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OLHAR NOS OLHOS ALICE PETERSON Olhar nos Olhos Look the World in the Eye Alice Peterson Copyright © Alice Peterson 2006 Reservados todos os direitos para esta edição Tradução: Cristina Paixão Revisão: Luís Lopes Design e produção: QuidNovi Impressão e acabamento: Tipografia Peres (www.tipografiaperes.com) 1ª. edição: Fevereiro de 2006 ISBN: 972-8998-04-X Depósito Legal: 237926/06 QUIDNOVI QN III - Editora e Distribuidora Lda. Praceta D. Nuno Álvares Pereira, 20 3° CJ, 4450-218 Matosinhos Tel. +351 229 388 155 1 Fax. +351 229 388 155 Avenida Infante D. Henrique, 333 H 2.22, 1800-282 Lisboa Tel. +351 218 509 080 1 Fax. +351 218 509 089 www.quidnovi.pt 1 quidnovi®quidnovi.pt QUIDNOVI Para a minha irmã, Helen AGRADECIMENTOS Há muitas pessoas a quem gostaria de agradecer. Antes de mais, a ideia para o título ocorreu-me quando conheci Alison Rich, que trabalha na Changing Faces, uma importante obra de solidariedade que apoia pessoas desfiguradas. "Não te escondas por detrás do cabelo, olha o mundo nos olhos", era algo que o pai lhe costumava dizer. Alison proporcionou-me uma verdadeira percepção sobre o que é aprender a viver com um desfiguramento facial e sobre como isso afecta as relações com os irmãos, a família e o mundo exterior.

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OLHAR NOS OLHOSALICE PETERSONOlhar nos Olhos

Look the World in the Eye Alice Peterson

Copyright © Alice Peterson 2006Reservados todos os direitos para esta edição

Tradução: Cristina Paixão Revisão: Luís Lopes

Design e produção: QuidNoviImpressão e acabamento: Tipografia Peres (www.tipografiaperes.com)

1ª. edição: Fevereiro de 2006

ISBN: 972-8998-04-X Depósito Legal: 237926/06

QUIDNOVIQN III - Editora e Distribuidora Lda.Praceta D. Nuno Álvares Pereira, 20 3° CJ, 4450-218 Matosinhos Tel. +351 229 388 155 1 Fax. +351 229 388 155Avenida Infante D. Henrique, 333 H 2.22, 1800-282 Lisboa Tel. +351 218 509 080 1 Fax. +351 218 509 089 www.quidnovi.pt 1 quidnovi®quidnovi.pt

QUIDNOVIPara a minha irmã, HelenAGRADECIMENTOSHá muitas pessoas a quem gostaria de agradecer. Antes de mais, a ideia para o título ocorreu-me quando conheci Alison Rich, que trabalha na Changing Faces, uma importante obra de solidariedade que apoia pessoas desfiguradas. "Não te escondas por detrás do cabelo, olha o mundo nos olhos", era algo que o pai lhe costumava dizer. Alison proporcionou-me uma verdadeira percepção sobre o que é aprender a viver com um desfiguramento facial e sobre como isso afecta as relações com os irmãos, a família e o mundo exterior.À minha agente super-estrela Clare Alexander, por toda a sua paciência, trabalho árduo e, finalmente, a sua crença em levar o texto até onde hoje está.Adorei trabalhar na Transworld com a minha editora, Diana Beaumont, pelo seu entusiasmo, criatividade e generosa entrega à realização deste livro. Também um grande agradecimento a Kate Marshall pelos seus conselhos e trabalho no original; e a Prue Jeffreys, a minha publicitária, pelo seu excelente trabalho.Estou grata a Íris Locke e a David Peterson pela sua ajuda em diferentes trechos do romance. A Alex Edwards por me ter levado aos bastidores do espectáculo de moda Cadogan; a Gilly pela criação de Sam. Mãe e Pai – um eterno obrigado pelo vosso amor e apoio.Um enorme agradecimento à minha prima Emma, sem a qual este livro não poderia ser escrito.E, finalmente, obrigada Sophie, por inspirares a história.1"Bom dia, Eddie." Estendi-lhe um saco de papel branco com um croissant dentro.

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"O habitual, Katie?" Começou a manobrar a máquina dos cappuccinos. "Tem estado fora, não tem?""Bem, estive em Paris duas semanas a trabalhar. Passagens de modelos..." "Paris e desfiles de moda? Isso a mim soa-me a férias.""E movimentar-me entre três mil desenhadores de moda. Ao fim de algum tempo não tem muita piada, garanto! Parecia uma feira de gado." "Um cappuccino, com chocolate autêntico por cima.""Maravilha.""Um longo dia pela frente?""Sim, muito. Sempre a abrir. Nunca pára, pois não?""Voltou a mudar a cor do seu cabelo", notou ele.Sorrio entusiasmada. "Tenho o meu desfile de moda esta noite." Procuro na carteira a quantia exacta. "Estou com pressa, até amanhã."

"Têm cinco minutos!" Grito aos modelos. O vestiário está dominado pelo cheiro de fixador para o cabelo e de soluções de beleza. Atravesso o corredor. Onde está o Sam? Marco o número dele no meu telemóvel."Katie, estou a caminho, palavra", diz ele. "Num táxi, agora mesmo." Começa a imitar o barulhos dos carros. "Sim, aqui à esquerda, companheiro."ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"Sam! Estou a ouvir o telefone em fundo. Ainda estás no escritório, não estás?" "Meia hora, no máximo", garante-me com convicção."Sam, preciso mesmo de ti aqui.""Não me puxes o cabelo com tanta força", oiço Henrietta, um dos modelos, clamar. "Tens a certeza que és uma profissional?""Por favor, põe-te aqui depressa." Desligo o telefone, respiro fundo e volto ao vestiário. Hen está sentada a um canto, afagando protectoramente uma madeixa do seu cabelo louro. "Hen, cinco minutos", disse-lhe, contando-os pelos dedos. "Um, dois, três, quatro, cinco. Acabaram-se os chiliques, OK? Deixa-a acabar de te pentear."Olhei para o caos de sapatos de salto alto e pilhas de roupa preta que aguar-davam vez para serem desfiladas. Tenho uma loja em Turnham Green chamada MDN, a sigla para Mulheres De Negro, que vende roupa prática, vestidos de noite e acessórios, e esta noite fazemos a apresentação da colecção de Verão. As roupas, claro, exceptuando os exóticos adereços e as ocasionais explosões de cor para contraste, são predominantemente pretas. Comecei a organizar desfiles duas vezes por ano; é um trabalho árduo mas compensador. Este está a ser levado a cabo numa casa de Chiswick, propriedade de um cliente do Sam. A casa é tão grande que podíamos correr uma maratona dentro dela. É um local perfeito para um desfile, porque os meus clientes locais não terão de viajar muito. Os proprietários optaram também por um visual minimalista: soalhos nus, paredes brancas, projectores, grandes quadros modernos cobrindo as paredes, espelhos dourados. Na realidade, é mais um clone da casa do Sam, excepto no facto de a dele ter metade do tamanho.Consigo ouvir os espectadores a tomarem os seus lugares, lá está o familiar som de cadeiras a arrastar e a ranger. Este é o momento em que os meus nervos começam a dar de si. Pego num copo de champanhe meio cheio e deixo o seu rebordo esborratado com uma mancha de batom cor-de-rosa. "O teu copo está meio cheio ou meio vazio?" Foi a primeira coisa que Sam me disse quando nos conhecemos, num bar, seguido de "deixa-me trazer-te uma recarga", terminando com uma piscadela de olho.

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Se ele fosse um careca com mau hálito eu teria provavelmente recusado de forma polida. Mas muito pelo contrário, estava a olhar para um alto e atractivo homem de cabelo negro. A sua pele era muito lisa, sem um fio de barba.Tive de olhar em volta para ter a certeza de que falava comigo; que pegara no meu copo de vodka com água tónica.Eve, que trabalha comigo na MDN, diz-me que o fotógrafo quer dar-me uma palavra rápida antes de começarmos e que acaba de chegar alguém da imprensa. "Boa sorte, meninas", disse eu. Impressionem, sintam-se impressionantes e SERÃO impressionantes." Estaria uma das modelos a fazer-me olhinhos? Perguntei-me ao sair da sala.Uma rápida espreitadela ao espelho. Visto um dos conjuntos que esta noite apresentamos: um vestido negro sem costas que cai até um pouco abaixo do joelho. É ornamentado com missangas prateadas na linha do pescoço e do busto e ostenta um generoso decote atrás, sendo abotoado por pequenos e reluzentes botões de prata. A toillete é completada com uns sapatos de salto prateado. O meu cabelo castanho-escuro foi especialmente pintado de preto para esta noite e encontra-se meio puxado para trás com ganchos camuflados e apanhado com uma rosa branca.

O espectáculo começa com... It Started With a Kiss, dos Hot Chocolate, assim que a primeira modelo ataca a passarela com um top de cetim preto e uma saia preta, justa e de cintura descaída, compensada por um cinto artesanal coberto de contas pretas e prateadas, que brilham à luz dos holofotes. Agarra, numa das mãos, uma mala de cetim preto com um pequeno fecho prateado. Na outra, segura um copo de cocktail. Quis dar o pontapé de saída da noite com uma estonteante injecção de glamour. Desliza na direcção da lareira, com fumo castanho a entrelaçar-se pelo soalho, a seus pés. Creio que o fumo se assemelha às nuvens que vemos através das janelas dos aviões. A audiência sente-se maravilhada e aplaude a saída do modelo. Descubro Emma, a minha antiga colega de escola, sentando-se numa fila do fundo. Ninguém consegue desaperceber-se da sua entrada numa sala. Mede quase um metro e oitenta e sempre jogou no lugar de defesa nas aulas de netball'. Dirige-me um "olá" mudo, articulado com os lábios, e volta-se para o seu programa. Sam, onde estás?

Murder on the Dancefloor, de Sophie Ellis-Bextor, toca quando Henrietta entra, com ar infeliz, mas determinado, de cabelo apanhado num rabo-de-cavalo'Espécie de basquetebol, jogado sobretudo por mulheres. (N. da T)ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOSe saltos altos a ressoarem pelo soalho. A mãe dela encontra-se na fila da frente, contemplando-a com devoção. "Henrietta e mãe" fazem parte do mesmo pacote, como a espremedela e o esguicho. A mãe de Hen é uma criatura trivial, mas carregada de massa, e depois de a sentar numa chaise-longue a um canto da minha loja, de a abastecer com algumas bebidas e, grosso modo, de a tratar como realeza, acaba por comprar à sua querida filha Henrietta quase toda a minha colecção. "Tudo o que quiseres, não me importo", diz ela num crescente atabalhoado. Sam pergunta-me frequentemente se "a velha esponja do canto" também apareceu. Ele sabe que, em caso afirmativo, será a sua noite de sorte.Quando a música atinge o auge, Henrietta vira-se, dramaticamente, olha para a mãe, que grunhe e bate com a bengala no chão em sinal de aprovação, e pavoneia-se para fora da sala. Até agora tudo corre bem, penso para com os meus botões. Toda a gente comenta, há um cochicho generalizado no ar e os espectadores seguem o programa com interesse, tomando notas - sempre um bom sinal.

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A rapariga seguinte dança num vestido de noite zebrado, usado com uma capa escarlate. É um dos meus conjuntos favoritos. O seu cabelo está pintado de negro azeviche, com uma franja bem delineada, muito Chicago-style. Superstition, de Stevie Wonder, entra em acção na mesa de som. Acomodo-me na cadeira. Esta música faz-me sempre lembrar a minha casa. Os meus tempos de escola. "Cala-me essa maldita barulheira!"ouve-se do estúdio da mãe quando I Just Called To Say 1 Love You, de Stevie Wonder, toca vezes e vezes sem conta no quarto da minha irmã. Não consigo evitar um sorriso. Um outro mundo, agora.Mas penso na Bells. Recordo-me da sua carta a deslizar por entre as páginas do meu diário de pele, aquela caligrafia certinha e familiar. Ainda nem a abri. Não tive tempo esta manhã. Sinto-me culpada quando recebo as suas cartas porque não lhes dou resposta. Tenciono fazê-lo, mas depois acontece sempre qualquer coisa atrás de outra - viagens ao estrangeiro, trabalho, saídas, aulas de ioga, festas, Sam... tudo se mete no caminho. "Quanto tempo é preciso para escrever uma carta?", censura o pai. "E uma arte em extinção. Ela iria adorar receber notícias tuas." Stevie Wonder desvanece-se e frescas nuvens de fumo encantam o caminho pela passarela.

O fotógrafo da Tatler tira mais uma fotografia dos modelos perfilando em grupo. "Por último, e muito importante, gostaria de agradecer à senhora Todhunter por me ter deixado usar a sua fabulosa casa para este evento, espe-cialmente quando solicitado com tão pouco tempo de antecedência", anuncio. Todos aplaudem quando lhe aperto a mão. "Por favor, fiquem para uma bebida, e mais uma vez obrigada por aqui terem estado esta noite." O público aplaude de novo e começa a dispersar-se.Aperto mãos, beijo rostos, movimento-me por entre toda a gente numa onda de exaltação, ouvindo, "adorei o espectáculo, Katie", ou "formidável", ou "querida! Tens ar de um milhão de dólares", a minha taça de champanhe constantemente reabastecida e a adrenalina selvaticamente aos saltos. Eve diz-me que o fotógrafo gostaria de tirar uma última e breve fotografia para o artigo. Dou uma volta para o saudar e ponho o meu melhor sorriso rasgado, esforçando-me, em simultâneo, por não mostrar demasiados dentes. "Obrigado", diz-me ele depois de tirar a fotografia, "grande espectáculo", acrescenta."EU é que lhe agradeço por ter vindo", respondo, perdendo o equilíbrio por um segundo. Já me sinto bastante embriagada; espero que ele disfarce as reveladoras manchas vermelhas do meu rosto.Sinto um caloroso braço a deslizar em volta da minha cintura e volto-me. "Sam." "Parabéns, querida, foi sensacional." Dá-me um beijo, a sua pele macia de bebé contra a minha face."Perdeste metade do espectáculo." Mas sorrio, toda a minha anterior agitação se derreteu assim que o vi."Vi a melhor metade.""Desculpa a minha rispidez de há pouco, Sam. Estava a ter o meu habitual ataque de pânico antes do show." Fiz-lhe uma careta retorcida e apatetada."Tudo bem, não te preocupes." Desaperta a gravata e em seguida inclina-se para mim e segreda, "A velha esponja do canto, anda por aí?"Emma começa a caminhar na minha direcção, vestida com umas calças pretas manifestamente de trabalho e um casaco de malha turquesa, que lhe acentua o tom moreno de pele. É médica e muito provavelmente terá vindo directamente do hospital. No entanto, antes que conseguíssemos dizer olá: "Katie, querida, este foi o melhor espectáculo de sempre", diz Antónia, uma das minhas clientes, que vive mesmo ao virar da esquina da loja. "Infelizmente, tenho de me ver livre desta barriga pós-parto antes de

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pensar sequer em comprar alguns destes conjuntos insinuantes." Ri-se de si mesma, esperandoALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOSque um de nós a contrarie, dizendo-lhe que, tendo em conta as circunstâncias, ela está fabulosa."Tu recuperaste a forma tão rapidamente, Antónia", assevero-lhe, "podias muito bem usar qualquer uma das minhas roupas.""Verdade?" Ruboriza-se e apalpa o rosto. "Bem, talvez apareça amanhã para uma sessão de provas. Estou convidada para uma festa de noivado. Uma coisa muito chique, com jantar e arraial completo.""Bem, tenho a certeza que a MDN te poderá ajudar. Como está o bebé?", perguntei."Talvez o leve comigo até à loja", ri-se ela com a sua própria piada, "e peça uma indemnizaçao. Umas noites de sono, já seria simpático."Sam, Emma e eu respondemos com uns monossílabos de assentimento embora não fizéssemos a mais pequena ideia do que estaria ela a tentar dizer-nos. Emma é, de todos nós, a que está mais perto de ter filhos, dado o seu noivado com Jonnie. Para mim, a ideia de ter um bebé é aterradora. Preferia viver num monte de estrume a passar por todos os traumas que a minha mãe passou. "Antónia, deixa-me apresentar-te Emma, uma antiga colega da escola e amiga da família, e o Sam, o meu..." Companheiro? Cara-metade? Não. "O meu namorado", concluí."Bem, aconselho-os vivamente a tomarem precauções." Acena com a cabeça para mim e para Sam, rindo-se novamente do seu sentido de humor. "É esgotante. Para ser honesta, nunca quis ter mais de um filho, mas o pobrezinho do Billy queria tanto ter um maninho ou uma irmãzinha. O meu marido diz que é um grande egoísmo ter apenas um filho. Diz-se que os filhos únicos são uns diabinhos mimados, não é verdade?""Eu sou filho único", corta Sam, passando uma mão pelo cabelo. Apercebo-me que pisca o olho a Emma.Antonia ruboresce de novo. "Tens família, Katie? Tenho a certeza que terão imenso orgulho de ti e de tudo o que alcançaste. Teres conseguido o teu próprio negócio e levares a cabo tudo isto." Olha de relance para a sala. "Os teus pais devem estar aqui esta noite, não?""Não. Infelizmente não puderam vir." Olhei para Emma e para Sam, com a esperança que eles mudassem de assunto. Em vez disso, Sam pergunta-me onde fica a casa de banho e pedindo licença, afasta-se."Que pena. Tens irmãos? Irmãs?", pergunta com curiosidade.Olho à minha volta. Sam encontra-se fora do alcance da minha voz. "Não, sou só eu. O meu pequeno velho eu." Emma dirige-me um intenso e duro olhar. É curioso como uma questão tão insignificante pode produzir de imediato um efeito tão grave."Oh", exclama Antónia com artificialidade. "Bem, não tem importância. Não tem nada de mal ser-se filho único, isto é, tal como disse antes, devia ter parado no primeiro", continua ela, enterrando-se cada vez mais."Emma, não comeces." Faço uma careta de aviso assim que, finalmente, nos afastamos de Antónia."É contigo", responde-me ela num tom de voz ligeiramente irritado, que me deixa muito pouco à vontade."É simplesmente mais fácil, e depois não apanho com todas aquelas embaraçosas perguntas ou com aqueles horríveis sorrisos compassivos.""Tudo bem", diz Emma, mas a sua voz não se revela mais indulgente, "se achas que é melhor, continua. Não te preocupes com isso."

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Odeio quando ela manifesta a sua faceta virtuosa. As bebidas passam de novo por nós e ambas nos servimos de um copo."Está bem, regressemos ao trabalho", digo eu, caminhando em direcção à mãe de Hen com uma taça de champanhe.Sam dá a volta à chave e entramos. Ele e eu andamos juntos há nove meses, mas mudei-me para casa dele apenas há três. Sam trabalha na City. Negociava divisas e foi assim que fez a sua fortuna. Agora trabalha em "fusões e aquisições", ou "F & A", como Sam lhe chama. Vive em Notting Hill, a um pulinho da Portobello Market, da famosa livraria especializada em literatura de viagens e do Electric Cinema. Foi uma decisão bastante impulsiva da minha parte, mas nenhum de nós conseguia vislumbrar qualquer vantagem em mantermo-nos separados, já que eu acabava por ficar com ele quase todas as noites. No que me toca é muito fácil viver aqui, uma vez que estou apenas a dez minutos da loja. Num saltinho apanho o autocarro 94 que me leva directamente a Turnham Green; a minha loja fica junto a Turnham Green Terrace. Dantes vivia em Chapham com o meu anterior namorado, o que me obrigava a uma grande caminhada. Além disso, o Sam tem uma televisão enorme em cada quarto, e até uma sauna no último piso. Como poderia ter dito que não quando me pediu para ir viver com ele?ALICE PETERSONA mãe ficou imediatamente cheia de suspeitas, disparando perguntas. "Quem é este homem? Tens a certeza que estás preparada, Katie? Saltas de uma relação para outra como se não houvesse amanhã." A reacção dela não me surpreendeu de todo, mas fez-me querer ainda mais mudar para casa dele.Sam apanha o correio do chão, lixo na sua maior parte — empresas de entrega de pizzas, firmas de táxis recomendando os seus serviços, um postal dizendo que veio o homem fazer a contagem da electricidade mas ninguém estava em casa. "Nada que não possa esperar", disse ele, atirando tudo para cima da pequena mesa do átrio. Envolveu-me com os braços."Estou cansada e feliz", disse eu, com um soluço. "E muito bêbeda. Esta noite correu mesmo bem, não correu?""És uma deusa da moda, minha querida."Dei-lhe um beijo. "Muito obrigada por me teres ajudado a organizar esta noite." Eu sei que o Sam fez mais que o necessário para conseguir que o Sr. Todhunter autorizasse o desfile em sua casa. "Tu sabes, não poderia ter feito isto sem ti."A face do Sam arde de orgulho. "Foi um prazer. Somos uma equipa, tu e eu. Estou feliz por ter ajudado.""Bem, creio que somos uma equipa de topo.""Também eu. A melhor."Olho por cima do ombro dele. A luz vermelha do atendedor de chamadas está a piscar."Ignora-a. Que tal um licor? Conhaque?" Sam começa a cantarolar enquanto desce as escadas em direcção à cozinha."Sim, adoraria um." Olho de novo para a máquina. Porque sinto desejo de ver quem telefonou? Tenho a certeza de que a chamada é para mim. Descalço os sapatos de salto alto, doem-me os pés por ter estado tanto tempo de pé. Afasto-me da máquina levando os sapatos comigo, e depois volto outra vez para trás e decido que posso muito bem ver quem deixou a mensagem."Uma sauna?", sugere o Sam antes de eu carregar no botão. Segura dois copos e uma garrafa de conhaque. "Deixa isso para amanhã. Deve ser o Maguire. Disse que telefonaria esta noite." Pega na minha mão e sorri. "Tenho uma surpresa para ti, anda.""A sério?", dei uma gargalhada e segui-o escadas acima.2

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Depois de uma corrida matinal para afastar a ressaca, cheguei à loja com o meu habitual croissant e cappuccino e um pain au chocolat para a Eve, que é viciada em chocolate. Encontrei-a a examinar os livros para ver como tinha corrido a noite passada. "Temos muitas encomendas, especialmente para os vestidos de renda francesa, e muita gente para a lista de mailing" , disse, parecendo ainda mais encantada quando lhe estendi o bolo."Maravilha! A noite passada correu ainda melhor do que eu esperava. Eve, tenho de te contar", continuei entusiasticamente: "O Sam este Natal vai levar-me a esquiar em Meribel! Foi uma surpresa, deixou os bilhetes na minha almofada.""Ele é um sonho", suspirou. "O Hector e eu não estamos muito bem actualmente." Hector é o namorado dela. "Vocês os dois têm uma relação muito séria, non?" Eve é francesa. Quando, há seis meses, publiquei um anúncio procurando uma nova assistente para a loja, ela mostrou uma classe acima de qualquer outra. Chegou a horas, vestindo uma camisola preta de gola alta canelada com uma saia de camurça camel e o seu longo cabelo louro mel apanhado num irrepreensível rabo-de-cavalo. Respondeu às minhas perguntas tão séria que o seu futuro parecia depender disso. "Gostaria de trabalhar aqui consigo, Katie. Espero conseguir este emprego", disse. E, tocando na minha secretária, acrescentou: "Estou a bater na madeira.""Creio que sim, que temos uma relação séria. Sou uma rapariga cheia de sorte."ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"E ele também é um sortudo. Talvez seja `o tal', Katie?" "Talvez", respondo-lhe sorrindo.

Já é quase noite e estou prestes a fechar. Ouço uma pancadinha na janela da loja e vejo o Sam lá fora, de óculos escuros, segurando uma garrafa de vinho embrulhada em papel de seda e um ramo de lírios.Dá-me um beijo e entrega-me o ramo de flores. "Lembrei-me de te vir buscar à loja hoje, despachei-me mais cedo, para variar.""E a que se deve tudo isto?", sorrio. "Esqui e agora flores com chauffeur. Se continuares assim nunca mais te quererei deixar, portanto, é melhores teres cuidado."É precisamente essa a ideia, Kitty-q'rida", responde ele beijando-me nova-mente. Estamos num quente entardecer de Verão e os bares e restaurantes abriram as portas. Já se começam a juntar grupos de amigos que, à saída dos seus empregos, aproveitam os últimos raios de sol bebendo e conversando juntos.

"Lembra-te que esta noite vamos sair", recorda-me Sam ao abrir a porta do carro."Vamos? Que vamos fazer?""Apontei na tua agenda social, Katie. Vamos jantar com o Maguire e com a sua nova lady. " Sam interrompe-se com um pequeno número de sapateado cada vez que pronuncia a palavra "lady". "Disse que ia preparar um churrasco.""Bestial. Desculpa, esqueci-me completamente. Hoje o dia foi agitadíssimo. A Eve e eu não tivemos um minuto de descanso, nem mesmo para almoçar. Vou ter de contratar outra pessoa." Dirigi-me para o atendedor de chamadas e carreguei no botão do play. "Podes preparar-nos uma bebida, Sam? Um simpático copo de vinho?", acrescentei."Katie, é o teu pai",diz uma voz familiar num tom grave.Fiquei pregada ao chão. Devia ser esta a mensagem de ontem à noite. Sabia que estava para acontecer qualquer coisa. Sentia-o. Não estamos sempre à espera que alguma coisa se insinue sorrateiramente e corra mal, quando tudo nos corre excepcionalmente bem?"Preciso de falar contigo. É..." Dá uma tossidela. "É realmente urgente."

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Engoli com muita dificuldade. Oh, meu Deus, aconteceu alguma coisa à mãe. Ou talvez à Bells. Terá morrido alguém da família? A tia Agnes? Ele deve ter estranhado o facto de não ter respondido ao seu telefonema.Sam olha para mim, curioso. "O teu velhote nunca telefona para aqui. Deve precisar de alguma coisa."Sam tem razão. O pai telefona-me sempre para a loja. Por que razão não ligou hoje para lá, se é uma coisa assim tão urgente? "Não sei", respondi distraidamente comprimindo os lábios."É a tua mãe. Ela tem-se matado a trabalhar", continua o pai, "sabes como ela é, e nós não temos umas férias decentes há anos. Fomos ao médico e ele recomendou vivamente uns dias de descanso. Vou levá-la para fora. Portanto", diz ele, demorando-se na palavra, "precisamos de conversar sobre quem ficará a tomar contar de Bells."Bells. Não digas mais nada, papá, por favor. Pede-me para te telefonar e desliga."Quem é o Bells? É o teu cão?" Sam olha para mim.Aceno com a cabeça. "Tenho a certeza que não é nada de grave. Sam, e o tal copo de vinho?", peço-lhe, rezando para que ele se afaste, descendo as escadas em direcção à cozinha."Katie, tu sabes que eu odeio animais de estimação."Olho-o de testa franzida. "Bebida?""A tua mãe e eu vamos para França duas semanas", continua o pai.Sam está neste momento a abanar a cabeça. "Sentar-me ao lado do cão da minha mãe, o Doogle, é como sentar-me ao lado de um peixe velho. Chamo-lhe Ilustre F. Breath.""Sam! Vai! A bebida!""...e a Bells vai precisar de alguém quando formos embora, não a podemos deixar sozinha", diz o pai."Ainda por cima acabei de comprar estes sofás de couro", protesta Sam. "Por favor, não quero aqui nenhum cão a alçar a perna. Oh. A Bells é uma cadela?""Vai preparar-me um banho", exijo-lhe agora, sentindo-me a arder por baixo da pele. O pai continua a falar e estendo a mão para carregar no stop, mas Sam impede-me, colocando a sua mão firmemente sobre a minha. "O que se passa, Katie? Cristo, e eu a pensar que tinha uma relação esquisita com os meusALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOSpais." Sam foi sempre muito reservado a respeito dos pais. Lembro-me de achar estranho que tratasse o pai pelo seu primeiro nome, Julian."Quem é o Julian?", perguntei-lhe. "O meu pai", respondeu ele num tom de voz tão formal que desencorajava quaisquer outras perguntas."Preciso mesmo de falar contigo, de planear as coisas", continua o pai. "Vou estar todo o dia fora amanhã, portanto, podes telefonar-me esta noite?" Seguiu-se uma longa pausa.Queria dizer, PAI, DESLIGA, POR FAVOR, CASO CONTRÁRIO NUNCA MAIS TE PERDOAREI, mas a minha boca secara completamente e encontrava-se incapaz de pronunciar uma única palavra. Para mais, não posso dizer nada quando o Sam está ao meu lado. A sua presença é como uma arma pronta a disparar.O pai respira fundo, hábito que herdei dele. Sam diz que o faço quando estou inquieta com alguma coisa. Parece que estamos a chupar uma palhinha. A mãe odeia-o.Sam ri-se. "Ele parece tão sério. Trata-se apenas de um raio de um cão, não é verdade Katie? Qualquer um ficaria convencido que está a falar do futuro do euro.A minha agitação atinge o ponto de ebulição. "Sam, vai lá preparar-me um banho, POR FAVOR."Empurra-me. "OK, OK. `Prepara-me um banho, prepara-me uma bebida,"', imita.

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"Se não me disseres nada telefono-te mais logo", termina o pai. "Temos de conversar."Sinto-me como se já pudesse respirar de novo quando o gravador de chamadas indica o fim do telefonema. Nunca antes me sentira tão aliviada quando ouvi "Não tem mais mensagens novas.""Desculpa, Sam", digo-lhe quando ele volta com uma bebida e eu consigo ouvir a água do banho a correr abundantemente. "Não queria ficar irritada." Levantei os ombros e rodei o pescoço. "É o pai, ele é tão perturbador. É melhor telefonar-lhe. Sobe, vai-te preparando para sairmos.""O cão da mãe até urinou em cima do seu vestido de noiva",comenta Sam abanando a cabeça enquanto sobe as escadas. "Nada de cães, Katie. Desculpa. Podes viver aqui, mas sem cães. Conversa acabada. Capisce?"São duas da manhã e não consigo encontrar os meus cigarros. A noite foi deprimente porque não consegui parar de pensar na Bells. O Sam nunca teria adivinhado que eu não me estava a divertir. Sorri nos momentos certos e ri-me quando o Maguire contava as suas anedotas obscenas. Mas o Sam não pode sacudir este problema para longe. Isto é sério. Porque haveria de acontecer logo agora, que as coisas estavam a correr de vento em popa? E onde terá o Sam escondido esses cigarros? Olho para cima, para os armários da cozinha. Não há nada na cozinha do Sam. Todas as superfícies são cuidadosamente mantidas nuas; na realidade, não há muita coisa seja onde for, excepto esta escultura que parece construída com garrafas de leite coloridas. O Sam disse-me que reflectia o estado de espírito do mundo moderno.Abro um dos armários e corro os olhos pelas prateleiras. O Sam pode ter enfiado os cigarros dentro da panela de pressão, um belo lugar, visto nunca a usarmos. Não. Firmo-me nas pontas dos pés e corro a mão a todo o comprimento do armário. Estava capaz de matá-lo. Se quero um cigarro, porque não o hei-de fumar?Abro as gavetas com impaciência, fechando-as violentamente quando não aparecem quaisquer cigarros. Repito mentalmente o telefonema que no início da noite fiz ao meu pai."Katie, nós temos consciência que te estamos a pedir muito, mas preciso da tua ajuda", disse ele."É tudo tão repentino, porque não me falou antes de como a mãe tem andado cansada?""Não te consigo ouvir, fala mais alto."Tive de repetir a pergunta outra vez, mantendo uma orelha atenta ao que o Sam estava a fazer. Conseguia ouvi-lo lá em cima, abrindo o guarda-roupa; a água do banho continuava a correr."Oh, Katie, sabes como ela é orgulhosa. Nunca sairíamos, a menos que eu organizasse tudo. Olha, é por duas semanas.""Como está ela?", perguntei, mordendo o lábio. "Pai?""Ela ficará bem desde que faça uma pausa e possamos desfrutar de algum tempo agora.""Certo", reconheci. "Eu sei que precisam de umas férias, mas não tenho a certeza de poder tomar conta da Bells. Avisa-me muito em cima."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Está tudo marcado", disse o meu pai firmemente.Ir em frente sem me consultar é contrário ao seu modo de ser. Como pode saber se estou livre? Também posso ir de férias, ou sair em negócios. "Não há mais ninguém a quem possamos pedir?""Que sugeres?""A tia Agnes. Ela adoraria ficar com a Bells. Ficará bastante aborrecida se não lhe perguntarmos."

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"A Bells quer ficar contigo.""Porquê?" A minha voz transformou-se num sussurro perfeitamente audível. "Não posso ficar com ela."A paciência do meu pai estourou como uma bolacha. "Não podes ou não queres?""E a minha loja? Não posso deixar tudo. Lamento. Vamos ligar à tia Agnes.""Agora ouve com atenção, Katie. Até hoje, a tua mãe e eu nunca te pedimos nada. Precisamos de algum tempo juntos e a Bells perguntou especificamente se podia ficar contigo em Londres. Eu disse-lhe que deveria escrever-te para to perguntar pessoalmente. Não recebeste a carta dela?"O meu pai parecia tão inflexível que não me atrevi a dizer-lhe que não a tinha aberto, que ainda estava no meu diário. "Os correios devem tê-la perdido, nos dias que correm não podemos confiar neles.""Oh, Katie." Levantou a voz exasperado. "Por que razão nunca lhe escreves? Ela está sempre a perguntar por ti. `Como está a Katie? Nunca vejo a Katie."'Quase podia ouvir a Bells dizendo aquilo e o meu coração derreteu por uma fracção de segundo. O meu pai deve ter sentido isso, porque a sua voz se suavizou momentaneamente. "Isto significaria tanto para ela, e para nós."Voltemos à realidade. "Pai, duas semanas é muito tempo. Nem sequer é a minha própria casa.""Compreendo que tenhas de perguntar ao Sam. Nós ajudaríamos com as despesas e...""Não, a despesa não é problema." Nesta altura o Sam desceu as escadas enrolado na toalha e perguntou-me por que razão estava a demorar tanto. O banho estava pronto. Veio-me à cabeça uma ideia. Podia persuadi-lo a ir jogargolfe com o Maguire durante o fim-de-semana. Nunca chegaria a saber. "Posso ficar com ela por um fim-de-semana?""E nesse caso, para onde iria ela durante o resto do tempo?""Ela não pode ficar no País de Gales?", era a minha última e desesperada tentativa."Bem, pode, mas isso é miserável, muito francamente", disse ele com uma voz carregada de frustração.Compreendi tudo isso, mas... "Tenho muita pena, pai. Eu realmente não posso. Se tivesse o meu próprio apartamento..."Interrompeu-me bruscamente. "Não é essa a verdadeira razão, pois não Katie?" "Que quer dizer?""Não está já na altura de partilhares a responsabilidade pela tua irmã? Vais fingir que ela não existe para o resto da tua vida?"Ele sempre foi capaz de ler os meus pensamentos tão facilmente como se os visse ao espelho. Inspirei profundamente, puxando firmemente uma madeixa do meu cabelo. "De que está para aí a falar?""O Sam sabe da Bells?""Sim", disse eu em voz fraca."Não podes deixar sempre isto com a tua mãe e comigo. O que vais fazer se alguma coisa nos acontecer? Nessa altura, a Bells será da tua responsabilidade. Alguma vez...""O que quer dizer com acontecer-lhes alguma coisa? Como por exemplo?""Se não podes ficar com a Bells, telefona-lhe e diz-lho tu mesma", continuou ele. "Não vou ser o mensageiro das más notícias." A voz do meu pai tremia agora de fúria. "É apenas por duas semanas da tua vida e depois tudo pode voltar ao normal para ti", acrescentou de modo contundente."Pai, que queria dizer há bocado?", pressionei. "Está tudo BEM, não está?""Quis apenas dizer-te que eu e a mãe não estaremos cá sempre para tomar conta da Bells. Um dia terás de nos substituir, ser o seu guardião. Katie, não te quero assustar, mas temos de encarar a realidade, isto é algo em que tens de pensar."

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Mas eu não quero. Emma também me disse o mesmo. Ela gostava que eu passasse mais tempo com a Bells. "Depois de os teus pais, tu és o seu familiar mais próximo", diz sempre ela."Katie?"ALICE PETERSON"Está bem, ela fica comigo", respondi-lhe relutantemente.Ouviu-se um grande suspiro de alívio. "Isso é fantástico, obrigado", disse o pai.

Frustrada na minha demanda pelos cigarros, pus a chaleira ao lume para fazer uma chávena de chá para mim. Será injusto pedir a Sam que fique com a Bells por duas semanas? Se eu estivesse na minha casa, bem, aí seria diferente, desculpo-me. Oh. Meu Deus, quem quero eu enganar? E no entanto, continuo furiosa com o facto dos meus pais me terem colocado nesta situação. Corta as pernas a ambos, pai. Tenho uma vida para viver. Tenho uma carreira. Não posso deixar tudo para tomar conta da Bells, como tu e a mãe fizeram. Este sempre foi o mote da nossa família. Pensei ter conseguido escapar a tudo isto.Massajo a testa tentando desesperadamente pensar numa alternativa. Telefono à tia Agnes? A Bells passaria muito melhor o tempo com ela. Eu adorava passar as minhas férias com ela.Não posso voltar para a cama, não conseguiria dormir. Ao fundo, ouve-se a chaleira com a água a ferver. Como vou lidar com a minha irmã? Como irei apresentá-la aos meus amigos? A Eve? Ao Sam?Remexo a mala à procura do meu diário. Dentro dele está a carta da Bells. Abro-a. O endereço, a data e a hora estão cuidadosamente sublinhados no canto superior direito.

Para a minha irmã Katie FletcherMamã e papá irem para França e eras muito boa se ficares comigo nas férias de Verão.Para ficar com a tia Agnes, Suffolk muito longe, era muito bom ficar com Katie em Londres por favor.Há muito tempo que te vi e País de Gales perto de Londres.Beijinhos, Bells.

Dobrei a carta e meti-a novamente dentro do diário. Como podia eu dizer que não?31982Tenho sete anos. Gosto de ficar com a tia Agnes, que vive em Suffolk, perto do mar. Ela faz o melhor bolo Floresta Negra, com verdadeiros pedaços de chocolate preto, e cozinha batatas fritas caseiras, com batatas verdadeiras, numa enorme e funda fritadeira. É muito bonita e usa uns óculos presos a um fio de pequenas missangas castanhas, que mais parece um colar, e um avental aos quadradinhos quando está a cozinhar. Tem uns sapatos bicudos que parecem sapatos de bruxa e um comboio miniatura com carris com o qual brinco no seu enorme jardim.O marido também é muito engraçado. O tio Roger. Uma vez, ao sentar-se, a sua cadeira desmanchou-se toda. "Esta casa parece uma senhora de idade", disse a tia Agnes. "Precisa de uma pequena cirurgia plástica."Acho a casa deles assustadora. O tio Roger jurou-me ter visto o fantasma do seu pai no cimo das escadas. As escadas rangem, até a minha cama range quando me viro. Os corredores são escuros e cheiram a velho e eu subo e desço estas escadas assombradas a correr, o mais depressa que consigo, em direcção ao meu quarto. "Ela é apenas uma miúda, mas acho que vai acabar por chocar com eles", ouvi um dia o tio Roger dizer.

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Estou com o tio e a tia enquanto a mãe tem o bebé. A mãe considera a gravidez difícil. Sofreu três abortos – o pai explicou-me o que era um aborto – e nesta sua última gravidez passou a maior parte do tempo deitada. AgoraALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOSchegou o momento de eu voltar a casa. "A tua mãe teve uma menina", diz-me a tia Agnes. "Vais precisar de dar uma grande ajuda à tua mamã. Ela vai sentir-se muito cansada." Não está a sorrir nem um pouco e olha insistentemente de relance para o tio Roger, que encolhe os ombros.A tia Agnes tem passado o tempo todo que aqui tenho estado tão entusiasmada, mostrando-me constantemente modelos de malhas para bebé e perguntando-me se devia arriscar e tricotar as botinhas do bebé em cor-de-rosa, para uma menina, ou se seria preferível "ficar quieta", para o caso de ser um rapaz. Cada frase sua começava ora com "Katie, se a tua mãe tiver uma menina..." ora com "tenho a certeza que é um rapaz, sinto-o nos ossos." Até quando fomos à Sainsbury's ela disse à empregada da caixa registadora que eu aguardava a chegada de um irmãozinho ou de uma maninha. A tia Agnes tem o hábito de agitar os braços quando se entusiasma, e as suas pálpebras tremem como uma borboleta. Às vezes, quando está bem disposta, põe a língua de fora.A rapariga da caixa registadora tinha um círculo escuro em volta dos olhos e não pareceu minimamente impressionada com as nossas boas notícias. Enquanto as bolachas Club de chocolate e os pequenos pacotes de cereais passavam por ela, disse: "Eu cá nunca hei-de ter filhos nem nunca hei-de casar. Homens, só são bons quando precisamos que façam alguma coisa."A tia Agnes rebentou a rir enquanto enfiava as compras dentro dos sacos. "O que aquela rapariga vai perder na vida", disse-me ela, já dentro no carro aquecido, a caminho de casa. "Quando cresceres, Katie, promete-me que tens um monte de filhos, sim? Enche a casa com eles. Não fiques só como o teu velho tio Roger e eu." A mãe e o pai contaram-me que a tia Agnes não pode ter filhos. É por isso que eles gostam tanto que eu faça as malas para os ir visitar nas férias. O jantar desse dia foi passado a decidir que nomes havíamos de dar ao menino/menina. Agora, a tia Agnes parece não saber o que dizer a respeito do recém-chegado. Como se se tratasse de uma má notícia.Na estação, abraça-me e pede-me que seja uma menina corajosa. Não a compreendo. Tenho sete anos e viajo sempre sozinha para Suffolk. O revisor ajuda-me dentro do comboio e o pai está presente para me ir buscar quando chegamos. Não acontece nada que me exija coragem. O comboio marcha a caminho da casa dos pais e eu vou até à carruagem-bar comprar uma bolacha de alteia com recheio de morango e um pacote de batatas com sabor a cebolae queijo. No meio das minhas trincadelas de boca cheia tentava imaginar qual seria o aspecto da minha irmã. Seria parecida comigo quando eu era pequena? O pai costumava dizer que eu era loira, com uns olhos enormes, de pele branca com covinhas nas bochechas e pernas rechonchudas como baguetes. "Também costumavas enfiar as tuas cuequitas na cabeça." Ria-se ele. "Fingias que eram lenços como os que a tua mãe usava"O pai encontra-se comigo na estação, como habitualmente, trazendo os seus óculos escuros e parecendo ainda mais magro e alto que o costume. O meu pai mede cerca de 1,87 m. Hoje tem vestido os seus velhos jeans, que normalmente só usa para trazer por casa, e o seu espesso camisolão de malha cinzento, que combina com a cor do cabelo. Está sempre a queixar-se que o seu cabelo se esbranquiçou muito prematuramente. Ajuda-me com a minha pequena e lustrosa mala vermelha quando mostro ao revisor da estação o meu bilhete todo amassado. Não trago muita coisa dentro da mala, apenas uma elegante saia para a noite, um par de calças de ganga e uma camisola, a minha escova de dentes e o pijama. Durante o caminho para casa tive vontade de fazer um

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monte de perguntas sobre o novo bebé. No entanto, sentia-me como se tivesse uma coisa atravessada na garganta, o que me impedia de as fazer. Assim, viajámos até casa em silêncio. O pai nem ligou o rádio para ouvir as notícias. Ele adora ouvir os noticiários. De manhã, ao meio-dia, à tarde e à noite, a primeira coisa que faz é ligar o rádio. A mãe diz que esta é a sua "doença nervosa". Finalmente, o pai acaba por dizer qualquer coisa. "A tua mãe está cansada", diz-me, repetindo tal qual o que a tia Agnes dissera. Acrescenta que eu tenho de ser uma menina boazinha. Agarra-se ao volante com tanta força que consigo aperceber-me dos nós dos seus dedos a esbranquiçarem-se. Também conduz com mais velocidade que a habitual."Chegámos", chama o pai em voz alta. A casa está mergulhada num profundo silêncio. Normalmente, quando chego da escola ou de outro lugar qualquer, ouve-se em toda a casa a música clássica que a mãe põe a tocar no seu estúdio. Uma qualquer cantora maluca de ópera guincha para fora do quarto e eu enfio sempre os dedos nos ouvidos. Hoje, subimos as escadas em direcção ao quarto dos meus pais, onde sobre a sua cama de casal se encontra uma coberta acolchoada que a mãe costurou a partir do seu vestido de noiva. "Não faz sentido ficar a vê-lo amarelecer no cabide", disse-me ela uma vez.ALICE PETERSONNão faço ideia de como conseguiu transformar um vestido numa colcha, mas a mãe consegue transformar tudo em algo de útil. "Só precisa de torcer o nariz e tudo se transforma em ouro", diz o pai.A mãe está sentada na cadeira, ao lado da cama, vestindo a sua velha liseuse. O pai bem tenta oferecer-lhe outro casaco de dormir, mas ela não desiste deste. "É como uma reconfortante refeição", explica ela. "Um pegajoso pudim de caramelo." Dou-lhe um beijo na face, mas ela não se mexe, deixa-se ficar ali sentada, muito quieta, tal como a avó se senta no seu cadeirão, a um canto da cozinha, quando vem passar uns dias connosco. Mas há algo de errado neste sossego da mãe. Não é nada normal nela. Não devia estar feliz, uma vez que acabou de ter um bebé? Pelo contrário, parece encolhida e derrotada e o seu rosto encontra-se frio e seco.O berço está no meio do quarto. Parece abandonado e não se ouve um único ruído vindo da sua direcção. A mãe olha para o pai, que parece fazer-lhe uma espécie de sinal secreto. Os seus olhos estão vermelhos e inchados, como se tivesse estado a chorar toda a noite."Antes de veres a tua nova irmã...", começa o pai lentamente. Sei então que há algo de muito errado e sinto-me assustada. Corro imediatamente para o berço e olho para o bebé.4"Acreditavas sinceramente que o Sam nunca viria a conhecê-la?", perguntou Emma, polvilhando pimenta nos nossos houmous. Estamos a comer num restaurante grego local. É a nossa habitual saída das terças-feiras à noite. Emma e eu vamos a uma aula de ioga seguida de uma bebida e de uma ceia. Às terças-feiras o Sam joga póquer com o Maguire e mais alguns colegas de trabalho.Emma inclina a cabeça para o lado quando faz perguntas – também faz isso quando vê televisão, franzindo a testa para se concentrar. Emma e eu sabemos quase tudo acerca uma da outra, uma vez que somos amigas há vinte e cinco anos. Em tempos foi a minha vizinha do lado. Andámos na escola e no ballet juntas, até que disseram a Emma que era demasiado "ossuda" para ter futuro a fazer piruetas. Agora é alta e graciosa, mas quando era pequena tinha "forma de perdiz", como o meu pai gostava de dizer. Costumava ir à cozinha roubar pacotes de batatas fritas da caixa de cartão e ia-a comê-los para o fundo do jardim. Por outro lado, eu era rechonchuda; a professora perguntava-me constantemente se me andava a alimentar correctamente.

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Costumávamos ter em casa uma caixa com roupas velhas e tínhamos o hábito de vestir os casacos de pele antigos da minha mãe, calçar os seus sapatos de salto alto e sairmos, pavoneando-nos até às lojas, levando connosco a Peggy, a cadela da minha mãe, firmemente segura pela trela. A Peggy nunca caminhava ao meu lado, tinha de a arrastar e ela chocava com tudo ao longo doALICE PETERSONpasseio. Vivi a maior parte do meu tempo em casa de Emma. Quando as coisas em minha casa ficavam difíceis ou o meu pai e a minha mãe estavam no hospital a visitar Bells, eu ficava com Emma. Adorava a sua irmã, Berry, por ser muito bonita e tudo quanto eu desejava ser. A casa deles tornou-se o meusegundo lar. A Emma é a única pessoa com quem posso falar acerca da Bells, porque cresceu connosco.Emma tem ainda na face aquela expressão incrédula que me faz sentir inse-gura. Evidentemente, seria esta a sua reacção. Emma é sempre racional; sabe o que está certo e o que está errado."Eu sabia que o Sam a conheceria um dia, se estivéssemos juntos a sério", repliquei finalmente."E estão juntos a sério?" Mergulhou o pitta no houmous. "Sim, penso que sim."Emma está distraída a enrolar o seu cabelo castanho-escuro em pequenos cominhos. Lembro-me dela a brincar com o cabelo desde pequena. "Então esta é, de certo modo, a oportunidade ideal para lhe dizeres. Dá-te o pretexto deque necessitas. De outro modo, quando lhe dirás?", perguntou, num tom acusatório."Não lhe falar da Bells nunca foi uma decisão consciente", defendo o meucanto. "Ele sabe que tenho uma irmã, simplesmente não lhe contei muito acerca dela. Nunca calhou em conversa.""Olha, Katie." A Emma parece ver dentro de mim, ser capaz de ler fiel-mente todos os meus pensamentos. Tem o hábito desarmante de o fazer. "Estás atrapalhada, não estás?""É claro que não estou atrapalhada." Corei, sentindo-me indefesa, como seela afastasse da minha frente, uma por uma, todas as mentiras com que me protegia.Emma fingiu não ouvir. "Tens de compreender que quanto mais tempo passar sem lhe falares na Bells mais difícil será mencionares o assunto, derepente, como se por acaso, numa conversa. Começas a acreditar que vivem em universos paralelos e que a Bells nunca se cruzará contigo neste.""O Sam não é uma pessoa curiosa", defendo-me, "nunca me perguntou o que faz a minha irmã, nem sequer conhece os meus pais. E eu nunca cheguei a conhecer os dele." Desde que saio com o Sam descobri pequenos fragmentosOLHAR NOS OLHOSde informação acerca deles. O pai trabalhou fora do país quando ele era jovem, deixando-o só com a mãe a maior parte do tempo. "Eu e a minha mãe ficá-vamos bem", insistiu ele quando, uma vez, lhe perguntei se tinha sentido a falta do pai. "Passámos bons tempos juntos. Na verdade, a minha mãe divertia-se à grande quando o meu pai partia. Não tinha de manter feitas as tarefas domésticas, nem pôr o seu maldito jantar na mesa às sete em ponto. Podia sair com os amigos. Costumava levar-me a todas as festas. Penso que passava metade do tempo bêbeda", recordou ele com uma gargalhada curta e seca. "Sim, passamos belos tempos, a minha mãe e eu. Diria que correram pelo melhor." O Sam não gosta de dizer se alguma coisa corre mal ou se alguém o magoou. É uma coisa positiva no sentido em que nunca sente pena de si próprio ou guarda ressenti-mentos. "A vida é para ser vivida, não para nos determos nela, Katie", diz habi-tualmente.

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Eu sei que as coisas não são tão simples quanto o Sam as faz parecer. Até agora, nunca me senti à vontade para lhe falar da minha família; do quanto odiei não ter reencontrado a minha mãe depois de a Bells nascer. De qualquer modo, isto não interessa, visto o Sam nunca fazer perguntas. É por isso que gosto de sair com ele. Não preciso de explicar nada. Posso ser exactamente quem quiser ser."Come um bocado disto", ordena Emma, empurrando o prato de houmous e pão pitta na minha direcção. "Não tocaste na tua comida."Olho impassível para o prato. "Não tenho fome." Em vez disso, sirvo-me de outro copo de vinho."Penso que estás a dramatizar excessivamente toda a situação", disse ela directamente. "Não és a única a passar por uma situação destas, sabes? O meu pai fez exactamente o mesmo com a minha mãe.""A sério?", levantei os olhos."Sim." Emma abana a cabeça convictamente. "Nunca a apresentou ao seu excêntrico irmão. O meu tio Spencer, lembras-te? Grandes orelhas, toca piano muito mal, conduz uma moto e veste camisas marron de fantasia e gravatas Púrpura?""Eu lembro-me do teu tio Spencer." Sorri. "É o tal que consegue dizer-te em que dia da semana nasceste a partir da data do teu aniversário, não é? Eu adorava esse jogo", recordei. "Nasci a uma sexta-feira. Sempre desejei que eleALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSum dia se enganasse, mas nunca aconteceu, nem uma única vez. Também me lembro do seu hesitante Für Elise. Sorri abertamente. "Que vinha à baila principalmente no Natal, juntamente com alguns cânticos. Hark the Herald era particularmente penoso.""Exactamente." A Emma riu-se. "Ele é maravilhoso, mas vive noutro planeta. O meu pai pensou que a minha mãe poderia romper o noivado se o conhecesse. Por isso ele era muito astucioso e arranjava as coisas de modo a que as visitas da minha mãe nunca coincidissem com as do tio Spencer. Namoraram durante oito meses, ficaram noivos, e a minha mãe conheceu finalmente o tio Spencer no dia do casamento.""Num dos seus fatos de fantasia?" Esqueço por um momento o meu próprio dilema e divirto-me com o mundo do tio Spencer."Não, pior ainda. Chegou no seu fato de motociclista, uma extraordinária camisa preta com um tigre dourado estampado." Franziu o nariz. "Totalmente inapropriado, mas ninguém ficou surpreendido.""Bem, aí tens!" Sorri triunfante, levantando o copo do vinho. "O teu pai teria compreendido. E tu devias compreender também." Senti-me como se tivesse recuperado alguns pontos."Eu compreendo. Mas perguntei à minha mãe se, no caso de ter conhecido o tio Spencer antes do casamento, isso faria alguma diferença e ela disse-me que não. Foi firme. Teria casado com o meu pai de qualquer maneira. Ele era um tonto que se preocupava demais. Ela adora o tio Spencer. Todos adoramos. Ele é muito divertido. Acha a sua irmã Esther uma pessoa convencional e aborrecida.""Ems, compreendo o que estás a dizer. Eu também acho que o Sam se apaixonou por mim de um modo muito sério... quer dizer, MUITO SERIA-MENTE", enfatizo, escancarando os olhos, "antes de o ter apresentado a Bells. Passaram-se apenas nove meses, mas têm sido fantásticos. Estou feliz. Não quero correr o risco de lhe apresentar a Bells e surpreendê-lo com um pontapé nos tomates."O rosto de Emma desfaz-se num sorriso. "Mas ela já não faz isso, pois não?"Quando eu e Emma andávamos na escola conhecíamos rapazes durante a hora do almoço e desajeitadamente beijávamo-los atrás das grades e dosportões da escola.

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Lembro-me de a certa altura andar atraída por dois rapazes, o Toby e o Ben, mas não me conseguir decidir com qual deles sair. Por isso, decidi submetê-los a ambos ao "Teste da Bells". Antigamente, os rapazes conheciam a Bells e dez vezes em cada dez deixavam a minha casa jurando nunca mais voltar. No início sentia-me mortificada, mas depois comecei a contornar a situação. Tinha de haver seguramente um rapaz que se mostrasse à altura do teste, não?Levei primeiro o Toby a minha casa e fiquei a ver a Bells derrubá-lo em cheio com uma marrada nos testículos. Podem perguntar-se que piada havia nisso, especialmente para os rapazes, mas o melhor da situação estava em estudar as suas reacções. Quando a Bells bateu no Toby, fiquei a vê-lo agarrado aos testículos em agonia. A seguir, fingiu que não tinha acontecido nada e perguntou-me o que íamos lanchar. A Bells desatou a rir à gargalhada da sua pergunta e Toby, de repente, disse que se esquecera completamente, mas que afinal a mãe o queria em casa para o lanche.Ben, o Bravo, foi muito mais corajoso. Respondeu a Bells com um ataque defensivo de rugby; ela gostou disso e daí para a frente não parou de perguntar quando é que ele lá ia a casa de novo. E voltou a nossa casa! Bem, pelo menos, esteve à altura do desafio. Estaria eu com receio que Sam não estivesse?"Deixa-te disso, isso foi quando tínhamos... o quê? Catorze? Quinze anos?", prossegue Emma. "E estamos a falar de Toby, o fodinhas que usava casacos de cabedal justos e pensava que estava no Grease. E de Ben, que enchia os estojos e as pastas com desenhos fálicos. Que grande perda!", ri-se ela. "A $elis fez-te um grande favor.""Eu sei", concedo. "Por acaso o Ben até se entendeu muito bem com ela. Mas, Emma, são duas semanas completas. Não é um fim-de-semana, uns dias, é uma quinzena completa. Trezentas e trinta e seis horas. Vinte mil cento e sessenta minutos. São milhões e milhões de segundos..."Emma obriga-me a parar. "Katie, isto é ridículo. Tens de deixar de te preocupar assim. A Bells não é a tua irmã modelo, e daí? Ela quer que tu faças parte da sua vida. Qualquer um pensaria que te pediram para resolveres todos os problemas do Médio Oriente, ou até os domésticos. Ainda esta noite tive de tratar de uma miúda com leucemia, por amor de Deus. Tens de relativizar estas questões."OLHAR NOS OLHOSele não seja apanhado de surpresa e aposto contigo que ele aceitará a situação.""Mas...""Nem mas nem meio mas.""Sim, mas e se...""SEM mas. Eu sei que me dirias o mesmo se a situação se colocasse aocontrário. E também sei que é fácil para mim, estar aqui sentada a dar-te conselhos", admite ela, "mas conta ao Sam esta noite. Não adies a situação por mais tempo. Ele não é um monstro, é o teu namorado. Eu conto tudo ao Jonnie, eleficaria magoado se eu o excluísse de alguma coisa. Não saímos com as pessoas para nos sentirmos apoiados? Não é esse o objectivo?""Sim."Diz-lhe", acrescenta simplesmente. "O que pode acontecer de pior?"ALICE PETERSONO empregado leva os nossos pratos. "Sei que tens razão", digo-lhe, abanando a cabeça envergonhadamente. "Desculpa, Emma. A tua profissão deve ser muito difícil por vezes."Ela encolhe os ombros. "A Bells adaptou-se bem. Tu precisas de o fazer também. Quando foi a última vez que a viste? Quer dizer, que estiveste real-mente com ela?""No último Natal. Fui a casa e dormi lá uma noite."

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"Tens de passar mais tempo com ela. Nunca se sabe, até podes vir a apreciar a sua companhia. As coisas constantemente acontecem para nos testar", continua Emma. "A vida nunca estaciona num simpático ponto de equilíbrio, não é assim que funciona." Ao dizer-me estas coisas metade de mim tem vontade de lhe perguntar: "O que é que alguma vez te testou?" A vida de Emma é tão perfeita. Dá-se com a família, o irmão é arquitecto, tem uma relação de grande proximidade com os pais, Jonnie adora-a, foram feitos um para o outro, e agora ela usa um enorme diamante no dedo. Não é justo, embora nunca lho dissesse. O que não me impede de o pensar ocasionalmente."Também não vês a tua mãe o suficiente, Katie. Um dia podes vir a arre-pender-te." Ela espera pela minha resposta. "O que se passa? Há mais qualquer coisa, não é verdade?", sonda ela. "É a tua mãe?"Conto a Emma a minha conversa com o pai. "Parece-me tudo um pouco repentino, é só isso. Não consigo deixar de me perguntar se ele não estará a esconder qualquer coisa.""O teu pai não te mentiria", responde Emma com convicção. "Olha, eu acho que eles apenas querem que tu comeces a zelar um pouco mais pela Bells.""A mãe nem sequer me telefonou para perguntar como tinha corrido a minha passagem de modelos", digo-lhe."OK, mas ela sabia da passagem de modelos? Convidaste-a a assistir?" A paciência de Emma está a esgotar-se."Não, não realmente. Oh", agito a mão com desdém, "Bem sei. Tenho quase trinta anos, não dezasseis. Isto não me devia afectar assim." Afundo-me na cadeira e tento descontrair-me. "Gostava de ter contado logo a Sam tudo a respeito de Bells, ter-me-ia facilitado imenso a vida.""Diz-lhe que a tua irmã vem passar uns dias contigo. Descreve-a para que51982"Katie", ordena o pai firmemente, "não perturbes a tua mãe."Não consigo evitá-lo. Volto a espreitar para dentro do berço. "Mas o que é que ela tem?" Viro-me e olho para o pai e para a mãe. "Porque é que a minha irmã não tem um nariz normal? Está todo esborrachado. E que buraco esqui-sito é aquele entre o nariz e os lábios dela?" A mãe está agora a chorar, e o pai curva-se a seu lado, acariciando-lhe o braço docemente."Porque é ela tão esquisita?", pergunto de novo. Não consigo continuar a olhar para o bebé. Assusta-me."Katie", começa o pai, "ela nasceu assim. Infelizmente nem todas as crianças têm a sorte de nascer perfeitas.""Porquê?"O pai tira os óculos e limpa os olhos. "Porque sim. Vamos ter de a ajudar. A tua irmã terá de ser vista por um médico, que lhe irá aperfeiçoar o rosto. Vai correr tudo bem. Nós...""Pára!", soluça a mãe. "Nada corre bem. Como vamos conseguir suportá-lo?""Cá nos arranjaremos. Garantiremos que sim", tranquiliza-a o pai. "A Katie ajudar-nos á, não é verdade, querida?" Olha para mim como se dissesse "não fiques aí parada, mexe-te e vem dar um abraço à tua mãe".Era disto que a tia Agnes falava quando me pedia coragem? Dirijo-me à minha mãe e abraço-a.ALICE PETERSONO médico está aqui e oiço tudo através da porta da cozinha. Deveria estar no meu quarto a fazer os trabalhos de casa.

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"Há uma excelente equipa local de especialistas em problemas faciais e orais. Eles têm muita experiência no tratamento de crianças que nascem com lábios leporinos e fendas palatinas", assegura ele. "Aproximadamente uma em cada setecentas e cinquenta crianças que nascem têm este problema. Pediremos também a opinião de um cirurgião plástico. Ele supervisionará os procedi-mentos relativos à cirurgia reconstrutiva. Com uma série de operações conseguiremos corrigir o lábio e o palato da sua filha.""Quando poderemos começar?", pergunta o pai."Quando ela ainda for bebé, mas um pouco mais velha para conseguir aguentar uma intervenção cirúrgica.""Não compreendo por que razão isto aconteceu. Senti-me óptima durante a gravidez, descansei imenso. O que é que eu fiz de errado?" A mãe implora uma explicação."Não tens culpa nenhuma", responde imediatamente o pai.O médico concorda. "Não se conhecem ao certo as causas. Sabem se há algum caso na família?""Não. Pelo menos que eu saiba. Tinha tanta certeza de estar a fazer tudo bem", continua a mãe, absorta. "Mas devia ter feito uma ecografia. Devia tê-la feito...""Pára", o pai levanta a voz. "Pára de te culpabilizares continuamente.""Os especialistas pô-los-ão ao corrente de tudo. Sei que é difícil de aceitar, mas temos muita experiência neste campo." O médico aclara a voz. Sinto um terrível silêncio distender-se antes do médico acrescentar: "Receio que exista um outro problema. Ela pode ter sofrido uma lesão cerebral, embora não saibamos neste momento exactamente qual a sua extensão.""Lesão cerebral?", repete a mãe embotadamente."Sim. Iremos fazer-lhe mais exames, mas para começar, ela precisará de muito do vosso tempo e atenção...""O nome dela é Isabel", corta o pai. "Sempre adorámos este nome." "Isabel, certo. Também têm outra filha, não é verdade?", interroga omédico."Sim, a Katie. Mas de modo nenhum conseguirei tomar conta das duasOLHAR NOS OLHOS

sozinha", diz a mãe. "Iremos precisar de ajuda. Quero dizer, como conseguirei amamentar a Isabel? Como conseguirei... o meu bebé tem mesmo uma lesãocerebral?"Pobre mãe. Isto é tão injusto. Eu irei ajudar. Deixem-me ajudar."Ficaremos bem." O pai fala-lhe com doçura. "Ultrapassaremos istojuntos.Oiço o médico levantar-se para se ir embora. Apresso-me porta fora e suboas escadas a correr em direcção ao meu quarto.A mãe não sobe as escadas para me dar um beijo de boas-noites como é costume. Vem o pai em vez dela. O meu quarto está frio e escuro e ao ouvir os seus pesados passos a afastarem-se de mim sinto-me terrivelmente só.6Olho para a fotografia de Sam na moldura de prata, ao lado da cama. Tem vestida a camisa de algodão branca às riscas azuis claras que lhe ofereci no seu aniversário, e os óculos de sol estão empoleirados no topo da cabeça. Olha directamente para a amara com um sorriso confiante. Sam é bonito e sabe-o. Todas as suas feições são praticamente simétricas, excepto uma das narinas que não é tão aberta quanto a outra —atribui isso ao facto da mãe fumar quando estava grávida dele. "Assim que o pai saía de

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casa, ela começava a fumar como uma chaminé. Paivante numa mão, vodka na outra." Para além disso, a única coisa da qual está ciente é da sua iminente calvície nas têmporas, mas eu afianço-lhe que isso lhe dá uma certa distinção. O enobrece, até. Ele responde-me que o faz parecer meu pai, e em seguida agarra numa mão cheia de cabelo e tenta ripá-lo o mais possível.Ainda não lhe falei na Bells. Estou a adiá-lo já faz uma semana e ela chega amanhã. Vou buscá-la a Paddington. Não sei por que razão acredito que o problema poderá desaparecer se não falar nele. O telefone toca, é o pai. Eles partem amanhã. "Com quem vão ficar em França?", pergunto."Com os Walters."Não reconheço o nome. "Quem são esses?""Velhos amigos. Ele trabalhava comigo na Sotheby's.""Não me lembro deles.""Eles foram viver para França quando tinhas dois anos." O pai muda de assunto rapidamente. "Bem, tens o meu telemóvel..."ALICE PETERSON"Já agora, podia tomar nota do telemóvel dos Wallers, não?", pergunto. "Walters", corrige ele."Posso anotar o número deles?""Não, não vais precisar dele.""Bem, nunca se sabe.""Nós telefonamos-te.""Acho que devia ficar com o número deles." A nossa conversa assemelha-se a um rápido jogo de pingue-pongue."Liga para o nosso telemóvel.""E se surgir uma emergência?""Não haverá nenhuma emergência.""Porque não posso ficar com o número deles? Porque está a reagir tão estranhamente a isso?""Querida", o pai finalmente aplaca o ritmo das suas respostas, "muito simplesmente porque é mais fácil se ligares para o nosso telemóvel. Assim, poderás telefonar-nos a qualquer hora."Concordo com isto, relutantemente. "Não se esqueçam de o manter ligado, então", digo-lhe.O pai está sempre a dizer que comprou o telemóvel "apenas para o usar numa emergência", mas falha redondamente ao não compreender que ele é completamente inútil em caso de emergência se nem começar por ligá-lo."Sim, não te preocupes", protesta ele."E então, o que irão fazer com os Walters?""Nadar, comer, dormir, ler alguns livros. Querida, tenho de ir agora. Agradeces muitíssimo por nós ao Sam?", termina.Poiso o telefone sentindo-me muito pouco à vontade. Terei de contar tudo ao Sam a respeito de Bells esta noite. Telefonei-lhe há pouco da loja, para lhe pedir que não ficasse a trabalhar até tarde esta noite, que lhe vou preparar a sua refeição favorita – bife com batatas fritas caseiras, tal qual como a tia Agnes fazia. Até lhe fiz uma sobremesa: gelado de laranja com molho quente de chocolate. É uma receita da mãe dele, muito fácil, já que até eu sou capaz de a fazer."Não tenho a certeza de conseguir sair cedo, querida. Um dia complicado", responde-me ele.OLHAR NOS OLHOS

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"Mas eu mal te vi durante toda a semana. Preparei-te um jantar verdadeiramente especial."Ele pareceu reconsiderar. "Que fiz eu para merecer isso, Katie?" Conseguia ouvir a sua cadeira a girar. "Sentes-te culpada por andares a engatar alguém nas minhas costas?" E em seguida manifestou exultantemente a sua incredulidade, como se a simples ideia de alguém o enganar fosse de todo impossível. Sam tem arrogância suficiente para engarrafar e exportar para o mundo inteiro. E no entanto, isto é o que nele mais me atrai. Sempre pensei que acabaria por me apaixonar por um académico ou talvez por um escritor. O meu último namorado era um compositor que viajava pelo mundo criando bandas sonoras para espectáculos de televisão e filmes. Mal o via, motivo pelo qual acabámos, eu sabia que uma relação deste género não levava a lado nenhum. Contudo, nunca pensei apaixonar-me por alguém como Sam. Mais uma vez, fantasiei-me tom Simon Cowell2 fora do Factor-X, o que diz tudo.Coloquei a moldura novamente em cima da mesa-de-cabeceira. Abri as portas de correr do nosso guarda-fato e olhei para as minhas roupas, meticulosamente dobradas em diferentes compartimentos, e para os meus vestidos, calças e saias penduradas. O que iria vestir? Atiro-me para o meu top de renda vermelho escuro, com a fita de veludo em volta do pescoço. Vestirei o meu underbra preto de renda por baixo. Na metade inferior do corpo decidi-me pelos meus jeans Diesel com umas botas pretas ;bicudas. O Sam gosta deste traje. Dispo a minha camisa rosa claro e atiro-a para o cato da roupa suja; abro o fecho da minha saia preta de algodão e olho-me no espelho de corpo inteiro. O meu cabelo, agora novamente tingido na sua cor original, ».castanho-escuro, cai solto em redor do meu rosto. Está a ficar demasiado comprido. Apanho-o com um gancho. Tenho o excelente cabelo do meu pai. Na verdade, herdei quase todos os traços do meu pai; o nariz comprido dos Fletcher, as pronunciadas maçãs do rosto, a boca grande e as minhas covinhas.Abro a porta espelhada do nosso armário da casa de banho para tirar uma bola de algodão e o leite de limpeza. Sam fica furioso comigo se eu deixar a pasta de dentes ou as bolas de algodão espalhadas pela casa de banho; tudo tem de estar meticulosamente arrumado dentro do armário espelhado. Eu gosto que ele seja arrumado. Se não fosse, a sua casa parecia ter sido assaltada.2Sirnon Cowell é um famoso apresentador de televisão, também produtor de alguns realúy shows e júri no concurso Factor-X, de conteúdo similar ao português Chuva de Estrelas. (N da T)ALICE PETERSONLimpo do rosto a maquilhagem do dia. Da mãe, herdei uma série de sardas salpicadas pelo nariz e bochechas e os meus olhos verdes. O pai repete constantemente que se apaixonou imediatamente pelos seus olhos verdes. Eram da cor das azeitonas e o pai adora azeitonas. Quando conheci o Sam, ele disse-me que eu tinha uns "olhos de vamos para a cama". Espera até veres os olhos da Bells que são bem mais bonitos que os meus. São de um verde vívido, sem lodosos pontos cinzentos no meio. Sento-me na borda da banheira e ponho a água a correr. Deito lá para dentro uma generosa dose de óleo de flor de laranjeira e, finalmente, entro para dentro da água docemente perfumada. Foi um longo dia. Zanguei-me com a Eve esta manhã porque comeu o meu Kit-Kat e o chocolate para uso culinário que eu havia comprado para fazer a sobremesa do Sam. Comeu a tablete inteira durante a sua hora de almoço. Assim que trago chocolate para a loja ela cheira-o tal qual como um cão cheira as drogas num aeroporto. O Sam não acredita em mim quando lhe digo que ela só come chocolates. "Mas ela é tão pequenina, tão delicada, tão francesa", contesta. Uma vez encontrei-a no Sainsbury's e tinha

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enchido o seu carrinho de compras com barras de chocolate e enormes latas de chocolate Cadbury's para o leite.A noite irá correr optimamente. Contarei tudo ao Sam, ele reagirá bem e ficará tudo OK, assevero-me pelo que deve ser a centésima vez.Daí a pouco acendo a vela vermelho-púrpura no castiçal de cristal e acabo de pôr a mesa. Coloco os guardanapos novos de musselina que eu própria fiz, ao lado de cada prato. A mãe conseguia dispô-los em forma de lírios. Costumava tentar imitá-la em criança. Agora, apenas os dobro ao meio. Abro o frigorífico e sirvo-me de um segundo copo de vinho branco. Agora o Sam deve estar a chegar a qualquer minuto. Oiço uma chave rodar na fechadura da porta da entrada e qualquer coisa se agita bruscamente dentro de mim. Respiro fundo, e penso na necessidade de esclarecer a situação, conforme o conselho da Emma."Olá, docinho", saúdo. Oiço-o descer as escadas, saltando os degraus dois a dois. A sala cheira a batatas fritas em óleo dourado. Dido toca suavemente em fundo. Sam gosta dela. Caminha na minha direcção e estende-me um enorme ramo de tulipas vermelhas e laranja, as minhas preferidas. Agradeço-lhas com um beijo e ele envolve-me a cintura com os seus braços, puxando-me :outra ele. "Kitty-q'rida." Esfrega o seu nariz no meu. "Sou um rapaz sortudo. Corri para casa. Não estou muito atrasado, pois não?"OLHAR NOS OLHOS"Mesmo a tempo. Um bom dia?""Um óptimo dia para os mercados. Fabuloso. Mnhã, mnhã, obrigado mamã." Pestaneja. "E agora sou todo teu.""Isso é sublime, Sam." Já tentei, no passado, ao vê-lo entusiasmado com o fecho de um novo negócio, fazer-lhe perguntas a esse respeito, mas respondia-me invariavelmente, « Top secret, linda, confidencial", terminando com uma palmadinha no nariz. Deste modo, já raramente me incomodo, limito-me a emitir umas quantas interjeições encorajadoras se o dia lhe correu bem."Cheira muita bem, estou esfomeado.""Senta-te", ordeno-lhe conduzindo-o a uma cadeira. Ele senta-se e desta vez sou eu que lhe massajo os ombros. "Descontrai-te enquanto te preparo uma bebida.""Estás a amolecer-me para alguma coisa?", murmura Sam com prazer."Já uma rapariga não pode estragar com mimos o seu rapaz?" Desço a mão pelas suas costas. "Bem, o que queres beber? Cerveja ou vinho?"Ainda não lhe contei nada e já acabámos o primeiro prato. O que se passa comigo? Não consigo dizer uma palavra. Pelo contrário, oiço o Sam contar-me que o Maguire comprou um Mini Cooper e que tenciona ir correr no fim-de-semana e a perguntar-me se eu me importo que ele vá também.Debruça-se por cima da mesa e acaricia-me o queixo com ternura. "Já chega de mim, como está `a velha esponja do canto'? Tem aparecido ultimamente?""Não, desafortunadamente não." Em troca, falo-lhe da Eve ao mesmo tempo que levanto os pratos. "Ela devia ser do tamanho de um elefante, não de um rato", comenta a rir.Abro o frigorífico. Quando colocar o doce em cima da mesa conto-lhe. O truque está em começar: "Sam, a minha irmã chega amanhã e vem passar uns dias connosco, não te importas? Ela não é exactamente o que poderias esperar, talvez fiques um pouco surpreendido..." Vou pregar-lhe um susto de morte, não é verdade?A sobremesa está à sua frente. Sam esfrega o estômago e sorri. "Era capaz de me habituar a este tratamento de cinco estrelas."ALICE PETERSON

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"Sam, tenho uma coisa para te contar... isso é o relógio?" Olho pasmada para o seu pulso. "Compraste-o mesmo?", perguntei incrédula. Sei quanto deve ter custado. Perto de 3 000 libras."Sim." Irradia um sorriso abanando o pulso para mim. Sam andava a namorar este relógio há meses. Trata-se de um modelo especial para emergências, com um dispositivo electrónico para pedir ajuda em situações de perigo, activado por um fio que se pode puxar. Um dos seus amigos trabalha em publicidade e a sua agência esteve envolvida na promoção do relógio. Sam e eu ficámos entusiasmadíssimos quando conhecemos Pierce Brosnan no lança-mento. "Sabes, talvez compre um. Imagina que sou apanhado por uma avalanche", ouvi o Sam comentar, muito sério, para Tim, um dos seus colegas de trabalho. "Pois, pois, pois, sem tirar nem pôr, amigo", replicou Tim. "Ou que a vossa canoa se vira ao descerem um rápido?", sugeri a ambos, esforçando-me por não desatar a rir. Esqueci-me de recordar Sam que ele não era exacta-mente um praticante de desportos radicais. Cair num buraco durante uma partida de golfe seria o maior perigo que eventualmente podia correr.Agora olha orgulhoso para o seu relógio. "Se puxares o fio do alarme por engano és multada em dezenas de libras, Katie, por isso tem cuidado, capisce?""Seja como for, o que me querias contar?" Corta uma fatia do gelado de laranja que se começa a derreter nas bordas e a misturar-se com o molho de chocolate."Eu devia ter-te falado nisso antes, mas a minha irmã vem a Londres...", comecei."A sério?" Mete uma colherada na boca. "Humm", murmura apreciativa-mente. "Delicioso. Tens tido aulas secretas de culinária?""Tinha esperança que ela pudesse ficar connosco? A minha irmã Isabel?", lembro-o."Claro, por quanto tempo? Gostaria de a conhecer.""Duas semanas.""Está bem." Sam pondera o assunto, surpreendido por ser tanto tempo. "Não, está bem, não vejo motivo porque não. A Isabel é mais nova que tu, não é? Podia arranjar um encontro para o Maguire, ele precisa de uma miúda.""Mas se ele arranjou uma nova lady há poucos dias.""Nã, não deu em nada", explica Sam. "O Maguire gosta das coisas curtas eOLHAR NOS OLHOSdoces. Então a Isabel fica connosco duas semanas? Perfeito. Está feito e não mexe mais.""Sam, não fales com clichés. Ele acabará um velho e triste solteirão a conti-nuar assim."Ela é parecida contigo?", continua ele. "Apenas uma versão mais jovem e liberta de rugas?"Sam ,exclamo com alguma irritação. "É só no que pensas? Na imagem?" "Yep", responde simplesmente. "Bem, ajuda se ela não for uma autêntica inha, é tudo. Ter-te-ias apaixonado por mim se eu fosse mais feio que uma noite de trovoada?"Levanto o meu prato e dirijo-me ao lava-loiça.Ele levanta os braços num pedido de desculpa. "Que idade tem ela, afinal?" "Vinte e dois." Afundo-me na cadeira e olho fixamente para a vela que endi com tanta esperança. A sobremesa chegou ao fim e ainda não lhe contei 'verdade toda. Quando a vela chegar ao fim já saberá tudo sobre a Bells, meto."O que é que é que ela faz? Esqueci-me.""Nunca perguntaste.""Oh." Parece desorientado. "Bem, estou a perguntar agora. É bailarina? "Oh, Sam", suspiro.

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"Não me digas... trabalha para o MI5 ou qualquer outra coisa igualmente itante? A sério, porque não hei-de trazer o Maguire aqui a casa e apresentá-? Achas que ela iria à bola com alguém como ele?"Bill Maguire. Alto, com cabelo muito louro cor de gema de ovo, sobrancee pestanas a condizer. Usa infalivelmente um casaco de couro, é um redador no que respeita a mulheres e adora contar anedotas obscenas. "Hum, o que não. Quero dizer, o Bill é óptimo, mas...""Ela é solteira?""Sim, Sam. Mas há uma coisa que preciso de te contar a respeito dela." Olho fixamente a vela, grandes pedaços de cera a endurecerem nas bordas. Observo a chama a brilhar no escuro. Lembro-me de em criança passar o dedo Por uma chama e da mãe ralhar comigo. "Não brinques com o fogo, é perigoso." Sam aproxima-se de mim."Estou desejoso de a conhecer, querida. Ela chega amanhã? Bestial, podeALICE PETERSONdormir no quarto branco. Que mais há a dizer?" Começa a beijar-me o pescoço. "Adoro este top", confessa. "Porque estás tão tensa, querida?" Põe-se à minha frente e ajoelha-se, poisando as suas mãos em cima dos meus joelhos. Reconheço aquele olhar. Está prestes a deflagrar a Lady in Red, do Chris de Burgh. Sam sabe que isto faz-me sempre rir. Implicamos com Emma por ela gostar do Chris de Burgh e foi assim que a brincadeira começou. Na verdade, também temos o seu CD, mas esse é o nosso pequeno segredo.Sam puxa-me da cadeira e começamos a dançar. Adoramos dançar na cozinha. É o nosso tempo juntos, apenas o Sam e eu. Faz-me rodopiar, cantando suavemente ao meu ouvido provocando-me cócegas. Rimos juntos.Porque tem a minha família de ser diferente? Amaldiçoo-me em silêncio enquanto Sam me agarra. Não seria maravilhoso poder dizer: "A minha irmã é advogada"? Ou arquitecta, filósofa, psicóloga, artista, escritora, membro de uma associação de solidariedade. Podia até ser contabilista, tudo bem. Porque não podemos ser normais, como qualquer outra família? Porque me incomodo tanto? Não devia já ter ultrapassado esta fase? Não devia eu ter maturidade suficiente para contar tudo a Sam? Como disse a Emma, se a nossa relação é séria...Finalmente paramos de dançar. "Obrigado pela adorável noite, Katie. Sabes estragar-me com mimos." Pega na minha mão e, docemente, beija-me os dedos um a um.Não quero dizer-lhe, este não parece o momento certo para lhe dizer. Ele conhecerá Bells amanhã.Sam sopra a vela, ainda segurando a minha mão. O fumo dissipa-se no nada.71984Ao atravessar o recreio da escola vejo a minha mãe, afastada do grupo de pais que esperam os filhos junto dos portões de ferro. Bells está com ela, dentro do seu carrinho. Que está a fazer aqui? Um misto de pânico e raiva apunhala-me. A mãe nunca me vem buscar. O que normalmente acontece é eu ir até à loja do Sr. Stubbington, ao virar da esquina, para comprar um gelado e umas gomas e, em seguida, caminhar até casa com Emma, a minha vizinha do lado. Vou a casa dela lanchar porque o ambiente lá é mais acolhedor. Eles acendem a ,lareira e nós aquecemos as gomas.A mãe aproxima-se de uma outra mãe que se encontra acompanhada pela »vem filha. Traz vestido um avental encardido, com manchas de óleo e tinta à frente, calça uns garridos sapatos vermelhos que mais parecem umas chancas, e. o seu cabelo castanho continua puxado para trás e apanhado com um dos seus lenços de algodão. Todas as outras mães se vestem com saias compridas azuis e blusas franzidas com colares de pérolas, e os seus cabelos estão enrolados num carrapito que permanece absolutamente

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imóvel no topo das cabeças, como um ninho. Porque é que a minha mãe tem um aspecto tão diferente? Porque teve de trazer a Bells?"O que é, Katie?", pergunta Emma impacientemente. "Tenho fome. Despacha-te.""A mãe está aqui com a Bells", puxo-a para trás.ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"E então?" Emma encolhe os ombros. "Quero ir para casa."Não contei a ninguém da minha turma nada sobre Bells, não iriam compreender. Emma é a única que a viu assim que nasceu. O rosto de Bells é estranho. Eles riem-se de tudo o que lhes parece esquisito. A senhora Higson, uma das mães que aguarda junto ao portão, é tão gorda que todos lhe chamam Da. Pernas-tronco-de-árvore. Será que a mãe me viu? Corro para trás da casa de banho exterior dos rapazes, mas não consigo lá ficar muito tempo porque cheira mal. Quase sufoco. Consigo ouvir os pais a conversarem. A voz da minha mãe é mais alta que qualquer uma das outras, penso mal-humorada. Tenho a certeza que faz de propósito. "VAI-TE embora", digo a Emma, afastando-a com a mão. "Diz à mãe que eu tive de ficar mais um pouco dentro da sala... diz-lhe qualquer coisa."Consigo ouvir as pessoas afastando-se, motores a iniciarem a sua marcha, carrinhos de bebé a serem empurrados, cães a ladrar. Aguardo premindo firme-mente o nariz com os dedos."Olá", oiço a mãe dizer tentando ser simpática. "Não te assustes, ela não morde. O seu nome é Isabel. Nós chamamos-lhe Bells."Com quem está a mãe a falar? Meto a cabeça de fora. É a Imogen, do ano anterior ao meu, com a mãe."O que é que ela tem?", pergunta Imogen, incapaz de desviar os olhos do bebé sentado no carrinho. "Que buraco é aquele que ela tem na cara?""Imogen, não sejas mal-educada", interrompe a mãe que ficara cor de beterraba. "Afinal, o que conta é o interior, não é verdade?", diz para a minha mãe.A minha mãe cala-se.Imogen permanece agarrada ao chão como um manequim numa loja. Desaparece, quero gritar. A mãe acaba finalmente por puxá-la.Espero até ficar tudo calmo e seguro para sair. Tenho de escolher o momento certo. Ao fim de quase dez minutos espreito com a cabeça esticada. A mãe está debruçada a falar com a Bells. Não se vê mais ninguém por perto. Examino os dois flancos e em seguida dou uma volta pelo lado da frente, como se saísse do edifício principal da escola. "Não me importa o que os outros dizem, tu és a minha linda menina pequenina, a tua mamã gosta muito de ti e estamo-nos a divertir bastante, não é verdade?", diz a mãe."Olá, mãe. Tive de arrumar os meus desenhos... e coisas", titubeio.A mãe olha-me com suspeição. "A Emma disse-me que tinhas ido mostrar o teu bordado à directora."Começámos a falar, eu seguia de cabeça baixa."Os teus pés tornaram-se, de repente, assim tão fascinantes?", pergunta amãe."Nã." Respondo com uma encolhedela de ombros."Recebi um telefonema hoje", informa-me ela enquanto caminhamos energicamente, o carrinho chiando contra o pavimento de macadame. "Do Sr. Stubbington."Todo o meu corpo enregela."Katie, tenho vergonha de ti. Deixo-te vir sozinha para casa porque acho que és suficientemente crescida para isso. A seguir descubro que tens ido à sua loja e roubas o

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saco das esmolas. O que te deu ultimamente?" A mãe inter.-.rompe a caminhada a fim de olhar para mim, exigindo uma explicação.O Sr. Stubbington proibiu-me de entrar na sua loja durante uma semana porque me apanhou a tentar tirar umas moedas da meia mealheiro para a cari-4ade. Está maioritariamente cheia de moedas de um e de dois cêntimos, mas há sempre umas quantas tantalizadoras moedas de ouro e de prata enfiadas nos dedos. Uma tarde, quando o senhor Stubbington se virou para pôr umas maçãs Identro de um saco de papel castanho, eu não resisti e mergulhei a mão dentro Ia para tentar tirar uma moeda de cinquenta cêntimos. "Este dinheiro serve fiara ajudar os idosos", repreendeu-me ele agitando furiosamente o dedo, liando viu o que eu estava a fazer.Não posso dar-lhe nenhuma explicação. "A menos que prometas deixar de *cubar, virei buscar-te todos os dias", ameaça a mãe.Nem levanto a cabeça."Com a Bells", acrescenta.Saberá ela como me sinto? "Prometo que não volto a fazê-lo, mãe." Duas raparigas caminham a nosso lado. Param a olhar estupidamente quando vêem a Bells. "O que é que ela tem?", pergunta uma delas. Concentro-me numa determinada fenda do pavimento. Se pisar essa linha terei azar."É a minha filha Isabel. Nasceu com um lábio leporino e uma fenda pala-tina, e vocês aí especadas não ajudam nada", diz a mãe bruscamente, ultrapas-ALICE PETERSONando-as. Quando me volto para as ver ainda lá estavam paradas, pasmando de )oca aberta. "Que raio de coisa é um lábio leporino?", pergunta uma delas à )utra."Desculpa, mãe", digo."Tudo bem, mas por favor não voltes a roubar. Tenho trabalho que me )aste só a tratar desta aqui", diz a mãe num tom exausto.Depois disto a mãe e eu caminhámos até casa em silêncio. "Olá, Bells", atido atrás da porta fechada, afagando-lhe o cabelo. "Eu hoje dou-lhe o anche", digo à mãe, porque sei que ela está cansada. Gosto de mexer a comida Ia Bells. "Como estás hoje? Tiveste um dia bom?" Empurro-a para a cozinha. ) nó da culpa cresce-me no estômago.8"Vou ter contigo à estação", sugere Sam enchendo a boca com uma *ntada na torrada coberta de marmelada. "A que horas chega o comboio da Isabel?""Não te preocupes, nós encontramo-nos contigo em casa." Não sei por que razão penso que adiar o encontro ajuda. A determinada altura a bomba explo-dirá."Sabes, estou realmente ansioso por conhecer a tua irmã. Tenho de ser -honesto, no início fiquei ligeiramente receoso com a ideia, mas agora estou lealmente curioso por saber como será uma outra irmã Fletcher." "Sam, ela é muito diferente." Este é o momento perfeito para lhe contar. ao te disse tudo a respeito dela", acrescento. "Quando ela nasceu..." O telemóvel dele começa a tocar. "Espera um segundo", pede-me ateu-!Ido o telefone. "Sim, estou a sair agora, Maguire... Não, não concordo... `Não subas as escadas do sucesso com os pés sujos de medo. Falamos disto quando eu chegar." Desliga o telefone."Sam, podemos falar?", pergunto-lhe assim que ele guarda o telemóvel na pasta.Faz uma careta. "Não pode esperar até logo à noite? Já estou atrasado." Planta-me um beijo nos lábios e abre a porta da rua. "Qual é o plano para ce -soir, a propósito? Pensei que tu, eu, alguns dos rapazes", pisca-me o olho, "Podíamos levar Isabel a beber um copo esta noite, envolvê-la na noite londrina, ir até uma discoteca, talvez, para uma dançazinha descarada?"

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ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSJá não aguento esta situação, devia ter-lhe dito directamente, como Emma aconselhou. O meu peito está tão apertado que não deixa espaço para mais fingimentos. Sinto uma latejante dor de cabeça, mais alguns cabelos brancos e compreendo que se não lho contar agora explodirei. Emma avisou-me que, quanto mais tempo demorasse a contar-lhe, mais difícil seria fazê-lo. "Sam, a Isabel não vai ser o que pensas.""O quê?", pergunta intrigado. "Que queres dizer?""Ela nasceu com um lábio leporino e uma fenda palatal. É uma situação bastante comum", acrescento ao ver a sua expressão de alarme. "Mas houve ama complicação adicional porque ela sofreu uma lesão cerebral durante o harto. Vive numa comunidade no País de Gales e são as suas férias de Verão, é Dor isso que vem passar uns dias connosco." Sinto-me capaz de respirar nova-mente. Aguardo uma reacção, qualquer coisa serviria.O rosto de Sam mostra-se muito pouco expressivo. "Bells? Era sobre isso ue falavas com o teu pai?", pensava em voz alta. "Levaste-me a acreditar que la era a tua cadela.""Eu na realidade nunca disse isso. Bells... Isabel." Encolho os ombros. `Chamamos-lhe Bells como diminutivo.""Certo." Coça suavemente a cabeça. "Certo, eu devia ter percebido. Bem, está tudo bem. Não, espera aí." O seu tom de voz eleva-se. "Porque não me iisseste nada disto?" Atira a pasta para o chão."Não sei. Desculpa. Pensei que pudesses odiar a ideia de a ter aqui. E eu ião tinha alternativa, ela não tem mais para onde ir. A mãe e o pai estão em rança. A minha mãe não anda bem", explico, com a esperança de que isto o orne mais compreensivo."Bem, parece que eu também não tenho alternativa", diz franzindo as obrancelhas. "A seguir, vais dizer-me que tens um irmão na prisão. Katie, não ei o que dizer. Não tenho palavras. Vejo-te mais tarde.""Não te vás embora, Sam." Agarro-lhe o braço. "Precisamos de falar.""Tivemos a semana toda para falar, Kate, tivemos a noite de ontem. Vejo-e mais logo." Retira o braço com um puxão e o seu telemóvel volta a tocar. Fala Lakemore", diz com firmeza. "Não, Maguire, não foi isso que eu disse. ;erá que estamos na mesma página, pelo menos?", grita encolerizado.Fecho a porta atrás dele. Sinto-me terrivelmente mal. Com um nó no estô-mago. Sinto-me tão culpada. Tenho andado a mentir a mim própria, ao Sam, a Bells. Porque sou uma pessoa tão horrível? Porque sou tão cobarde? Porque não disse nada ao Sam antes?

"Espero que o comboio dela seja cedo. Deixa-me bater na madeira", diz Eve na sua aspirada pronúncia francesa, batendo comos nós dos dedos na minha secretária.Por um momento penso em corrigir o seu inglês, mas em seguida concluo ,que prefiro a forma como ela o diz. "Obrigada, Eve, se puderes fechar tudo...""Sim, sim, não te preocupes. Estou desejosa de conhecer a tua irmã demain, quer dizer, amanhã, claro." Solta o seu cabelo cor de mel. Nunca tinha sto um cabelo tão comprido; digo-lhe que Botticelli teria adorado pintá-la.minha mãe diz que parece o cabelo da Rapunzel, caindo ao longo da torre", ri-se ela."Onde vais buscar a Isabel?", pergunta ela, apanhando o cabelo num rapito, que prende a um grande gancho com um kiwi de esmalte colorido a ponta."Paddington."O rosto de Eve ilumina-se. "Faz-me lembrar o meu livro preferido, O Urso Paddington. A minha mãe lia-mo quando eu era criança."

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Entra uma cliente à procura de um vestido para um casamento. Trata-se de a cerimónia ao entardecer e ela pretende usar um vestido preto com um e colorido que já havia comprado."Posso deixar-te a tratar deste assunto?", pergunto a Eve."Sim, sim, vejo-te amanhã. Por favor, venha por aqui", diz ela à cliente, nduzindo-a pelas escadas de madeira até ao segundo piso. "Penso que remos exactamente o que procura."

Ao conduzir o BMW de Sam até Paddington, elaboro mentalmente a lista de tudo o que ainda necessito de fazer. Fui ao Sainsbury's durante a minha hora e almoço comprar peixe e batatas para esta noite. Quando aceitei ficar com aBells, telefonei para casa a fim de ter uma ideia do que necessitaria de prepararPara estas duas semanas. Pela primeira vez em anos, a música clássica da mãeAALICE PETERSONnão se ouvia em fundo. A casa parece sempre misteriosamente silenciosa quando ela não está no estúdio com o rádio ligado."No País de Gales eles têm uma noite mexicana às segundas-feiras, ela adora chillies e comida quente com picante, e às sextas servem-lhes sempre peixe com batatas e ervilhas cozidas. Eu dou-lhe ervilhas enlatadas, é horrível, eu sei, mas a Bells gosta.""OK, farei o mesmo." Se ela comer, digamos, uma batata cozida numa segunda-feira, será um acontecimento muito grave? Penso para comigo."Se não tiveres tempo para cozinhar o almoço ela gosta das chamuças de legumes que se compram na charcutaria da Sainsbury's. Às quartas-feiras acho que têm as noites indianas. Ou serão as noites biológicas? Não me lembro." A voz da mãe parece sumir-se.Ao ouvi-la, tomei consciência que não seria capaz de agradar a Bells em todas as noites da semana. Raramente cozinho em casa de Sam. Na maior parte das vezes jantamos fora e se nos apetece uma bebida Sam paga a sua entrega ao domicílio com o cartão de crédito da empresa. "Não gosto de cozinhar, odeio a confusão, fica tudo engordurado e pegajoso, com todo o tipo de porcarias", diz ele. "Lembro-me da minha mãe juntar os restos de frango para fazer sopa. O cheiro daquilo logo de manhã", acrescenta franzindo-se nauseado."Acho que às terças são as noites biológicas."E às quintas? Tive vontade de perguntar, mas decidi não a provocar."A Bells gosta da sua rotina, é muito importante para ela. Eles almoçam ao meio-dia e meio em ponto.""Farei o meu melhor, mamã, mas ela também terá de se encaixar no que eu estiver a fazer."A mãe fungou. "Também gosta da sua Coca-Cola, mas compra-lhe Coca-:ola Light, caso contrário os dentes começarão a cariar. Leva-a ao Sainsbury's deixa-a cozinhar sozinha. Ela adora cozinhar e prepara sempre as suas refeirões em casa.""Está bem. É tudo?" A minha paciência estava a esgotar-se rapidamente."Sim. Certifica-te que ela anda sempre com o inalador. A asma dela está nuito melhor, mas não nos podemos dar ao luxo de correr nenhum risco." 'ensei que me iria perguntar se eu ainda fumava, mas não."Certificar-me-ei seguramente se anda sempre com o inalador."OLHAR NOS OLHOS"Obrigada, querida." A mãe parecia cansada, sentia-o na sua voz. "Mãe, não há nenhum problema, pois não?"

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"Problema? Que queres dizer? Só porque reservamos para nós uns dias de férias já tem de existir um problema? Será que não merecemos...""Oh, mãe, esqueça!" Estava a torcer o fio do telefone, enrolava-o em volta do dedo com tanta força que o dedo ficou vermelho. Porque estava ela tão defensiva? "Não quis dizer nada disso.""Desculpa, Katie. Não tinha intenção de me irritar. Não, não há nenhum problema."Larguei o fio do telefone. Deixara uma profunda marca vermelha no meu dedo. "Jura?""Juro.""Já era altura de a mãe e o pai fazerem umas férias juntos", concordei. Espero que se divirtam imenso. Vejo-os quando voltarem.""Katie?""Sim?""E tu, como estás?""Estou bem, obrigada." Porque será que estou sempre desejosa que a mãe pergunte como me sinto, que se interesse mais pela minha vida, mas do ela pergunta tudo o que consigo fazer é responder-lhe com monossís?"Oh, ainda bem", responde ela de forma desarticulada. "Estás mesmo bem, rida? Em relação a ficares com a Bells também?""É melhor ir andando para fazer as compras todas!"`'"Eu sei que ela se vai divertir imenso contigo. Isso deixa-me muito tran-"Vamo-nos entender muito bem juntas. Trate de regressar a casa descan-Um beijinho ao pai."Ktie?" ""Simm?"

Aclarou a voz. "Põe-lhe protector solar na cara. A pele dela é muito sensível.""Certo. Não se preocupe. Eu tomo conta dela.""Obrigada", diz, "por nos ajudares. Significa muito para mim e para o teu pai."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSTive a sensação de que ela me queria dizer mais qualquer coisa, por isso sperei um momento, mas ela calou-se. "Adeus, mamã." "Adeus, minha querida."

O comboio chega à estação. As portas abrem-se e os passageiros começam i sair aos magotes das carruagens, cada um deles passa por mim olhando em rente com determinação. Os homens vestem fatos cinzentos de algodão e razem pastas na mão. Alguns deles despiram os casacos por causa do calor e lesapertaram as gravatas. Passa uma senhora grávida, vestindo uma camisa azul le algodão com umas calças largas e umas sandálias da Birkenstock. Uma outra •apariga passa por mim bamboleando-se com os seus saltos altos, no seu curto assimétrico vestido de Verão, puxando atrás de si uma prática mala preta com sodas e segurando um copo de plástico com café."Estou mesmo a sair do comboio, docinho", murmura um homem para o eu telemóvel. Tem um cabelo louro meio despenteado. "Estarei em casa a 'oras para jantar." Presunçoso, não é? Talvez a sua mulherzinha, lá em casa, ão lhe apetecesse cozinhar para ele esta noite?A multidão escoa-se deixando uma cinzenta e triste plataforma sem vida. Onde .stá ela? Não pode ter perdido o comboio. Não aguento isto. Começo a caminhar ao ougo da plataforma olhando para o interior de todas as carruagens, mas não há sinais ie vivalma. Nessa altura oiço uma porta a abrir. Vejo uma pequena figura a sair do omboio. Veste um blusão de ganga com imensos crachás pregados, um chapéu -edondo bordado que

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mais parece um napperon e um cachecol vermelho de futebol. traz consigo uma grande mala púrpura e um par de sacos de plástico da Sainsbury's."Bells!", chamo-a, apressando o passo na sua direcção."Olá, Katie. Como estás?" Sinto-me tão aliviada ao vê-la chegar que quase 1 abraço. Em vez disso, agarro na sua mala púrpura com fecho de correr. "Boa, :onseguiste", digo. Saímos da plataforma, depois de passarmos o guarda da °ntrada. Depois de a multidão se ter ido embora, ficou um silêncio pesado.

Chegadas a casa do Sam, mostrei-a à Bells. A cozinha fica na cave; no rés-10-chão há uma sala grande e arejada que mais parece uma elegante sala deopera. Aqui estão os sofás novos de couro preto do Sam e um fogão de sala ,controlado por comandos de prata lisa; tem uma estante de mogno negro opleta de vistosos livros encadernados, nos quais nunca tocou. Sam não lê nada para além do Finantial Times. No segundo piso ficam os quartos e uma acolhedora sala com puf de couro e uma grande reprodução de Stanley Spencer. A varanda está virada para as outras casas pintadas com as cores do *roa-íris e dispostas ao longo da rua semicircular. Quando estamos em casa, sarros muito tempo nesta sala. O Sam joga póquer aqui. No último piso a luxuosa sauna com a grande e antiquada banheira. "Esta é a minha visão preferida, Bells", digo-lhe."O Sam é rico?", perguntou."É, sim. Ele trabalha muito." Voltei a trazê-la para baixo, para o seu quarto, quarto com cama de casal, roupeiro, um grande espelho cuja moldura rei e uma pequena mesa-de-cabeceira com um candeeiro de vitral laranja e co por cima. Neste quarto tudo é mais ou menos branco – as persianas, as e a colcha. A única peça de outra cor é o tapete com grandes e fantáscírculos vermelhos e laranja. A Bells sentou-se na cama, olhando em r. É difícil saber o que ela pensa sobre a casa de Sam."Como é o teu quarto no País de Gales?", perguntei, sentando-me ao lado

"Gostaria que fosses visitar a tua irmã de vez em quando", diz-me a mãe. ."É uma irmã esquecida", acrescenta o pai."Não é grande como este", diz a Bells, movendo o braço em redor. "Tem cama pequena, televisão e muitos posters. A janela do quarto dá para o e para o mar. Na minha horta planto batatas e cenouras. Este ano ém plantámos morangos. Gostas de morangos?""Gosto. Aqui não temos jardim", disse eu de forma apologética. "Penso que a habilidade da mãe para a jardinagem. Eu mato tudo! Na minha horta só cria ervas daninhas." Ela não diz nada. Ainda está a olhar à volta do quarto. tns aqui a tua própria televisão, uma maravilha, não?" Apontei para a grande ° ~kvisão pratea. da com ecrã largo posta a um canto do quarto. "Podes ver o mos• Quem pensas que ganhará Wibledon este ano?"á Y Agassi""Não falas a sério", disse eu, numa má imitação de John McEnroe.ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSOlhou para mim sem a sombra de um sorriso. Vou ter de fazer algo mais que uma pobre imitação de John McEnroe."Podemos desfazer a mala?" Abri a mala dela e de lá saiu uma mistura de roupas e lixo, incluindo algumas camisolas interiores aos buraquinhos. "Porque trouxeste a camisola da Mary Veronica?", perguntei, mostrando à Bells a etiqueta pregada na camisola, como as que costumávamos usar nas meias da escola e nos equipamentos de Educação Física. "Bells, não tens aqui muita roupa de Verão. Isto é tudo o que trouxeste? Camisolas desemparelhadas, algumas t-shirts e um par de calças de ganga? Oh, espera, tens aqui

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uma blusa pregueada cor-de-rosa que diz que pertence a Jessica Hall. Creio que vou ter de te comprar algumas roupas novas", disse eu, falando mais para comigo que para com ela. "Tu pões tudo isto de parte enquanto trato do peixe e das batatas fritas. Combinado? Gostas de batatas fritas às sextas-feiras, não gostas?""Tens batatas fritas onduladas, como umas que a mãe faz?""Vou fazer batatas fritas caseiras, como as que faz a tia Agnes.""Oh", agradeceu ela, tornando difícil perceber se ficou agradada ou não. "Como está a tia Agnes?""Penso que está boa", repliquei."E o tio Roger? Morreu. Pobre tio Roger.""Eu sei. Pobre tia Agnes também. Creio que ficou muito só.""Pobre tia Agnes. Como está a mãe?""Bem, tu sabes que está em férias.""Como está o pai?""Também está em férias. Não são uns sortudos? Estão em França." "Em França, pois é. Como está a Granny Norfolk?"A mãe da nossa mãe, Granny, vive em Norfolk, daí o nome. Não sei como está, não falo com ela há meses. "Bem, creio", respondo. "Olha, também tens uma aparelhagem de música só para ti", disse-lhe, tentando parar a enxurrada de perguntas acerca da família Fletcher. "Quando acabares vem para baixo, para a cozinha. Em breve irás conhecer o Sam."Ouço a minha voz mas não sou eu. Pareço não conseguir parar de falar com ela como se tivesse dez anos.Sam. Ainda estou nervosa com o seu regresso a casa. Hoje não me tele-foliou para a loja; quando tentei ligar-lhe a secretária disse-me que ele estava ora "ao telefone noutra linha", ora "numa reunião". Ele treinou-a bem. "Está mesmo desejoso de te conhecer. Vais ser boazinha, não vais?" Não me consigo impedir de acrescentar: "Nada de dramas em frente do Sam. Vamos passar duas semanas muito divertidas, não vamos?"Nada de dramas", repete ela."Óptimo. Vem para baixo quando estiveres pronta."

Estou na minha segunda vodka. Nestes últimos dias tenho contado os nutos até ao momento em que posso tomar a minha primeira bebida da ite. Tenho-me esquecido da chávena de chá e ido direita ao material da ada. As batatas estão a fritar. O primeiro obstáculo está superado. A Bells aqui e estamos a entender-nos bem, acho. A segunda maior barreira será o ntro de Bells com Sam. Tenho a certeza que, ultrapassado o primeiro ntro, as coisas regressarão à normalidade.Stevie Wonder começa a berrar no quarto da Bells. Subo as escadas a correr ro a porta do quarto. A Bells está em cima da cama pregando na parede umde David Beckham, com os seus resplandecentes brilhantes nas orelhas.O adorável quarto branco está agora coberto de emblemas e autocolantesubes de futebol, e afixado na porta encontra-se um poster dos Beatles, comenda SEX, DRUGS AND ROCK N' ROLL em baixo, escrita em grandesgarrafais a negrito. Faz-me lembrar o quarto de Bells em casa dos nossosEla ficou com o quarto principal, o que está forrado com papel de paredeo de florzinhas e tem casa de banho, o que me fazia morrer de inveja. Noto, a Bells não gostava do papel de parede e, por isso, desenhou figurasanimais e pendurou posters dos seus cantores pop favoritos, Stevie Wonder,id Bowie e dos Beatles. Lembro-me que ela também tinha na parede uma

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oografia do Bob Marley a fumar um charro. A mãe não se importava que elatragasse o papel de parede. Não era exigente nesse tipo de coisas. A maiorate do tempo deixava-nos à vontade.Na televisão está a passar O Top do Pop e o chão encontra se completa Vinte coberto de roupa, à qual se junta um esfrangalhado livro de poesia, um oco de desenho, uma pequena caixa de madeira com tintas de óleo, umaALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOScolecção de CD e um álbum de fotografias. Respiro fundo e dobro-me para apanhar toda aquela confusão do chão. "Bells!", grito-lhe. "Desliga isso! Está uma barulheira infernal aqui dentro." Subo para cima da cama. "Estás a pendurar os posters com quê? Não estás a espetar punaises nas paredes, pois não? O Sam não gosta nada disso." Oh, meu Deus, está mesmo. "Bells, não espetes punaises nas paredes", zango-me."Porquê?""Porque deixa buracos nas paredes."Ela continua a empurrar a tacha na parede pintada de branco. "Bells, hei! Não faças isso. O que é que eu acabei de dizer?""Nós fazemos no País de Gales. A mãe também me deixa."Olho para a colcha. "Não quero saber o que fazes no País de Gales, agora estás comigo e com o Sam.""Katie mandona", responde ela.Encolho os ombros. "Bells, podes descalçar as botas? O Sam gostaria que te descalçasses assim que entras em casa." Ela ainda usa aquele peculiar tipo de botas estilo pequeno duende."Porquê?", pergunta ela, e em seguida começa a usar a cama como trampolim porque no País de Gales têm um no jardim e, ao que parece, o Ted é quem salta mais alto."Que raio está a acontecer? Que estalidos são estes?", oiço atrás de mim. Giro o tronco, em cima da cama, e quase perco o equilíbrio. "Bells, quieta! Pára com isso!""Olá", cumprimenta Bells, estendendo a sua pequena mão. "És bonito."Sam olha para ela com estranheza. "O que é que ela acabou de me dizer? Katie, o que está A ACONTECER? O que se passa com a televisão e com a música?" Olha em seu redor. "Este quarto está uma estrumeira."Bells começa a imitar o barulho dos porcos e eu tenho vontade de me enfiar pelo chão."Esta é a tua..." Mal consegue falar."É a minha irmã Isabel. Bells.""Olá, és o Sam?", diz ela novamente, ainda oferecendo a sua pálida mão. Ele aperta-a frouxamente. "Esta é a Bells?" Olha novamente em volta com o desespero estampado no rosto.Aceno que sim com a cabeça. "Sam, eu arrumo o quarto a seguir, não te preo-

"Como é que ela pendurou os posters? Não espetou tachas na parede? Diz-que não, Katie...""Desculpa, eu arranjo tudo depois, amor, prometo", digo-lhe. Sam põe a cabeça entre as mãos. Salto de cima da cama."Que cheiro a queimado é este?" Grita ele de nariz no ar, dirigindo-se à lhagem para a desligar, seguindo-se a televisão. "Jesus Cristo, nem o meu precisa de rebentar os ouvidos dos outros desta maneira.""Não gosto Sam", diz Bells.

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"Bells! Não sejas mal-educada." Felizmente, acho que ele não compreendeu e ela acabara de dizer. Continua a farejar o ar com uma expressão de nância. "Oh, merda, são as batatas fritas", gritei, saindo como uma flecha quarto.ue merda de dia, será possível correr pior que isto?" Oiço o Sam a ejar atrás de mim.

i um longo dia até chegar o momento de, finalmente, subir as escadas ecção ao quarto. As batatas queimaram-se e o Sam detestou as ervilhas as. "Quem é que come ervilhas cozidas, para começar?", protestou ele. lhei para a Bells e ele encolheu os ombros. Tentou fazer-lhe umas quantas tas a respeito da sua viagem de comboio, mas não compreendeu as tas dela. "Não faço a mínima ideia do que ela disse", repetia de cada vez lls reagia olhando para ele. Ela começou a bater com o garfo na toalha, a, e repetindo as suas perguntas em vão.não percebes o que a Bells diz, pelo menos finge que percebes", tentei di-lo depois de o jantar. "Limita-te a dizer-lhe, `Sim, muito bem' ou e?' Aprendi este truque com a Granny Norfolk. Ela está a ficar cada ais surda, e a sua maneira de disfarçar o facto de não conseguir ouvir o e dizem é responder: "Verdade?" ou "Oh, que vergonha."sei que o Sam ainda está zangado comigo por não lhe ter dito nada da e não posso dizer que o censuro. Que estava eu a pensar? Saiu com o re para beber uns copos. Sem dúvida está a dizer ao amigo que está aALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSviver um pesadelo e que a sua casa está a ser tomada de assalto pelas irmãs Fletcher.Tento ler, mas não consigo concentrar-me numa linha sequer. Apago a luz e fecho os olhos.

Grito ao ver o contorno de uma pequena figura aos pés da minha cama."Bells, que estás tu a fazer?" Sento-me abruptamente. "Volta para a cama." Ao receber uma resposta inexpressiva, salto da cama e abano-a para a acordar.Consigo ouvir a mãe a subir as escadas e, depois, a atravessar o rangente corredor com a sua flutuante camisa de noite e a sua liseuse vestidas. "Não a devias ter acordado", ralha comigo, "se isto voltar a acontecer, limita-te a levá-la de novo para o seu quarto. Bells, querida, queres ir à casa de banho antes de voltares para a cama?""Está certo", diz ela, levantando a sua camisa de noite de algodão branco e agachando-se."NÃO!", gritámos ao mesmo tempo a mãe e eu. A mãe desatou a rir e eu também. Então, a Bells imitou-nos, lançando o seu riso Jane Eyre de senhoralouca-fechada-no-sótão.

Acordei com um riso apavorado. Senti-me desorientada enquanto acendia a luz e olhava para o relógio. É apenas meia-noite. Estremeço. Agora ouço a mãe e a Bells, como se fosse ontem.Na casa, um silêncio de morte. Quando éramos crianças a Bells costumava caminhar a dormir quase todas as noites. A mãe teve de pôr largas barras brancas na janela do seu quarto. Salto da cama e atravesso o corredor em direcção ao quarto da Bells. Dou por mim a abrir a porta, o brilho da luz vem até mim. A mãe disse-me que a Bells continua a detestar dormir no escuro e que, por isso, devo manter acesa uma luz fraca no canto do seu quarto.Consigo ouvir a sua respiração profunda quando se volta na grande cama de casal. É tão pequena, menos de um metro e cinquenta de altura. Parece mais nova por causa da sua

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estatura. Vista de trás, pode também ser confundida com um rapaz por causa do seu curto cabelo avermelhado. O pai disse que não queria que a Bells deixasse crescer o cabelo. "Nunca deves esconder-te atrás do cabelo", disse-lhe, quando ela se tornou uma adolescente autoconsciente, desejando ser como qualquer outra. "Olha o mundo nos olhos",concluiu.Ajoelhei-me junto da cama e observei-a enquanto dormia, absorta em cada ha e em cada movimento do seu rosto. Lá está a familiar cicatriz sobre o seu io superior, que o atravessa como dois cês. Usa sempre três pequenos ricos na orelha esquerda; um deles é uma pedra verde circundada a ouro.A sua mão espreita fora do edredão, e a pele é tão pálida que ninguém acretaria que o sangue corre nas suas veias. Toco-a docemente e sinto-a macia mo manteiga derretida. Retiro a minha mão abruptamente como se nunca sse ter sido tão ousada.Arrumámos o quarto depois de o Sam sair e colocámos o mocho da neve .a mãe lhe fez em cima da mesa-de-cabeceira. A Bells adora mochos. A mim e fez-me uma chita. Chama-se Charlie. Bells dispõe metodicamente o dor em cima da mesa-de-cabeceira juntamente com o seu álbum de foto-, cuja capa cobriu com autocolantes do David Beckham. A mãe contouue ela leva o álbum para todo o lado cada vez que se afasta de casa, como se o seu objecto transitivo. Agarro-o e folheio-o cuidadosamente. Em fotografia, inscrito num pequeno autocolante, encontra-se a data e a hora bem como o local e a descrição da pessoa fotografada. Há uma foto-da mãe no seu estúdio, as mãos encrostadas de barro, sorrindo directa-e para a máquina; há uma horrível fotografia do pai, com os olhos verme-a ler o jornal; há uma fotografia da várzea por onde passeávamos em ças. Os meus pais vivem em St. Cross, Winchester. A casa deles é cor-decomo uma casa de bonecas. Costumávamos passear junto ao lago, tar os patos e evitar aproximarmo-nos demasiado dos cisnes. Há uma afia de um homem com um fato de treino vermelho e uma camisola de 1 segurando um papagaio. Tem um cartão de identificação à volta do o. Não sei quem é, por isso, leio a legenda no autocolante. "Ted, 1990, vid. No jardim, Verão."Ela abre os olhos e olha directamente para mim. Entro em pânico,do que não devia estar aqui, mas ela volta a fechá-los. Pergunto-me osonhará ela quando dorme de noite? Quando era criança costumava terciclos e, por isso, tínhamos de manter uma luz acesa no seu quarto. EraPequenina luz cor-de-rosa em forma de casa. O pai dizia que Bells tinhado escuro por causa de todas as intervenções cirúrgicas a que tinha sidoxta em bebé e em criança. Por fim, foi a irmã da Emma, a Berry, quemALICE PETERSONinventou uma solução chamada "A Caixa Preta". Tínhamos de cortar um pedaço do cabelo da Bells — era preferível algo físico, em vez de uma peça de roupa. Colocávamos os fios de cabelo dentro de uma caixa e o curandeiro alternativo levava a cabo uma espécie de cura. A mãe e o pai achavam que está-vamos malucas, mas também perceberam que não havia nada a perder. Para além disso, estávamos todos a dar em doidos com a falta de sono. Ainda me lembro da Berry me pedir para beijar a caixa. "Dá-te boas vibrações", ainda a oiço sussurrar. Alguns dias depois, as gritarias de Bells durante a noite pararam repentinamente. Foi como magia.Levantei-me para sair, a quietude do quarto contrastava fortemente com o caos ali instalado umas horas antes, ao fim da tarde. Paro quando oiço a sua voz abafada."Nada à minha volta?", diz ela ensonada. Lembro-me de ela dizer isto em criança. "Nada à tua volta", respondo-lhe num murmúrio, tal como a mãe costumava responder."Juras?""Juro."

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91989Subo os três degraus em direcção ao estúdio da mãe, cujo ar se encontra egado de pó de argila. Ouve-se em fundo a sua música clássica, como pre. O estúdio da mãe parece um zoológico de brincar com papagaios, um de catatuas, uma zebra, uma girafa, um tigre, um leão e uns quantos cos empoleirados nas prateleiras, alguns porque estão meio acabados,, aos quais a mãe chama "rejeitados", porque se inclinam demasiado ora a direita, ora para a esquerda. A mãe é escultora. Molda diferentes formas animais a partir do barro. O seu último projecto foi um camelo de joelhos dos. Uma amiga dela tinha ido ao deserto do Sahara e ficou encantada um camelo que montou. Pediu à mãe que lhe fizesse uma escultura a r de uma fotografia.A mãe dispõe de uma longa mesa a meio do estúdio atafulhada de frascos compota com pincéis dentro e tubos de tinta abertos. A sala tem o cheiro ico dos diluentes, do barro e do pó. Colocou um placar na parede, que se nitra atafulhado de postais e cartas de clientes satisfeitos que lhe consig-naram macacos, peixes ou quaisquer outros animais."Como estás, querida?", pergunta ela de cabeça esticada por cima dotrabalho. O seu cabelo arruivado está preso num lenço às pintas azuis e brancas ', e traz nas orelhas umas grandes argolas de prata. Parece uma cigana.Apercebo-me de que as únicas ocasiões em que vejo ou converso com a mãeALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSé quando ela está a cozinhar e a cozinha cheira a alho – a mãe gosta de pôr pelo menos dez dentes de alho em tudo – ou quando está no seu estúdio."Um bom dia de escola?", murmura ela, continuando a trabalhar e ao mesmo tempo cantarolando a música de fundo. As suas mãos estão pegajosas por causa do barro e usa o avental de trabalho feito de ganga. Mãe, vira-te, penso. Mas em vez disso sou eu que me coloco diante dela. "Um dia bom?", repete distraidamente.Deixo cair a minha mochila no chão. Não lhe conto que fui mais uma vez repreendida por usar rímel. "Vai lavar essa coisa preta peganhenta da tua cara", repete incansavelmente a chata da minha professora de Matemática. No fim-de-semana passado fui apanhada a roubar à Boots, um eyeliner preto, um rímel e um corrector e a polícia foi a minha casa para falar com a mãe e com o pai. Alguém insinuou que necessitaríamos de aconselhamento familiar."Roubar não é uma coisa inteligente, Katie", suspirou o pai. "Se tiveres de roubar, porque não te certificas que roubas algo melhor que um eyeliner? E vê lá se para a próxima vez não és apanhada.""Não correu mal. O que está a ouvir?""FM, música clássica. Puccini, Madame Butterfly." Começa a cantar acompanhando a música."O que está a fazer? É para quem?""É uma chita." Encosta-se para trás na cadeira e admira-a. "A minha mãe levou-nos a África quando éramos pequenos e fomos visitar um orfanato de animais selvagens. Lembro-me sempre de uma chita a rebolar-se para mim, como um enorme gato domesticado. Senti-me tentada a enfiar a mão pelas grades para lhe tocar. Estás a ver, elas podem arrancar-te um bocado de carne e até mais que um bocado."Encolho-me. "O que é que elas comem?""Castores, aves de caça, impalas, javalis.""Adoro as suas pintas."

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"Sabias que o nome `chita' vem de uma palavra hindu que significa `o que tem pintas?'Abano a minha cabeça. "Que linhas pretas são aquelas por baixo dos seus olhos? A tinta esborratou-se?""Esborratou-se? Não! És muito engraçada. São rugas de expressão." Final-mente olha para mim. "Gostas dele?""Dele?""Da chita, tontinha.""Ah, adoro-o. Acho-o lindo. Não parece querer fazer mal a ninguém.""Toma, fica com ele, está completamente acabado." "A sério?" Sorrio. "Mas estava a fazê-lo para quem?""Isso não é importante." Afaga-me o cabelo e sorri. "Agora é todo teu.arda-o num local seguro."10Acordei desorientada. Tive um sono agitado. Tenho a certeza de ter voltado a, ao estúdio da mãe. Consigo até sentir o cheiro do diluente. Desde que a notícia de que a Bells vinha para ficar tenho pensando muito na minha particularmente na minha mãe. Ontem, quando estava a trabalhar na loja, comigo a pensar naquela vez em que fomos a uma festa de passagem de ano casa da Sra. Kissinger. Nessa altura eu teria à volta de doze anos. O pai ava-lhe a Sra. Kiss Kiss, porque ela se achava formidável e dava daqueles —os horríveis com efeitos sonoros. Lembro-me de que ela tinha cara de ovo fado, uma cara achatada e de contornos pouco definidos. No meio das taças ovos de codorniz e de blinis com salmão fumado oferecidas em redor da sala inada pelo lustre, a Bells levantou a saia de veludo e fez chichi na carpete. o a ver, a menos que a lembrássemos de ir à casa de banho, ela esquecer-se-que aquela não era a coisa mais indicada para se fazer no chão. A Sra. Kiss correu na nossa direcção dizendo que aquela carpete com cenas de caça era favorita. Era uma carpete vermelha que reparei mudar de cor sob o efeitoora havia uma mancha de humidade sobre um dos guerreiros zangados ue montava a cavalo segurando firmemente uma lança. Lembro-me da mãe :Pedindo desculpa e olhando de lado para os outros convidados, que imediata-Mente fingiam estar embrenhados na conversa. Nunca tinha visto tantas costas aem-se para nós. Nunca mais fomos convidados. Nenhum dos outros convi-dos mostrou ter-se apercebido, sequer, do que aconteceu.ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSO Sam ainda dorme profundamente. Deve ter rastejado para a cama cerca das quatro da manhã. Nunca durmo bem quando ele não está comigo. Enfio os pés nas minhas pantufas listradas como as zebras e visto o roupão de seda que está pendurado atrás da porta. Entro no quarto da Bells mas ela não está lá. Deve ter descido. Encontro-a à mesa da cozinha a bater com o dedo na escultura garrafa-de-leite. Veste um fato de treino largo, de cor cinza, e uma t-shirt vermelha da Universidade de Oxford. Onde terá arranjado aquilo?"Tem cuidado, Bells.""O que é isto?""Gostas disso?""Não."Esbocei um sorriso. "Não digas isso ao Sam. É a sua peça de arte favorita.""Não gosto do Sam." Tirou imediatamente a mão da escultura, como se estivesse a tocar em qualquer coisa suja. "Ele diz muitas vezes a palavra `M'. Não estamos autorizados a dizer essa palavra."

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"Não conheces o Sam", afirmei com clareza. "Não deves julgar tão rapidamente. Vais ser simpática com ele, está bem?""Não gosto dele", declarou friamente."Bells, esta é a casa do Sam. Ele foi suficientemente gentil para te deixar ficar. Precisas de o conhecer melhor. Queres tomar o pequeno-almoço?""No País de Gales tenho muesli para o pequeno-almoço. Fazemos nós mesmos.""Temos de ir ao Sainsbury's. Queres ir comigo?"Quando entrávamos no Sainsbury's observei-nos no ecrã do circuito fechado de televisão. A Bells veste agora a sua blusa franzida cor-de-rosa por baixo de um macacão de ganga, com as botas púrpura de pequeno duende e o chapéu bordado. Eu visto uma saia laranja que se cola às minhas ancas, um top da Whistles amarelo pálido e umas sandálias laranja cobertas de contas. A Bells diz-me que pareço uma tangerina.Há um delicioso aroma a pão fresco que me faz sentir fome. "Olá, como está?", pergunta a Bells a uma senhora de idade numa scooter azul clara com umsto de compras à frente. "Que idade tens?" Olha fixamente para a motoreta, ue tem `Bluebird 2' pintada atrás, como uma chapa de matrícula. "Desculpe", disse a senhora, lutando para apanhar um abacate e evitandocontacto visual.A Bells volta para junto de mim com dois limões. "Eu não diria olá a toda gente", disse-lhe em voz baixa enquanto saíamos dali. "E, por engraçado que eça, as pessoas não se sentem lá muito felizes quando têm de confessar a suade.A Bells apanha pacotes de ameixas seca, alperces, sultanas, figos e flocos de ia para o seu muesli. "Tens de tirar uma Coca-Cola Light", disse-lhe, do chegámos à secção de bebidas."Boa sorte", ouvi um homem dizer. Voltei-me de lado para ver um velho udo empurrando um carrinho cheio de laranjas. Dá palmadinhas no ro de outro homem que finge estar concentrado na escolha da marca de up que vai comprar. "Boa sorte", disse ele outra vez, piscando o olho. uma camisola de malha com patos e um par de luvas pretas sem dedos. us olhos riem enquanto fala e, por um momento, olha para a Bells e para , ciente de que está a ser observado. Olho para os pés, esperando que o em não aponte as suas luvas sem dedos na nossa direcção.Um homem louco", disse a Bells. "Pobre homem.""Shhh, não olhes." Puxei dali o nosso carrinho rapidamente. A Bells enche-tudo o que é produto fresco. O único vegetal não fresco são as ervilhas enlatadas. É a única coisa enlatada de que gosta, diz-me. Põe no o ingredientes que eu nunca usei. Quer porcinis desidratados, leite de malaguetas, coentros, folhas de louro, azeitonas recheadas, óleo de tes de sésamo e gengibre fresco. "Que é que vamos fazer com todas estas e coisas?", perguntei-lhe, entrando ligeiramente em pânico porque a ta seria enorme. "Cozinhas muito em casa, não?", perguntei-lhe. "Aposto gostam que cozinhes para eles."im, chamam-me Rainha da Cozinha."° -Senti-me aliviada quando finalmente conseguimos dirigir-nos para a caixa.fila é longa e ficamos atrás de um homem alto com o cabelo castanho-clarofiliado. Entre as compras que traz no carrinho há um pacote de bolos,mel, uma lasanha de confecção rápida para dois, mini Magnums e umaALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS.rrafa de vinho tinto. O tipo de comida que normalmente tenho no meu. Bells dá-lhe uma vigorosa palmada no braço. "Olá."Ponho-me a olhar para os pés.

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Ele volta-se. "Olá", ouço-o dizer, e olho brevemente para cima. Usa óculos, na t-shirt branca e jeans escuros."Lamento", digo, contendo a respiração."Olá." A Bells bate-lhe de novo com força no braço e em seguida estende-e a mão."Bells! Não batas com tanta força. Desculpe", digo, desfazendo-me em mpatia. Ele esboça um sorriso dorido enquanto fricciona o braço e estica a ia mão na direcção da Bells."Gostas do Beckham?"Está certamente pasmado, perguntando-se se terá ouvido bem, e eu aceno ibtilmente com a cabeça. Se conseguem imaginar o que é falar sem conseguir ^car com a língua no céu-da-boca, é assim que a voz da Bells soa. Para mim é cil porque aprendi a linguagem dela desde criança. É como aprender uma agua estrangeira, e mesmo agora tenho de adaptar o ouvido quando a ouço."Sim, creio que o Beckham é sensacional, e a Posh Spice também. Vejo que )stas dele", disse, cúmplice, olhando para os crachás pregados no macacão °1a."Tens filhos?", continuou ela. Oh, por favor, pára de falar.Pelo modo como se riu, percebo que não compreendeu a pergunta. Verdade?", sorriu."Tens filhos?", voltou a perguntar, agora em tom urgente.Olhou-a fixamente, tentando decifrar o que tinha dito. "Não, não tenho lhos", replicou confidente, e eu abanei a cabeça como se dissesse: Boa, é isso lesmo. "Bem, espero que não." O homem esboçou um falso sorriso."Quantos anos tens?""Bells!", disse, exasperada. Tenho vontade de vendá-la, e de lhe pôr uma Lordaça também."Não faz mal", disse o homem, começando a ensacar a comida. "Tenho nte e nove.""A minha irmã, Katie", anunciou, agarrando-me o braço. "Estou de visita Londres."Ele respondeu-lhe que isso parecia ser divertido. Enquanto ele falava eu não conseguia deixar de pensar que, se se penteasse, tirasse os óculos, engordasse um pouco... poderia ser muito atraente.

"Quer pagar a crédito?", perguntou-lhe a empregada da caixa. "Não, obrigado."

"Cartão Néctar?"

Remexe no bolso, que pelo barulho se percebe estar cheio de trocos, e apresenta alguns cartões. Estica o da direita à rapariga e volta-se para me olhar novamente. É estranho, mas sinto-me como se já o tivesse conhecido antes. E por que tenho esta estranha sensação que o vou encontrar de novo? Assina o _recibo, mas não consigo ver como se chama.

"Adeus", diz finalmente.

"Sim, adeus", digo, tentando ainda oferecer um nome àquele rosto. "Adeus", acrescentou a Bells.

O homem volta-se uma vez mais e olha na nossa direcção. "A propósito, na idade tenho trinta e quatro! Acho difícil enfrentar a minha idade no meiro encontro." Ri-me enquanto o observo a afastar-se.

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A Bells pergunta à mulher que nos está a atender que idade tem. Suponho é melhor do que perguntar-lhe quanto pesa, penso desesperada. "Desculpe?", diz ela.

"Bells, pára com isso!", ordeno, antes de ela ter tempo de perguntar outra Volto a dizer-lhe para não fazer perguntas pessoais a estranhos, especial-te acerca da idade. Às vezes penso que ela o faz deliberadamente para me araçar. Ela gosta de fazer isso. É como ser de novo adolescente. "Vamos na nossa comida e sair. Lamento", desculpei-me perante a rapariga da a."Tudo bem", diz ela.

Empurro o carrinho bruscamente em direcção à porta de saída.

"Não, não digas nada", digo com severidade de cada vez que me parece que

Bells vai abordar mais alguém. "Não!"""Não pergu. ntes." Sossegada" "Entra no carro."ALICE PETERSONPonho as chaves na ignição e exalo um suspiro de alívio por termos saído do Sainsbury's inteiras, sem que ninguém nos enxotasse ou ameaçasse bater-nos com uma grande e pesada baguete. "Este é apenas o primeiro dia, vou conseguir aguentar isto, vou conseguir aguentar", murmuro para mim própria.Deus me ajude, tenho duas semanas disto. Posso esquecer a possibilidade de passar anonimamente os próximos catorze dias, não é?11:1988Tenho treze anos. "Como conheceu o pai?", pergunto, no carro, à mãe. -nos, a mim e à Bells, a ver o pai conduzir um leilão. É estranho vê-la sem ental. Hoje veste um vestido verde e traz o cabelo preso com o seu pente ial de tartaruga. É uma das primeiras vezes em que saímos todos juntos. viagem a Londres! Normalmente não fazemos nada. Emma, a minha or amiga, visita-nos ocasionalmente, mas ficamos em casa. .Bem, a minha mãe deu-me um quadro impressionista e eu fui à Sotheby's se valia alguma coisa. Era um tanto misterioso porque não estava assinado, parecia um Pisarro. Estava relativamente desesperada por vendê-lo. Estava iado pobre para sentimentalismos", disse a mãe, torcendo o nariz.'E valia alguma coisa?"`Valeu um jantar grátis", riu-se. Conheci o vosso pai e ele convidou-me sair. No exacto momento em que o conheci soube que iria fazer parte da a vida. Às vezes não consegues explicar estas coisas, é apenas um senti-to.""Como amor à primeira vista?", perguntei."Sim, suponho que sim. Na altura ele era um assistente de retaguarda. Era to malicioso, sabes. Um muito lúgubre especialista estava a explicar-me infelizmente, o meu quadro não era original e, enquanto ele falava, o o pai imitava-o por detrás. Era inacreditavelmente atraente, o tipo deALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOShomem que podia escapar imune a qualquer coisa. Lembro-me de ter pensado que ele tinha um grande nariz. Quero dizer, vocês dificilmente compreendem, não é, meninas? Mas isso não interessa, veio com a sua longa e magra face. E os seus olhos eram tão travessos e tão galantes...", já estava a divagar. "Ele sorria e os seus olhos falavam

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connosco. Quando forem mais velhas compreenderão o que quero dizer. Lembro-me de me ter dado o seu cartão profissional. Christopher Fletcher. Gostei do nome, desde que não se chamasse a si próprio Chris. Marianne Fletcher, disse para mim mesma.""Mãe, isso é triste", suspirei pesadamente. Não conseguia imaginar-me a querer casar com alguém."Um dia farás a mesma coisa. Não queres casar com alguém com um apelido como Pratt, Burk ou Fogsbottom."Ela tem razão. Há uma rapariga na escola cujo apelido é Smellie, e, todas as manhãs, ela teme a chamada. A Bells ri-se, e esta conversa está-me a irritar. Viro-me para olhar pela janela.A sala de leilões é escura com muita gente a entrar e a sair. A carpete é vermelha. Estou sentada ao lado de um homem com um bigode tão grande que mais parece uma morsa. A mãe foi demasiado sovina para comprar um catálogo para cada uma e, por isso, tentei debruçar-me e espreitar para o da Morsa. Consigo ver montes de estrelas rabiscadas em cada página, junto aos preços.Durante o pequeno-almoço o pai explicou-nos como funciona tudo isto; os seus olhos iluminaram-se quando falou do leilão. "Há uma estimativa para cada quadro e, portanto, um preço base, o que significa que não posso vender abaixo desse valor. Sinto-me orgulhoso por as minhas meninas hoje me irem ver", acrescentou, enquanto comia o seu último pedaço de torrada.O Morsa olhou na minha direcção e eu sentei-me direita na minha cadeira. Olha-me com curiosidade enquanto faz girar uma caneta entre os dedos. "Queres dar uma olhadela?", disse, com bastante sotaque. É uma morsa francesa.Isto parece excitante. Como quando vamos ao cinema e ficam todos à espera que o filme comece. Toda a gente está à espera do meu pai.Ele entra finalmente na sala de leilões, calçando uns sapatos impecáveis e uri] elegante fato com gravata. Escolhi esta manhã a sua gravata. Por vezes deixa-me fazê-lo. Usa os óculos de aros negros, o que lhe dá um ar inteligente. "É o meu pai",confidenciei em voz alta ao meu vizinho francês. Penso que o meu pai tem boa aparência."Boa tarde, hoje temos aqui um festim de quadros, portanto vamos começar." Tossiu para aclarar a garganta e eu observei-o intensamente. "Lote número um. Desenho de um rosto de mulher por Matisse. Quem começa a licitação a vinte e cinco mil libras...?"O Morsa levantou o que parecia ser uma raqueta de pingue-pongue. Repentinamente a licitação tornou-se rápida e furiosa. Virei-me para o orsa muito divertida enquanto ele continuava a levantar a sua raqueta de ngue-pongue. Estou a gostar disto. À medida que o leilão aquece, a mãe vai do de faces vermelhas na tentativa de evitar que a Bells levante a mão e nfunda o leilão. "Olá, pai!", chama ela. Ouço as pessoas atrás de nós pedindo ncio e murmurando: "Porque trazem crianças para um sítio destes? É ridí-" Volto-me e atiro às duas senhoras idosas um dos meus mais sórdidos es.Nessa altura senti a mão da mãe puxar-me. "Vamos embora", sussurrou. m licença", pediu ela à pessoa mais próxima. Cadeiras foram deslocadas e encolhidas para nos dar passagem. Eu não quero ir. Estou a divertir-me. o postos em nós todos os olhares e as duas velhas acotovelam-se triunfante-te. "O que aconteceu à teoria de que é para ser visto e não ouvido?", volto-t levanto dois dedos na sua direcção. As duas senhoras suspiram e o meu pai directamente para mim, com desapontamento nos olhos.Adeus, pai", grita a Bells. As pessoas ainda olham fixamente para nós.4+No carro, de volta a casa, gritei: "Porque não te portas normalmente? És tão açante! Contigo não se pode ir a lado nenhum."A mãe travou bruscamente e desviou-se para a berma da estrada. "Mãe! do com esse homem de bicicleta!"

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tPerigo, perigo", diz a Bells, rindo-se no banco de trás."Cala-te, Bells!" Berrei-lhe..A mãe desviou-se para evitar o ciclista e acabou a subir o passeio, os pneus do em protesto contra o lancil. O condutor atrás de nós buzina furiosa-e enquanto nos ultrapassa. "Azelha!", grita pela janela. O ciclista dá rapida-ente a volta e agita um punho zangado na nossa direcção.Agora ouve-me bem, Katie...""Mas, mãe...""Não. Cala-te", disse ela autoritariamente. "Se mais alguma vez disseres issoALICE PETERSON:erva da tua irmã, digo MAIS ALGUMA VEZ, corto-te a mesada durante :manas." Desatou a gritar, agarrando o volante com força. "Não é culpa da Bells..." "Está sempre do lado dela", protestei."Tens muita sorte por...""Tenho muita sorte por não ter um lábio rachado", terminei, como um obot. Se crio algum problema, a resposta da mãe e do pai é invariavelmente .izer-me que me devia sentir muito feliz por ter nascido sem nada de errado e ue devia contar as minhas estrelas da sorte."Pois tens", diz a mãe.Não creio que tenha sorte. "A mãe gosta mais dela que de mim", digo-lhe."Não é verdade", responde-me cansada. "Isso é absolutamente falso. A única oisa que estou a dizer é que tu foste a mais afortunada e que, por isso, devias lar o exemplo."Encolho os ombros."Só queria ver o teu pai hoje, sem dramas, mas já percebi que isso é de todo mpossível. Acabaram-se as saídas, ponto final", acrescenta determinantemente. Voltamos a não fazer nada."Às segundas fazemos nada, às terças fazemos nada", começa Bells a cantar ;om a música de Happy Days. Não parece minimamente perturbada com o facto le nos ter estragado a tarde.A mãe acende um cigarro com o isqueiro do carro e abre a janela energicanente. "Bells, tu também, já chega", diz ela e eu começo a bater palmas. "Até que !nfim se diz à Bells que pare", acrescento zangada."Está bem", começa a mãe a murmurar, "está tudo bem, eu aguento. Tu ambém aguentas."Se a Bells não se tivesse portado mal nada disto teria acontecido. Sinto o meu lueixo a tremer, mas estou determinada a não chorar. Não quero que a mãe me ,eja chorar. Pelo contrário, encolho os ombros, como se dissesse `não quero aber', e viro a cara de novo para a janela. Sinto umas quantas lágrimas a :orrerem-me pelo rosto, mas ninguém as consegue ver. São as minhas lágrimas secretas. Não compreendo. Não fui eu quem provocou a confusão. Porque ipanho com as culpas todas? Mais vale ser mal comportada também porque, pelo nenos assim, divirto-me um pouco.12"O que estou a fazer agora?" O senhor Vickers esfrega as enormes mãos a na outra, pensando no próximo truque. Estamos na minha loja e o Sr. kers está há cerca de cinco minutos a brincar às charadas com a Bells. Já u a achar esgotante andar com Bells atrás. Ela gosta de fingir que é uma nte e começa a desdobrar as pilhas de roupa cuidadosamente dobradas por • e gosta de perguntar aos clientes se são muito ricos. "Tens muito eiro?", perguntou a uma elegante rapariga com um leve vestido verde lima. rapariga fingiu não ter ouvido. E agora... quem é este homem de mãos tes cor de couve roxa? A sua circulação sanguínea é tão deficiente que os encolhidos dentro de uns

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velhos sapatos beges que mais parecem pastéis carne da Comualha, estão igualmente às manchas roxas.Mandei a Bells comprar uma baguete para o almoço e, sabe-se lá como, jou maneira de trazer consigo este homem. "Desculpe, quem é o ?", perguntei-lhe assim que entrou na loja. "Quem é este?", olhei direcnte para Bells. Não quero gente esquisita na minha loja."Eu, bem, não quero incomodar", começou."Desculpe, quem é o senhor?", perguntei mais uma vez.Finalmente descobri que se chamava Vickers e que trabalha numa das livra-locais. Tem o cabelo grisalho e usa calças cor de mostarda com uma camisa elegante colarinho branco. A sua maior peculiaridade consiste no facto de um alto no meio da testa maior que uma bola de golfe.ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Porquê um galo esquisito na cabeça?", atacou Bells imediatamente."Oh, meu Deus", disse Eve, tapando a boca com a mão. "Bells, pode ser essoal."O nosso visitante olhou para mim pedindo uma tradução. "Ela perguntou-te que, humm, que alto era esse na sua testa?" O meu tom de voz elevou-se o final da frase. Sentia-me estranhamente curiosa também; nunca vira um to assim."Eu, bem, nasci com ele", respondeu. "Quer dizer, não sei muito bem o ue é... tecido mole, ou qualquer coisa assim parecida." Não pareceu embara-Ido por lhe fazerem uma pergunta de carácter tão pessoal."O que estou, bem, o que estou a fazer agora?", pergunta-lhe, e até a Eve junta à brincadeira. Sustém a mão no ar, dedos fechados como se agarrasse rmemente qualquer coisa, e começa a balançar-se para trás e para a frente nitindo em simultâneo uns ruídos estranhos."Está a montar um cavalo?", adivinha Eve circunspecta, com o dedo encos-Ldo à boca como se ponderasse na resolução de um crime importante e, em guida, sacode imediatamente a cabeça. "Não, isso não explica a mão." Parece )nfundida, com os olhos semicerrados.Olhei para a porta, rezando para que ninguém entrasse. Não entrem, não itrem, continuem a andar, digo para mim mesma quando vejo duas senhoras passar."Querem que, bem, querem que repita?, pergunta entusiasmado, arregando os olhos. "Dou-lhes, bem, dou-lhes outra pista", acrescenta com generodade. "OK. OK." Volta a posicionar-se.A Bells começa a balançar-se para trás e para a frente como o senhor ickers. É a primeira vez que a vejo divertir-se desde que chegou. Ele continua emitir aqueles estranhos ruídos enquanto se baloiça para trás e para a frente. iuidado com a distância", anuncia esporadicamente. "Isto é", faz uma pausa, )em, isto é a pista", e sorri para Eve e para Bells."Bien súr! Está num comboio!" Eve bate palmas.A Bells começa igualmente a aplaudir. "Pouca-terra, pouca-terra, comboio!""Estou no, bem, estou no metro, em Waterloo." Fala devagar, enfatizando .da palavra no meio da sua gaguez. "Não consegui um lugar sentado, )rtanto estou... bem... estou...."DESEMBUCHA! Apetece-me gritar. Serei eu a única a achar tudo istocoisa de loucos?"Estou a agarrar-me à, bem, à alça."Prepara-se para começar um outro número e tenho de dizer qualquer coisa agora, atingi o ponto de ruptura. "Desculpe, senhor Vickers, estamos muito ocupados..." Eve, Bells e o sr. Vickers olham em volta para a loja vazia. "Importa-se....?" Não preciso de terminar a frase. Ele responde que, de qual-quer modo, tem de se ir embora. "Faço falta lá no

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meu emprego. Bem, gostei muito de as conhecer, Isabel e Eve." Olha para mim, acena com a cabeça e sai. "Voltas a visitar-nos?", pergunta Bells seguindo-o.Depois de se ter ido embora, Eve olha para mim com um olhar desaprodor e eu encolho os ombros. Isto é a minha loja, não um centro para a comu-"dade local.13"Desculpa, querido, não me lembrei que era a tua vez de receberes em casa ite do póquer", peço absolvição de novo. Sam observa-me enquanto atiro ala, o jornal e as chaves de casa para cima do sofá. O dia hoje pareceu durar semana inteira. Não foi apenas a visita do senhor Vickers, mas o que mais mente me corta a respiração é o facto de Bells mexer na roupa com as suaspeganhentas. Graças a Deus, a maior parte dela é preta, mas mesmo , ninguém quer grãos pegajosos de açúcar nos seus vestidos. Eve levou-a cima ao armazém, uma pequena sala no segundo piso onde guardo uma ra, café, uma pequena mala de cosméticos e os caixotes das encomendas. e que ajudaria Bells a lavar as mãos. "Água quente com sabão", ouvi a a irmã dizer."Tu róis as unhas? Devias comer gelatina pura", oiço Eve sugerir. "Vou -te um tratamento de manicura à francesa. Queres?" Pergunto-me o que de mim sem a Eve. Aquela sessão de manicura deu-me tempo para voltar brar a roupa toda.Neste momento, Bells senta-se no sofá e abre a embalagem do seu gelado num, absorta com a conversa entre mim e Sam. Dos que mais gosta são dosums de amêndoa. Reparo no Sam, agora de olho no papel pegajoso sujo dechocolate que se encontra perigosamente próximo da sua almofada de cor creme.Não percebo porque largas a tua trampa em cima do sofá quando tens uma tinia mesa mesmo ao lado", diz carrancudo. "Isabel, dá-me esse papel."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Gostas de Stevie Wonder?", pergunta-lhe Bells muito séria."O quê?" Sam olha-a de soslaio."Gostas de Stevie Wonder?", repete Bells esticando o CD para ele com uma mão e vacilando o gelado na outra."Não sou fã", responde desdenhosamente. "Aquela música `Ebony and Ivory' que ele fez com o Paul McCartney é um monte de cacarejos." Tão encantador. Por vezes pergunto-me o que vejo em Sam."No entanto, do que eu não gosto mesmo nada é de lixo aqui pela casa.A casa é minha, portanto, não te importas de respeitar as regras? Lindamenina", diz ele, evitando o contacto visual. "O papel, se faz favor."Ela entrega-lho e ele caminha escadas abaixo em direcção à cozinha. Sigo-o. Oiço a televisão a ligar-se no andar de cima. A Bells está a ver Wimbledon. "Não posso sair esta noite, Sam, preciso mesmo de fazer a minha contabi-lidade. O Bernard telefonou-me hoje a pressionar-me.""Katie, é uma noite exclusivamente de homens", atira-me ele asperamente, levantando a tampa do caixote do lixo, atirando o papel lá para dentro e fechando-a violentamente."OK, e se eu te dissesse que a Kate Moss vinha cá a casa esta noite?"Os seus lábios esboçam um ténue sorriso que imediatamente desaparece. "Não lhe seria permita a entrada, receio bem.""E se eu ficar mesmo muito sossegadinha.... Caladinha que nem um rato?" "E o que irá fazer a Isabel, entretanto? Pensei que as noites de terça fossem as vossas noites femininas, tuas e da Emma?""Tive de a cancelar." Abro o frigorífico e espreito lá para dentro. Na gaveta do fundo há batatas para cozer, bem como um molho de brócolos frescos e um pacote de cenouras

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frescas. Queijo, bacon, cogumelos e um frasco de azeitonas recheadas com alho dispõem-se a meio."Eu não ficaria aqui colado se resolvesses receber um bando de mulheres para uma reunião da Botox3.""Eu não faço reuniões da Botox.""Percebes muito bem o que quero dizer. Cristo, às vezes és muito pedante", diz ele esfregando o nariz.3Botox é uma linha de cosméticos vendidos em reuniões femininas. (N. da 7)."Sam, a Bells e eu ficaremos no quarto até a costa ficar livre", digo-lhe. "Só isamos de fazer... oh, merda, o que é que ela cozinha às terças?""Que queres dizer, às terças? Vai ao pronto-a-comer. Os rapazes chegam qui a uma hora.""Tenho de pôr umas batatas no microondas.""Não acredito nisto!" Observa-me a golpear as batatas de alto a baixo, espedo que eu mude de ideias. "Vá lá, deixa-te disso, é uma noite para homens. tão injusto. Esta casa é minha!""Pára de esfregar o nariz com tanta força. Sabes muito bem o que aconda última vez, acabou por ficar em ferida."Esfrega-o delicadamente e em seguida pára. "Eu não me intrometeria entre Emma. De qualquer modo, acho que ela não gosta muito de mim", acres-. Passo a minha mão pelo rosto e fecho os olhos com força. Estou tão da. "Pareces um gaiato mimado.".Estás a estragar a minha noite com os meus amigos.""Errr... então? Estou a dizer-te que não farei o mais pequeno ruído. Nem brarás que a Bells e eu estamos aqui." Ele ainda parece furioso. "Isto é por causa dela? Se fosse só eu importavas-te?", pergunto-lhe.ignora-me. "Se tens mesmo de ficar aqui ao menos podes ir para o lá de cima? Não te quero na sala ao lado da nossa."Sam, por muito emocionante que possa ser ouvir o que vocês rapazes prometo não me pôr à escuta. De qualquer maneira, tenho trabalho `fizer."ite um grunhido de descontentamento. "Prometes mesmo?" rometo."

A Bells senta-se na beira da nossa cama de casal a comer as suas batatas Ficou com o Sam atravessado porque ele não a deixou cozinhar. "Não os tempo", gritou-lhe ele e em seguida a mim. A Bells abria a porta do rífico e dos armários e ele pairava atrás dela, fechando-as violentamente que ela se afastava. Expliquei-lhe por que razão não podia cozinhar o seu tto vegetariano, com azeitonas e pinhões. "Cozinho sempre no País de es", protestou ela.Observo-a enquanto come. Não parece impressionada com as espapaçadasALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOSatas peladas. "Tenta não deixares cair nada para cima do edredão", sussurro-lhe. "Sam mata-me se fizer porcaria", responde ela."Shhh! Pois mata. Bells, podes sentar-te mais em cima da cama, seasseres.„Ela aproxima-se um pouco mais de mim, mas não parece descontrair-se. Queres ler uma revista? Olha, comprei a Tatler.” Estendo-a na sua direcção. A minha loja vai aparecer no número do próximo mês, fiz uma passagem denodelos."A Bells não se mostra minimamente interessada.

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"Ou então, que tal fazeres umas palavras cruzadas? Ou, se quiseres, podes ver o ténis, mas sem som? É melhor assim, escusas de ouvir os grunhidos dos jogadores." Bells fixa um olhar ausente na parede. Parece tão aborrecida. A mãe e o pai avisaram-me, antes de partirem, que ela se aborrecia muito facilmente quando estava com eles e frequentemente queria voltar para o País de Gales."Eu sei que é aborrecido", digo-lhe, ouvindo uma pancada forte na porta da entrada.A Bells põe a sua comida no chão. "Agora temos de ficar muito caladinhas", digo-lhe.Qualquer traço de entusiasmo evaporou-se completamente numa nova expressão de tédio. "Porquê?", pergunta. "Katie mandona. Pareces um polícia de trânsito", acrescenta. "Onde está o Sam?""O Sam está aqui. É a sua noite com os rapazes amigos." Ainda sorrio com a imagem da minha pessoa de uniforme com um chapéu azul na cabeça. "Quem está a bater à porta?"Oh, meu Deus, penso para comigo. Talvez não tenha sido boa ideia ficar em casa. "Davey, amigo", oiço o Sam exclamar, seguindo-se umas quantas palmadas num ombro de homem."Quem é o Davey?", pergunta a Bells em voz alta."Bells, lembra-te, fala baixo. O Davey trabalha na City com o Sam. Eu disse-te, eles jogam póquer todas as semanas."' "- devolve Davey estridentemente. "Sou o primeiro a chegar?" se estivesse numa sala de«no agora a piscar o olho para Davey. O Sam termina sempre os seus louvores com uma piscadela de olhos."Sapatos novos Paul Smith. São o máximo, não são?", pergunta Davey orgulhoso."Muito giros. E que tal isto, para uma mostra de estilo?", desafia-o Sam.Esta noite veste a sua camisa nova de seda vermelha, portanto, imagino que se esteja a referir a isso."Fino. Gosto dela, Lakemore. Aposto que as miúdas também. Foi a tua patroa que a escolheu?""Não, vi-a na Fulham Road. Gira, não é? Impressionem, sintam-se impressiotes..."...e SERÃO impressionantes", terminam ambos em simultâneo. "Senta-te, vid, serve-te de um whisky.""Cheers."A porta, de novo."Crispin, meu velho e indomável excêntrico.""Lakemore." Outra pancada nas costas. Consigo ouvir os seus sapatos marcando assos contra o soalho de madeira. Entram na sala de póquer. Sam transforma a de estar numa sala de jogo, arma a mesa de jogo com as impecáveis fichas de o. "Eita-pau, Davey Cacauuuuuu!""Crisps! Como é que vai a vida?""Quem é o Crisps?", pergunta-me Bells num tom de voz ainda mais alto. Talvez incapaz de sussurrar? Nunca pensei nisso.-Batem de novo à porta."MAGUIRE!", grita Sam. A porta abre-se com estrondo.LAKEMORE!", berra o outro em resposta."São todos surdos?", pergunta-me Bells, balouçando-se para a frente e enfiando dedos nos ouvidos."Boa pergunta", respondo-lhe. "Qualquer um pensaria o mesmo, não é verdade? "Davey, amigo...""Maguire, o que tens andado a armar?"

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"Crispin, seu indomável!"masAALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Estás bem, Bells?" Está a rabiscar no meu jornal. "Dá-nos uma pista", sugiro poisando os meus papéis. Sam está a jogar póquer há já uma hora, e não compreendo por que razão se preocupou com a possibilidade de eu ouvir as suas conversas. Homens juntos são tão interessantes como uma noite passada no meio de um pântano."Vou subir vinte lecas", oiço um deles dizer.As fichas entram dentro do pote."Eu jogo", diz outro, mais fichas a circular."Passo", responde um outro."Vamos todos a Ibiza este Verão?""Absolutamente", responde um deles."Pois, pois, pois, absolutamente", imita outro."O Tobes este ano não vai, a mulher dele pôs os pés completamente à parede.""Acham q'ele andou a comer fora de casa?""Claro que sim", riu-se um outro."Como é que ela terá descoberto? Regra da casa. O que se passa na estrada, fica na estrada",, diz alguém autoritariamente.Bells e eu olhamo-nos. Faço-lhe uma careta pateta e ela de repente começa a rir-se. Fico surpreendida por me sentir tão satisfeita ao ouvi-la rir-se. Ela levanta a mão direita, de polegar voltado para cima, junto ao nariz. Por vezes, quando olho para Bells pergunto-me de onde é que ela saiu. Tirando a cor do seu cabelo e dos seus olhos não se parece com ninguém da família, mas o seu riso é quase igual ao da Granny Norfolk."Rapazes estúpidos", murmuro-lhe, com a esperança de a ouvir rir nova-mente."Muito estúpidos", repete ela, inclinando-se para a frente com o polegar levantado.Aproximo-me dela. "Chatos, não são?", segredo-lhe ao ouvido."Ah-Ah!", guincha, e quase se ri de novo. "É verdade. Muito chatos.""Ela, também, era um belo galináceo", continua um deles. "Eu disse ao Tobes: Amigo, podias ter feito melhor que isto. Sam, como se chamava aquele passarinho com quem andaste metido no ano passado?"Poiso os meus papéis e colo-me junto à porta."Já podemos sair, agora?", pergunta Bells impacientemente. "Estou aborrecida." Ponho um dedo junto aos meus lábios."Preciso de chichi", diz levantando-se."Rapazes, podem fazer menos barulho?", oiço Sam pedir, educadamente,as com firmeza."Que bicho te mordeu, Lakemore? Ficaste um bocado para o calado. Deves um jogo muito mau mesmo. Onde se meteu a tua cara de póquer?" "Posso estar a fazer bluff, Maguire.""Tu vens a Ibiza, não é verdade Lakemore?""Vou", diz em tom decidido."Como é que era o nome da tal miúda?""Bem, não sei. Alguém quer um charuto?""'Tás com medo que a patroa descubra?", riem-se todos."Ainda não andava com a Katie, na altura", recorda-os Sam. "Nunca a alia", diz em voz alta, bastante exageradamente. "Que tal uma música? m?"Vá lá, responde à pergunta. Quem é que conheceste, Sam? Não tem impor-ia, todos nós temos uma história.

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Stevie Wonder começa a cantar "1 Just Call To Say 1 Love You". Começam todos a rir-se e a música é abruptamente interrompida."Mas que raio...?" Sam está claramente a tirar o CD. "Deve ser um dos da tie", diz ele, tentando não perder a compostura.Ponho uma mão à frente da boca para tentar abafar uma risada nervosa do Chris de Burgh aparece a seguir."Chiça! Oh, meu amigo. Que aconteceu ao teu gosto musical?" O Maguire eça a torcer-se de riso. "A seguir vais pôr a tocar a Celine do caraças Dion!" "A Katie põe-me louco", balbucia Sam.Nesse momento consigo ouvir a Bells a rir-se na casa de banho e, a seguir, o ulho do autoclismo. Oh, meu Deus! Volto-me e encosto-me à porta. O meu tômago parece andar numa montanha-russa, como se estivéssemos prestes a 'girar-nos de pernas para o ar a um milhar de metros do chão. Bells! Como pude eu distrair-me e esquecer-me de lhe lembrar que não descarregasse o autoclismo? O Sam vai matar-me. Vai matar-nos a ambas. Ela sai da casa de banho."Lakemore? Que barulho foi aquele? Tens alguém aqui em casa?"ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSSinto o meu coração bater com mais força. Puxo a Bells para dentro e encostamo-nos à porta da casa de banho."Tou apertada, não tem graça, Katie.""Estamos metidas em sérios trabalhos", sussurro."Sérios trabalhos. Não tem graça, Katie.""Não. Não tem graça.""Lakemore, quem estás tu a esconder? Alguém acabou de descarregar o autoclismo", diz incrédulo um dos rapazes.Dou comigo a rir-me e a Bells imita-me. Esta situação é tão ridícula. O Sam tem de desmascarar isto. Dizer-lhes que estamos aqui."Não está cá ninguém, rapazes. Podemos continuara jogar?", insiste ele. "Deixa-te disso!" Oiço uma cadeira a afastar-se e o bater dos saltos no soalho.Faço uma careta. Sim, deixa-te disso! "Somos assim tão embaraçastes?", pergunto em voz alta."Deixa-te disso!", diz Bells, batendo os pés."Maguire, devem ser os vizinhos. Consegue-se ouvir tudo, e quero dizer mesmo tudo. Senta-te e acaba o jogo."Os vizinhos? Oh, por amor de Deus, Sam. A Bells começa a impacientar-se e quer sair do quarto, mas eu agarro-a firmemente pelo braço. Quero ver seo Sam irá, eventualmente, acabar por confessar que nós estamos aqui. O Maguire sai da sala e olha à sua volta. "Onde é a casa de banho?" "Mesmo à tua frente."Oiço a porta da sala abrir-se."Maguire, anda lá e senta-te. Vá lá, quem mais poderia aqui estar? Já te disse, são os vizinhos.""Está bem", condescende ele. E a seguir: "Que raio foi aquilo? Está alguém aqui em casa!"A Bells conseguiu escapar-se ao meu apertão e tenta abrir a porta da casa de banho."Muito apertado, não tem graça, Katie", diz ela com o volume da sua voz no máximo."Lakemore, está alguém na tua casa."Uma outra porta se escancara abruptamente e a Bells desaparece do quarto.cio-a a correr diante da sala de estar, agitando os braços no ar. Isto deve ser teressante...

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"Mas quem é aquela, porra?", grita um deles. "A propósito, full house", rescenta em voz alta.A Bells desce as escadas a correr. "Quem?", pergunta Sam, com a voz já rcada pela derrota."Aquela pessoa pequenina?""Com umas botas esquisitas?", acrescenta um outro."Sam, acabou-se o jogo. Confessa tudo.""Eu disse à Katie que hoje era noite de póquer", grita ele, batendo com o ho em cima da mesa. "Ela está aqui", acaba por admitir relutantemente. "Mas aquela não era a Katie", exclama o Maguire. "A não ser que tenha lhido para metade do seu tamanho", acrescenta.Calço os sapatos e desço as escadas a correr passando por eles. "Olá, lpem, tenho de ir", digo, incapaz de me virar e de os encarar. "Obrigadinho, Katie", grita Sam com pronunciado sarcasmo."Lakemore", interpela agora Maguire, pedindo claramente uma explicação. e raio de merda está a acontecer?"14Estamos na manhã seguinte à desastrosa noite de póquer. Encontro a Bells naEstá a ouvir um dos seus CD dos Beatles, usando de novo o chapéu bordado acacão. Devem estar-lhe colados ao corpo. Tenho de a levar às compras para o ento da Emma. Acho que nunca vi a minha irmã vestir uma saia."Como estás, Bells?", pergunto, abrindo o armário onde estão as canecas e gelas de cereais.Aborrecida", diz, de modo inexpressivo. "Sabias que o John Lennon viveu a tia Mimi?""Não." Abano a cabeça, ligando o interruptor da chaleira eléctrica. É uma de chaleira prateada com uma pega em preto e que faz conjunto com a deira."Antes dos Beatles chamavam-se Nurk Twins.""Verdade?", abanei de novo a cabeça. Se a Bells estivesse sentada na cadeirara do concurso Mastermind, o assunto da sua especialidade seriam ostles. "Se quisesses ir para casa dizias-me, não é verdade?", pergunto-lhe, nãoSem sentir alguma vergonha porque, se ela dissesse que se queria ir embora, euiria sentir-me aliviada. Não consigo explicar, mas desde que a Bells chegou,tenho tido este sentimento perturbador pendendo sobre mim como umanuvem de mau agoiro. Sinto que qualquer coisa de terrivelmente errado estáprestes a acontecer de novo, mais ainda que na noite passada. Pergunto-me se'a mãe se sentia assim a maior parte do tempo em que nos educava, a mim e àALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS3ells. Outra razão pela qual me sinto desconfortável é o facto de eu e o Sam nal termos falado um com o outro desde que a Bells chegou. Mais parecemos iavios cruzando-se na noite."Se queres ir para casa, se te sentes deslocada...", tento mais uma vez. --ontudo, ela está connosco há menos de uma semana, por isso talvez eu esteja 1 ser um pouco prematura. Porque sou tão má irmã? Não deveria querer passar ilgum tempo com ela? No entanto, e acima de tudo, desejo que entre mim e > Sam tudo volte a ser como antes.Ela abana a cabeça sem entusiasmo, cortando alperces e figos secos em cima Ia mesa. "Bells, usa uma tábua própria para cortar", digo-lhe. "Estás a deixar narcas na mesa." Dou-lhe uma tábua pequena. O Sam comprou um conjunto le cinco tábuas de tamanhos diferentes. "E lembra-te de pedir desculpa ao Sam guando descer.""Porquê?", pergunta zangada, espetando a faca na tábua.

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"Tem cuidado, por favor. Tu sabes porquê", disse-lhe de novo. "Deves )edir desculpa por teres feito disparates com a música dele. Não devias andar )or aí a trocar Chris de Burgh por Anastacia. Bells, por favor. É muito impor-ante. Não podes pedir desculpa, pelo menos por mim?"Sam entra na cozinha e vai direito à máquina do café. O seu cabelo ficou !scuro e húmido depois de o duche. "Faço-te um", digo. "Senta-te." Olho fixanente para a Bells, esperando ouvi-la pedir desculpa, mas ela não diz nada."Está tudo bem", diz ele com firmeza. O mau humor ainda não o abanlonou e eu já não sei o que dizer. Ajudaria se a Bells pedisse desculpa."Olá, Sam", diz, olhando para ele."Olá", diz ele, olhando-a de lado e de relance.Fez-se um longo e embaraçante silêncio. "Não havia qualquer coisa que querias Fizer, Bells?" Olhei para ela e, depois, para o Sam. Ela continua sem dizer nada. "Não piei-ias dizer qualquer coisa ao Sam?", tentei induzi-la com firmeza."Desculpa, Sam.""Não há problema", disse ele. "Não voltes a fazer o mesmo, está bem?" Foi suficientemente fácil, pensei com alívio.

"Foi a pior noite da minha vida!", gritou-me ele a noite passada, depois de ^s rapazes terem partido. A Bells não tinha ido longe. Encontrei-a à porta dostaurante italiano do nosso bairro com um dos empregados de mesa. Vestia avental às riscas azuis e brancas e fumava um cigarro durante a sua pausa. entámo-nos com ele cá fora, tomando um chocolate quente com pasta de teia derretida por cima. Quis dar tempo suficiente ao Sam para se livrar dos pazes antes de voltarmos. "Eu disse-te que não era boa ideia", continuou ele, tendo com as mãos uma na outra, "mas que foste tu fazer, hem? Tinhas de ragar tudo estando lá.""Sam, não foi assim tão mau. Desculpa lá, mas tem piada quando pensamos" Lançou-me outro olhar de aviso. Eu queimava os miolos tentando pensarqualquer coisa que pudesse tornar mais fácil a situação. Não é sempre uma boacontar a alguémuma história ainda pior para tome consciência de se ter saído menos mal? Que a sua provação não é, facto, assim tão má? Grande ideia, disse para mim mesma. "Uma vez, eus pais deram um jantar para uns clientes que vieram da América para ver as turas da minha mãe", comecei, peremptoriamente. "Tratava-se realmente de ande acontecimento. Quero dizer, por amor de Deus, a mãe até dobrou osapos em forma de lírios." Ri-me alto, mas o Sam limitou-se a olhar-me ente. "De qualquer modo, era um jantar de negócios verdadeiramente impor-" O Sam parecia aborrecido e eu voltei a calar-me. Era como se tivesse um o a dizer "E então?", estampado na testa. Saltei rapidamente para a parte mais ante. "De qualquer modo, sentámo-nos e só então descobrimos que a Bells trocado os guardanapos em forma de lírios por toalhas de bidé." Ri-me alto, o Sam olhou para mim com desdém.so é revoltante, Katie. Nojento." Deu uma curta gargalhada zombeteira. irei sobreviver à noite passada. Os rapazes continuarão a falar desta ia durante o resto do ano. A City em peso saberá o que se passou." Não exageres", disse eu.Katie, tudo o que tinhas a fazer era manter o sossego. Prometeste que oParecia muito magoado. "A pior noite da minha vida", repetiu.Se esta foi a pior noite da tua vida, tens levado uma maravilhosa exis-, não pude deixar de lhe dizer.°Nessa altura, afastou a sua face da minha. "As noites de póquer são ", resmungou amuado. "E ela trocou os meus CD. Quer dizer, a merda Chris de Burgh!"

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ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"Sam, não praguejes! A Bells pode ouvir-te.""Deixa-me ver se entendo. Eu não posso praguejar em frente dela, mas ela pode trocar deliberadamente os CD para me fazer parecer um parvo? Boa Katie, isso faz sentido. Porque a deixaste fazer isso?""Ela não fez isso por mal, foi apenas uma brincadeira. Estava aborrecida, é tudo.""Penso que ela sabia exactamente o que estava a fazer. Apenas pretende ser inocente."Até certo ponto o Sam tem razão. Mas... "Talvez se te esforçasses um pouco mais com ela", sugeri, começando a faltar-me a paciência. "Ela acha que não gostas dela. É por isso que não gosta de ti — ainda", acrescentei, espreitando-lhe o rosto. Não está habituado a ouvir dizer que é impopular. "Virá a gostar de ti, apenas leva algum tempo, mais nada."

Esta manhã observo-o a fazer o café na brilhante máquina prateada. Estou a imaginar coisas ou o Sam mal me tocou desde a chegada da Bells? Vivemos nove meses em que mal conseguíamos tirar as mãos de cima um do outro, para chegarmos praticamente a um voto de castidade.Observo Bells a comer o seu muesli caseiro e a beber o seu chá de salva. Começa a tossir. Acho que está a chocar uma constipação."Que vais fazer hoje?", pergunta-lhe Sam desajeitadamente, ainda de cabeça baixa."Não sei", responde."Ficas aqui enquanto eu vou à minha aula de ioga", digo-lhe. Não suporto a ideia de levar Bells comigo. Há uma mulher naquele grupo que cheira sempre horrivelmente mal do corpo e a Bells não se inibiria de lhe dizer que ela cheira mal. " E, depois, vamos para a minha loja.""Oh, boa", diz Sam, mas sei que nem está a ouvir. O seu pensamento está ainda concentrado na desastrosa noite de póquer da noite anterior. Diria que a única coisa que pretende saber é a hora e o dia exactos em que o comboio de Bells parte e se ela precisa de boleia. "Bem, está um dia lindo lá fora", continua penosamente. Olho para a rua e está a chuviscar. Na verdade, a previsão meteorológica anunciou trovoada para o fim da tarde. Sam está a esforçar-se, mas apercebo-me de que não é capaz de olhar directamente para Bells. Parece tero de um contacto visual. Se olhar para a minha irmã ela conseguirá vê-lodentro e ler todos os seus pensamentos.O telefone toca e Sam aproveita-o como uma óptima oportunidade para se snbora. "Vejo-te à noite." Apanha as chaves do carro da bancada da cozinha tes que eu tivesse tempo de me despedir, está na rua.15epois de a minha aula de ioga, Bells e eu apanhámos o autocarro para a A única coisa boa no facto da mãe raramente me levar, a mim e à Bells, mpras, foi o ter aprendido a coser.Onde arranjaste essas coisas?", perguntou-me desconfiada, porque já tinha apanhada a roubar nas lojas. Estava de férias da escola e nessa manhã -me no sofá a talhar uma cortina vermelha que descobri no fundo de bolorenta e velha gaveta. Tinha feito um molde com papel vegetal e bri a velha máquina de costura da mãe, uma Singer preta com um pedal tal.£stou a fazer uma saia", anunciei orgulhosa.a espreitou-a, fez a sua famosa fungadela depreciativa e, em seguida, as costas balbuciando: "Bem, fazes muito bem, querida. É sempre bom os um hobby. Hei-de arranjar-te mais material." Penso que na verdade encantada com o facto de eu ter

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descoberto algo para fazer durante as qualquer coisa que me mantivesse sossegada e longe das lojas, o que a dizer que ela podia continuar a trabalhar tranquilamente no seu estúdio. Trabalhos de agulha e têxteis eram as únicas coisas que me faziam receber dos louvores nos relatórios escolares. Nenhuma das outras raparigas da a turma se interessava e algumas delas provocavam de tal modo a profesde trabalhos manuais, a senhora Hook, que ela chegava a tremer de medo do entrava dentro da sala de aula. Tinha uma gaguez nervosa e nuncaALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSconseguia dizer adequadamente a palavra "carreto". Eu era a sua aluna de oiro. Era a única a quem se pedia que fosse mostrar os trabalhos à directora. A senhora Davies sentava-se no seu gabinete com um cigarro pendurado na boca e um colar, que mais se assemelhava a um bola dourada presa por uma corrente, suspenso por cima da gola alta preta. Normalmente, baloiçava um livro na mão amarelada pela nicotina e afagava o seu cão, Bertie, com a outra. Dizia-me infalivelmente na sua voz cavernosa que o meu vestido quimono ou qualquer outro trabalho que eu estivesse a mostrar era realmente um êxito e que, como recompensa, tinha permissão para levar o Bertie a passear.À medida que o meu entusiasmo pela moda foi crescendo comecei a costurar todas as minhas roupas. Comecei a explorar todos os tipos de mate-riais e retrosarias. Não tinha capacidade financeira para as peles e as sedas que se vendiam nas lojas de luxo, mas gostava de examinar todos os tipos de tecidos e imaginar o que poderia fazer deles. A Emma costumava ir comigo fingindo-se interessada, mas muito rapidamente o seu olhar ganhava uma expressão vazia, enquanto eu examinava minuciosamente e cheia de entusiasmo primo-rosas peças de seda. O dinheiro das minhas semanadas levou-me às lojas locais, onde procurava cabedais para fazer casacos e saias com rachas. Tornei-me especialista na arte da negociação de preços para a compra de missangas, fechos de correr, plumas e artigos de fábrica.As coisas mais baratas e mais rápidas de fazer eram os lenços e os cintos decorados com missangas pretas e douradas, que vendia às colegas da escola. Transformei o meu quarto numa pequena fábrica, com a máquina de costura sempre a um canto, junto à janela, e todo o dinheiro que ganhava ia para dentro de uma velha lata de Nescafé que eu escondia debaixo da cama. Tudo o que queria fazer era ter a minha própria loja de roupa. Sonhava que saía de casa e começava o meu próprio negócio. Sentia-me aprisionada pela minha família e ansiava por assumir o controlo da minha própria vida. Não é isso que nos faz feliz, ter o controlo de tudo?Não queria depender financeiramente dos meus pais durante mais tempo que o estritamente necessário, por isso, saí de casa aos dezoito anos e fui viver com o meu namorado electricista, com quem a mãe imediatamente antipatizou porque ele tinha os braços cheios de tatuagens. Eu ansiava pela minha independência e pelo salto para o mundo selvagem. Deixaria de recear as apre-ações dos outros a respeito da minha família, da Bells, da nossa limitada exisaéncia. Ansiava começar a minha própria vida e fazer dela um sucesso, com ou sem os meus pais.

"Não mexas nas roupas", digo a Bells entregando-lhe um bolo de mirtilo mbrulhado num guardanapo branco. Apareci na charcutaria do Eddie para ranjar o nosso pequeno-almoço. O meu plano, daqui para a frente, é o de me anter fora do caminho de Sam. Acho que se conseguir chegar ao fim destas rias sem mais nenhum percalço ter-nos-emos saído razoavelmente bem. enas uma noite de póquer estragada e o Sam acabará por se restabelecer. ntualmente."Não mexer nas roupas." Volta a tossir.

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"Muito bem." Sento-me por trás da minha comprida secretária de madeira se dispõe diagonalmente a um canto da loja. Está coberta por um tampo idro que fixa as fotografias a preto e branco da nossa última passagem de elos. Tenho mais fotografias a preto e branco emolduradas e dispostas por a loja. "Não mexas na máquina dos Visas. E nada de perguntares aos es se são muito ricos ou que idade têm, OK?""Sim, Katie, está certo." A Bells acena com a cabeça para mim. Continuo: "E nada de café perto das roupas.""Nada de café."`Não faças comentários sobre o que as pessoas trazem vestido ou sobre o pecto. Aquele pobre homem careca era provavelmente muito sensível a respeito. E não digas olá às pessoas três vezes. Uma vez está bem", concedi, basta uma única vez. Torna-se embaraçoso para elas.""Embaraçoso para elas." Começa a balançar o pé, coisa que costuma fazer do está nervosa ou muito entusiasmada.O que é que acabei de dizer?", testo-a para me certificar que estava a ouvir o apenas a repetir o que eu dizia. Ela nem sempre regista as coisas, ou, se apaga-as imediatamente."Não dizer olá, Katie, não atender o telefone. Deixar para ti." Bells começa nar freneticamente."A quem estás a dizer adeus agora?", pergunto com a voz carregada de spero e viro-me. O senhor Vickers está lá fora junto à montra da loja,ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSespreitando através do vidro. Traz um enorme guarda-chuva preto com uma pega em forma de pato."Olá, senhor Vickers", chama Bells. Ele acena cautelosamente.Agarro-lhe o braço tentando impedi-la de abrir a porta. "Bells, eu não o quero aqui a andar pela loja."Ela afasta-se para se libertar de mim. "Gosto do senhor Vickers." "Bells", elevo o tom da minha voz, "por favor não me faças zangar." Ela fica a vê-lo afastar-se."Pobre senhor Vickers. O senhor Vickers é simpático.""Eu sei, mas tenho uma loja para gerir." Vejo através da janela Henrietta e a mãe aproximarem-se e viro-me rapidamente para Bells. "Porque não vais lá para cima e começas a desempacotar os caixotes das encomendas? Davas-me uma grande ajuda", digo-lhe, empurrando-a escadas acima como se fosse uma marioneta. "Lava as mãos primeiro", peço-lhe, conduzindo-a ao lavatório. 'As caixas estão aqui. Isto são t-shirts pretas." Aponto para quatro caixas castanhas empilhadas a um canto. "As tesouras estão na gaveta. Se pudesses desempacotá-las todas antes de vires para baixo... obrigada." Nem sequer espero por uma resposta.A verdade nua e crua é que não quero a Bells a dizer olá àquela gente toda. Não quero a Bells a desencorajar os meus clientes.

Os clientes entram e saem. Esta manhã fiz duas boas vendas. A Henrietta comprou dois vestidos e três tops enquanto a mãe se sentava na chaise langue bebendo chávenas de café misturado com Bailey's de uma pequena garrafa que tirou da mala.A Bells tem estado extraordinariamente sossegada, penso, feliz, para mim mesma. Talvez lhe ofereça um almoço rápido. Encontro-a sentada no chão, as t-shirts amontoadas à sua volta numa confusão.

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"Bells, que fizeste tu?", grito, ajoelhando-me ao lado dela e pegando numa das camisas pretas com um pequeno coração vermelho estampado na linha do peito. Pensei que podia deixá-la à vontade com t-shirts de algodão. Quero dizer, até onde podes errar?"Desempacotando camisas", disse, com um surpreendente pouco interesse e tossindo em seguida. Não é óbvio que estou muito zangada? Abro a boca para falar, mas não sai qualquer som. Finalmente, "Quantas estragaste?" Murmuronum desespero, apanhando as etiquetas que ela cortou e que mais parecem rifas espalhadas à sorte pelo chão. "As pessoas compram estas camisas POR CAUSA das etiquetas. São etiquetas de um estilista francês." Não posso olhar para ela ou ainda lhe bato."No que estavas tu a pensar, cortando-as todas?"A Bells levanta-se."Não toques em mais nada, estás-me a ouvir? Deixa tudo quieto." "Ajudar Katie. Disseste desempacotar tudo?""Não! Deixa tudo quieto. Se tocares em mais alguma coisa ficarei muito gada. Porque as cortaste? Eu disse-te para cortares as etiquetas? Estúpida, iga ESTÚPIDA!", gritei-lhe, quase em lágrimas. Não aguento mais. Pai, e, por favor, voltem. Não consigo. Têm razão, sou uma péssima irmã."Estúpida não, Katie. Estúpida NÃO." A Bells precipita-se para fora do ém.Fico em pé a olhar para o amontoado de t-shirts, demasiado paralisada para qualquer coisa de útil. Tudo quanto consigo fazer é olhar, esperando que iquetas voltem aos lugares a que pertencem com um golpe de magia. Ouço rta fechar-se lá em baixo, por isso tento compor-me para receber o mo cliente."Olá", digo enquanto me dirijo para um homem alto e magro. "Olá, procuro um presente, pode ajudar-me?""Onde está a Bells?", disse eu em voz alta."Desculpe?", disse, parecendo confuso. "Quem é a Bells?"A minha irmã. Viu alguém a sair da loja a correr?" Ouço o tom da minha crescer de fúria e de medo.Não, ninguém." Abanou a cabeça.'Pode voltar mais tarde?", comecei a empurrá-lo para a porta."Eia!", protestou resistindo. "Vim aqui de propósito para comprar um nte de aniversário à minha prima. Faz anos amanhã", começou ele a ficar e, depois, olhou para mim. "Espere aí, não nos conhecemos já? No sbury's?""Oh, conhecemos? É verdade", disse, agitadamente. "Olhe, a minha irmã..." "Aquela que estava sempre a perguntar-me a idade? Lembro-me dela.""Sim, está fugida e eu preciso de a procurar." Fecho a porta atrás de mim eALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSsó depois compreendo que necessito das chaves para a trancar. "Valha-me Deus, valha-me Deus", digo, voltando a entrar e apanhando a minha mala de mão de detrás do balcão. Mergulho dentro dela como se fosse um saco de rifas, espe_ rando apanhar as chaves certas. Pelo contrário, sinto o inalador da Bells que atiro para o chão da loja. O meu pó-de-arroz é arremessado em seguida com a frustração. Por que razão tiro sempre tudo da mala excepto as chaves da minha loja? Porque não arranjo uma mais prática com bolsos por dentro? A minha mão treme descontroladamente."Olhe, deixe-me ajudar a procurá-la", diz o homem. "Onde pensa que ela possa estar?"Deixo escapar um gemido de frustração. "Não sei, pode estar em qualquer lado. Se eu soubesse... Oh, onde é que elas estão?"

"Não perca a calma", diz ele.

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Se o meu olhar fosse veneno tê-lo-ia matado ali mesmo. Finalmente encontro as chaves cerce. Onde é que a Eve se mete quando preciso dela? Porque teve de adoecer logo hoje, entre todos os dias do ano? Escrevinho num pedaço de papel "Volto dentro de meia hora" e colo-o negligentemente à porta."OK, eis o que vamos fazer", diz o homem num tom impositivo. "Você segue pelo parque e eu seguirei pela estrada principal; encaminhar-nos-emos ambos para a entrada da estação do metro e verificaremos as lojas. Se a encontrar, assobie assim." Coloca a reão na boca e solta um estridente assobio. "Na sala de aula funciona", acrescenta.Respiro fundo. "Não sou capaz de assobiar assim, sempre quis fazê-lo."

"Berre, use um apito verdadeiro, então. Sou professor", explica rapidamente. "Guardo sempre um comigo para as emergências." Vasculha a sua mochila e tira um apito vern-eelho de plástico atado a um cordel que ele enfia no meu pescoço. "Ela fugiu... o quê... há cinco, dez minutos? Vamos encontrá-la, não pode estar muito longe."Como se chama?", pergunto quando começo a correr. "Mark"Obrigada, Mark", grito-lhe no preciso momento em que nos separamos em diferentes direcções.O dia está encoberto e húmido. O parque está praticamente deserto se parado com a animação normal dos dias de Verão. Basta uma nesga de sol as pessoas saírem com os seus biquínis, carregando cestos de piquenique atas. "Bells", grito, continuando a correr. "Bells, onde estás?" Passo por homem com auscultadores nas orelhas. Não deve saber onde ela está, não rdade? Talvez saiba. É melhor perguntar-lhe. Dou-lhe umas pancadinhas uasivas no ombro. Tira os auscultadores das orelhas."Desculpe, perdi a minha irmã. É baixa, menos de um metro e meio, combelo muito curto também." Fixo o seu olhar inexpressivo, incitando umde reconhecimento. "E parece baloiçar-se em vez de andar", insisto.não há qualquer reacção."Nã, não a vi", balbucia finalmente voltando a colocar o aparelho elhas. Vejo um casal à minha frente. A rapariga tem a mão enfiada no traseiro dos jeans do namorado. "Hum, olá... hei, vocês." Corro atrás . Viram-se surpreendidos. "Desculpem, perdi a minha irmã. É baixinha, -na?", pergunto com olhos suplicantes. Por favor, digam que a virames."Ela é baixa? Isso não é uma grande pista." O rapaz sorri maliciosamente. "O que é que ela traz vestido?", pergunta a rapariga.O que é que ela traz vestido? Boa pergunta. "Tem um chapéu chinês do e veste um macacão", descrevo ansiosamente. Ao não obter resposta, cento: " E uma espécie de camisola de futebol, com crachás pregados." "Está a gozar comigo." O rapaz sorri-me. "É alguma brincadeira? Estamosconcurso de apanhados, certo? Graham Norton?" Começa a rodar a ça à procura das câmaras escondidas.Olho para ele com frieza e colo as minhas esperanças na rapariga. Mastigapastilha elástica pensativamente e em seguida encolhe os ombros.Acabámos de chegar aqui. Boa sorte para a encontrar, então." Quando os vejoPastarem-se, a mão dela voltando para o bolso dele, percebo que este é comottrn daqueles momentos em que um acidente de viação ocorre. Sabem, quandotestemunhamos um acidente e nos sentimos cheios de sorte por não ter acon-tecido connosco. Continuamos a conduzir. Agora sinto-me como a raparigaque teve o acidente, no seu velho carro amassado, e a quem ninguém ofereceajuda. Não há equipa de salvamento, não há telefone, ninguém está interes-ALICE PETERSON

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OLHAR NOS OLHOSsado. Apalpo dentro da minha mala à procura do telemóvel, mas apercebo-me então que não faço a mais pequena ideia de a quem telefonar. Sam? Marco os números e espero que ele atenda."Estou numa reunião. Telefono mais tarde, prometo. Lembra-te, esta noite vou sair", termina o Sam prestativamente."Ela fugiu", digo, com os olhos fixados no horizonte. "O que vou fazer?""Katie, desculpa, mas que posso eu fazer aqui preso atrás da minha estúpida secretária? Queres que deixe o escritório e te vá ajudar a procurá-la?" Solta um risinho abafado como se a ideia fosse totalmente absurda."Não, Sam. Isso faria de ti uma pessoa decente." Desligo abruptamente. Nem sei porque lhe telefonei. Se a Bells voltar dir-lhe-ei que não tem importância. O que são meia-dúzia de etiquetas? Posso cozê-las de novo, ninguém notará a diferença. Mas agora, volta, Bells. Por favor, volta. Não tenho mais ninguém a quem telefonar. É como se vivêssemos no nosso pequeno mundo de novo, afastados de tudo o que é normal."Desculpe... ela tem vinte e dois anos, metro e meio de altura...", descrevo-a à pessoa que em seguida encontro. Já nem consigo aperceber-me da aparência das outras pessoas. Quero apenas encontrar a Bells."Não, não a vi", diz ele.PORQUE NÃO? Apetece-me gritar-lhe. O QUE SE PASSA CONTIGO? "Tenho a certeza que uma rapariga de vinte e dois anos sabe tomar conta de si", resmunga enquanto se afasta.Começo a marcar o número do telemóvel do meu pai, embora saiba que isso é uma loucura. Que pode ele fazer não estando sequer no país? Oiço o toque de chamada, mas ninguém atende. Prometeu-me ter sempre o telemóvel ligado para o caso de haver uma emergência. Ponho a mão à frente da boca e deixo escapar um enorme e desesperado lamento, não sei o que fazer, a quem perguntar, onde procurar..."Perdi a minha irmã. Viu a minha irmãzinha?", pergunto a uma senhora sentada num banco a ler o jornal. O familiar som do comboio range debaixo do chão. E se a Bells estiver dentro dele?"Como é ela, minha querida?" É americana.Estou prestes a repetir tudo o que disse anteriormente, mas dou comigo a chorar. É horrível, mas não consigo parar. 0 meu queixo treme descontrolada-ente. Ponho a cabeça entre as mãos. O que foi que eu fiz? Bells, desculpa, por vor perdoa-me por ter gritado contigo. Tanto quanto sei, Bells poderia ter o atropelada e, por minha culpa, estar morta neste preciso momento. vanto os olhos e a senhora desconhecida sorri com simpatia e entrega-me umnço que tirou da mala."Como é ela?", pergunta de novo com doçura. "Vá lá, iremos encontrá-la.o pode estar muito longe."Sorrio-lhe com gratidão. O seu cabelo arruivado, da mesma cor que o da e e da Bells, está encarrapitado no topo da cabeça com um sortido de chos e usa óculos de sol, o que é estranho, porque o dia está muito ublado. "Se viu alguém que não se confunde com a multidão, bem", doufungadela, "é ela."Obriga-me a sentar por um momento, para que me acalme. Olho para oue infantil onde algumas mães empurram os filhos nos baloiços, e um parrapazes dá chutos numa bola. Debaixo de uma árvore, dois miúdos exer-as suas habilidades de pugilistas. Um deles segura um escudo almofa-, enquanto o outro pratica os seus murros. Conto-lhe da nossa discussão.

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o-lhe da Bells. É surpreendentemente fácil falar da nossa família a umho. "Desculpe estar a chorar", acrescento."Não peça desculpa. Pedir desculpa por chorar é uma atitude tão britânica. a atravessar um período traumático, tem o direito de se sentir emocional-te susceptível." Olho para ela e sorrio. "Que assobio é este?" A mulher olhavolta.Vejo o Mark a correr na nossa direcção, puxando Bells atrás de si. "Graças us", levanto-me num salto e começo a bater palmas."Não agradeça a Deus", observa a americana, agora com os seus os escuros. na ponta do nariz. "Acho que devia agradecer àquele jovem pático"Assim que se aproximam apercebo-me que algo de muito grave está a aconr. "Ela precisa do inalador", grita o Mark.Tento encontrá-lo dentro da mala e só então me lembro onde é que ele u exactamente.Bells luta por oxigénio. "O inalador dela", grita Mark novamente. "Ondetá?"ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Ficou na loja. OK, senta-te", digo a Bells, conduzindo-a até ao banco. A senhora americana levanta-se para lhe dar espaço. Sinto o aperto no seu peito enquanto se esforça por respirar. "Põe as mãos nos joelhos... Não a deixes leitar-se, Mark. Ela tem de se sentar e descontrair o mais possível. O inalador está na loja. Volto num minuto." Ele senta-se ao lado dela enquanto eu corro ) mais que posso pelo parque. Abro a porta enfiando a chave na fechadura corri is mãos a tremer e corro para apanhar o inalador. Fecho a porta de rompante embrando-me de a trancar no último segundo.A Bells usa o inalador imediatamente. Afago-lhe as costas. Observamos, .guardando.

"Como é que ela está?", pergunta a senhora americana."Se o inalador não resultar teremos de a levar ao médico ou chamar uma ambuincia", digo. Por favor, deixem-me acordar. Por favor, que isto seja apenas um pesa-elo. Respiro fundo, esperando para ver se o inalador ajuda Bells."Estou bern", diz ela finalmente.Percebo que a sua respiração se torna cada vez mais regular enquanto antinuo a massajar-lhe as costas. "Estás mesmo bem?", pergunto com nervosmo. "Oh, meu Deus, Bells, nunca mais... mas nunca mais MESMO... me Ates a assustar assim."

Mark pede-me para não gritar, diz que ela está sã e salva e isso é tudo o que teressa."Podia ter morrido." Viro-me para Bells que se senta, parecendo cansada e passada, com os olhos rasos de água. "Oh, Bells." Estico os braços e puxo-a .ra perto de mim. "Desculpa. Lamento tanto ter gritado contigo. Não voltará acontecer." Sinto os seus braços agarrarem-se às minhas costas e ainda a raço com mais força — tal como a mãe costumava abraçar-me quando eu era ança. Tão apertado que eu pensava que ia deixar de respirar. "O Mark tem :ão. Tu estás bem, é tudo o que interessa."Cubro-a com o edredão."Cansada", diz Bells, virando-se para o outro lado.Descansa um pouco. Desces para jantar daqui a pouco. Vou preparar-te a tualição favorita. Que queres comer? Lembra-te que sou eu a cozinhar", acrescentei -indo.fTorque me odeias?", pergunta-me.O quê?" Deveria fingir que não tinha ouvido nada? Corro os cortinados«Tu u "Tu odeias-me", declara ela directamente.«porque dizes isso? Não é verdade, eu não te odeio." Apago a luz principal

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o a porta atrás de mim. Encosto-me a ela do lado de fora respirandoSinto-me sem fôlego com a pergunta que me fez. A Bells não é parva,beu como aquilo soava a falso. Não posso continuar a falar com ela comoesse dez anos de idade. Dar-lhe palmadinhas na cabeça e esperar que não:faça mais perguntas difíceis.essa altura a Bells gritou. "Muito escuro", choramingou.-Voltei para trás num ímpeto e acendi a luz. Uma vez o pai explicou-me apela qual a Bells odiava tanto o escuro. Depois de a operação desenvolveu fobia acerca de anestésicos e começou a chorar antes de cada injecção. sabia o que era a anestesia, mas sabia exactamente o que significava. Escu-O pai fez bem em falar comigo e explicar-me a situação. Foi obviamenteático.Ajoelhei-me a seu lado e imitei a voz dele. "Desculpa, Bells. Esqueci-me.estúpido da minha parte.""Pois foi, Katie. Tu não me escreves", disse ela. "A mãe escreve-me. O paieve-me. Tu não."Estou quase a dizer qualquer coisa, tal como já ninguém escreve cartas,pto as pessoas da geração do pai e da mãe, mas nesse momento preendo como tal pareceria patético. Ela tem razão."Não me visitas.""Pois não", disse eu."Porquê?""Não sei", respondi simplesmente. "Não sei, Bells." Tento explicar, masem sequer sei por onde começar. "Não te odeio, mas odiei-te quando te vi no parque. Estava tão assustada. Se te tivesse acontecido alguma coisa, nunca mais perdoaria a mim própria. Odiei ver-te tão vulnerável. Eu preocupo-me.Desculpa-me por ter gritado, e...""No País de Gales corto etiquetas", murmurou."Oh, Deus, as etiquetas já não me interessam. Não tem importância. E vouALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOScomeçar a escrever-te." Ao dizer isto tomei consciência de não poder transformá-lo em mais uma promessa vazia. A Bells merece mais que isso. "O Mark é um homem simpático. Homem simpático."Sorrio. "É muito simpático, desculpa Bells." Beijo-lhe a testa sem pensar e toco-lhe suavemente na bochecha. "Não te odeio. Nunca, mas nunca, poderia odiar-te." Queria dizer-lhe que a amo, mas não me sinto merecedora disso. Em vez disso, levanto-me para fechar os estores e apagar a luz do tecto. Desta vez, o pequeno candeeiro de vitral no canto do quarto está aceso."Nada à minha volta?", perguntou."Nada à tua volta", digo."Juras?""Juro.""Obrigada, Mark, muito obrigada", digo-lhe enquanto preparo, na cozinha, uma bebida quente para ambos. Em resposta convidei-o para ir a casa do Sam porque pensei ser o mínimo que podia fazer. Queria também perguntar-lhe como tinha encontrado a Bells e falar com ele sem que ela estivesse a ouvir. Pensei que ele não iria aceitar, pois tinha a sua vida, mas, para minha surpresa, concordou."Ela está bem?", perguntou, obviamente preocupado, afastando-se da escultura garrafa-de-leite.

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"Sim, creio que sim. Pu-la a tomar banho e agora está a deitada."O Mark disse-me que encontrou a Bells à espera, numa paragem de auto-carro. Estava visivelmente agitada, mas ninguém na paragem fez nada.Ao ouvi-lo recordar o drama tomei consciência de que a Bells estava a viver um período miserável comigo e senti-me um fracasso. Ela queria ver as luzes brilhantes de Londres e a coisa mais excitante que fizemos juntas foi ir ao Sainsbury's. Agora sei onde encontrei o Mark."Claro, é isso", disse-lhe. "Tens trinta e quatro.""Sim, mas podes esquecer essa parte." Riu-se pela primeira vez hoje. Suspirei profundamente. "Se não estivesses lá, tudo poderia ter acontecido." "Não foi nada, sinceramente.""Obrigada, Mark. Muito obrigada por tudo o que fizeste hoje. Não me conheces, não nos conheces, não tinhas de nos ajudar."Envergonhado, olhou para os sapatos. "Não fiz nada de especial. Onde vive Bells? Quero dizer, nunca a tinha visto por aqui antes desse dia no Sainsbu-'s, e creio que me lembraria se já a tivesse visto.""Vive numa comunidade no País de Gales. Os meus pais estão de férias, r isso ela veio passar duas semanas comigo. Na realidade, preciso de lhes telenar", disse-lhe. "Volto dentro de um minuto." Saí levando o telemóvel e rquei o número do pai. Ainda sem resposta. Marquei o número de casa. pondeu-me o atendedor automático. Que estou a fazer? Eles estão em ança. Pára com isto, Katie.Volto para a cozinha. "Esta é a tua casa?", pergunta o Mark, olhando de lance a toda a volta da cozinha nua. "Gosto desta... hum... escultura", minou, de modo pouco convincente."É do Sam.""Oh, certo", acusou o esclarecimento, passando a mão pelo cabelo. "É o teuorado?""Sim.""O que aconteceu à Bells? Quero dizer, o que...""Que a tornou diferente?", sugeri, sentando-me à frente dele."Sim, exactamente."Contei-lhe que ela nasceu com uma fenda palatina e um lábio leporino. s meus pais iam visitá-la ao hospital após cada operação. A Bells teve de ser arrada à cama para não arranhar as costuras.""Que horror.""Sofreu também uma lesão cerebral ao nascer. Uma grande parte do cérebro funciona bem. Se tocares num assunto acerca do qual ela saiba muito, és um tipo porreiro. Mas nunca teve condições para viver uma vida completa-mente independente, como a maioria das pessoas.""Ela tem consciência de ser diferente?""Sim e não. Penso que se sente confortável consigo mesma, é a sua própria personagem, mas gostaria de ser igual a todas as outras jovens. Odeia a forma como é olhada. Bem, é o que diz o pai", acrescentei. "Sabes, eu, na realidade, nunca vi esse lado da Bells, porque saí de casa quando tinha dezoito anos e ela apenas onze.""Deve ter sido duro para os teus pais."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Sim, foi", digo, perguntando-me se alguma vez lhes disse como foram, e inda são, bons com a Bells. Não, sei que nunca disse. Passei demasiado tempo mtindo-me posta de lado e ressentida com toda a energia que lhe dedicavam. Para ser honesta, nunca antes

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tinha tido a Bells comigo, em Londres, e estou descobrir que isso é pateticamente duro. Quero dizer, olha o que aconteceuoje.Enquanto lhe falo dos problemas que ela tem tido com o Sam, fico arpreendida pela facilidade com que falo com o Mark. As palavras flúem sem ificuldade, quase demasiado facilmente. De repente olho para ele e rezo para ue não se sinta demasiado aborrecido."Tomamos uma bebida?", pergunto, esmagada pelos acontecimentos do ia e desesperadamente necessitada de alívio. "Eu podia preparar uma."Depois de um par de bebidas, para amenizar a conversa decidi falar-lhe da oite de póquer arruinada e dos CD trocados. Ele tenta claramente não se rir."Não há problema, ri-te à vontade. Até que tem piada." Contei-lhe o modo orno a Bells perguntou ao marido de uma cliente porque razão não tinha abelo, e isso despoletou outras memórias. "Quando tinha cerca de quinze nos tivemos um canalizador com uma perna de pau e um olho de vidro – o r. Curly."Sr. Curly?", sorriu. "Parece uma personagem de Mr. Man.Sorri. "Um dia, o Sr. Curly estava em cima de uma escada na nossa cozinha uando um parafuso da sua perna artificial se soltou e aquilo caiu tudo. Porque não tem uma perna verdadeira?' Perguntou imediatamente a Bells, e esatou às gargalhadas enquanto a mãe e eu tentávamos desesperadamente ncontrar o parafuso no chão. Senti imensa pena daquele homem, mas a Bells .ão estava a ser maldosa, simplesmente ela é assim. Diz o que pensa. Se não osta de alguém, diz isso mesmo. Pode dizer às pessoas que são aborrecidas ou abugentas." Decidi não dizer ao Mark que a Bells não gosta, definitivamente, .o Sam."Que idade tem ela?""Vinte e dois. A questão é que não podes atribuir uma idade mental à Bells. :ia é muito boa em algumas coisas, como cozinhar e jardinar, herdou isso da aãe. Mas se lhe pedires para visualizar qualquer coisa em abstracto, isso não ignifica nada para ela. Quando o meu tio Roger morreu, a Bells comprouflores e escreveu no cartão: `Querido tio Roger, lamento ouvir dizer que está ;tnorto'."Noto que o Mark tem uma covinha como eu. Só as pessoas especiais têm ,covinhas, costumava dizer-me o pai quando me apertava as bochechas. Odiava so. Doía de verdade, embora nunca acreditassem em mim quando dizia que o me magoava."Está a fazer-se tarde", fez notar o Mark. "Devia estar...""Não, toma outra bebida. Fica e come pizza comigo e com a Bells. Vou ir uma daqui de cima. Não vives longe, pois não?""Na verdade, vivo perto da tua loja, na Chapel Road.""Não me digas! É onde vive a Emma. É uma velha amiga minha", acrestei quando vi a expressão vazia do Mark. "Moras em que número?" "No um.""Ela mora no vinte e nove.""A minha primeira idade falsa." Sorri."Exactamente. Anda lá, fica." A verdade é que não quero ficar sozinha. "O é que te apetece?", abro o frigorífico."Acho melhor pôr-me a caminho." Afastou a cadeira para trás. "Outra cerveja? E que tal vinho?", continuo."Eia", disse o Mark, caminhando na minha direcção. "Olha, tem sido um de merda, não é de admirar que te sintas assim." Pousou gentilmente uma no meu ombro.Penso na Bells e naquilo que me disse ao princípio da noite. "Porque me 'as? Porque não me escreves?", comecei a chorar e ele agarrou-me.

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"Não creio que alguma vez me tenha desculpado tanto num único dia", quando finalmente me sento à mesa com os olhos secos. "A melhores ", digo, enquanto levanto o meu copo na direcção do dele."A melhores dias", concorda.

"Bells! Pára!" Grito.Os passos da mãe pisam o corredor. "PÁRA-A!", grita-me ela.A Bells ergue-se ao lado da Peggy, a cadela da mãe, agarrando com firmeza par de pequenas, grossas e afiadas tesouras pretas denteadas. Ao ver aALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSminha irmã tudo se altera para câmara lenta. Ela agarra a tesoura muito perto de uma das orelhas da Peggy e sorri quando abre as suas lâminas. Peggy olha inocentemente para ela. Tenho de impedir que a Bells a magoe! Tento mexer-me. A tesoura está completamente aberta, brilham as suas prateadas lâminas dentadas. Os meus pés não se mexem. Não consigo mexer-me. Fico paralisada naquele mesmo lugar. Não conseguirei impedi-la a tempo. É demasiado tarde.Impede-a!", grita a mãe de novo."MEXE-TE!", grito eu. "MEXE-TE!"Acordo encharcada em suor e ofegante. Fui eu quem gritou? Olho à volta do quarto escuro. Foi apenas um pesadelo. Calma. Respira fundo, Katie. Deixa que tudo passe. Está tudo bem. Sento-me e abraço os joelhos debaixo do edredão. A nossa cama está vazia. Sam ainda não voltou. Onde estará ele? Porque nem sequer telefonou? O quarto está escuro e frio. O mínimo que podia ter feito era telefonar para saber se eu tinha encontrado a Bells, para saber se estávamos ambas bem. Porque não o fez? Que horas são? Por onde é que ele anda? Inclino-mo para cima da mesa-de-cabeceira, acendo a luz e apanho o relógio. Passa um pouco da uma hora. "Porque é que ele não telefonou, Charlie?", pergunto à minha chita, que se senta protectoramente junto ao candeeiro. "Tu ter-me-ias telefonado, não é verdade, Charlie, mesmo se estivesses muito ocupada a caçar?"Quando vou para a cama sozinha deixo sempre o telemóvel em cima da mesa-de-cabeceira. Pego agora nele e telefono ao Sam. Atende o voicemail. Quero-o aqui comigo. Sinto a sua falta.Caminho pelo corredor e abro silenciosamente a porta do quarto de Bells. Está completamente enrolada, parecendo absolutamente tranquila.Apago a luz e volto a deitar-me na escuridão. Quando era criança odiava a escuridão, tal como a Bells, mas não era capaz de o admitir à mãe. Tinha medo que estivesse um crocodilo debaixo da minha cama, uma bruxa atrás da porta ou demónios escondidos debaixo da cadeira, junto à janela. Plop, o Mocho Que Tinha Medo do Escuro era um dos meus livros preferidos. O pai costumava lê-lo para mim quando regressava do trabalho. Sentava-se aos pés da minha cama, ainda com o fato vestido. Agora fecho os olhos e tento pensar em qualquer coisa de agradável para sonhar."Nada à minha volta", murmuro para mim própria."Nada à tua volta", oiço a voz da mãe responder.Oiço um rangido e abro rapidamente os olhos outra vez. Permaneço deitada na cama, petrificada. Está alguém dentro de casa. Vou ser estrangulada durante o meu sono! Acalma-te, Katie, digo para comigo. Está tão escuro que os meus olhos procuram em vão uma nesga de luz ou o contorno de algum objecto familiar, algo que me garanta que não irei ficar nesta imensa escuridãopara sempre. 4 Nada à minha volta?

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Onde estás, Sam? Nunca me senti tão só.16Ainda estou acordada. Viro a almofada ao contrário porque está a ficar asiado quente e húmida. Sinto-me tão cansada que nem consigo abrir os os, mas, no entanto, o meu cérebro não se desliga. Se pelo menos o consesse apagar carregando num botão. Tudo o que quero é dormir.Neste momento preocupo-me com o Sam. E se ele se embriagou demao e ninguém se deu ao trabalho de o trazer para casa, a salvo? São quase três manhã, agora. A seguir, inquieto-me a pensar no que poderia ter acontecido lls, se o Mark não tivesse ajudado. A Belas irá contar ao pai e à mãe que eu ei com ela. A mãe vai ficar furiosa.Decido que é escusado tentar dormir. Visto o meu roupão e dirijo-me ao quarto Belas. Ela tem a respiração pesada e dorme a sono solto. Fecho silenciosamente a e desço as escadas. Rezo para que, desta vez, o Sam não tenha escondido os ros num sítio difícil. Felizmente, encontro um maço na gaveta dos talheres.Sento-me e penso novamente na minha casa. O facto da Belas estar aqui timulou tantos sentimentos. Porque estou a achar tão difícil tê-la por perto? sabia de antemão que não iria ser fácil, mas nunca previ tamanha cadeia de problemas numa só semana.Depois de a Bells nascer o pai disse-me que iríamos superar toda a situação }untos. Disse-me que a vida continuava e que tudo se iria compor. Existem muitas famílias a passar exactamente pelo mesmo que estamos a passar, acrescentou, tentando fazer-nos a todos sentir melhor.ALICE PETERSONEu sentia uma obrigação esmagadora de tomar conta da mãe. Não que ela se mostrasse destroçada. Olhando para trás, percebo que foi muito forte. Sentia-me simplesmente responsável por ela. Comecei a planear aquilo que poderia fazer para ajudar. Lembro-me de ir com ela às compras e do modo como fazia deslizar pacotes de biscoitos de laranja Club e batatas fritas com sal e vinagre para dentro dos sacos sem ser apanhada. Sabia que não devíamos ter muito dinheiro, porque ouvia a mãe e o pai a falarem acerca disso. A mãe nunca mais tivera tempo para trabalhar no seu estúdio e o pai estava a auferir um salário bem magro na casa de leilões. Disse à mãe que não tinha de me dar qualquer mesada e ela pareceu sensibilizada. Disse-lhe que haveria de ganhar dinheiro na escola, vendendo castanhas-da-índia no recreio. Queria ajudar também nos aspectos práticos. Ajudava a mãe a dar de comer e a vestir a Bells. Isto era qualquer coisa que podia fazer e de que gostava, mesmo quando a mãe ralhava comigo por falhar uma casa de botão ou enfiar-lhe os braços onde deveria enfiar as pernas. O pai não era melhor. Uma vez ficou a tomar conta da Bells durante o dia e a mãe voltou para a encontrar com o casaco de lã todo torcido e o barrete posto com a parte de trás virada para a frente. Era o que o pai entendia por nos desenrascarmos em regime de cooperação colectiva. Funcionou durante algum tempo.Também eu era muito protectora em relação à Bells. Sabia que ela era vulnerável, não como as outras crianças; a minha irmã era diferente. Provavelmente empenhei-me demasiado. Lembro-me de insistir em que deveria levar a Bells a passear no seu carrinho de bebé. Disse que a levaria apenas até ao fim da nossa rua – subir a colina e voltar para trás. Quando cheguei ao alto e estava a dar a volta ao carrinho de bebé, um grupo de rapazes veio a correr por detrás de mim lançando uns contra os outros balões cheios de água. Um deles chocou com as minhas costas e a minha mão escorregou. O carrinho de bebé começou a rolar colina abaixo, ganhando velocidade de forma alarmante. A mãe vai-me matar, era o meu maior medo. "Socorro!", gritei para o grupo de rapazes. "Socorro!" Um deles parou e voltou-se, o carrinho de bebé chocou contra

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ele e virou-se. A Bells aterrou na valeta e ficou com feridas muito feias na testa e no braço direito."Como pudeste deixar que isto acontecesse!", gritou-me a mãe mais tarde, passeando na cozinha para cima e para baixo. Tinha os braços levantados no ar, gesticulando furiosamente.OLHAR NOS OLHOS"Foi um acidente", interveio o pai, tentando acalmá-la."Um acidente? Não nos podemos dar ao luxo de ter mais acidentes." Comecei a chorar e o pai tentou falar comigo. "A tua mãe sabe que não tiveste culpa, ela está apenas assustada", disse. "Quando estamos com medo, descarregamos em cima da pessoa mais próxima."Comecei a afastar-me da mãe quando ela passou muito tempo no hospital. essa altura a Bells tinha cerca de dois anos de idade e eu nove. Ela precisou uma série de operações para começar a recompor a face. Era quase como um uzzle. Peça por peça, os médicos reconstruíram-lhe vagarosamente a fenda tre o nariz e o lábio. Quando lhe tiraram as ligaduras, foi difícil dizer imediaente qual a diferença, mas, lentamente, a Bells começou a parecer maisrural.Nas férias escolares, quando o pai estava a trabalhar e a mãe no hospital, sava a maior parte do tempo com a família da Emma. Berry, a irmã dela, quem nos disse para cortarmos uma madeixa do cabelo da Bells e pô-la na xa mágica. Na altura ela tinha dezassete anos e eu lembro-me de pensar em somo era crescida. A Berry chamava-me "olhos de águia", porque eu costumava r-me a olhar para ela. A Emma continua a implicar comigo por causa dessa inha paixão. A Berry era alta e magra, com um longo cabelo negro que fintava com madeixas púrpura. Era tão longo que se podia sentar nele. Vestia oupas góticas e usava as pestanas cobertas de grossas camadas de rímel preto. mbro-me de a ver constantemente a chupar rebuçados de menta, hoje compreendo que para disfarçar o cheiro do fumo dos cigarros.Quando a família da Emma estava fora, a Sra Grimmes, a nossa ama local, substituía-a. Odiava a minha mãe por me deixar com ela. De todas as vezes que vi, a Sra. Grimmes vestia a mesma saia de tweed castanho, cor de lama, e uns sapatos rasos castanhos com atacadores. Usava umas meias do tom da pele que lhe esmagavam os pelos pretos contra as pernas brancas. O seu cabelo parecia um desses esfregões Brillo que temos no lava-loiça da cozinha. Usava óculos com aros de aço pendurados na ponta do nariz. Era difícil acreditar que vivia apenas a três portas de distância da nossa. Parecia ter vindo de outro país. Um onde só comessem alhos chochos."Ela é muito simpática, docinho", disse-me a mãe quando torci o nariz em sinal de desaprovação. "O mais importante é eu não ter de me preocupar por te deixar."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSO pai gostava dela porque trazia pudins, fumegantes lasanhas e "guisados bons e saudáveis" para o nosso congelador. "É a maior, é a Sra. Grimmes", dizia num riso abafado. Nunca hei-de esquecer a altura em que veio cuidar de mim durante uma noite inteira. A mãe e o pai tinham levado a Bells para o hospital na véspera da sua próxima operação."Tens sempre o nariz metido num livro", repreendeu-me a Sra. Grimmes, debruçando-se para ver que estava eu a ler. Ela estava a tricotar uma camisola verde lodo, a cor do musgo húmido e miserável que estava no telhado da nossa garagem.

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"És demasiado nova para um livro desses", disse, numa voz chocada e afastando o livro de mim. Tentei apoderar-me dele de novo, agarrando o vazio. "Devolva-me o livro!", gritei. "Oh, então fique com ele, de qualquer modo eu já li o Riders.""Não darás em nada", disse para o ruído das suas agulhas de tricotar. "És uma pequena porção de nada. A tua irmã tem muito mais problemas que tu, mas será uma menina decente."Encolhi os ombros e murmurei "Vai-te catar."Inclinou-se para a frente e bateu-me com força nos nós dos dedos com as agulhas de tricotar cinzentas. "Desculpa, o que DISSESTE?" Estava de novo a fazer aquela coisa louca com os olhos. Quando estava zangada ou excitada começava a rolar os olhos, de tal modo que eu não lhes via senão o branco.Sustive a respiração, não queria que ela visse que me tinha magoado. "Parece uma cega louca!", disse-lhe, sorrindo para ocultar a dor.Antes de me dar conta, estava a ser arrastada escadas acima e enfiada no quarto de hóspedes. Empurrou-me lá para dentro e pude ouvi-la a girar a chave na fechadura e a dizer que isto me haveria de ensinar. Bati na porta, gritei e vociferei, "deixe-me sair", mas ela ignorou-me e continuou a ver Coronation Street.Na manhã seguinte a Sra. Grimmes abriu a porta e disse-me que lamentava o sucedido. Eu respondi-lhe que ela era uma solteirona triste e só. Quando a mãe e o pai voltaram descrevi-lhes os acontecimentos. A mãe pediu-me que parasse de mentir; disse que sabia o quanto eu odiava a Sra. Grimmes e que eu faria tudo para me libertar dela. Olhei para o pai, que muitas vezes fora meu aliado, mas ele disse-me para não atormentar a mãe. Não via eu como elaava afadigada e esgotada? A Sra. Grimmes continuou a fazer serviço de ama a nós, apesar de eu ter dito à mãe que já não era uma criança. Continuou a har-me no meu quarto; uma vez chegou mesmo a fechar-me no sótão por sido "insolente". Nunca lhes perdoei por não acreditarem em mim. haram os olhos e os ouvidos a isto por terem mais em que pensar.Quando o meu pai se tornou finalmente um leiloeiro, o seu salário entou e nós passámos a ter dinheiro suficiente para termos alguém a tomar fita da Bells durante o dia. Foi nessa altura que a mãe recomeçou a trabalhar seu estúdio. Começou a trabalhar de dia e de noite, trabalhar, trabalhar, alhar e nos intervalos a tomar conta da Bells. Penso que isso lhe permitiu tar-se dos problemas da família e imergir num mundo diferente. A sua vida a-se entre a tentativa de satisfazer as necessidades da Bells e o trabalho no dio. Parecia já não estar interessada em mim, e começámos a afastar-nosmais.A Bells era a "menina da mamã". Sei que ambos, o pai e a mãe, achavam parativamente mais fácil conviver com ela, mais fácil de compreender, em Pronto comigo e com as minhas palhaçadas. A Bells era "a artista"; a mãe orajou-a a desenhar, pintar, escrever, cozinhar — todas as coisas de que tava em criança e ainda gosta. A Katie era "a rebelde".".`Que fizeste a ti própria, Katie!", ainda ouço a mãe gritar nesse tom famidesesperado, contorcendo a face em forma de coração, as rugas aparecendo, 'olhos verdes brilhando, a boca muito aberta numa censura."Como pudeste ter sido tão estúpida? Tão idiota?" Vejo-a selvaticamente pertando o imundo avental que depois atira ao chão dramaticamente. Pintei o cabelo de azul e cor-de-rosa, como um pássaro exótico. Copiava a ry, que mudava a cor do cabelo tantas vezes como a Madonna.Sinto o braço da mãe a puxar o meu. "Por amor de Deus, que cabeleireira fez isto?", grita. "É como se tivesses vermes cor-de-rosa e azuis a rastejar no belo." Na ocasião íamos de carro para casa e ela estava mais preocupada que gada. "Por que razão estás

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sempre a tentar chatear-me deliberadamente? tie, que te aconteceu? Costumavas ser uma rapariga tão meiga."Não era óbvio? Da próxima vez teria de pôr um piercing na língua para Ptar a sua atenção?Não creio que a mãe tenha abandonado a ideia de me descrever como "aALICE PETERSONrebelde". Penso que continua a acreditar que eu levo uma vida completamente louca em Londres, trabalhando desalmadamente e consumindo-me sem apelo. Continuo a ser a dissidente porque nunca vou a casa. Hoje, quando penso nisto, parece-me quase trivial; afinal de contas as pessoas passam por coisas muito piores. Mas não nos esquecemos, não é? Não esquecemos a mais pequena desfeita, muito menos o sentimento de, de uma maneira ou de outra, termos sido abandonados. Ser deixada para trás pela nossa própria irmã. Não foi culpa da Bells, eu sei que ela nunca fez nada para ser a menina de ouro aos olhos da mãe, e sei que passou por muito, mas há ainda uma parte de mim que a culpa por ter necessitado tanto da mãe. Se a mãe não estava em casa, estava no hospital. Todas as semanas a Bell s tinha aulas de terapia da fala, a sua vista tinha de ser examinada ou o seu aparelho auditivo necessitava de ser ajustado. Havia sempre um compromisso para satisfazer. Julgo nunca ter confrontado a Bells com isto porque a mãe sempre me incutiu a ideia de que tenho muita sorte por não ter as mesmas enfermidades. Como me atrevia eu a ficar zangada ou enraivecida quando tinha a vida toda à minha frente? Sou uma jovem saudável com um futuro promissor. Preciso apenas de ir em frente. "Tens sorte, muita sorte", ouço ainda a mãe dizer.A minha infância ajudou-me ern múltiplos sentidos. Fez com que me tornasse auto-suficiente. Fez-me lutar para ser independente. Na realidade, continuo sem ser verdadeiramente independente, não é? Tenho esta necessidade de estar com pessoas; vejam o modo como me instalo na casa de cada homem que conheço. Quero sentir—me amada; quero sentir que faço falta. Culpo os meus pais, e especialmente a minha mãe, por não me amar do mesmo modo que ama a Bells. Durante anos tentei ignorar este buraco aberto dentro de mim, embora não o tenha conseguido. Quando ouço a Bells falar da mãe tão espontaneamente, toda esta velha raiva, todos estes ciúmes antigos voltam como se nunca me tivessem abandonado.Bem, nunca abandonaram.Tempo houve em que éramos che fiadas, em que havia ternura entre a mãe e eu, como pôde tudo correr tão mal?Acendo outro cigarro e faço uma argola de fumo no ar. Nunca me hei-de esquecer que a mãe não me foi ver a representar o papel principal na peça escolar Guys and Dolls. Eu tinha reservado dois lugares na primeira fila. Qual-OLHAI( NU iLr1'Jquer coisa "aconteceu à Bells" era a desculpa do costume. Fingi não me importar. Terá sido esse o meu erro? Sou demasiado orgulhosa. Mas ainda me lembro de como me senti quando o meu pai se sentou ao lado de um lugarvazio.17"Ele nem sequer me telefonou mais tarde para saber se a tinha enconado", disse calmamente pelo telefone à Emma. Estou na loja, na manhã uinte. A Eve e a Bells deram um salto lá fora para comprar croissants e ppuccinos."Não posso!", disse a Emma com ar ultrajado. "Que desagradável! Que lhe sseste?"

"Sam, foste de uma grande utilidade."

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"De que estás tu a falar, querida?" Ele estava a fazer a barba e eu a falar com seu reflexo no espelho."Ontem!", berrei exasperada enquanto vestia os meus jeans de trabalho. ntalei o dedo no fecho. "Foda-se, isto dói." Inspirei com força. "A Bells erdeu-se e tu nem sequer telefonaste.""Então, ela fugiu?", comentou, sem uma centelha de preocupação. Poderia muito bem estar a falar do tempo. Atirei-lhe um dos meus ténis que o atingiu no rabo e caiu no chão com um ruído surdo."Jesus, Katie, para que foi isso? Porra, agora cortei-me.""Ao menos podias fingir-te interessado. Mostra alguma preocupação." "Bem, encontraste-a, não encontraste?", virou-se para mim impaciente. "Katie, não tenho tempo para isto, vou ter com o meu treinador pessoal dentro de meia hora."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSAtirei-lhe o outro ténis. Este acertou-lhe em cheio na cara. Em cheio.

"NÃO! Tu não fizeste isso?" A Emma ansiou porque fosse verdade, e depois riu-se."Fiz.""Boa! Eu teria feito o mesmo. E que foi que ele disse?"

"O que é que te deu?", berrou, tocando uma das faces. "Boa, vou ficar com um grande hematoma na bochecha, como se tivesse levado um soco. Obrigado, Katie.""Ontem foi um dia horrível", disse, baixando o tom de voz mas assegurando-me de que não perdia o acento zangado. "Se não fosse o Mark..." "Quem?", finalmente um pequeno relâmpago de interesse."O Mark.""Quem é o Mark?""É um homem muito simpático", disse enfaticamente. "Ontem encontrou a Bells. Também veio cá comer pizza."Esta pequena informação obteve o resultado pretendido. Finalmente o Sam )restou atenção."Comer pizza? Porque tiveste de o convidar para comer pizza?" Espera pela ninha resposta."Para lhe agradecer", disse, simplesmente. "Se ele não a tivesse encontrado, ião sei o que poderia ter acontecido. Ela teve um ataque de asma.""Em primeiro lugar, porque fugiu a Bells?", pergunta o Sam, sentando-se ta cama e calçando os ténis."Porque é aquilo que faz quando está aborrecida", explico-lhe, como se ele [uisesse realmente saber. "Em casa acontecia muitas vezes." Contei-lhe acerca .as etiquetas, aliviada por descobrir que o Sam podia de facto preocupar-se um ouco. Apesar de tudo é humano."Bem, se não tivesses gritado com ela primeiro", diz, convincente e estando a língua contra o céu-da-boca, "nada disto teria acontecido, pois não?"alquer coisa que me fizesse sentir menos culpada. "Que disseste tu?", rguntou finalmente.

Pego na sua chávena de café, que está pousada na mesa-de-cabeceira. "Oh-oh, ue nervoso, podia deixar cair isto sobre o tapete de pele de ovelha branca." "KATIE", disse implorando, "poisa a caneca."

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Poiso a caneca porque fui eu que comprei o tapete e gosto dele. Em alterva, peguei no relógio dele. "Eu diria que esta é uma situação de emercia, e tu, Sammy? Talvez se eu puxasse o alarme?, sugeri.O Sam não suporta olhar para mim, não vá dar-se o caso de o puxar. anta-se vestindo as calças do fato de treino, uma t-shirt justa ao corpo e uns atos de ténis. "Anda lá, puxa isso, e podes pagar a merda da multa. Eu estou ado para o meu treino pessoal. Não tenho tempo para isto." Saiu do to de rompante.Pouso o relógio. Sinto-me tão vazia. Há uma semana atrás era feliz, as sas corriam-me bem. A minha passagem de modelos foi um sucesso. Ouvia Sam regressar e o meu coração flutuava. Vai dizer-me que está arrependido. dizer-me que tem sido um perfeito idiota e nada fácil de aturar.Está em pé junto à porta e apoia uma mão na parede. "Disseste o que has a dizer, agora é a minha vez.""O quê?", digo, desapontada por não me pedir desculpa."Nunca me falaste da Isabel e agora, repentinamente", diz levantando os brolhos, "queres que fique profundamente preocupado com o seu bem-estar? tie, eu não sabia que ela foge quando se aborrece. Continuo a não saber da acerca dela. Não me sinto confortável ao pé dela porque tu não fizeste m que me sentisse confortável."Sento-me em silêncio."Pensaste que te iria deixar por causa dela... percebes o que quero dizer, por causa do modo como ela é?", terminou. "São os teus próprios complexos, Katie. Se não tivesses tido tanta vergonha de me falar dela..."A Bells está em pé por detrás dele, vestindo o seu pijama de algodão e os chinelos de futebol, e eu tento desesperadamente fazer sinais ao Sam para que se cale. Olho de modo excessivamente carrancudo e aperto os lábios, mas ele não presta qualquer atenção.itar que ele disse isso. Como teve coragem de vir com essa para cima de ti?Fez-se um silêncio incómodo. Quero ouvir a Emma dizer: não posso acre-ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Se não tivesses tido tanta vergonha da tua própria irmã", sublinha, "as coisas poderiam ter começado melhor. Certo, ela é diferente, e depois? No outro dia, no metropolitano, estava uma mulher sentada à minha frente latindo como um cão. Há por aí muitas Isabéis, ela não é a única."A Bells olha para mim e eu ponho a cabeça entre as mãos. Volta para o seu quarto e fecha a porta com força. O Sam olha em volta, tomando finalmente consciência de não estar a falar apenas para mim. "Quando telefonaste não pude fazer nada, estava a caminho de uma reunião. Sou culpado de não te ter telefonado, e peço desculpa. Mas não atires todas as culpas para cima de mim. Talvez devesses olhar bem para ti também, Katie Fletcher", disse com firmeza, antes de bater com a porta atrás de si.Deitei-me na cama e fixei o olhar no tecto. A Bells está a ouvir Stevie Wonder. De momento, Stevie Wonder é provavelmente a única coisa inalterada no seu mundo. É o alimento para o seu conforto.A proximidade que partilhámos ontem, o afecto — bem, foi totalmente arruinado num golpe rápido, e eu estou surpreendida pelo muito que isso me preocupa. Não posso deixar a Bells pensar que não é importante para mim. Deus, ó Deus, sinto-me horrível.

A Emma está penosamente calada. Por favor, diz-me que o Sam está errado, penso. No entanto, muito intimamente, sei que há muita verdade naquilo que ele disse. Eu deveria ter-lhe falado da Bells. Em que pensava eu? Graças a Deus, ela não diz: eu avisei-te.

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"A Bells está bem?", pergunta. "Queres que a vá ver? A asma dela voltou a aparecer?""Obrigada, Emma. Creio que ela está bem, mas tem andado um pouco calada", admito. "Sei que ouviu o que o Sam disse, mas ainda não falei disso com ela. Estraguei mesmo tudo, Emma. Quando o pai e a mãe voltarem, dificilmente poderei dizer que a Bells está a passar bons momentos. Está deprimida. Deus, que fiz eu?""Ainda não é demasiado tarde", diz, reconfortantemente."Devias estar a dizer, `eu bem te avisei"', ri, esperançada."Sim, sim. Devia, mas não quero. Hoje não tenho muito que fazer", disse, como se estivesse a fermentar uma ideia, "por isso, posso ficar na loja em teu lugar e tu levas a Bells a sair. Faz com que se divirta, tenta compensá-la.""Gostaria muito", digo. "Fica tão aborrecida na loja. Tens a certeza? Não te portarias mesmo?""Não, o Jonnie tem andado a furar e ordenar documentos em casa, por isso ou livre. Leva-a às compras. Passem juntas algum tempo de qualidade." "Posso comprar-lhe qualquer coisa para o teu casamento?""Sim, boa ideia. Eu ainda nem comprei o meu vestido", acrescentou. "Eu ajudo-te. Obrigada Ems, gostaria muito de fazer isso."

"Então e esta?", sugeri à Bells, segurando uma saia verde pálido e um de seda bordado. Espreitei para a etiqueta da saia. Tamanho 12. Vou ter levantar uns bons 12 centímetros."Gosto disto." Tirou-me o casaco e a saia das mãos sem mesmo olhar para Puxou a cortina da cabina de provas. "Não entres."ço-a bater os pés enfiados nas suas grandes botas pretas da DM. Hoje dar descanso às botas púrpura de duende. Viro-me para pedir desculpa stente de loja, que não diz nada. Pelo contrário, olha para longe. Porque comodei a pedir desculpa? Por que razão estou a pedir desculpa? Abro ente a cortina. "Por favor, deixa-me entrar", peço. "Por favor."„Está bem, Katie”, diz a Bells.nto-me num tamborete situado no canto do cubículo. "Precisas de uma

.Não, posso fazer sozinha. Consigo vestir-me."Eu sei, desculpa." Não pareço capaz de fazer qualquer coisa certa, penso esperança. "O que é essa coisa engraçada que tens na mão?", pergunto eradamente, tentando quebrar o gelo entre nós.colheu os ombros.ostra-me, por favor. O que é?"tendeu a mão. "Aperta-me a mão", diz impacientemente. Ponho a minha na dela e qualquer coisa desata a vibrar ruidosamente contra a minha • produz o género de ruído que ouvimos quando a claque adversária toca buzinas durante um jogo. "O que é isso?", guinchei, retirando a mão e indo-a no ar. "Faz lá outra vez!", ri-me uma vez mais. A Bells ri-se comigo primeira vez esta manhã. Não falou no autocarro; nem sequer disse olá aos os passageiros. Dei comigo a desejar que perguntasse a idade ao homem deALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSurbante. "Gosto disso", disse eu. "A quem gostarias de apertar a mão? À parte Beckham e o Stevie Wonder", acrescentei, começando finalmente a sentir-me Tais descontraída."Ao Tony Blair", disse, balançando para a frente de novo. "Vota Tony." "Não podes dizer isso em frente do Sr. Blair", ri-me."Vota Trabalhista", disse ela.

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"Gostava de apertar a mão ao Príncipe William", disse-lhe, e observei-a iscinada enquanto começava a despir-se. O estilo da minha irmã é aquilo a ue podemos chamar o estilo "mala de senhora". Despe o blusão de ganga, oberto por ainda mais crachás e autocolantes de futebol. Por baixo veste a t-!irt vermelho claro da Universidade de Oxford."Na passarela, Isabel Fletcher passa um modelo de camisola de futebol acardida e coberta por mais autocolantes e crachás do Manchester United." orrio enquanto me encosto para trás, contra a parede. "Não estás a ferver?", ergunto, enquanto tira uma nova camada de roupa. Parece uma boneca russa. surpreendente que possa até caminhar. "Bells, estamos no Verão. Estás estida para um dia na Sibéria.""Sinto frio", queixa-se, extraindo nova cobertura, uma camisola interior >buracada e ligeiramente malcheirosa. Tenho de me desfazer dela. É seguida or outra camisola interior de fibra com mais buracos.Imito o ressonar."Ah, ah, muito engraçada, Katie", repete, balançando-se para a frente com m sorriso.Vejo a rapariga da loja a olhar-lhe para os dedos dos pés. Espreitou pela cortina voltou a fechá-la imediatamente quando me viu a tentar vestir o casaco à Bells. stá-lhe muito apertado no peito. A Bells tem um peito grande, considerando que rede apenas um metro e cinquenta. A natureza compensou-a exageradamente. Se adéssemos fazer uma permuta, eu podia dar-lhe alguma da minha altura – tenho rn metro e setenta e três – e ela podia dar-me algum do seu peito – sou uma amilde 34 B. "Sei que tens cócegas. Lembras-te quando a mãe costumava fazer-3s cócegas debaixo dos braços depois de tomarmos banho? Tu detestavas que te .tsesse pó de talco. Berravas e berravas." Levanto-me e começo a abotoar o casaco stintivamente. Isso faz-me lembrar quando a Bells era criança e eu a vestia e spia. "Oh, Bells, desculpa", digo, afastando-me rapidamente. "Desculpa.""Não faz mal, Katie. Ajuda-me", diz, abanando a cabeça. "Tu és a Rainha Moda", acrescenta.Abri-me num enorme sorriso. "Bem, penso que este casaco é demasiado queno. Queres que vá ver se têm um tamanho 14? E podemos tentar outra r só para nos divertirmos?""Não, creio que não temos", insinua em voz alta a rapariga da loja através cortina. Saio e vejo-a a pairar sobre a nossa cabina de provas como um rda prisional que não nos quer deixar fugir."Desculpe? Vocês não o quê?", pergunto."Vem apenas nesta cor, na cor que ela tem vestida." Morde o lábio e olha longe. Se esta loja tivesse um armazém, seria esse o lugar onde iríamos r, e tomo consciência de que não sou melhor que esta rapariga. Ela quer r connosco o mais depressa possível para não afastarmos potenciais tes. Quão triste. Quão verdadeiramente patética sou.Verdade? Mas tenho a certeza de o ter visto noutra cor." Caminho em ção aos expositores, suficientemente segura de que o casaco veio numa cor ente. De facto, veio em cerca de quatro padrões e tons diferentes. Tiro do cabide e, de regresso à cabina de provas, passo propositadamente pela riga. "Bells, tenta este de cor diferente", digo em voz alta.Ouço entrar mais clientes. "Posso ajudá-la ou está apenas a ver?", pergunta-uma voz açucarada.Este casaco abotoa normalmente. Afasto-me e digo à Bells para sair. "Estás ntadora, anda", encorajo-a. Ficamos cá fora, atrás de uma rapariga de lo loiro mel. Posa frente ao espelho com uns jeans azuis-claros, segurando vestido preto. O seu namorado está sentado ao canto da loja a ler a For Magazine. A Bells arrasta os pés para a frente, tentando vislumbrar-se. A iga afasta-se do caminho e eu agradeço-lhe. A saia da Bells arrasta-se pelo o como um comboio. Contudo, é a cor certa porque realça o verde dos

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seus os. De cada vez que olho para ela vejo a mãe. A Bells dá mais um passo e a altura ouço rasgar. Puxo-a imediatamente para dentro da cabina de rovas e examino atentamente o vestido. Há um rasgão enorme acima da nha. "Marota", murmuro, "marota.""Esse vestido preto é fabuloso", está a rapariga da loja a dizer no lado mais tado da sala. "Não lhe pode ficar mal."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Marota", repete a Bells alto."Shh!", digo, ouvindo passos na direcção do nosso cubículo. "Veste-te epressa." Olho para a pilha de roupas. Assim que a Bells fica pronta cami_ hamos em direcção ao balcão. Estou pronta a dizer à rapariga o que aconteceu a comprar a saia. Posso arranjá-la em casa."Vai comprar essa?", pergunta, numa voz esforçadamente polida."É casada?" Pergunta-lhe a Bells. "Tem filhos?" Dá um passo em frente Ira apertar a mão da rapariga. Vejo que tem o seu pequeno dispositivo elécico pronto. Estou quase a fazê-la parar, mas quando vejo a expressão do rosto I rapariga mudo de ideias."Oh meu Deus!", vocifera e, enquanto o dispositivo se apaga, recua, afasndo com horror a mão manicurada. A Bells balança para a frente deliciada e i sorrio. A rapariga fita-nos com desdém. "Que lhe aconteceu?", diz furiosa, hando directamente para mim. "Ela é louca ou quê?""EU", enfatizei, "chama-se Bells. Se tem alguma pergunta porque não lha faz?" "Nasci com cérebro doente e o lábio e o palato fendidos", diz a Bells, tal imo a mãe costuma dizer-lhe."Se alguém perguntar, responde-lhe honestamente. Não tens nada de que envergonhar", ouço-a dizer."Vai comprar a saia?", pergunta a assistente, claramente desinteressada e ada incapaz de olhar para a Bells."Infelizmente tem um rasgão, por isso, não, não a vamos levar", digo, difimente acreditando que estas palavras saíram da minha boca. "Não estamos teressadas em artigos danificados", continuei, agora saboreando cada palavra. rapariga da loja agarra a roupa imediatamente. "Tenho a certeza de que antes :ava em boas condições...""Pode sempre pô-la em saldo", sugiro, prestável."Tu senhora pouco simpática", disse a Bells à rapariga. Eu saio segurando )raço da minha irmã. "Senhora pouco simpática", repete, abanando dramaamente a cabeça. "Katie, senhora pouco simpática.""Não, senhora nada simpática."

Levo a Bells a almoçar fora. "Mais compras não, Katie", disse ela. Peço um po de vinho e uma Coca-Cola.Ainda não encontrámos roupas para ela, mas estou determinada a não istir. O mais importante foi termos dado uma lição à antipática rapariga da . Desafiar aquela rapariga fez-me sentir surpreendentemente bem. aspecto do seu rosto! Observo a Bells enquanto olha para a ementa. Ainda áo fez qualquer menção àquela conversa com o Sam. Sinto curiosidade relavamente ao modo como se sente. Esta manhã parecia tão magoada, tão vulnevel, os ombros caídos, a cabeça baixa enquanto caminhava de volta para o rto.Porque não falei dela ao Sam? Suponho que a razão é simples. Falamos com os os acerca das coisas que nos fazem sentir confortáveis, das quais temos orgulho. to de partilhar os bons momentos com o Sam, gosto do mundo brilhante que os juntos. Sam, o às da City; Katie, que dirige o seu próprio negócio. Não há to espaço para a imperfeição

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neste cenário. Porque haveria de lhe ter falado da quando me sentia tão culpada por ignorar as suas cartas, por ser uma irmã nte, por ser tão ressentida para com ela por me ter roubado toda a atenção? Por feito coisas estúpidas e pouco originais para recuperar as atenções? Falar da Bells de volta uma imensidão de memórias que preferiria apagar. Alimenta a culpa rrosiva dentro de mim. Mas compreendo que nada disto torna perdoável o do. O Sam tem razão."Bells, acerca do que ouviste esta manhã...""Tu envergonhada", disse, rápida.Quando a ouvi dizer isto bem alto, isso fez-me sentir ainda mais vil. "Estou erdadeiramente arrependida. Podemos começar de novo? Vais passar mais a semana comigo em Londres e eu gostaria de a tornar óptima." Tenho nsciência de que não posso dizer que não fico embaraçada quando a Bells diz olá a tudo quanto mexe; quando pergunta às pessoas porque não têm cabelo ou porque têm "apenas uma perna". Não o posso evitar. É um instinto. "Bells, foi errado da minha parte não ter falado de ti ao Sam, não sei porque não o fiz. Foi uma daquelas coisas que fazemos e que, depois, revendo os aconteci-mentos, desejávamos ter dito."A Bells não diz nada."Onde está aquela coisinha que vibra?" Rio-me nervosamente enquanto lhe pego na mão. "Amigas", digo convictamente, mas sentindo que ainda não pedi propriamente desculpa.ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSTenho aquele sentimento de desconforto arrastando-se no meu estômago, --omeço a pensar em todas as vezes que, nas festas, as pessoas me perguntaram: `Tem irmãos ou irmãs?", e eu respondi que era filha única por não conseguir °nfrentar as perguntas que se seguiriam: Onde vive ela? O que faz? À noite, piando me preparo para dormir, rezo a Deus uma oração silenciosa, pedindohe perdão por a renegar. Isso faz-me sentir melhor, não quero ir direita ao nferno.Olho para a Bells, que está a beber a sua Coca-Cola com muita rapidez, orvendo ruidosamente através da palhinha. Não vou olhar em volta para ver e alguém está a observar. Mas ela faz um ruído final que soa como se a porta òsse explodir. Sem pensar dou uma rápida mirada em volta mas, na realidade, linguém está olhar para nós. Estão todos demasiado interessados nas suas >róprias e bebidas e nas suas próprias refeições. Peço outra Coca-Cola para ela. Belas, aquilo que o Sam disse sobre sentir vergonha de ti...", recomecei."Está tudo bem, Katie", diz ela, olhando para os cartazes emoldurados na >arede."Não, não está tudo bem. Eu não tenho vergonha de ti, garanto-te. A única ressoa de quem tenho vergonha, é de mim própria.""Porquê?""Às vezes acho difícil..." Não sei como acabar a frase, por isso começo de [ovo. "Para ser honesta, temia a tua estadia aqui." Não olho para ela porque enho medo de estar a magoá-la. "Recordas-me tudo o que não tenho.""Não percebo", diz."Não me sinto um membro da nossa família, sinto-me uma estranha. Olha ara o teu álbum de fotografias. Há fotografias de todos, da mãe, do pai... mas enhuma minha. Sou culpada disso, fui eu que me afastei. Não te estou a ensurar, mas tu, a mãe e o pai são muito chegados, há uma ligação muito forte ntre vocês. Quando tu eras nova eu era mandada para casa da tia Agnes, ficava om a Granny Norfolk ou alguma ama horrível tomava conta de mim. Tu recisavas da ajuda deles, a mãe e o pai não tinham escolha, sei

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disso, mas não suportava muito bem. Eu..." Os meus pensamentos estão numa balbúrdia. Compreendes o que estou a tentar dizer?""De certo modo. Difícil para a Katie também.""Sim, de uma maneira completamente diferente daquela porque tiveste dessar. Sinto-me tão culpada por experimentar algo assim, não quero sentir-meeste modo.""Está certo. Tu ciumenta?""Sim", respondi apenas, percebendo como ela é sensível. "Tinha verdaeiros ciúmes de ti por teres toda a atenção. Tenho de ultrapassar isto,ontudo, sei que não tens culpa.""Culpas a mãe?", pergunta a Bells."Creio que sim. As mães sofrem sempre o impacto destas coisas. Com o pai algo diferente, sempre fomos chegados. Vamos fazer um pacto?""Sim, pacto.""Para um novo começo?""Amigas." Estende a mão, com os seus pequenos e fracos dedos e as unhasdas."Sim, amigas", digo-lhe, apertando aquela mão pequenina.18São quase seis horas e estou a fazer etiquetas com novos preços em fita de o preto. A Eve acaba de sair, levada pelo Hector, que não é nada daquilo eu esperava: baixo e oleoso como uma sardinha.A Eve hoje comprou um lustre para a loja com pingentes cintilantes de o. Também descobriu umas almofadas de seda cor de marfim, debruadas fita preta, para decorar a chaise langue creme que se encontra ao canto da Muito Moulin Rouge. Trabalhamos muito bem juntas porque ela tem umdeiro talento para o design e adora dar à loja um ambiente profusamente ico. Temos gostos idênticos, o que é uma sorte."Onde está o Mark?", pergunta novamente Bells.De há cinco minutos atrás até agora, continuo sem saber", respondo-lhe. bo que ela está a ficar impaciente. Anda para trás e para a frente dentro ja, de punhos cerrados. "Aborrecida", diz ela de novo.Vamos já embora para casa. Faz-me um desenho", sugiro-lhe, entregando-o meu bloco de notas. Tenho um copo em papel-mâché para os lápis e paraetas em cima da minha secretária. "Tira um lápis", digo-lhe."O Mark é casado?", pergunta-me, interrompendo por um segundo as suas das."Não, acho que não. Na verdade, não sei muito bem", acrescento. "Namorada?""Não sei."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Animais? Tem um cão?""Bells! Não sei. Devias ter-lhe perguntado."Questiono-me se a Bells sentirá falta de "sair com um homem", se sofrerá com o facto de não conseguir ter uma relação. Será que alguma vez isso lhe ocorreu? É nestas alturas que me sinto culpada por ter inveja dela. Há tanta coisa que eu tomo como garantida que ela não pode ter. Pergunto-me o que pensará ela sobre o Sam e eu? Provavelmente não sentirá inveja nenhuma, já que tudo o que nos vê fazer é discutir. Continua a dizer que não gosta do Sam."O Mark é um homem simpático."

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Estou a ver que ela não se permitirá esquecê-lo. "Faz-me um retrato dele", peço-lhe, agradada por ela parecer interessada na ideia. Apanha o bloco e um lápis e senta-se nas escadas de madeira. Eu continuo a coser as fitas nas etiquetas. Gosto de fazer este tipo de tarefas no fim do dia. "Vamos voltar a ver o Mark?", pergunta-me enquanto desenha diligentemente."Talvez."Ela começa a bater palmas.O Mark rascunhou o seu número de telefone num papel pouco antes de se ir embora. O pedaço de papel ainda está dentro da minha mala. Disse-me que se encontraria por aqui se eu precisasse dele, uma vez que estávamos nas férias escolares do Verão. Eu podia telefonar-lhe. Podíamos sair. O Sam não precisava de saber. Afinal de contas, o Mark é um amigo da Bells.Tenho pensado muito no Mark e na nossa noite de pizza juntos. Tem sido o raio de sol dos últimos dias. "Tenho um amigo que tem um irmão", disse-me ele, depois de as lágrimas e depois de eu lhe ter explicado o quão estúpida me sentia por não ter confiado no Sam a respeito de Bells. "Nunca havia conhecido o irmão, até ter sido convidado para o casamento da irmã deles. Eu era o fotógrafo muito informal", acrescentou com uma tossidela de modéstia. "Estava na cozinha com o irmão do meu amigo, que se chamava Ben; parecia-me bastante normal, ali sentado, com o seu elegante fato e gravata, mas a certa altura perguntou ao pai se podia comer um panado de ovo e salsicha." O Mark sorriu ligeiramente. "Achei esquisito", franziu as sobrancelhas, "um homem de trinta e tais a perguntar ao pai se podia comer um panado, mas não pensei maiso assunto até ele se virar para mim, para afirmar completamente ao acaso, que cão deles devia ser abatido."Ri-me sonoramente ao recordar-me desta história. "Qual é a piada?", ergunta Bells passando diante da minha secretária com o bloco de notas nasâos."Uma coisa que o Mark me contou.""O Mark é um homem simpático, não é?" Está a fazer aquela coisa de exciçáo com as mãos, outra vez, como se estivessem a dançar juntos."Ele é um homem muito simpático", repito eu. "Vá, volta para o teu senho." E fico surpreendida quando ela se senta obedientemente e continua desenhar."Estava espantado com o facto do meu amigo nunca me ter contado nada respeito do irmão", continuou o Mark. "Na realidade, era desconcertante. Já conhecia há seis anos. Tínhamos sido colegas de faculdade", revelou com credulidade.Sorrio ao pensar na palavra "desconcertante".Depois seguiu-se a horrível pergunta que todos nós fazemos, embora ostássemos de a evitar. "E o que é que fazes?" Estava concentrada no enorme raco que a sua camisola azul-marinho tinha no cotovelo. Parecia uma antiga Ilarks & Spencer a precisar ou de substituição, ou de um bom remendo."Sou professor, de Inglês e Dramaturgia."Há algo de romântico em ser-se professor de Dramaturgia, constato agora, atendo com a minha esferográfica vermelha no tampo da secretária."A sério?", perguntei. Por que razão perguntamos sempre "A sério?" Estaria è espera que o Mark esticasse a língua de fora e respondesse "Não, só a brincar"? "De que idades?", continuei."Adolescentes. Gosto de desafios." Sorri com a boca torcida. "As férias também são óptimas."Com o seu cabelo castanho claro completamente desgrenhado e sem qual-quer espécie de risco, com o seu pequeno sinal na face direita, e até mesmo com os óculos redondos

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à marrão como os que usa, calculo que muitas das raparigas tenham um fraquinho por Mark. Eu tinha uma grande paixoneta pelo meu professor de Inglês, o professor Lawrence. Era sul-africano, com um rosto cinzelado e uma barba preta, com estranhas mechas cinzentas. Costu-ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSmava imaginar que ele me pedia para ficar, depois de a aula terminar, a fim de analisar o meu trabalho comigo. Quando todos os alunos tivessem saído da sala, fantasiava que me dizia, de mão posta sobre o coração "Katie, já não consigo ignorar os meus sentimentos. Estou terrivelmente apaixonado por ti." Ele varreria então para o chão tudo o que se encontrasse em cima da secretária – apara-lápis, papéis, manuais escolares, livro de ponto, tudo cairia com estrondo no chão e nós beijar-nos-íamos insaciavelmente."Então onde estiveste hoje?", perguntei a Mark, fixando ainda o olhar na camisola esburacada."Na biblioteca.""A sério?""Tirei o dia. Estou a tentar escrever um livro", disse ele. "Não consigo trabalhar em casa, há muitas distracções, como a televisão durante todo o dia. `Às nove e dez vamos mostrar-lhes como podem mudar a vossa aparência e transformá-la na de um actor de Hollywood em menos tempo que o necessário para cozer um ovo", disse ele, imitando o Lorraine Kelly.Sorrio para com os meus botões. Oiço frequentemente a Bells, de manhã, a ver o programa GMTV."Depois também há Wimbledon. Se o Henman estiver a jogar tenho de sair de casa, os meus nervos não aguentam."Fez-me perguntas sobre a loja. Contei-lhe que estive na escola de artes e que trabalhei num teatro do West End, concebendo e produzindo o guarda-roupa, e que em seguida trabalhei para uma estilista de moda durante três anos. Ela acabou por abrir falência, mas ensinou-me muita coisa sobre este negócio. A Bells tinha acabado de descer as escadas, em pijama e com o seu álbum de fotografias na mão. Ele dirigiu a atenção para ela enquanto eu fui fazer uma salada para acompanharmos a pizza. Falaram sobre ténis, o Mark confessou que tinha uma queda pela Sue Barker. Fez-lhe perguntas sobre futebol. Não consegui deixar de reparar na facilidade com que os dois se entendiam. A Bells ria-se com ele e a certa altura afagou-lhe o braço afectuosamente, coisa que nunca fizera comigo.Mark observou demoradamente todas as suas fotografias. "Quem são eles?", perguntou."Mary Verónica e Ted, em Paris", respondeu Bells orgulhosamente. Aproximei-me para dar uma vista de olhos. Mary Verónica e a Bells estavam à portae um café, com os polegares virados para cima. Ted ficou ao meio, com os raços cruzados. "Subimos a Torre Eiffel", contou-nos."Adorava fazer o mesmo. E agora, quem é esta? É muito bonita.""A minha mãe", responde Bells. "Este é o meu pai. Este é o Budge, que jogaa minha equipa de futebol.""Katie, porque é que não há fotografias tuas?", perguntou o Mark, pare-ndo surpreendido.

Começo a arrumar a minha secretária. É tarde e quero ir para casa. O que os comer esta noite? Ainda hoje dei um saltinho fora da loja para colocar as cartas no correio e dei comigo a desejar esbarrar-me com o Mark.

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Bem, ele sabe onde eu estou. Também sabe onde é a loja. Se ele me quiser r tenho a certeza que passará por aqui. "Vamos embora, Bells. Que vamosr esta noite?""Sainsbury's? Hoje cozinho, noite biológica."Faço uma careta. "Vamos mas é alugar um vídeo e comprar o jantar noronto a comer.""O Mark gosta do Sainsbury's."Bem visto. "OK, está bem. Preciso de comprar vodka. Que queres cozi-nhar?"Estamos sentadas no sofá, a Bells e eu, como pudins de ameixa, partilhando uma embalagem de gelado de caramelo acompanhado com uma fatia de bolo de chocolate, e assistindo ao velho Titanic a preto e branco. Há pouco, a Bells cozinhou-nos um risotto de cogumelos e beringelas. Mostrou-me como se arranjam as beringelas, fatiando-as e polvilhando-as com sal, acrescentando que temos de as deixar assim durante meia hora antes de as cozinharmos.Não havia sinais de Mark no Sainsbury's, apenas o mesmo velhote com o seu carrinho cheio de laranjas, desejando "boa sorte" a todos. A Bells disse-me que já viu este filme pelo menos umas cem vezes, é o favorito no País de Gales."Quase a chocar com o icebergue." Bate palmas, inclinando-se para a frente e rindo-se escandalosamente.ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Os broncos! Bells, está quase, está quase!" Inclino-me para a frente também."Volta atrás", pede ela. Apanho o comando e volto atrás. Oiço a porta da entrada a bater e o Sam a subir as escadas. Por um segundo sinto-me realmente desapontada por ele ter voltado para casa."CHOQUE!", grita Bells. Sam perfila-se à porta, abana a cabeça desaprovadoramente e vai-se embora. Sigo-o escadas abaixo em direcção à cozinha. "Olá, Sam, boa noite, é bom ver-te, tiveste um dia bom? A que se deve esta punição de silêncio?" Age como uma criança que não recebe a atenção que merece.Senta-se à mesa da cozinha que se encontra completamente ocupada com o tabuleiro do forno, o papel engordurado da margarina, uma lata de cacau, tostas digestivas e um saco de sultanas."Desculpa", digo eu, começando rapidamente a limpar aquela confusão. Pensei que tínhamos tempo de limpar tudo antes de chegares a casa. Passo por ele e coloco a tigela suja, a colher de pau lambida e o tabuleiro no lava-loiça."Katie, desculpa. Tenho agido como um idiota."Volto-me e encosto-me ao forno. "Pois tens. Ambos temos. Também te peço desculpa. Fiquei assustada quando a Bells fugiu. Sinto-me responsável por ela, mas não devia ter descarregado em cima de ti. Tudo o que disseste a respeito de eu não te falar nela", coço a testa, "é verdade.""Olha demorada e atentamente para ti, Katie Fletcher", imita-se a si próprio.Sento-me ao lado dele e Sam faz deslizar os seus dedos por entre os meus. "Nós estamos bem, não estamos?", pergunto."Acho que sim. `Tá claro que sim. Vem cá.""Katie!", oiço a Bells gritar.Afasto-me dele. "Onde vais?", pergunta ele."Vou ver o resto do filme. Vens?""Não", responde desajeitadamente. "Vou fazer qualquer coisa para comer e limpar esta porcaria."

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"Sam, a Bells não morde.""Já vi o Titanic.""Não interessa. Eu também já vi. A Bells já o viu uma centena de vezes!"Rio-me, desejando que ele mudasse de ideias. "Vem lá, Sam, por favor vem. A Bells limpa isto tudo depois, ela adora lavar.""Água quente com sabão", diz ela, com uma expressão de extraordinário prazer no rosto, sempre que as suas mãos mergulham numa bacia espumosa. Por muita porcaria que Bells faça, ela arruma e limpa sempre tudo sozinha. Faz a sua própria cama, porque é o que fazem em casa. Cozinha as suas próprias refeições. E ainda que o seu quarto esteja cheio de posters, música e se pareça com o porta-bagagem de um vendedor de porta a porta, tem um caos organizado. Ela sabe exactamente onde está tudo e fica zangada se eu mudar alguma coisa de sítio. A única coisa que não a irrita é o não trocar de roupa. Parece não se importar de vestir a mesma velha peça de roupa, dia sim, dia sim."NÃO!", grita Sam. "Eu vou limpar isto AGORA."Toda a tensão entre nós regressa, mas não quero mais nenhuma discussão. Deixo-o na cozinha."Katie", chama-me quando saio."Quase a bater no icebergue, Katie", diz Bells de novo. "Katie, olha."Sento-me ao lado dela. "Os broncos! O que é que tu lhes chamas, Bells?""Broncos." Ri-se histericamente, com uns curtos, agudos e contagiantes gorjeios. Vejo o seu rosto iluminar-se ao fixar o ecrã."CHOQUE!" Rimos as duas ao mesmo tempo. "Rebobina."19Tive este estranhíssimo sonho de estar a cantar "Purple Rain" diante de Simon Cowell, vestindo apenas uma boa de plumas cor-de-rosa. Disse-me que não era exactamente o que ele procurava. Eu não tinha, decididamente, o factor-X. Sorrio para mim mesma. Sonho frequentemente com celebridades. Já saí com o Harrison Ford, Tom Cruise escolheu-me depois de a Kate Moss e o Gwynneth Paltrow é um dos meus amigos íntimos. Ligo a chaleira eléctrica. 40 Sam já saiu de casa. O seu despertador começou a tocar tão cedo que eu pensei que ainda estávamos a meio da noite."Bom dia, como estás, Bells?" Solto um enorme bocejo. "Dormiste bem?" "Aborrecida." Abre uma lata de Coca-Cola Light."Estás aborrecida? O que esperavas fazer às sete e meia da manhã?"Encolhe os ombros. Veste o seu folgado fato de treino cinzento com a t-shirt vermelha da Universidade de Oxford, que agora se encontra cheia de nódoas de chocolate na parte da frente. "Tenho de pôr roupa a lavar", afirmo peremptoriamente, ainda tentando acordar.Abro as persianas e semicerro os olhos. A luz do sol flui através da janela. Estiraço os braços por cima da cabeça e deixo escapar um profundo suspiro. A Bells continua a comer tranquilamente os seus alperces e figos cortados, dando ocasionalmente umas pontadas à escultura garrafa-de-leite. Está a ouvir Stevie Wonder. Pobre velho Stevie, não tem um dia de descanso. Quero calá-lo, é demasiado cedo. 0 déjà-vu assalta-me. Damos connosco tão amarrados a umaALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSrotina que acabamos a dar voltas e voltas como um velho e descaracterizado par de meias dentro de uma máquina de lavar. Acordar, ir correr, tomar o pequeno_ almoço, ir trabalhar, vir para casa, sair, ir para a cama. Não me estou a queixar, gosto da minha vida, mas é demasiado ordenada e planeada. Sou como um robot.

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Hoje vou faltar à minha corrida matinal. Vou fazer uma sanduíche de bacon para o meu pequeno-almoço, com montes de ketchup de tomate. Vá lá, Katie, sê rebelde! Tomo uma resolução ainda m ais ousada decidindo tirar dois dias seguidos de folga. Verei se a Eve não se importa de ficar sozinha. Acho que ela gosta da responsabilidade de chefiar. "Hoje vamos sair", digo à Bells, planeando imediatamente o dia na minha cabeça."Onde? À loja?""Não, é uma surpresa, vais ver", digo, tentando esconder o meu próprio entusiasmo. "Veste-te depressa. Olha para este sol, Bells. Está um dia lindo."Ela começa a agitar as mãos, como se estivesse a conduzir os seus desordenados pensamentos. "Sobe as escadas!", digo-lhe outra vez. "O teu macacão está no guarda-fato, eu lavei-to, e hoje está muito calor, por isso veste qualquer coisa fresca. Não enfies cinco camisolas fedorentas!""A onde vamos?""É uma surpresa.""O Mark pode vir connosco?""Sim! Óptima ideia!" Procuro dentro da minha mala e dou-lhe o pedaço de papel com o seu número de telefone, agora todo amarrotado e rasgado nas pontas. "Telefona-lhe", digo-lhe.

Sinto uma ligeira pontada de remorso por faltar de novo ao trabalho, mas desaparece quando vejo a Bells. Ela balança-se com entusiasmo, batendo palmas. Depois de aguardarmos hora e meia na fila, encontramo-nos finalmente na nossa cápsula de vidro, propulsionada a trinta metros do chão, e estamos rodeadas de turistas. O Mark não estava em casa. Fiquei ridiculamente entusiasmada com a ideia de o encontrar novamente, mas ao mesmo tempo aliviada por não atender o telefone. É bom passar algum tempo com a Bells, só nós as duas."Não se mexe?", diz Bells ansiosamente. "Avariada, avariada!""Estamos em movimento, garanto-te. Aparentemente estamos a andarvinte cinco centímetros por segundo", digo-lhe, enfiando-lhe os binóculos do Sam no pescoço. "Dá uma espreitadela." Coloco-me mesmo atrás dela. Depois de o duche cheira a Persil e a lima. "Consegues ver toda a cidade de Londres daqui, Bells", digo-lhe, apontando para diferentes pontos de referência. "Não te faz sentir minúscula? Como uma formiga." Tem a respiração pesada. "Ali está o Big-Ben... o parlamento... olha, consegues ver o Palácio de Buckingham, nde vive a Rainha. Não é incrível?""Sim, Katie, sim."A Bells deixa de espreitar através dos binóculos e coloca as mãos atrás da beça, baloiçando-a para a frente e virando-a em seguida para o outro lado. nto-me no banco, no meio do nosso grupo, e estico as pernas, com o sol a ter-me no rosto. Trago o meu vestido de Verão preto e branco às pintas com sandálias brancas de pele e salto raso, e o meu cabelo está apanhado num scontraído rabo-de-cavalo. As sardas à volta do meu nariz floresceram com o o seu esplendor."MIRA! MIRA!", grita o grupo de espanhóis que partilha connosco a sula, correndo para o sítio onde está Bells. Ela bate palmas, apanhada de presa pelo entusiasmo deles. "Mira!" Apontam para longe. A Bells olha na ecção deles, a seguir olha para mim e mais uma vez olha para eles. Correm o outro lado numa frenética debandada e ela segue-os.Um casal japonês aproveita todas as oportunidades para se fotografarem ao outro com a sua Polaroid. "Ah", suspiram repetidamente ao verem as ografias. Perguntam-me se lhes posso tirar uma fotografia dos dois juntos e elaçam os braços antes do flash disparar. A Bells corre para junto de mim les oferecem-se para nos tirarem uma fotografia. Bells

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está agora a dar adas nas suas coxas, mas logo corre para um dos lados da cápsula, mando-me: "Olha, Katie, olha! Londres. Onde está a casa do Sam?""Vira-te só por um segundo", digo-lhe. Ela volta-se e eu faço sinal ao onês para nos tirar a fotografia rapidamente, antes que ela fuja de novo.

Bells e eu estamos deitadas em cima de uma manta de xadrez amarelo claroo parque de St. James, a contemplar o cristalino céu azul. Acabámos demer o nosso piquenique neste preciso momento: chamuças de legumes coma Coca-Cola Light para a Bells, uma Pimm's e um pacote de sushi do MarkALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS& Spencer para mim, com dois enormes pedaços de bolo de chocolate. "Não há nuvens, Bells. Apenas um céu azul límpido, como o mar. "Não há nuvens fofas", repete ela. "No País de Gales temos mar." "Tens saudades do País de Gales?""Sim." Abana a cabeça. "Não. Um bocadinho.""Do que sentes falta?""Do Ted.""Quem é o Ted?""O meu amigo." Sorri maliciosamente, sacudindo incansavelmente as pernas que derrubam os copos.Deito-me sobre o meu cotovelo e olho para ela. "A sério? Então o Ted é o sortudo. Guardaste muito bem esse segredo. És uma fonte de surpresas, Bells.""Uma fonte de surpresas", ri-se ela para mim. "O Ted é só um amigo, o meu amigo. O Ted tem um papagaio como o avô.""És feliz lá?""Sim, Katie, sim. Às vezes triste", acrescenta."Porquê triste?""Saudades de casa, saudades da mãe, do pai."Reparo que ela não me acrescenta à lista. Mordo o lábio com força. Por que razão o faria? Apesar disso, surpreendo-me com a intensidade do meu desejo em ser acrescentada à lista. "Tenho a certeza que eles também têm saudades tuas", digo-lhe. "Vamos telefonar-lhes agora, vamos contar-lhes que estivemos no céu."Tiro o telemóvel de dentro da mala e marco os números. O telefone deles está desligado. Eu já sabia que isto iria acontecer. Não têm emenda. Devia ter insistido para que o pai ou a mãe me dessem o número dos Walters. Porque não mo deram? "Não atendem", digo a Bells. "Quantas vezes te telefonam para o País de Gales?""Uma vez por semana."Bem, eles têm telefonado duas vezes por semana desde que ela está comigo, no entanto, de todas as vezes que ligaram pareceram-me estranhamente distantes. Por que razão este inquietante sentimento de que algo está mal não desaparece? "Conta-me mais coisas sobre País de Gales. Que fazes durante o dia?""Vou à escola na segunda-feira.""Que fazes lá?""Aprendo respeito.""Respeito?""Para com as outras pessoas", diz-me ela. "Aprendo saúde e segurança também.""D que é que isso trata?""Na cozinha. Regras contra incêndios e de segurança.""Ah, percebo. É muito importante, uma vez que és a Rainha da Cozinha, não é verdade?"

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"Isso mesmo. Eu a Rainha.""Gostas da escola?""Sim, adoro a escola.""Que mais fazes?""Vou todas as semanas ao clube de futebol para ver a minha equipa jogar. Vejo o Budge jogar. O Budge é muito bonito. Cozinho. O Ted e eu fazemos coisas, tecelagem e pintura, vemos vídeos de futebol. Limpo quartos, faço camas.""Estás numa escala de serviço? Tu arrumas os quartos e fazes as camas numa semana e o Ted na seguinte?""Sim, é isso, Katie, isso mesmo. Escala de serviço.""Queres limpar o meu quarto e fazer a minha cama?", pergunto-lhe sorrindo."Muito engraçada, Katie!"Apercebo-me do pouco que sei a respeito de Bells. Conheço um pequeno fragmento da sua infância e é tudo. Nunca me quis envolver, mas agora... "Já percebi porque te aborreces comigo. Tirando estes últimos dois dias, não fizeste praticamente nada no resto do tempo.""Às vezes aborreço-me, é verdade Katie." Ri-se. "Tu casas com o Sam?" "Tento esquivar-me à pergunta. "Como é que conseguiste aprender a cozinhar tão bem, Bells?""Tu casas com o Sam?", pergunta de novo, bastante insistentemente. "Não me estou a ver a casar com ninguém, pelo menos por enquanto. Bells, não te estás a escaldar, pois não? É melhor espalharmos um pouco deALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSprotector solar, não se vá dar o caso." Procuro dentro do cesto o frasco do protector. "Senta-te quieta." Espalho o creme suavemente pela sua testa e maçãs do rosto. Ela nem pestaneja. A sua pele é tão pálida que se assemelha a uma boneca de porcelana chinesa e tão macia como caxemira. Olho para ela e custa-me a acreditar que tem vinte e dois anos, apenas sete anos mais novaque eu."Para onde estás a olhar?""PARA TI", respondo-lhe, limpando-lhe os restos de chocolate dos cantos da boca e despejando-lhe uma enorme quantidade de creme por cima do nariz, o que me fez rir."Não tem piada, Katie.""Eu acho que tem muita piada", respondo-lhe, começando a arrumar as nossas coisas.

A Bells e eu sentamo-nos no autocarro; estamos na hora de ponta e o trânsito circula lento como uma lesma. Depois de o piquenique fomos às compras na King's Road. Bells parecia a Peggy a comandar, tive de arrastá-la para dentro de algumas lojas, à excepção da de caridade, onde lhe encontrámos um par de sapatos vermelhos com trevos bordados. Caso não encontrássemos uma empregada solícita em nenhuma das lojas atiraria, muito simplesmente, e como diria Sam, "a toalha ao tapete". Por que razão haveriam de pôr os olhos no meu cartão Visa? No fim, com a ajuda de uma adorável empregada de balcão, encontrámos para Bells um vestido chinês vermelho escuro e dourado, com um casaco a combinar. "Gostas?", perguntou à rapariga."Adoro." A rapariga sorriu-lhe abertamente, ajoelhando-se e ajustando a bainha. "Acho que fica lindo de morrer, vais ser a mais bela do baile." Pensei que o meu coração ia rebentar quando vi Bells a mirar-se orgulhosamente ao espelho, o seu fato complementado com os sapatos que tínhamos comprado. Dei comigo a desejar que a mãe a pudesse ver tão moderna e elegante. Quando a Bells se afastou agradeci à emprega. "Porquê?" Ficou quase estupefacta. "E a minha obrigação."

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Percebe o que quero dizer", acrescentei."Diverti-me mais hoje que durante todo o tempo que aqui passei", disse ela. "E estou cá há mais de um ano."Aposto que aquela empregada simpática chegará hoje a casa e contará à sua companheira de quarto, namorado, ou seja lá o que for, que conseguiu arranjar um fato elegantíssimo para uma cliente ligeiramente invulgar."Puxa o meu dedo", pede Bells. Viro-me e olho para ela desconfiada. No momento em que lhe puxo o dedo ela deita a língua de fora e começa a contorcer-se de riso. A mulher de cabelo grisalho sentada à nossa frente olha para nós com uma expressão estranha e regressa ao seu livro de bolso."Puxa o meu." Estendo-lhe o dedo adelgaçado. Estou a usar o anel de prata ade três voltas que o Sam me deu e tenho as unhas pintadas de rosa pálido. enho as mãos como as do meu pai, com os mesmos dedos finos. Ele tem ambém umas veias azuis bastante proeminentes. O pai diz que temos realeza o sangue. A Bells debruça-se para me agarrar no dedo."Azar, falhaste", exclamo, retirando rapidamente a minha mão.Ela ri-se e a mulher à nossa frente fixa directamente em Bells os seus olhos uis gélidos. Tenho vontade de lhe dizer que pare de se embasbacar. Quando a bastante mais nova, odiava que as pessoas, no supermercado, na rua, ou na ragem do autocarro se pusessem a olhar embasbacadas para Bells. Eu própria u culpada de querer esconder a minha irmã, por ter medo de me sentir nvergonhada por ela, mas, no entanto, surpreendo-me ao constatar o quanto Onda me irrita o facto das pessoas serem mal-educadas ou fixarem, estarre-'das, o olhar em Bells. Quem são elas para julgar quem quer que seja? mexo-me no meu assento. Ela ainda está a olhar para nós. Faz-me sentir uco à vontade, mas, pelo menos, Bells parece não se aperceber, ou será que apercebe? A mãe e o pai costumavam dizer aos estranhos qual era o problema • la. O pai explicava-me sempre: "Isso deixa-os mais tranquilos. Normal-ente, as pessoas fixam o olhar por medo ou por ignorância. É preciso muito forço para as sossegar. Não devia ser necessário, mas é assim que funciona.""Oh, minha querida." Abano solenemente a cabeça para Bells. "Muito atrasada! Perdes a jogada!""Não tem piada, Katie!", grita ela entusiasmada, batendo palmas."Puxa-me o dedo, vá lá." Ela falha outra vez. "Desculpa, quem anda a dormir não vai conseguir." É uma expressão de Sam. Duvido que ele a tenha inventado para ser usada neste preciso contexto, no entanto... "Merda, é a nossa paragem!" Agarro nos sacos e a Bells segue-me. "Cuidado com o degrau."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSQuem me dera ter dito qualquer coisa, penso para comigo quando o rosto azed0 daquela mulher se encrespa e volta a embrenhar-se, desdenhosamente, no seu livro,A Bells aponta animadamente para cada um dos tabuleiros expostos no balcão — cuscuz com pinhões e pimentos, bolo de cenoura com cobertura de creme de laranja e manteiga, pão ciabatta quente, com azeitonas ou espinafres, bolos de arroz com alho. Comprámos gengibre para fazermos um delicado pudim de gengibre "como aquele que a mãe costumava fazer", diz-me ela. Comprei alguns pistachios, pão fresco e azeitonas. A Emma vem jantar a nossa casa esta noite com o expresso propósito de visitar Bells."Achas que a mãe come coisas boas lá em França?", pergunta-me Bells. "Aposto que ela anda a comer como uma rainha e nem sequer tem de lavar a loiça."A Bells inclina-se para a frente. "Não há água quente com sabão?"

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"Nem me vou aproximar daqueles chilis", digo-lhe quando ela se dirige a Eddie e lhe pede três malaguetas vermelhas. Ela quer fazer um molho de chili para as suas salsichas vegetarianas. "A última vez que os piquei esqueci-me de lavar as mãos, toquei no meu nariz e, caramba, ia morrendo!" Ri-me. "O Sam esteve quase a chamar um médico.""Não tem piada, Katie." Ela aproxima-se e afaga-me levemente no ombro."Pois não, não tem piada nenhuma!", continuo, ainda deleitada com o seu toque. Pela primeira vez esboça um gesto afectuoso e isso faz-me sentir como se alguém me envolvesse numa toalha quente e macia."Deveria ter sido uma noite romântica e eu tive de a passar integralmente com a cabeça mergulhada numa bacia de água fria.""Que desagradável, Katie", diz o Eddie. "É tudo, meninas?" Tinha-me esquecido que ele estava ali. Tem vestido um curto avental azul que deixa à mostra as suas pernas peludas, as quais terminam numas sandálias castanhas com peúgas."Tens alguma coisa vestida por baixo?", pergunta-lhe a Bells."Isso querias tu saber, não é verdade?", responde, piscando-lhe o olho. "Quanto tempo vais ainda ficar, Bells?"

"Dois dia.""Garantes que te vens despedir, não garantes?", disse ele.ão, preferia a mesa do canto, por favor... hum, cerca das sete e trinta... obrigado", ouço o Sam murmurar quando eu e a Bells entramos na a. Pousa o telefone. "Vou levar-vos, a ti e à Isabel, a sair amanhã à noite, ser a última noite que ela passa em Londres", anuncia orgulhosamente."Vais?", olho para ele com estranheza, perguntando-me que teria subitante acontecido para justificar tudo aquilo..,"Vou", declara, e olha para a Bells à espera de uma resposta."Então, onde nos levas? Bells, ouviste aquilo? O Sam vai levar-nos... a mim " estou tentada a acrescentar `as duas malcheirosas', porque ele ainda se aproximou de nós desde a chegada da Bells, "... à cidade."Ela abana a cabeça.O Sam olha desapontado. "Vamos ao meu restaurante favorito. Têm a or carta de vinhos da cidade", estalou a língua contra o céu-da-boca, "e um bife de qualidade superior...""A Bells não bebe", não consigo deixar de acrescentar."Não come carne", termina ela.Sinto-me mal por parecer ingrata. "Sam, é uma ideia maravilhosa, obri-

"Obrigada", murmura a Bells, ligando o Stevie Wonder.Eu e o Sam vamos para o andar de cima. "Tive um dos meus melhores ", digo-lhe, sentando-me na cama e atirando os sapatos para longe. "A sério? No trabalho?", deita-se a meu lado."Não, com a Bells. Fomos ao London Eye, fizemos um piquenique, fomos ili compras e a Bells comprou um fato para o casamento da Emma. Sinto-me realmente como se a começasse agora a conhecer.""Que queres dizer com começar a conhecê-la? É tua irmã.""O que quero dizer é...""Esta noite vou ao ginásio, queres vir?", perguntou."Não." Abano a cabeça. "Vai tu.""Preciso de comprar outro par de ténis", está a sussurrar. "Lembra-te, quando a Bells se for embora, vamos passar o fim-de-semana fora." Está um livro com sugestões de hotéis na sua mesa-de-cabeceira, que apanha e abre na página marcada. "Marquei a Moroccan

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Suite, Katie. Olha para isto, é linda. No próximo fim-de-semana, querida, precisamos de dar uma escapadela. OlhaALICE PETERSONpara este sítio." Aponta de novo para a fotografia. "A onde estão os meus ténis?"O quarto do hotel parece um mini-paraíso. Uma cama de dossel com lençóis brancos de linho, estores azul pálido e azulejos de um azul cremoso com padrões ornamentais na casa de banho. Pequenas janelas com vista para os jardins. É muito tentador. "Parece agradável...""Agradável? Não quero `agradável', Katie. Quero `fantástico'. O sítio está agora na sua fase mais bela, no Verão, quando todas as rosas desabrocharam. Este hotel é o máximo do momento. Quero dizer, até a Madonna lá esteve", vangloria-se o Sam. "Pergunto sempre que celebridades lá ficaram. Lembras-te da minha teoria? Se são estrelas de telenovela, isso geralmente significa que é foleiro. Mas se a Madonna lá ficou, penso que podemos estar seguros de ser um lugar elegante. Até perguntei se podíamos ficar com o quarto onde ela esteve,e eles disseram-me que iam ver o que podiam fazer. Imagina só, eu e a minha senhora dormindo na suite da Madonna."Sorrio. "Tu és...", estou quase a dizer `um triste pretensioso', mas quando olhei para ele, calei-me. Os olhos e a boca do Sam não vacilaram nem por uma fracção de segundo. Estará ele plenamente convicto do que diz? Ficarei eu normalmente impressionada com tudo isto? Sim, suponho que sim. Mas tudoo que agora lhe quero dizer é: `Que me importa?'"Sam, esqueci-me completamente do nosso fim-de-semana fora", comecei, hesitante."Isso não é importante." Encontra finalmente os ténis no saco de desporto que leva para o trabalho. "Está tudo marcado. Está feito e não mexe mais. Tudoo que tens a fazer é gozá-lo. Há um spa e um salão de beleza. Podes fazer um tratamento de algas, aparentemente limpa as toxinas acumuladas. Vocês, raparigas, são engraçadas. Agora tenho de ir."Ergue-se frente ao espelho para fazer um arranjo de última hora ao cabelo. 'Anseio por ter esta casa de novo só para nós.""Hum... também eu.""Sem ofensa à tua irmã, nada disso, mas, bem, tu sabes o que quero dizer."Tenho vontade de gritar: ela hoje tocou-me no braço e senti-me maravilho-;amente. Devias ter visto a expressão dela quando a levei ao London Eye. Foiim momento de puro júbilo, e eu fui responsável por isso. Fizemos brinca-OLHAR NOS OLHOSdeiras tolas no autocarro e foi divertido andar a fazer loucuras com ela. Hoje senti-me viva. Quero dizer tudo isto ao Sam, sofro por dizer a alguém; mas não creio que signifique alguma coisa para ele.Contarei tudo isto a Emma esta noite, quando ela chegar. Mal posso esperar para lhe contar. Há apenas algumas semanas estava a dizer-lhe o quanto temia a vinda da Bells. Agora quero contar-lhe o quão estúpida tenho sido, como tenho andado equivocada. Como fui palerma ao ficar preocupada por dar a conhecer a minha irmã ao Sam. Quero contar a Emma que nos estamosa entender maravilhosamente.O Sam dá-me um beijo, trazendo-me de volta à realidade. "Dentro de alguns dias voltamos a ser apenas nós dois, rapariga." Enquanto o beijo não consigo deixar de pensar que me devia sentir aliviada por as duas semanas estarem prestes a terminar, não devia? Porém, em vez disso, a perspectiva de dizer adeus à Bells faz-me sentir estranhamente vazia.

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OLHAR NOS OLHOS20"Quando é que, bem, quando é que vais para casa, Isabel?", pergunta o Sr. ckers. Ele passou pela loja quando terminou o turno no emprego e a Bells rreu para o cumprimentar."Amanhã, apanho comboio de Paddington. Faz aquelas tuas coisas engradas", pede Bells.Ele olha para mim com nervosismo. Não ousa interpretar o homem no mboio agarrando-se à alça, coisa que seguramente faria se eu não estivesse sente na mesma sala.Aclaro a minha voz. "Sr. Vickers, gostaria de tomar um chá connosco?" Esta pergunta deixa-o atordoado. "Bem, bem..." Olha para Bells. "Fique, Sr. Vickers", insiste ela."Que, bem, que gentileza, bem, que gentileza da vossa parte. São muito áveis. Sim, agradeço."Deixo-os no piso de baixo enquanto subo ao armazém. A Eve foi num alinho comprar leite, voltará num minuto. Faço o chá, levo-o para baixo e deparo-me com o Sr. Vickers a exibir-se para Bells. Parece transformar-se nummediante confiante quando representa para uma audiência. "Quem é, bem, este?", pigarreia, franze os lábios e coloca as suas enormes mãos vermelhas atrás das costas. "Estas plantas parecem-me realmente interessantes, bastante dignas de nota.""Não sei. Quem?"A Bells agita o braço pedindo uma resposta.ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Olá, Sr. Vickers", cumprimenta Eve ao regressar com o leite.Entrego-lhe uma chávena de chá e um bolo de massa folhada com creme. A Bells adora bolos de massa folhada com creme."Muito obrigado", agradece de novo. "Sabem, bem, sabem quem é?" Olha para cada uma de nós à vez."Eu não vi a imitação como deve ser", diz Eve. "Pode fazê-la de novo?"Sente-se lisonjeado com a atenção que lhe dispensam e prepara-se para repetir a interpretação, adoptando um tom de voz elegante e colocando as mãos atrás das costas. "Estas plantas parecem-me realmente interessantes, bastante dignas de nota.""Oh, meu Deus", exclama a Eve, dando saltinhos, "Eu sei quem é, conheço esta voz.""Também eu! O Príncipe Charles", antecipo-me.O rosto do Sr. Vickers desmancha-se num sorriso e eu dou comigo a responder-lhe com outro sorriso. Tem uns olhos fundos, tristes e fatigados, como se já tivesse assistido a muita maldade no mundo, mas quando sorri todo o seu rosto se altera. Tem uma bondade congénita, como o tio Roger, um rosto incapaz de dizer uma mentira. "Bem, sim, acertaste, bem...""Katie. Trate-me por Katie", peço-lhe."Mais uma." Bells bate palmas."Qual é o teu, bem, o teu passatempo preferido?", pergunta-lhe o Sr. Vickers.A Bells olha para mim. "Gostas de cozinhar?", sugiro."Cozinhar", repete ela.Ele põe-se a pensar. "Já sei uma." Agarra no seu folhado recheado e dá-lhe uma dentada. "Delicioso", pronuncia lentamente, de modo arrastado. "Tem a consistência exacta." Lambe os dedos. "Bem, depois de muito reflectir e cogitar, penso que...""Já sei", interrompo eu."O senhor cozinheiro chefe", corta Bells. "Eu sei!" Está aos pulos. "Lloyd Grossman", completo eu.

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"Bem, correcto." Reparo que a sua gaguez regressa quando não está a repre-sentar."Outra!", pede Bells ao mesmo tempo que Henrietta e a mãe entram naloja. Olham estupidamente para a excêntrica festa que decorre em volta da minha de chá. "Por favor fique, Sr. Vickers, e termine o seu chá." Sorrio educadamente para ele. "O meu gestor de conta resolveu visitar-me", digo a Hen e à mãe, apontando para o Sr. Vickers. "Foi muito amável da sua parte visitar-me pessoalmente", acrescento, sorrindo para ele.Isto foi o suficiente para varrer aquele olhar das suas caras.

A Bells, o Sam e eu encontramo-nos sentados num canto do restaurante estudando os menus. Dou outro trago na minha vodka com água tónica e começo a mastigar um enorme pedaço de gelo."Não faças isso, Katie. Faz-te mal aos dentes", pede Sam contorcendo-se. Entra um casal no restaurante. Olha rapidamente para eles e os seus ombros descontraem-se visivelmente de alívio quando se certifica que não os conhece."Olá, Katie." A Bells agarra a minha mão e apercebo-me que tem aquele brinquedo engraçado escondido na sua. Quando apertamos as mãos um som vibrante ecoa pela sala. Ambas desatamos a rir."O que é isso?" Sam franze os sobrolhos. A Bells estende a mão na sua direcção. "Hum, o empregado vem aí, faz isso depois, está bem?", resmunga ele."Eu quero a galinha, por favor", peço ao imberbe empregado quando ele se dirige para a nossa mesa, com o seu digno bloco de notas."Galinha?" Sinto um pontapé debaixo da mesa."Sam, isso magoa.""Katie, estou aqui para te estragar, a ti e à Bells, com requinte. Podemos comer galinha em qualquer dia da semana. Sê um pouco mais audaciosa." Olha para o empregado como quem diz, `Mulheres, que lhes havemos de fazer! Não as podemos levar a nenhum lado'. "Qual é o prato especial da casa?""Temos salmão, o risotto de eglefim fumado também é muito apreciado. Recomendo igualmente os medalhões de porco."Sam fecha delicadamente a sua ementa. "Obrigado, mas penso que prefiro o bife en croúte.""Com certeza, senhor, uma opção muito popular", afirma o empregado. "Como o quer cozinhado?""Mal passado, por favor. Nada supera um bife de primeira categoria." Sam olha de novo para mim. "Escolhe algo diferente, Katie."ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"Mas eu adoro galinha, Sam." Não gosto do tom da minha voz, lamuriento e patético. Como o choro das crianças quando afirmam que não querem comer as cenouras ou as ervilhas.Sorri para mim ao acariciar-me o queixo. "Kitty-q'rida, és um ratinho muito engraçado às vezes, uma criatura de hábitos." Examina a ementa por mim. "E que tal os escalopes, em substituição?""Sim, tens razão", respondo com firmeza. "Os escalopes seria óptimo." "E tu, Isabel?", pergunta ele.A Bells tem estado notavelmente calada. Parece esquisita. Talvez esteja tacituma por se ir embora amanhã?"Tem batatas fritas?"O rosto de Sam desanima-se e agora sou eu a dar-lhe um pontapé por baixo da mesa. "Sim, tenho a certeza que têm batatas fritas, não é verdade?", pergunto ao empregado.

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"Naturalmente.""Porque não experimentas o hambúrguer da casa com batatas fritas?", adianta Sam."A Bells é vegetariana", digo-lhe mais uma vez. Será que ele nunca ouve? Levanta o braço num pedido de desculpa. "Desculpem-me ter falado", resmunga."Bells, porque não escolhes a lasanha vegetariana, acompanhada com batatas fritas?"Estou preocupada com a sua impassibilidade. Pergunto-me se estará nervosa com a ideia de apanhar o comboio amanhã?"Sei escolher a minha própria comida", grita ela, batendo com o cotovelo contra a mesa."Bells, desculpa", peço-lhe. Por vezes descuido-me e falo-lhe como se fosse uma criança. Tenho de acabar com isso. Ela tem vinte e dois anos. "Quero risotto", declara afoitamente."Sam, pede tu o vinho." Empurro a cadeira para trás e sinto-a bater contra a parede. "Não há espaço", exclamo irritada, "era esta a única mesa dispo-nível?" Parece que ficámos com a mesa das crianças, no canto escuro da sala."Receio bem que sim.""A sério? Mas há mesas livres lá fora. Está uma noite tão agradável."Começa a esfregar o nariz. "Vamos mantermo-nos aqui, está bem?"A sua boca começa igualmente a contorcer-se. "Então, que andaram vocês as duas a fazer hoje? Esta é a tua última noite, hem, Isabel? Aposto que estás tnortinha por regressar a casa."Sei que o Sam se está a esforçar, mas só consegue irritar-me."O Sr. Vickers disse adeus. Gosto do Sr. Vickers, homem simpático.""Sr. Vickers? Quem é esse agora? Deixa-me lá confirmar se pedi o vinho dequado", Sam muda rapidamente de assunto. Olho para a minha frente e eparo-me com a figura de um homem vagamente familiar juntando-se ao upo de pessoas que se sentam à nossa frente. Sam está agora a levantar a enta para esconder a cara. O seu telemóvel toca. Segurando ainda a lista m uma mão, atende o telefone com a outra. Começo a conversar com Bells Sam pede rapidamente licença e precipita-se para a porta de acesso aos abos no piso inferior.Ao fim de cinco minutos ainda não regressou. "Bells." Ela aperta outra vez mão e o som faz-se ouvir de novo. Toco-lhe no braço. "Volto num minuto." "Está bem", responde-me com indiferença.Puxei a porta e, nessa altura, vi um grande EMPURRE grafado à minha nte."Oh, amigo, isto é um pesadelo." Detenho-me no cimo das escadas, depois ço silenciosamente e em bicos dos pés um par de degraus e inclino-me sobre corrimão o suficiente para o conseguir ver. Sam está junto à máquina dos garros, de costas voltadas para mim, uma mão encostada à parede. Começa a alto. Penso que está a falar com o Maguire. "É a última noite da Isabel e eu eciso seriamente, mas seriamente, de voltar a estar nas boas graças da Katie. senho-as evitado nos últimos quinze dias." Sam está em silêncio; deve estar a vir alguma coisa de muito profundo. "Muito justo, Maguire, espero maior ção entre os lençóis depois dela se ir embora. Jesus, tem sido como o Deserto o Gobi!"Abro a boca e volto a fechá-la."Digo-te, amigo, quando ela me disse que a irmã vinha passar uns dias nnosco, não esperava isto." Fez uma pausa, como se estivesse a ouvir. "Sim, m, sim... com certeza." Começa a dar pequenos passos no mesmo sítio. "Muito justo, Maguire. Não comprei o pacote com este tipo de brinde."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSNão sei o que pensar.

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"Sim, verei como corre. Quero dizer, amo-a. Pelo menos penso que sim, e sei que ela está louquinha por mim."Inspiro rapidamente. Quem pensa ele que é? Quero atingi-lo muito dura_ mente, ou, ainda melhor, pô-lo em posição e atirar-lhe ovos podres em frente do Maguire e dos restantes colegas de trabalho."Olha, amigo, é melhor ir andando para lhes passar manteiga... Volto para o meu posto, sim, tu sabes como estas coisas são."

Quando o Sam voltou a comida ainda não tinha chegado. "Desculpem lá isto", disse ele, "um cliente, tive de aceitar a chamada."À superfície mantenho-me calma, mas no meu estômago há um nó de fúria. "A sério? Quem era?""Ninguém que devam conhecer, meninas. Todos muito chatos." "O que queriam?", perguntei, casualmente."Porquê tantas perguntas? Era um tipo do trabalho, é tudo. Bolas, Isabel, a tua irmã pode ser uma chata, não é?" Riu-se, esperando que a Bells o imitasse.Observo o Sam e percebo que continua preocupado com o grupo à nossa frente. Está a beber demasiado rapidamente."Conheces aquelas pessoas, Sam? Continuas a olhar para elas?", pergunto, expectante."Não, não creio que conheça. Porque não comemos lá fora? Tinhas razão, está quente, esta noite." Levanta-se e pega no casaco."Não, vamos ficar aqui." Sorrio docemente para ele. "Olha, a nossa comida está a chegar."Sam faz uma careta quando volta a sentar-se."Lakemore?", chama então um homem na sua direcção. "És mesmo tu! Meu Deus!", continua ele."Olá", cumprimenta Sam tentando parecer surpreendido, de braço no ar e rosto afogueado. O robusto homem de óculos caminha na direcção da nossa mesa. É de baixa estatura e formas redondas, com suíças e cabelo castanho encaracolado. Dirijo-lhe um sorriso e aguardo que Sam o apresente. Após um eterno segundo de abissal vazio faço-o eu própria. "Olá, sou a Katie.""Sim, desculpem, é a Katie. Katie, Colin Lucker.""Olá, Katie, encantado por conhecê-la.""Olá, Colin.""Olá", diz Bells estendendo-lhe a mão."Olá, bem...? E quem serás tu?""É a minha irmã, Isabel", digo-lhe."Sou a Bells", corrige-me ela."Olá Bells." Colin aperta-lhe a mão. "Oh, meu Deus, que foi isto?", ri-se nervosamente.Estou prestes a explicar-lhe quando Sam se desata a rir escandalosamente. "Não é hilariante, Colin? É do tipo engraçadinho, a nossa Isabel.""É melhor voltar para a minha mesa." Recua dissimuladamente uns quantos passos. "É bom ver-te de novo, Sammy, meu velho. Temos de nos ;encontrar um destes dias.""Quem é este, Sam?""Apenas o meu antigo patrão", diz ele encolhendo-se de novo atrás do ementa e engolindo outro enorme trago de vinho."A sério? Mas que coincidência. Podíamos tomar o café juntos." O nó desata-se por si. "Sr. Lucker?", chamo-o em voz alta.Apercebo-me que Sam se contorce com o embaraço. "Cristo, Katie. Deixa-o em paz, está bem?"

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"Hum, sim?", responde hesitante Colin Lucker.Sam dá-me agora um pontapé com tanta força que não me atrevo a continuar. "Desculpa, Colin, vamos deixar-te em paz com o teu jantar, por favor ignora-nos", diz-lhe Sam alegremente. "Mulheres! Nem nos deixam comer descansados!" Revira os olhos e volta-se para mim. "Qual é o teu problema?", pergunta-me num sussurro arrastado."Tu", respondo-lhe. Não lhe queria dizer nada, não na última noite de Bells, mas não consegui evitar. Inclino-me para mais perto dele. "Ouvi tudo o que disseste ao telefone mesmo agora. Tudo."Sam passa a mão transpirada pelo cabelo. Faz-se um estranho silêncio. "O quê?", diz ele finalmente."Não compraste o pacote com este tipo de brinde, não é?", tento olhar discretamente para Bells.ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Olá, Katie", diz ela estendendo a mão."Desculpa, Bells. Agora não, respondo-lhe virando-me de novo para Sam, "Não sei do que estás a falar", balbucia ele. "Estava ao telefone com um cliente.""Não mintas!"Não mintas!", repete Bells."Estavas a falar com o Maguire!""Com o Maguire.""De que está a tua irmã a falar?", pergunta ele a Bells, tentando manter a compostura."Sam. Eu ouvi.""Bem, não devias andar a ouvir a merda da conversa dos outros.""OK", concedo respirando fundo. "Não vamos discutir o assunto agora." "O Sam disse a palavra M", ri-se Bells."Bells!", Sam e eu exclamamos ao mesmo tempo."Vais querer sobremesa?", pergunta-me ela."Estou demasiado cheio. Vamos pedir a conta." Sam volta-se para atrair a atenção do empregado."Quero sobremesa."Permite a Bells uma pequena sobremesa de chocolate. Enquanto ela a come pega no casaco que está nas costas da cadeira e diz-me que vai pagar a conta e que temos de estar à porta dentro de cinco minutos. Em ponto.

Sam dobra a esquina no seu BMW a alta velocidade."Porque estás a conduzir tão depressa?", pergunto-lhe quando nos projectamos para outra curva. "Vai mais devagar, Sam." Pressiono o meu pé num travão imaginário."Está tudo bem, cala-te. Estes carros estão preparados para acelerar." Carrega ainda mais no acelerador."Não tem piada, Sam, não tem piada." A Bells luta contra o seu cinto de segurança."Bells, não tires o cinto", digo-lhe.Oiço um dique e em seguida abre a porta. Viro-me rapidamente. A porta balança escancarada e quase bate num poste de iluminação."Credo!", grita Sam. Agarra o folgado camisolão de Bells e puxa-a para dentro do carro, mantendo a outra mão firmemente ancorada ao volante forrado de cabedal."Encosta o carro!", grito, virando-me para Bells, para a estrada, para Sam, e de novo para Bells. "Sam, PÁRA!"

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Encosta abruptamente o carro, com os pneus chiando contra o alcatrão, e desliga o motor. Felizmente ninguém conduzia atrás de nós."Não tem piada, Sam. Não tem piada", repreende-o Bells."Cristo, Todo-poderoso", repete ele, quase a chorar, com a cabeça entre as mãos. "O meu carro novo."

"Quase caíste do carro do Sam, Bells. Tens de ter cuidado." Ajudo-a a subir para a cama."Muito depressa, Katie.""Eu sei.""Tinha medo.""Também eu, mas podias ter-te magoado mesmo a sério."Ela continua silenciosa."Boa noite, Bells, dorme bem." Apago a luz principal."Nada à minha volta?""Nada à tua volta.""Juras?""Juro."21Estou de pé em cima da cama de Bells para retirar da parede o poster de Stevie Wonder. O dos Beatles também já foi arrancado da porta. Abro o :guarda-fato e retiro o vestido chinês que comprámos para levar ao casamento.Dobramos e juntamos os seus folgados camisolões, camisas e esburacadas camisolas interiores. Dispomos tudo dentro do saco com fecho de correr, ,juntamente com uma misturada de tralha, que inclui o brinquedo sonoro do ':perta mãos, os seus CD, o bloco de notas, o álbum de fotografias, a caixa de pinturas e os crachás do futebol. "Queres calçar estas.... ou estas?" Mostro-lhe as enormes botas pretas e o par púrpura estilo duende. Hoje veste uma t-shirt ;preta com uma pequena estrela prateada ao meio, que lhe dei lá da loja, e que, :,infelizmente, ela oculta com o peitilho do seu macacão. Decide-se pelas botas .estilo duende.O seu saco grande com fecho de correr está finalmente completo, ficou-nos '',:apenas um CD do Stevie Wonder por encontrar. "Eu mando-to, prometo."Bells não parece muito incomodada com isso. Diz-me que irá retirar os lençóis da cama, tal como fazem em casa."Adeus, Isabel. Foi bom conhecer-te, tens de voltar a visitar-nos", diz Sam, de pé à porta do quarto dela, com os seus jeans e casaco de cabedal vestidos. É engraçado como as pessoas se tornam tão simpáticas connosco quando estamos de partida. Sam não quer que a Bells torne a visitar-nos, mas apesar de tudo não posso censurá-lo por querer ter novamente a sua casa para si. PareceALICE PETERSONcozinha se não cozinhas, Sam? que fazes com uma"Obrigada, Sam." Ela adianta-se e aperta-lhe a mão. "Foi um prazer . No problema." Sente-se agradado pelo facto dela lhe ter agradecido sem nenhum tipo de incitamento. "Katie, vejo-te mais logo." Sam e eu não trocámos uma palavra a noite passada. Quando acabei de deitar a Bells já ele estava a dormir no sofá, e eu deixei-o lá. Esta manhã disse-lhe que precisávamos de conversar. Agora vai-se embora e minutos depois oiço a porta da rua fechar-se."Muito bem, preparada para o rock roll?", pergunto-lhe levando a mão à boca. Irreflectidamente, digo coisas que o Sam repete mecanicamente, o que me começa a preocupar. "Vamos lá, temos de ir andando."

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Bells diz adeus ao quarto.Pego na sua mala e fecho a porta atrás de nós."Os passageiros com destino a Haverford West devem efectuar o transbordo em Swansea", anunciam os altifalantes. As pessoas à nossa volta agitam-se enquanto eu e a Bells esperamos junto ao balcão das informações por Fiona, um dos elementos da equipa do País de Gales. Ela vai acompanhar Bells na viagem de regresso a casa. Está atrasada e o comboio parte dentro de dezminutos."Tens o teu bilhete?" "Sim, Katie.""Como é que a Fiona se parece?" Esquadrinho a multidão. Estaremos nosítio errado?"É gorda.""Bells!", rio-me para ela. "Como uma perdiz.""O Eddie e a Eve iam adorar ver-te outra vez. Voltas a visitar-nos, não é verdade?" Adoraria ver-te outra vez, é o que lhe deveria estar a dizer. "Gente muito simpática. Gostava de ver o Mark outra vez."OLHAR NOS OLHOSsei, eu também." Ainda penso no Mark e no que fez por nós. Não .mos encontrarmo-nos de novo e agora que Bells se vai embora, já não retexto para lhe telefonar. No entanto, não acredito que nunca mais o a ver. Estaria destinado a entrar nas nossas vidas apenas por uma breve "Se o vir que recado queres que lhe dê, da tua parte?"lls começa a baloiçar-se para a frente e para trás. "Que me escreva." a rir-se como se tivesse acabado de dizer uma obscenidade.está a Fiona", diz Bells, com as mãos numa enorme agitação. Não tenho a se está nervosa ou excitada. Fiona bamboleia-se na nossa direcção, com uma algodão axadrezada e uma blusa branca franzida na gola., sou a Katie." Aperto-lhe a mão.lá", responde. "Olá Bells. Como estás? A Mary Verónica teve muitas es tuas, ela voltou ontem." Agarra no saco de Bells e eu sigo as duas. "É r despacharmo-nos, estou atrasada, não é verdade? Pensei que tínhamos finado encontrarmo-nos junto da bilheteira?" Vira-se ligeiramente para

Não, tenho a certeza que combinámos..."Não faz mal, Katie, está tudo bem. Foi divertido?", continua ela.Sim, divertido", responde a Bells. Fiona encaminha-nos para a plataforma ta, onde o comboio aguarda. Não terei tempo para lhe dizer nada agora. irei em pânico. Quase corro para as acompanhar. Tive a manhã inteira para dizer que gostaria de visitá-la e que adorei os últimos dias que passámos tas, mas não lhe disse nada. "Tens o teu bilhete?", foi a soma de tudo."Fomos ao London Eye", continua Bells. "Vi Londres inteira.""Que maravilha!", diz Fiona. "Ao que parece passaste umas férias fabulosas." Vira-se para mim. "Obrigada, Katie. É melhor entrarmos, o comboio parte às nove e vinte e nove. Dois minutos."Olho para o grande relógio, com o ponteiro dos segundos saltitando."Temos de garantir que nos sentamos perto da carruagem-bar", diz Fiona, subindo para o comboio. A Bells segue-a. "Diz adeus à tua irmã, Bells."NÃO! Apetece-me gritar. Não foi assim que imaginei a despedida. Quero dizer-lhe adeus decentemente. Deixem-nos em paz."Tchau, Katie, tchau." Bells pára num dos degraus e tenta virar-se para trás.

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aliviado quando olha em volta e vê o quarto limpo e arrumado. De volta à s habitual rotina. Nada fora dos lugares; os CD estão dentro das caixasas superfícies da cozinha estão literalmente a brilhar de tão limpas co que serrectas' encontram. Vou sentir a falta dos cozinhados da Bells. OALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Afastem-se das portas", avisa o revisor enquanto Fiona arruma a mala de Bells na grelha porta-bagagens por cima do lugar."Isabel, tem cuidado. Cuidado com esse espaço de intervalo. Vem já para dentro", ordena Fiona."Xau, Bells", chamo pateticamente por trás dela. Ela volta-se e acena-me. "Xau, Katie. Obrigada por me teres recebido." Vejo-as, a ela e a Fiona, tomarem os seus lugares. A Bells senta-se à janela com Fiona a seu lado. A Bells olha pela janela e acena outra vez. Bate com a mão no vidro. O revisor sopra o apito."NÃO, espere, pare!" Empurro o revisor e primo o botão vermelho que abre as portas automáticas de acesso ao interior das carruagens. Fiona vai dizer qualquer coisa, mas não a deixo. "Quero apenas dizer adeus à minha irmã, como deve ser", digo, engolindo com dificuldade."Olá, Katie", diz a Bells."Olá, Bells", digo, com os olhos começando a engrossar. "Eu..." Agora nãoestragues tudo. Os outros passageiros começaram a suspirar e a respirar pesadamente à nossa volta. "Desculpe", diz o revisor, "temos de partir. A menos que vá viajar até Swansea, importa-se de sair do comboio?""Vamos a despachar!", diz um jovem, zombeteiro, arremessando uma bola de ténis na minha direcção. Atingiu a Fiona na testa e a Bells desatou a rir inapropriadamente. "Alguns de nós estão com pressa."Encolhi-me. "Fiona, desculpa, isso doeu-te?""Bem, doeu, e bastante." Sentou-se numa posição mais direita."Pira-te!", diz o seu amigo. Os passageiros normalmente vão tão macam-búzios que não dizem uma palavra uns aos outros. Porque estão hoje tão baru-lhentos?"Calados, ela quer dizer adeus à irmã", diz o passageiro sentado em frente da Fiona e da Bells. Sorrio-lhe agradecida."Sim! Deixem-na ficar e despedir-se de forma simpática e agradável", acrescentou outro.Agora, até a Fiona sorri para mim. "Vá lá, rápido, despede-te", apressa-me.Inclino-me transversalmente e beijo a Bells de modo desajeitado na copa do chapéu bordado. A minha mala de mão bate com força no enorme estômago da Fiona. "Irei ver-te, e começarei a escrever, prometo. E tu, vais voltar a Londres?""Sim, Katie, sim."Atrevo-me a fazer um último movimento antes de ser atirada para fora do comboio. Beijo-a na bochecha. "Adeus, Bells. Gostei muito de te ter cá." Vasculho a minha mala e encontro a fotografia que o casal japonês nos tirou no London Eye. Fiz uma cópia para mim no computador do Sam. "Guarda-a com cuidado, mostra-a aos teus amigos do País de Gales. Cola-a no teuálbum.""Sim, Katie, vou colá-la. Fotografia amorosa. Obrigada, Katie. Obrigada."O revisor vira os olhos na minha direcção e sopra finalmente o apito. Corro ao longo da plataforma para me manter a par do comboio em movimento. A Bells acena para mim e eu aceno para ela, as lágrimas correm-me pelo rosto. "Adeus, Bells. Adeus." Aceno uma última vez.

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Olhei em frente sem saber que fazer a seguir. Endireito o vestido, atiro o cabelo para trás e respiro profundamente. Vais em frente e a tua vida prossegue, digo a mim mesma. Dou um meio sorriso. Pelo menos disse-lhe. Podia tê-la deixado ir sem lhe dizer nada, mas não o fiz. Disse-lhe o quanto tinha gostado de a ter por cá; sinto que recomeçámos. Sinto que uma pequena parte da minha família voltou para mim.Afasto-me do silêncio da plataforma vazia e volto para a agitação domundo normal.22A casa parece-me terrivelmente calma quando entro. Desço as escadas até à cozinha e espero ver Bells sentada no canto a comer o seu muesli caseiro e a dar pontadas à escultura garrafa-de-leite. Dou-lhe uma bicada por ela. Tenho vontade de ver um pouco do seu desalinho no compartimento – um livro de culinária, uma lata vazia de Coca-Cola Light ou um tabuleiro em cima da mesa. Em vez disso, a mesa da cozinha está totalmente livre e limpa. O ambiente está arrepiantemente silencioso sem o Stevie Wonder a cantar em fundo. É quase tão mau como não ter a música clássica da mãe a tocar em casa. Ligo o rádio, qualquer coisa serve para ouvir um pouco de barulho. Tenho de me apressar para ir trabalhar, penso para comigo, e no entanto sinto-me incapaz de agir. Finalmente, subo as escadas até ao mais alto voo, o quarto de Sam. Não consigo evitar espreitar mais uma vez para o quarto de Bells. Preciso de me certificar que ela se foi realmente embora. O quarto exibe de novo a sua severa brancura. Não é preciso muito, pois não? Estou prestes a recolher o candeeiro colocado a um canto, mas depois decido o contrário. Pode lá ficar. Gosto dele ali.

Tomo um duche prolongado. Não tive tempo de o tomar esta manhã. Quando a água quente me atinge o rosto volto os meus pensamentos para Sam. Que vou fazer? Estará na altura de nos considerarmos quites? Mas se nos separarmos para onde vou viver? Não estará na altura de comprar o meu próprioALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSapartamento? Tenho vinte e nove anos, quase trinta, o meu próprio negócio, portanto, o que me impede?Sempre vivi com os meus namorados, evitando a responsabilidade de uma hipoteca. Mas veja-se a Emma e o Jonnie. Vão casar-se, compraram uma casa juntos, vão arriscar-se, mergulhando no mundo real. Eu fui andando à deriva pelos meus vintes, concentrando-me na carreira e saltitando de inadequada relação amorosa em inadequada relação amorosa. Recuando até ao início, perdi a virgindade com o Scott, aos dezoito anos. Era o electricista de braços tatuados. Conheci-o quando estudava Inglês, Arte e Francês no meu 12° ano. Saí com ele durante seis meses e foi maravilhoso. Mudei-me praticamente para o seu estúdio. A mãe começou a acusar-me de fazer da nossa casa um hotel. "Só apareces para lavar a roupa e comeres uma refeição sem pagar", disse ela. Com o Scott passava o tempo permanentemente esfomeada, já que o dinheiro que tínhamos só nos permitia comer Comflakes, Comflakes e mais Comflakes. Foi ainda mais excitante quando descobrimos que podíamos fazer uma excelente refeição de Frosties com natas, como um creme br 'úlée.Depois apareceu o Alex, um cantor e guitarrista que corria o país a dar espectáculos. Eu estava em Londres, na Escola Superior de Belas Artes, e rapidamente me mudei para a casa de Alex a fim de evitar as instalações académicas. O seu apartamento parecia um covil, mas isso não tinha importância nenhuma. Adorei contar à mãe que a minha vida havia assentado. Olhem para mim em Londres, apetecia-me gritar. Tenho um namorado, uma casa, e um lugar no meu curso de artes.

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As coisas acabaram por esmorecer com o Alex. O namorado seguinte destroçou-me o coração quando descobri que andava a dormir com a minha colega de quarto, a Fran. Andava a estudar para arquitecto. Era meigo, gene-roso, inteligente, a última pessoa que eu imaginaria a enganar-me. Prometi a mim mesma nunca mais me deixar magoar deste modo. E, assim, seguiu-se um sem-número de relações fáceis, digamos mesmo, supérfluas. Vejamos a última, antes do Sam. Ele passava o tempo no estrangeiro, a trabalhar, de tal modo que na realidade eu vivia sozinha. Emma está sempre a dizer que é preferível não andar com ninguém a ter uma relação morta que não nos leva a lado nenhum. Melhor sozinho que mal acompanhado, costuma ela dizer. Sei que o Sam não é uma das suas companhias preferidas. Lavo o cabelo, com o champô a encher-me as mãos de espuma. Se ele e eu nos separarmos perderei esta casa, perderei a vantagem de viver tão perto da loja. Vivendo aqui não preciso de apanhar o metro malcheiroso. Também sentirei a falta da sauna. Quer dizer, quem mais tem uma sauna em Londres?Começo a rir-me. Vá lá, Katie, isso não são razões suficientes para ficar com alguém. Então e o amor, o compromisso, o prazer de estar com alguém? Eu adorei estar com o Sam até há duas semanas atrás. Independentemente dos seus defeitos, também tem algumas qualidades. Esmerou-se na marcação deste fim-de-semana para nós. Vai levar-me a esquiar no Natal. É um homem confiante, bem sucedido, capaz de mostrar muito charme. Adoro as nossas danças secretas na cozinha e a forma como ele me canta as músicas do Chris de Burgh. Quando nos conhecemos fez-me sentir a única pessoa naquela sala com quem estaria interessado em falar. Apoia-me no meu trabalho. Vejam como ele organizou a minha passagem de modelos na casa do seu cliente. Se alguém naquela altura me dissesse que eu iria separar-me dele tão depressa ter-me-ia rido. As coisas mudaram assim tanto em duas semanas? Lamentar-me-ei mais tarde se agir impetuosamente?Talvez só necessitemos de conversar, quero dizer, conversar de facto a respeito de coisas verdadeiras. Quero saber mais sobre a sua família, por exemplo. Gostaria que ele me falasse do pai. Se enfrentarmos a possibilidade de ficarmos juntos teremos de ser sinceros um com o outro e partilhar muito mais. Bem sei que sou em grande parte culpada da situação, já que comecei toda esta charada sonegando a existência de Bells. Se acabarmos tudo irei sentir a falta do nosso estilo de vida. O Sam é um homem atraente, tem dinheiro, uma casa elegante em Notting Hill, um excelente emprego. E escolheu-me a mim. Como é aquela terrível frase: "Podia ter-te calhado muito pior"? Segura-mente que o caminho mais fácil é não fazer nada, continuar como se tudo tivesse regressado à normalidade. Não é?Mas será que isso ainda me chega?

Fecho a loja, mas não quero ir para casa. A ideia da Bells não estar lá é deprimente. A Bells deu vida à casa de Sam; agora voltou ao seu estatuto de casa modelo. Dou comigo a caminhar em direcção ao bar, no outro lado da rua. É uma excepção. Peço uma garrafa de vinho e um maço de cigarros, umaALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSvez que não tenho de aturar o Sam a exigir-me que não fume. Uma garrafa de vinho e uma hora mais tarde o meu telemóvel toca e, no visor, aparece o número do Sam. Sento-me a olhar para ele. Tenta de novo, mas deixo o telefone tocar.Se pudéssemos escrever o guião das nossas vidas, que escreveríamos nós? Pergunto a mim mesma. Este é outro dos irritantes clichés que o Sam me atira de tempos a tempos, mas este tem finalmente algum significado. Não ficarei aqui sentada tendo atrás de mim apenas um atrelado cheio de relações falhadas, decidi. Sim, posso fazer alguma coisa

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quanto a isso, digo a mim própria. Pego no telemóvel e estou prestes a telefonar à Emma. Depois pouso-o. Sei o que ela me diria, e está na altura de eu tomar uma decisão destas sozinha. Necessito de parar de manquejar na terra de ninguém. É claro que sei o que tenho de fazer.

É tarde quando volto para casa do Sam. Ele está sentado no sofá lendo o Finantial Times."Precisamos de falar", digo, caminhando até à janela.Poisa o jornal. "Se é acerca da noite passada, vamos deixar isso para trás, está bem? Lamento que me tenhas ouvido por acaso, foi apenas uma bravata, Katie. Sabes como eu sou com os amigos, especialmente com o Maguire. Não queria dizer nada com aquilo."Penso naquilo que ele disse ao Maguire, mas já nem sequer estou segura do quanto isso me importa neste momento. Não sinto qualquer fúria ou que tenha sido traída. Não sinto nada. "Tenho estado a pensar neste fim-de-semana... talvez devêssemos cancelar tudo. Penso que temos algumas coisas para tratar.""Desculpa?""O fim-de-semana? Não quero ir", digo outra vez, lenta e deliberadamente. "Katie, estás a brincar, não?"Abano a cabeça."O quarto está marcado." Bate com o copo na mesa. "Não vou conseguir ser reembolsado a tão curta distância."Está fora da realidade. "Não queres saber POR QUE RAZÃO eu não quero ir?", digo abruptamente. "Sam, isto não pode continuar." Começo a andar de um lado para o outro."O que é que não pode continuar? Pára de gritar comigo. Que te deu? por causa da noite passada, não é?""Sim", inclino a cabeça, "e não. De certo modo, tu provavelmente não uerias dizer o que disseste. Este brinde não faz parte do pacote que compraste. uando começámos a sair juntos não sabias nada acerca da minha família. m, agora sabes. Venho com a Bells. Eu também nada sei acerca da tua. orque não me falas do teu pai?""Não há nada para dizer", diz, exasperado. "É um viciado no trabalho, unca o vejo, que mais queres saber?"Olhei-o com a frustração estampada no rosto. "Para onde nos vês caminhar?" "Não sei de que estás a falar." Sam abana a cabeça com impaciência."Para onde vamos?", persisto. Porque não entende aquilo que estou ar?"Pensava que nos estávamos a divertir, que tínhamos uma óptima relação. los vistos", irrita-se, "tinha uma impressão claramente errada.""Podemos sair, embebedarmo-nos, ir para bonitos hotéis, jantar em restauntes caros, fazer esqui no Natal, podemos fazer tudo isto por mais um ano coisa que o valha, e depois?", levanto a voz. "E depois?""Esperamos para ver. Jesus!", levanta-se e encara-me de frente. "Porque estás tão neurótica assim de repente? Qual é o teu problema? Que queres tu?", abre muito os olhos e ri com sarcasmo. "Um anel no dedo?""De modo algum.""Bem, que queres então? A que propósito vem tudo isto? Pensei que éramos felizes do modo como vivíamos.""E o futuro?""Bardamerda para o futuro. Agarra o momento, digo-te. Preocupa-te com o amanhã", faz uma pausa, pensativo, "amanhã."

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"Se não estamos bem um para o outro, estamos a perder o nosso tempo. Tenho quase trinta anos, tu tens trinta e seis."Sam ignora-me. "Vamos para aquele hotel, está tudo marcado", disse, em tom autoritário. "Precisamos deste tempo juntos. Posso reaver a simpática e divertida Katie, por favor? Para onde foi ela?"Brinco, inquieta, com o anel na palma da mão. "Sam, ontem à noite querias dizer o que disseste. Não suportas a Bells, e estas duas semanas foram quase um desastre."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Não foram assim tão más, pois não? Não estou habituado a pessoas como ela, é tudo. Pensei que ficaríamos bem. De qualquer modo, ela foi-se embora, c'est la vie, vai em frente.""Não! Sam, não me estás a conseguir ouvir, pois não?", gritei. "Há alguma coisa sobre a Terra com a qual te preocupes?""Olha, tu não és o meu psiquiatra. Que vem a ser este interrogatório? Não sei de que andas à procura."Pus as mãos nos olhos e esfreguei-os, cansada. Esta é uma causa perdida. Mas dou-lhe uma última oportunidade. "Que se passa connosco?" "Mudaste. Desde que a Bells chegou, tudo mudou.""Sim, é verdade, e isso não é mau. Quero mais que isto. Preciso de muito mais que isto." Estou quase a dizer que já nada funciona, que não estamos bem um para o outro e que o vou deixar. "És um bom amigo, Sam", digo, compreendendo então que nem isso. Uma vez separados, nem sequer consigo imaginar encontrar-me com ele para tomar café. De que falaríamos? "Passámos bons tempos juntos, mas...""Nem pensar", diz, interrompendo-me. "Oh-oh, nem pensar, não estou para ouvir isto." Levanta-se. "Não posso dar-te mais nada. Penso que devias ir", declara friamente e afasta-se de mim. "Esta noite podes ficar, mas amanhã quero-te na rua. Acabou-se tudo entre nós, Katie." Ouço-o descer as escadas."Óptimo!", grito atrás dele. "Fico contente! Uma noite mais seria demasiado tempo." Ouço bater a porta da frente."Está feito e não mexe mais", digo em voz baixa para mim mesma. "Capisce?" Sento-me no sofá e olho fixamente pela janela. Não sinto nada. O Sam não me deu nada, e tomo consciência de que não lhe dei nada de mim, é uma coisa que tenho andado a fazer há demasiado tempo.Pego no gin tónico que ele estava a beber e tomo-o de um trago. Que vou eu fazer a seguir? Agarro no telefone e ligo para a Emma.C'est la vie, Katie. Vai em frente.

Marco o número e o meu pai atende imediatamente. Virão para casa dentro de dois dias."A Bells foi hoje", digo-lhe."Passaram um tempo agradável?", pergunta, sustendo a respiração."Sim, fomos ao London Eye, e comprámos um fato à Bells para levar ao casamento da Emma. Posso falar com a mãe?""Katie, temos de ir...""Não, não desligue. Como estão vocês? Que têm andado a fazer? Há séculos que não estão contactáveis, no outro dia tentei telefonar-vos..." "Katie, agora não posso falar", interrompeu-me.Não quero que desligue."Ouve, telefono-te mais tarde." E desligou.Volto a marcar o número, mas está interrompido.

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Sento-me a olhar fixamente para o telefone. Definitivamente, alguma coisa pão está bem, mas porque não me pode dizer? O que está a acontecer, pai? `Porque somos uma família tão disfuncional?Porque não podemos conversar?231990A Bells, a mãe, o pai e eu estamos sentados em círculo numa sala pintada azul pastel com um relógio de plástico tiquetaqueando em fundo. cadeiras estavam assim dispostas quando chegámos. Olho à volta da sala. { sítio faz-me lembrar os hospitais. Há nele o mesmo sentimento clínico, no im forte aroma a desinfectante. Também não quero estar aqui, o mesmo timento que sempre me assaltava quando ia visitar a Bells ao hospital. Mas ta vez é apenas por minha causa que aqui estamos. Sinto-me como umainosa. Tudo o que fiz foi roubar alguns lápis para os olhos e uns quantos os de Adam Ant e dos A-ha. Nem sequer os queria, os A eram os que vam mais perto da porta, mais nada. É assim tão mau?A mãe parece nervosa, com as pernas firmemente cruzadas, tal como os ços. O pai bate com força nos joelhos, como se fossem um par de tambores. mãe inclina-se para o lado e dá-lhe uma palmada na mão. "Pára com isso", ena. Nem a mãe nem o pai disseram muita coisa desde a nossa chegada. mãe foi-me buscar à escola. Perdi uma aula de Educação Física de duas ras. Levou-nos, à Bells e a mim, ao nosso centro de saúde."Os Fletcher. Queiram entrar, por favor", disse-nos a recepcionista, e oontou para a porta onde estava escrito Terapia Familiar.A mãe olhou ansiosamente para todos os outros pacientes que, com ar 'serável, aguardavam pela sua vez, antes de nos empurrar, à Bells e a mim,ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSpela porta da Terapia Familiar com alarmante velocidade. O pai juntou-se-nos aqui, sem fôlego, queixando-se de não ter conseguido ver o seu último cliente por causa desta maldita sessão. A Bells é a única que parece feliz por estar aqui. Está a ver os bonecos de uma Woman's Realm que encontrou sobre uma mesa a um canto da sala de espera.A porta abre-se e um homem pequeno surge a coxear. É tão magro que traz as calças cinzentas seguras por um cinto preto de plástico brilhante. Transporta uma pasta com uma etiqueta onde se lê "Família Fletcher". Aperta as mãos da mãe e do pai e sorri com vivacidade para a Bells e para mim. "Olá, sou Simon Shackleton", apresentou-se. Usa um relógio de plástico a imitar ouro; pêlos pretos nascem-lhe no pulso e passam para o outro lado da pulseira. Quando puxa uma cadeira para se juntar ao nosso círculo, sinto curiosidade acerca do que haverá de errado com o seu pé."Que tem na perna?", pergunta imediatamente a Bells. "Partiu-a?" Às vezes adoro tê-la como irmã. Pergunta exactamente aquilo que quero saber e safa-se sempre. Se eu fizesse a mesma pergunta, ralhariam comigo por estar a ser intrometida.Observo a boca dele a contorcer-se ao mesmo tempo que estica o escasso cabelo castanho para trás da testa. "Não viemos aqui para falar do meu pobre pé, pois não?" Sorri palidamente para o pai e para a mãe e eles respondem-lhe com um estranho sorriso. "Disponho as cadeiras sempre assim. Aproxima toda a gente", diz ele tomando o controlo da situação. A Bells baloiça as pernas para trás e para a frente continuando a virar as páginas da revista que, de tão antiga, se encontra esfarrapada nas pontas.Olho para Simon Shackleton quando ele espreita para a primeira página do nosso ficheiro. Parece demasiado grande para uma família que, a maior parte do tempo, não faz nada. A sua testa está completamente franzida e o rosto parece ter sido esmagado por uma prensa de flores. Serão os nossos problemas assim tão graves? Fecha a pasta

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castanha e olha para mim. "Katie, podes falar-me um pouco da tua família?", começa ele, encostando-se às costas da cadeira. Para um homem tão débil e pequeno a sua voz é surpreendentemente forte eautoritária.Olho para a mãe e para o pai, que se agitam nas cadeiras. "Eles são bons." Encolho os ombros. "Não sei o que dizer mais, a sério." O relógio de plásticoparece estar a fazer ainda mais barulho de fundo. Os segundos parecem minutos. Os olhos do Sr. Shackleton concentram-se severamente em mim. Depois de uma prolongada pausa diz: "Bem, talvez eu deva ser um pouco mais específico. Porque não corremos a roda falando de todas as coisas que gostamos e não gostamos sobre cada membro da família? É uma excelente maneira de verificarmos onde residem os principais problemas. Talvez devêssemos começar consigo, Sr. Fletcher?"O pai endireita-se na cadeira e aclara a voz. "Eu adoro a minha família", declara com firmeza. "Não me vou pôr a esquadrinhar os seus defeitos." Abana a cabeça e afunda-se novamente na cadeira. Mais valia ter escrito na testa "perda de tempo"."Ah, portanto existem defeitos?" O Sr. Shackleton torce o nariz magro."Nenhuma família é perfeita. Vai dizer-me que a sua é?" A voz do pai sobe de indignação ao empertigar-se novamente na cadeira. A mãe pousa-lhe a mão na coxa para o acalmar. Isto já não está a correr nada bem. Quero ir para casa. O pai olha para mim e sorri, solidário. É um sorriso que parece pedir desculpa pelo que dirá a seguir. O tiquetaque do relógio está cada vez mais audível. Oiço o incansável folhear das páginas da revista de Bells. Finalmente, o pai diz: "Preferia que a Katie não se tivesse metido em sarilhos, penso, porque assim não estaríamos aqui. Estávamos todos muito bem antes disso."Vejo o Sr. Shackleton a abanar a cabeça. Não acredita claramente nisto, depois de ter lido o que quer que o nosso ficheiro tem escrito. "Por favor continue, Sr. Fletcher.""Katie sempre foi uma boa filha. Ela teve de lidar com muita coisa, ajudar a tomar conta da sua irmã Isabel e tudo o mais. Tenho a certeza de que está ao corrente da história clínica da nossa filha mais nova?"O Sr. Shackleton acena afirmativamente com a cabeça. "Estou." Dá uma palmadinha na pasta.Bells levanta os olhos da revista. "Bebida?", pergunta ela. A mãe pede-lhe que se cale e acrescenta que não viemos até aqui para tomar chá. Já lhe tinha explicado no carro por que razão vínhamos hoje aqui, mas a Bells, evidente-mente, já se havia esquecido."Nós temos consciência que não tem sido fácil para uma jovem como a Katie. Ela teve de crescer, em certos aspectos, muito rapidamente. Autono-ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSmizar-se um pouco mais. Se me perguntar, dir-lhe-ei que na minha opinião isso é bom, não devíamos apaparicar e estragar as crianças com mimos. Isso, a longo prazo, não as ajuda minimamente. Katie é uma óptima menina", continua o pai. "Isto é apenas uma fase porque está a passar, nada mais. Tenhoa certeza que há outras famílias a necessitarem muito mais de aconselhamento que nós.""Sr. Fletcher, também tenho a certeza que sim, mas todas as famílias têm os seus problemas...""Exactamente", ataca o pai. "E nós não somos diferentes. Faz aconselha-mento a todas as famílias com pedras no sapato, Sr. Shackleton?""Sr. Flecther, não creio que, em rigor, possa chamar à situação uma pedrano sapato. O acto de roubar deve ser encarado com muito seriedade." "Não gosto deste homem", corta Bells.

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O Sr. Shackleton não parece minimamente ofendido com o seu comentário. Olho para o pai. Conseguiu esboçar um sorriso. Tenho a certeza quetinha vontade de dizer exactamente o que Bells disse. Uma parte de mim deseja atravessar o nosso círculo e abraçá-lo."E estou convencido que concordará comigo que o melhor é tratarmos doproblema agora, se possível", acrescenta o Sr. Shackleton modulando a voz. O pai vira-se para a mãe pedindo-lhe socorro."Voltando atrás ao que nos pediu para fazermos, Sr. Shackleton, penso que `não gostar' é uma expressão demasiado forte", começa a mãe. "Não há nada de que não goste nos meus filhos. Por vezes sinto-me irritada e cansada por sua causa, mas não é a mesma coisa. Desafio qualquer mãe a não sentir o mesmo ocasionalmente. A Katie é muito parecida comigo quando eu tinha a sua idade. Obstinada. Ela faz coisas para provocar reacções. Creio que a maior parte das jovens fazem o mesmo. Foi uma grande tolice da sua parte roubar, mas...""Porque é que só falam de mim?", interrompo num grito. "Não sou a única pessoa nesta família. E a Bells? Nunca ninguém se zanga com ela, nunca ninguém a culpa de nada. Apenas lhe acham piada, não é? Quando se portamal é sempre uma grande anedota. Mas quando eu me porto mal tenho a polícia a bater à porta de casa.""Não gosto disto aqui", lamuria-se Bells, balouçando incansavelmente as pernas. "Quero ir para casa.""Não é bem a mesma coisa, Katie, e tu sabes isso muito bem", ressalta a ãe calmamente, embora me aperceba que tenta desesperadamente controlar tom de voz. "Sr. Shackleton, é realmente necesário trazer a Isabel a estas ssóes? Ela não compreende porque estamos aqui. Isto tem a ver com a Katie,ao é verdade?""Lá estamos nós outra vez", brado eu. "A culpa é sempre exclusivamente minha." Viro-me para o Sr. Shackleton, esperando que ele diga à mãe e ao pai que nho razão, que não é justo que eu seja a única a receber censuras a toda a ra. Que ele quer que todos falemos sobre toda a família. Mas, em vez disso, costa-se para trás, como se nos entregasse o comando da situação. Não porto o sorriso arrogante que tem estampado no rosto. Do que é que não stas na tua família? OK, é a minha vez, então."Detesto quando não me vai buscar à escola", digo à mãe. "Fico à espera, nto do portão, e todos os outros pais me perguntam: A tua mãe sabe que as as acabaram" Também não se parece nada com as outras mães. Elas vestem as azuis, com camiseiros franzidos. Não quero que a mãe vista Laura Ashley, as quando me vai buscar traz sempre a roupa com que pinta porque a toda a ora se quer mostrar diferente. Quem me dera poder ficar interna na escola, mo algumas das outras raparigas. E odiei que não se desse ao trabalho de sistir às minhas competições desportivas. Treinei todos os dias durante a hora e almoço e depois de a escola, e todos os pais estiveram presentes excepto a ãe. Ganhei o primeiro prémio do salto em altura.""Isso foi quase há três anos e eu estive presente." O pai curva-se para a frente, na defensiva, tomando agora parte activa. "Katie, por favor não mintas. Eu estive lá, portanto não foste ignorada. E, por favor, não fales assim com atua mãe.""Querido, está tudo bem, se é assim que ela se sente." A mãe poisa a mão em cima da dele. "Precisamos de a ouvir."O pai olha para ela com um dos seus sorrisos doces. Fixo o olhar na mãe mais uma vez. "Ganhei o prémio da melhor aluna de arte e lavoures do ano, não que isso lhe interesse!" Todas as semanas a escola escolhe o melhor desenho, pintura ou outros

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trabalhos quaisquer, e eu ganhei a maior parte das vezes durante o ano. O rosto do pai derreteu-se de orgulho quando lhe contei, mas a mãe quase nem abriu a boca.ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Bem, isso é despropositado, Katie. Claro que me interesso. Pára de sentires tanta pena de ti própria." O rosto dela empalideceu. "Peço desculpa se não te disse claramente muito bem, parabéns, ou se não estive presente do dia das competições desportivas, mas tens de compreender que o teu pai e eu só queremos o melhor para ti. E eu interesso-me", repete ela. Serão aquilo lágrimas a cintilarem-lhe nos olhos? Verdadeiras lágrimas? "Trabalhamos muito para que vocês possam estudar nas melhores escolas. Não podes ficar em regime de aluna interna porque vivemos muito perto da escola e porque seria demasiado dispendioso. E agora temos de trabalhar o dobro para garantirmos que conseguimos mandar a Isabel para uma das melhores escolas do país no próximo ano." A mãe e o pai já me haviam falado no assunto. Querem matricular a Bells numa escola de ensino especial, onde ela ficará com outros alunoscomo ela. Aprenderá as coisas normais, como ler e escrever, e terá aulas de artes e ofícios, coisas assim."Tenho pena que, por vezes, não consigamos estar ambos presentes nas tuas cerimónias escolares para entrega de prémios. Quem me dera que pudéssemos, mas, pelo menos, um de nós está sempre presente", termina a mãe."Bem, é sempre o pai. A mãe está sempre a trabalhar, e eu aborreço-me em casa. Tudo o que faço é ler, desenhar ou coser. As mesmas coisas que a Granny Norfolk faz. Estou a fazer tricô não tarda nada. Não tenho cem anos, tenho quinze! Não posso levar os meus namorados a casa porque a Bells corre paraeles como um touro e atinge-os nos testículos. Eles fogem a sete pés. Quando são capazes", acrescento.O Sr. Shackleton estica o cabelo. Não estava à espera de uma coisa destas, pois não?"Mas tu não tens namorado, pois não?", pergunta o pai."Não tenho agora! Ela", aponto para Bells, "afugenta-os todos."Não tem piada, Katie", grita Bells."Nunca fazemos coisas normais como ir ao cinema, ou passa rimos umas férias juntos", prossigo eu impiedosamente, "nunca fazemos nada. Se não fosse a Emma e a Berry eu já tinha fugido de casa. De qualquer modo, te "aciono sair de casa quando tiver dezasseis. Nessa altura terão remorsos."A mãe e o pai olham um para o outro. O pai parece magoado. "Que fiz eu para merecer isto?", está escrito por todo o seu rosto. Sinto-me mal _por ter ditoaquilo a propósito do dia das competições desportivas. Ele esteve presente e participou na corrida dos pais. Até ganhou o jogo da colher e do ovo. A mãe também parece perturbada. Ainda bem.O Sr. Shackleton inclina-se para a frente. "Acho que, provavelmente, devíamos terminar aqui", sugere ele, olhando para todos nós excepto para Bells, que anda agora às voltas pela sala. "Creio que atingimos uma zona bastante interessante", diz ele por entre os seus finos lábios entreabertos. "Em resumo, Sr. Fletcher, eu diria que o senhor e a sua esposa são uns intelectuais de classe média-alta, talvez esquecidos que o dinheiro e as melhores escolas não ompram, necessariamente, a felicidade das crianças."Sei que a mãe e o pai não vão gostar disso. As minhas palavras foram um talo nos seus rostos. O Sr. Shackleton deixou-os praticamente KO nas deiras. O pai abre a boca e volta a fechá-la. Não consegue emitir um únicom."Acho muito interessante que te tenhas concentrado nas coisas que não ostas e nunca tenhas mencionado os aspectos positivos", avança Shackleton. Toda a tua energia tem

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vindo a ser canalisada para a observância dos defeitos os outros, o que não pode ser saudável. Estou a ver que a Katie se sente neglienciada, que procura chamar a atenção como qualquer outro adolescente ormal. Quer ser elogiada. Não tenho razão, Katie?" Vira-se para mim na pectativa. Nesse momento sinto-me a corar. Ele não precisava de dizer nada isto. Para mim, senti-lo interiormente, está muito certo, mas ouvir um ranho afirmar que procuro chamar a atenção parece-me patético e muito ste, como se eu fosse um bebé. Não sou um bebé. O Sr. Shackleton percebe ue não tenciono responder-lhe, por isso continua. "Desta primeira visita ncluo que precisam de passar mais tempo juntos, disponham de algum mpo de qualidade para estarem uns com os outros. A comunicação é a chave ra compreendermos as nossas necessidades e as dos outros."A mãe agarra na sua mala e nós seguimo-la porta fora. O Sr. Shackleton ,coxeia atrás de nós, alisando de novo o seu ralo cabelo para trás da fronte, anunciando que devíamos marcar uma nova consulta para a semana seguinte e que já havíamos conseguido um substancial progresso ao conversarmos sobre Cstes assuntos.Nunca mais o voltámos a ver.24Encontro as chaves do carro de Sam no bolso do seu casaco. Desço as radas e saio para a rua. Dou comigo a abrir a porta do seu BMW e a ligar o otor. Quem pensa o pai que está a enganar? Alguma coisa de errado está a contecer.Ao percorrer a sombria auto-estrada tenho a surreal sensação que estou a lhar para mim mesma, que não sou realmente eu quem conduz. Bato energi-ente no volante para me assegurar que domino efectivamente a situação. igo o rádio e logo em seguida pressiono o botão para o desligar, deixando-me num opressivo silêncio dominado por dois únicos pensamentos. Que estou a fazer, conduzindo a altas horas da noite em direcção a casa? Estarei a louquecer?

Entro no caminho de acesso à nossa casa. O carro da mãe e do pai não está tacionado, o que imediatamente me alivia. Não estão em casa. Fecho a porta o carro e tiro as chaves de casa da mala. Estão presas a um velho e oxidado porta-chaves de prata com a inicial K. Baixo-me para abrir a fechadura de baixo, mas a chave não se mexe. Não é preciso abri-la. Tento, conscenciosa-mente, manter a mão firme enquanto destranco a outra fechadura. A porta range, abrindo-se. Por que razão não terá o pai trancado a porta nas duas fecha-duras? Ele nunca se esquece. Eles estão em casa."Olá", chamo alto, com a voz ressoando pelo corredor. Há uma enormeALICE PETERSONquantidade de correio espalhado pelo chão, que apanho e coloco em cima da mesa da entrada. Não há nenhuma luz acesa, mas a casa cheira a habitada. Acendo a luz. Há casacos pendurados no cabide, secos, por usar. Poiso a minha mala no fundo das escadas. As cortinas da sala de estar estão corridas. O ateu_ dedor de chamadas está ligado, mas não está a piscar. É estranho. De certeza que alguém lhes terá telefonado desde que se foram embora, não? Eu telefonei-lhes uma vez, mas não deixei mensagem.Quando entro na cozinha tenho o coração aos saltos. As persianas estão fechadas, mas os interruptores das tomadas estão ligados, as luzes piloto estão acesas. Para onde quer que olhe, tudo me diz que eles nunca saíram de casa, o botão de pausa do leitor de CD pisca a sua luz vermelha de aviso. Há duas canecas sujas dentro do lava-loiça. Toco na chaleira, mas está gelada. Abro o frigorífico. Encontro uma embalagem de frango, acomodado na sua bandeja de polistireno azul com as bordas reviradas. Leio o rótulo e verifico que a data de embalamento é apenas de há dois dias atrás. Na prateleira de cima há uma caixa de ovos, manteiga e maionese. Fecho a porta. Deixaram uma frigideira no forno, mas está lavada e seca.

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Começo a subir as escadas, mas acelero o passo e acabo a correr em direcção ao quarto da mãe e do pai. A cama está por fazer, a colcha do vestido de noiva da mãe encontra-se negligentemente enrolada nos lençóis. Entro na casa de banho deles. As escovas de dentes do pai e da mãe estão dentro de um copo de porcelana em forma de peixe. O creme hidratante da mãe está em cima do toucador, juntamente com a escova do cabelo e o pente de tartaruga. Como se atrevem a mentir-me? Onde estão eles? Ali fico, olhando em volta do quarto, incapaz de compreender o que está a acontecer. Oiço então a porta da rua a abrir-se e fico à espero das vozes.Oiço as passadas, mas ninguém fala. O único som que consigo ouvir imediatamente é o da minha própria respiração."Katie", exclama o meu pai, sobressaltado, quando me vê no cimo das escadas. A mãe está ao seu lado, o seu rosto parece mais pálido em contraste com o arruivado cabelo.O meu pânico e o meu medo transformam-se em fúria. "Vocês têm andado a mentir-me. Porque estão aqui? Porque não estão em França?" 0 pai olha paraOL1AK IN .J3 VLiimãe, mas nenhum deles abre a boca. Aguardo uma explicação qualquer. "Será ue alguém me pode dizer o que está exactamente a acontecer? Que se passa?" mãe passa pelo pai e prossegue em frente pelo corredor até à cozinha. "Pai?",

ento.Atirou-se para o chão, imóvel, no último degrau das escadas, com o rosto

nterrado nas mãos. "Pai, o que foi?" Desço as escadas a correr e ajoelho-me 'ante dele. "Pai, por favor diga-me o que está a acontecer." "Não sei por onde começar", finalmente balbucia.

"Mãe", chamo impotentemente com a voz apagada pelo medo. "Mãe...",

tiro a mão de cima do joelho do pai e dirigo-me à cozinha. Está a abrir a veta da mesa da cozinha, onde guarda cartas antigas da sua mãe e do seu pai. tá a rasgá-las em pedaços. Agarra numa carta de Bells e desfá-la em tiras. em se apercebeu que eu estou ali diante dela. "Que está a fazer? Mãe, por vor." Começo a sacudir-lhe os ombros. "Pare", começo agora a gritar.Ela senta-se."Mãe, por favor, será que alguém me explica o que está a acontecer?""Não sei como te dizer", diz por fim."Bem, pelo menos tente. Seja o que for não pode ser pior do que estou a

entir neste momento. Estou aterrorizada. Porque é que o pai está a chorar?" "Porque me acabaram de dizer que tenho um tumor no cérebro", declara ela simplesmente. A seguir pega numa carta ao acaso e rasga-a ao meio.25Observo o pai conduzindo a mãe pelo corredor. Coloca o braço em volta da sua cintura e ela desloca uma das mãos para trás das costas, tocando suave-mente na dele, os dedos de ambos perfeitamente interligados, como um puzzle.Volto para a cozinha e sento-me. "Isto não pode estar a acontecer, não é verdade. Digam-me que não é verdade", repito vezes sem conta.

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"Não posso", diz finalmente o pai quando se senta à mesa da cozinha. Tenho de me recompor. "Como podem não me ter dito nada? Porque estão a passar por tudo isto sozinhos?""Nunca pensámos que nos iríamos encontrar nesta situação. O nosso médico de clínica geral disse-nos que não era nada de preocupante.""O que é que não era preocupante? Um tumor no cérebro?", pergunto incrédula."A tua mãe teve um ataque epiléptico há seis meses...""Um ataque epiléptico?", repito mecanicamente. "Porque não..."O pai interrompe-me. "Não te dissemos porque quando fomos ao médico de clínica geral ele desvalorizou o acontecimento afirmando que, às vezes, isso acontecia às pessoas da nossa idade. "É frequente as pessoas da vossa idade terem apenas um ataque", disse ele. Recordo vividamente as suas palavras. Disse-nos para irmos descansados, para não nos preocuparmos com o assunto." O pai levanta-se e dirige-se ao armário das bebidas. Serve-se de um whisky e engole-o todo de uma só vez. "Depois, teve outro ataque quando estava naALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOScozinha a fazer uma sopa. Estava aqui mesmo de pé, neste sítio, a preparar a minha estúpida sopa. A cortar legumes." Bate com o copo violentamente no aparador."E a seguir teve outro, e outro, com rigorosos intervalos de uni mês. A medicação não fazia o mais leve efeito. Insisti para que fosse vista por um neurologista. Sabes como é a tua mãe, não queria aceitar que alguma coisa de errado se passava com ela. Quando te telefonei para te pedir que ficasses com a Bells, bem, foi para irmos à consulta do neurologista, dois dias depois. Eu não conseguia lidar com isto e com a Bells ao mesmo tempo.""Claro, eu compreendo, mas porque não me disse nessa altura?""Porque nós ainda esperávamos desesperadamente que não fosse nada de grave, que os ataques pudessem ser controlados com a medicação. Ela fez um electroencefalograma e o exame, mais uma vez, não acusou nada de anormal. Fez todos aqueles testes ridículos, tu sabes, contar de sete para trás e seguir o dedo do médico com os olhos. Sentia-se bem, não parecia ter nada. Foi então que o médico sugeriu uma ressonância magnética e hoje obtivemos os resultados. Estivemos no hospital todo o dia." O pai atira-se para trás na cadeira. "Há um tumor a crescer e os ataques epilépticos foram causados por uma pressão crescente no cérebro. O tumor pode muito bem já lá estar há anos.Não sei o que dizer."Acredita-me, Katie, eu tinha muita vontade de te contar, mas ela nem queria ouvir falar nisso. Achava que não valia a pena preocupares-te até sabermos exactamente o que estávamos a enfrentar. Juro que acabaríamos por te contar, quando se proporcionasse."

"E não pode ser operada? Para lho extraírem?""Katie, por favor, pára...", o pai está a embalar a cabeça entre as mãos, tentando esquecer o mundo."Não há nada que possamos fazer?", grito."Pára de fazer perguntas." O pai levanta a voz. "Pára com isso." Está a abanar a cabeça impotentemente. Levanta-se de repente e empurra a cadeira para trás. Agacha-se no chão. Nunca vi o meu pai chorar. Avanço na sua direcção para o abraçar, agora as lágrimas correm-me pelo rosto. Agarra-se às costas do meu top, amarfanhando o tecido com os dedos, torcendo-o elixando-o vigorosamente. O seu rosto está colado ao meu ombro e sinto o top da vez mais molhado pelas suas lágrimas. "Não posso viver sem ela, Katie. Não posso viver sem ela."

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No meu quarto, sento-me em cima do velho caixote das máscaras, agora sformado num banco junto à janela. Acendo um cigarro e sopro o fumo endo um enorme anel para o escuro céu. Oiço vozes na rua, devem estar izes. Talvez estejam a regressar a casa vindos de um bar, depois de mais uma da trivial. Terão eles consciência de que as suas vidas podem mudar de um para o outro? Que lhes pode acontecer qualquer coisa amanhã que evenmente transformará tudo? Claro que não têm. Que felizardos são, porque ito provavelmente nem lhes acontecerá nada. São tal e qual eu era há poucas anas. Esvoaçando cegamente no meu próprio mundo, achando que umatofre acontecera quando o meu pai me pediu para ficar com a Bells; sando que era o fim do mundo quando ela cortou as etiquetas das minhas irts. O meu telemóvel toca mais uma vez e finalmente tiro-o de dentro da a. Diz-me que tenho três mensagens novas. Ligo o 901 para as ouvir."Onde estás, e onde está a porra do meu carro?" Sam está a gritar ao tele-. "Que merda de dia, será possível correr pior que isto? Telefona-me ediatamente." Desliga. "Sou eu outra vez", clama. Desligo as mensagens.;mbro-me dele dizer o mesmo quando deixei queimar as batatas na noite em Bells chegou. Que merda de dia, será possível correr pior que isto? Que énuos somos.

A quietude e o ar parado fazem-me sentir ainda mais só. Sinto os olhos tão igados que já nem parecem pertencer-me. Caminho pelo corredor escuro, ando ao lado do antigo quarto da Bells. Como vamos contar-lhe o que se sa com a mãe? Temos de lhe dizer. A mãe e o pai não podem continuar a entir-nos ou a tentar proteger-nos da verdade. Isso nunca é bom; só provoca

Dirigo-me à casa de banho e dobro-me sobre a sanita, com vontade de mitar. Abro a porta espelhada do armário e examino os diversos frascos e balagens. Haverá por ali um comprimido para dormir? Sei que a mãe os ma. Há um grande sortido de frascos com tampas de enroscar e uns compri-ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSmidos amarelos no interior. Parece tudo antigo. Pego num frasco, com data de 1974, e despejo-o pelo cano. Agarro, à vez, em cada uma das outras embalagens de medicamentos. Há imensos – para as dores de estômago, do peito, dacabeça – mas nenhum que me ajude a dormir. "Deus me acuda", grito, atirando tudo para a sanita.Paro diante do espelho, aquele diante do qual costumava pedir a Deus, quando era criança, que me desse cabelo louro e olhos azuis. "Sei que não somos muito íntimas, mas quero-a de volta." A minha voz sai aos espasmos."O pai precisa dela. A Bells precisa dela. Eu preciso dela. Oh, meu Deus, põe a mãe melhor.""Katie." Oiço a voz do pai, agora mais calma. Afaga-me as costas. "Não consigo dormir, pai. Eu...""Shhh", sossega-me ele. Coloca um braço por cima dos meus ombros e acompanha-me ao meu quarto."Não consigo dormir", repito, passando ao lado da cama e voltando a sentar-me junto à janela. Acendo outro cigarro. O pai odeia que eu fume, mas não me diz nada. Senta-se na outra extremidade do banco. "Se resolvesse começar a fumar esta seria uma boa altura", diz ele, tirando os seus óculos de

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aros pretos e esfregando os olhos. Os óculos deixaram-lhe uma marca vermelha na cana do nariz.Esboço um sorriso. "Não se importa, pois não?""Tu fumas; morres. Não fumas; morres. Que raio de diferença faz?" Inspiro fundo. "Como está a mãe?" "Dorme a sono solto.""Ainda bem. Ainda não acredito que isto esteja a acontecer." "Nem eu.""Estou à espera de acordar a qualquer minuto." "Oh, Katie, que vamos fazer?""Quem me dera saber."Sentamo-nos imóveis, a contemplar o escuro céu. "Pede um desejo a uma estrela", diz o pai."Pai", começo cautelosamente, "quando é que vamos contar à Bells?"Ele vira-se para me dirigir o olhar, sustendo a respiração. "Brevemente. A tua mãe e eu temos vindo a falar nesse assunto.""Acho que lhe devíamos telefonar amanhã. Temos de lhe dizer que a mãe não está bem e que ela devia voltar para casa. Temos de implicar a Bells. Iria sentir-se muito magoada se descobrisse que nós lhe tínhamos escondido tudo por mais tempo. Tem de saber logo desde o início. A mãe não pode continuar a tentar protegê-la, ou a pensar que ela não será capaz de lidar com a situação, orque isso só a exclui e faz com que ela se sinta diferente e...""Katie", o pai interrompe-me abruptamente, "tens razão, nós concordamos ntigo. Queremo-la aqui connosco", declara com convicção. "Ela é mais reciosa para nós que qualquer outra coisa. Vocês as duas são", acrescenta rapi-ente.Olho para o pai. Os seus olhos parecem de um azul mais pálido, uma ersão deslavada da cor original. "Ainda bem, porque é verdade", digo eu.Observa-me com ar zombeteiro. "Ainda há poucas semanas não querias ada com a Bells. Eu até era obrigado a lembrar-te que tinhas uma irmã." Mordo o lábio. "Mas isto é diferente, não é? Precisamos de ficar unidos." "Sim, eu compreendo isso, mas tu mudaste. Estás a bater-te por ela." "Quero compensar o facto de ter sido uma péssima irmã. Desde que ela u comigo, bem, ficámos boas amigas. Ela merece que se lute por ela."O pai inclina-se na minha direcção e beija-me o rosto. Procura a minha "o e aperta-ma com força. "Estou tão orgulhoso de ti, Katie", diz-me.26Acordo de um sono inquieto. As paredes oscilam à minha volta. Onde estou? Demoro um minuto a lembrar-me e quando o faço sinto o corpo pesado, debatendo-se para me levantar e poisar um pé à frente do outro.Encontro a mãe na cozinha, com a sua liseuse velha e andrajosa vestida por cima de uma camisa de dormir de colarinho bordado comprida e esvoaçante. Está a despojar a prateleira onde guarda os livros de cozinha e os seus papéis pessoais. Há mais cartas em cima da mesa desfeitas em pedaços. Vira-se para mim com um olhar absolutamente tranquilo estampado no rosto. "Bom dia, Katie, dormiste bem?"Confusa, mais que qualquer outra coisa, digo-lhe "Não dormi mal. Mãe, porque está a rasgar as suas cartas preciosas?""Não quero que tu e o teu pai se preocupem com os meus assuntos. De quanto mais coisas eu me livrar agora, melhor." Sai da cozinha, segue pelo corredor e sobe os dois degraus em direcção ao seu estúdio. "Que vou fazer a todos estes animais inacabados?", pergunta a si mesma. "Leva os que quiseres, vais levá-los, não vais Katie? Caso contrário irão para o lixo.""Mãe...", puxo por uma cadeira e sento-me junto da sua mesa de trabalho.

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"Mãe", começo de novo, lentamente, "um de nós tem de contar à Bells. Não consigo parar de pensar nela. Ela tem de saber, hoje mesmo."Ela acena com a cabeça. "OK. Podes tratar da sua vinda para casa?""Vou telefonar-lhe. Se ela apanhar um comboio a meio da manhã posso ir buscá-la mais tarde."ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS" "Eu fazia-o, mas..." A sua voãz apaga-se. Nem posso conduzir", acrescenta

envergonhada. "Sinto-me tão inútiiil, com o teu pai a levar-me para todo o lado. Um enorme e inútil calhau", ri-se, .. sarcástica.Olho para ela. Está magra comgo um lápis, as maçãs do rosto evidenciam-se ainda mais, os olhos parecem maior-es e mais assombrados. O seu casaco de dormir cai-lhe praticamente dos ombros. "EEstá tudo bem. Eu posso fazê-lo, mãe. Não seja tão dura consigo própria."

"Como é que vou contar à querrida Bells?""O pai e eu estaremos aqui. Vai ficar tudo bem. Só precisamos de ser sinceros e contar-lhe tudo. Mãe", recomeço, "o que disse o neurologista, exactamente?"

"Disse-me que eu ficaria encarregada de controlar as minhas dores", responde sentando-se ao meu lado, com a voz de novo tão calma como água parada.Não suporto a ideia da minha mãe com dores. "Há mais alguma coisa que possamos fazer?""Ele disse-nos que devíamos cconsultar outra pessoa, em Southampton, um neurocirurgião. Está a tentar arranja=r-nos uma consulta, mas...""Mas • o quê?" Uma pequena centelha de esperança faz-se sentir. "Vamos constdtá-lo.""Katie, o neurologista pensa qu.,e pode ser maligno. Não tenho a certeza de cotieguir aguentar mais uma série dite exames só para no fim me dizerem exactamente,o mesmo. Eu sinto-me bem. =Por mais engraçado que pareça, consigo lidar ccgika situação. Não consigo lidar com o facto do teu pai entornar café por cima da carpete beje, mas..."c.laMãe", tento acalmá-la, "neste rr-comento não quero saber se o pai entorna o.' ~ consigo lidar com a situaç. o", declara mais uma vez. "Preciso de mePrar, de organizar as coisas, é tudao. Não me sinto doente. Na verdade, é difícil

de acreditar que se passa algo de errado comigo. Quero apenas aproveitar o tempo 9%:me resta."/Abano a cabeça. "Mãe, tem de co ..nsultar o cirurgião."Acho que nem me ouviu porque continua, dizendo, "Quero passar umas férias como teu pai. Prometemos a nós próprios que faríamos uma viagem pelo Nilo, ou que voltaríamos a Paris mais uma vez. Ou, ainda, que visitaríamos os nossos velhos amigos em França, os quais já não ver-nos há quinze anos.""Aqueles que fingiram visitar agora", não consigo deixar de acrescentar. "Desculpa. Não devia ter obrigado o teu pai a mentir. Estávamos engados a esse respeito. Eu adoraria voltar a vê-los", insiste ela. "Nenhum de nós tara muito diferente, teremos apenas mais cabelos brancos.""Mas vocês podem ir, podem fazer tudo o que quiserem, no entanto, acho e deviam seguir o conselho do médico e consultar o cirurgião." Inclino-me ra me aproximar dela,

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pressionando os cotovelos contra a mesa de trabalho. ao poderei viver sabendo que nem sequer tentámos.""E eu também não", diz o pai entrando no estúdio da mãe com o seu pão roçado vestido e os chinelos de pele calçados. Senta-se à mesa com um mais confiante esta manhã. "Eu ia dizer exactamente o mesmo." Tem na o um pedaço de papel com o nome e o número de telefone do cirurgião.

O pai, a mãe, a Bells e eu estamos sentados à mesa da cozinha. O pai fez bule de chá, mas ainda ninguém tocou na sua chávena.Como vamos contar à Bells?uando hoje a fui buscar à estação, ela apertou-me a mão."É bom ver-te, Katie. Como está a mãe?", perguntou ela. Tinha-lhe dito ao fone que a mãe não estava bem e que precisava que ela viesse para casa. Agarrei no seu saco púrpura. "Está desejosa de te ver.""Como foi a França? Tiveram umas férias boas?"Como lhe vamos contar?A mãe tem agora vestidas umas calças justas de linho, com uma camisa ca de algodão, e o seu cabelo curto está preso atrás com o gancho de tarta-. "Bells, não queres um pouco do teu chá de salva?", pergunta ela, estenndo-lho um prato com bolachinhas de chocolate.Aqui estamos nós, tentando ser uma família normal a tomar chá quando o à nossa volta se desmorona. O pai e a mãe olham um para o outro. É mo o jogo da "piscadela assassina", cada um deles tentando fazer sinal ao atro para começar.Por isso começo eu. Não suporto o pesado silêncio. "Bells, a mãe e o pai ueriam que viesses para casa porque..."A mãe interrompe-me. "Katie, posso?"Aceno com a cabeça. "Desculpem-me."ALICE I'ETERSONEla é demasiado orgulhosa para me permitir que seja eu a explicar. "Querida", começa a mãe, olhando directamente para a Bells, "eu queria-te aqui porque preciso de te contar uma coisa. Desculpa", diz ela, esticando-se para agarrar a mão de Bells. Mas a Bells não deixa que ela a agarre."Porquê?", pergunta ela."Tenho um tumor no cérebro", declara a mãe numa única e arrojada frase. As palavras saem-lhe tão depressa que tenho de suspender a minha respiração.Todos aguardamos que Bells diga alguma coisa. Qualquer coisa. Ela cerrou uma das suas mãos num punho e usa-o para bater na outra. "Vai morrer como o tio Roger?", pergunta ela finalmente, baloiçando-se para trás e para a frente na sua cadeira. A sala está completamente silenciosa, à excepção da respiração pesada de Bells."Sim, irei juntar-me ao tio Roger. Tenho a certeza que nos iremos divertir imenso juntos, lá em cima", diz a mãe, com os olhos apontando ao alto, como que para o paraíso. "Iremos fazer festas com tartes de cereja e whisky."A Bells levanta-se e abandona a cozinha. "Vou ver o Titanic" , diz ela.A mãe encosta-se à cadeira com um sentimento de alívio, como se a parte maisdificil tivesse sido superada. "Falarei outra vez com ela, quando estiver preparada.Vamos deixá-la ver o Titanic."O pai abana a cabeça e finalmente bebe um gole de chá. A mãe tira uma bolacha. Que bom, querida, compraste as de chocolate preto.""Não!", grito, batento violentamente com a chávena na mesa, o chá a entornar-se por todo o lado. "Vá falar com ela agora. Diga-lhe que vamos consultar um cirurgião, que

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estamos à espera que os exames lhe sejam enviados e que quando ele os receber", tenho de respirar fundo porque me sinto sufocar, "nós vamos consultá-lo."A mãe e o pai olham para mim."A Bells não quer piadas sobre o tio Roger, por amor de Deus. Ela precisa de compreender. Estou farta que nenhum de nós fale, que engarrafemos tudo e finjamos que é tudo normal e que está tudo bem, quando não está.""Katie, já terminaste?", pergunta a mãe.Conseguimos ouvir o tema da banda sonora do Titanic em fundo."Não, não exactamente", respondo simplesmente. "Não quero saber se o barco está prestes a chocar com o icebergue. A mãe vai lá dentro e desliga o Titanic. Vai contar-lhe tudo agora."O L t-irç.Estou a escutar à porta da sala de estar, "Tem medo?", pergunta a Bells à ãe."Sim, mas tenho toda a minha família comigo."Faz-se mais um longo silêncio. Creioóbvio que consolar.enho eptado bTe-se de repente e eu afasto-me rapidamente, mas éouvir."Peço desculpa... por ter gritado há pouco", digo à mãe."Tinhas razão. Agora, se não te importas, preciso de ficar sozinha. Estou nsada." Afaga-me o ombro suavemente antes de subir as escadas. Oiço a rta do seu quarto fechar-se antes de entrar na sala para me juntar à minha má.27É a manhã em que a mãe irá ser operada."Creio que poderemos fazer qualquer coisa a este respeito", disse o cirur-, segurando a ressonância magnética. "Acho que o tumor pode ser benigno, o posso ter absoluta certeza até operarmos, mas aconselhá-la-ia vivamente a atar a intervenção cirúrgica.""O que o faz pensar que possa ser benigno?", perguntou o pai tentando nter a esperança."O seu aspecto na imagem, e é possível que tenha uma margem clara de unscrição para o extrairmos.""Então está a dizer-nos que não é maligno?", perguntei. Estaria a sonhar? ta conversa não estava a acontecer, com certeza. Estávamos à espera de uma nfirmação, não de uma avaliação completamente distinta."Não posso ter absoluta certeza, mas se não fizermos nada nunca

Tive vontade de o abraçar, de me atirar para o chão de joelhos e rezar a eus, mas tentei controlar-me. O pai agarrou a mão da mãe com tanta força que eu receiei que os seus ossos se quebrassem com a pressão."Muito obrigada", disse ela, como se ele lhe tivesse acabado de dizer que podia comer picles com queijo. "Quando é que me pode abrir?"ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSAgora o pai senta-se desajeitadamente no cadeirão azul claro ao lado da cama da mãe. Sei que detesta hospitais, apesar de estar tão habituado a eles. "Nunca fica mais fácil", confessou-me ele. A Bells senta-se a seu lado. Ainda não disse um única palavra esta manhã. A única coisa que consigo ouvir é a pieira do seu peito."Como se está a sentir?", pergunto à mãe."Estou bem." Aperta-me a mão. Para além da bata do hospital, as únicas coisas que tem consigo são a aliança de casamento e a pulseira de plástico do hospital com o seu nome

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e data de nascimento. Normalmente, a mãe usa o anel de noivado com uma água-marinha, o relógio de ouro e as suas duas pulseiras de ouro, que tilintam como espanta-espíritos ao vento.Tudo nela parece despido; reduzido ao essencial."Estou pronta para o enfrentar." Respira fundo. "Sinto-me tão feliz por estarem todos aqui comigo."A Bells começa a bater na testa com o punho fechado. Levanta-se, senta-se, levanta-se de novo e começa a andar à volta da cama como um macaco enjaulado.Querida, não te importas de te sentar?", pede a mãe, claramente perturbada. Teremos feito mal em trazer a Bells? Não. Não a podíamos deixar em casa. E além disso, a mãe queria-a aqui.A Bells tira o seu inalador do bolso."Tenho realmente muita sede. Podes trazer-me uma bebida?", pergunto em desespero. O pai leva-a imediatamente até ao bar.Olho para a mãe. É a primeira vez que estamos sozinhas hoje. Os seus olhos verdes estão enormes e ela fixa-me o olhar."Fala-me do Sam", começa ela. Qualquer coisa que afaste o silêncio. "Porque acabaram tudo? Foi por causa da Bells?""De certa forma. Acho que continuaria com ele se a Bells não tivesse ficado connosco", admito.A mãe levanta as sobrancelhas, inquisitivas. "Que queres dizer? Ela bateu-lhe nos testículos?" Um ligeiro sorriso ilumina-lhe o rosto, fazendo com que os seus olhos pareçam menos penetrantes."Não, a Bells deixou de atacar os homens pelos testículos para lhes trocar os CD todos, por toda a casa.""O teu pai detesta que eu não guarde os CD dentro das respectivas caixas." Sorri a mãe. "É o seu maior fetiche."Sorrio porque também sei que ele o detesta. "O Sam não foi desagradável para ela", prossigo, "levou-nos a jantar fora uma vez, mas ficou todo envergonhado quando encontrámos o seu antigo patrão na mesa do lado. Em parte a culpa foi minha. Nunca lhe contei nada sobre ela, ele não sabia com o que contar..."Oh, disparate, Katie." A mãe deixa escapar esta familiar manifestação de incredulidade que eu sempre considerei desconcertante e profundamente rítica. Curiosamente, desta vez fico contente em ouvi-la."Eu não conheço o Sam, mas tudo o que te posso dizer é que quando vemos a Bells os bons amigos dos maus distinguiram-se imediatamente. guns deles desapareceram de um dia para o outro; foram incapazes de nfrentar a situação. Fogo-fátuo", termina ela apropriadamente.Não consigo evitar um sorriso. "Fogo-fátuo? Não havia um programa de levisão com esse título? Ele era uma espécie de personagem de animação, eio esfumado, como um fantasma?""Não sei, querida, é provável. Põem-se a andar ao primeiro sinal de dificulade, e a seguir — pufffl" Dá uma palmada com ambas as mãos. "Como por agia voltam quando lhes convém. O Gerald e a Sue são assim", diz ela."Tem razão. O Sam é um fogo-fátuo." Tenho a imagem dele a desaparecer a minha vida como uma coluna de fumo a dissolver-se em nada. Veio buscar carro, disse-me que lamentava a situação da minha mãe, entregou a minha rrespondência, e a seguir desapareceu. Disse-me que se manteria em ntacto, mas tenho o forte pressentimento que nunca mais ouvirei uma avra dele.

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"Às vezes, descobrimos o valor das pessoas do modo mais difícil", diz a ãe. "Muitas vezes, são aqueles a quem menos crédito damos que se tornam s nossos melhores amigos ou até amantes."Não gosto da palavra "amante", mas e depois? Tudo o mais parece tão irrelevante para ser mencionado agora. Deixemos que as palavras, pensamentos, se escapem a caminho da amnistia."Há pessoas excepcionalmente fantásticas, outras medíocres, e algumas são apenas verdadeiramente horrorosas", conclui ela, como se visualizasse a etique-ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOStagem das respectivas caixas. "A mim parece-me que o Sam era bastante medíocre. Não era suficientemente bom para ti, Katie.""Não eramos feitos um para o outro, é só isso.""Não, ele não era suficientemente bom para a minha Katie." A voz dela começa a enfraquecer. Parece cansada, com profundos círculos cinzentos por baixo dos olhos. Percebo que tenta recompor-se, que não se autoriza a chorar. "Conta-me mais coisas sobre a visita de Bells", continua a mãe.Decido contar-lhe como a Bells fugiu naquela tarde chuvosa. Falo-lhe nos meus salvadores, o Mark e a senhora americana do parque. "Estava aterrorizada. Nunca me perdoaria se alguma coisa lhe tivesse acontecido. Nunca me devia ter zangado tanto com ela.""É fácil perdermos as estribeiras." A mãe olha agora directamente para mim."Não tinha noção de como nos exige uma dedicação a tempo inteiro", continuo a falar. "Tinha de manter a Bells debaixo de olho o dia inteiro e a minha paciência esgotou-se. Também tínhamos de parar e falar com quase todas as pessoas que passavam por nós na rua."A mãe ri-se, reconhecendo a situação. "Levo umas boas duas horas a dar a volta ao Sainsbury's"Quantos anos tens?", imito."Qu'é que se passa contigo?", continua a mãe.Conto-lhe da noite de póquer e a mãe ri-se tão alto, batendo com a mão na coxa, que as outras pessoas da enfermaria não conseguem deixar de olhar para nós. "Parece que passaram uns dias muito divertidos. Estás a ver, é muito mais divertido para a Bells visitar-te do que estar sempre em casa dos velhos pais. Ela aborrece-se connosco.""Fomos ao London Eye. Mãe, foi maravilhoso. A Bells e eu ligámo-nos, voltámos a conhecermo-nos uma à outra. Queria que a mãe soubesse isso." Procuro dentro da mala e tiro de lá a carta que ela me escreveu. Quero lê-la para a mãe.Querida Katie Fletcher"', começo. "Adoro a maneira como ela escreve o meu apelido", acrescento a sorrir. "`Muito simpático de ti teres-me contigo em Londres. Quarto muito bonito, muito branco. Casa bonita. Tu lembras-te de ir ao London Eye. Eu..."'Apagou com caneta correctora uma palavra aqui deste mesmo sítio."`Adorei ir, vi Londres todo e gostei muito de estar contigo no London Eye. O Mark é um homem muito simpático. Viste o Mark? O Sr. Vickers também é um homem muito simpático. Desculpa eu ter ido embora, muito simpático de ti convidares-me a ir a Londres. És maravilhosa. Espero não passar muito tempo para ver-te outra vez. És muito simpática, muito boa e, por favor, mando os meus beijinhos. Obrigada."'Assinou com caneta: "`Amor, Bells. PS: Por favor, RSFF depressa."'A mãe descansa a cabeça na almofada. "O teu pai sabia que seria bom para as duas passarem algum tempo juntas. Ele é um velho sábio.""Quando estiver melhor iremos todos ao London Eye. Vocês vêm a Londres, vamos almoçar fora e fazer coisas divertidas. Combinado?" Espero pela resposta dela.

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"Katie, se eu morrrer...""Não vai morrer, vai ficar boa.""Se eu morrer", continua ela calmamente, "tomarás conta da Bells e do teu pai, não é verdade?""Mãe, não diga...""Tu foste a única pessoa a obrigar-me a compreender que neste momento devemos ser absolutamente sinceros e dizer o que sentimos.""Sim, pronto, OK",reconheço."Tenho de o dizer enquanto eles não estão aqui. Estarão de volta não tarda nada." Ajusta a sua posição na cama. "O teu pai e eu íamos redecorar a casa e... bem, ele não fará a mais pequena ideia do que fazer", murmura ela, inclinando-se para mais perto de mim. "Podes ajudá-lo?""OK", respondo, sentindo o lábio inferior começar a tremer, tal como faz o pai quando está prestes a chorar."E estarás presente para a Bells? Vais às festas do colégio e irás visitá-la aos fins-de-semana?""Sim, prometo que vou", respondo."Estou tão feliz por podermos falar assim, por não termos precisado do Sr. Simon Shackleton Merdoso!"A mãe começa a rir e a chorar ao mesmo tempo de alívio. "Lembras-te da pulseira de plástico que ele usava e da sua cara de doninha? 0 teu pai ainda hoje não fala no assunto."rtl.ik. t, 1 1~. 1 t.KSON"Lembro-me dele. Curiosamente, ainda há dias pensei nele. Lembro-me que ele chamou à mãe e ao pai intelectuais de classe média-alta.""Ah!", funga ela. "Que disparate! Tenho a certeza que os intelectuais não vêem o Quem Quer Ser Milionário? E garanto que são capazes de acabar as pala vras cruzadas." A mãe parece preparar-se para continuar a falar. "Mas quem olhará pela Katie?", pergunta ela agarrando-me outra vez na mão.^ pai e a Bells entram nesse momento. O pai traz um tabuleiro de plástico com dois cafés. Senta-se aos pés da cama. "Como está, mãe?", pergunta a Bells, balouçando-se para a frente.Uma enfermeira aproxima-se da cabeceira da cama. "Já estão preparados para a receber", diz ela.E a seguir vão barbear o cabelo da mãe, não consigo deixar de pensar. A Bells afasta-se. "Não gosto disto aqui... não é bom aqui.""Bells!", grita a mãe. "Por favor, volta para aqui. Vais buscá-la?", pede ela ao pai. "Vamos lá despachar isto o mais depressa possível. Não aguento por mais tempo."^ pai trá-la de volta, tentando tranquilizá-la garantindo-lhe que nada de mau irá acontecer."Diz adeus à tua mãe", diz, impaciente, a enfermeira para Bells.Atiro um olhar duro e acusador. Como se atreve ela a usar um tão derradeiro tom?A Bells esfrega a cabeça e respira com dificuldade. "Adeus, mãe", diz final-mente, atirando um braço para cima do estômago da mãe e encostando a cabeça à bata do hospital. "Adeus, mãe."A mãe acaricia-lhe o cabelo. "Gosto muito de ti. Vemo-nos mais tarde", diz ela.

^ pai escreve furiosamente uma lista sentado à mesa da cozinha. Não sei muito bem o que está a escrever, mas parece ajudá-lo a não pensar na operação.A Bells está a ver o Titanic, mas não faz o mais pequeno ruído quando o barco está prestes a bater no icebergue.

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Eu não sei o que fazer comigo própria. Tudo o que consigo fazer é olhar para o relógio e observar o ponteiro dos segundos a saltitar. Lentamente.

^ telefona acaba por tocar e o pai e eu corremos para ele como um relâmpago. "Atenda o pai", digo rapidamente. Oiço a Bells a apagar a televisão.OLHAR lN J vLnv3te"Oh, estou a ver", diz o pai com"O quê? O que foi?", reivindico. ue foi?", repete a Bells.O pai sacode furiosamente a mão "Podemos irediatamente."visitá-la agora", continuagravidade.iremos para aípai agarra no auscultador. "Está consciente", diz ele, repetindo clara-te o que o cirurgião lhe está a dizer. "Definitivamente era benigno." "Bells!", grito, dando saltos como um macaco maluco. "Bells! A mãe está

"A mãe vai ficar boa", diz a Bells, juntando-se a nós.Calou-me de repente. A Bells está parada a meu lado. "A mãe está bem",ela.para nos mandar calar.ele. "Está bem,28"Vai para casa", insiste a mãe de novo, depois de eu lhe ter dado mais água. 'nda estás com pior aspecto que eu."Olho para ela. A sua pele está tão pálida que quase não se distingue daofada branca e dos lençóis. Não tem nada a cobrir-lhe a cabeça, à excepçãouns curtos pêlos e uma cicatriz no lado esquerdo do rosto, curva, como umnto de interrogação. Já passaram duas semanas depois de a operação. Foi umcesso na medida em que o tumor era benigno e foi extraído; mas a operação eixou-a muito fraca e praticamente paralisada do lado direito. Nem conseguia irar-se sozinha na cama. Tínhamos de lhe fazer tudo e dormia a maior partetempo. Nenhum de nós fazia ideia que ela pudesse ficar incapaz de andar depois de a operação. "O que está aquele andarilho a fazer aos pés da minha Cama?", foi a primeira pergunta grogue que ela nos fez. A sua preocupação seguinte foi a de não conseguir assinar o seu nome. "Mãe, porque insiste tanto em escrever a sua assinatura?", perguntei-lhe, observando-a a lutar com a caneta e o papel."Já te disse. Se vou ficar assim para sempre quero, pelo menos, conseguir levantar o meu próprio dinheiro", respondeu sem fôlego. Qualquer pequeno esforço a deixa arrasada.Felizmente, a fisioterapia está já a ajudá-la a ganhar forças e mobilidade. Começou agora a levantar-se e a caminhar muito lentamente, para cima e para baixo, ao longo do quarto. Dizer que ficámos aliviados é subestimar demasiadoALICE PETERSONa situação. Foi um milagre. Quando vi a mãe caminhar pela primeira vez,aplaudi com tanta força que as palmas das minhas mãos ficaram vermelhas e a ferver."Por favor, Katie, vai para casa, querida. Leva o corpo de recrutas para casa também." Está a referir-se ao pai, que está a conversar com um dos médicos.

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Ela acha que ele a apaparica excessivamente. Fecha os olhos. "Preciso de dormir um pouco. E tu também", acrescenta ela.A mãe tem razão. Preciso realmente de dormir. Não durmo conveniente-mente há uma série de dias. O pai leva-nos para casa. Quase não falamos. "Dáalguma coisa interessante na televisão esta noite?". É a única e mundana pergunta que me faz.Quando entro em casa está tudo em silêncio. Não há Stevie Wonder. Não há Beatles. A Bells parece já não querer ouvir música. Encontro-a mais uma vez na cozinha, usando o avental de ganga da mãe, agora completamente encardido e com uma nódoa de espinafres ao meio, as suas pequenas mãos enfiadas numas pegas às pintas vermelhas. Ontem, o pai e eu regressámos a casa e ela tinha-nos preparado uma couve-flor gratinada com queijo, aproveitando todos os restos que havia no frigorífico. Foi a mais deliciosa couve-flor gratinada que alguma vez comi. No dia anterior, tinha cozinhado um quiche de courgettes e espargos. Hoje preferiu não ir ao hospital. Na verdade, não vai lá desde o dia em que a mãe foi operada. Perguntamos-lhe todos os dias se quer vir connosco, mas tudo o que nos responde é: "Digam à mãe que se ponha boa." O pai e eufazemos questão de não a deixar muito tempo sozinha. Vamos e vimos por turnos."Olá, como está a mãe?", pergunta ela imediatamente, colocando umgrande prato branco no forno e voltando-se para mim em seguida. "A mãe está bem?""Está bem, um pouco zonza e cansada. Manda-te muitos beijinhos. Bells, uau, o que estás a cozinhar?""Panquecas recheadas com ricotta e espinafres." De repente, o cheiro faz-me sentir esfomeada. "Também fiz mousse de morango. Gostas de morangos? A mãe adora morangos.""Adoro-os. És uma estrela", digo-lhe, deixando-me cair na cadeira. A mesa está numa desordem, com uma tigela, cascas de ovo, farinha para a massa, umOLHAR NOS OLHOSbloco gorduroso de margarina e uns quantos morangos pisados que nãoentraram na mousse. É uma reconfortante desarrumação."Como está a mãe?", pergunta de novo, mas no entanto sei que esperanutra resposta. "Faço-te uma bebida", diz ela, abrindo o armário. A garrafa de vodka é aberta para mim; o whisky do pai já está preparado.Estende-me a minha vodka, que aceito agradecida. "Bells, tu és realmentefantástica."O pai entra na cozinha. "A Bells fez panquecas para o jantar e preparou-`nos uma bebida", conto-lhe e ele sorri."Que delícia", diz ele. "Obrigado, Bells.""Acho que vou tomar um banho e levo a minha bebida", digo, arrancandomeu corpo pesado da cadeira."Sente-se, pai", insiste a Bells, guiando-o para uma cadeira. "Senta."Subo as escadas e entro no meu quarto. A Bells fez-me a cama – tal como todos os dias depois de a operação. Até deixou uma pequena taça com alfazema,:em cima da minha mesa-de-cabeceira.Dou comigo a entrar no quarto da mãe e do pai. Também tirou os lençóissujos da cama deles e há outros lavados para serem colocados; toda a roupa suja do pai está dentro do cesto de verga, junto à porta. Reparo que ela dispôs a fotografia do casamento da mãe e do pai ao lado do seu candeeiro de mesa-de-cabeceira, com mais uma pequena taça de alfazema. A Bells é como uma fada madrinha. Sento-me na borda da cama e apanho a fotografia. É engraçado pensar que eu e a Bells ainda não éramos nascidas quando aquela fotografia foi tirada; existiam apenas os dois, juntos, como

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começo. A mãe tinha vinte e seis anos quando se casou. Deve-me ter tido com a minha actual idade.Nem oiço a Bells sentar-se ao meu lado. "A mãe está bem?", insiste maisuma vez."A mãe está bem. Embora esteja desejosa de vir para casa. Ela odeia hospi-tais." Assim que acabo de dizer isto viro-me rapidamente para Bells. Não é um comentário muito adequado para fazer diante de Bells. "Desculpa, tu melhor que ninguém percebes o que quero dizer." Coloco a cabeça entre as mãos.Que foi?""Estou cansada.""Como está o Sam?"ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"Já não estamos juntos", digo-lhe. Já lho tinha dito antes, mas ela deve ter-se esquecido."Não é simpático, o Sam.""Ele era bom." Seguro a fotografia do casamento diante de nós as duas. "Bonita, a mãe", diz a Bells."Muito." Volto a colocar a fotografia em cima da mesa. "Obrigada pela minha adorável alfazema.""A alfazema cheira bem.""Obrigada. Fizeste tanto por nós nestas últimas semanas. O pai e eu, bem, estamos realmente agradecidos."A Bells balança-se para a frente, esfregando a testa. Ela não cora, mas acho que fica sem saber o que dizer ou fazer quando alguém a elogia. "No País de Gales temos uma escala de serviço para limpar", diz-me ela. "Limpo o quarto do Ted. O Ted é meu amigo."Sorrio para ela. "O Ted é um sortudo. Apenas quero alguém para melhorar as coisas, Bells. Para ti, para o pai, para mim, e para a mãe, especialmente para a mãe. Quero que todos sejamos felizes."Neste preciso momento sinto que toda a minha vida me escapa. "A mãe não morreu como o tio Roger", diz ela.Ela tem razão. Bem sei que me devia sentir uma felizarda. A mãe vai ficar boa. No entanto, agora que sabemos que ela irá melhorar, não consigo deixar de pensar em tudo o mais. Já não considero o meu trabalho assim tão importante quanto isso, não tenho o Sam — não que este seja uma grande perda, mas sinto a falta daquela sensação de segurança. Não tenho casa. Estou preocupada com o pai. Estou preocupada com a mãe e com o modo como nos iremos organizar quando ela voltar para casa. Estou preocupada com tudo; não admira que não consiga dormir. A Bells é o único raio de luz. O pai e eu estaríamos perdidos sem ela, comendo do pronto-a-comer e a dormir em lençóis sujos, sem taças de alfazema ao nosso lado."Nunca te sentes só, Bells?"As vezes.""Quando?""À noite.""Eu também. Porquê à noite?""Escuro. Não gosto do escuro.""Só quero que tudo volte ao normal. Quero... ei, onde vais?" A Bells limitou-se a virar-me as costas sem me ouvir. Fartou-se de mim. Olho para o tecto. Dois minutos depois ainda estou a olhar para o mesmo sítio, incapaz de me mover ou pensar no que quer que seja.A Bells está agora diante de mim com o telefone na mão."Quem é? Não o ouvi tocar", digo eu.

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"Uma pessoa ao telefone para ti.""Quem?", repito, não querendo atendê-lo sem saber quem é. "É a Emma?" Ela liga todas as noites, por volta desta hora. Deve ser ela."Mark", diz ela simplesmente."MARK?"pergunto incrédula. "O Mark telefonou?""Não.""O quê?", sussurro. "Não é o Mark, pois não?" A Bells tem um estranho sentido de humor. Tiro-lhe o telefone das mãos. "É a tia Agnes, não é?" "Katie?", oiço à distância. "Está lá? Katie?"Definitivamente, não é a tia Agnes porque se trata de uma voz de homem. "Quem é?""Sou o Mark.""O Mark é um homem simpático. Mark simpático. Mark ajuda.""Bells!", digo-lhe, tapando o bocal com a mão. "Porque lhe foste telefonar? Onde é que arranjaste o número de telefone dele?""Mark homem simpático. Pedi-lhe para nos visitar.""Eu sei que ele é simpático, mas... Oh, bolas..." Tiro a mão do bocal. "Olá, Mark", esforço-me por parecer indiferente."Katie, lamento saber o que aconteceu à tua mãe."Só de ouvir a sua voz apetece-me chorar. "Está bem, está tudo OK. Nós estamos bem", gaguejo."A Bells pediu-me que as visitasse. Bem sei que parece esquisito, mal te conheço, mas gostaria de o fazer. Quero dizer, se puder ajudar nalguma coisa, ou...""A Bells adoraria ver-te." Nem acredito que ele está ao telefone. Conto-lhe que a mãe ainda está no hospital e que os médicos pensam que será necessário que fique por mais uma semana, até poder caminhar sozinha. "Talvez tu possas vir quando ela já estiver em casa?", sugeri.ALICE PETERSON"Óptimo. Então telefona-me.""Seria fantástico", digo eu, apercebendo-me de como gostaria, também, de o voltar a ver. "Realmente fantástico. Telefonar-te-ei."Depois de a nossa conversa a Bells bate palmas. "O Mark vem!" "Como é que arranjaste o número?", pergunto-lhe outra vez."Tirei da mala. Tinha-o em Londres. Guardei-o."Não consigo parar de sorrir. O Mark vem ver-nos! Isto é tão fortuito, tão inesperado. No entanto, ao mesmo tempo, nada parece mais normal.29A Bells e eu estamos de pé na plataforma da estação aguardando a chegada o Mark. As coisas parecem estar finalmente no bom caminho. A mãe subiu degraus no hospital e foi finalmente dispensada. Esteve em casa durante bis dias. É fantástico tê-la de volta. A única coisa preocupante é o facto de ela ntar cozinhar e fazer demasiadas coisas. Determinada a recuperar alguma rência de normalidade, estava a tentar fazer um licor de sabugueiro caseiro ando, ao baixar-se para apanhar uma tigela grande, bateu violentamente m a cabeça no guarda-loiça. A sua visão foi afectada pela cirurgia e por isso quentemente choca e bate contra as coisas. O pai levou-a imediatamente a o hospital aterrorizado com a possibilidade dela ter rebentado os pontos. corpo de recrutas voltou", respondeu a mãe, quando o médico lhe disse que a não iria conseguir manter-se afastada. Felizmente estava tudo bem, nada is que um hematoma feio."Tês minutos", diz a Bells, olhando para o sinal luminoso pendendo sobre plataforma."Dois minutos... um minuto... Mark!" A Bells acena com a mão.Ele caminha na nossa direcção. O seu cabelo parece despenteado e traz os óculos

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redondos que o fazem parecer um professor. Posso imaginá-lo vestindo uma bataranca e a trabalhar num laboratório. Em vez disso, veste uns jeans pretos, umaisa azul pálido às riscas; e o seu rosto parece bronzedo. O meu rosto está amare-ido por passar muito tempo no hospital. A Bells bate-lhe no braço. "Olá, Mark."AL1Lt I'ETERSONOLHAR Nl» oL1-i.J"Olá, Bells." Aperta-lhe a mão afectuosamente. Ela bate-lhe outra vez, e ele devolve-lhe gentilmente a palmada. Depois, volta-se para mim. Produz-se aquele momento incómodo em que não sabemos como nos cumprimentar. Abraço? Beijo? Aperto de mão? Inclino-me para ele, pronta para o beijar formalmente na face, mas ele envolve-me com os braços. "Não pude acreditar quando soube das notícias. Lamento muito.""Obrigado por teres vindo", digo, não querendo deixá-lo afastar-se.Ao abrir a porta da frente a mãe grita: "Querida, estamos na cozinha." Está ansiosa por conhecer o Mark. "É este o tipo simpático que te ajudou a encontrar a Bells?", perguntou-me. "É teu namorado?""Não", Insisti. "Só o vi duas ou três vezes, mãe. É tão meu amigo quanto o é da Bells.""Portanto, como diz a Cila, ainda é cedo para comprarmos o chapéu", riu-se."Oh, mãe!" Encolhi-me, sentindo a face tornar-se vermelho vivo. "Pára com isso!"O Mark, a Bells e eu entramos na cozinha e enfrentamos o olhar da mãe,do pai e de um homem muito anafado que está de pé, atrás de um carrinho cheio de perucas até acima."Olá, Mark", cumprimenta efusivamente a mãe, apertando-lhe a mão. A mãe adora homens. Sempre suspeitei que ela gostava de ter um filho. "Katie, Bells, Mark", diz ela, examinando-o de perto mais uma vez, tentando perceberse, de facto, pode ser um marido em potência, "este é o Sr. Marshall, o homem das cabeleiras."O homem estende-nos um braço grosso e peludo e aperta-nos a mão. "Não faz bem, a sua mãe?" Sorri. "Tudo quanto precisamos fazer, é pôr-lhe uma bonita cabeleira e, depois, será tema de falatório na cidade!"A mãe passa nervosamente a mão pela cabeça. Pondo de parte alguns tufos,o seu cabelo não voltou a crescer. O pai diz-lhe que parece uma pinta com penugem.O Sr. Marshall abre o catálogo na primeira página. "Esta é a Sra. Anderson, )assou um tempos horríveis, perdeu todo o cabelo que tinha, todinho, é 'erdade. Conhecem aquela doença rara que faz cair o cabelo todo? Pela minhaa, não me lembro do nome dessa doença. De qualquer modo, ela estava no ho, no banho, isso mesmo, e, quando saiu, todo o seu cabelo flutuava na. Foi um choque terrível. Ela estava ao lado de si própria."Mostra-nos as fotografias da Sra. Anderson antes e depois. Na fotografiairada depois usa uma cabeleira castanha, que mais parece uma saladeira dernadeira colada à cabeça.O Sr. Marshall leva-nos a percorrer todo o catálogo e, nesta altura, temo oue irá sugerir para a mãe.Fecha o catálogo e nós aguardamos de respiração suspensa. "Agora, que talta para começar?" O Sr. Marshall baixa-se e retira uma cabeleira do carrinho.gura uma coisa ruiva em forma de couve, e eu fico perigosamente a pontode desatar a rir às gargalhadas. Sei que o Mark também, sinto as vibrações'cindas dele. A mãe olha horrorizada. O pai está sem fala. A Bells rebenta numagargalhada. "Muito engraçada", diz ela. "Ha-ha, muito engraçada!"O Sr. Marshall olha desconcertado, mas continua corajosamente. "Esta estámuito próxima da cor original do seu cabelo. Vamos experimentar?"

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Coloca-a cuidadosamente na cabeça da mãe, ajeitando-a e certificando-se de que nem um único cabelo fica fora do lugar. Continua, dando um passo atrás para uma melhor avaliação. A mãe olha para o pai, à espera de uma reacção. O pai olha para mim. Eu olho para o Mark. O Mark vira-se para aBells."Precisa de um espelho", diz o Sr. Marshall quando nenhum de nós profereuma palavra. Põe um espelho quadrado em frente da mãe. "Fica soberba, seassim me posso exprimir."A mãe dá um guincho de desânimo. "Mas eu tinha o cabelo avermelhado,como o da minha filha Isabel." Dá uma nova mirada ao espelho e desvia os olhos rapidamente. "Não quero usar isto. Parece que tenho uma tangerina nacabeça. Prefiro andar careca.""Mãe, podemos comprar-lhe uns lenços de seda bonitos", sugiro. "Não temnecessidade de usar uma cabeleira."Concordámos todos, excepto o Sr. Marshall, que mostra um ar desanimadoquando o pai e eu o conduzimos à porta com o seu carrinho de inenarráveiscabeleiras."De qualquer modo, obrigado por ter vindo", diz o pai em voz baixa. "Peço.. i.1 am. a, 1 1:, 1 G I<) V INdesculpa se parecemos rudes ou ingratos, mas não creio que uma cabeleira seja o mais adequado.""Não há problema", diz o Sr. Marshall, "mas se mudar de ideias, não hesiteem telefonar-me. A porta da cabeleira não foi completamente fechada, devo deixá-la, digamos, ligeiramente entreaberta."O pai e eu tentámos não nos rirmos de novo. A porta da cabeleira?"Adeus por agora." Põe apressadamente o carrinho do lado de fora.Quando voltamos para a cozinha, a mãe faz festas na cabeça de forma constrangida. "É muito simpático da sua parte ter vindo ver-nos", diz ela ao Mark, mas sei que os seus pensamentos ainda estão concentrados naquela cabeleira."Creio que fez a escolha certa", assegura-lhe ele. "Um lenço de seda ficar-lhe-á muito melhor."Sorrio-lhe agradecida. Estou tão contente por ele estar aqui. O pai tenta quebrar o gelo perguntando-nos se queremos uma bebida antes do almoço. "Aposto que nunca pensaste que eu acabaria assim, pois não, querido?"Não consegue deixar de dizer, mexendo ainda no seu cabelo muito curto. "Dificilmente impressionarei, não é?"Impressiona, sente-te impressionante e SERÁS impressionante, ouço o Sam cantar em frente ao espelho enquanto se barbeia.O pai dá um passo em frente e beija-a no alto da cabeça. "Amo-te, sejacomo for. Nunca precisarás de te esconder atrás do cabelo. Que estamos nós sempre a dizer-te, Bells?""Olha o mundo nos olhos", diz ela."O pai costumava dizer-nos isto a toda a hora quando éramos crianças", explico ao Mark."É verdade", confirma o pai. "Olha o mundo nos olhos."30A mãe e eu estamos a ver um filme antigo a preto e branco, com a Audrey epburn, o Roman Holiday. A mãe faz outra almofada em tapeçaria: Não ;consegue estar parada sem fazer nada. O seu rosto está a ganhar cor e a sua mobilidade a melhorar de dia para dia com a ajuda da fisioterapia.

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Fica bonita com o seu lenço em tons de cor-de-rosa e os grandes brincos pendentes que eu lhe ofereci. Quando o Mark veio passar o dia connosco, eu e a Bells levámo-lo às compras. "Parecem uns lustres pendurados nas tuas orelhas", disse ele, quando encostei os brincos à minha cara. Foi adorável ver o Mark, mesmo apesar de não termos tido tempo para estarmos a sós um com o outro. A mãe e a Bells monopolizaram-no. No entanto, não deixei de lhe dizer o quanto a sua visita foi importante para nós."Katie, tens de pensar em voltar para Londres", diz a mãe, assim, vindo donada."O quê?""Tens de voltar para casa.""Nem pensar. Não posso, ainda não. Quer beber mais alguma coisa? Umchá de limão?""Eu fico bem", garante-me ela.Não quero ir. A ideia deixa-me aterrorizada."Sinto-me culpada por fazer com que te afastes dos teus amigos e da tuavida."1 1\J V 1V OLHAIK IN VJ vL r7VJ"Isso não é importante. Meu Deus, não há nada importante a não ser o facto da mãe se pôr boa."A mãe poisa a agulha e vira-se para mim. "Tens sido maravilhosa, mas não podes ficar aqui para sempre.""Mas quem lhe irá preparar e levar o pequeno-almoço à cama, quem irá cozinhar? O pai não sabe cozinhar. Não, não a podemos deixar, ainda não.""Estou a melhorar a olhos vistos todos os dias e o teu pai é um bom enfermeiro. Está na altura de tu e a Bells irem para casa.""Não tenho a certeza", digo com nervosismo."Eu tenho a certeza. Tens de começar a pensar onde irás viver", diz preocupada."Não sei...""Katie", a mãe poisa a costura em cima da mesa, "nunca te poderei agradecer o suficiente por tudo o que fizeste.""Não fiz nada de especial.""Fizeste sim. Katie", continua ela, "tenho sido uma péssima mãe." Sinto um afluxo de sangue subir-me à superfície da pele.Pois tens. Estavas demasiado embrenhada no teu trabalho, distanciaste-te de mim e investiste todo o teu tempo na Bells, deixando-me apenas uma migalha. Sentia-me invisível a maior parte do tempo. Sempre me senti uma segunda escolha para ti. Parecia-me nunca ser suficientemente boa; parecia-me que não te querias envolver na minha vida. Isto era o que lhe diria há seissemanas. No entanto, nada disto importa neste momento. "Mãe, não...""Não!" Interrompe-me ela abruptamente. "Eu quero. Deixa-me. Nunca fui muito boa a dizer o que sinto. Não muito melhor que tu, na verdade." Ri-se penosamente. "Fechei-me como uma ostra." A voz da mãe quebra-se, comouma concha partida nas bordas. "Se não conseguir dizê-lo agora, nunca mais conseguirei.""OK, diga-me.""Nunca aceitei o facto de não te ter disponibilizado o tempo suficiente, nem a ideia de precisares tanto de mim como a Bells, só que de um modo diferente. Nunca te deveria ter dito que tinhas muita sorte em não ter nascido com os problemas dela, isto era a forma mais fácil de lidar com a situação. Não tecentivei o que merecias. Mas olha para ti agora. Uma linda mulher de cesso..."

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"Não sou nada.""És sim. Eu perdi uma parte importante da tua vida e quero compensá-lo.Lamento tanto.""A mãe apenas teve uma criança problemática e exigente. Eu devia tercompreendido como foi difícil para si e para o pai, em vez de pensar exclusi-.amente em mim a toda a hora! Admiro-os a ambos profundamente, por nos terem criado sem qualquer ajuda. Admiro-os mais do que sou capaz de dizer.""No entanto, não fui suficientemente boa. Sou a tua mãe", diz ela, cheia de auto-reprovação. "Se não for capaz de olhar por ti, quem será? Sei muito bem que me fechei no meu próprio mundo. O meu trabalho tornou-se o mais importante de tudo, porque me afastava da rotina diária. Então saíste de casa e, de repente, já não precisavas de nós. Tenho carregado esta culpa, ao longo da minha vida, por te ter negligenciado. Enterrei-o na minha consciência." A mãe levanta-se e sai lentamente da sala. "Tenho uma coisa para ti", diz ela."Fica aqui."Regressa, segurando um pequeno presente embrulhado em papel de sedabranco."Mãe, não era preciso.""Abre-o." Senta-se a meu lado enquanto eu desembrulho o presente. É umacaixa oval de prata com incrustações de tartaruga e, lá dentro, está o seu precioso pente de tartaruga. "A minha mãe deu-me estas duas coisas comopresente de casamento.""Adoro esta caixa, é linda. E o seu pente... a mãe sempre o usou.""Bem, pareceu-me o momento perfeito", diz ela, ajustando o lenço. "Além do mais, quero que fiques com eles. É um agradecimento por tudo o que fizeste."Poiso a caixa e abraço a mãe."Porque demorámos tanto tempo até conseguirmos falar? Porque teve de acon-tecer tudo isto, para que nos aproximássemos?", pergunta ela, apertando-me com força.31De regresso à normalidade. De regresso aos inventários, às encomendas, à organização da próxima passagem de modelos. De regresso às aulas de ioga e de natação, às saídas e encontros sociais. De regresso à rotina diária londrina; 'Ruído, trânsito, pessoas mal-educadas a empurrar e a dar encontrões. É aterrador.Fui viver com a Emma e com o Jonnie. Eles têm uma pequena moradia com jardim, perto da Turnham Green Terrace, e a Emma insistiu que ficasse no seu quarto de hóspedes até ao Ano Novo, pouco tempo antes de se casarem. Estar com eles fez com que a mudança fosse muito menos desencorajadora e ,tornou-se muito vantajoso, já que eles moram muito perto da loja e do Mark. Tenho de lhe telefonar para lhe dizer que somos temporariamente vizinhos.

Esta noite vou jantar a casa dos pais do Jonnie, que fica perto de Lison Grove. Desde que cheguei a Londres tenho visto pouca gente. A semana passada fui a casa do Sam buscar a minha máquina de costura. Foi a última coisa que trouxe. Ainda tinha as chaves, por isso fui durante a minha hora de almoço, quando sabia que ele estaria a trabalhar. A casa estava exactamente na mesma, não que eu estivesse à espera de a ver diferente. Tudo imaculado e nos seus devidos lugares. Parecia que eu nunca lá tinha vivido. Passei as chaves por baixo da porta. "Adeus, Sam", disse eu. Como tinha previsto, ele nunca mais apareceu depois de as notícias a respeito da minha mãe.ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS

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Enquanto espero pelo táxi na sala de estar, olho para as fotografias do noivado de Emma e do Jonnie, tiradas em Battersea Park. Estão num porta-fotografias desdobrável, de cartão preto e dourado. Tiro uma da prateleira. Faz-me lembrar aqueles cartões que me costumavam oferecer com as fotografias do final do ano, "a fotografia ficou completamente estragada porque a Katie resolveu levantar a saia e mostrar as cuecas", lia a mãe. "Que tens a dizer sobre ISTO, madame?" Ficava sempre à espera de uma explicação, mas tenho a certeza que conseguia ver-lhe no rosto o esforço de um sorriso contido. Só de pensar na minha casa fico com saudades. É uma ironia. Quando era adolescente, tudo o queria era fugir de lá. Agora, é o único sítio onde quero estar. Lá, senti-me segura, protegida num casulo. Senti-me útil.No dia em que me vim embora, o pai e eu ficámos calados na plataforma da estação à espera que o meu comboio chegasse, ambos fechados nos nossos pensamentos. Eu pensava em ser outra vez criança, subindo para o comboio com a minha mala vermelha garrida, para visitar a tia Agnes, com o pai começando a dizer adeus com a mão assim que o comboio iniciava a sua marcha."Não quero ir, não vou", disse assim que o comboio chegou.O pai sorriu afastando-me uma madeixa de cabelo dos olhos e prendendo-o atrás da orelha, como costumava fazer quando eu era mais nova. "Tens de ir."Abriu a porta e ajudou-me com a bagagem. "A mãe e eu ficaremos bem sozinhos."A Bells tinha partido no dia anterior. "Uma que foi, outra a sair", disse o pai. Ela estava feliz por regressar. Sentia saudades do colégio, das amigas, do futebol e da sua rotina diária. Eu não senti saudades de nada e isso assustou-me. "Quem vai cozinhar para si, pai?", gritei, enquanto o comboio arrancava lentamente.Ele acenou-me com a mão. "Não te preocupes, cá me arranjarei sem a Belas."Ri-me. "Nada de segredos, NUNCA MAIS!", berrei pela janela. "Dizemos tudo uns aos outros, bom ou mau. Fantástico ou terrível!" Estranho, o modo como a nossa família funciona. O pai e eu passámos o que pareceu uma eternidade juntos na plataforma, à espera, e agora que estou a partir as palavras brotam à superfície, efervescentes como bolhas de champanhe. Tenho mais alguns segundos antes que ele fique completamente fora da minha vista."Tudo", concordou."Promete?""Prometo."Atirámos beijos um ao outro. Parecia um concurso para ver quem parava primeiro. A silhueta do pai rapidamente se desvaneceu na distância. Era a única pessoa a permanecer na plataforma.Volto a abrir uma das fotografias. A Emma está sentada e o Jonnie está atrás dela, envolvendo-lhe os ombros com os braços. Ela veste um vestido vermelho que contrasta com o seu cabelo castanho-escuro cortado curto e os seus olhos castanhos. Ele veste uma camisa azul clara a condizer com os seus olhos azuis. É tudo muito cores-combinadas e muito adulto. A campainha da porta toca n finalmente e eu volto a pôr a fotografia no lugar.

A Emma estende-me um grande copo de vinho. É um copo sólido e muito cheio que pode levar quase um quarto de uma garrafa. Perfeito. O Jonnie conduz-me à sala de estar. "Tens de conhecer os meus pais", diz. Estão de pé, esperando junto à lareira. "Mãe, pai, apresento-lhes a Katie.""Chame-me Will." É um homem grande e gordo, por isso é perdoável que quase ria alto quando ouço a sua voz de soprano.

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"Chame-me Hermione." A mãe do Jonnie dá um passo em frente para me apertar a mão. Deve dar-me pela cintura. Parece uma ratinha e calça desses peculiares sapatos pontiagudos e multicoloridos que se enrolam nas biqueiras como a ponta de uma gôndola. Parece-se com o modo como o Will fala."Que faz, Katie?", pergunta ele, de olhos muito abertos e sorrindo. Eu tento ainda manter um ar sério. Porque não me preveniu a Emma acerca daquela voz? Ela deveria saber como eu iria reagir."Sou proprietária de uma loja de roupas", respondo-lhe."Oh, que interessante", guincha ele, tocando o seu pulôver azul de decote em vê com ambas as mãos. Faz-me lembrar os pulôveres que os jogadores de golfe vestem. Precisa apenas das calças axadrezadas e da pala para poder ir jogar.Pensa numa história triste, numa história muito TRISTE, digo para comigo quando vejo aqueles dois olhando-me de olhos arregalados. Crianças famintas do mundo...ALICE PETERSON"Como é que se chama?", trina entusiasticamente Hermione. "Conheço uma pessoa que trabalha em moda. Ela tem de viajar imenso para Paris. Acho que trabalha para o Gucci ou Givenchy, ou qualquer coisa assim.""Bem", pigarreei, "chama-se MDN.""MDN?""Significa Mulheres De Negro", explico-lhe."Oh", diz ela, com a voz claramente marcada pela decepção. "Acho o preto tão triste, todas vocês, jovens, o usam", comenta ela, examinando o que trago vestido. Estou a usar uma camisola macia preta de gola redonda, com lantejoulas nos punhos. Distraio-me quando o Jonnie me oferece um prato com frutos secos e me pisca o olho."Então está a viver com o Jonnie e com a Emma, suponho?" Hermione perdeu todo o interesse na minha carreira, portanto."Sim, é verdade", digo, acrescentando imediatamente, "por pouco tempo, quero dizer", ao constatar na cara dela que quase desmaia de consternação. "É estritamente temporário, só até encontrar uma casa para mim.""Portanto, a Katie não é casada?" Tanto a Hermione como o Will olham para mim expectantes, como o Bucha e Estica. Engulo mais um trago de vinho. "Não", respondo, sentido-me compelida a acrescentar, "por enquanto.""Oh, que pena", pipila o Will, com a sua enorme cara de lua cabisbaixa.A boca de Hermione enruga-se como uma ameixa seca. "Vocês jovens esperam tanto tempo. Eu casei-me com o Will aos vinte anos. Tinha três filhos com a vossa idade. Vocês são todos iguais. Quero dizer, olhe para o Jonnie, ele lá leva o seu tempo", resmunga ela.Estou tentada a dizer que, muito provavelmente, ela teve de casar com o marido depressa, não fosse ele mudar de ideias e desatar a fugir."Que fazem os seus pais?", continua ela. Parece realmente um hámster. Apetece-me atirar-lhe umas nozes para dentro da boca. "Bem, o meu pai trabalha na Sotheby's", digo-lhes.Hermione reconhece amavelmente a importância do emprego, acrescentando que deve ser um trabalho muito interessante. Quase a vejo a marcar um certo, de aprovação. "E a sua mãe?"Aclaro a voz. "A minha mãe tem passado por um perído terrível, nestes últimos tempos. Teve um tumor no cérebro."OLHAR NOS OLHOS"Lamento. Que terrível para todos vocês."

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"Foi horrível, terrível..." O meu ritmo cardíaco acelera. Basta-me pensar nisso um segundo para me sentir cheia de sorte, tudo o resto se desvanece, à distância. "Não, bem, foi horrível, mas ela agora está bem. Ultrapassou tudo, está a passar muito bem", explico orgulhosamente a Hermione. "O tumor erai benigno, mas se não fosse extraído... bem..." a minha voz apaga-se, incapaz de pensar nessa possibilidade. "Ainda serão precisos uns bons seis meses a um ano para que ela regresse totalmente à normalidade, mas está bem, mesmo muitobem."o dizê-lo, quase nem consigo acreditar que seja verdade. A mãe safou-se. Todos nós nos safámos. Estou a imaginá-la agora, sentada à mesa da cozinha, com o seu lenço de seda vermelho vivo e dourado enrolado na cabeça, a ler ao pai a receita de um empadão de peixe para o jantar."Que corajosa", comenta Hermione.Tenho de me esforçar para evitar fazer uma carranca. Este tipo de reacção deixa-me louca. "Sim, pois é. Assumiu um grande risco ao fazer-se operar, mas para sermos honestos, também não tinha opção.""Lasca o peixe, querido", oiço-a repetir, porque em vez disso o pai o está a picar. Na verdade, só consegue cozinhar ovos mexidos."Portou-se muito bem", pipila o Will."Tenho muito orgulho nela. Sinto-me muito afortunada por ainda atermos connosco, e...""Tem irmãos, ou irmãs?", interroga o hámster cheia de esperança.Bebo mais um gole de vinho para me preparar para a pergunta que sei vira seguir. Uma tragédia não pode, certamente, conduzir a outra? Deve haveruma luz ao fundo do túnel? Aposto que é isto que o hámster está a pensar."Tenho uma irmã.""E ela é casada?""Não.""Mãe! Pare de bisbilhotar", grita o Jonnie da cozinha. "A mãe pensa que toda a gente com mais de vinte e um anos devia estar casada", avisa-me ele. "Oh. O que é que ela faz?"Claro que ela iria perguntar isto. Perguntar às pessoas o que fazem é uma espécie de tique nervoso da classe média. Começo a tossir, embora não tenhaOLHAR NOS OLHOSvontade de o fazer, e respiro fundo. invulgar. Ela... bem...""Bells? É assim que se chama?""Desculpe. Bells — Isabel. Sempre a tratámos por Bells, como diminutivo.""Oh, estou a ver. Porque é que ela é invulgar?" "Vive numa espécie de comunidade,parece uma quinta, mas não é", acrescento. "Ela vive numaquinta?" Hermione enruga a testa, confusa."Não, não é uma voluntária" digo, "É voluntária?"girando o anel de prata no meu dedo "Vive lá, é a sua casa.""Oh", diz a mãe do Jonnie, com um ar ainda mais intrigado. "É uma lar especial para.."para o dizer, "pessoas com incapacidades po me, pensando na palavra indicadaSe Hermione tivesse uma daquelas rodas para hámsters, estariagirar descontroladamente. "Quer dizer agora a"Sim, dito dessa maneira, suponho que ela tem uma deficiência mental?"que sim", digo comdureza, "tem."meu Deus. Que rachada.

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"Oh, meu Deus, oh Ue pena", diz Will, no seu tom de cana"Pobre, pobre coisa", acrescenta o hámster, revirando os ca

pesarosamente. ntos da boca"Ela não é uma pobre coisa", É uma excelente cozinheira, adora m única em tom dosa.e fut bol nada desafio. "E maravla não saiba a respeito dos Beatles ou do Stevie Wonder. Também tem a que d nãohumor mágico. A Bells é ela própria, e se lhe dissesse que er um sentido d,ela dava-lhe uma marrada em cheio nos testículos."a uma pobre coisa,parte do que disse, mas era tarde demais. O Quis retirar esta últimaengasgar-se e a seguirJonnie desata a rir; oiço a Emma expressões são ainda dsoprar.

comiseração. Oara ° Will e para a Hermione, mas as suasE EU TENHO UM Nem sequer estão a ouvir.gritar, apontando CANCRO NOS INTESTINOS apetece-medesgostosamente o lábio com força. Quando comecei para

a visualizar ea sgelgarrosmas mordo a marrar contra os s testículos do Will, tive de me esforçar imensoo tom do grito que sairia dali! Deixei escapar um° desatar a rir. Imaginem

ara a E desesperado, "Precisamcozinha.

de uma ajuda?", p mma e para o Jonnie, que se encontravam na"Bem, a Bells é um caso ligeiramente"Não, estamos bem", responde a Emma, e eu consigo ouvir o sorriso na sua pz. O Jonnie, solidariamente, enche-me o copo até acima.Mudo de assunto falando no fotógrafo que a Emma encontrou para o casaento. A Hermione já viu a fotografia do bolo de chocolate que ela escolheu que será enfeitado com flores brancas? O que vai a mãe da noiva vestir? Eu ei desenhar e fazer o véu para o vestido da Emma. A Hermione diz-me que ora casamentos no Inverno, porque foi nessa altura que se casou. Tudo coisasras e divertidas para tema de conversa."O que que faz uma rapariga bonita como a menina, sozinha numa noite orno esta?", pergunta-me o taxista ao ligar o motor. A Emma enfiou-me para dentro do táxi porque ficará com o Jonnie, esta noite, em casa dos pais dele."Tem namorado?"Este taxista é muito atrevidote, não? "Tenho sim, obrigada", digo aos soluços, decidindo que é muito mais divertido mentir. "No entanto, receio não poder falar muito sobre esse assunto", digo-lhe, inclinando-me para a frente, para o espaço vazio entre o banco dele e o do passageiro da frente. "Um bocado complicado. Não quero fazer as notícias de primeira página dos jornais. Temos de viver separados, é muito arriscado de outra maneira, por causa dos paparazzi." Recosto-me de novo no banco de pele e deixo escapar outro soluço. "Ups, desculpe lá isto.""Tás a mangar, minha", ri-se ele. "Devia pedir-lhe um autógrafo?" "OK", concedo. "Agora estou por minha conta. Acabei de me separar." "Eu sabiá', exclama ele. "Consigo adivinhar as coisas. Oh, isso é muito triste.Tive saudades da minha mulher quando nos separámos, percebe o que quero dizer?" "Tenho muito má pontaria para os homens. Como se chama?""Fourque." "For quê?" "Fourque",repete ele e prossegue soletrando o nome. "F de Francisco,O de Oliveira, U de Urso..."

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"Bem, Fourque, escolho sempre homens que, no fim, acabam mostrar uma porcaria. Com o meu antepenúltimo namorado tinha uma relação anormal, o último era um pavão que só dizia disparates.""Então escolhe os bichos?""O quê?"porse234nL11 1'E'TERSON"Bichos. É o que chamo às pessoas que não prestam. Há uma data delas por aí, percebe o que quero dizer? Tem de ter cuidado." "Bichos! Gosto disso. Faz-me lembrar um monte de ratazanas-com_carade-pessoas a rodopiarem com luzes vermelhas cintilantescomo são para mostrareperigosas." m"Pois, roedores, minha", ri-se comigo."Roedores", grito através da janela, sentido o ar fresco a bater-me na cara"A questão é, quem me dera que eles tivessem luzes vermelhas cintilantes. Está a ver toda essa gente muito bem vestida e com muito bom ar que anda por aí, mas metade deles também serão, muito provavelmente, bichos, roedores, minha. Só gostava que os pudéssemos distinguir.""E quanto a si, agora?", pergunto, inclinando-me de novo para a frente."Quanto a mim? Bem, quero singrar no mundo da música. Não quero fazer isto o resto da minha vida", diz ele, apontando para o volante. "Vou a uma entrevista para a semana. É a minha oportunidade de fazer uma coisa que sempre quis fazer. Temos de aceitá-la, não é verdade? Percebe o que quero dizer?""Sei exactamente o que quer dizer", respondo com convicção. "A vida é demasiado curta para a desperdiçarmos. Uau, abrande, pare aqui." Quero comprar outra garrafa de vinho na loja de bebidas.Saio do carro e pago-lhe através da janela dos passageiros. Ele sorri-me e os seus olhos iluminam-se, como luzinhas de Natal. "Vai torcer para que eu fique com o emprego?", pergunta. "E eu torço para que encontre o homem certo." Dou comigo a abanar afirmativamente a cabeça porque gostodele. `E mantenha-se longe dos bichos", acrescenta.Entro na loja das bebidas e fixo o olhar nas diversas garrafas de vinho que e expõem diante de mim. No fim, acabo por escolher uma qualquer das mais migas e cambaleio até à caixa registadora. "Obrigada", digo, agarrando no Lco. "Tenha um bom dia.""Katie?", oiço.Paro e viro-me para trás. Conheço aquela voz. Inclino a cabeça para ele. az um casaco de bombazina vestido e segura na mão uma garrafa de água e n pacote grande de batatas fritas barbecue.OLHAR NOS OLHOS"Mark." Sorrio, incapaz de esconder o meu contentamento em encontrá-lo. ercebo-me que tenho a boca escancarada e apresso-me a tentar parecer-me pouco menos que um peixinho dourado."Que fazes aqui?""Eu vivo aqui." Explico-lhe que estou a viver em casa da Emma tempora-atraente."Isso é óptimo. Como estás? E como está a tua mãe?""Não está aqui." Porque é que eu disse isto?O Mark olha para mim com um olhar estranho. "Tenho de pagar isto,

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pera um segundo. Não saias daí." Procura nos bolsos umas notas e umasquantas moedas soltas.Digo-lhe que espero lá fora e dou uma escapadela à rua para beber umpouco. A noite está a tornar-se muito mais interessante do que aquilo que euestava à espera. Aleluia! Amo o Mark!Começamos a caminhar em direcção a casa, comigo a amaldiçoar o factode chegarmos lá em trinta segundos. Porque não vivemos a pelo menos um quilómetro de distância? "Tenho estado à espera que me telefones. Quando éque voltaste?", pergunta ele."Há cinco dias. Eu astava para te telefonar, mas tive tanto trabalho na loja,uma série de coisas para pôr em dia, tu sabes como é. Desculpa, devia..." "Não te preocupes, eu compreendo. Bem, moro aqui", diz ele, parando junto a uma porta preta com dois degraus de acesso. "Mas eu levo-te a casa daEmma."Não me mexo um milímetro. Não posso deixá-lo escapar. Gosto dele. Quistelefonar-lhe, mas perdi a coragem sem a Bells como pretexto. Preciso de arranjar coragem, agora. Que tenho eu a perder, nesta altura? "Posso entrar? Vamos abrir esta garrafa de vinho." Começo a subir os degraus.Ele agarra-me o braço para me segurar. "Não achas que já bebeste o sufi-ciente?", pergunta, com um tom divertido na voz.Faço-lhe uma careta de desaprovação.Ele desiste.O apartamento do Mark é pequeno. A bicicleta dele está encostada àparede do corredor. Entramos na sala de estar e eu deixo-me cair no sofá confortável.ALICE PETERSON"Vou pôr a chaleira ao lume", diz-me ele, abandonando a sala. "Queres café?""Que estás a fazer?", começo a falar sozinha. "Que estás a fazeeeer?" Oiço o Mark a rir-se na cozinha. Cinco minutos depois entra com duas canecas na mão. Espreito para o meu café como se não soubesse o que aquilo era. "É sábado à noite. Fui torturada a noite toda pelos pais do Jonnie. Acredita-me, preciso de uma bebida decente." Dou um pontapé num copo de vinho que estava no chão, junto aos meus pés. "Ups! Que estão todos estes copos de vinho a fazer?""A fazer?", ri-se o Mark. "Estão a fazer uma festa." Despe o casaco.Há uma garrafa de vinho branco aberta, em cima da mesa de apoio, diante de mim. Sirvo-me de algum usando o copo mais próximo, e entornando um pouco do gargalo. O Mark apanha o outro copo que está perigosamente à beira de levar um pontapé. Cheiro o seu afier shave. Tem vestida uma camisa branca, macia. Tenho uma vontade repentina de me aconchegar no seu ombro e ser decentemente abraçada por um homem. "Este sítio está numa grande confusão, não está? Deste uma festa esta noite?"

"Tive uns quantos amigos aqui em casa.""Tiveste uns quantos amigos aqui em casa", repito, muito séria, bebendo a

seguir um generoso trago de vinho. "Sabes, Mark, é mesmo muito janota voltar a ver-te.""Janota?", ri-se ele. "Gosto da palavra.""Vocês, professores de inglês, tu. Achas qu'é o destino, Mark, a forma como chocámos um com o outro? Ali estou eu, na loja, e — zás! Chocamos um com o outro, assim, sem mais nem menos. Ou o tu viveres tão perto da Emma e eu ter vindo morar com ela,

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mesmo ao lado da tua porta. Estava predestinado assim. Só pode ser." O Mark levanta o sobrolho."Sempre quis ser capaz de fazer isso!", aproximo-me mais dele, de boca aberta. "Com'é que fazes isso? És capaz de enrolar os erres..." Deixo-me cair para trás, encostando-me ao sofá, como uma boneca.Ele enrola os erres, parando abruptamente. "Isto é uma noite muito estranha."

"Sabes, acho que pode ser o destino, Mark. Acreditas no destino?" Ele parece inseguro. Levanto-me do sofá para ir direita à sua aparelhagem deOLHAR NOS OLHOSmúsica, espiar os CD. "My Fair Lady? Oh, meu Deus, és gay. Ahhh!", suspirofundo. "Faz sentido."O Mark está agora com um ar desorientado. "Não sou gay, é um CD paraa escola. Estamos a fazer um teatro, este ano.""E o que é este papel todo?"O Mark levanta-se abruptamente e tira-mo das mãos, arrumando-o nolugar. "É o meu livro.""Oh! Vamos dançar?" Começo a rodopiar e o Mark apanha-me, liberta ocopo de vinho da minha mão e agarra-me para que eu não caia. Ele podia largar-me agora, penso eu. Acaba por fazê-lo e eu atiro-me para cima do seusofá."Olha, acho que estás a precisar da tua cama. Queres que te leve a casa?" "Queres que eu vá para casa?", pergunto-lhe pudicamente, esforçando-mepor parecer sedutora. "Sabes, Mark, és um homem muito atraente. Há qual-quer coisa em ti." Arrasto a palavra "ti". "Aproxima-te um bocadinho mais." Ele chega-se para junto de mim. "Não fiques tão aflito, Mark." Fecho os olhospor um segundo, antecipando um beijo."Katie." Sinto uma mão a sacudir-me o braço. "Oh, merda, Katie. Acorda,Katie, por favor. Acorda."As palavras ecoam à minha volta, mas ignoro-as, entrando numa profundaescuridão.32Acordo na manhã seguinte num sofá confortável, com uma manta por cima. Tento mexer-me. A minha cabeça! Começo a lamuriar-me. Seguro-a firmemente entre as mãos. Engulo. A minha boca sabe a esgoto. Concentro todas as minhas forças para me sentar, puxando o cobertor comigo. Onde estou? Há um copo de vinho em cima da mesa à minha frente e o seu cheiro faz-me náuseas. Ainda visto a roupa de ontem à noite. Dói-me o pescoço quando o movimento. Sentar-me direita é demasiado doloroso. Isto é um pesadelo. A minha cabeça bate de novo na almofada. A última coisa de que me lembro vagamente foi de beber um café amargo. Fecho os olhos e volto a adormecer.

Acordo abruptamente com uma cãibra no braço. Afasto rapidamente a manta felpuda de xadrez, levanto-me e começo a rodar e a sacudir o braço. Os copos de vinho desapareceram. Olho de novo à minha volta, tentando reunir numa única peça os acontecimentos da noite passada. Papéis e livros transbordam de uma secretária e um candeeiro alto prateado com pernas araniformes está de pé ao lado de um computador. Há uma prateleira pintada de branco sustentando ainda mais livros e uma pequena televisão no canto do quarto. O Sam teria um colapso se a sua casa se parecesse com esta. Apanho do chão um copo de água e bebo-a de uma golada. Estou morta de sede.

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Ao pé do copo está uma caixa de comprimidos brancos. No chão, há um pedaço de papel com a margem rasgada pela argola de um arquivador.ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOS"Fui dar uma corrida, volto depressa, Mark. P.S.: Estes comprimidos são para a dor de cabeça."Mark. Estive com o Mark a noite passada! Claro que estive. Onde pensava eu ter estado? Começo a andar pelo quarto, chocando com uma tigela branca de plástico – do tipo das que a mãe usa para peneirar a farinha e o açúcar para fazer bolos. A situação é embaraçosa. Terá pensado que estava tão bêbada que iria vomitar durante a noite? Obviamente pensou.Em breve estará de volta. Como vim aqui parar? Lembro-me de o ter encontrado, mas passar aqui a noite? Porque não me consigo lembrar? Sento-me e esforço-me por pensar acerca do que teremos falado a noite passada. O Mark deve ter saído para uma longa corrida. Aposto em como está desejoso que eu já me tenha ido embora, quando voltar. Está provavelmente a tomar o pequeno-almoço com os amigos, contando-lhes que, a noite passada, me fui abaixo no seu sofá. Esfrego os olhos. Tenta lembrar-te, Katie. A minha cabeça parece cheia de teias de aranha. O que posso fazer, é correr para casa da Emma e do Jonnie, tomar um duche, pôr-me com um aspecto decente e voltar para lhe agradecer... o quê? Penso nisso mais tarde. É um bom plano, Katie. Tento desesperadamente empurrar-me para a acção, mas não acontece nada. Estou de pé, pasmada, como uma folha de alface murcha. Ouço o bang distante de uma porta, seguido do rodar próximo de uma chave. O meu coração pula de novo com o pensamento de o ver. Sento-me e tento parecer à vontade.O Mark entra no quarto segurando uma garrafa de água e um jornal. As suas faces parecem frescas e gritantemente limpas. "Bom dia." Sorri como se tivesse ganho a lotaria. Porque parece tão feliz? "Como te sentes?""Sinto-me bem!", minto. Aguardo por qualquer informação que me permita saber porque dei comigo neste sofá."A sério? Estás com um péssimo aspecto", diz ele.Rio-me e admito, "Sinto-me horrível. Sinto-me pior do que pareço e isso já é dizer alguma coisa.""Comprei o pequeno-almoço para nós. Bem, na verdade, almoço. Já comi um pouco de cereais. Fica para o pequeno-almoço, está bem? Não vou aceitar uma negativa, de modo que vem para a cozinha quando estiveres pronta."Constrangida, arranjei com a mão o meu cabelo oleoso. Impressiona, sente-te impressionante... oh, cala-te, Sam."Toma um duche, se quiseres."Meu Deus, está a oferecer-me um duche. A seguir vai oferecer-me a sua escova de dentes. Como aconteceu isto? Abano a cabeça. Da noite passada, ' lembro-me claramente do Will e da Hermione. Depois, choquei com o Mark e bebemos mais vinho e café. Estou segura de que nada mais aconteceu. Real-mente convencida. Ele não me teria deixado no sofá, não é verdade? Teria acordado na sua cama. "Mark?", chamo, enquanto me dirijo para a cozinha.Encontro-o ao fogão a fritar bacon. Adoro o cheiro de bacon e de torradas. Sento-me, subitamente esfomeada. "Mark, de que falámos a noite passada?",pergunto cautelosamente.' "Nada de mais." Tem postos aqueles óculos de aros pretos que me fazemlembrar o meu pai."Não estava com uma linguagem peganhenta?"

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"Peganhenta? Adoro o teu estilo linguístico. Gosto particularmente dojanota.""Janota? Que disse eu ontem à noite?""Não me lembro muito bem", diz ele, levantando ligeiramente os cantos da 1 boca enquanto se finge concentrado no cozinhado. O óleo espirra e atinge-o perto do olho. "Ai! Odeio quando isto acontece.""Vá lá", encorajo-o docilmente. "Tu lembras-te, eu sei que sim.""Está bem, pronto. Disseste que era janota voltares a ver-me, e a seguirapagaste-te."Ponho a mão em frente da boca. "Desculpa. Fui assim tão vulgar?" Finco os cotovelos na mesa. "Sinto-me tão doente", lamento-me. "Estava realmente tão embriagada que nem conseguia dar cinco passos para casa?""Sim, podre de bêbeda.""Podre de bêbeda?""Eu tentei pegar-te ao colo...""Bem, definitivamente, vou começar a fazer natação", prometo honesta-mente."Katie, não foi isso que quis dizer. Acontece apenas que um corpo morto é muito pesado."Acho que preferia que me chamassem corpo gordo a corpo morto. "Olha para ti, estás magra como um palito.""Como que nem um cavalo, mas os meus nervos consomem tudo. HerdeiALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSos genes da mãe." A mãe. Hoje tenho de lhe telefonar para saber como é queela está. "Ela também é magra, mas ambas temos traseiros bem redondos" acrescento com orgulho.O Mark levanta um sobrolho ao mesmo tempo que retira o bacon da frigi_ deira e o coloca em cima do papel de cozinha. A gordura invade o papel branco com galinhas desenhadas nos cantos. Ele volta-se para mim com a espátula namão. A gola da sua camisa azul clara está rigidamente levantada e veste de novo aquela camisola azul com buracos no cotovelo.Quando estávamos a comer as nossas sanduíches de bacon e a beber café e sumo de laranja, o Mark pergunta-me o que aconteceu com o Sam e por que razão já não estou a viver com ele. "Katie, tens um bocadinho de laranja presa no dente", aponta ele quando eu começo a responder. Censuro a história. Não lhe conto exactamente porquê; não menciono o que o Sam disse no restaurante; tudo o que lhe digo é que a relação se esgotou naturalmente. O Mark acena a cabeça, pensativo. Percebe que estou a abreviar a história para a simplificar. "Lamento ouvi-lo. Há alguma hipótese de vocês se reconciliarem?"Abano a cabeça firmemente. "Não ficou nada por dizer. Eu escolho osbichos." Começo a sorrir, lembrando-me aos poucos do taxista que me levava a casa."O quê?", o Mark tem novamente aquele ar perplexo."Esquece. Que vais fazer hoje?""Tenho de acabar o meu livro. O prazo termina amanhã."O Mark olha para o relógio. "Na verdade, tenho de me despachar."Sinto uma dolorosa ferroada de desapontamento. Gostei de tomar opequeno-almoço com ele. Pareceu-me uma extensão da noite e não me queria ir embora já."O teu livro? Não escreves em casa?"

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"Por vezes. Aluguei há pouco tempo um pequeno espaço de escritório porque acho mais fácil escrever fora daqui.""Parece uma boa ideia. E depois vais mandá-lo para os editores, não é?" Acreditas no destino? Engulo em seco com dificuldade, sentindo um fluxo vermelho subir-me pelo pescoço. Ter-lhe-ei dito mesmo isto?"Sim, é assustador deixá-lo partir para o covil dos leões.""Imagino. Gosto de ler. A directora do meu colégio ensinou-me a gostar.Aos quinze anos já tinha lido todo o Tolstoy, Emily Brontë e a Jane Austen. Gostava de saber escrever. O livro é sobre quê?" Neste momento sinto que ;tenho de manter a conversa longe do que aconteceu a noite passada. Aparecem-se de repente uns lampejos restropectivos a respeito da noite ante-rior, como luzes a assinalarem perigo. Achas que é o destino, Mark, a forma -como chocámos um com o outro? Afundo-me ainda mais na cadeira.A campainha da porta toca.O Mark apanha o intercomunicador. "Que surpresa", exclama ele. " Penseiue só viesses para baixo esta noite?"Oh, meu Deus, tu és gay. Não sei quando devo parar, pois não? Oh, está'bem, que importância tem isso, realmente? Tento convencer-me. Muito prova-,velmente sente-se lisonjeado com a atenção."Vais deixar-me entrar?", oiço, vindo do lado de fora do apartamento."Desculpa." Carrega no botão do trinco."Quem é?", pergunto casualmente."A minha namorada. Vive em Edimburgo.""Oh, estou a ver, que bom." Um enorme baque de decepção atinge-me o'fundo do estômago. "Certo, é melhor ir-me embora", digo eu, tentandoparecer que tenho um dia muito atarefado pela frente.Uma rapariga alta, de cabelo castanho claro amarrado num descontraídorabo-de-cavalo, entra na cozinha. Veste uns jeans, com uma camisa justa, branca às pintas pretas. Dá um passo em frente para beijar o Mark. "Olá, tu", diz ela, e ambos se abraçam com brevidade. "Surpresa! Decidi apanhar umcomboio mais cedo. O meu trabalho pode esperar."O Mark tosse. "Jess, gostava de te apresentar a Katie.""Oh, olá." Cambaleia ligeiramente com a surpresa. Sorri, pouco segura,olhando para mim e percebo que está a tentar compreender porque estou eu na cozinha do Mark, vestido com um top preto de cerimónia e com umasprofundas olheiras."Certo, é melhor eu ir andando", digo."Mark, desculpa, mas quem... quero dizer, o que está a acontecer?""Não está a acontecer nada", afirma ele convictamente. "Já te tinha faladona Katie", assegura-lhe. Em seguida olha para mim. "Desculpa, mas contei à Jess o que aconteceu à tua mãe, espero que não te importes."4,1_1 e.r, i t t bRSONOLHAR NOS OLHOS"Oh, tu és a Katie", exclama ela com algum alívio. Depois morde o lábio eexamina-me de perto, mais uma vez. "Como está a tua mãe?", pergunta vagarosamente, com os olhos enevoados. Ainda está a tentar compreender porque estou na cozinha do Mark."Está muito melhor, obrigada." Mas a Jess não está a ouvir. Eu podia ter dito um disparate qualquer.

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"O que está exactamente a acontecer?", olha rigidamente para o Mark. "Estás a esconder-me alguma coisa?""Tenho de ir", digo nervosamente."Ficaste aqui esta noite?", pergunta-me ela friamente. "Meu Deus, não", respondo atabalhoadamente."Bem, podes simplesmente explicar-me o que fazes aqui?" A sua voz está calma, mas percebe-se que a fronteira é muito ténue."Bem, eu fiquei aqui, mas obviamente não da maneira que tu pensas." "Jess, isto é ridículo", diz o Mark."Ridículo? Achas?", dúvida ela, ainda visivelmente fria e não tirando os olhos dos meus. Quero ir para casa.O Mark obriga Jess a sentar-se à mesa, ao meu lado, e puxa uma cadeira para si. "Ontem à noite a Katie e eu chocámos um com o outro na loja das bebidas. Eu estava a comprar batatas fritas e uma garrafa de água... Comprei mais alguma coisa?", perguntou a si mesmo. "Bem, não interessa", e continuou, abanando a mão com desdém. "De qualquer modo, caminhámos juntos até casa, queria saber como estava a mãe dela. Ela entrou para uma bebida — e tu estavas tão cansada, não estavas?" Fez um gesto na minha direcção. "Depois, ela adormeceu no sofá", terminou, sério. "E não há mais nada para dizer.""Lamento, Jess, o Mark estava apenas a ser um bom amigo. Eu estava real-mente muito cansada.""Portanto, não aconteceu nada", diz ela, agora mais uma afirmação que uma interrogação."Nada", dissemos, o Mark e eu, ao mesmo tempo."Olha, a Katie dormiu aqui ao lado." Levou-a para a sala de estar. "Mark, se me estivesses a mentir, eu não suportaria isso", ouço a Jess dizer-lhe em voz baixa, pois sabe que estou apenas a uma sala de distância. "Preferia que me dissesses agora.""Tu sabes que não te mentiria", assegura-lhe de novo. É o momento ideal ara fugir. Eles necessitam claramente de falar acerca disto, e não me parece ue esteja a ajudar ficando por aqui.Empurro a minha cadeira para trás tentando não os incomodar. Abro a orta da frente. "Sei que isto pode parecer suspeito, mas juro que não aconceu nada. Vá lá, Jess", está o Mark a dizer.Fecho cuidadosamente a porta atrás de mim.

Começo a caminhar em direcção a casa, dando cada passo muito devagar. Vejo estirar-se à minha frente a rua vazia. Graças a Deus estou do lado de ra daquele apartamento; estou demasiado ressacada para lidar com isto.O choque provocado pela chegada da Jess é agora substituído por um arreador sentimento de frustração pelo facto de o Mark ter uma namorada. Sabes, muito atraente, Mark. Aproxima-te um pouco mais. Não fiques tão aflito... Fiz de mim própria uma tola completa! Pois claro, considero para comigo, dando pontapé numa pedra que se atravessa no passeio. Que pensava eu que iria aconr? Acabar com o Sam e cair gloriosamemente nos braços de um alto, atraente e 'tário estranho que é, naturalmente, o completo oposto do Sam, solteiro e a posta aos meus sonhos? Por amor de Deus, Katie, isto não é um filme."Ei, porque te vieste embora sem te despedires?", ouço. Volto-me e vejo o ark vir na minha direcção pedalando na sua bicicleta, o manuscrito balando entre os punhos do

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guiador. Passa abruptamente por um sulco e o uscrito voa pela estrada e desfaz-se numa centena de páginas."Lamento, não devia ter cá passado a noite." Baixo-me para tentar recurar os papéis. Tento apanhar uma das folhas, mas o vento leva-a na direcção ntrária e eu acabo a agarrar o ar."Merda... chiça... merda!" O Mark pragueja, de mãos e joelhos no chão. abia que devia ter posto isto num saco." Arrebanha desesperadamente folhas papel. Uma delas voa para o meio da rua.Começamos inevitavelmente a rir. Enquanto apanho folhas de papel e lhes do o pó de cima, não me parece ser a altura ideal para lhe perguntar acerca de e é o livro. "Não estão muito sujas", digo. "Pelo menos não está a chover.""Ias-te embora sem te despedires?", murmurou, apanhando da estrada as páginas tantes.ALICE PETERSON"Preciso de ir para casa, tirar estas roupas a cheirar a fumo e tomar um banho." Sorri para ele. "A Jess está bem?""Está óptima.""Não devias estar com ela?""Tenho de acabar este trabalho, já não demora muito", disse. "Ela está bem", voltou a assegurar."Não a culpo por ficar desconfiada, eu também ficaria.""Sabemos que não aconteceu nada, por isso não há nada acerca de que nos sentirmos culpados.""Exactamente." Levantou-se e eu levantei-me com ele. Comecei a andar. Ele agarra na bicicleta e segue-me. "Bem, moro aqui." Paro em frente a uma portavermelha com pedaços de tinta a cair. "Obrigada, Mark, vemo-nos brevemente." "Janota.""Janota", repito. Agora o Mark está calado. "Então adeus." Começo a rodar a chave na fechadura, consciente de que ele ainda não se foi embora. "Katie?""Sim?""Sinto que te deveria ter dito – quero dizer, acerca da Jess." "Não tem importância", digo, uma oitava mais acima.Desta vez ele não fez qualquer referência à Bells. "Gostaria de voltar a ver-te. Não há mal nenhum se nos encontrarmos para..." "Um café?""E um pãozinho quente com doce?" Põe aquela cara contorcida de um modo engraçado."Sabes onde me podes encontrar." "Óptimo. Amigos?"Ai! É doloroso. Pensará que tem de dizer isto para que eu não volte a tentar engatá-lo? "Amigos", digo."Boa sorte com o livro", grito, envolvendo-me nos meus braços arrepiados para me aquecer. Observo-o enquanto pedala na sua bicicleta, o manuscrito de novo colocado entre os punhos do guiador. Usa uma das mãos para me acenar, voltado paratrás. Parece-me perigoso. "Espero que os editores gostem do livro!", atiro-lhe. Quero gritar, "tem cuidado", mas não quero parecer a sua mãe.33A casa é moderna e fica ao fundo de uma estrada muito íngreme. A mãe avisou-me acerca do quanto era íngreme e que deveria deixar o carro engatado. Comprei um carro em segunda mão e adoro-o. É pequeno, prateado, brilhante e rápido. A próxima coisa que tenho de fazer é comprar um apartamento. Economizei o suficiente para dar uma entrada decente. De que estou à espera?As minhas pernas estão tensas e doridas por causa da longa viagem. Deveria ter chegado há pelo menos meia hora, não fora ter-me perdido nestas estradas sem fim,

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sinuosas e estreitas, que parecem todas iguais e com destino a lado nenhum. Não há quaisquer sinais do lado de fora da casa da Bells, foi verdadeiramente um golpe de sorte ter subitamente chegado aqui. Vi um homem alto vestindo um fato de treino, com uma camisola azul vivo e um cartão de identidade pendurado ao pescoço, indicando-me a estrada. Reconheci-o imediatamente do álbum de fotografias da Bells."Olá, sou o Ted", diz, estendendo-me uma enorme mão, que aperto. Tem cabelo castanho, encaracolado, e olhos de um azul vivo que quase parecem saltar da cabeça com o entusiasmo."Olá, Ted. Sou a Katie, a irmã da Bells.""Olá, irmã da Bells. Bem-vinda ao País de Gales."Um homem alto de cabelo negro sai de casa e diz também olá, perguntando-me como foi a viagem. Chama-se Robert. É um dos "funcionários chave" para a Bells. Conduziu-me para dentro, percorremos um longoALICE PETERSON OLHAI( NL JLt1L)corredor, passámos por um quadro informativo com detalhes acerca dos eventos do mês e entrámos na cozinha. "Hoje o tempo está maravilhoso, não?", diz o Ted, seguindo-nos de perto. "Disseram que choveria muito, mas ainda não caiu uma gota.""O Ted está fascinado pelo tempo", refere o Robert, com um riso seco. "Não há nada que ele não saiba acerca das frentes climáticas de todo o país."A cozinha está pintada de amarelo pálido, a cor das prímulas, e imaculada-mente limpa, não há um grão de poeira ou alguma coisa desarrumada. Gosto imediatamente do aspecto da casa. Há portas de vidro por detrás da enorme mesa de cozinha de madeira, que abrem para o terraço e para o jardim. "Que casa amorosa", reconheço, olhando em volta da divisão."Nós gostamos dela", diz o Ted orgulhosamente."A Bells descerá dentro de um minuto, ela ouviu chegar o seu carro. Quer um chá? Um café?" O Robert aguarda junto da chaleira."Um chá seria óptimo, obrigada.""Nunca esteve aqui antes, pois não?", pergunta, acendendo o lume para a chaleira niquelada."Não." Não há o mais pequeno tom de acusação na sua voz, mas eu não consigo deixar de sentir um pesado sentimento de culpa a respeito de, até à data, não ter mostrado interesse sobre o sítio onde a minha irmã vive. "Quero que a Bells me mostre a casa." Por cima da arca frigorífica há uma fotografia dela a preto e branco, com o seu macacão vestido, e ao lado de um carrinho de mão cheio de maçãs para cozer. Está a sorrir, com os polegares voltados para cima. O Robert percebe que eu estou a olhar para ela."A Bells é uma excelente rapariga", comenta. "Está sempre a fazer qualquer coisa. É incapaz de estar sem fazer nada, não é verdade Ted?""Sempre", diz ele com autoridade. "A Bells e eu vamos às aulas juntos. Todas as terças-feiras lá vamos nós. Aprendemos de tudo, desde trabalhos manuais a escrever, e eu também estou a aprender a dançar.""A sério? Que espécie de dança?""Danças de salão."Há outra fotografia, no lado oposto da divisão, à qual o Ted me conduz. Ele é forte, com ombros largos. "Adivinha onde estou eu?", pergunta. Examino cuidadosamente a fotografia. Vejo a Bells mascarada de Elvis, dedilhando umaraquete que faz de guitarra. O Ted está mesmo atrás dela, vestindo aquilo que parece ser um fato único já estafado, e com umas enormes patilhas falsas. Está a tocar bateria. "Aqui estás tu!", digo-lhe, apontando.

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"Bestial, não é?" Começa a rir-se. "Foi a minha festa de aniversário. Todos os convidados se tiveram de vestir à Elvis Presley. A Bells e eu formámos uma banda, chamámos-lhe os `Filetes Dourados."'"Mesmo muito bestial." Devolvo o sorriso. "Mas porquê FiletesDourados?""Bem, eu gosto muito de filetes de peixe panados", responde com simplicidade, como se eu tivesse obrigação de o saber, e caminha para fora dacozinha."Como está a sua mãe?", pergunta-me o Robert."Está bem. Anda frustrada por ainda não poder conduzir, mas o pai é muito paciente com ela. Ele prepara-lhe certas tarefas, como colocar as fotografias nos álbuns e outras coisas, que normalmente nunca nos lembramos de fazer."O Robert suspira aliviado. "Ficámos tão preocupados, sabe.""A Bells falou-vos da mãe?", perguntei."Não, não", responde abanando a cabeça. "Ela nunca o faria."Estou morta por vê-la, por isso, pergunto de posso subir as escadas, mas nesse momento ela entra na cozinha. Tem calçadas as suas sapatilhas vermelhas de futebol, e veste umas calças de fato de treino que eu nunca tinha visto antes, com a t-shirt preta que eu lhe dei, a da estrela prateada ao meio. "Está a vesti-la em tua honra", diz o Robert, piscando o olho a Bells."Olá, Bells." Ela caminha na minha direcção. Tenho vontade de a abraçar, mas a Bells não gosta de abraços. Em vez disso, apertamos as mãos e, em seguida, ela dá-me uma palmada amigável no braço e eu retribuo dando-lhe outra. "É verdade", diz ela.Agarro no meu saco. "Trouxe-te umas azeitonas e uns bolinhos de queijo, e o Eddie pediu-me que te desse este bolo de gengibre.""O Eddie da charcutaria." Dobra-se e apanha o saco de comida. "Obri-gada, Katie."

A Bells leva-me ao piso de cima. Há um enorme letreiro dizendo "NÃO PERTURBAR", pendurado na porta, bem como uma série de autocolantes deALICE, 1'E"1"ERSON OLHAR NOS OLHOSfutebol. O quarto dela é pequeno, com uma cama de solteiro a um canto, e, ao contrário da cozinha, não há aqui um único espaço que não esteja cheio com desenhos, autocolantes, posters, CD e recortes de jornal. Tenho de andarnos bicos dos pés entre uma pintura, que está no chão, da bandeira britânica e um poster onde se lê a vermelho, `Força INGLATERRA'.Lá está o familiar poster do Bob Marley a fumar um charro, e o outro dos Beatles; os dois que ela pendurou no seu quarto, quando esteve em Londres.Sento-me na borda da sua cama. O seu inalador está em cima da mesa-de-cabeceira, juntamente com o álbum de fotografias e uma chávena de chá."Como está a mãe?", pergunta ela, sentando-se ao meu lado. A sua respiração está ofegante. Apanha o inalador."Está muito melhor."Levanto-me e caminho até à janela do quarto. Consigo entrever o mar. "Bells, uau!", exclamo. "Que vista fantástica tens aqui. É lindo."Ela está de pé mesmo atrás de mim, respirando pesadamente. "Gostas do mar?", pergunta ela, visivelmente satisfeita por eu ter ficado impressionada."Adoro o mar. Faz-me querer sair de Londres", respondo, virando-me para ela. "Vá lá, vamos dar um passeio."

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O tempo está quente, mas, como sintetizou o Ted, há umas nuvens pretas ameaçadoras por cima de nós. Caminhamos pelo areal pálido. Dobro-me para apanhar uma mão cheia de areia, deixando-a escapar por entre os dedos, comogrãos de açúcar. A Bells caminha à minha frente. "Costumas nadar, no Verão?", pergunto, correndo para a apanhar."Não, muito fria."Pergunto-lhe se nos podemos sentar um minuto. Já palmilhámos um bom bocado de praia. Isto aqui, esta contemplação para o mar, é de uma tranquili-dade absoluta. Não há mais nenhuma alma à vista e o único som que ouvimos é o das gaivotas."Como está o pai?""Está bem. Um bocadinho cansado de ter a mãe atrás dele a dar-lhe ordens." Dou um ligeiro encontrão a Bells."Pois é." Ela abana a cabeça, pensativamente. "Pobre pai. E tu, como estás?" "Voltei para Londres, estou a morar com a Emma.""Como está a Emma?""Está bem. Anda a preparar o casamento.""Como está o Sam?""Não sei. Não o tenho visto. Recebeste a minha última carta?""Sim. Como está a tia Agnes?"Depois de a Bells e eu termos discutidos todos os membros e amigos da família, começamos a caminhar para trás. Ela continua a mostrar-me tudo ali em volta e apercebo-me do orgulho que sente ao apontar para as coisas que me mostra. Este é o seu território; o seu mundo, onde eu sou visita. A sala de estar tem um piano, diz-me ela. "O Ted toca piano", diz-me ela, "pobre Ted", martelando uma tecla."Porquê pobre Ted?""Muito só, não tem família."A Bells odiaria que lhe chamassem "pobre coisa", mas já tive oportunidade de reparar que ela usa frequentemente essa expressão para se referir a outras pessoas. Deve dar-lhe um sentimento de segurança, fazendo-a sentir-se melhor que a pessoa do lado."Ninguém visita o Ted", diz o Robert. Está de pé, com uma mão agarrada à maçaneta da porta. Deve-nos ter ouvido. "Trabalho aqui há doze anos e durante todo esse tempo o Ted não teve uma única visita", comenta incredulamente. "Pode pensar-se que não é possível, mas há famílias que se limitam a deixar aqui os filhos. Despejam-nos.""Isso é terrível. Porque é que elas os têm, se é isso que lhes fazem a seguir?", digo zangada. Faz-me compreender até que ponto os meus pais são unidos, quão fortes têm sido sempre. Eles nunca rejeitariam a Bells, isso nunca lhes teria passado pela cabeça, sequer. Também me faz compreender que não quero ser atirada para a mesma categoria da família do Ted – a irmã que nunca quis saber."Bem sei. É o cúmulo", concorda ele, batendo com um pé no chão. "Toda a gente adora o Ted, eles nem sabem o que estão a perder. Ele toma conta de todos nós.""O Ted é campeão de trampolim", acrescenta a Bells. Está a olhar para a colecção de vídeos exposta ao lado da televisão.Viro-me para o Robert. "Então trabalha aqui há doze anos? tempo."Isso é minto "Pois é, e não tive um único dia de folga", reclama."Nem pensar!""Bem, talvez um ou dois, mas adoro isto.portanto corre na família. Não sei O meu pai trabalhou aque outra coisa poderia aqui,"No entanto, podia gozar umas férias, não é verdade?"

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eu fazer."Ele sorri. "Pois, suponho que sim", "Já viste Os Ricos e os Pobrqes? diz ele.

"Só não saberia para onde ir." pergunta a Bells."Adoro esse filme", exclamo. O Robert e eu aproximamo-nos da os vídeos por

cima do ombro dela. a Bells, e eu"Oh, uau, o Tootsie, é o meu preferido!""Muito engraçado, o Tootsie", concorda a Bells.São agora três horas da tarde. A Bells e eu tomamos chá, com umas bolachas digestivas de chocolate, e em seguida,- direcção ao clube local de futebol. Está agora arsestir1uma camisola no meu e de futebol,com o seu cachecol vermelho do Manchester U meu carro emA equipa dela vai nited bem enrolado ao pescoço.jogar uma partida ao fim da tarde, conta-me ela entusiasmada.ntusi - mada. Entramos dentro do clube. Há dois homens sentado"Olá, Budge", aschama ela em voz alta. " " s no bar.

mente, respirando acelaradamente. E o capitão", explica-me ela rapida-mente,amigável em cada um"Olá, Paul. Olá, Budge."

deles. Eles voltam-se e Dá um socodarem `mais cinco'. A mão da Bells mal cobre apOem as mãos no arpara lhe

"A minha irmã Katie", diz-lhes. Olh Palmas das mãos deles.O Budge é am de relance para mim edizem-muito bem parecido. Tem cabelo e olhos castanho-escuroos eolá. vira-se ligeiramente para cima, "Olá", respondo, masa sua atenção.percebo que já não tenho "Bells, vais assistir ao jogo hoje, não vais?", pergunta o Budge,Começa a desenrola-lo. puxando lheaquilo lhe faz Ela ri-se furiosamente, queixando-secócegas. Vejo-a corar.o cachecol. Cque Batem vai", diz o outro. Um outro batalhão de homens invade o clube.OLHAR NOS OLHOS"Como vais andando, Bells?""Como está a nossa mascote favorita?""Bells, que bom ver-te.""Tivemos saudades tuas", acrescenta o Budge."Só lhe conto", diz-me um deles, "precisamos da Bells no campo. Ela é a nossa mascote da sorte."Vou dizer qualquer coisa quando um homem carnudo, daqueles que parecem trabalhar no ginásio sete dias por semana, aparece por trás e a levanta em braços. Todos aclamam e se juntam à festa. Ele senta-a nos ombros. A Bells ri-se e bate palmas. "Força, St. David's", começam a cantar como uma tribo. Nunca a vi tão feliz, nem em casa, nem em lado nenhum. Ele encaixa-se aqui, como a peça de um puzzle perdida há muito tempo. Ninguém substituiria a Bells. Deixo-me ficar para trás, dando passagem a todos. Formam agora uma fila em direcção ao campo de futebol. "Katie", oiço-a chamar, olhando por cima do ombro para me tentar encontrar. "Vens?"

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Volto de carro para Londres na manhã seguinte bem cedo, sentindo-me feliz. A equipa da Bells ganhou por 2-0. Assisti ao jogo passando a maior parte do tempo a perguntar-lhe: "Eles podem fazer aquilo?" Tenho de me pôr a par das regras do futebol, claramente. Depois de o jogo. Levei a Bells para casa e encontrei uma multidão na cozinha. Conheci a Mary Verónica, uma rapariga chamada Jane, outro homem chamado Alex, e o Ted ainda estava na cozinha, também, a tomar conta desta gente toda. Disse que a Bells ia cozinhar para todos nós. Ela fez-nos uma das suas famosas tortas de legumes e, a seguir, comemos mousse de chocolate. A Bells abriu o seu frasco de azeitonas e ofereceu-as a toda a gente. A Mary Verónica detestou o sabor e cuspiu-as. Puseram música a tocar, o Stevie Wonder, claro.Consigo agora ver rostos associados aos nomes; sou capaz de imaginar o que fará ela num sábado à tarde. Vejo-a a ser carregada em ombros, como um troféu, e a ser levada para o campo de futebol. Oiço-a a rir e a bater palmas.Consigo imaginá-la na cozinha, a preparar as suas receitas.As etiquetas com diferentes nomes fazem agora sentido.Consigo imaginá-la, quando for atender o telefone no corredor, em frentedo painel informativo.254rii.i',r, rr, t r.t(JVNNão me senti triste por deixá-la, porque sei que a Bells está no lugar certo. Não é perfeito, nada é, mas é quase perfeito, e é a casa dela. Fizemos um pacto; eu irei visitá-la uma vez por mês e telefonar-lhe-ei todas as segundas e sextas à noite. Sei como é importante para a Bells ter a sua rotina. "Prometes?", perguntou-me ela quando me fui embora."Prometo."34Estou sentada à mesa da cozinha folheando uma das muitas revistas de noivas ue a Emma tem. Noivas com sorrisos luminosos e brancos, usando pérolas do anho de ovos de cordoniz, saltam das páginas olhando fixamente para mim. Emma não se parecerá minimamente com elas, espero. Oiço o Jonnie a nversar na sala ao lado sobre o casamento. Vão casar-se em Londres, na Igreja e St. John, no Hyde Park. Autocarros de dois andares levarão os convidados da reja ao lugar do copo-d'água, no National Liberal Club.Na verdade, a Emma não consegue parar de falar no casamento.Devia escolher o Selfridges, o Harrods ou o Peter Jones para a lista de casamento? Deviam os seus convites ser modernos ou tradicionais?Deviam convidar as namoradas e os namorados dos amigos?"Se eu convidar o Josh terei de convidar a Rebecca também, embora mal a nheça", está ela a dizer. "E as crianças?", grita ela. "Não queria mesmo nada rianças."Apercebo-me do quanto desejo comprar o meu próprio apartamento. Porque me sinto tão vazia? Já lá vão duas semanas desde que vi o Mark. Por uma razão qualquer, imaginei que ele passaria pela minha porta... bem, pela porta do Jonnie e da Emma... mas nada.Imagino-o novamente na sua bicicleta. Pergunto-me qual será o tema do seu livro. Crime? Suspense? Uma história de amor? Ficção científica? Uma autobiografia? Talvez ele tenha tido um passado fantástico. Publicarão a foto-^i,Ik.,n i-r, i r,KS(> NOLHAR NOS OLHOSgrafia do Mark na capa, disposta num fundo quadrado? Chamar-se-á o livro A Viagem de Mark? Rio-me da ideia. Neste mortiento, sinto-me muito to

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interessada na vida de qualquer outra pessoa. Se mais pudesses escrever o guião datua vida, o que escreverias? Oiço de novo, mas desta vez não na voz do Sam. Na minha própria.Vou direita ao meu quarto e agarro no meu caderno de rascunhos que se encontra arrumado na prateleira. Não tenha a certeza sobre o que escreveria, mas sei que quero voltar a coser novamente. Desde que me separei do Sam que tenho tido muito mais tempo livre e quero aproveitá-lo ao máximo. Talvez também queira levar a vida menos a sério. Acabaram-se as listas do que quero ter alcançado no final de cada década. O Sam fazia-as — queria estar reformado aos quarenta anos. Eu quero apenas "ser".Com um renovado entusiasmo, decido fazer u rn passeio de domingo com o meu caderno de rascunhos. Podia sentar-me a beber um café e observar as pessoas. Tenho de arranjar ideias sobre o que as pessoas querem vestir. Está frio lá fora, mas o sol de Outono é quente. Visto o rrleu poncho azul e vermelho por cima dos meus jeans escuros.O Jonnie parece aliviado por me ver entrar na sala. "Que trazes vestido?" "É o último grito da moda." Rodopio diante dele."Onde vais tu, cowgirl?

"Dar um passeio.""Quem esperas tu encontrar acidentalmente ? ", pergunta-me com um sorriso malandro. O Jonnie não é um homem boi-Ião. Se analisarmos as suas feições verificamos que são, na verdade, até bastante feias. Dois dentes da frente partidos, um queixo muito longo, e é excessivamente magro porque trabalha demasiado. No entanto, quando juntamos isto tudo aos seus olhos azuis, cabelo escuro e ao seu sentido de humor, torra a-se numa das pessoas mais atraentes que eu conheço.Jonnie, temos de continuar a fazer a nossa lista de casamento", insiste a Emma, com o rosto enrugado de desespero.

Jonnie faz uma careta atormentada. "Até logo."paisagem à minha frente. Estamos a meio da manhã e há pouca gente na rua'Passa uma rapariga vestindo uma saia comprida castanho escura, com um folho no fundo. Calça umas botas castanhas e traz um casaco de malha creme vestido. Deve ter frio, sem um casaco comprido. Desenho rapidamente o efeito geral. Reparo que as borlas e as franjas estão de volta, quando uma outra rapariga passa com uma saia estilo hippy e um cinto com uma enorme fivela dourada. Tenho a certeza que é um cinto da Jigsaw. Vi-os lá no outro dia. A última moda faz-me lembrar a roupa que a irmã da Emma, a Berry, costumava usar. Passa uma outra rapariga com uns jeans, um chapéu de malha verde às riscas brancas, enterrado até às orelhas e um casaco preto comprido. Também reparo na quantidade de pessoas que andam a correr.Começo a desenhar, mas aos meus pensamentos insistem em vaguear. Penso que talvez fosse preferível escrever à Bells. Dez minutos depois já escreviquase duas páginas.

Adorei visitar-te no último fim-de-semana e conhecer a tua casa. Significou muito para mim, Bells. Só tenho pena de nunca te ter visitado antes. Ainda penso na paisagem da janela do teu quarto. Tens tanta sorte em poder ver o mar todas as manhãs. Isso pôr-me-ia bem disposta.Achei o Ted um amor, diz-lhe que estou desejosa de o ver dançar no dia da festa do colégio. Também adorei o futebol — a tua equipa vai jogar este fim-de-semana? Se

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jogar, espero que ganhe. O Sr. Vickers aparece agora na loja para beber chá quase todos os dias. A Eve e eu sentimos a falta dele quando não aparece. Serve-se de um bolo de massa folhada e faz o seu próprio chá.Esqueci-me de te dizer, mas o Mark perguntou por ti. Vi-o há umas noites. Na verdade, fiz uma figura verdadeiramente triste e bebi demasiado, dizendo-lhe em seguida que gostava muito dele. Sinto-me uma verdadeira idiota porque ele tem uma namorada. De qualquer modo, não importa porque ficámos amigos. Da próxima vez que vieres a Londres tenho a certeza que nos pode-remos encontrar todos para...

Paro de escrever por um segundo e penso no que o Mark me disse. Ainda o vejo parado à porta da casa de Emma.Pego no telemóvel e telefono-lhe. "Pensei que talvez quisesses encontrar-te comigo para o tal café com um bolo?"Sento-me junto à janela do café com o meu cappuccino e contemplo aALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSA minha caneta voa através da página quando alguém, atrás de mim, me bate no ombro. Uma enorme mancha escura de tinta se espalha pela última frase. "Bolas. Nunca mais me te aproximes assim, sorrateiramente!Assustaste-me.""Desculpa, Katie." O Mark sorri, inclinando-se por cima de mim. Estará atentar ler a minha carta?"Estava a fazer-te sinais lá de fora, mas estavas tão séria. Não estás a escrever o teu testamento, pois não?""Mark!" Tapo a página, tal como costumava fazer quando pensava que um colega da escola estava a tentar copiar e a roubar-me as respostas. "A quem estás a escrever?""À Bells.""Posso acrescentar uma coisa?" Senta-se ao meu lado e espreita para a carta."Não!" Agora fecho energicamente o meu caderno de rascunhos. "Podes escrever a tua própria carta." A Bells tem razão. Sou mesmo mandona. Sou uma polícia de trânsito."Desculpa", diz ele outra vez. "Estou contente por teres telefonado."O Mark tem esta desarmante maneira de ser educado e formal com um espírito travesso, tudo em silmutâneo. Começo a descontrair-me, agora que a carta está guardada e verdadeiramente longe da sua vista."Dê-me um cigarro", ouvimos um velhote de gabardina pedir à porta da entrada."Seu crava", diz um homem mais novo que se preparava para entrar. Procura nos bolsos e encontra um cigarro para o velho. "Aqui tem." "Tem lume?""Raios o partam! No que este mundo se transformou!" Agora acende o cigarro do homem. "Mais alguma coisa em que lhe possa ser útil?", pergunta ao velhote que agora se afasta a coxear e a chupar a sua dose de nicotina. "Engraxar-lhe os sapatos, pagar-lhe uma bebida", resmunga para si próprio enquanto se aproxima do balcão."Adoro observar as pessoas", comenta o Mark. "É ainda melhor se estiversentado, num país quente, junto ao mar, e a beber uma cerveja.""Já tens notícias do livro?" Tem vestida a camisola azul com buracos noscotovelos.Solta um enorme suspiro de frustração. "Não. O meu agente diz-me que precisa de ser mais trabalhado. Se quiseres gratificação imediata, não sejas escritor."" 4unca me disseste o que estás a escrever.""É apenas uma história fantástica, de aventuras", diz com modéstia. "Destina-se às crianças e aos adultos. Estou a tentar ser o próximo J. K. Rowling, só que melhor",

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confessa. "A minha avó costumava ler-me As Aventuras do Tio Lubin. É um livro que nunca esqueci. Adorava conseguir escrever uma coisa assim tão boa.""Não o conheço. É sobre quê?""Não o conheces?", exclama incrédulo. "Tens de o ler. O tio Lubin toma conta do seu jovem sobrinho, Peter, mas um dia, um enorme pássaro agarra-o", o Mark interpreta a acção, "e leva a criança para longe. O tio Lubin tem de encontrá-lo. Viaja pelo mundo e até à lua, com o seu chapéu desajeitado e com as suas meias às riscas. O tio Lubin sonha que encontra o Peter no mar, protegido pelas sereias, e que ele está salvo. Quando acorda, fica desesperado por se ver sozinho. No entanto, o Tio Lubin nunca desiste e no fim...""Não me contes!" Bato com a mão em cima da mesa. "Ele salva o Peter?""Sim, claro." O Mark parece decepcionado com a minha reacção. "Mas o livro é muito mais que isso. Fala do espírito humano e da resistência do amor. É sobre o nunca perder a esperança. Gostava de ainda ter esse livro, não sei como é que a minha mãe o conseguiu perder.""Leste A Mulher que Vivia Numa Garrafa de Vinagre?"O Mark abana a cabeça."É sobre uma mulher que vivia dentro de uma garrafa de vinagre. Tem uma pequena escada para entrar e sair", contorço os meus dedos como se subisse umas escadas imaginárias, "mas o seu descontentamento cresce."O Mark sorri. "Não é de surpreender. Viver dentro de uma garrafa de vinagre não parece ser uma coisa propriamente cativante."Eu rio-me. "É `ma tristeza, `ma tristeza", lamenta-se ela, e imagina-se numa casinha branca, com roseirais e madressilvas a crescerem à volta, cortinas cor-de-rosa e um porco na pocilga. Uma fada que por ali passa sente pena dela. "Bem, não te preocupes", diz-lhe ela. Pede à velhota que vá para a sua cama, dentro da garrafa, e que dê três voltas. "De manhã, quando acordares, verás oOLHAR NOS OLHOSque encontrarás!" Quando a velhota acorda está num quarto com cortinas de-rosa e ouve um porco a grunhir lá fora. Reproduzo os respectivos efeitos sonoros. "Que se passa?" Desisti do resto da história porque o Mark está aolhar para mim de um modo estranho.a"Vá lá, conta-me o que acontece a seguir", insiste ele."Bem, a velhota está deliciada, mas nunca lhe passa pela cabeça agradecer à fada. A fada corre o Este e o Leste, o Norte e o Sul, e em seguida vem o novamente com a velhota, sabendo que a encontraria muito satisfeita na suacasinha branca. "Oh! `ma tristeza, ai isso é suaviver numa cabana pequena e mísera? que é, `ma tristeza. Porque hei-de euvermelha, Quero viver na cidade, numa casacom uma criada para me servir." "Bem, não te preocupes", diz a fada."Quando acordares verás oque encontrarás!", termina o Mark por mim. 'A seguir ela quer viver numa casa com uma escadaria branca e criados e criadas para a servirem. Depois, Porque não posso eu sentar-me num trono doua do,roo Olhm para a rainha'.na cabeça?" A fada concede-lhe o desejo, mas quando regresuma coroa sa e ouve advelhotaqueixar-se que a coroa é muito pesada para a sua cabeça, desiste. "Porque não posso ter uma casa que me sirva?", lamuria-se a velha. "Oh, muito bem, se tudo o que queres é

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apenas uma casa que te sirva...", velhota acorda e vê-se novamente dentro da garrafa de vinagre, fonde fias P a' A O RESTO DA SUA VIDA." ARA"Apropriada para a velhota.""Lembro-me tão bem desta história, a mãe costumava lê-la para a Bells epara mim. E a tua família?", pergunto. "Tenho andado tão envolvida nos meus dramas que não sei nada a teu respeito. Dás-te bem com os teus "Já tivemos os nossos momentos. Acho pais?"que não queria ser advogado. O que os desiludi quando lhe dissemeu irmão emigrou para a Nova Zelândia e tornou-se um criador de carneiros. O pai não conseguiu compreender de onde lhe vieram os genes. Eu era a sua última oportunidade. A advocacia está-lhe sangue, o pai dele era advogado. A noajuda." Jess também é advogada, portanto, isso Ri-se com secura. Por momentos, voltei a sentir o terrível ambiente que senti na cozinha. "Isso deve dar-lhe uma valente pontuação?" 262"Sim, eles gostam muito dela. A Jess é como família. Chamam-lhe "a nossa pariga escocesa."Portanto, não só é bonita e inteligente, como é da família. Chiça. "Como que se conheceram?", pergunto casualmente."Na faculdade, por irónico que pareça. Em Edimburgo.""Por que razão estudaste em Edimburgo?""Um dos primeiros empregos do meu pai foi lá, e os meus pais gostaram tanto do sítio que decidiram ficar a viver em Edimburgo para sempre. Creio que, por esta altura, serei um oitavo escocês." Sorri."Então há quanto tempo namoram?""Há seis meses apenas, mas parece-me que há mais tempo", acrescenta, e não sou capaz de compreender se isso é uma coisa boa ou má."Porque demoraram tanto tempo a começar o namoro?""Não sei", responde ele, num tom de voz apagado e reflectido. "Parece que nós caímos, mais ou menos, na situação. Fomos de férias com um grupo de amigos e foi tudo. Ficámos preocupados com a possibilidade de podermos estragar a nossa amizade, mas estamos bem."Bem? Caíram na situação? Foi tudo? O vocabulário do Mark carece de uma certa paixão. Onde está o romance? Onde está o fogo-de-artifício? "Acho que é verdade", diz ele num tom de derrota... ou estarei a ler de mais na sua voz?"O quê?""Algures a meio da fronteira, homens e mulheres não conseguem ser apenas amigos. A um certo ponto...""Tu não acreditas nesse disparate, pois não? Vá lá. Nós somos amigos, não somos?""Pois. Tens razão.""És feliz?""Se eu sou feliz? Bem, é uma pergunta difícil.""Com a Jess, não de um modo geral", digo, esperando não estar a ser demasiado intrometida."É uma das minhas melhores amigas. Sempre esteve presente para me ajudar. No entanto, tem piada", arrasta a cadeira para mais perto de mim, "ela é inteligente, mas se lhe perguntares onde fica a Guatemala, ela não fará a mais pequena ideia.".~.`i rr,1r.1(JtJN OLHAR NOS OLHOSSento-me, petrificada, tentando imaginar onde fica exactamente. "África?"Pela sua expressão compreendo que estou enganada. "América", grito. "Claro, é América."

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"Norte ou Sul?""Humm, Sul? Não, Norte.""Fica a Sul do México, junto às Honduras, e não muito longe do Panamá." "Cala-te, espertalhão, nem todos podemos ser águias da geografia." "Em que direcção fica o Norte?""Cala-te!""A que propósito começámos a falar da Jess?""Estávamos a falar dos teus pais. Eles queriam que tu fosses advogado." "Ah, sim. Está tudo relacionado com a aprovação, não é verdade? Queres que eles se orgulhem de ti, faças o que fizeres.""Admiro todos os professores, eu não era capaz de o ser. O teu pai orgulha-se de ti?""Não sei", encolhe os ombros. "Acho que sim.""Devia orgulhar-se." Sorrio. "Estás a ver, se morresses amanhã — que Deus nos livre", acrescento, tocando-lhe levemente no braço."Obrigado", acena com a cabeça."Tenho a certeza que o teu pai diria: `Gostava de ter dito ao Mark o quão orgulhosos nos sentíamos dele.' Nunca me teria perdoado a mim própria se a mãe tivesse morrido e eu tivesse deixado tantas coisas por dizer. Passei uns tempos muito difíceis em criança, porque ela estava sempre no hospital com a Bells, mas olha para as pesssoas que nem casa têm, ou que são filhos de paisiivorciados que lhes estragam completamente a vida. A Emma diz que vê )essoas...""Não comeces a argumentar que estão muito piores que tu", diz o Mark lesapontado."Bem, mas estão, não estão?""Olha, na realidade nós nunca pensamos assim. Há sempre alguém muito ior que nós, claro, mas se sempre que tiveres um problema, alguém te disser: 'ensa nas pobres crianças que morrem de fome em África,' tu terás vontade de atacar com tiros de ervilhas congeladas."Rio-me. "Porquê ervilhas congeladas?"Ele encolhe os ombros. "Não me lembrei de mais nada. O que estou a tentar dizer é que, cada problema, cada situação, é relativa. Está bem, tu tiveste uma relação perturbada com a tua mãe, mas se alguém te disser que não se relaciona com ninguém da sua família, a mãe, o pai e todos os seus seis irmãos e irmãs, e que, como tal, te deverias dar por muito feliz, nem por isso te sentesmelhor, pois não?""Devias tornar-te conselheiro, sabes? Nunca pensei no assunto desse pontode vista.""São cinquenta libras, por favor. Vejo-a na próxima semana?""Sim, claro." O assustador é que realmente o disse com sinceridade. Sentamo-nos em silêncio durante uns minutos, observando as pessoas que passam. Não nos sentimos desconfortáveis por não dizermos nada. Sentimo-nostranquilos.Acabo por cortar o silêncio. "Tens alguma personagem invulgar na tuafamília?""Que tal a minha avó que vivia com um leão debaixo da cama, paracomeçar?"Rio-me. "Bem, estou feliz por saber que não acontece só na minha família,então."Vejo pelo canto do olho uma rapariga a caminhar na rua, com um boné debasebol virado ao contrário, um sutiã preto, uma camisola preta, uma mini-saia preta, uma pequena mochila e umas botas de cano alto e sola de plataforma, igualmente pretas.

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Um grupo de jovens amigos passa por ela e eu oiço-os a rirem-se, trocistas, mas a rapariga continua corajosamente a andar."Estás a ver aquela rapariga?", pergunta o Mark."É difícil não repararmos nela, não é verdade?""Tem um ar um bocado esquisito...""Tem uma roupa muito provocadora", interrompo eu."Sim, tudo isso é verdade, mas ela é de longe bastante mais interessante queas outras raparigas que parecem clones umas das outras."Olho para as costas das três raparigas, todas elas com o cabelo pintado delouro, todas praticamente da mesma altura, e todas elas vestindo umas calçaslargas, tops justos e casacos de fato-de-treino."Seria sobre ela que um escritor escreveria. Excêntrica, invulgar, longe dasALICE PETERSONpersonagens triviais que fazem girar o mundo", diz o Mark. "Meu Deus, a vida seria um tédio sem elas."Acabo de escrever a carta para a Bells quando o Mark se vai embora e, a seguir, vou à papelaria comprar um exemplar da Vogue, da Tatler, da Harper & Queen e da Glamour.Duas semanas depois, tenho feito, para uso próprio, um casaco de camurça com aplicações à frente e com um forro macio. Também tenho andado a trabalhar nos meus modelos & compilei um pequeno portefólio. Gostaria de ter a minha própria marca no futuro; é algo em que devo trabalhar. "Comprei um top da Katie Fletcher", oiço alguém dizer com excitação. Tenho observado as pessoas permanentemente, andado por diversas lojas durante a minha hora de almoço para ver o que há lá de novo. Tenho trabalhado até tarde, depois de fechar a loja. Também estava na altura de mudar a minha imagem, por isso, fui à Ariel's, a minha cabeleireira espanhola, e ela fez-me sentir "uma mulher diferente", como costuma dizer. Cortou-me o cabelo escadeado à frente. Gosto de o puxar para trás e amarrar num pequeno, irrepreensível e inequívoco rabo-de-cavalo. Torna-se um símbolo de um novo começo em muitas frentes, a mais importante de todas elas, a relacionada com a mãe.E, mais impressionante ainda, comprei um par de óculos de protecção e um fato de banho preto e tenho ido nadar todas as manhãs, antes do trabalho. Até deixei de fumar.Gosto da nova Katie Fletcher.35"Jonnie, quem estava ao telefone?", pergunto. E noite e estou prestes a deitar-me."Não sei, ele voltou a desligar." Entro na sala de estar. A Emma está sentada ao lado dele, a fazer as palavras cruzadas."Ele?""Bem, a única pessoa que imagino a fazer isto é o Sam", sugere o Jonnie. "Achas que ele pode estar a querer falar contigo?""É possível", respondo. O Sam telefonou-me algumas vezes. Insiste em encontrar-se comigo, diz que precisamos de falar, mas não percebo para quê. Que ficou por dizer? Disse-lhe que devíamos aceitar que tudo acabou, sem ressentimentos. "Estás diferente. Andas a encontrar-te com alguém?"atacou ele imediatamente. Garanti-lhe que não. "Sam, tenho estado em casa a tomar conta da minha mãe, a última coisa que me passaria pela cabeça seria encontrar um namorado", digo-lhe, cansada. Talvez eu devesse encontrar-me com ele e, muito simplesmente, arrumar o assunto de uma só vez.O Jonnie estuda a minha expressão. "Já não há nada entre vocês os dois,pois não?""Não! Não", digo mais calmamente."Já se pode falar em segurança no Sam, agora?", pergunta ele. "Absoluta segurança.""Bem, sempre o achei um bocado emproado", comenta o Jonnie.

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ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"Jonnie!" A Emma poisa as palavras cruzadas."Não faz mal, a sério." Encolho os ombros. "Impressiona, sente-te impres-sionante...""E SERÁS impressionante", acabámos todos em coro desatando a rir."E que tal, `Não subas as escadas do sucesso com os pés sujos de medo?'"Eu gostava do `está feito e não mexe mais"', diz a Emma agora, animando-se e batendo palmas. "Ele chegou mesmo a dizer-me isso quando um dos meus pacientes morreu. Está bem que ele já tinha noventa e nove anos e gozara de uma boa reforma, mas..." os cantos da sua boca encurvaram-se para cima... "ia ser cremado, portanto, acabou por ser um bocado inconveniente. `Emma"', ela imita a voz de Sam, "'são os ossos do ofício."'Afundo-me a um canto do sofá. "Não, ele não disse isso!", exclamo. "Ele é um emproado.""Sempre achei que tu merecias muito melhor", admite ela finalmente, interrompendo-se em seguida, como se não tivesse a certeza de dever dizer ou não o que lhe estava a passar pela cabeça. "Como este Mark?", acaba ela, tentando desesperada-mente parecer indiferente. "Quero dizer, tens passado imenso tempo com ele.""Oh, oh, não, quero estar sozinha. Sem homens, obrigada. De qualquer forma, ele tem uma namorada." Mudo rapidamente de assunto. "Se o telefone tocar de novo nos próximos minutos, deixa-me atendê-lo, está bem? Vou pôr o lixo lá fora, amanhã é o dia do lixo, não é verdade?""É verdade", confirma o Jonnie. "Dia do lixo. Que mundo excitante e evoluído este em que vivemos."Já não fumo há um mês, desta vez não há cinza e beatas no meio do lixo. No entanto, não cortei com a bebida. Vá lá, a vida é curta. Cambaleio até à porta da rua com dois enormes sacos pretos nas mãos. Estou tentada a fazer um passeio nocturno, talvez dê de caras com o Mark. Desde aquela manhã de domingo, há já quase um mês, temos saído juntos muitas vezes. Vou frequentemente a sua casa depois de o trabalho e tomamos uma bebida. Uma noite, fizemos um esparguete à bolonhesa e vimos um dos filmes preferidos da Bells, com o Dustin Hoffman, o Tootsie. Na semana passada, o Mark passou um recado por baixo da porta: "Um café com um bolo amanhã?"É uma noite de segunda-feira, ele devia estar em casa. São apenas dez horas. Apetece-me estar acompanhada, mais nada. Assim que bato à porta do seuapartamento oiço a sua bicicleta na rua. Neste momento, atravessa o pátio daentrada. O seu rosto está avermelhado do ar frio da noite e tem uma correia ,'arnarelo vivo enrolada à volta do casaco, que tira quando me vê. "Olá." Esfrega as mãos uma na outra. "Como estás?""Estou bem. Vim pôr o lixo na rua e lembrei-me de ti.""Que encantador! Queres entrar para tomar qualquer coisa?""Adorava. Por onde tens andado?""Na escola. Meu Deus, estou estafado", diz ele entrando na cozinha. Vou atrás dele. "Estamos a ensaiar a My Fair Lady e há imenso trabalho a fazer. Falas para serem decoradas. Aulas de canto. Dança. O professor Higgins esquivou-se, portanto tive de o substituir, com o Mathew, e não tenho a certeza que ele esteja à altura da tarefa.""Senta-te", ordeno-lhe. "Diz-me onde guardas tudo e eu preparo-te qual-quer coisa para comer e beber. É a minha vez de te apaparicar.""Que maravilha", suspira ele, descalçando as botas e retirando as molas das calças. "Sorte a minha ter-te encontrado. As canecas estão no armário, por cimado lava-loiça."

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Abro o armário e encontro os pratos lisos, bem como os de sopa. "À direita", informa o Mark. "O café está no frigorífico.""Tu guarda-lo no frigorífico?""Conserva-se mais fresco.""Porque é que guardas a mostarda no frigorífico?" O Mark olha para mim, com um ar aborrecido. "Desculpa", peço-lhe. "A cozinha das pessoas é sempre uma revelação. Tu gostas disto!" Viro-me para ele espantada. No cimo do frigorífico há um pacote de gomas cobertas de chocolate e com recheio de geleia de morango. "A Emma faz troça de mim por eu ainda gostar disto. Disse-me que é o género de coisas que as mães colocam dentro das lancheiras e que eu já devia ser suficientemente crescida para não gostar delas.""Bem, então não as tem desfrutado, pois não? Eu adoro-as, era capaz de comer um pacote inteiro de uma só vez."Fico encantada por ouvir isto. Faço duas chávenas de café e o Mark come uma torrada com doce."Katie, tenho um grande favor para te pedir. Eu tencionava ir ter contigoamanhã."ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"Isto parece sério.""A Jess não pode vir assistir ao My Fair Lady. Obviamente Edimburgo é demasiado longe para se deslocar propositadamente só para ver uma peça escolar. Para além disso, tropeçou no canteiro da mãe e torceu o tornozelo."Desato a rir e o Mark olha para mim com um ar estranho."Oh, Mark, desculpa, é a forma como o disseste.""Ela estava à procura da chave de casa debaixo do canteiro, tu sabes, no sítio que as mães acham muito inteligente para esconder as chaves? Bem, ela levantou o vaso, perdeu o equilíbrio, e caiu para trás, para cima do roseiral.""Pára!", peço-lhe, dobrando-me ao meio, incapaz de controlar o meu riso. "E ela vai processar o roseiral?""Não compreendo porque o achas tão divertido", diz ele, mas sei, mesmo sem olhar para ele, que também se está a rir. "De qualquer modo queria perguntar-te se gostarias de ir comigo, em vez dela?""A sério?""Sim. O que achas?""Perguntaste à Jess?""Vou perguntar-lhe, mas tenho a certeza que ela não se importa. Ela já sabe que nós somos apenas amigos.""Está bem, sendo assim adoraria ir. Nunca fui assistir a uma peça de teatro da escola. A única vez em que me lembro da mãe me ter visto numa festa da escola foi quando tinha nove anos. A turma inteira tocou flauta. Ela diz-me que fomos horrorosos. A Granny Norfolk também foi assistir e, ao que parece, a meio da nossa interpretação do Greensleeves, dá uma cotovelada à minha mãe dizendo-lhe, Ia creme de Southampton está aqui esta noite, e desatou a rir como um pato a grasnar.""O quê, a rir como tu, queres dizer?""Eu rio-me como um pato a grasnar?" Entrei em pânico."Pois ris", admite ele. "É bastante contagioso, confesso.""Quando é que é?""Sexta-feira à noite."Por um momento, desejei ter pendente qualquer outro compromisso para o fazer pensar que tinha uma vida social agitada e estimulante.

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"Combinado, óptimo, vêmo-nos na sexta-feira. Vou andando. Já tive uma dose suficiente de ti para uma noite."Uma peça da escola. Visto-me de forma elegante? Descontraída? De acordo com o último grito da moda? Finalmente decido adoptar um estilo elegante e moderno. Escolho o meu vestido preto e o colar dourado com o medalhão pendente. Olho-me diante do espelho comprido. Desde que deixei de fumar que ganhei uns quilos em torno das ancas e a minha cara parece menos cansada. Pus uma sombra cinzenta brilhante nos olhos para sobressair a sua cor verde e espalhei um pouco de pó colorido no rosto. Prendi uma madeixa de cabelo com um gancho, deixando cair para a frente as farripas mais curtas.

Estou a cantar em voz alta no meio da rua fingindo ser a Eliza Doolittle. "Shh!" O Mark ri-se, agarrando-me para me impedir de rodopiar à volta do próximo candeeiro. "Estamos a ser alvo de uns uns olhares realmente estra-nhos.""E quem se rala com isso, Mark? Não devias dar importância ao que as pessoas pensam.""E não dou", concorda ele."Eu passei demasiado tempo preocupada com o que os outros pensam", digo-lhe. "É uma perda de tempo." Viro-me para ele. "Gostei sinceramente desta noite. Acho que a tua turma é fantástica.""Eles cantaram que nem uns desalmados, não foi?" Diz com orgulho. "A Helen excedeu-se realmente."A Helen interpretou a personagem da Audrey Hepburn, Elisa. Não quero dizer ao Mark que ela quase ensurdeceu a audiência e que eu desejei ter comigo uns tampões para os ouvidos. O Mark esteve o tempo todo tão concentrado na actuação que nem ousei respirar, não fosse ele perder uma nota ou uma palavra. O ponto mais baixo foi quando o professor Higgins tropeçou e caiu do palco. Estava a dançar triunfalmente com Elisa, uma vez que esta, final-mente, conseguira falar `correctamente', e deu um passo demasiado largo. Toda a gente suspirou e o Mark correu para o palco como numa cena dos Apanhados. Não consegui evitar olhar mais para ele que para a peça. O mais fascinante era o seu apaixonado interesse nestas crianças, que na verdade não tinham nenhum talento para cantar. O Mark esteve sempre com elas, acompanhando-as a par e passo. As suas diferentes expressões contavam-nos a história toda.Enrugava o rosto quando a professora de piano se enganava numa nota.ALICE PETERSONOLHAR NOS OLHOSHouve uma altura em que eles tiveram de recomeçar a cantiga Rain in Spain uma série de vezes, porque a professora se enganava numa sucessão de notas e eu pensei que o I"/lark ia ter um ataque cardíaco. "Ensaiámos isto vezes sem conta", disse, fazendo uma careta. "Aquela peluda babuína nunca acerta à primeira, olha-me para aquela ridícula e espafalhatosa tiara", continuou ele, olhando depois panr mim com remorsos. "Quero dizer, ela é muito simpática, mas..."Shh, eles estão a sair-se muito bem", segredei-lhe em resposta, esticando o braço para lhe aga mar a mão, em sinal de apoio. Ele fechou os dedos sobre os meus. A palma da sua mão estava transpirada. A melhor parte, no entanto, foi o fim. Toda a gente se levantou e aplaudiu durante, segundo nos pareceu, alguns cinco minutos. O director chamou o Mark ao palco e ele agradeceu, juntamente com o ellenco. A Bells também teria adorado isto, pensei. Ela devia ter estado aqui. Os actores agruparam-se à sua volta, um deles deu-lhe uma palmada afectuosa n.o braço e um outro abriu a mão para

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lhe oferecer um `mais cinco'. O Mark felicitou-os a todos. Elisa ofereceu-lhe um ramo de flores e a seguir olhou envergonhada para os pés. "Quem é aquela miúda que está consigo?", perguntou um dos rapazes em voz alta, apontando para mim. Quase rebentei de orgulho nesse momento. Quase com trinta e ainda me chamam miúda! "É a tua namorada?", continuou ele.Sei que corei desavergonhadamente nesse momento e tive de fingir neces-;itar de qualquer coisa dentro da mala. Quando voltei a olhar o Mark estava a sorrir para mim."Táxi!" Grita o Míark quando vemos um táxi preto com a luz amarela acesa. 31e e eu afundamo-n.os no assento. Começo de novo a cantar outro trecho da lly Fair Lady e o Matrk imita-me. O condutor abana a cabeça para nós."Qual é a coisa Ode que mais gostas no mundo?", pergunto. "Tirando a)ornografia."O Mark coça o glueixo com ar brincalhão. "Se não pode ser a pornografia, erá de ser... humm.... gomas de chocolate com geleia de morango." "Não te entusiasnnes demasiado.""Vá lá, e tu?""O cheiro do café acabado de fazer e do pão fresco.""Fazer esqui num dia magnífico, numa camada espessa de neve acabada de cair." "Ir para a cama."O Mark levanta uma sobrancelha. "Com alguém em particular ou por tuaconta?""Por minha conta e com o edredão só para mim.""Uau, fazemos um par meio louco, não? OK, qual é a coisa que mais odeias no mundo?", continua ele rapidamente."Pessoas mal-educadas e tacanhas.""Pessoas que nos olham por cima do ombro numa festa.""Odeio isso!""O truque está em dizer-lhes que bebemos uma garrafa de gin com vinte Anadin e esperar que nos digam, 'Oh, que interessante'", acrescenta secamente o Mark."Polícias de trânsito", diz o taxista em voz alta participando no jogo. Oh, não, penso para comigo. "E pessoas que me dizem que caminho devo tomar — isso irrita-me, dá mesmo cabo de mim. Acham que sabem melhor que eu, quando ando a conduzir por Londres há anos", divaga ele."Oh, já sei uma! Começar o Natal em Agosto.""Gosto deste jogo. As pessoas que gostam de se mostrar melhores que tu", continua o Mark. "Dizes-lhes que foste a Viena e elas respondem-te que o lugar onde realmente devias ir é Budapeste.""Oh, sim", concordo. "Nada mais irritante. As pessoas que se mostramsuperiores são as mesmas que te olham por cima do ombro. Bichos, é o novonome para as pessoas de quem não gostamos. Roedores, meu." Rimo-nos. "Se pudesses mudar alguma coisa em ti, o que seria?", recomeço. "O Mark torce o nariz enquanto pensa nesta resposta."Eu começo", sugiro. "Gostava de não ser tão inflexível.""Eu sou demasiado frouxo.""Tu não és frouxo. Eu vi como puseste aqueles miúdos na linha. Eles respeitam-te. És bondoso, mas isso é diferente. Eu posso ser demasiado orgulhosa." "Adoro a forma como dizes o que pensas.""Não digo, Mark, nem sempre. Olha só o tempo que foi preciso para que eu e a mãe começássemos realmente a falar uma com a outra. Eu engarrafo os problemas, deixo-me a marinar com eles."ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS

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"Bem, eu tenho o coração à flor da pele. Sou demasiado emotivo. Até chorei a ler As Pontes de Madison County.""És um fraco. Mas eu também chorei", acrescento."Também eu." O taxista ainda está a ouvir a nossa conversa. "Agora, é para virar aqui à esquerda?"As nossas pernas tocam-se ligeiramente. "Mark." Inclino-me para mais perto dele. "Nunca tinha reparado nos teus olhos." Um deles tem manchas castanhas, o outro é azul. Olhamos um para o outro por um segundo demasiado longo. Viro a cara primeiro."Oh", diz ele, "um acidente excêntrico. Eu estava prestes a marcar num jogo de críquete. Estava a fazer rodopiar um lápis, junto do tipo que segura a rede para os praticantes, quando ele saiu disparado da minha mão. A possibilidade de me atingir era uma num milhão, mas...", faz um gesto na direcção do olho "...tive de levar três pontos. É por isso que preciso de usar óculos. É a minha desculpa sempre que perco um jogo de ténis", ri-se ele."Mal se nota. Quero dizer, é muito subtil.""Estás a tremer. Toma, veste o meu casaco."Coloca-o em cima dos meus ombros e eu sinto-me perfeitamente consciente do calor do seu toque. "És um verdadeiro cavalheiro", digo-lhe."O que se passa com vocês os dois, casalinho de apaixonados? Isso é alguma sociedade de admiração mútua?", diz o taxista.A sua intervenção quebra a tensão. Ambos nos rimos."Casalinho de apaixonados?", começo ironicamente a rir-me. "Alguma vez te leram a palma da mão, Mark?""Nem pensar, não acredito nessas coisas."Agarro-lhe na mão e viro-a com a palma para cima. "A tua linha da vida é muito longa", digo-lhe."Oh, não, não digas isso. Acho que devíamos ter uma idade limite. Digamos, oitenta anos? Caíamos simplesmente do nosso poleiro aos oitenta, rntes que a velhice realmente se instalasse.""Oh, minha nossa senhora. A tua linha do amor é muito pobre. Não tens tido muita acção nesse departamento. Tens uma muito pequena..." Ele retira a mão abruptamente e agarra a minha."OK, Katie Fletcher, vamos lá ver o que sai da loja para si."Começa a acariciar suavemente a minha mão. "Oh, não", começa a dizer. "Oh, meu Deus. Oh, meu Deus."

"Mark!", dou-lhe um toque no estômago.

"Na próxima reencarnação voltarás como...", está a pensar "... uma centopeia." "Mark, tu és doido. Se eu reencarnar serei uma divertida estrela pop a pavonear-me à frente do Simon Cowell, muito obrigada."

Não compreendo a atracção. A Jess também gosta dele. "É aqui mesmo, obrigado. Queres ir a mais algum lado, tomar qualquer coisa? Queremos mesmo ir já para casa?", diz ele com uma inabitual urgência na voz. "Dizemos-lhe para dar uma volta ao quarteirão enquanto decidimos?"

"A Emma e o Jonnie não estão em casa esta noite. Porque não vens até à minha casa?"

"Sim, parece-me bem. Pare aqui, sim?"

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O Mark segura-me na mão quando saio do carro. "Minha senhora", diz ele. "A propósito, nunca to disse, mas estavas muito bonita hoje."

"Oh, muito obrigada, sir." Ficámos parados de mãos dadas, sem que nenhum de nós se mexesse. "Na minha casa, então?", digo eu, largando-lhe finalmente a mão.

"Na casa de quem?" O Sam está de sentinela à porta da casa da Emma e do Jonnie, vestindo o seu velho casaco de cabedal. Começa a caminhar na nossa direcção.

Reparo que as suas mãos tremem e quase sinto pena dele, por estar ali sozinho, ao frio, de pé. Já não se parece com o confiante Sam que se punha em movimento com o bater dos tacões. Nem tão-pouco fez a barba. "Que estás aqui a fazer?", pergunto-lhe.

"Indo mais ao fulcro da questão, que estão vocês os dois, juntos, aqui a fazer? Parecem muito aconchegadinhos."

"Sam, não tens nada com isso."

Os seus olhos turvam-se quando olha para o Mark. "Quem és tu?", exige com agressividade.

"Mark."

"Bem, olá, Mark. Onde levaste a Katie?"

"Olha, não tem nada a ver..."

O Mark interrompe-me. "Bem, se queres mesmo saber, levei-a a ver o My Fair„ yALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"Mas a Katie odeia musicais.""Não odeio nada", corto eu. "Adorei o Mama Mia.""Bem, então foi ainda mais simpático da parte dela ter-me acompanhado", fiz o Mark calmamente."Vocês os dois, andam a preparar alguma coisa?", diz o Sam, como se estiresse a imaginar-nos os dois juntos e não gostasse do espectáculo. "Tendo dito sso, não consigo imaginá-lo. A Katie ultimamente transformou-se numa seira. Comporta-se como se tivesse um hábito e um cinto de castidade."Já não sinto pena nenhuma dele. "Sam, estás embriagado e a ser estúpido.""O Mark que gosta de musicais maricas, a minha ex-namorada transfornada em freira. Então, vocês os dois andam juntos? Provavelmente não, >alpita-me.""Bem, com a garantia que a sua humildade oferece, estou surpreendido que u tenhas tido necessidade de vir até aqui para te certificares, tendo em conta ima situação tão pouco ameaçadora", diz o Mark, agarrando a minha mão.O Sam separa as nossas mãos."Sam, já é tarde, acho que devias ir para casa", digo-lhe."Ainda nem é meia-noite, irmã Fletcher."O Mark e eu continuamos a andar sem ele. "Queres que lhe chame um áxi?", pergunta o Mark calmamente.

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"Tenho saudades tuas", grita o Sam. O Mark e eu paramos e viramo-nos ^ara trás. "Sinto a tua falta. Katie, não podes sair com alguém, viver com essa ^essoa, e a seguir, nunca mais a querer ver na vida", protesta o Sam. "Porque ,ão respondeste aos meus telefonemas? Não me vou embora até falares omigo.Peço ao Mark que vá andando sem mim, que lhe telefono quando o Sam tiver ido embora. "Tens a certeza?" Ele olha para mim atentamente. "Katie, u fico contigo, se quiseres." Sam atira-lhe um olhar hostil."Não posso deixá-lo aqui. Sinceramente, vai lá.""Está bem", diz ele. "Vem ter comigo mais tarde."

"Sam, sê breve", digo-lhe ao entrarmos no apartamento.Ele senta-se no sofá. "Tenho sido um idiota, tu tinhas razão. Temos de omeçar a falar sobre nós os dois", diz ele, colocando o braço à minha volta edeixando-o cair em seguida. "Tinhas razão em tudo o que disseste, tenho pensado nisso." Dá umas palmadas no espaço vazio do sofá. "E tens passado por tanta coisa desde essa altura. Vá lá, senta-te aqui a meu lado, querida, vá lá."Puxo o cadeirão de pele do Jonnie e sento-me em frente dele. Ele olha para mim com aquele familiar olhar de cachorrinho, como se a manteiga não derretesse. "Tens sorte por te ter deixado entrar", lembro-o. "Estavas a comportar-te como um idiota ali fora."

"Eu sei." Sorri. "Não consigo evitá-lo. Estou a dar em doido." Faz uma careta zangada, tentando fazer-me rir. Pede-me novamente que me sente a seu lado, dando palmadinhas no sofá, como se eu fosse um cão prestes a saltar para junto dele. "Vá lá, Kitty-Q'rida.""Estou confortável aqui, obrigada.""Kitty-Q'rida", tenta ele de novo, fazendo uma estúpida voz de bebé. "Sam, o que queres?"Olha para mim surpreendido. "OK, bem, aqui vai. Já nada faz sentido sem te ter por perto. Ando ali às voltas naquela casa. Quero que voltes, tenho a certeza que conseguiremos acertar as coisas. Costumávamos divertirmo-nos juntos. Vá lá, o que dizes?""Sam, aconteceram demasiadas coisas, acho que não iria resultar.""Bem, só o saberemos de certeza se tentarmos novamente, não é verdade?" "Porque é que sentiste a minha falta?""Apenas sinto. Ponto final.""Tu não precisas de mim. Tens apenas medo de ficar sozinho."Ele ri-se, mas percebo que se esforça para não perder a calma. "Não é verdade", balbucia, "eu não tenho medo de nada. Valorizo a nossa relação... obviamente muito mais do que tu valorizavas.""Isso é injusto", digo, mas apercebo-me que ele tem razão. Foi muito fácil deixar o Sam. Não senti minimamente a sua falta."Acho que tu e eu somos algo sobre o qual vale a pena lutar.""Porquê, Sam? Não me telefonaste uma única vez quando a mãe esteve tão doente." Não consigo evitar um tom de voz magoado."Eu sei", diz ele rapidamente. "Desculpa.""Ela podia ter morrido, Sam. Nem sequer como amigo telefonaste. É dissoALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOSque se trata, ultrapassarmos os momentos difíceis, bem como divertirmo-nos juntos. Éramos fantásticos quando tudo corria bem, mas caímos no primeiro obstáculo quando a vida nos resolveu lançar um desafio. O que é que isso revela a nosso respeito?" Ao dizer-lhe estas coisas, penso na mãe e no pai, que ficaram juntos nos bons e nos maus

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momentos porque são uma equipa. Terem-me a mim e à Bell, bem como todos os problemas que surgiram connosco, apenas os aproximou ainda mais."Não te pedi já desculpa um milhar de vezes? Não tenho jeito para lidar zona esse tipo de coisas... doenças, sabes, não sei o que dizer. A tua mãe já está bem agora, não está? O que queres? Mais compaixão? Que mais posso eu Fazer?""Não precisas de fazer nada. Está acabado", respondo-lhe.O Sam começa a dizer-me que se eu não for com ele a sua vida ficará completamente arruinada, que não consegue viver sem mim. Quis telefonar-me quando a mãe estava no hospital, mas não sabia o que dizer. "A minha família, nunca Falámos desse tipo de coisas. O meu pai não permite a intromissão de qualquer tipo de questão pessoal ou...", pára. Diz-me que sabia que eu lhe telefonaria se iouvesse notícias."Até casarei contigo, farei tudo o que for preciso", diz ele, apostando que o ance da promessa de casamento resultaria. "Katie, farei qualquer coisa." "Sam, por favor, pára", grito."O que foi?"Tento recompor-me. "Não sei como dizer isto", começo. "Quem me dera ião ser necessário dizê-lo. Eu não te amo.""Eu sei que estava zangado, não te devia ter feito sair assim. Devia ter-te :elefonado, ter-te apoiado mais", diz ele, optando por não ouvir o que eu lhe icabara de dizer."Pronto, não faz mal", asseguro-lhe. "Vamos seguir em frente.""Não é por causa do Mark, pois não? Katie, tu mereces melhor que aquilo.._uero dizer, quem é ele? Que é que ele anda a fazer para te levar a um musical?Vão pode ser verdade, trocares-me por ele!"Eu devia saber que ele diria isto. Começo a sentir pena do Sam e ele vai e iiz uma coisa destas. "Para tua informação, eu gosto do Mark. É meu amigo. o mesmo Mark que me ajudou quando a Bells fugiu. Lembras-te?""Ele é o supra-sumo em tudo, não é?", diz o Sam com forte sarcasmo."Por que razão estamos a discutir isto? Que chatice. Vamos admitir que acabou e pronto. Os casais separam-se. Um em cada dois casamentos fracassa.""Separámo-nos por causa da Bells? Éramos felizes antes dela aparecer. Sei que não me entendi muito bem com ela, mas podemos trabalhar nisso."Terá ele ouvido uma única palavra do que eu disse? "Não, não podemos. Não podes mudar a tua pessoa. Eu mudei, as coisas mudaram, é tudo. Estou cansada, Sam. Já é tarde. Vou telefonar para te pedir um táxi." Dirijo-me à pequena mesa junto do sofá e agarro no telefone. Começo a marcar o número da empresa local de táxis.^ Sam tira-me o telefone da mão e desliga-o. "Não me vou embora."Volto a agarrar no telefone. "Bem, também não vais ficar aqui."Puxa-mo das mãos e o candeeiro de vidro que estava em cima da mesa despedaça-se no chão. "Olha o que fizeste agora", grito. "A Emma adorava isto." Dobro-me para apanhar os bocados de vidro espalhados. "Vai-te embora, por favor." Apercebo-me do bafo a álcool cediço que a sua respiração exala. Ele dobra-se também e penso que me vai ajudar a apanhar os bocados de vidro. Em vez disso, tenta beijar-me. "Vai-te embora!", empurro-o. "Por favor, vai.""Não me vou embora enquanto não resolvermos isto", diz inflexivelmente. "Quero compensar-te.""Vais-te embora agora. Vai", repito.Alguém bate à porta. Levanto-me rapidamente e coloco os bocados de vidro em cima da mesa. "Katie, estás bem?" Oiço o Mark perguntar. Abro a porta."Olhem quem ele é", escarnece o Sam. "O teu cavaleiro na puta da sua armadura brilhante!"

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^ Mark passa por ele. "Estava preocupado." Toca-me no ombro. "Estás bem?" "Estou. Ele não se quer ir embora."^ Mark vira-se para o Sam. "Acho que te devias ir embora.""Estou-me a cagar para o que tu achas."Sinto-me verdadeiramente envergonhada por ter namorado esta pessoa. O Mark abre a porta da rua e fica lá parado, segurando-a.^ Sam agarra no casaco e caminha direito a ele. "Está bem, vou-me embora", resmunga. O Mark e eu trocamos um breve olhar de alívio, mas nesseALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOSpreciso momento, mesmo quando o Sam estava prestes a sair, este vira-se e com um único golpe letal esmurra o Mark na cara. Ele cambaleia para trás e os seus óculos caem para o chão."Sam, pára com isso!", grito, quando ele se prepara para atacar de novo o Mark. Lanço-me para a frente e agarro-lhe o braço. Sam puxa-o para se libertar de mim e começa a pisar os óculos do Mark. "É como um leão a lutar com uma pulga", diz ele, esmagando-os contra o chão, com uma expressão de satisfação escrita em todo o seu rosto convencido. "Não há disputa.""Sam?", oiço o Mark chamar num tom de voz calma, como uma pulga.^ Sam vira a cabeça. "Fez dói-dói, fez?", imita outra vez aquela voz de bebé."Não tão grande como este." O Mark atinge-o no estômago.^ Sam aguenta-se firme e começa a rir desdenhosamente. "Não consegues fazer melhor que isso?""Já chega", grito aos dois, pondo-me entre eles. "Vai para casa", peço ao Sam. "E Mark, fica quieto, está bem?"Observo o Sam a cambelear pelos degraus. Tem um ar tão infeliz e só. Nunca quis que acabássemos assim. "Sam!", grito-lhe.Ele nem sequer se vira. "Cala-te, Katie, já tive mais que o suficiente de ti, de qualquer modo. Deixo-te sozinha com o teu amante."

^ Mark está deitado com a cabeça no meu colo e eu ajeito-lhe um saco de ervilhas congeladas contra o queixo. "Da próxima vez que encontrarmos o Sam, podemos disparar-lhe as ervilhas como se fossem balas", digo-lhe, lembrando-me da deixa do Mark a respeito do ataque de ervilhas congeladas."Se isto fosse um filme, eu teria empurrado o Sam contra a porta e tê-lo-ia esmurrado com o dobro da violência", comemta o Mark, desanimado."Como está a mão?""Dorida. Sinto-me um perdedor.""Mas apesar de tudo bateste-lhe. Bem feito.""Pois, está bem. Se não te tivesses colocado entre nós ele ter-me-ia feito em papa." Ajusto a posição das ervilhas. "Não sei o que teria feito se não tivesses 'parecido. Como te sentes agora?""Nada bem. Continua.""É engraçado, mas eu sentia-me aterrorizada com a ideia de perder o Sam. Quando a Bells veio para ficar uns dias connosco, só lhe falei dela quando chegou. Ele não fazia ideia de quem ela era. Eu fiquei tão nervosa, com tanto medo que ele fugisse e não quisesse saber de mim."O Mark senta-se e volta-se para mim. "Lembro-me de me contares isso quando nos conhecemos. Isso é estúpido, Katie." O seu tom de voz é pouco reconfortante."Eu sei. Não tenho desculpa." Não suporto a possibilidade dele ter uma má imagem minha. "A Bells não fazia parte da minha vida nessa altura até ter chegado. Apenas a via

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como uma pessoa com potencial para correr com o Sam. Bem sei que parece cruel, mas era assim que eu me sentia. Tive de crescer muito. Sabes, ele pensava que podíamos voltar atrás, para o ponto em que as coisas estavam anteriormente", acrescento com incredulidade. "Nem sequer me telefonou para saber como estava a minha mãe, uma pessoa com quem eu vivi. Eu ter-lhe-ia telefonado, apesar do que eventualmente tivesse acontecido entre nós.""O que é que tu viste naquele homem?", pergunta o Mark impacientemente."Ele tem um lado bom, garanto. Bem sei que se comportou como um idiota esta noite, mas ele não tem ninguém, Mark. Não tem apoio da família, nunca fala dela. Não tem amigos verdadeiros em quem confiar, apenas companheiros como o Maguire. Não gostei de o ver tão infeliz. Ele tem um lado bom", volto a repetir. "Pelo menos, não finge ser o que não é. Podia aprender alguma coisa com ele, nesse aspecto. Quero dizer, quem fingia eu ser? A perfeita Katie, com a sua perfeita vida?"O tom de voz do Mark suaviza-se. "Não devias sentir-te obrigada a fingir o que quer que fosse. Ele não te devia ter feito sentir assim.""É fácil culpar o Sam, mas a culpa não foi toda dele. As minhas próprias inseguranças são igualmente responsáveis."O Mark acena com a cabeça. "No entanto, não te sujeitarias a passar por tudo isso outra vez, pois não? Com o próximo homem da tua vida?" "Nem pensar", respondo. "Aprendi a lição.""Os homens não merecem tanto", acrescenta ele, com o seu familiar sorriso retorcido."Obrigada por teres aparecido esta noite. Nunca ninguém, até hoje, fezALICE PETERSONnada de semelhante por mim, Mark. És um verdadeiro amigo. Fico em dívida para contigo.""Bem, podias arranjar-me uns óculos novos?"Olhamos para os óculos do Mark, esmagados e desfeitos em bocados; os aros pretos têm agora a forma de um periclitante s.Começamos a rir. "É o mínimo que eu posso fazer", concordo.36É quinta-feira, final de tarde, e o Mark convidou-me para jantar. Deixei a loja mais cedo hoje, já que a Eve e a Jackie, a nossa nova colaboradora, seriam perfeitamente capazes de se desenvencilhar sozinhas. A Jackie é inteligente e entusiasta com o seu trabalho. Também desenha e confecciona roupa de malha. Vou colocar alguns modelos em exposição na loja.Sento-me no banco, por trás do balcão da cozinha do Mark. Tenho uma pilha de papéis à minha frente, com garatujas a esferográfica vermelha espalhadas pelas folhas. Ensaios sobre O Mayor de Casterbridge, com aquela tenebrosa palavra sublinhada, no fim do trabalho: "Discutir." Começo a rodopiar no meu banco e a brincar com o mecanismo que lhe ajusta a altura. "Eia-Eia!" Exclamo, aproximando-me do chão. "Gosto disto, onde é que o arranjaste?""No Conran." Abre o frigorífico. "Acabou-se o raio de leite. O que é que te apetece comer esta noite?""Porque é que não vamos jantar fora?", sugiro. O Mark e eu nunca `saímos' juntos, tirando aquela noite do teatro da escola. Normalmente, cozinha-me o jantar, mas estou a ficar um bocado farta de esparguete à bolonhesa."Jantar fora? Achas que a nossa amizade já atingiu esse estádio?", pergunta ele a rir-se."Acho que estamos preparados. Já te contei que vi um apartamento que adorei?""Vais-te mudar?", pergunta ele, e a seguir estranha o facto de se terALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS

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urpreendido. "Às vezes esqueço-me que estás a viver com a Emma e com o onnie."A Emma e o Jonnie ainda não conheceram o Mark. "Tens vindo a falar nuito nesse assunto...", disse-me a Emma há dias, quando andávamos pelas ojas, à procura do seu vestido de noiva. A Emma parecia um gigante por cima Ia escanzelada empregada."Qual assunto?", atiro-lhe um olhar curioso."Aquele assunto. Falas nele a toda a hora. Estás com medo de o apresentares lecentemente a nós? Agora, qual é a tua avaliação?", perguntou-me ela, incapaz de lisfarçar o desespero da sua voz. Arrasta estranhamente os pés, um atrás do outro.Soltei um som de desagrado."Tem de imaginar como lhe assentaria o tamanho correcto", censurou-me empregada da loja, com o seu falso rabo-de-cavalo louro a saltitar na nuca. ) vestido não estava à altura. Era fechado por uns elásticos que enlaçavam os )equenos botões nas costas. Todos os vestidos da loja pareciam feitos para anãs."Gostava de o conhecer", disse-me a Emma quando a ajudei a despir o -estido.Isto pode parecer ridículo, como se estivesse no recreio da escola, mas ainda ião quero partilhar o Mark."Katie?", oiço-o agora chamar. "Fazes isso imensas vezes, sabes?" "Desculpa? O quê?""Recolhes-te no teu próprio mundo e ficas com essa expressão vazia. Em [ue estás a pensar?""Hum, estava a pensar na Emma e no Jonnie. Gostava que eles se audassem e me deixassem ficar com a sua casa. É tão irreflectivo da sua parte .ão se mexerem, não é?"Até a mãe reparou que eu estava diferente da última vez que lhe telefonei. Estás tão bem disposta. Tem alguma coisa a ver com o Mark?""Não, ele é só um amigo.""Blá, blá, blá", respondeu-me ela, seguindo-se um suspiro de tédio. O amor surge quando menos esperamos. Tens de arriscar, Katie. Se gostas este homem, diz-lho. Se não gostas, bem, segue em frente. Tens de aproveitar )das as oportunidades para sair, nunca recuses um convite, porque nunca tberás quem podes vir a conhecer. Quando eu conheci o teu pai..."Enquanto a mãe tagarela, apercebo-me de como ainda consegue ser chata. "Onde fica o novo apartamento?", pergunta o Mark."Ravenscourt Park.""Alugado ou comprado?""Comprado. Vou, finalmente, dar o mergulho. Estou desesjosa de viver na minha própria casa."Ele encosta-se ao balcão. Está a usar o novo par de óculos que comprámos juntos, quase o mesmo modelo dos que se partiram, com aros pretos. Também o convenci a comprar uma camisola azul clara, de gola redonda, sem buracos nos cotovelos. "A esposa arrastou-o para as compras, hem?", disse o homem da Marks & Spencer, revirando os olhos, quando pedi ao Mark que experimentasse ainda um estilo diferente."Terra chamando Katie? Onde está a Katie?" O Mark incita-me outra vez. "Parece perfeito. Quando é que te mudas?""Um pouco antes do Natal.""Merda, isso nem chega a um mês.""Eu sei. A Emma e o Jonnie vão fazer-me uma festa de despedida de Natal dentro de duas semanas. A Bells vem cá passar uns dias e é bom que tu também apareças, gostava muito que viesses.""Vou tentar encaixá-lo na minha agenda", diz ele, e eu atiro-lho a sua caneta vermelha para cima."E a Jess, por onde anda?"

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"Hei-de perguntar-lhe.""Por que razão não vivem juntos?""O quê, para além do facto dela viver em Edimburgo? De qualquer modo, odeio a ideia. Começamos a viver juntos e acabamos num enredo de casados. Realmente entediante. Temos ambos vidas muito independentes e eu gosto assim.""Como está o tornozelo dela?" Não me interessa minimamente saber do seu tornezelo, mas eu tenho de saber por onde é que ela anda."Está bem. Bem", diz ele, "chá? Ou talvez precisas de qualquer coisa mais forte?" "Chá está óptimo.""Tu pões a chaleira ao lume, eu vou buscar o leite e as gomas de chocolate." Pega nas suas chaves de casa, que estavam em cima do balcão, e sai da cozinha.ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOSO telemóvel do Mark começa a vibrar em cima da mesa. "Podes atendê-lo )r mim?", grita ele. Oiço-o a vestir o casaco. A porta da rua fecha-se.Pego, hesitante, no telefone. Não gosto de atender as chamadas das outras °ssoas. "Olá, telemóvel do Mark", digo, na minha melhor pronúncia de cretária."Quem é?", pergunta abruptamente a voz. "É a Jess?""É a Katie apenas.""Katie apenas, aqui é Sasha Fox. O Mark está ai?""Não neste preciso momento." Ela é assustadora."Sou a agente dele. Pode pedir-lhe que me telefone?", diz ela, exingindo [ais do que perguntando. Em seguida desliga o telefone.Poiso o telemóvel e começo a andar às voltas pelo apartamento do Mark. rá que ela tem notícias do livro? Deve ter. Sinto-me nervosa pelo Mark. tecido pôr música a tocar. Dou uma rápida espreitadela pela sua colecção de D e escolho os Coldplay, mas quando abro a caixa o disco não está lá. Está a ylie. Imagino a expressão ultrajada do Sam. Em vez dos Coldplay ponho a ylie, e estou quase a voltar para a cozinha quando tomo a decisão de fazer ma visita breve ao quarto do Mark. Caminho ao longo do corredor, passo .la casa-de-banho, desço três degraus e lá estou.É um quarto grande e arejado com uma grande cama de casal em carvalho )lido e uma cabeceira cinzelada. Não cheira a mofo nem a peúgas sujas, noto -m agrado. O Mark tem persianas em vez de cortinas e há um jornal abando-ido sobre o edredão. Está a ler A Vida de Pi, e ao lado do livro, sobre a mesa-:-cabeceira, está uma fotografia numa moldura prateada. A Jess está sentada im barco, vestindo calções de ganga e um biquini às bolinhas e o Mark estápé junto dela segurando orgulhosamente uma barracuda. Ela é irritante-ente bonita. Porque não tem um intervalo entre os dentes da frente ou uns spropositados pêlos na face? Sinto-me como a Glenn Close em Atracção ital. Que há de errado comigo? Pressiono as têmporas com os dedos. Terei >ntraído alguma doença? Não creio que tenha sido verdadeiramente eu nos timos tempos.Oiço uma porta a fechar e corro escadas acima, escorregando no último degrau. ecido entrar na casa-de-banho, bater com a porta e descarregar o autoclismo. epois abro a porta como se nada se passasse e volto para a cozinha."Quem era?", pergunta o Mark, agarrando firmemente a garrafa do leite. "A tua agente.""A sério? A Sasha Fox?". Faz um esgar nervoso, senta-se num banco a meu lado e começa a mexer agitadamente as mãos, entrelaçando-as uma na outra até eu ouvir estalar as articulações."Pára com isso", digo, estremecendo. "Faz-te artrite.""Desculpa." Inspirou profundamente. "Que disse ela?"

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"Tens de lhe telefonar. Telefona agora, deve ter notícias acerca do teu livro." "Pareceu-te bem disposta? Consegues dizer?", pressiona-me."Foi um bocado abrupta", confesso. "Vá lá", digo, empurrando o telefone na sua direcção. "Liga-lhe.""E se forem más notícias? Rejeições de todos os editores que abordou, dizendo que sou uma merda de escritor?" Inclina-se para a frente e pousa a cabeça nas mãos. "Katie, trabalhei tanto neste livro. Já antes me rejeitaram manuscritos, não sei porque continuo, é terrível. Isso faz-me sentir como um tolo, um falhado, menos que um insecto. Se for um não, ficarei num estado miserável." Levanta-se, dá uns passos para cá e para lá, e volta a sentar-se. "Na verdade sinto-me um pouco nervoso.""Conseguimos percebê-lo", digo, desejosa de o abraçar por causa da sua insegurança. Em vez disso, dou-lhe uma palmadinha na perna. "Vá lá, pára de te comportares de modo tão dramático.""Não consigo evitar.""Olha, a tua agente deve acreditar em ti. Creio que, se as notícias fossem más, ela te teria enviado um e-mail", sugiro."Bem visto, embora ela nunca o tenha feito.""Queres que me vá embora?" Por favor, diz que não. Estou morta por saber o que tem a Sasha Fox para dizer."Não, fica", pede, pegando no telefone. "Esquece o chá, podes dar-me uma bebida mais apropriada?". Levanta-se e começa a andar às voltas. Vai para a sala de estar e eu sigo-o. Abre a gaveta da secretária."Mark, acalma-te. De que andas à procura?"Acena-me com um maço de cigarros. "Para as emergências."Desliga a Kylie. "Bem, deseja-me sorte", diz, marcando o número.Estou na cozinha dele a preparar vodkas com água tónica. Tenho borboletas noV 1Nestômago. Penso em como consolar o Mark. "Quem perde são eles"ou "que a K. '~ Sabias Rowling teve montanhas de rejeições e olha para ela agora!" Não, issoé muito trivial. "Sabias que Virgínia Woolf, Beatrix Potter, Honoré de Balzac e muitos outros escritores famosos fizeram edições de autor numa determinada fase das uas carreiras? É a tendência actual. Pode ser uma opção." Li estas informações

numa revista que sai aos fins-de-semana. O Mark está diante de mim com r quem acabou de receber uma multa de estacionamento. Atira o telemóvel arde cima da mesa. Espero que me diga alguma coisa. Como não me diz nada, Asou quem quem lhe diz que lamenta, oferecendo-lhe imediatamente uma vodka pura."Lamentas o quê?" Dá um enorme trago de vodka. "A Penguin vai publicar-me o livro no próximo ano. Tens razão, não me vou incomodar a fazer o jantar. Vamos jantar fora para celebrar, porra!""Nem acredito", solto um guincho e avanço na sua direcção para o abraçar. Ele levanta-me do chão e rodopia comigo. "Vou ser publicado, Katie, acre-ditas nisto? Obrigado, meu Deus! Obrigado, DEUS!"Viva!", grito, rodeando-o com os meus braços e rindo-me ao mesmo

tempo. Põe-me no chão e abre o frigorífico. "Precisamos de uma bebida. Não há champanhe, bolas.""Eu vou comprar uma garrafa, ofereço eu."

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"Negócio fechado. Nem acredito", repete incrédulo, dando voltas à cozinha como se estivesse bêbedo. "É bom que a Fox não seja atropelada por

um autocarro, ou que os editores não sofram um incêndio ou entrem em falência ou...""ACALMA-TE." Sorrio-lhe. "Bem, estou de volta num minuto." Dou comigo a pular ao longo da rua como uma criança excitada."Parece um gato a quem roubaram e lhe beberam o leite", diz o homem da loja. "O meu amigo acabou de saber que será publicado." Faço uma pausa. "Pela Penguin, sabe", acrescento para ampliar o efeito."Uau", reconhece ele, aceitando o meu dinheiro. "Dê-lhe os meus parabéns." Não são simpáticas, as pessoas? Adoro a vida, penso para comigo. Por que

razão dizem as pessoas que os ingleses são sensaborões, que não gostam que osoutros realizem os seus sonhos? Não há sensaboria à vista hoje.OLHAR NOS OLHOSQuando regresso, oiço o Mark a falar na cozinha. Fico ali parada em silêncio, a ouvi-lo, antes de me aproximar. "Podemos celebrar quando regres-&ares... não precisas de fazer isso. Está bem, logo veremos. Como foi a viagem? Como estão os teus pais? Eu sei! Também mal posso acreditar. O que vou fazer esta noite? Bem, acho que vou beber uns copos para festejar." Reparo que não iz com quem. "Sim, vou beber um por ti, J." Está agora a ouvi-la e a seguir -se. Há mais uma grande pausa. A sua voz fica mais doce. "Eu sei, gostava que qui estivesses também", termina ele.Claro que ela é a primeira pessoa a quem ele quer telefonar para lhe dar a ovidade. Este é com certeza um dos momentos mais importantes, mais dignos e orgulho da sua vida, e ele devia estar com ela, não comigo. Porque é que eu sinto uma segunda opção? Basta um telefonema da Jess e — pum! De volta papel da Katie, a boa amiga, alguém com quem nos rimos um pouco. Não orto sentir-me assim."Também te amo", oiço-o dizer.Já chega, chega de sonhar alto, Katie. Não te sintas desiludida. O Mark e têm uma grande amizade, dão-se bem, mas é só isso. Ponto final, como diria Sam.Preciso de entrar na cozinha, tomar uma bebida e, a seguir, ir para casa. cilho de aceitar a situação tal como é. Não quero ser uma segunda escolha; ao vou permitir que me sinta assim. Agarro com firmeza a garrafa de chamhe e endireito-me, ao entrar na cozinha.

"Porque tens de te ir embora agora?", pergunta o Mark, depois de termos bido uma taça de champanhe juntos. "Eu quero festejar. Vá lá, bebe mais um uco de champanhe." Começa a encher-me o copo. "Vamos sair para nçar."Afasto o meu copo. "Desculpa, Mark, acho que estou a ficar doente com ualquer coisa", digo vagamente. "A Emma teve este vírus súbito. Atacou-a indo do nada."O Mark espanta-se. "E apareceu assim, sem mais nem menos?" Faço-lhe uma careta."Katie, não podes estar doente. Estavas muito bem há meia hora atrás. ual é o problema?"288ALICE PETERSON"Acho que preciso de me deitar." Oiço-me a lamentar-me e é patético, mas não quero ficar. Não posso ficar.O Mark apalpa-me a testa. "Estás bastante quente." Levanta-me o queixo e segura-me o rosto, junto ao seu. "Mas esta é a minha noite e eu não quero que te vás embora."

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"Desculpa." Coloco a minha mão em cima da dele e retiro-a suavemente. Beijo-o na cara. "Muito bem, Mark. Tenho muito orgulho de ti, autor extraordinaire." Pego na minha mala.Segue-me até à porta e a seguir sinto-o a agarrar-me a mão. "Qual é o verdadeiro motivo por que te vais embora?""O quê?", gaguejo, incapaz de me virar e de o encarar."Estou a tentar compreender se fiz alguma coisa de errado, se disse alguma coisa, no espaço de dez minutos. Não quero que te vás embora.""Não fizeste nada de errado, sinceramente. Adeus, Mark." Beijo-o mais uma vez no rosto.37Por vezes, entro em pânico durante a noite. Irei trabalhar na minha loja o resto da minha vida? Não que seja uma vida má. Tenho sorte em ter o meu próprio negócio, mas não devia ambicionar mais? E se a mãe tiver uma recaída ou se acontecer alguma coisa ao pai? Ou à Bells? E se acabar uma velha solteirona? Todos nós assumimos que encontraremos alguém, mas e se isso não acontecer? E se eu acabar uma velha azeda, sentada num sofá castanho, a afagar o meu gato mimado e alimentado a camarão? E se eu começar a passear uns cachorrinhos bem-aventurados num carrinho de bebé, porque nunca tive filhos e acabei doida varrida? Eu poderia ser uma dessas dentro de alguns anos. É a pergunta `Que estou a fazer, para onde vou?', que sorrateiramente me apoquenta durante o dia, mas que me grita durante a noite. Quando acordo acalmo-me. A mãe está bem. O pai está feliz. A Bells está óptima. Eu tenho um emprego. Tenho bons amigos. Sei que estou na direcção certa. Tenho de me sentir grata por muita coisa.Queremos sempre aquilo que não podemos ter, não é verdade? Quando tinha seis anos costumava rezar vezes sem conta para ter olhos azuis como os do pai. "Os olhos do pai são da cor do mar", costumava dizer-lhe em criança. Corria para casa a fim de verificar se o espelho me mostrava a mais leve alteração na cor dos meus. Permaneceram verdes. Da cor de um lago turvo, pensava eu. Não compreendia por que razão Deus não respondia às minhas orações.Quando a Bells nasceu, rezei para que ela melhorasse e eu pudesse ter a minha mãe de volta, para mim.HL1 r 1'r; 1 ERSON OLHAR NOS OLHOSDeixei de ir à igreja quando me tornei uma rapariga de quinze anos auto-consciente, mas ainda rezo. Só não o digo a ninguém.

O Mark está diante da porta da entrada, com a sua bicicleta a reboque. Não o vejo há duas semanas. Deixou uma mensagem no meu telemóvel, mas eu não lhe respondi, nem o fui visitar a casa. No entanto, tive de o contactar quando a Bells chegou, por isso, perguntei-lhe se queria ir ao cinema connosco esta noite. A Bells veio passar o fim-de-semana e ficará para a festa de Natal que o Jonnie e a Emma dão amanhã à noite. Ela nunca me perdoaria se não visse o Mark.As suas mãos estão cobertas de fuligem e a bochecha do lado esquerdo está igualmente suja de óleo. O cabelo está ainda mais espalhado por todo o lado."Caíste? Estás bem?", pergunto-lhe. Que faz ele aqui? São apenas duas horas da tarde."Quase. A correia soltou-se." Faz uma careta. "Catrapumba, no meio da estrada.""Olá, Mark." A Bells corre para ele e dá-lhe uma palmada nas costas. "Olá, Bells! Como estás?""Tens um carro, como o Sam?", pergunta ela."Não", admite, quase pedindo desculpa.

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"Porquê?""Porque não. Bem, seja como for, como é que estás?"Apertam as mãos e o seu pequeno brinquedo vibra. "Eu devia ter adivinhado", ri-se ele. A Bells balança-se para a frente e bate palmas."Entra", digo-lhe. Prende a bicicleta ao portão e segue-nos até dentro de casa. O seu telemóvel toca e ele atende-o rapidamente."Era a Jess, ela pode vir amanhã", diz-me ele, voltando a guardar o telemóvel na sua mochila."Bestial!", replico.Raios, caraças, merda."Vai ser bom conhecê-la como deve ser", continuo neste horrível e animado tom de voz que não reconheço como sendo meu."É a tua namorada?", pergunta a Bells.O Mark abana a cabeça."Vão casar-se?"Ele olha para mim e eu deixo escapar uma divertida gargalhada. "Bells, não sejas tão intrometida." Não me consigo libertar desta alegre personagem – irónico, quando me sinto tudo excepto isso. Entramos na cozinha. Toda a minha roupa lavada se encontra estendida no secador, ao lado da máquina de lavar. O Mark está diante de uma fila de sutiãs e cuecas. Há um par de cuecas cinzentas particularmente atraentes, com um buraco precisamente no sítio errado. Gostava de poder carregar num botão e fazê-las desaparecer todas.Ponho a chaleira ao lume. Bells oferece à sua volta uns bolinhos de figo. "Fecha os olhos", diz ela, agarrando qualquer coisa diante do Mark. Ele olha para mim, e em seguida para a Bells. Ainda estou a sorrir como um palhaço. "Vá lá, não te preocupes, não é um sapo", rio-me. "Bem, na verdade não posso ter tanta certeza. Suponho que podia muito bem ser.""OK", choraminga o Mark. "Mas eu quero um bolinho de figo. Adoro bolinhos de figo. As crianças fazem-me isto, às vezes, lá na escola. Uma dia, quando a Joanna Lumley esteve na escola a fazer uma palestra sobre teatro, fizeram-me sentar num puff enorme. Profundamente humilhante." Fecha os olhos com força.A Bells coloca-lhe um quadrado de queijo bolorento na mão. Está cheio de lanugem. Pelo modo como os seus ombros sobem e descem percebo que ela acha a situação hilariante, especialmente quando o Mark atira o pedaço de queijo contra ela, gritando, "Está vivo, está vivo! És sempre assim, Bells?"Conto-lhe a história da Bells ter espalhado as toalhas de bidé em cima da mesa, no jantar em casa da mãe; aquela que o Sam achou repugnante, mas que o Mark e a Bells consideram extramamente divertida. A Bells sente-se muito orgulhosa da sua história."Mark, a Bells e eu temos de ir ao Sainsbury's e...""Sainsbugs", diz a Bells, desatando a rir de novo."Prometi à Emma que compraria uma árvore de Natal e alguma comida para amanhã.""Eu ajudo.""Tu estás uma desgraça, não podes ir para a rua assim." Porque é que agora pareço a sua mãe? Não suporto esta minha atenção permanente a tudo o que digo e faço diante dele.OLHAR NOS OLHOS"E depois? Afinal, és tuquem está sempre a dizer que não devemos dar importância ao que as outras pessoas pensam.""Hum", encolho os ombros, "Pois, tens razão.""Dás-me dez minutos?""OK. Dez minutos."

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O supermercado está atulhado de clientes e o "Jingle Bells" toca em fu"Mark, o que vais fazer no Natal?" ndo."A mãe e o pai, este ano, vão passá-lo na Nova Zelândia com o meu irmão, o criador de carneiros." mao,"E tu não vais?""Não posso.""Porque não?""É demasiado dispendioso fazer a viagem de avião e ficar fora uma qualquer modo, eles regressam para a passagem de ano. Eu a semana.algumas economias para o ano preciso de fazerAceno com a cabeça. que vem", acrescenta." que vai parece preocupado e não resOponde imediatamente. nopróximo ano?" O Mark ente. "Não vais passar o Natal sozinho, pois não?", pergunto-lhe.Não. Vou estar com a Jess e mais alguns amigos.""Onde é que a Jess vive?", apercebo-meesta necessidade repentina de preencher o espque já aço entre nós oa mspa av. Porquê "Edimburgo." palavras? "Oh, sim, claro. Edimburgo.Porque raio todas as Fica a um longo caminho de distância."palavras que profiro me saem tão triviais e tão óbvias? "Excelente", murmura ele sem"Onde está a Bells?" mais nem menos, com um ar distraído.Olhamos ambos em volta, procurando pelo corredor, até a encontrarmos junto ao balcão da charcutaria a falar com o homemque seencontrava atrás dos tabuleiros de azeitonas e carnes frias. Tem na cabeça um chapéu com uma estrela de Natal na parte da frente. Oiço-a aidade. perguntar-lhe a"Mais alguma notícia a respeito do livro?" Pareço uma entrApercebo-me que não tem importância nenhuma, porque Mark ãoistador o não me estááequer a ouvir. Observa a Bells a colocar na cabeça o chapéu da estrela prateada. "Mark?" Dou-lhe uma sacudidela. "Estás noutro mundo. Em que estás a pensar?""Desculpa." Vira-se para mim. "Não me sai uma coisa da cabeça." "Alguma coisa em que eu possa ajudar?""Não", diz ele secamente, como se eu fosse a última pessoa no mundo a poder ajudá-lo. Em seguida acrescenta, já mais calmo: "É sobre a escola, surgiu-me uma coisa que preciso de amadurecer.""O quê?"Parece decidido a contar-me, mas em seguida arrepende-se. "Mark, estás a preocupar-me, porque estás a olhar para mim assim?""Primeiro tenho de pensar no assunto sozinho", diz ele. A Bells choca contra o nosso carrinho. "Uma corrida até ao..." Olha para mim a pedir-me alguma inspiração."Precisamos de salsichas pequenas e de queijo parmesão.""Uma corrida até às salsichas!", diz o Mark arrancando com a Bells.O Mark, a Bells e eu estamos na fila para comprar pipocas. A Bells compra um barril de Coca-Cola. Vamos ver o último filme do Hugh Grant. "Querem Coca-Cola?", pergunta-nos."Outra?" suspira ele. "Bells, qualquer dia tens Coca-Cola a sair-te das orelhas. Tenho de comprar umas acções da Coca-Cola, a indústria prospera só contigo."

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"Não tem piada, Mark."Se eu bebesse essa quantidade toda ia passar mais tempo na casa de banho que a ver o filme, digo-lhe enquanto nos dirigimos para a sala cinco.Sentamo-nos ao lado de um casal jovem. Eu fico ao meio. A Bells ri-se com o anúncio do Cometto. Viro-me para alcançar as pipocas. O Mark inclina-se para mim e tira uma mão cheia delas. As nossas mãos encontram-se e deixam-se ficar. Estou atenta a todos os seus movimentos, a todos os seus toques.Oiço um barulhento arrastar de pés. O casal sentado ao lado da Bells está a mudar de lugar. "Perdão, desculpe", sussurram enquanto caminham por cima dos pés das outras pessoas. O aguçado salto da bota da mulher crava-se no meu294ALICE PETERSONedo mindinho e eu contraio-me com a dor. Não vou permitir que isto strague a noite. Não digas nada, Katie, ordeno a mim própria. Apetece-me ritar IDIOTAS, mas luto para me conter. A única coisa que me dá alguma atisfação é o facto de pensar que a Bells não se apercebeu da situação, ou será ue me engano?"Desculpe?", oiço o Mark dizer enquanto se levanta. A sala escureceu assim [ue o filme começou. Tirando o ruído dos pacotes de batatas fritas e de guloeimas a abrir, bem como o rasgar dos invólucros dos gelados, há um silêncio portal na sala. O casal vira-se. "Desculpe interromper-lhes a marcha, mas há lgum problema com os vossos lugares?" Sinto que está toda a gente a ouvir. Porque se assim é, deviam dizê-lo, não é verdade?"Olham um para o outro acanhadamente. "Creio que nos devíamos ter entado na fila de trás", desculpa-se o homem com pouca convicção."Deviam ter vergonha", diz o Mark em voz baixa, mas com firmeza, 'oltando a sentar-se. O filme começa.Mark tira os óculos, limpa-os à manga da camisola e volta a colocá-los. [em um ar cansado, alguma coisa o anda a preocupar. Gostava que me dissesse - quê. Observo-o enquanto olha atentamente para o filme. Deve ter pressenido que estava a olhar para ele, porque se vira para mim. "O quê? O que foi?""Obrigada." Toco-lhe na mão e entrelaçamos os dedos."De quê?""Por os teres repreendido", segredo."Shh", ouvimos vindo da fila de trás.Voltamo-nos ambos para o ecrã, retirando as mãos rapidamente.Adoro o Mark por ter falado. O mais aborrecido é o facto da Bells estar gora dolorosamente silenciosa. Ofereço-lhe as pipocas, mas ela rejeita-as. Lcho que compreende muito mais do que a julguei capaz.Acho que sempre compreendeu.38A Bells senta-se na minha cama vendo-me a vestir. Estou a usar uma camisola azul clara, atada de lado por uma fita, jeans e uns sapatos ponteagudos com uma pequena fivela.Penteio-me diante do espelho e vejo a Bells no reflexo. Está a inspeccionar o meu estojo de maquilhagem, examinando os batons, o pó-de-arroz, a fazer, de um modo geral, uma enorme salganhada. "O que é isto?", pergunta ela, agarrando um encoracolador de pestanas. "Tu e o Mark vão casar?", pergunta em seguida, ao acaso."Eu, casar com o Mark? Não sei", rio-me prendendo o cabelo e voltando a soltá-lo. Ponho uma enorme flor preta brilhante, feita de missangas, num dos lados da cabeça. Não me consigo decidir se vou usar o cabelo preso ou solto. "É um encaracolador de pestanas, a propósito", acrescento."Porquê?"

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Está agora a tentar pôr um pouco do meu verniz para as unhas. Comprei um novo, prateado e brilhante, que a Bells me viu usar há pouco. "Bem, não sei. Ele não me pediu", respondo simplesmente. "Nem sequer namoramos." Observo-a atentamente, para me certificar que não entorna o verniz por cima da colcha branca da Emma."Não sou como tu, pois não?"Nunca me tinha feito esta pergunta directamente, embora saiba que já a tinha feito à mãe. Não sei o que lhe dizer. Oh, por favor, alguém me diga qualALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOSa resposta adequada? Não posso mentir e fingir que é, só para a agradar. A ells compreenderia tudo, de qualquer modo. Por outro lado, ela ainda podia )nhecer alguém, não? Viro-me para trás e vejo um grande círculo prateado, o tamanho de uma moeda de cinquenta cêntimos, na colcha branca. "Bells, [ha só o que fizeste!" Corro para examinar o estrago.Ela atira o frasco pelo quarto indo bater na parede, com o verniz a itornar-se para cima da carpete."Bells, pára com isso! Qual é o problema? Porque estás tão zangada?" Vou mediatamente recuperar o frasco e volto a enroscar-lhe firmemente a tampa."Não posso fazer como Katie", grita ela, começando a esmurrar uma mão i outra, esborratando o verniz pela palma da mão. "Não sou igual", diz resotamente. "Não sou normal, pois não?"Sento-me ao lado dela. "O que suscitou isto tudo?", pergunto docemente. "Não sou normal", sublinha ela de novo, e a partir daí deixo de perceber o ie está a dizer. "Pessoas olham, é feio.""Bells, tu és normal para mim, para o pai, para a mãe, para todas as pessoas ze te adoram."A Bells não parece convencida. Já ouviu essa antes. "Não sou como a 'fie.""Porque queres ser como eu? Não sou metade da pessoa que tu és." "Tu és bonita.""Não é isso que faz uma pessoa", digo, inflexível. "Nunca penses que é." "Não sou bonita como Katie", repete ela."Bem, e eu não sou boa cozinheira como tu. Sei fazer batatas fritas e bifes, ts é tudo. E cozer ovos. Sou como o pai."Ainda parece transtornada."Olha só como tomaste conta da casa quando a mãe estava tão doente. ho que não tens noção da quantidade de coisas que és capaz de fazer, Bells."Ela pára de bater com as mãos uma na outra e ri-se timidamente. "Sou boa pinheira, não sou?""És mesmo. Estas coisas não interessam nada, não interessam mesmo nada", ;o-lhe segurando o verniz diante dela. "É tudo beleza superficial. Tu és tu, rica mudes. Diz adeus, sorri, cumprimenta as pessoas como costumas fazer." ou a recordar-me daquele dia em que a Bells esteve na minha loja e eu aimpedi de dizer olá aos clientes. "E se elas forem mal-educadas, tu olha para elas também, sem desviar o olhar, não as deixes levar a melhor. Podes ser superior a tudo isso, Bells. É por isso que as pessoas te adoram e te admiram. Olha o Mark, ou o Eddie da charcutaria, ou o Robert e o Ted, o Sr. Vickers, ou a equipa de futebol inteira, já agora. Meu Deus, nunca vi um clube de fás como o teu."Um pequeno sorriso ilumina o rosto de Bells."Acho que só agora nos estamos realmente a conhecer", hesito, "e adoro estar contigo. Não sei o que pensas, mas eu acho que todos nós somos protegidos por um anjo e creio que o teu é um anjo extra-especial.""Qual é o seu nome?"

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"Não tem um nome como tu ou como eu. É o anjo da Bells. Estás a ver, tem o teu nome."A Bells pensa no assunto. "A mãe tem um anjo?""Seguramente que sim.""É por isso que está melhor. O Mark tem um?""Tenho a certeza que sim.""Tu és bonita", diz ela outra vez, observando a minha roupa. A Bells tem vestida uma saia em patchwork com um top preto de cerimónia, da minha loja, e no pulso usa uma pulseira de cabedal com tachas prateadas. Tem também postos os seus três pequenos brincos na orelha esquerda. "Nunca serei parecida contigo, pois não?""Eu não tenho a cor bonita do teu cabelo.""Cabelo da mãe", diz ela."Sim, da mãe. Tens muita sorte. Ainda queres pôr um pouco deste verniz?", pergunto-lhe, segurando o frasco.Ela estende-me a mão e eu espalho cuidadosamente o verniz nas suas unhas roídas. "Olha, também fiz porcaria." Sorrio, limpando cuidadosamente com um papel o excesso de verniz. "Tu és tu, Bells, a Katie é a Katie, o Mark é o Mark. Se fôssemos todos iguais a vida seria bastante aborrecida, não achas?""Sim, Katie, é verdade. Obrigada, Katie."

"Posso arranjar-te outra bebida?", pergunto à Eve, que se encontra acompanhada pelo Hector. Ele está mais inchado que o habitual e veste uma camisola sem mangas azul-escura.ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"E estou. Deixa-me bater na madeira." Inclina-se para bater na prateleira. "Deves estar triste por deixar os teus amigos, não?""Não quero viver com recém-casados." Sorrio. "Estivemos a fazer o plano da distribuição dos lugares à mesa e já foi suficientemente mau." Conto à Eve como estivemos horas sentados a escrever os nomes dos convidados em pequenas folhas coloridas, e a tentar distribuí-los em volta de umas mesas imaginárias. A determinada altura, o Jonnie começou a gritar e a praguejar para a Emma, dizendo-lhe que não queria nenhum dos seus "amigos doutores de merda". A Emma e eu ficámos sem fala. O Jonnie raramente perde a calma. A Emma retribuiu-lhe, dizendo-lhe que seria injusto para qualquer um ter de se sentar ao lado dos pais dele. Nesse aspecto tive de concordar com ela, mas pensei que seria melhor ficar calada para não correr o risco de ver o meu nome ao lado do da Hamster Hermione.A campainha da porta toca novamente e eu oiço a voz do Mark. "Tu deves ser o Mark", oiço a Emma dizer. "Parabéns pelo livro! Tenho ouvido falar muito de ti." Oh, Emma, não digas essas coisas."Não acredito que não nos tenhamos conhecido antes", continua ela. "Olá", diz para a Jess.A Jess traz um top de cetim azul-marinho por cima dos jeans. Quase não tem maquilhagem, mas a sua pele está impecável. Depois vejo o Mark, e, antes que me aperceba disso, já galguei as escadas e corri para o meu quarto, fechando a porta. Acho que ele não me viu. O meu coração bate tão aceleradamente que receio vê-lo saltar para o meio do chão. Tenho consciência que nunca me senti assim com ninguém antes. Já não sei o que dizer ou o que fazer diante dele. Não me reconheço. Acalma-te, Katie, digo para comigo, mas apenas sinto o rosto ruborizar e afoguear-se cada vez mais. "O que estiver destinado a acontecer, acontecerá", murmuro. "Tu não acreditas realmente nessa treta, pois não? Meu Deus, pára de falar sozinha."

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Espalho um pouco de creme esverdeado na cara, porque me promete reduzir o rubor da pele. Pulverizo-me com um perfume que cheira a zesto de limão. Arranjo o cabelo, prendendo-o, soltando-o e voltando a prendê-lo com uma bonita flor de lantejoulas. "Respira fundo e conta até cinco." Regresso finalmente para a festa.A Bells está junto do leitor de CD com o Mark. Os Beatles começam a tocar."Katie, que grande festa!" Já está tocada."Que bonita casa", acrescenta o Hector, olhando em volta da sala.A Emma, a Bells e eu decorámos a árvore de Natal com grandes bolas uradas e prateadas, fita prateada, dourada e vermelha, e Pais Natal de choco-e, embrulhados em papel dourado e prateado. A Emma espalhou luzinhas Natal pela cozinha e colocou ramos de azevinho nas janelas, com pequenos ;cos fingidos aninhados nas folhas. Fizemos canapés durante todo o dia. [sichas, folhadinhos de queijo, mini-tartes de carne. Se tivesse de enrolar tis uma única ameixa seca em bacon daria em doida."Eve, quero agradecer-te o facto de teres tomado conta da loja nestes imos meses. Não teria conseguido sem ti." Tenciono dar-lhe uma generosa itificação este ano."Não tem importância. Fiquei contente com a tarefa. Sabes, o Sr. Vickers nbém me ajudou. Ele gosta de contabilizar os lucros do dia." Ela ri-se abernente. "Mon Dieu!' exclama, batendo-me no braço. "Só te digo, o Sr. ckers é espectacular! Também trata da minha vida amorosa. Diz-me para ar com o Hector, que a aparência não é a coisa mais importante do mundo." Ui! Pobre Hector, mas para minha surpresa ele acha isto bastante engraçado."Desculpem-me, eu estou aqui, sim?", é tudo o que diz.E em seguida começam os dois a rir-se; o Hector dá-lhe um ligeiro encono na anca e esta é a coisa mais comovente que alguma vez vi."Oh, meu Deus! Como é que fizeste essa nódoa negra do tamanho de uma Ia de ténis?", pergunto à Eve. É no seu braço esquerdo, perto do cotovelo. Os chupões do Hector. "Posso não ser número um no departamento da eza, mas há uma série de outros departamentos em que sou muito bom", diz ;ulhosamente, afastando-se de nós. A Eve olha para mim maliciosamente, -olando uma madeixa do seu longo cabelo cor de mel. "O Hector e eu :.mos sexo ontem à noite", sussurra ela. "Contra o lavatório da casa de lho, em cima da mesa da cozinha, na... oh, como é que é a palavra?" "Na cama?""Non! Katie, tu és tão monótona, tão enfadonha. Nós fazemos amor em lo o lado. Junto à lareira, na...""Já chega!" Rio-me, colocando as mãos nas orelhas. "Pára. Na verdade, 3u a morrer de inveja", acrescento. "Pareces muito feliz."ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOSla oferece-lhe uma lata de cerveja, com as suas unhas prateadas a brilhar. Mark parece acabado de sair da máquina de lavar a roupa. O seu cabelo está °sgrenhado e tem vestidos uns jeans escuros, com uma folgada camisola branca umas sapatilhas surpreendentemente modernas. Ele poisa a lata e agarra a mão Bells. Começam a dançar. "Não danço muito bem", diz ela."Não faz mal", grita o Mark por cima da música."O Mark e eu estamos a aprender dança de salão", acrescenta ela e começa rir-se porque ele a faz rodopiar. "Outra vez!", exige ela."Consegues desviar os olhos dele, não consegues?", diz a Emma, avançando irtivamente para mim."Não sejas tonta, estava a ver a Bells dançar.""Ele também olha para ti, sabes?""A sério? Olha?""Imenso, mas tu não estás interessada, pois não?"

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"Não, não.""Disparate, Katie. Esta sou eu, a Emma, a tua melhor amiga. Conheço-te ar dentro, por fora e de trás para a frente. Tu gostas dele, isto é, tu gostas real-!ente dele, não é verdade?""Mas não posso fazer nada quanto a isso", suspiro, observando-o ainda. "Já tive Luitos namorados, mas nunca tive nenhum que começasse por ser um bom amigo. orno tu e o Jonnie. Tens tanta sorte em estares fora da competição.""Tive o meu primeiro namorado aos sete anos. Ele era filho de uns amigos )s meus pais e costumava ficar lá em casa.""Eu lembro-me dessa história. Tu costumavas roubar-lhe a bicicleta para ie ele te perseguisse pelo jardim e acabasse deitado em cima de ti.""Era uma sensação tão maravilhosa, embora eu não percebesse muito bem )rquê." Começa a rir-se.O Mark olha na minha direcção e sorri, antes de se voltar para a Bells. /Iete nojo, não é? E não há nada que eu possa fazer.""Que queres dizer? Vá lá, podes sempre fazer qualquer coisa.""Ele tem uma namorada.""Está bem, mas porque não lhe dizes? Concede a ti própria uma oportuni-!de, pelo menos. O que é que tens a perder?"Observo-o com a Bells. "Tudo", respondo simplesmente."Katie?" O Mark chama-me calmamente, segurando-me na mão e conduzindo-me para fora da sala. Ficamos sozinhos, olhando um para o outro. "Sim?" A música esmorece."Há uma coisa que te quero dizer.""Diz-me", sussurro."Não sei como começar." Ele olha para mim, absorvendo cada pormenor do meu rosto. O seu dedo desliza suavemente pela curva da minha face. "O que foi?"Retira a mão, mas eu anseio que volte a tocar-me."Está tudo acabado entre mim e a Jess. Acho que já estava há muito tempo. Queria dizer-te isto desde que nos conhecemos, mas não tive coragem. Esta noite tinha de dizer qualquer coisa; não posso continuar a manter o segredo. Estou desesperadamente..." Pára. Por favor, não pares."Sim?""Estou desesperadamente...""Para onde te vais mudar, Katie? Katie?""Desculpa", peço, sacudindo a cabeça para me libertar da fantasia. A Jessestá diante de mim. "Descobri uma casa em Ravenscourt Park", digo-lhe. "Por falar em mudanças, não é maravilhosa a notícia a respeito do Mark?" "Desculpa?""O Mark? Ofereceram-lhe um lugar em Edimburgo.""Ele vai mudar-se?" Sei que a Jess me está a observar. Sinto-me como se estivesse em cima de um palco, empurrada para o centro das atenções, tendo-me esquecido das minhas deixas. "Não, não sabia."A Jess mostra-se genuinamente surpreendida. "Bem, ele acabou de receber a notícia. Tenho a certeza que te iria contar." Há, definitivamente, uma sugestão de prazer na sua voz pela minha ignorância. Afasta-se de mim. "Admiro-me que não te tenha contado. Pensava que tinhas estado com ele ontem à noite? Não percebo porque não falou no assunto.""Quando é que ele vai?", intervém a Emma, permitindo-me que me recompusesse."Em Janeiro. Esta nova escola tem umas óptimas instalações para teatro e ele participará no Festival de Edimburgo. É uma oportunidade demasiado boa para desperdiçar. Creio que também será bom para a nossa relação", prossegue

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ALICE PETERSONi nesse seu tom de voz suave e tranquilo, embora continuando a observar-me °retamente. "É difícil estarmos separados, acho que o Mark e eu precisamos passar mais tempo juntos." O modo como ela me olha faz-me sentir pouco nfortável."Ouvi o meu nome ser mencionado", diz o Mark, agora de volta. "Não sei Ide se meteu a Bells. Precisamos de um pouco mais de música." "A Jess estava a contar-me as novidades sobre a tua mudança para Edimirgo", digo-lhe. "Parabéns."O sorriso do Mark desaparece rapidamente. "Jess, esse assunto diz-me ;peito a mim e deveria ser eu a dar a notícia.""Desculpa, não sabia que era um segredo tão grande", diz ela, de olhos uito abertos.Abana a cabeça irritado. "Katie, tenho de me ir embora.""O quê, agora?", digo sem pensar."Jess, estás pronta?"Ela faz um ar carrancudo. "Está bem, vou buscar o meu casaco."Não quero que ele se vá embora. Não o suporto. O Mark caminha à minha .nte. "Eu ia contar-te, acontece que ainda mal acabei de tomar uma decisão", ita explicar."Quem me dera que sim", respondi-lhe calmamente."Katie, desculpa."Tenho a certeza que quer dizer mais alguma coisa. "Feliz Natal", balbucia almente, inclinando-se para a frente para me dar um beijo na cara. Oiço os ssos da Jess atrás de mim.E a seguir foi-se embora.39A Bells e eu estamos a apanhar o comboio para passarmos o Natal em casa. No dia a seguir à festa mudei-me para o meu novo apartamento, com a ajuda do Jonnie. Deixá-los provocou-me um estranho sentimento. Senti-me, ao desempacotar as caixas, como se estivesse a viver o meu primeiro dia de colégio interno.O meu telemóvel começa a tocar e o nome do Mark aparece no ecrã."Ainda estás em Londres?""Não, a Bells e eu estamos no comboio.""O pouca-terra", anuncia a Bells."Katie, desculpa.""Olha, não faz mal.""Faz, sim. Tu és uma boa amiga..."Lá está a palavra que odeio. Amiga."Bem feito", digo atropelando-o. "Um livro a publicar e agora Edimburgo. Mas que ano! Como se chama a escola?""Katie, eu preciso mesmo de falar contigo.""És tu Mark? Pergunta a Bells. "Olá, Mark.""Olá, Bells", diz ele rapidamente num tom de voz perturbado. "Katie, é sobre a outra noite..."A Bells tira-me o telefone das mãos. "Feliz aniversário, Mark.""Não é o meu aniversário, Bells, ainda não, mas obrigado de qualquer maneira. Posso falar com a Katie?"ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"Quando é que vais embora?" Por um segundo de loucura permito-me iginar que ele me irá dizer que já não se vai embora."Daqui a duas semanas." Faz-se uma pausa. O telemóvel começa a perder e quando entramos num túnel. O Mark está a dizer qualquer coisa, mas eu consigo ouvi-lo.

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"Mark, vejo-te no Ano Novo. E esta notícia é fantástica. Embora vá sentir dades tuas." Engulo com dificuldade."Olá, Mark", repete a Bells. "Feliz aniversário."Ele desta vez não lhe responde. "Tu vens à minha festa de aniversário, não s, Katie?"O telefone fica novamente sem rede."Não te consigo ouvir", digo-lhe. A chamada cai.Guardo o telemóvel dentro da mala e espero que ele volte a ligar. Quero ele volte a ligar, mas não o faz.

O Natal é divertido e acabei por ficar para a passagem de ano. Nunca tinha brado a passagem de ano com os meus pais e a Bells, bem, pelos menos desde neus doze anos, portanto, esta parecia-me um acontecimento importante. A tia Agnes juntou-se a nós na véspera de Ano Novo, trazendo uns :oitos caseiros. A tia Agnes é dez anos mais velha que o meu pai. c vestido um casaco de peles e uma boina vermelha, com baton a condizer, sa um pendente de prata maciça em forma de coração, que parece ter ^ comprado numa ourivesaria luxuosa da Bond Street. Descobrimos que a Agnes encontrou alguém através de uma organização local de recolha lindos para a construção de um albergue para crianças. O nome dele é T. Desde que o tio Roger morreu, há dois anos, ela perdeu pelo menos t dúzia de quilos. "Tia Agnes, está espantosa", digo-lhe. "Como é quesegue?"'Obrigada, querida", diz ela, com as pestanas adejando por cima dos seus is amendoados. "O segredo está em ter deixado de fazer batatas fritas iras e gâteaux Floresta Negra."Solocamos na cabeça os chapéus de papel, contamos anedotas patetas, e .demos os foguetes domésticos. A Bells tem uma cobra. Parece uma pílula tnha, mas uma vez acesa transforma-se numa mamba preta. O meu é umcowboy a fumar um cigarro; quando se acende começa a libertar baforadas de fumo. Ao cair da meia-noite todos brindamos à saúde da mãe. O seu rosto está rosado pelo álcool e ela está a ficar emotiva. O seu cabelo está muito curto e macio, parece uma penugem. Ainda cobre a cabeça com os seus lenços de seda coloridos . A Bells pergunta-lhe se pode ver a cicatriz outra vez; a mãe guia-lhe a mão através da nuca. A Bells apalpa-a delicadamente.

A mãe, o pai, a Bells e eu estamos a ver o Quem Quer Ser Milionário?, a edição especial de Ano Novo, e o Simon Cowell está a participar. É a minha última noite em casa antes de ir para Londres."Não acredito que este cretino esteja a telefonar a um amigo. É a D, idiota!", diz o pai ao mesmo tempo que o telefone toca."Talvez ele lhe esteja a telefonar a si, pai", sugiro."Querido, podes atender?", pergunta a mãe, com os olhos colados ao ecrã. Segundos depois ele volta a entrar na sala. "É o Mark." O pai entrega-me o telefone e senta-se no seu lugar.Empurro-o na sua direcção. "Não estou aqui", gesticulo para ele com a boca. NÃO ESTOU, escrevinho num bocado de papel, abanando-o diante dele."Mark, ela pode voltar a ligar-te?" O pai pousa o telefone. "Não gosto de mentir, Katie. Vê lá se lhe telefonas." Volta a sua atenção para a televisão."Porque não queres falar com o Mark?", pergunta a mãe. "Pensei que ele fosse um bom amigo."

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"Hum, sim, e é", respondo-lhe, concentrando-me deliberadamente no Simon Cowell."Katie?", pressiona a mãe. "Aconteceu alguma coisa?""O Mark vai sair de Londres", conto-lhe."A menos que esteja a escapar alguma coisa ao teu velho pai, por que razão é isso tão mau?" O pai não afasta os olhos da televisão."Ele vai para Edimburgo.""Humm", reconhece o pai. "Vais ter saudades dele. Ele é um jovem muito simpático. Que vai ele fazer para Edimburgo, então?"Os pais nunca percebem nada, penso para comigo.ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"Oh, querido, cala-te", diz a mãe. "Estás a apanhar o filme todo ao itrário, como de costume." Ela vira-se para mim. "Olha, eu não sou cega. ;sa-se qualquer coisa aqui, para além do simples facto do Mark se ir boca", diz ela. "Porque não falas com ele?""Não me apetece, só quero ver isto."A mãe suspira com impaciência. "Vá lá, Katie.""Está bem", desisto, "Eu gosto dele, mas de que me serve se ele se vai bora?""Podiam acontecer coisas muito piores. Não é o fim do mundo, pois não? o significa que não voltes a vê-lo", raciocina ela."Eu sei, só que me habituei tanto a tê-lo perto de mim que irei mesmo tir saudades dele. Sinto que ele é a minha alma-gémea, sabe o que quero er?""Sei exactamente o que queres dizer." Olha de lado para o pai, que se :outra sentado no seu cadeirão com os chinelos de pele calçados e a olhar de [aio para a televisão.Ambas sorrimos. "Ele era um homem atraente quando era novo", sussurra iãe."Está a perguntar à plateia agora, acreditam nisto?", diz o pai indignado. es não sabem", diz com desprezo."Isto, para a mãe, deve parecer tão..." Não me consigo lembrar de uma rvra adequada depois de tudo pelo que a mãe passou, "...palerma", digo ilmente."Não, querida. Palerma será não lhe dizeres nada. Quando é que o vais ver novo?""Amanhã à noite, na sua festa. É em Battersea. Vão lá estar os pais dele e o."E tu também vais, não vais?"Não pareço muito decidida."Estás apaixonada por ele?", pergunta a Bells, de repente. Está deitada de ços, no chão, apoiada nos cotovelos e a ver televisão. Estava tão sossegada nem me apercebi que nos estava a ouvir."Não", balbucio, apanhada de surpresa pela sua frontalidade."Katie estúpida.""Não sou", incito, pensando que não me chamavam estúpida desde criança."Estúpida, não é, mãe?""Pára de me chamar estúpida", protesto. E depois lembro-me de como chamei estúpida à Bells, vezes e vezes sem conta, quando ela cortou as etiquetas das camisolas."Amas o Mark?", pergunta a mãe."O quê? Tu amas o Mark?", corta agora o pai.Enterro a cabeça nas mãos."Oh, querido, mantém-te a par. Acho que tens razão, Bells", diz a mãe. "Ela é estúpida se não lhe disser."Nessa altura, olham todos para mim, expectantes."Como é que lhe vou dizer? Ele vai-se embora. Tem uma namorada. No entanto, não sei se ele será feliz com a Jess."A mãe encolhe os ombros. "O que tens a perder?""O meu orgulho?", sugiro.

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"Bem, é um risco, mas tens de fazer a ti própria essa pergunta. Será que o Mark vale esse risco?"Penso nisso um segundo. "Sim, a cem por cento", concedo. "Nunca conheci ninguém como ele.""Certo, bem, então nesse caso, bebe uma generosa vodka, vai à festa, caminha direita a ele e sê corajosa. Diz-lhe exactamente o que sentes.""Isso mesmo", diz agora o pai. "Os homens também precisam de um pouco de encorajamento, sabes?""Talvez não esteja destinado a acontecer", acrescento, numa último lanço, para me poupar à humilhação."Essa é a maneira mais fácil de lidar com as situações, só os cobardes dizem isso', acrescenta a mãe com uma fungadela.

A mãe e eu estamos no cimo das escadas. Estamos prestes a ir para a cama. "Compra um vestido bonito para a festa", diz-me ela, acariciando-me o rosto. "Não te vistas de preto. O vermelho é a tua cor. Veste-te de vermelho", insiste. "Contrasta com o teu cabelo escuro. E penteia o cabelo ao alto.""Mais alguma coisa?", sorrio.ALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOS"Não, é só."Beijamo-nos na cara."Obrigada", digo-lhe, envolvendo-a com os meus braços. "Adoro-a." Foi a rimeira vez que lhe disse isto, desde que deixei de ser criança."Também te adoro." Também foi a primeira vez que me disse isto, desde ae deixei de ser criança. Sinto uma onda de calor nos seus braços, algo que ercebo faltar-me há anos.

"É para uma ocasião especial?", pergunta a empregada da loja. Tive de )rrer para fazer estas compras de última hora antes de voltar para Londres."É para o aniversário de um amigo." Dou mais uma volta com o vestido =telho escuro. É comprido, com tiras cruzadas nas costas, do estilo anos nquenta, e eu estou a pensar que o podia vestir com o meu casaco de lã ebruado."Bem, vai arrasá-los", diz-me ela. Esse vestido foi feito para si."Olho novamente para o espelho, a fim de me certificar que ela não está a Lentir. Não tenho tempo para procurar em mais lado nenhum. Não, ela tem izão. "Vou levá-lo." Sorrio. Afinal de contas, são os trinta e cinco anos do iark, digo para comigo justificando a decisão.

"Se soubesse o endereço exacto ajudava", diz o taxista na defensiva. Claro 1e ele tem razão, mas estou demasiado enervada para pedir desculpa. Agora ^ quero chegar à festa. Não só me esqueci do convite, como também cheguei rde a Londres porque o comboio se atrasou. Demorei quase três horas a legar ao meu apartamento. Ao meu apartamento. Soa bem.Voltando ao Mark. Quase vejo o convite com o endereço nele escrito. O [ark está a dar a festa num sítio em que nunca estive e não me lembro do )me do local. O convite está em cima da minha cama. Chiça, chiça, chiça."Estamos a andar em círculos", inquieto-me, olhando de novo para o lógio. São agora nove e meia. Estou atrasada cerca de duas horas. Pego no lemóvel e ligo ao Mark. Responde-me o voice mail outra vez. "Mark, vou a minho. Estarei aí muito em breve."

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Desligo abruptamente. "Espere! Creio ie ultrapassámos o lugar de viragem. Volte para trás.""Não posso voltar aqui", o taxista bufa e o limpa pára-brisas começa a funcionar. A chuva cai."Faça inversão de marcha." Ele continua em frente. "Dou-lhe uma gorjeta", digo-lhe bem alto.Abana a cabeça enquanto dá voltas ao volante e conduz na direcção contrária."Boa", lembro-me vagamente de o Mark me ter dito que o sítio era perto da Battersea Bridge e da central eléctrica. Fomos demasiado longe ao passar além da ponte.Quando finalmente chegámos, o condutor do taxi quase me despeja do carro para dentro de uma poça. "Para a próxima traga a morada", rosna, mas sorri quando lhe estendo cinco libras extra.

Entro numa grande sala cheia de gente, mas oiço apenas uma pessoa a falar. Já chegaram ao momento do discurso. Este sítio parece uma estufa interior, com plantas verdes araneiformes, uma fonte e a estátua de um leão, em frente da qual estou sentada. Aquele lugar indistinto é iluminado por pequenos castiçais que lhe transmitem uma sensação de calor.Um homem alto e magro, de óculos, está de pé ao lado do Mark, que veste uma camisa azul clara e um casaco preto. Faço sinal a uma empregada com uma bandeja de bebidas que vem na minha direcção e sorrio agradecida, apanhando uma taça de champanhe."Prometi ao meu filho não me exceder demasiado esta noite para não o embaraçar, mas o que não quero deixar de dizer é que estamos muito orgulhosos dele."Toda a gente solta um "aaahhh". O Mark fica um pouco ruborizado e brinca nervosamente com os punhos do casaco."Não vou ficar aqui a dizer-vos como ele é maravilhoso, nada é mais irritante que um pai orgulhoso. Não quero parecer uma daquelas circulares que recebem no Natal transmitindo um triunfo atrás de outro." Todos riem. "O Mark disse-nos como última notícia de Natal que vai ser colocado em Edimburgo no próximo ano. Estamos muito contentes por ficar assim mais perto de nós, e eu gostaria de lhe desejar o melhor para o ano que vem."Todos aclamam menos eu. Tudo quanto senti ao longo da última semanaALICE PETERSON OLHAR NOS OLHOSTeça a andar para trás com a consciência de ele estar de partida. As pessoas Teçam a misturar-se e eu estou determinada a falar com ele agora, ou nunca irei. Tenho o presente na minha mão."Katie!" OUÇO-o chamar. O Mark caminha na minha direcção aos empurs através da multidão. Choca contra a malinha de mão de uma senhora e ta-se rapidamente para trás para pedir desculpa. Agora está à minha frente. )mo pudeste chegar tão tarde?""Feliz aniversário." Acaricio-lhe suavemente o braço.Uma rapariga bonita num apertado vestido de veludo aproxima-se do rk e trocam algumas palavras, dando-me tempo para me compor e ttrolar a respiração. Finalmente, está livre para falar comigo. "Porque igno-:e as minhas chamadas?"Porque pensas que terá sido, Mark? Com certeza não é assim tão difícil de apreender, não?"Toma o teu presente." Estendo-lhe o pequeno volume embrulhado em >el azul e enfeitado com uma fita.Ele aparenta um completo desinteresse no presente. "Porque chegaste atra-a? Porque te incomodaste a vir?""Mark, estou aqui."

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"Bem, é grosseiro chegar atrasada cerca de duas horas."Não lhe digo que me esqueci do convite porque estava demasiado preocula a comprar o meu fato, ao qual ele parecia não ter prestado qualquer ação. "Mark, o meu comboio atrasou-se. Lamento muito.""Estava com medo de que tivesse acontecido alguma coisa, ou que não >ses. Podias ter-me ligado para dizeres que chegarias tarde.""Eu liguei, várias vezes. Tu não atendeste."Faz um ar carrancudo antes de se virar. "Mãe, esta é a Katie.""Katie, que bom teres conseguido vir", diz a mãe dele. Tem o cabelo tado com madeixas acobreadas e veste um top azul forte de seda que rabina com a cor dos olhos. Tem um sorriso muito caloroso que, como tela covinha, me é muito familiar. "O Mark estava desejoso de saber onde iria você, Katie. Ele estava preocupado."Ele vai-se embora.Obrigo-me a falar com a mãe dele quando tudo o que queria fazer erasegui-lo e pedir desculpa. Magoei-o. Deveria ter respondido às suas chamadas durante o Natal. Ele merece muito mais. Ele fez tanto por mim e eu nem sequer consigo chegar a horas à sua festa e congratulá-lo de modo apropriado. Sou uma péssima amiga."São maravilhosas, as notícias da ida do Mark para Edimburgo, não são?", diz a mãe dele."Maravilhosas", repito distraidamente."Edimburgo é uma cidade vibrante...", continua ela.Tomo consciência de estar a fazer exactamente aquilo que o Mark e eu odiamos que as pessoas façam nas festas. Olho por cima do ombro dela para ver onde está ele.A bandeja das bebidas dá mais uma volta e eu pego com rapidez noutro copo.A mãe do Mark continua a falar comigo, mas eu apenas desejo desesperadamente que ele volte para trás. Vejo-o a ser puxado em todas as direcções. Depois vejo a Jess, vestindo um fato calça e casaco e por baixo um corpete de renda rosa vivo. Troca algumas palavras com ela antes de serem interrompidos por outra rapariga. Começam todos a falar ao mesmo tempo. Alguém está claramente a contar uma história, porque todos no grupo se riem. Não posso introduzir-me no grupo para tentar falar com o Mark outra vez. Estaria deslocada. Tudo o que desejo é ir para casa. Ao mesmo tempo, ouço a voz da mãe repetidamente.

"Porque não partilhamos um táxi?", sugere um dos outros convidados. Tinha acabado de pedir na recepção que chamassem um táxi para mim. "Eu vou na mesma direcção, portanto faz sentido.""Óptimo." Volto-me e vejo um homem alto de cabelo louro liso. "Se não se importa?""Com certeza. Deve demorar apenas mais uns dez minutos, mais coisa menos coisa.""Espero lá fora",digo. "Preciso de apanhar um pouco de ar fresco." Chove torrencialmente, mas não me importo. Os outros convidados começam a abandonar a festa e a sair pela porta principal, abrindo os guarda-chuvas e esquivando-se às poças de água.ALICE PETERSON OLnnn~~..•--O homem de cabelo louro vem ter comigo e oferece-me o seu casaco. propósito, eu sou o Tom, e creio que este é o nosso", diz ele com alívio, im que um carro prateado se encosta ao passeio. Estendo-me no confortável ento almofadado. Sou uma cobarde. Não falei com o Mark. Fecho os olhos atando apagar a noite. Dez minutos depois o nosso taxista buzina tão furionente que sou obrigada a abrir os olhos para ver o que se está a passar.

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"Não fez sinal, o idiota", explica o Tom quando pergunto o que aconteceu. ntão, de onde é que conhece o Mark?""Éramos mais ou menos vizinhos", respondo sucintamente. É a explicaçãoais simples. "E o Tom?" Sinto que tenho a obrigação de perguntar. "Trabalhamos juntos. Vamos sentir a falta dele quando se for embora." "Pois, eu também.""Ele merece, trabalha demasiado. Já agora espero que consiga algum tempo ra tratar do cabelo. Edimburgo é um sítio maravilhoso. Ele precisa realmente tempo para si próprio, de encontrar alguém e de se divertir."Sento-me. "Mas ele tem uma namorada. A Jess.""Não." O Tom abana a cabeça. "Ele é um poço fundo no que diz respeito ua vida pessoal, mas sei que se separou dela. Ela é uma esplêndida rapariga. ïo sei como é que ele se safa, aquele Mark", ri-se para si próprio. O meu ritmo cardíaco começa a disparar. "Porque é que eles se separaram?" "Acho que chegaram à conclusão que eram bons amigos, mas não mais que o. Não é fácil quando se conhece alguém há uma série de anos e se tenta ser ;o mais que apenas amigo. É uma mudança esquisita. Aconteceu comigo e desastroso! Estávamos muito melhor quando éramos apenas amigos. Não via química entre nós, era uma coisa estranhíssima. Seríamos levados a asar que a nossa química seria a melhor com alguém de quem gostamos e e conhecemos tão bem, mas eu sentia-me um bocado de pão seco quando ava com ela. Acho que não funciona assim.""Tom, tenho de voltar à festa", digo-lhe.Ele vira-se para mim surpreendido. "Porquê?""Não há tempo para explicações. Por favor, por favor", suplico. "Só quando souber porquê.""Porque sim." Junto as mãos como se rezasse."De qualquer modo, a festa estava a acabar.""Pode voltar para trás? Eu tenho de regressar", peço ao motorista.O motorista continua a acelerar estrada fora. "Então pare o carro, eu voua pé!""Voltarei para trás quando for seguro fazê-lo", diz ele afectadamente. "Pare o carro, AGORA!" Insisto."Por favor, importa-se de voltar para trás?", pede delicadamente o Tom. "Dar-lhe-emos uma gorjeta extra", acrescenta.Damos a volta, com os pneus a chiar, e seguimos direitos à festa. Parece ser a minha noite de inversões de marcha e gorjetas extra. "Obrigada, Tom." Dou-lhe um beijo na cara."Devia partilhar táxis com miúdas mais vezes." Sorri ele. "Estou com jetlag, percebe, quero ir para casa.""Lamento mesmo muito, preciso de dizer uma coisa ao Mark."Ele olha para mim com curiosidade. "E não podia esperar até amanhã de manhã? Bem, espero que seja mesmo importante, depois disto tudo."

Volto a subir as escadas espiraladas, com a minha roupa a pingar para cima dos degraus e o cabelo molhado em cima da cara. Quase não se ouve barulho, a festa está definitivamente acabada. Os funcionários do catering estão a lavar e a embalar os copos dentro de caixas. Apagam as velas e levam tabuleiros de comida para a cozinha. O único ruído que consigo ouvir é o da água da fonte com cúpidos, no outro lado da sala. "Esqueceu-se de alguma coisa?", pergunta um dos empregados."Não, onde está o Mark?", pergunto, ofegante. "O senhor que dava afesta?""Acho que se foi embora."

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NÃO! Não se pode ter ido embora. Por favor, digam-me que ele não se foi embora. Sento-me junto à fonte e tento recuperar o fôlego. Não posso acreditar.Oiço passos a aproximarem-se de mim."Que estás aqui a fazer?", não espera pela minha resposta. "Esqueceste-te de alguma coisa?" Há uma lâmina na sua voz.Sinto-me profundamente aliviada por ouvir a voz do Mark, mesmo não estando bem disposto. "Não, não me esqueci de nada", digo resolutamente. 0r~Lit t FETERSON V 1.11A 1\ 1 `I V.+ .-ibiente está tão tenso que os empregados começam novamente a conversar e fingir que estão concentrados a lavar os copos e os pratos.O Mark caminha para o outro lado da sala e continua a embalar os .sentes dentro de caixas. Não olha para mim. "Porque não me disseste que tinhas separado da Jess?", pergunto-lhe."Bem, porque julgas que estava a querer entrar em contacto contigo?" Compreendo-o. "Desculpa, mas..."Ele interrompe-me. "Tens andado a comportar-te de modo tão estranho sde que te contei da minha ida para Edimburgo. Nem me deixas falar ntigo sobre o assunto.""Bem, eu não quero que te vás embora, é por isso!", expludo."Acho que também pensei nisso. Então esta é a tua forma de mo dizeres? ;indo infantilmente, sem devolveres as minhas chamadas. Sei que estavas em sa quando te telefonei no Ano Novo.""Está bem", digo, "é verdade que estava. Estava a ver o Simon Cowell no ïlionário."O Mark quase sorri. "E esta noite? Chegaste tão atrasada e...""Importas-te de te calar e de ouvir? Deixa o raio dos teus presentes por um cadinho."Finalmente olha para mim. "A Bells tem razão. Tu és um polícia de .nstto."Eu não quero que te vás embora. Porque haveria de querer? Fico feliz por mas Edimburgo... bem podia ser Timbuktu. Odeio a ideia de não estar rto de ti. Percebi tudo mal", admito. "Pensei que ainda estavas com ela, e )ra descobri que não, e nem te consigo dizer como isso me faz feliz rque...", interrompo-me. Terei dito de mais?"Continua", pede ele."Apercebi-me de como és importante para mim. Acho que até possoar..."O quê?", encoraja-me docemente.Não acredito que me obriga a dizê-lo. "Acho que te amo."Faz-se um enorme silêncio e sei que toda a gente na sala está a ouvir. "Eu acho que te amo", diz o Mark."O quê?", pergunto serenamente."Eu não acho que te amo", repete, mas nessa altura avança e beija-me. Devo estar no meio de um filme, isto não parece real. Tenho de me beliscar quando nos separamos."Sabes que mais?" O Mark sorri. "Eu não acho que te amo porque sei que sim.E então os empregados começam a aplaudir.

"Turnham Green, por favor", indicamos ao taxista."Idiota!" Empurro o braço do Mark. "Porque não me disseste que te separaste da Jess? Podias ter-me escrito ou ter-me dito quando estava no comboio a caminho de casa."O Mark passa a mão pelo cabelo. "Bem sei, mas tinha a Bells por trás a desejar-me um feliz aniversário e depois, não conseguias ouvir. Além disso, ainda não tinha dito à Jess e queria estar contigo."

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"Portanto, passei por toda esta agonia por nada. Fui a que teve de dizer amo-te primeiro.""Desculpa, Katie. Devia ter acabado com a Jess já há muito tempo. Está-vamos a fazer um esforço demasiado intenso para que resultasse, quando, na realidade, não éramos mais que amigos. Soube o que sentia por ti depois de termos ido juntos ao teatro. Só não sabia como acabar com ela. Conheço-a há mais de vinte anos, mas isso não é razão para ficar com alguém.""Ela está bem? Quando é que lhe disseste?", pergunto. Não consigo imaginar o Mark a deixar-me."Logo a seguir ao Natal. Ela está óptima, penso. No fundo, creio que ela sabe que tomamos a decisão certa. Estás a ver, ela veio esta noite o que quer dizer alguma coisa, não é verdade?""Sim, definitivamente. Vocês são velhos amigos e isso é muito importante. Já abriste o meu presente?"."Está aqui." Começa a desembrulhar o papel azul e eu observo cada pormenor e expressão do seu rosto."Não acredito que encontraste isto."É um exemplar da primeira edição das Aventuras do Tio Lubin. Consegui-o através da Internet."Portanto, Edimburgo. Achas que as relações de longa distância resultam?" "Esta vai resultar", diz ele, agarrando firmente o livro. "Tu irás ter comigo e ficarás o máximo de tempo que puderes?""E se tu gostares tanto daquilo e quiseres lá ficar para sempre?" "Resolveremos essa questão quando ela surgir.""Se eu te visitar e ficar contigo há uma condição", digo-lhe muito séria. "O quê?" Agarra a minha mão."Tem de haver um quarto disponível para a Bells."O Mark afunda-se no banco. "Acontece que já tratei disso. Já lhe comprei posters dos Beatles e do David Beckham.""E do Stevie Wonder?""Vamos pendurá-lo na parede também.""Bem, como posso eu dizer que não, quando colocas as questões desta forma?""Ainda bem. Então quando é que vais ter comigo?""Quando é que te vais embora?""No próximo fim-de-semana.""E que tal se eu for na semana a seguir?"318