistas de cidadania nos planos civil, poltico e social.

    a cidadania civil promove a reciprocidade entre direitos e deveres e o respeitopela soberania da lei, como condio necessria da ordem democrtica; a cidadaniapoltica democrtica deve ajudar as pessoas a tornarem-se cidados ativos, interve-nientes e responsveis; a cidadania social revela que a segurana, bem-estar e qua-lidade de vida devem ser garantidos pelo Estado, mas providenciados tambm porgrupos e organizaes da sociedade civil, como instituies do sector privado, de m-bito local, nacional e internacional. Se , pois, crucial no processo de sedimentaoda cidadania a sua traduo na linguagem dos direitos e a sua eventual consagra-o em dispositivos legais das declaraes e convenes internacionais s consti-tuies e legislao ordinria , por isso mesmo, fundamental acentuar que essaconsagrao no esgota o sentido emancipatrio da cidadania ativa.

    a organizao democrtica da vida pblica contempornea fundamenta a suaao no respeito pelo cumprimento do direito natural dos seus cidados que, en-quanto ordenao da razo para o bem privado e para o bem comum47, implica a ne-

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    47 Cf. So toms de aquino, Summa Theologiae, i-ii, q. 90, art.2, praetera 3. Cf. ibidem, i-ii, q. 90, art 4,respondeo.

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  • cessidade natural da autoridade e da liberdade, permitindo ao Estado estabelecer,de forma consensual, os direitos e deveres cvicos. a justia legal que preside aos cri-trios normativos da poltica assenta no respeito pelos bens sociais: bens particulares,bens de ordem e bens de valor. a um nvel elementar o bem o objeto de desejo e quan -do se obtm, experimenta-se como deleitoso e satisfatrio.

    neste plano situam-se os bens particulares, indispensveis sobrevivncia da so-ciedade, que dizem respeito satisfao do apetite individual, como o apetite de ali-mento e de bebida, o ape tite de unio e de comunho, o apetite de conhecimento oude prazer. a um segundo nvel, da hierarquia dos bens, encontramos os bens deordem que, atravs das instituies familiares, econmicas, culturais, polticas, judi-ciais, garantem a um grupo de pessoas a recorrncia regular aos bens particulares ebens sociais: perante o desejo de alimento, deve haver um sistema econmico quesacie a fome; perante o desejo de conhecer, deve haver um sistema educativo garantea transmisso do conheci mento a cada gerao; perante a doena, deve haver um sis-tema de sade que garanta o tratamento; perante a necessidade de proteo e vio-lao dos direitos, deve haver um sistema judicial que garanta a segurana pblicae preserve os direitos individuais 48.

    a ao poltica deve garantir a vida em sociedade pelo exerccio da sua legtimaau toridade, tendo, por base, bens sociais como o mrito e o reconhecimento tico eprofissional; a soberania da lei do governante que proporciona segurana e confianana ordem social; a gratido, que tendo um carcter no jurdico, configura toda a redede relaes sociais pela dinmica de retribuir o bem recebido; a justia retributiva,que significa a tendncia para retribuir o mal sofrido e sobre a qual de edifica o or-de namento da justia legal; a autenticidade ou tendncia para dizer a verdade; a ami-zade, como tendncia de simpatia para dar o que se e a liberdade, como tendnciapara dar o que se tem 49.

    Estamos j no terceiro e ltimo nvel que diz respeito aos bens de valor, os quaisso terminais enquanto so objetos das nossas escolhas, mas so originantes na me-dida em que o facto de serem eleitos, modifica a nossa disposio volitiva habituale a nossa orientao efetiva no universo, e com ela, a nossa contribuio para o pro-cesso diattico do progresso e decadncia. apelando para o valor ou para os valo-res que satisfazemos alguns apetites e no satisfazemos outros, que aprovamos al-guns sistemas de consecuo do bem da ordem e desaprovamos outros, que louva-mos ou censuramos as pessoas como boas ou ms e as suas aes como corretas oudepravadas.

    neste sentido, como diz Bernard Lonergan, o valor uma noo transcendentalcomo a noo de ser, e est subjacente a aes to concretas como o individualismoou o socialismo, que no so bens do apetite sensvel, como comida ou bebida, roupaou habitao, sade ou riqueza, mas sim construes da inteligncia humana paraestabelecer uma ordem, precisamente na satisfao dos desejos humanos. a ordemsocial encontra nos desejos e averses dos indivduos e dos grupos, tanto um aliadosumamente poderoso, como uma fonte permanente de desvio egosta e de classe. Epor isso, os seres humanos empenham-se por desenvolver movimentos contrrios

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    48 Cf. BERnaRD LOnERgan, insight: A Study of Human Understanding, pp. 619-62049 Cf. mEnDO CaStRO hEnRiquES, Educao para a Cidadania, Ensino Secundrio, coord. Jos manuel

    Pureza, mE, 2001.

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  • eficazes para se protegerem dos efeitos dos desvios iniciados por outros, no s cor-rigindo aqueles que os cultivam, atravs do sistema policial, judicial, diplomtico e blico, como tambm atacando esse desvio na sua raiz, atravs da cultura e da moralidade 50.

    Os princpios ticos so valores prprios da ordem prtica, especficos da ao hu-mana, e constituem-se como bens desejveis na configurao da ordem social e daao poltica. Sendo a cidadania uma ao responsvel dos que governam e so go-vernados, essa ao implica uma determinada escala de valores e um conjunto deprincpios ticos que esto subjacentes a qualquer deciso e ordenao. Esta decisopode ter um valor supremo em termos histricos (a aprovao de uma constituioou uma declarao de guerra) ou pode ter um valor menor na aceitao de uma qual-quer rotina para um fim concreto e secundrio do quotidiano, mas implica sempreum juzo crtico de uma realidade existente, de algo que se aceita ou se recusa. nessesentido, a tradio tica ocidental estabeleceu algumas categorias bsicas que servempara configurar e orientar o compromisso moral social: entre elas destacam-se osprincpios do bem comum, solidariedade poltica, justia, liberdade pessoal, igual-dade e subsidiariedade.

    assim podemos definir o bem comum como o bem das pessoas enquanto estoabertas entre si na realizao de um projeto unificador que a todos beneficia. assumea realidade do bem pessoal e do projeto social no sentido em que as duas realidadesformam uma unidade de convergncia. uma categoria tica na medida em que ex-pressa a normatividade da realidade social, exercendo-a de duas formas: enquantometa a perseguir (funo teleolgica) e enquanto se expressa em realidades concre-tas (funo verificadora).

    7. Princpios ticos e cvicos da ordem social e poltica

    O princpio da solidariedade consiste no amor eficaz s pessoas que se actualizana prossecuo do bem comum da sociedade, com especial ateno para o benefciodos membros menos favorecidos da sociedade e para o dever de cooperao no sen-tido de aliviar a misria dos povos. Esta tarefa requer generosidade e desinteressepessoal, caso contrrio pode converter-se num meio para o interesse prprio custado servio pblico. trata-se de um princpio que ajuda o Estado a ser fiel sua mis-so e a no converter-se num fim em si mesmo.

    O princpio da justia a forma mediadora da generosidade poltica. a verifi-ca o concreta e o contedo intramundano do ethos da social da tradio clssica ociden tal: dar a cada um o que lhe convm, dar a cada um o que seu. Em ter-mos jurdicos, significa que as leis so constitudas a partir da igualdade funda-mental de todos os homens e que so aplicadas com equidade e sem privilgios discriminatrios.

    O princpio da liberdade pessoal o respeito pela liberdade individual um ele-mento essencial da tica poltica enquanto servio ao homem como membro da so-ciedade. Este respeito implica que se garanta ao indivduo o exerccio dos seus di-

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    50 Cf. BERnaRD LOnERgan, insight: A Study of Human Understanding, pp. 620-621.

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  • reitos e simultaneamente o cumprimento dos respetivos deveres. a garantia jurdicada liberdade pessoal reside na capacidade do Estado oferecer a defesa das liberda-des reais: de pensamento, de expresso, de reunio, de associao, etc. autoridadedo Estado compete apenas o papel de arbitrar as liberdades individuais e sociais.

    O princpio da igualdade implica a seguinte distino: enquanto a desigualdadetica, sobretudo na rea dos bens pblicos (habitao, cultura, educao, sade,meio-ambiente) causa e efeito dos desequilbrios e das violncias sociais, a igual-dade tica no significa uniformidade mas encerra a diversidade, a diferena e a ori-ginalidade num projeto mais enriquecedor para todos. a igualdade tica aquelaque iguala no caminho de ascenso para nveis cada vez mais elevados de progressohu mano. O princpio da igualdade pode dividir-se em igualdade de direitos e liberda-des que incluem os de votar e ser eleito, pensamento e expresso, reunio e associa-o, liberdade e integridade da pessoa, participao e acesso a cargos polticos; e emigualdade de oportunidades, que significa reconhecer a igualdade de oportunidades,rendimentos e riqueza.

    O princpio de subsidiariedade supe que o Estado no suplante a ao poltica quepode ser exercida pelos cidados de modo individual e de modo associado atravsda sua espontaneidade criadora. O estado excede as suas competncias quando cen-traliza, controla e monopoliza a ao social no respeitando estruturas intermdiascomo a famlia, grupos econmicos, associaes culturais, educativas e de serviossociais.

    no reconhecimento de que nem todas as exigncias cvicas so exigncias morais,a educao para a cidadania significa educar para a tenso necessria entre a tica ea poltica, numa renovada exigncia de conciliao entre os princpios ideais da li-berdade moral e as necessidades realistas da integrao social e poltica 51. O exerc-cio da cidadania, assente no princpio tico da solidariedade, desenvolve-se pelo em-penhamento e compromisso na resoluo dos problemas comunitrios e promoodo bem comum. no possvel que uma sociedade sobreviva se os direitos civis epolticos no tiverem uma fundamentao tica. Podemos invocar como exemplo ocolapso recente da ordem financeira internacional: apesar de todas as normas de re-gulamentao e de todas as regras inerentes a esta atividade, a seduo pelo lucrofcil e a falta de tica levou a aes criminosas de corrupo e roubo a uma escalato grande que levou as economias e sociedades do mundo inteiro a uma crise pro-fun da com consequncias desastrosas ao nvel do desemprego e da reduo do nvelde vida e bem-estar das populaes.

    Como adverte mendo Castro henriques, sem a componente tica, a integraosocial e poltica resultaria em mera adaptao s tendncias dominantes e aos ape-tites pessoais, e sem a componente cvica, o apelo aos direitos e deveres, resultantesdo contrato entre o cidado e os poderes polticos, degenera em moralismo sem im-pacto na participao social. neste sentido necessrio favorecer e promover o ra-ciocnio moral, as capacidades de argumentao e de deciso (capacidade de crticae auto-crtica presente na razo humana) de forma a no se perder o sentido da au-tonomia sem aniquilar o sentido da comunidade 52.

    SAmUEl DimAS

    278 REViSta LuSfOna DE CinCia DaS RELigiES

    51 Cf. mEnDO CaStRO hEnRiquES, Perspectivas conceptuais da Educao para a Cidadania, in op. cit.,pp. 44-45

    52 Cf. ibidem, p. 45.

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  • a formao tica e a formao cvica so uma obrigao da educao para a ci-da dania, na medida em que os comportamentos cvicos implicam a interiorizao devalores morais e estes implicam a manifestao de atos responsveis. atravs dos va-lores de liberdade e responsabilidade, resultantes da autonomia pessoal, intelectuale moral; dos valores de tolerncia, igualdade perante a lei, e de participao; dos va-lores para uma sociedade justa e solidria, contra discriminaes tnicas, sexuais eanti-econmicas, a sociedade orienta-se para a procura do bem comum e da justia,repudiando a violncia e a destruio do ambiente 53.

    a educao tica procura inculcar princpios inerentes dignidade da pessoa hu-mana, os quais so acolhidos pelas constituies dos estados democrticos. Contudo,trata-se de uma educao para a tolerncia, na medida em que vivemos num mundopluralista em que a conscincia pessoal no se guia por uma doutrina moral comum.Este facto exige uma investigao racional e uma atitude crtica em relao s cir-cunstncias e instituies na procura da verdade, sem a qual ningum saber geriro espao de direitos e deveres que a sociedade lhe proporciona. na educao cvica,a investigao crtica e a verdade esto subordinadas formao de indivduos ajus-tados comunidade poltica em que vivem. alm da aprendizagem da Constituio,recomenda-se um estudo nobre que confira legitimidade s instituies democrti-cas no sentido de reconhecer que as sociedades humanas no se regem apenas porinteresses materiais mas tambm por valores racionais e ticos.

    a democracia exige competncias cvicas, tais como, responsabilidade moral,auto-disciplina, respeito pelo valor individual, prprio e alheio, dignidade humana,respeito pela supremacia do Direito, capacidade crtica e vontade de negociar e alcan ar compromissos. Sem estas competncias cvicas no possvel planear a sa-tisfao dos direitos individuais e muito menos cumpri-los. Entre estas competn-cias podemos destacar a coragem, que permite ao cidado sustentar as suas convic-es, tornando-se menos sugestionvel pelos lderes de opinio e pela comunicaosocial; a tolerncia, enquanto capacidade de respeitar a pluralidade de opinies,desde que fundadas no respeito pela dignidade humana; o patriotismo, como virtudede lealdade aos princpios e valores nacionais; o compromisso, enquanto capacidadede acordo que pode exigir cedncias; a legalidade que pressupe o respeito pelanorma legislada e, ao mesmo tempo, o esforo por modificar a legislao que se apre-sente desadequada; a solidariedade, que reside na preocupao com o bem-estar p-blico; a concertao social que, no mbito da participao democrtica, consiste na con-certao de interesses; a transparncia, enquanto expresso da verdade das decisesdos cidados e instituies sem a subjugao ao domnio de interesses ocultos quelesem o bem comum; o pluralismo, enquanto respeito pelas ideias dos diversos par-tidos; a civilidade, que para alm do respeito pelo patrimnio pblico e pela proprie -dade privada, consiste numa ao poltica que recusa a fora e recorre argumen-tao racional, para defender as suas perspetivas de organizao da vida pblica 54

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    53 Cf. P. OREy Da Cunha, tica e Educao: Educao do carcter, Lisboa, uCP, 1996, p. 43.54 Cf. mEnDO CaStRO hEnRiquES, Educao para a Cidadania, Ensino Secundrio, coord. Jos manuel Pu-

    reza, mE, 2001. Esta reflexo acerca dos princpios ticos e exigncias cvicas da cidadania est sintetizadano mdulo n. 2 do manual j citado Educao para a Cidadania, pp. 42-49.

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