O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO SISTEMA ÚNICO DE … · (Monte Castelo, Legião Urbana) ~ 6 ~...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA FACULDADE DE MEDICINA DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA COM ASSOCIAÇÃO DO IES AMPLA MARIA IDALICE SILVA BARBOSA O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE DO BRASIL FORTALEZA 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA

FACULDADE DE MEDICINA

DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA COM ASSOCIAÇÃO DO IES AMPLA

MARIA IDALICE SILVA BARBOSA

O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO

SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE DO BRASIL

FORTALEZA

2015

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MARIA IDALICE SILVA BAROBSA

O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO

SISTEMA ÚNICO DE SÁUDE DO BRASIL

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva UECE/UFC/UNIFOR, como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor. Área de Concentração: Políticas, Gestão e Avaliação em Saúde. Linha de Pesquisa: Avaliação em Saúde. Campo Temático: Avaliação Qualitativa de Programas e Serviços de Saúde.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Magalhães Bosi

FORTALEZA

2015

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MARIA IDALICE SILVA BARBOSA

O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO SISTEMA ÚNICO

DE SAÚDE DO BRASIL

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva UECE/UFC/UNIFOR, como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor. Área de Concentração: Políticas, Gestão e Avaliação em Saúde. Linha de Pesquisa: Avaliação em Saúde. Campo Temático: Avaliação Qualitativa de Programas e Serviços de Saúde.

Aprovada em: 22 / 12 / 2015.

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Ainda que eu falasse A língua dos homens

E falasse a língua dos anjos Sem amor eu nada seria

É só o amor! É só o amor Que conhece o que é verdade

O amor é bom, não quer o mal Não sente inveja ou se envaidece

O amor é o fogo que arde sem se ver É ferida que dói e não se sente

É um contentamento descontente É dor que desatina sem doer

Ainda que eu falasse A língua dos homens

E falasse a língua dos anjos Sem amor eu nada seria

É um não querer mais que bem querer É solitário andar por entre a gente É um não contentar-se de contente É cuidar que se ganha em se perder

É um estar-se preso por vontade É servir a quem vence, o vencedor

É um ter com quem nos mata a lealdade Tão contrário a si

é o mesmo amor Estou acordado e todos dormem

Todos dormem, todos dormem Agora vejo em parte

Mas então veremos face a face É só o amor! É só o amor

Que conhece o que é verdade Ainda que eu falasse

A língua dos homens E falasse a língua dos anjos

Sem amor eu nada seria

(Monte Castelo, Legião Urbana)

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Agradecimentos

À Vida, pela sua maravilhosa gratuidade e grandiosidade;

À Coordenação do Programa e a todos os professores, em especial, ao professor Diatahy Bezerra,

pelas agradáveis tardes de suas instigantes e inspiradoras aulas;

À minha professora orientadora Maria Lúcia Bosi pelo desafio aceito de empreender junto comigo esta

maravilhosa aventura do conhecimento;

Aos gestores de saúde de Tauá, a Dra Ademária Timóteo, secretária de saúde do município, e ao

amigo Moacir Soares, pela prestimosa colaboração com esta pesquisa;

Aos profissionais do Centro de Saúde da Família de Inhamuns que empreenderam comigo parte do

caminho que resultou nesta produção do conhecimento;

À Banca da defesa, pela presteza como atendeu ao convite em colaborar com este trabalho;

À Zenaide, por sua delicadeza e colaboração, sempre e a tempo em todas as solicitações que precisei;

Às amigas: Socorro Sousa, pelo incentivo e colaboração quando me candidatei ao Programa;

Vanira Matos, por ter se aventurado comigo, dialogando sobre as aulas que assistimos juntas e

compartilhando o mesmo sonho; e a Teresa Queiros pelos diálogos cheios de risos e soluções inéditas;

Aos amigos Carlile Lavor e Míria Lavor por fazer de suas vidas fonte de inspiração de sonhos no

caminho de construção de um Sistema Único de Saúde universal, integral e equânime;

Aos meus pais, Maria Selma e Vicente Paulo que sempre me apoiaram em meus estudos , minha tia,

meus irmãos e sobrinhos, pelo amor que me dedicam.

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Dedicatória

Dedico este trabalho ao meu irmão Halyson Silva Barbosa (in memorian) que faleceu

tão cedo, mas deixou comigo a certeza de que o vínculo de Amor é eterno!

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RESUMO

Este trabalho objetivou compreender o vínculo no espaço da atenção primária em saúde (APS) efetivada no Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), tendo a complexidade como base epistemológica. A natureza do fenômeno exigiu um esforço reflexivo transdisciplinar em que constructos teóricos oriundos de diversos campos de saber, tais como psicologia, etologia, sociologia, antropologia, neurologia e estudos acerca da cognição humana confluíram fazendo emergir uma teia de conhecimentos e saberes na qual o vínculo se expressa em três níveis distintos e articulados: consigo, com o outro (alteridade) e com a sociedade (natureza/ambiente). A partir da visão complexa a ESF foi o contexto no qual adentramos para compreender os desdobramentos do vínculo interrelacionado às formas do cuidado, próprias da atenção primária em saúde. O caminho metodológico adotado tem inspiração na Sociopoética que reconhece, por princípio, o corpo como fonte de saber e legitima saberes oriundos da vivência e das práticas. Por meio do uso de dispositivos específicos, a sociopoética convida, reconhece e compromete os sujeitos da pesquisa como corresponsáveis pela produção do conhecimento promovendo um diálogo transdisciplinar pela fertilização mútua entre arte e ciência. O trabalho de campo não se apresenta como fonte empírica geradora de dados, mas como um Portal ao qual adentramos para, juntos com os profissionais da saúde, compreendermos o vínculo entrelaçado aos circuitos que compõe a ESF como sistema. O diálogo transdisciplinar foi o centro vivo da produção do conhecimento em que a arte e a imaginação se somaram à racionalidade cognitiva, dando vida e pertinência aos saberes produzidos. O vínculo apresentou-se como saber silenciado, ainda que vivido diariamente, formando um circuito mobilizador de ações e decisões, atuando como regulador das condutas. O vínculo toca o delicado circuito que tece a autonomia e a responsabilização, revelando que se inclui, dentre as tarefas dos profissionais na ESF, o posicionar-se frente aos variados graus de autonomia que as pessoas constroem ao longo de suas vidas para efetivar a longitudinalidade do cuidado. Tal posicionamento possui implicação direta com o nível de vinculação que ambos, profissionais e usuários, têm consigo próprio. Outro desdobramento do vínculo está na regulação de condutas éticas que interligam saber, afetividade e poder, relacionado ao nível de vinculação dos sujeitos com a sociedade, mobilizando tanto nossa capacidade de excluir o outro, dissociando vínculo e afetividade, gerando favoritismos e abuso de poder, como também, nossa capacidade de inclusão do outro, pela compreensão empática e altruísta, que entrelaça universalidade e equidade, efetivando a integralidade do cuidado humanizado em saúde. A humanização dos serviços de saúde está implicada na dialógica entre os três níveis de vinculação. A capacidade de vinculação consigo tem grande potencial de retroalimentar o circuito, mas não se desenvolve de forma espontânea numa sociedade em que o egocentrismo e o individualismo destituem nossa humanidade pela negação do outro. Compreender, mediante um percurso reflexivo-vivencial, os vínculos que nos interligam uns aos outros se mostrou um caminho para rever valores, revelando possibilidades de aperfeiçoamento das práticas em saúde, na medida em que as condutas éticas adquirem enraizamento afetivo pela religação de si com a humanidade de todos.

Descritores: Atenção Primária à Saúde, Vínculo, Estratégia Saúde da Família, Saúde Coletiva, Complexidade.

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ABSTRACT

This study aimed to understand the bond within the primary health care (PHC) managed in the Brazilian Unified Health System (SUS in Portuguese), having the complexity as an epistemological basis. The nature of this phenomenon required an interdisciplinary reflective effort in which different theoretical constructs from various fields of knowledge, such as psychology, etiology, sociology, anthropology, neurology and some studies about the human cognition, came together arising a network of knowledge and learning, in which the bond is expressed in three different and articulated levels: with ourselves, with the others (otherness) and with the society (nature / environment). From the complex view, the ESF was considered as the context in which we penetrate in order to understand the development of the bond that is related to all kinds of care that are commonly practiced in the primary health. The methodological approach adopted is inspired in social poetics, which recognize, in principle, the body as a source of knowledge and legitimize knowledge derived from experience and practice. Using specific devices, social poetics invite, acknowledge and commit the research subjects as co-responsible for the knowledge production, promoting an interdisciplinary dialogue for cross-fertilization between art and science. The field work is not only an empiric data generator source, it is also a doorway in which we enter in order to understand together with the health professionals the bond interlaced with the circuits as a part of the ESF system. The interdisciplinary dialogue was the vital center of the knowledge production in which the art and the imagination joined the cognitive rationality, giving life and pertinence to the generated knowledge. The bond was introduced as a silenced knowledge, experienced in a daily basis, constructing a dynamic circuit of actions and decisions acting as a conduct regulator. The bond touches the gentle circuit that weaves the independence and the accountability, revealing the professionals duties in the ESF, this includes facing the different levels of autonomy that people construct during their lives in order to accomplish the longitudinally of care. This implies the bonding between the professionals and the health users. Another development of the bond is the regulation of the ethical conduct that connects the knowledge, the affection and the power and this depends of the bonding level between the subjects and the society, that in one hand a subject can exclude the other, dissociating bond and affection, causing favoritism and abuse of power, and in the other hand a subject has the ability of accepting the others, by the altruistic empathic understanding, interlacing the universality and equality, making effective the integrality of the human health care. The ability of bonding with ourselves has a great potential and this feeds back the circuit, but this does not mean that is developed in a spontaneous way due our egocentric and individualist society. Understanding through a reflective course the bonds that interconnect us to the others are important to review values, and this opens the possibility to improve the health practices, by rooting ethical conducts.

Keywords: Primary Health Care, Bond, Family‟s Health Strategy (EFS), Collective Health, Complexity.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Planos intersecionais de análise 1

Figura 2 Amálgama Semântico em que se encerra o Vínculo

Figura 3 Vórtices

Figura 4 Ecosistema – Serviço de Atenção Básica do SUS

Figura 5 Taxonomia para efetivação da Integralidade da atenção à saúde

Figura 6 Princípios do SUS - Justaposição

Figura 7 Princípios do SUS - Interrelação

Figura 8 Princípios do SUS - Holograma

Figura 9 Estrela

Figura 10 Dialógica: pensar - sentir - agir- entorno

Figura 11 Dialógica dos Níveis de Vinculação Afetiva

Figura 12 Unidade Trinitária Indivíduo/Espécie/Sociedade

Figura 13 Serviços da ESF – relação de conjunto

Figura 14 Circuitos do Ecosistema da ESF do SUS – Esquema I

Figura 15 Circuitos do Ecosistema da ESF do SUS – Esquema II

Figura 16 Circuito Interrelacionado do vínculo na ESF do SUS – Esquema III

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Esquema representativo - Emoção/Sentimento/Consciência

Quadro 2 Fios que tecem Vínculos

Quadro 3 Publicações sobre atenção básica a saúde que tangenciam o vínculo relacionado a categorias do cuidado e organização do serviço de APS. (Apêndice)

Quadro 4 Publicações que Avaliam a Atenção Básica e Estratégia Saúde da Família e referem o tema vínculo. (Apêndice)

Quadro 5 Sistematização da Produção do Grupo Pesquisador- Lugares Geomíticos. (Apêndice)

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 Enterro de um anjinho – Santa Quitéria – Ceará.

Imagem 2 Galeria de Quadros, de M. C. Escher

Imagem 3 Conjunto de Fractais

Imagem 4 Mãe e Criança, de Picasso

Imagem 5 Mamíferos

Imagem 6 Diversidade Humana

Imagem 7 Portinari, da Série Guerra e Paz

Imagem 8 Portinari - Catequese

Imagem 9 Tirinha da Mafalda

Imagem 10 Vista aérea do serrote Quinamuiú, cidade de Tauá

Imagem 11 Equipe de Gestores da Secretaria de Saúde de Tauá

Imagem 12 Mapa Ceará com localização de Tauá

Imagem 13 Pintura Vila São João do Príncipe dos Inhamuns

Imagem 14 Coronel Lourenço Alves Feitosa e suas filhas Edwiges e Maria de Lourdes

Imagem 15 Igreja Nossa Senhora do Rosário - Antiga

Imagem 16 Igreja Nossa Senhora do Rosário - Atual

Imagem 17 Entrada da cidade de Tauá

Imagem 18 Centro de Saúde da Família de Inhamuns – Distrito de Vera Cruz

Imagem 19 Cenário Oficina 1 - análise da Produção do Grupo Pesquisador

Imagens 20 Cenário Oficina 1 - análise da Produção do Grupo Pesquisador

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABS Atenção Básica à Saúde

ACS Agentes Comunitários de Saúde

AIS Ações Integradas de Saúde

APS Atenção Primária à Saúde

CEP Comitê de Ética em Pesquisa

CONASS Conselho Nacional de Secretários da Saúde

COSEMS/CE Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Ceará

ESP-CE Escola de Saúde Pública do Ceará

EFSFVS Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Saboia

ESF Estratégia Saúde da Família

EPS Educação Permanente em Saúde

GP Grupo Pesquisador

MP Medida Provisória

NASF Núcleo de Apoio à Saúde da Família

NUCOM Núcleo de Psicologia Comunitária

OMS Organização Mundial da Saúde

OPAS Organização Pan-Americana de Saúde

OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

PACS Programa Agente Comunitário de Saúde

PSF Programa Saúde da Família

PNAB Política Nacional de Atenção Básica

PNH Política Nacional de Humanização

RAS Redes de Atenção à Saúde

RMSF Residência Multiprofissional em Saúde da Família

SESA Secretaria Estadual de Saúde

SESP Serviço Especial de Saúde Pública

SUS Sistema Único de Saúde

TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

UFC Universidade Federal do Ceará

USP Universidade de São Paulo

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Sumário

Preâmbulo 15

PARTE 1

1.1. Introdução 25

1.2. O Vínculo nas Políticas Públicas do SUS 35

1.2.1. A Gênese. 46

1.3. Problematização do Vínculo como tema de pesquisa em Saúde Coletiva. 56

1.3.1. Dimensão Semântica. 58

1.3.2. Dimensão Metodológica. 73

1.3.3. Dimensão Epistemológica. 80

1.4. O Vínculo como fenômeno de investigação desta pesquisa. 89

1.4.1. Como conhecemos o que conhecemos? 92

1.4.2. O mundo em Holomovimento. 100

1.4.3. O vínculo, humano vínculo, pode ser objeto? 104

1.4.4. A Senda do método. 112

PARTE 2

2.1. A Saúde Coletiva e a necessidade de um Pensamento Complexo 125

2.2. O vínculo no campo da Saúde Coletiva – nexos desconexos 135

2.2.1. O Vínculo tem lugar no campo da Saúde Coletiva? 136

2.2.2. Que sujeito vincula? 145

2.2.3. O vínculo se manuseia? 158

2.2.4. Vínculo de quem com quem? 163

2.3. Vínculo, humano vínculo. 166

2.3.1. Filogênese e Ontogênese do vínculo entre os humanos. 170

2.3.2. Vínculo humano e a multiplicidade do uno. 186

2.3.3. Vínculo humano e a unidade na multiplicidade. 195

2.3.4. Níveis de vinculação afetiva. 208

2.3.5. Afetividade, fio que tece vínculos humanos. 215

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PARTE III

3.1. Vínculos Humanos no contexto da Atenção Primária à Saúde. 221

3.1.1. Vínculos humanos na contemporaneidade. 222

3.1.2. O circuito do vínculo na ESF do SUS. 237

3.2. Tauá – um lugar onde os vínculos me trouxeram. 260

3.2.1. Um pouco sobre Tauá: seu território, história e população. 265

3.2.2. A Travessia do Portal. 274

3.2.3. O Vínculo na ESF pelo olhar do Centro de Saúde da Família de Inhamuns - o Grupo Pesquisador.

278

3.2.4. Vínculos que tecem Identidade. 285

3.2.5. Vínculos Humanos na Estratégia Saúde da Família. 306

3.3. O Vínculo, humano vínculo, no Sistema Único de Saúde. 345

3.3.1. Vínculo, autonomia e responsabilização na ESF. 352

3.3.2. O vínculo como tessitura ética das relações. 360

3.3.3. O poder do vínculo e a Humanização dos serviços de saúde. 365

3.4. De volta ao começo. 374

Referência Bibliográfica. 383

Apêndices. 396

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Preâmbulo Da curiosidade à pesquisa ou como este tema se fez necessidade de investigação para mim

“... e que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc.

Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”

(Manoel de Barros)

Este tema se tornou curiosidade para mim desde o tempo de minha

graduação em psicologia quando participava da extensão do Núcleo de Psicologia

Comunitária (NCOM), da Universidade Federal do Ceará (UFC), e desenvolvia

trabalhos em comunidades no interior do Estado e bairros da capital, como

estudante extensionista. O principal objetivo desses trabalhos era proporcionar um

aprendizado teórico-prático para nós estudantes de psicologia.

De acordo com Góis (1994) a atuação em psicologia comunitária segue, ou

busca cumprir, cinco fases. Uma primeira que consiste na chegada do profissional a

comunidade. Uma segunda fase dedicada a uma espécie de diagnóstico ação

realizado em parceria com a com os moradores, para em seguida desenvolver um

trabalho com as pessoas tendo em vista a autosustentabilidade. E ainda as duas

últimas fases que consiste em favorecer a continuidade do trabalho e sua possível

ampliação até que as ações que impliquem em um desligamento progressivo do

profissional em relação à comunidade. Na primeira, a chamada fase de inserção, um

ponto importante que me chamava atenção é que tínhamos a missão de construir

um vínculo com as pessoas da comunidade ou do bairro onde tínhamos firmado

parceria de trabalho. E disso dependia o desdobramento do trabalho e a relação do

profissional com a comunidade.

Aprendíamos em psicologia comunitária que há diferentes tipos de relação

do profissional com a comunidade, quais sejam: Assistencial, Técnica e

Comunitária. Na primeira, prevalece o saber de senso comum e, muitas vezes, o

objetivo é o controle social e político, efetivado pelo paternalismo, em que as

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relações entre as pessoas se caracteriza geralmente pela submissão, ajustamento de

condutas e resolução de necessidades imediatas. O outro modo de relação, o

técnico, o foco do trabalho se volta para uma problemática específica, e há aqui, a

prevalência do saber científico sobre o popular. As relações continuam perpassadas

pela dominação, mas adquire um caráter “científico” em termos de enfrentamento

e resolução de problemas. O modo de relação que deveríamos, como psicólogos,

buscar construir, era o comunitário, em que o principal objetivo era transformar a

realidade vivida. Isso deveria ser buscado pela conscientização e pelo

reconhecimento da força e da capacidade das pessoas de transformar sua própria

realidade, aprofundando a consciência de si e do mundo. Eis o ponto em que

identifico a gênese que move a curiosidade desta pesquisa.

Como psicóloga eu deveria facilitar processos comunitários, e de acordo

com o que aprendíamos, isso se iniciava com o estabelecimento das bases do

vínculo com as pessoas da comunidade. Até então, tecer vínculos para mim era algo

natural. Não passava pela minha consciência como deveria ser, ou o que eu devesse

fazer para construí-los, até que a minha formação profissional prendeu meu foco

de atenção para isso.

Em outro ciclo de minha vida direcionei minha atuação como psicóloga

para a área da saúde. Trabalhei na Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE) na

formação técnica de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e, novamente, o tema

vínculo estava presente no meu trabalho, uma vez que aparecia como prerrogativa

do trabalho desse profissional do SUS. Muitos questionamentos e reflexões me

surgiram durante esse tempo. Percebia, entretanto, que esse assunto não era ponto

de reflexão por parte das equipes de saúde ou das pessoas que atuavam no campo

da formação. Isso ficou ainda mais evidente para mim quando atuei junto aos

profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF) como tutora da Residência

Multiprofissional em Saúde da Família (RMSF) da Escola de Formação em Saúde

da Família Visconde de Sabóia (EFSFVS), em Sobral. Observava a relação entre os

profissionais das equipes e a comunidade e percebia uma diferença marcante entre

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o vínculo que cada um construía com as pessoas que atendiam, e o vínculo que o

ACS tinha com a comunidade. Observava também que estas diferenças eram

relevantes para organização dos processos de trabalho na Estratégia de Saúde da

Família (ESF). Apesar desse reconhecimento não ser apenas meu, mas algo

compartilhado pelos demais profissionais, o tema vínculo não era, de uma forma

geral, assunto de interesse no sentido de compreender estas diferenças e suas

implicações para o trabalho na ESF.

Minha atuação profissional continuou voltada para saúde, sobretudo, ligada

a processos formativos e Educação Permanente em Saúde (EPS) e, em 2011, decidi

participar da seleção para o doutorado em Saúde Coletiva com o propósito de

estudar o assunto, considerando ser este um tema presente no dia-a-dia da ESF,

embora com escassas reflexões nos debates em saúde.

Os percalços do caminho.

Você não sabe o quanto eu caminhei Pra chegar até aqui

Percorri milhas e milhas antes de dormir Eu nem cochilei

Os mais belos montes escalei Nas noites escuras de frio chorei, ei ei...

A vida ensina e o tempo traz o tom Pra nascer uma canção

Com a fé do dia a dia encontro a solução (Estrada, Cidade Negra)

Percorri um longo caminho na construção de um saber sobre o fenômeno

aqui em questão. Estudar e pesquisar sobre este assunto me abriu um grande leque

de questões exigindo uma ampla problematização do tema em função do campo de

saber ao qual apresentei como proposta de estudo: o campo da Saúde Coletiva.

Dividi este percurso de estudo e aprendizagem em três Partes. Na primeira,

introduzo o tema e me situo como trabalhadora da saúde expressando a forma

como compreendo o SUS, como cidadã brasileira e pesquisadora. Em capítulo

seguinte apresento o vínculo nas Políticas Públicas do SUS, abordando a Política

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Nacional de Atenção Básica (PNAB) e a Política Nacional de Humanização (PNH).

E ainda, a partir da minha experiência de trabalho na saúde, abordo pistas de como

compreendo a gênese deste tema na Saúde Coletiva.

Estudar e pesquisar o assunto me trouxe questionamentos não apenas

conceituais, mas também, levantou pontos intrigantes e instigantes em termos

metodológicos e epistemológicos. Sigo o percurso no capítulo seguinte

problematizando o vínculo como tema de pesquisa no campo de saber da Saúde

Coletiva. Faço uma revisão de literatura sobre o assunto e reúno reflexões

relacionadas ao vínculo em três dimensões. Inicialmente, apresento questões

relacionadas à dimensão semântica, quando abordo o vínculo em termos

conceituais. Na sequência, abordo questões pertinentes aos métodos utilizados para

pesquisar o tema, refletindo sobre a dimensão metodológica dos estudos que tocam

este assunto na literatura. E, em decorrência disso, apresento em seguida, uma

terceira dimensão de análise com reflexões de cunho epistemológico decorrentes da

problematização do tema nas dimensões anteriores.

A partir daí me vejo na tarefa de apresentar o vínculo como fenômeno de

investigação para esta pesquisa, tocando relevantes questões epistemológicas e

metodológicas, a saber: como conhecemos o que conhecemos? Que visão de

mundo eu assumo como pesquisadora? O vínculo pode ser objeto de pesquisa?

Que caminho metodológico propor que se apresente em coerência com a natureza

deste fenômeno?

Na Segunda Parte deste estudo aprofundamos as questões que me surgiram

com esta revisão de literatura, agora à luz do pensamento complexo enquanto lugar

epistemológico em que me situo. Inicio esta parte com um capítulo em que abordo

a necessidade do pensamento complexo no campo da Saúde Coletiva, dialogando

com vários autores de referência nesta área. Considero que aqui inicio minha busca

por compreender este tema me movendo mais diretamente para aprofundar as

reflexões, organizar as questões e buscar respostas. Os capítulos da primeira Parte

deste estudo trouxeram múltiplas questões referentes ao vínculo, as quais, busco

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organizar e aprofundar de forma sistemática. O tema vínculo na Saúde Coletiva me

trouxe nexos e desconexos que desafiavam o assunto tornando o caminho, tanto

nebuloso, quanto espinhoso.

Durante a revisão de literatura sobre o assunto percebi que o vínculo era

sempre abordado como uma das condições de efetivação da integralidade da

atenção à saúde. Constatei que o discurso do vínculo estava encerrado em um lugar

específico. A integralidade da atenção à saúde era a janela a partir da qual o tema

estava sempre enquadrado. Entretanto, seria somente esta, a janela em que

poderíamos nos debruçar para observar o fenômeno? Ou melhor, por que somente

a partir desta janela o discurso sobre o vínculo estava sendo construído? Havia para

mim a necessidade de compreender os motivos de ser esse, o lugar para o qual

convergiam os estudos sobre o vínculo na atenção primária do SUS, sobretudo,

porque isso não parece causar nenhum incômodo ou desconforto teórico para os

pesquisadores da área.

A noção de subjetividade inerente ao discurso sobre o vínculo também se

descortinava como pano de fundo a lhe conferir sentido. Que sujeito vincula? Que

fios de ideias tecem a trama que compõe a noção de subjetividade presente no

campo da Saúde Coletiva? Isso era um ponto crucial uma vez que, no fluxo figura e

fundo, é o fundo que fornece uma sustentação para a figura. Neste fluxo, a figura

se destaca a partir de um fundo, que a desvela, permitindo sua visão. E nem sempre

a subjetividade como fundo/moldura é assunto debatido nas pesquisas quando

abordam temas que tocam as questões relacionais humanas. Nesta perspectiva, a

tarefa decorrente foi buscar compreender que ideias teciam a trama do tecido que

se apresentava como pano de fundo para o discurso do vínculo, como figura. Em

outras palavras, que noção de subjetividade fornece sentido e sustentação ao

discurso do vínculo como figura desse fluxo figura-fundo no campo da Saúde

Coletiva? E mais, que noção de subjetividade seria para mim moldura-fundo a

partir da qual poderia desvelar algo sobre o meu tema de estudo?

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Outro ponto que a mim causou estranhamento na literatura em que se

insere o discurso do vínculo é seu corrente uso na Saúde Coletiva conotando-o

como tecnologia, ferramenta e/ou dispositivo. E a pergunta inevitável era: vínculo

se manuseia? Para mim eram palavras que contrastavam com o vínculo enquanto

fenômeno de natureza relacional. O que me soa estranho é o emprego de tais

termos que conotam um uso manipulativo, para referir-se aos laços humanos. Esse

estranhamento me trouxe reflexões sobre a necessidade do seu uso. Qual a

necessidade de se utilizar tais termos como uma espécie de mediador, esboçando

uma tentativa de objetivar a relação entre os humanos, se, no caso, estamos falando

mesmo é da própria relação, subjetiva por natureza? E também ainda, que vínculo

humano é esse que há, deveria, ou poderia haver entre os profissionais e usuários

do SUS, e que aparece como questão? Era o vínculo de quem com quem de que

estamos falando? Ao vínculo humano que aí se apresenta, ninguém ousaria

equipará-lo ao vínculo que temos com nossos pais, irmãos e amigos da convivência,

mas ninguém discordaria, tampouco, que todos são vínculos humanos. Então, que

dimensões desse fenômeno surgem quando se refere ao vínculo humano no

contexto da Estratégia Saúde da Família do SUS?

Tais questões precisaram ser apuradas e precisadas como pontos de

reflexões cujas ideias, de certa forma, antecediam e davam base para uma

investigação desse complexo fenômeno. O vínculo como fenômeno relacional

exige como condição epistemológica de investigação um pensar complexo que

oportunize uma visão sistêmica dos fenômenos pertinentes ao viver humano. E foi

recorrendo ao pensar complexo, sobretudo, as ideias de Edgar Morin esboçadas em

seus Métodos1, que me deu fôlego para seguir.

E necessário se fez, neste percurso, compreender teoricamente o vínculo, o

humano vínculo, em função das lacunas conceituais que empobreciam o uso

1 Edgar Morin escreveu 6 livros com título O Método, em que trata, em cada um deles, um aspecto do conhecimento. O Método 1. Natureza da natureza; Método 2. A Vida da Vida; O Método 3. O Conhecimento do Conhecimento; O Método 4. As Ideias das Ideias; O Método 5. A Humanidade da Humanidade; e o Método 6. Ética.

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semântico do termo e seus desdobramentos no contexto em que ele se apresentava

como questão para mim: a Estratégia de Saúde da Família do SUS.

O pensar complexo foi o chão epistemológico necessário em cuja base

calquei meus passos para seguir estudando e buscando compreender o tema que

apresento no capítulo chamado Vínculo, humano vínculo.

A complexidade do fenômeno me fez empreender um esforço reflexivo

transdisciplinar em que os diversos constructos teóricos, oriundos de diversos

campos de saber, tais como, a psicologia, etologia, sociologia, antropologia,

neurologia e os estudos da cognição humana para gerar uma reflexão aprofundada

sobre o vínculo no contexto da ESF do SUS. As múltiplas dimensões do fenômeno

exigiam também uma produção de conhecimento transdisciplinar como fonte para

gerar uma compreensão abrangente do fenômeno em seu contexto.

E na terceira e última parte deste estudo apresento os percalços da senda

do método que percorri. Reúno aqui saberes oriundos do diálogo por mim

empreendido com diversos autores, bem como, saberes cuja fonte foi a vivência e a

prática cotidiana na ESF, vividas não só por mim, mas por profissionais que atuam

na ESF. O vínculo traz em si um conhecimento tácito, a partir do qual construímos

nossos laços com a família, os amigos, os amores, os colegas de profissão, e até

mesmo, com conhecidos de um dia, com quem topamos numa viagem, por

exemplo, e ainda há os desconhecidos, humanos como nós. Esse conhecimento se

enlaça em todos os âmbitos de nossa vida e dá um colorido às relações que

estabelecemos em diversos espaços que ocupamos. Apresento nesta parte do

estudo as nuances de cores que assume o vínculo entre profissionais de saúde e

usuários dos serviços no âmbito da ESF do SUS, contexto específico em que o

vínculo se faz questão para esta pesquisa.

Nesta altura do caminho os constructos teóricos e metodológicos da

Sociopoética foram os degraus de inspiração que me permitiram seguir na senda do

método em razão de sua coerência epistemológica com a proposta desta pesquisa.

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Os princípios que orientam este método de pesquisa aponta o corpo como fonte de

saber, legitimando os saberes oriundos da vivência e das práticas como elementos

de co-criação do conhecimento. O trabalho de campo desta pesquisa não se

apresenta como fonte empírica geradora de dados, sistematizados e categorizados

em função de um referencial teórico. O campo de pesquisa aqui aparece como um

Portal no qual adentrei para compreender os circuitos do vínculo na ESF. Embora

já tivesse entrado inúmeras vezes em diversos Centros de Saúde da Família (CSF) a

experiência aqui foi como em um Rito que me ajudou a adentrar uma dimensão

desconhecida, embora o lugar já me fosse familiar em outros aspectos.

O CSF de Inhamuns localizado no distrito de Vera Cruz na cidade de Tauá,

situada no interior cearense, precisamente, na região dos Inhamuns, foi o Portal

que adentrei como pesquisadora. O sentido que para mim se fez ao entrar no CSF

de Inhamuns como quem adentra um Portal se deve ao lugar do campo empírico

para esta pesquisa. Quando adentramos portais, na verdade, o fazemos em busca de

conhecimento. Há uma frase situada na porta do famoso Templo Grego de Delfos

escrita pelo oráculo: Conheça-te a ti mesmo! O oráculo revela, na verdade, que não

é possível construir conhecimento sem que este processo revele de si mesmo. A

natureza do fenômeno que desejava conhecer era também parte de mim como

humana, parte de todos nós humanos, conhecimento do qual não podíamos fugir

ou desconsiderar. O conhecimento que buscava também é parte do que sou, e

parte das pessoas que ali trabalhavam porque foi com elas que construímos luzes

para compreendermos mais de nós como trabalhadores da saúde em nossos laços

com as pessoas com as quais interagimos.

E para seguir neste caminho precisei ir de mãos vazias, ou melhor, de

mente vazia! Como dizem os místicos, “não se enche um copo que já está cheio!”

Junto com as pessoas que trabalhavam no CSF de Inhamuns percorremos um

caminho em que o saber da vivência foi adquirindo sentido, aflorado, (re)vivido,

resignificado, ampliado, tomando forma e sons, chegando à luz da consciência por

meio da arte e da imaginação. Era um saber silenciado, contudo, vivido

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diariamente, formando um circuito interligado que moviam as ações e decisões

sobre os cuidados próprios da ESF no SUS.

Para compreender como o circuito do vínculo ali se configurava e se, de

alguma forma, contribuía para a organização do sistema SUS, eu precisava me

esvaziar, estar aberta para o encontro humano com as pessoas. Ali estava para, por

alguns momentos, fazer parte do sistema, se fosse aceita. Ser ou não inclusa no

sistema era o grande risco que corria. Nesta altura do percurso, eu e alguns

profissionais do CSF de Inhamuns formamos um Grupo Pesquisador2 que por

meio de um círculo de diálogo trocamos ideias sobre o que somos e como vivemos

nossos laços com as pessoas que moram no território no qual se oferta os serviços

na ESF. Assim, os sujeitos participantes da pesquisa também foram, junto comigo,

responsáveis pelos conhecimentos aqui produzidos.

O diálogo transdisciplinar foi o centro vivo da produção do conhecimento

gerado em um processo co-criador em que a arte, a intuição e a imaginação se

somaram à racionalidade cognitiva, dando vida e pertinência aos saberes

produzidos. Este diálogo foi fonte de saberes multirreferenciais, interculturais que

deram vozes a saberes silenciados.

Após esta experiência me encharcou a alma e então retornei do Portal com

um sentimento de gratidão pelo que vivi e compartilhei com o grupo pesquisador.

Impregnada de todas as ideias que fui encontrando no meu percurso redigi o

último capítulo, falando do vínculo, o humano vínculo na Estratégia Saúde da

Família. A multirreferencialidade me deixou muitos fios com os quais costurei as

ideias formando um tecido por uma bricolagem. E então, retornei ao início.

O caminho percorrido não foi linha reta. De volta ao começo resignifiquei

ideias que encontrei na revisão de literatura, e apresento algumas dimensões do

vínculo que para mim são vitais para dar sentido a este tema no campo da Saúde

Coletiva.

2 A constituição do Grupo Pesquisador é parte da metodologia Sociopoética, fonte inspiradora para este pesquisa.

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PARTE 1

Olhar o céu e querer ver

Ver como seria tudo lá de cima

Enxergar em outra perspectiva

Os mesmos lugares, as mesmas montanhas,

as mesmas planícies, as mesmas florestas...

Mas, seriam os mesmos?!

O que poderia me levar até lá, no alto?

Que ventos poderiam fazer voar meus pensamentos?

Que brisas soprariam em meu olhar, outras perspectivas?

(Idalice)

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1.1. Introdução Quero a utopia, quero tudo e mais

Quero a felicidade nos olhos de um pai Quero a alegria muita gente feliz

Quero que a justiça reine em meu país Quero a liberdade, quero o vinho e o pão Quero ser amizade, quero amor, prazer Quero nossa cidade sempre ensolarada

Os meninos e o povo no poder, eu quero ver (Coração Civil, Milton Nascimento)

O SUS no Brasil é uma valiosa experiência de construção de uma política

pública em que a saúde é seu fundamento de existir. Trata-se, todavia, de um

fundamento que não a reduz, mas aprofunda e questiona seu significado para vida

humana e a convivência social. Há uma pluralidade de lógicas que organizam o

funcionamento do SUS em termos de política pública de Estado que aponta para

perspectivas futuras com cenários diversos, e circulam em torno da relação saúde e

desenvolvimento democrático no Brasil.

Reflexões sobre o campo da saúde são profícuas em termos de experiência

coletiva para compreendermos a relação constitutiva da democracia e os limites e

avanços das políticas públicas em saúde para a reforma do Estado, tendo em vista o

cenário sócio cultural brasileiro em que convivem forças políticas conservadoras e

democratizantes, cuja coexistência, revela uma tensão entre público e privado, e

fazem da saúde, ora uma mercadoria, ora um direito e proteção à vida humana.

A experiência do SUS emerge de um contexto político paradoxal em que se

inova em termos de política democratizante e cidadã, que propõe e defende a

participação popular, não obstante convive com forças políticas conservadoras e

neoliberais. Tais políticas voltadas para o mercado impõem fortes pressões de

interesses privatizantes por parte dos planos de saúde, da indústria farmacêutica e

das indústrias que atuam no campo da saúde. Esse contexto desacelera o avanço do

SUS em termos de política pública de inspiração socialdemocrata e o reduz, muitas

vezes, de forma equivocada, a um plano de saúde para os pobres.

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O SUS como política pública está permeado por ambas as lógicas que se

contrapõem. É o que também assegura a análise de Jairnilson Paim (2009) sobre o

SUS. Em seu livro intitulado com “O que é o SUS” ele fala que quando esta

pergunta se apresenta é comum deflagrar reações diversas porque sua conceituação

não é passível de redução ao significado justaposto das palavras: sistema, único e saúde.

Como ressalta Paim a definição de sistema de saúde não deve se restringir a um

conjunto de estabelecimentos, serviços, instituições, profissionais e trabalhadores

da saúde. O pensar de Paim amplia esse entendimento incluindo como parte dos

serviços de saúde as indústrias de equipamentos, os financiadores, a universidade, a

escola, os institutos de pesquisa e a mídia, esclarecendo uma distinção técnica entre

sistema de saúde e sistema de serviços de saúde. Estes últimos abrangem restritamente os

prestadores de cuidado, e representam um subsistema do sistema de saúde. Este, por

sua vez, possui caráter abrangente formado por todo um conjunto de agentes e agências,

públicos ou privados que se relacionam entre si, visando à atenção à saúde dos indivíduos e das

populações. (PAIM, 2009, p.17).

O SUS como sistema de serviços de saúde não se guia por um objetivo

único, como se poderia pensar de acordo com a Constituição de 1988. Como bem

observa Paim há diferentes e divergentes objetivos que atravessam o sistema que

apresenta como um dos grandes desafios a conciliação de interesses contraditórios,

não somente no Brasil, mas um problema presente no cenário mundial. O autor

destaca que o objetivo pode ser assegurar a saúde das pessoas, mas também o lucro dos

empresários e o emprego dos trabalhadores que atuam no sistema. (PAIM, 2009, p. 17). Nesta

perspectiva, a definição do tipo de sistema de saúde que queremos passa por um

conjunto de reflexões e indagações das quais não se pode fugir e que precisam de

posicionamentos. Paim faz uma série de perguntas que vale a pena como reflexão

que remete aos fundamentos de um serviço de saúde para uma sociedade, são elas:

Os serviços de saúde devem ser entendidos como um „bem‟ para aquele que necessita ou devem ser comprados no mercado por aqueles que podem pagar? Se a segunda opção for a correta, o que fazer com as pessoas que não podem comprar

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os serviços? Seriam atendidas pela caridade dos prósperos, pelo Estado, por ambos? Convém organizar um sistema de saúde separando o atendimento dos pobres, da classe média e dos ricos? Se a saúde for considerada um direito e não uma mercadoria, a oferta de serviços não deveria ser igual para todos? Na hipótese de os serviços de saúde serem disponíveis para todos, seria justo oferecer mais para aqueles que mais necessitam? Como estabelecer prioridades em saúde diante de necessidades tão distintas, prementes e complexas? (PAIM, 2009, p.18).

É preciso reconhecer a complexidade que encerra o assunto que trata da

construção e efetivação de políticas em saúde. No Brasil, tradicionalmente,

identificamos duas lógicas que permeiam a construção do SUS, como identifica

Martins (2013). Uma delas é a lógica liberal mercantil que privilegia o indivíduo e o

torna cidadão consumidor de mercadorias, tendo as ações sociais reguladas pela

economia de mercado. A cidadania restringe-se à dimensão do mercado, a

participação popular na organização da esfera pública é desencorajada, vertentes

estas que obstruem relações de reciprocidade e de solidariedade social.

A outra lógica que refere Martins é denominada por ele como positivista

autoritária e se relaciona ao modo de funcionamento hierárquico, oligarca e colonial

do Estado, que tutela a população, considerada pelas elites, incapaz de participação

e de exercício da cidadania. Esta lógica não se coaduna com a democracia,

tampouco, com o mercado, mas se funda na tradição autoritária e burocrática da

sociedade brasileira. Esta lógica, como adverte Martins, não desaparece com o

advento da cultura de massa global, a democratização e o utilitarismo mercantil,

mas continua viva por meio das políticas assistencialistas.

É importante assinalar aqui a notória dificuldade com que se depara o

debate político e as ideias no campo das ciências sociais para formular alternativas

teóricas ao neoliberalismo com sua supremacia de mercado. É preciso ter em

mente, conforme ressalta Lander (2005), que tais dificuldades se devem ao fato de

que o neoliberalismo é debatido e entendido mais como uma teoria econômica

quando, de fato, se trata na verdade, de um discurso hegemônico de um modelo civilizatório.

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Não é possível para a economia propor modelos alternativos às propostas

neoliberais, visto que a própria economia assume, enquanto modelo de ciência, a

visão de mundo neoliberal.

O que há de mais potente no pensamento cientifico moderno é a

naturalização das relações sociais que pressupõe as características da sociedade dita

moderna (neoliberal em sua hegemonia) como expressão de uma tendência

espontânea e natural do desenvolvimento histórico da sociedade. Isso faz dela uma

ordem social única, um modelo civilizatório único, globalizado, que dispensa a

política porque não há alternativas a esse modelo de sociedade. Como esclarece

Lander a naturalização da sociedade liberal como a forma mais avançada e normal de existência

humana não é uma construção recente que possa ser atribuída ao pensamento neoliberal, nem à

atual conjuntura política; pelo contrário, trata-se de uma ideia com uma longa história no

pensamento social ocidental dos últimos séculos. (LANDER, 2005, p. 8).

É preciso ter em mente, como defende Boaventura de Sousa Santos (2006),

que a compreensão do mundo excede muito a compreensão ocidental do mundo.

Alternativas a esse modelo civilizatório é possível mediante um esforço de

desconstrução da pretensão deste universalismo naturalizante. É preciso

reconhecer, conforme nos esclarece Lander, (2005) um esforço necessário para

elaborar um questionamento mais profundo dos instrumentos de naturalização e

legitimação dessa ordem social sob uma nova ótica de valores humanos. O uso dos

termos pós-colonial ou colonialismo fazem uma releitura da colonização inserindo-

a em um contexto global transcultural e transnacional e fazem uma releitura das

grandes narrativas imperiais eurocêntricas.

No caso brasileiro esta lógica oligárquica colonial se atualiza no discurso

neoliberal tendo em vista a relação promíscua que sempre permeou o público e o

privado aqui no Brasil, cujas elites oligárquicas sempre se ocuparam,

irrestritamente, em distribuir entre si os recursos coletivos, limitando a democracia

representativa a um jogo político oligárquico com objetivo único de assegurar o

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poder dentro do sistema. Esta lógica colonial, oligarca e mercantil, presente no

contexto de construção do SUS, é responsável por descontinuidades em relação a

sua proposta original de construir-se como público, universal, integral e equânime

em suas práticas de saúde. É importante ter claro que, como programa, o SUS

ainda está sujeito às ambiguidades do direito republicano, que oscila entre público e

privado e, no geral, acaba por privilegiar o privado.

Em meio ao tensionamento entre estas duas lógicas que permeiam a

construção do SUS, deixando tanto as marcas de um autoritarismo estatal quanto as

do utilitarismo de mercado, surge uma outra lógica original como, felizmente, nos

evidencia a análise de Martins (2013). Trata-se da lógica erigida por um conjunto de

valores que coloca em pauta conflitos sociais profundos, tais como o direito à vida

e o livre acesso aos recursos naturais. Isto nos leva, como sociedade, a repensar e

propor novas formas de apropriação coletiva dos bens vitais, capaz de reconfigurar

a relação dos humanos com a natureza. Sobre isso Martins reafirma a necessidade

de retomar a discussão sobre os limites do direito nos regimes republicanos atuais e rememorar a

discussão sobre os direitos tradicionais referentes à nossa existência (direitos de respirar, amar,

viver, comer, dormir...). (MARTINS, 2013, 122). Tais valores são fundamentais para

viabilizar a consolidação do SUS e trazer para o debate pautas inéditas.

Em face da hegemonia desse modelo autoritário é com muitas dificuldades

que o SUS avança na concretização da participação democrática na saúde. Em que

pese sua significativa contribuição para o processo de redemocratização do Brasil, é

inegável que o SUS é fruto de um processo histórico contrahegemônico e seus

princípios doutrinários - Universalidade, Integralidade e Equidade – representam uma

ruptura com os valores vigentes. Apesar dos abalos, a sociedade brasileira, em geral,

tem sustentado esse sistema que coloca a saúde como direito de todos.

Muito avançamos na direção de construir um SUS como sistema de saúde

público universal. Mas é importante lembrar que, ao reconhecer as conquistas na

direção da construção deste sistema de saúde, não estamos isentos de retrocessos,

sobretudo, em função das forças antagônicas que compõem o SUS. Elas podem

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nos levar na direção contrária do ideário original da saúde como um direito

universal, gratuito e de qualidade, que garanta acesso para todos independente de

cor, etnia ou classe social.

Para continuarmos na direção dessa conquista sem fugir do desafio

hercúleo que encerra essa tarefa é preciso avançar na formulação de perguntas

pertinentes que se assentem na lógica de preservação da vida, e avançar nas

reflexões que nos convidam à terceira lógica referida por Martins, que também se

presentifica na construção do SUS como parte de um projeto de sociedade.

Apresentar uma nova pauta de reflexão em que a vida surge como o bem mais

precioso, capaz de regular e refazer uma nova forma de relações dos humanos com

a natureza e dos humanos entre si, é tarefa importante na busca de respostas para

superarmos os desafios e avançar na construção do SUS que queremos.

Um dos pontos de partida para isso e que antecede a questão central desta

pesquisa é o debate sobre Atenção Primária à Saúde (APS). Que modelo de APS se

deseja construir para o SUS? Esta é uma pergunta crucial uma vez que são vários os

entendimentos que decodificam o uso deste termo na saúde e suas implicações para

a consolidação do SUS.

Há uma compreensão de APS como um programa específico destinado a

populações de regiões pobres economicamente, as quais os governos devem ofertar

um conjunto básico de tecnologias simples e de baixo custo que não oferece acesso

a tecnologias de maior densidade, a chamada APS Seletiva. Esta também pode ser

compreendida como o nível primário do sistema de atenção à saúde que funciona

como porta de entrada para o sistema e se propõe organizar e dar resolutividade

aos problemas mais comuns de saúde. E ainda, uma outra interpretação mais ampla

de APS decodificada como uma estratégia de organização para o sistema de atenção

à saúde responsável por reorganizar, reordenar e recombinar recursos para fazer

funcionar o sistema, tendo como direção e foco as necessidades de saúde da

população por meio de um funcionamento em rede de Atenção à Saúde (RAS).

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Mendes (2015) ressalta que no SUS estas três vertentes de interpretação

sobre cuidados primários em saúde convivem, a despeito de o discurso oficial

apontar para APS como estratégia de funcionamento dos serviços de saúde.

Mendes argumenta em favor da consolidação da APS como estratégia para

organização do nosso SUS e destaca que já é tempo, e necessário se faz que se

consolide a transição de um modelo de gestão da oferta que se pratica no SUS, para

um modelo de gestão da saúde da população, caso se deseje realmente construir um

sistema de saúde baseado nas necessidades de saúde da população. Mendes

esclarece que o modelo da gestão da saúde da população move um sistema estruturado por

indivíduos que buscam atenção para um sistema que se responsabiliza, sanitária e

economicamente, por uma população determinada a ele vinculada.[...] A população das RAS não

é a população dos censos demográficos, mas a população cadastrada e vinculada às equipes de

ESF. (MENDES, 2015, p. 16).

Como prática social a APS tem várias interpretações que se explicam,

segundo Mendes, em função do processo histórico que a gerou e a fez evoluir,

contribuindo para isso, a ambiguidade conceitual com a qual se reveste o tema nos

foros internacionais, os diferentes usos do termo por parte das escolas de

pensamento sanitário, bem como, a hegemonia de uma concepção negativa de

processos saúde-doença, mesmo em face das tentativas de se operar com um

conceito positivo. Em que pese os diversos empregos para o termo APS, Atenção

Básica é o termo presente na redação das diretrizes políticas da PNAB. A nossa

compreensão, contudo, e os argumentos deste estudo se constroem em favor da

consolidação da ESF como modelo de APS para SUS efetivada como estratégia de

organização do sistema de atenção à saúde funcionando em rede.

Mendes identifica vários ciclos de desenvolvimento da APS no Brasil e

defende a superação do ciclo vigente da atenção básica em saúde, que se

caracterizou pela expansão do Programa Saúde da Família (PSF) em detrimento de

um novo ciclo de atenção primária que consolide a ESF.

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Segundo a análise do autor, o primeiro ciclo surge por volta de 1924 sob a

influência do pensamento dawsoniano do Reino Unido no Brasil, exemplificados

pelos os Centros de Saúde da Universidade de São Paulo. A criação do Serviço

Especial de Saúde Pública (SESP) nos anos 40 demarca o segundo ciclo. Nos anos

60 surgem as ideias de prevenção, sobretudo, voltadas para a saúde materno-infantil

e as doenças infecciosas, que dão origem aos programas de saúde pública marcando

o terceiro ciclo da APS. O cenário internacional nos anos 70 começa a debater a

proposta de APS referendada pela Conferência de Alma Ata (1978) e um novo

ciclo se inicia no Brasil, sobretudo, com a expansão de programas de cobertura que

apontava para as concepções de APS seletiva. Os anos 80 fora marcado no Brasil

por uma grave crise na previdência. É quando se institui as Ações Integradas de

Saúde (AIS) levando para o sistema de saúde pública a cultura do INAMPS. O SUS

marca, então, um sexto ciclo, que se caracteriza pela municipalização das unidades

de APS gerando considerável expansão dos cuidados primários em saúde. Com a

implantação do PSF demarca-se, finalmente, o sétimo ciclo brasileiro do

desenvolvimento da APS, o qual vivemos hoje e que, de acordo com Mendes,

precisamos superar. É um modelo que muito foi influenciado pelos modelos de

medicina de família e comunidade, praticados na Inglaterra, Canadá e Cuba.

Contudo, destaca Mendes, em sua análise, que sua raiz mais significativa veio da

experiência do Programa de Agentes Comunitários de Saúde desenvolvida no estado do Ceará e

expandida com a incorporação de médicos e enfermeiros. (MENDES, 2015, 31).

O autor defende que precisamos avançar e consolidar um oitavo ciclo de

desenvolvimento da APS no Brasil que a efetive como estratégia de organização do

sistema de atenção à saúde, que aparece como a mais compatível com a proposta

das RAS. Ele aponta estudos relevantes e contundentes que têm sido produzidos

na literatura internacional em diferentes países, que permitem concluir com

robustas evidências, sobre os resultados positivos da APS nos sistemas de atenção à

saúde. Ele defende que, com base nelas, é possível afirmar que:

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Os sistemas de atenção à saúde baseados numa forte orientação para a APS em relação aos sistemas de baixa orientação para a APS são: mais adequados porque se organizam a partir das necessidades de saúde da população; mais efetivos porque são a única forma de enfrentar consequentemente a situação epidemiológica de hegemonia das condições crônicas e por impactar significativamente os níveis de saúde da população; mais eficientes porque apresentam menores custos e reduzem procedimentos mais caros; mais equitativa porque discriminam positivamente grupos e regiões mais pobres e diminuem o gasto do bolso de pessoas e famílias; e de maior qualidade porque colocam ênfase na promoção da saúde e na prevenção das doenças e porque ofertam tecnologias mais seguras para as pessoas usuárias e para os profissionais de saúde. (MENDES, 2015, p. 37).

Para consolidarmos a APS como estratégia de organização do sistema,

advoga Mendes, é preciso caminhar na direção de incorporação dos atributos e

funções da APS. O acesso possibilitado pelo primeiro contato, a longitudinalidade, a

integralidade e a coordenação do cuidado são atributos essenciais dos quais se derivam os

demais: a focalização na família como centro de atenção, a orientação comunitária que

implica contextualizar as necessidades de saúde das famílias de acordo com seu

sistema cultural, econômico e social, e a competência cultural necessária para a equipe

estabelecer uma relação horizontal com a população, de maneira a respeitar suas

singularidades culturais e preferências.

Estes formam os sete atributos essenciais cuja efetivação depende uma APS

de qualidade funcionando de maneira a cumprir as três funções, conforme ressalta

Mendes. A resolubilidade, função que implica capacitação dos profissionais, tanto em

termos tecnológicos, como cognitivos, para atender aos problemas da população. A

função da comunicação com condições de ordenar fluxos e confluxos de pessoas,

produtos e informações, em seus diferentes modos de transitar pela rede. E a

responsabilização, cujo exercício implica o conhecimento e o relacionamento estreito

nos microterritórios da população adscrita, bem como, a gestão com base

populacional. É o exercício dessas três funções que institui a APS como estratégia

de organização do SUS, argumenta o autor.

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Mendes reconhece a complexidade dessa tarefa quando afirma que a

demanda da APS do SUS nada tem de simples, como equivocamente se crê, mas ao

contrário, são processos de extrema complexidade, cujo modelo teórico requer uma

mudança paradigmática na gestão dos sistemas de atenção à saúde que impõe uma

análise profunda da estrutura de demanda. Não é intenção minha aprofundar essas

questões trazidas pelo autor, mas contextualizar o processo de construção histórica

do SUS que vivemos como brasileiros e me situar como pesquisadora nesta seara.

As três funções da APS como estratégia de organização para o SUS,

resolutividade, comunicação e responsabilização, não se efetivam apenas baseado

em um modelo operacional que proponha novas tecnologias de gestão.

Acreditamos que a mudança paradigmática que alude Mendes também passa por

uma mudança profunda na nossa visão de mundo e de fazer ciência. Quando

Mendes ressalta a necessária capacidade, não apenas tecnológica, mas também

cognitiva por parte dos trabalhadores da saúde para dar resolutividade ao sistema

em seus fluxos e contrafluxos coordenados pela APS e quando se propõe um

sistema operando em redes voltados para atender as necessidades de saúde da

população para além de uma leitura epidemiológica necessário se faz incorporar

uma visão sistêmica e um pensar complexo.

Essa perspectiva implica uma mudança paradigmática que não apenas toque

a gestão, como argumenta de Mendes, mas incorpore novas epistemologias que

traga novas formas de perceber e tecer relações no mundo nos âmbitos

institucionais baseadas na horizontalidade, reciprocidade e solidariedade, o que

inclui novas pautas de relações entre os humanos, e destes com a natureza, como já

apontou Martins anteriormente. Ante ao exposto, essa pesquisa busca contribuir

para operar dentro de um novo paradigma de compreensão do real que abarca a

interligação sistêmica dos fenômenos da realidade por um pensar complexo.

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~ 35 ~

1.2. O Vínculo nas Políticas Públicas do SUS A única revolução possível é dentro de nós.

(Mahatma Gandhi)

Dentre as várias questões que se impõem para consolidação do SUS, uma

das mais instigantes para mim é a forma como se tece a relação entre os

profissionais e as pessoas que utilizam os serviços nos diversos níveis de atenção,

seja em hospitais, consultórios especializados, ou no âmbito da APS.

A relação entre os profissionais da saúde e as pessoas que usam os serviços

é um tema importante no âmbito do SUS e adquire uma linguagem especial quando

abordado pela Política Nacional de Atenção Básica do SUS, de 2012. Tais relações

substantivam-se na palavra vínculo, cujo significado expressa um compromisso a ser

garantido pelo processo de trabalho das equipes com a população adscrita. Segundo

o documento, trata-se de uma política que se efetiva no local mais próximo da vida

das pessoas. Deve funcionar como principal porta de entrada e centro de

comunicação de toda a rede de atenção à saúde. Possui alto grau de

descentralização capilarizando de forma extensiva suas ações. A política, em função

disso, deve orientar-se pelos “princípios da universalidade, da acessibilidade, do vínculo, da

continuidade do cuidado, da integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização, da

equidade e da participação social”. (BRASIL, 2012, p. 9).

A palavra vínculo é, pois, assumida pela PNAB como um princípio de ação

cujas diretrizes gerais abrangem um amplo espectro de ações: promoção de saúde,

prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos e

manutenção da saúde. Uma vez que a política apresenta como sua razão de ser

possibilitar acesso universal e contínuo a serviços resolutivos e de qualidade,

apresenta a constituição do vínculo como condição de corresponsabilização pela

atenção às necessidades de saúde da população. É prerrogativa sua adscrever

usuários e desenvolver relações de vínculo e responsabilização entre as equipes e a

população. A partir de tais premissas apresenta o vínculo como algo que “consiste na

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construção de relações de afetividade e confiança entre o usuário e o trabalhador da saúde,

permitindo o aprofundamento do processo de corresponsabilização pela saúde, construído ao longo

do tempo, além de carregar, em si, um potencial terapêutico.” (BRASIL, 2012, p. 21).

A palavra vínculo é mencionada ainda quando a PNAB aborda as funções

da atenção básica no que diz respeito à sua contribuição para o funcionamento da

rede de atenção de forma descentralizada, resolutiva, coordenadora do cuidado e

ordenadora da rede. Segundo consta, em termos de sua resolutividade, é um nível

de atenção à saúde que deve ser capaz de identificar riscos, necessidades e

demandas de saúde articulando diferentes tecnologias do cuidado por meio de uma

clínica ampliada capaz de construir vínculos positivos e intervenções clínicas e

sanitárias efetivas.

O vínculo também é lembrado quando a política aborda o processo de trabalho

das equipes que deve se caracterizar pelo “compromisso com a ambiência e com as condições

de trabalho e cuidado, a constituição de vínculos solidários, a identificação das necessidades sociais

e organização do serviço em função delas, entre outras.” (BRASIL, 2012, p. 42). Mais a

frente, quando expressa as atribuições comuns de todos os profissionais da equipe,

o vínculo é novamente mencionado como viabilizador da responsabilidade da

equipe pela continuidade da atenção: Participar do acolhimento dos usuários realizando a

escuta qualificada das necessidades de saúde, procedendo à primeira avaliação (classificação de

risco, avaliação de vulnerabilidade, coleta de informações e sinais clínicos) e identificação das

necessidades de intervenções de cuidado, proporcionando atendimento humanizado,

responsabilizando-se pela continuidade da atenção e viabilizando o estabelecimento do vínculo.

(BRASIL, 2012, p. 44).

O processo de trabalho das equipes, para estar de acordo com as

especificidades da ESF, é referido no documento ressaltando que a jornada de

trabalho dos profissionais das equipes e os horários de funcionamento das UBS devem ser

organizados de modo que garantem o maior acesso possível, o vínculo entre os usuários e os

profissionais, a continuidade, a coordenação e a longitudinalidade do cuidado. (BRASIL, 2012,

p. 59).

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~ 37 ~

O documento aborda as especificidades da Estratégia Saúde da Família

(ESF) apontando-a como estratégia para reorganização da atenção básica do país de

acordo com os preceitos do SUS. A ESF é referida como estratégia que melhor

favorece a reorientação do processo de trabalho, apresenta importante relação

custo benefício, tem um potencial de aprofundar princípios, diretrizes e

fundamentos da atenção básica, bem como, ampliar sua resolubilidade e impactar

na situação de saúde da coletividade. O Ministério da Saúde, e os gestores em nível

estadual e municipal reconhecem, nestes termos, a ESF como estratégia de

expansão, qualificação e consolidação da atenção básica.

Em síntese, a PNAB, ao assumir como sua razão de ser o acesso universal e

contínuo a serviços resolutivos e de qualidade, enquadra o vínculo entre os

profissionais de saúde e a população adscrita como condicionante de sua efetivação,

uma vez que o apresenta como viabilizador da corresponsabilidade, continuidade e

longitudinalidade do cuidado. Tais fundamentos condicionam a concretização da

política, dentre outras coisas, na construção de um vínculo duradouro entre os

profissionais e usuários quando propõe linhas de cuidado efetivadas longitudinal e

continuamente.

A Política Nacional de Humanização (PNH) é outro mecanismo do SUS

em que o tema da relação entre os trabalhadores da saúde e as pessoas que usam o

sistema é pauta de debate. Criada em 2013 pelo Ministério da Saúde esta política

propõe o enfrentamento aos desafios relacionados à qualidade do cuidado, em

termos de gestão e organização do trabalho em saúde.

Em seu marco teórico-político a PNH reconhece grandes avanços no

campo da saúde no que diz respeito à descentralização e à regionalização da

atenção e da gestão em saúde, mas também, aponta problemas a serem

enfrentados. A fragmentação e verticalização dos processos de trabalho são

características que fragilizam as relações entre os diversos trabalhadores da saúde, e

destes, com as pessoas que recorrem aos serviços, comprometendo o trabalho em

equipe, que desconsidera a dimensão social e subjetiva das práticas em saúde. A

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PNH reconhece um baixo investimento na qualificação de seus trabalhadores,

pouco fomento a cogestão, bem como, na valorização e inclusão dos trabalhadores

do setor nos processos de produção em saúde. A política reconhece que os

processos de gestão se restringem ao modelo queixa-conduta mecanizando a

relação dos profissionais com as pessoas que usam os serviços, agravado pelos

processos formativos, ainda distantes deste debate. Tal fato, segundo a PNH,

impede o estabelecimento do vínculo fundamental responsável pela efetivação da

responsabilidade sanitária que constitui o ato de saúde.

A PNH como política deve traduzir os princípios e modos de operar o

conjunto das relações que se estabelecem na rede, compreendendo desde a relação

dos profissionais e usuários, dos diversos trabalhadores da saúde entre si, entre as

diversas unidades e serviços, e entre todas as instâncias que constituem o SUS. O

modo de se relacionar que se opera nesta rede de relações deve, pois, confluir para

trocas solidárias e comprometidas com a produção da saúde. É justamente neste

ponto que a Humanização se define, segundo a PNH, e consiste em “aumentar o

grau de co-responsabilidade dos diferentes atores que constituem a rede SUS, na produção da

saúde, implica mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho.

Tomar a saúde como valor de uso é ter como padrão na atenção o vínculo com os usuários, é

garantir os direitos dos usuários e seus familiares. (BRASIL, 2004, grifos nossos.).

A Humanização na PNH é apresentada, então, como um conjunto de

estratégias em função das quais se busca alcançar a qualidade na gestão por meio da

adoção de atitudes ético-estético-políticas que qualifique o vínculo entre usuários e

profissionais, e destes entre si. De acordo com a política isso seria possível em

função de uma ética de respeito à vida, numa estética capaz de inovação das

normas regulamentadoras das atitudes frente à vida, capaz de refazer a cena política

que marca as relações sociais no âmbito da saúde. Em suma, segundo as

prerrogativas da política, a humanização deve traduzir-se no incremento da

corresponsabilização dos diferentes atores da rede, e na mudança cultural no que

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diz respeito a atenção aos usuários e a gestão dos processos de trabalho, refazendo

o vínculo que liga toda a rede.

Pasche, Passos e Hennington (2011) ao analisarem uma trajetória de cinco

anos da PNH indicam a convergência de 3 objetivos centrais, são eles: (1) enfrentar

desafios enunciados pela sociedade brasileira quanto à qualidade e à dignidade no cuidado em

saúde; (2) redesenhar e articular iniciativas de humanização do SUS e (3) enfrentar problemas no

campo da organização e da gestão do trabalho em saúde que têm produzido reflexos desfavoráveis

tanto na produção de saúde como na vida dos trabalhadores. (PASCHE; PASSOS;

HENNINGTON, p. 8).

Os autores remetem sua análise ao ideário da Reforma Sanitária que vai

além de um processo tecnoburocrático, e se caracteriza como um marco na direção

de um aprimoramento da experiência civilizatória humana, e alça a construção do

SUS como um aspecto de consequências importantes para construção de uma

sociedade democrática. O SUS resulta de consensos mínimos e provisórios sendo,

portanto, uma obra aberta, incompleta que se reveste plasticamente em função de

interesses que atravessam a sociedade brasileira.

A PNH e a PNAB são as duas principais políticas do SUS que abordam a

relação entre profissionais de saúde e usuários como eixo central de sua efetividade,

conforme sintetizei acima. Um ponto interessante é perceber em que termos estas

políticas se articulam no sentido de apurar de que forma o funcionamento de uma

pressupõe e/ou complementa a efetividade da outra.

O conceito de humanização da PNH tem sido alvo de análises críticas em

face da fragmentação das práticas de humanização relacionadas a diferentes

programas, e também, em razão de crescente banalização do tema. De acordo com

Passos e Benevides (2005) a humanização das práticas em saúde implica em

princípios de ação capazes de operar a gestão do SUS, o que requer um confronto

com o tema do humanismo na contemporaneidade.

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Estes autores analisando a PNH traz para o foco de atenção a questão do

poder presente na relação Estado/sociedade na contemporaneidade, mais

especificamente, do biopoder, a partir de uma leitura foucaultiana. Segundo analisa

Benevides e Passos (2005) a PNH se propõe a operar no limite entre a máquina do

Estado e o plano coletivo, defendendo a aposta de que são as políticas públicas que

devem prevalecer na orientação das ações governamentais. Os autores

problematizam o papel dos coletivos em sua relação com o Estado

problematizando qual conceito de humano se forja neste processo de controle de

massas, realizado pelo Estado. Os autores consideram que a força emancipatória se

sustentaria na medida da inseparabilidade entre os processos de produção de saúde

e de subjetividades protagonistas e engajadas em novos modos, não só de cuidar e

agir em saúde, mas também, de geri-la, em seus processos de trabalho.

(BENEVIDES; PASSOS, 2005).

A aposta dos autores na efetividade da humanização como política de

Estado, considerando a mediação do poder na relação Estado/sociedade, incide

sobre a experiência concreta em que a dimensão coletiva do processo de produção

de sujeitos autônomos e protagonistas se expressa, considerando, é claro, a inscrição

moderna em que se enquadra aqui, a semântica da palavra sujeito. A humanização

do SUS para os autores configura-se como um processo de subjetivação que se efetiva com a

alteração dos modelos de atenção e gestão em saúde, isto é, novos sujeitos implicados em novas

práticas de saúde. Pensar a saúde como experiência de criação de si e de modos de viver é tomar a

vida como seu movimento de produção de normas e não de assujeitamento a elas.

(BENEVIDES; PASSOS, 2005, p. 570). Nesta altura os autores se deparam com

um paradoxo, qual seja, o do funcionamento de uma máquina de Estado em seu

tensionamento em relação à coisa pública, onde o plano do coletivo aparece como

espaço em que a saúde se apresenta, espaço este, fora do âmbito do Estado.

Seguindo o fio desta análise, isso requer, segundo os autores, repensar a

relação entre Estado e política pública, quando tratamos de humanização das

práticas de saúde. Passos e Benevides defendem uma não coincidência entre o

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domínio do Estado e do Público. Este último refere à experiência concreta dos

coletivos, que estaria em um plano diferente do Estado, compreendido nos termos

da figura de transcendência que o Estado assume na modernidade. A humanização,

segundo eles, se daria, pois, em função deste plano coletivo que se efetivaria em razão

das frestas da relação Estado/sociedade, enquanto espaço que escapa da

capilarização do biopoder do Estado Moderno, em função de forças

emancipatórias. Como resultado, haveria uma tarefa, sempre inconclusa, de

reinvenção da humanidade realizada no trabalho constante da produção de outros

modos de vida e de novas práticas em saúde. Estas se efetivariam, conforme os

autores, quando nos organizamos coletivamente em movimentos de resistência ao já dado, como

assistimos no processo constituinte do SUS ou na proposta/aposta da PNH. É preciso manter

vivo este processo afirmando seu não esgotamento. O fato de o SUS ter se constituído como um

texto legal, sua dimensão „de direito‟, não pode esgotar o que na experiência concreta se dá como

movimento constituinte e contínuo da reinvenção do próprio SUS. (PASSOS &

BENEVIDES, 2005, P. 570).

A questão que surge aqui é pensar até que ponto apostar nesta reinvenção

das práticas em saúde em direção à humanização como política pública, se tais

práticas permanecem quase sempre à margem ou na periferia? Como tais práticas,

“imprensadas” nas frestas que escapam ao biopoder do Estado Moderno, poderiam

se efetivar como política pública capaz de renovar e humanizar as práticas em saúde

do SUS? Se o movimento é sempre de resistência ao já dado, não estaria, pois

instaurado uma resistência, de antemão, às próprias políticas de humanização como

política de Estado? Isso não enfraqueceria a aposta que fazem os autores? Por

outro lado, será que podemos equiparar a força emancipatória que animou a

construção do SUS, à força que anima a efetivação da PNH, uma vez que o

processo social que contribuiu para construção do SUS como política é fruto de um

contexto histórico, econômico, cultural e político, que em muito difere do atual

cenário?

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Como sabemos, a década de 60 marcou o século XX não somente no que

diz respeito às transformações sociais embaladas pelo o espírito revolucionário

juvenil. A importância dos acontecimentos históricos desta época em termos

globais redimensionou, não somente, as questões políticas, sociais,

comportamentais e sexuais, mas repercutiu também no campo da saúde, quando

testemunhamos amplo debate sobre os determinantes da saúde com vistas a

superar a estreiteza conceitual da polaridade saúde/doença e as limitações do

modelo hospitalocêntrico.

O cenário hoje em muito difere do panorama comentado rapidamente. Que

chances teria uma aposta desta natureza considerando os atores que hoje

constroem a cena política no âmbito da saúde, onde o privado é sinônimo de

qualidade e as grandes indústrias da saúde é que mais influenciam e orquestram sua

gestão? A banalização que o tema humanização assume hoje não seria o próprio

reflexo da fragilidade desta aposta?

E por fim, é importante pensar que ações precisam ser feitas, em termos de

gestão e de formação de profissionais para o SUS, que poderiam contribuir para

humanizar a relação entre os trabalhadores da saúde e as pessoas que usam os

serviços do SUS, e pensar mais clara e objetivamente, o que poderia de fato ser um

fiador desta aposta. Isso é importante considerando justamente o biopoder do

Estado em sua configuração moderna.

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A questão do poder aparece também nos argumentos que tecem outros

autores quando analisam o vínculo em termos de relação dos usuários e

trabalhadores de saúde, voltando-se para a atenção básica nas peculiaridades que

lhe são inerentes. Um estudo feito nesta linha com o objetivo de analisar o vínculo

como estratégia das práticas de cuidado no âmbito da atenção básica, também

amparado nas proposições de Foucault, tece reflexões interessantes sobre o modo

de vinculação das políticas, ou seja, na forma de relação entre governo e sociedade

na micropolítica da vida cotidiana. (BERNARDES, A. G.; PELLICCIOLI, E.

C.; MARQUES, C. F., 2013)

Os autores do estudo enquadram a atenção básica como o primeiro contato

da população com o sistema de saúde e chamam atenção para a criação de um

escopo de ações, cujas formas de intervenção se voltam não mais para as práticas

tecnológicas, e sim, para os requisitos necessários que tornam tais intervenções

possíveis, isto é, o vínculo. A saúde, doravante, é que migra até o sujeito, e não

mais o contrário, como nas tecnologias hospitalares. O vínculo entre o setor saúde

e a população adquire aqui outra conotação em sua mediação de poder entre

Estado/sociedade. Isso significa dizer, segundo esclarecem eles, que o vínculo sairia

de uma região de interioridade do sujeito, passando a ser condição básica para o

estabelecimento de formas de cuidado, sendo as estratégias vinculatórias pensadas em

detrimento das terapêuticas. Isso significa que as práticas de cuidado devem, então,

ser qualificadas em termos vinculativos, e não apenas tecnicistas. Disso resulta uma

capilarização da governabilidade biopolítica que chega ao nível da vida cotidiana,

quando focaliza o vínculo que se deveria construir entre população e serviços de

saúde, tendo nas práticas de cuidado um instrumento privilegiado para o exercício

de poder, cada vez mais descentralizado e sutil.

O que é interessante na análise desses autores é a perspectiva de pensar o

vínculo no âmbito da atenção básica trazendo reflexões em termos das relações de

poder que se estabelecem entre governo e população. Entretanto, esta perspectiva

enquadra o vínculo entre os profissionais de saúde e a população na relação de

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poder, em função mesmo do quadro conceitual ao qual referencia o estudo. Apesar

de ser um aspecto importante relacionado ao tema, tendo em vista o exercício da

cidadania e o acesso ao direito à saúde, fruto de uma conquista árdua em meio a

disputas em torno de diferentes projetos de sociedade, se ater apenas a este aspecto

acaba sendo uma visão reducionista para pensar o vínculo em termos de

humanização.

Quando consideramos o contexto da atenção básica, as estratégias

vinculatórias são referendadas pela PNAB. No entanto, o modelo

hospitalocêntrico, como processo de gestão centrado na relação mecanizada

queixa-conduta ainda é predominante nas formas de cuidado, inclusive na atenção

básica, embora não responda as necessidades de saúde neste nível de atenção.

Somado a isso, há uma distância entre os serviços e o contexto social e cultural do

território com seu modo próprio de produção de saúde-doença desconfigurando o

significado que encerra a noção de território para Atenção Básica. O tecnicismo

aparece como resposta única e suficiente para responder aos processos saúde-

doença dos territórios destituídos de suas peculiaridades e de suas marcas culturais

capazes de conservar ou transformar os modos de viver e de produzir saúde.

As estratégias vinculativas de que falam os autores se configuram para

viabilizar o técnico em termos de produtividade na atenção básica. Claro que as

relações de poder aí se instauram, há um biopoder sendo exercido, mas isso não é

tudo. É relevante ter em mente o poder que perpassa tais estratégias de vinculação,

mas é importante ter claro a finalidade de tais estratégias e seu modo de construção

e cuidar para não reduzir o vínculo apenas à mediação de poder Estado/sociedade.

Quando pensamos e refletimos sobre a necessidade de uma política de

humanização, uma questão de fundo se apresenta: a deshumanização. Há um

pressuposto de uma ausência de humanidade nas políticas, mais especificamente,

nas relações sociais que tecem a rede no âmbito da saúde e adquirem uma

expressão singular no contexto da atenção básica como porta de entrada no

sistema. Reconhecemos a impossibilidade de pensar as relações entre os serviços de

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saúde e a população sem incluir reflexões sobre o poder que perpassa a relação

Estado/sociedade, e o vinculo não escapa de tais enlaces. Há um plano macro onde

a questão do poder assume características próprias na formulação e efetivação de

políticas públicas sociais. Há também, o espaço das microrrelações, onde o

biopoder se espalha de forma sutil, como já denunciou o pensamento de Foucault. ,

Não obstante, é importante pensar de que forma se entrelaçam o micro e macro em

termos de relações entre Estado/sociedade, entre serviços de saúde, como política

pública, e população, entre profissionais da saúde, e pessoas que usam os serviços,

sem cair em reducionismos, ora para um lado, ora para o outro.

A necessidade de humanização em todos os âmbitos que compõem a rede

de relação e gestão em saúde no SUS é consenso. Há, entretanto, um impasse que

se apresenta no risco de se colocar vinho novo em odres velhos, sob o risco dos

odres se partirem, como já salientou o saber de um dos grandes mestres da

humanidade. Há um paradoxo que nos convida a aprofundar as reflexões sobre as

relações humanas que se tecem, formam e amoldam toda a rede que compõe os

diversos níveis de atenção à saúde do SUS.

Um ponto que considero relevante para se somar a estas reflexões é buscar

compreender em que contexto surge a palavra vínculo no âmbito do SUS,

sobretudo, quando se trata da atenção primária à saúde, e o significado que adquire

no âmbito das políticas de humanização no cenário atual.

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1.2.1. A Gênese A teoria sem a prática vira „verbalismo‟,

assim como a prática sem teoria, vira ativismo, no entanto, quando se une a prática com a teoria, tem-se a práxis,

a ação criadora e transformadora da realidade. (Paulo Freire).

O modelo de atenção primária centrado na ESF resultou de um processo

lento e contínuo de tensão e confronto com o modelo hegemônico de saúde. Sua

construção social e política, tal como se apresenta hoje, não resultou

grosseiramente de uma replicação de modelos internacionais de atenção à saúde,

como bem apresenta Andrade, Barreto e Bezerra (2012). Em suas análises os

autores reconhecem a importância das experiências exitosas em equipes de saúde

da família operadas em diversos municípios brasileiros, bem como, do Programa

Agente Comunitário de Saúde, implantando no Ceará em 1986, como fontes de

inspiração para formulação do modelo atual da ESF no Brasil. Foi com base em

tais experiências que se construiu a formulação de conceitos que hoje formam o

escopo da política, definindo a ESF como “um modelo de atenção primária,

operacionalizado mediante estratégias/ações preventivas, promocionais, de recuperação, reabilitação

e cuidados paliativos das equipes de saúde da família, comprometidas com a integralidade da

assistência à saúde, focado na unidade familiar e consistente com o contexto socioeconômico,

cultural e epidemiológico da comunidade em que está inserido”. (ANDRADE; BARRETO &

BEZERRA, 2005, p. 804).

Claro que tal modelo surge embalado pelas ideias relacionadas à promoção

de saúde presentes na segunda metade do século passado. A promoção de saúde

começa a ser debatida a partir das concepções do movimento de saúde comunitária

da década de 60, legitimando seu discurso a partir da realização de vários

Congressos Internacionais sobre Promoção de saúde. (BRASIL, 2001). O cenário

mundial evidenciava as limitações do modelo hospitalocêntrico. Aos poucos, as

ações de promoção de saúde foram sendo incorporadas em diversos países,

inclusive o Brasil. E quando o Ministério da Saúde iniciou a implantação do

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Programa de Saúde da Família (PSF) em 1994, na verdade, institucionalizava

experiências de práticas em saúde que se desenvolviam de forma isolada nos

estados do Paraná, Mato Grosso do Sul e, particularmente, no Ceará, onde o PACS

era adotado como política estadual. Conforme relata Viana & Dal Poz o PACS é um

antecessor do PSF, pois uma das variáveis importantes que o primeiro introduziu e que se

relaciona diretamente com o segundo é que pela primeira vez há um enfoque na família e não no

indivíduo, dentro das práticas de saúde. (VIANA & DAL POZ, 2005, p. 230).

A médica pediatra Anamaria Cavalcante3 que participou da construção do

PACS no Ceará, formula a seguinte metáfora que traduz as colocações de Viana e

Dal Poz para falar da ESF: “Do PACS veio a costela de adão que deu origem à Estratégia

de Saúde da Família”. As ideias que orquestravam o PACS adquirem substância

política no movimento da implantação do SUS com seu modelo regionalizado,

hierárquico e descentralizado, possível no bojo do processo de redemocratização

do país. Tais ideias são os primeiros esboços de ações que privilegiam a abordagem

de família em detrimento do indivíduo, centra-se no território, e tem o vínculo,

como marca da relação dos profissionais de saúde e comunidade.

O PACS ganhou notoriedade internacional ganhando, em 1991, as páginas

do The Economist Londrino com um suplemento especial sobre o Brasil, sendo

em 2003 agraciado com o prêmio Maurice Pate, do UNICEF. Tendler (1998) em

sua análise crítica sobre o bom governo em países em desenvolvimento dedica um

capítulo ao Programa de Medicina Preventiva do Ceará.

O Brasil, no final da década de 80, vivia um processo de descentralização

da saúde e de municipalização. No Ceará, o PACS, despontava como um caso de

descentralização bem sucedida, segundo análise do Banco Mundial, conforme

analisa Tendler (1998). As razões do sucesso eram contrárias às concepções

predominantes sobre o que acontece na descentralização. Os enfoques da literatura

sobre desenvolvimento voltam sua atenção para o âmbito local, tanto para os

3 Anotações pessoais por ocasião de aula de Anamaria Cavalcante no curso de especialização em Educação Comunitária em Saúde, curso promovido pela Escola de Saúde Pública do Ceará em que eu era aluna.

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governos como da sociedade civil organizada, e a ordem da descentralização era

reduzir a supercentralização e fortalecer os governos locais. Prevalecia a visão de

que os governos locais são os mais próximos da população, suposição amplamente

aceita e sustentada na literatura sobre desenvolvimento, ressalta Tendler.

Em sua análise a autora constata justamente a presença marcante do Estado

em todo o processo de implantação e acompanhamento do PACS, fato que ia de

encontro aos enfoques sobre a descentralização em países em desenvolvimento,

cuja diretriz usual é o governo central recuar e fazer menos que antes, assumindo

tarefas que exigem mais capacidade financiadora e regulação. Ocorre que o PACS,

conforme análise da pesquisadora era um misto de local e central, e o governo estadual

não estava simplesmente fazendo menos do que vinha fazendo no setor saúde. Ele estava fazendo

mais, e fazendo algo bastante diferente. (TENDLER, 1998, p.41).

Um ponto a ser ressaltado deste processo é o impacto causado na relação

governo/sociedade com a implantação do PACS em termos da mudança da relação

clientelista predominante. Havia o risco da não adesão dos municípios, porque a

implantação do PACS estava condicionada a decisão política municipal e sua

adequação às diretrizes do programa. Embora houvesse um descontentamento e

relutância por parte dos prefeitos em relação ao PACS, justificada pelo fato que não

teriam sob seu controle a seleção e contratação de um número considerável de

funcionários, houve uma total adesão de todos os municípios em um contexto

fortemente marcado pelo clientelismo na relação Estado/sociedade. Tendler

aponta razões que resultou na adesão dos prefeitos ligada à pressão pública. A

expansão do programa não obedecia a um plano pre-estabelecido, e seu ritmo e

padrão de expansão ficavam à mercê da anuência dos prefeitos. Ocorre que os

limites geográficos dos municípios não impediam que notícias sobre o novo

programa se espalhassem rapidamente esboçando um padrão de expansão tipo

“colcha de retalhos” que gerava pressão pública para os prefeitos aderirem ao

programa. Outra forma de pressão era por efeito da enorme publicidade que o

governo Estadual dava ao PACS à época. E a outra razão de indução da adesão ao

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programa era que colocar um exército de 30 a 150 funcionários se constituía como

uma forte presença do setor público na municipalidade. Os agentes de saúde

trabalhavam de casa em casa, e eram facilmente identificados pelo seu fardamento.

Conforme ressalta Tendler representavam uma força de peso considerável por

serem pessoas queridas na comunidade para a qual trabalhavam, força essa que não

podia ser ignorada por nenhum prefeito.

A autora afirma que de acordo com a visão da literatura hegemônica sobre

desenvolvimento, tendo em conta o clientelismo como marca histórica da relação

governo/sociedade no Ceará, a contratação de milhares de trabalhadores pelo

governo apontava a possibilidade de um pesadelo de clientelismo e interesses

privados. Os resultados da implantação do PACS, porém, foi o oposto. Em sua

análise a autora busca compreender as razões por que um grande exército de

funcionários sub-remunerados e pouco qualificados lograram resultados tão bons

em termos de medicina preventiva. Segundo relata Tendler

O estado iniciou uma dinâmica [...] que contribuiu para substituir a velha dinâmica de distribuição de cargos por outra, mais voltada para prestação de serviços. Ao manter um controle muito rigoroso exercido de fora do município sobre a contratação de uma força de trabalho com fortes vínculos sociais na comunidade, as ações do estado representavam uma feliz combinação de controle centralizado e inserção local. (TENDLER, 1998, 41).

O perfil do agente comunitário de saúde como profissional do SUS surge

nesse contexto histórico e tem seu escopo de ações voltado para promoção da

saúde, sendo a educação e a mudança de estilo de vida fator preponderante. Logo

no início do programa, como relata sua coordenadora na época, Miria Lavor4, para

ser um bom agente de saúde era indispensável que este profissional fosse referência

local compromissada com a melhoria da vida das pessoas do lugar, apresentar

habilidade de comunicação e ter um vínculo sócio-afetivo com a comunidade. Isso

4 Anotações pessoais do Seminário ministrado por Míria Campos Lavor por ocasião Módulo IX do Curso de

Especialização em Educação Comunitária em Saúde, da Escola de Saúde Pública do Ceará cujo tema abordava o trabalho educativo do ACS.

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era importante porque era justamente esse vínculo que possibilitava ao setor saúde

ter acesso a uma leitura sociocultural da comunidade como fator indispensável para

o êxito das ações de saúde. Tal saber era o que credenciava o agente de saúde como

profissional pela vivência que tinha em função de seu perfil de acesso ao PACS.

O perfil de seleção dos ACS tinha como critério um saber incomum nos

processos seletivos. De acordo com Lavor, entre as mulheres pobres responsáveis pelo

sustento da casa forram selecionadas aquelas que melhor se comunicavam e bem se relacionassem

com seus vizinhos [...] essas mulheres tinham pouco estudo, sendo algumas delas analfabetas.

(LAVOR, e col. 2004, p.122). Isso era importante porque era esse vínculo que

possibilitava ao setor saúde ter acesso a uma leitura sociocultural da comunidade,

sendo que tal saber o que credenciava para alinhar-se ao perfil de acesso ao PACS.

Este saber da vivência era fundamental para o enfrentamento dos desafios

da promoção de saúde centrado na educação que se distanciavam de

procedimentos e protocolos técnicos, comuns ao modelo hospitalocêntrico. No

início do PACS, no Ceará, o desafio maior era convencer as mães a vacinar os

filhos e cultivar novos hábitos de higiene, comportamentos esses, uma vez

adquiridos, mudariam rapidamente o cenário da mortalidade infantil cearense,

como de fato, mudou. Era um trabalho inserido em um contexto sócio cultural e

econômico com um modo próprio de produção de saúde-doença. Uma passagem

do clássico Os Sertões compõe a imagem de uma cena comum no interior cearense,

bem como, o modo como as pessoas viviam e compreendiam o acontecido:

"...o falecimento de uma criança é um dia de festa.

Ressoam as violas na cabana dos pobres pais, jubilosos

entre lágrimas; referve o samba turbulento; vibra nos

ares, fortes, as coplas dos desafios; enquanto a uma

banda, entre duas velas de carnaúba, cercado de flores, o

anjinho exposto espelha, no último sorriso paralisado, a

felicidade suprema da volta para os céus, para a felicidade

eterna." (Os Sertões de Euclides da Cunha).

Enterro de bebê no Cemitério de Anjinhos da

comunidade Primavera, Santa Quitéria, Ceará5

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Euclides da Cunha expressa com aguda sensibilidade como a cultura

cearense se relaciona(va) com a morte, sobretudo, com a morte de crianças. Eram

chamadas de anjinhos, morriam antes de completar 1 ano, e as famílias tinham sua

forma própria de lidar com a dor e o sofrimento da perda frequente dos filhos,

vitimados pela diarreia, a má nutrição e demais doenças comuns na primeira

infância.

É preciso ter em mente que o sucesso do PACS não foi apenas mudar o

quadro epidemiológico da mortalidade infantil. Outra questão chama atenção no

cenário de fundo, expresso na literatura de Euclides da Cunha; o modo como esses

profissionais venceram o desafio de mudar comportamentos e transformar o

cenário cultural do interior do Ceará. A oferta da vacina não era suficiente para, por

si só, gerar estas mudanças profundas em termos culturais. O ponto chave era o

convencimento das mães em mudar hábitos relacionados ao modo de cuidar dos

seus filhos que passavam de geração em geração, bem como, dar crédito à vacina

como ação eficaz de prevenção de doenças.

O perfil dos agentes de saúde como mulheres que desfrutavam de um

prestígio, por serem referência na comunidade, o seu vínculo com o lugar em que

atuavam/moravam foi o diferencial para mudança do cenário epidemiológico da

época. Era o saber da vivência que possibilitava o manejo dos fatores sociais e

culturais da comunidade, expresso na palavra vínculo, que tornava este profissional

capaz de se fazer entender pelas pessoas e possibilitar uma mudança

comportamental e cultural na comunidade, pelo convencimento e pelo exemplo, e

não por uma imposição moralista e/ou normatizadora, como era próprio do setor

saúde, sobretudo, quando se trata da saúde pública tradicional, fortemente marcada

por relações verticalizadas, autoritárias e paternalistas. Uma nova visão forjava-se

em função do trabalho de um profissional que tinha certo modo de agir em saúde e

um modo de se relacionar com a comunidade, mudando rapidamente o perfil

epidemiológico no que refere aos desafios de vencer a mortalidade infantil.

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De acordo com Lavor (2004) as ações dos agentes de saúde foram além dos

limites da saúde, ele afirma que os agentes estabeleceram sua comunicação solidária com as

famílias, visitando-as casa a casa, e fortalecem seus laços de vizinhança ao mesmo tempo que

ganham a confiança da equipe de saúde. (LAVOR et. al., 2004, p.125). Em sua análise

Lavor afirma que o vínculo do agente de saúde com o serviço de saúde ainda não

despertou tanto o interesse dos pesquisadores e lacunas permanecem em aberto

para compreendermos melhor a relação agente de saúde com o sistema, e para ele,

algumas perguntas permanecem em aberto, tais como: o que faz o agente manter-se fiel a

sua comunidade participando de um serviço fortemente hierarquizado? E Como garantir esta

fidelidade? (LAVOR et. al., 2004, p.125).

De que modo isso ocorreu? E ainda, por que as mães passaram a demandar

um serviço que antes rechaçavam, e sequer lhe davam crédito? Em que pese a

influencia dos meios de comunicação, penso que talvez um novo circuito de inter-

relação entre profissionais de saúde e as pessoas que procuram os serviços foi

forjado, mudando gradativamente o contexto social, cultural e simbólico,

configurando um novo padrão cultural em termos de produção saúde-doença

materno-infantil. O trabalho do Agente Comunitário de Saúde trouxe a

comunidade para “dentro” do serviço, ao mesmo tempo, em que levou o serviço,

para “dentro” da comunidade.

Historicamente, o ACS se fez elo entre a população e os serviços de saúde

esboçando um novo modo de articulação entre profissionais de saúde e serviços.

Um dos pontos importantes da atuação deste profissional foi, e ainda é, a pessoa

que faz o elo entre a comunidade e os serviços/profissionais de saúde da ESF.

Bom, e de onde nasce essa necessidade de haver um profissional que faça esse elo

entre a população e os serviços de saúde?

Para o exercício dessa função-elo era imprescindível um determinado perfil

profissional. O trabalho do ACS certamente não se restringe simplesmente em

dirimir as barreiras de comunicação que existia entre a população e os serviços de

saúde em função do fosso de comunicação que havia e há entre a linguagem

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popular e a científica, resolvendo uma suposta ignorância da população sobre os

modos “corretos” de tratar de sua saúde. Toda essa mudança cultural está

implicada em algo mais amplo que se relaciona com um saber da vivência que os

agentes de saúde tinham sobre os modos de vida da comunidade, bem como, do

usufruto do respeito e prestígio que gozavam como moradores, sendo referência na

busca de resolução dos problemas de saúde por parte da comunidade.

A promoção de saúde era debate em termos de estratégia de atenção

primária no mundo. No Ceará, este processo se configurou de forma particular em

função de um contexto sociocultural específico. É neste cenário mundial macro,

que se singularizava no micro, que uma nova categoria profissional da saúde vem se

construindo e adquire visibilidade em termos sociais e políticos no Brasil: o agente

comunitário de saúde. E apesar de atuarem na atenção básica desde a década de 80,

somente em 2002, esta profissão passa a ser reconhecida em termos legais com a

Lei 10.507/02.

A contratação dos agentes comunitários de saúde, desde a criação do PACS

até Estratégia Saúde da Família, tem sido alvo de debates em função da

especificidade da profissão. Não me alongando neste tópico, mas a título de

ilustração, é importante esclarecer alguns pontos sobre os processos seletivos desse

profissional para tecer algumas considerações sobre o vínculo do ACS com a

comunidade exigido nos processos seletivos.

Em função da lei o Ministério da Saúde traça um perfil profissional e

competências necessárias para formação deste profissional em nível médio. Os

municípios passaram, desde então, a contratar os ACS de forma temporária ou

mediante convênios e parcerias com entidades privadas, principalmente, as

Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP. Acontece que o

Programa já não tem mais caráter temporário, ainda que o repasse do recurso

continue sendo feito por meio de transferências de recursos federais para os

municípios. Como os processos seletivos de ACS ficaram sempre a cargo dos

próprios municípios, que o faziam, geralmente, de forma terceirizada, a polêmica

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continuou. No final de 2005, o Ministério Público do Trabalho, por meio de

notificação recomendatória nº 0013/05, resolve suspender as transferências

obrigatórias dos recursos à saúde aos municípios que não realizassem concurso

público para contratação desse profissional. Ora, tal medida, levaria a saúde pública

ao caos, caso fosse cumprida. Aproximadamente 200 mil profissionais deixariam de

receber seus salários acarretando uma grande desordem ao sistema de saúde

municipal, sobretudo, os de pequeno porte, que assumem a atenção básica do SUS.

A solução foi a Ementa Constitucional 51 que permite aos estados e municípios

admissão de ACS e de agentes de combate às endemias por meio de processo

seletivo público, mas admitindo, a permanência no serviço, dos ACS que tenham

sido submetidos à anterior processo de seleção pública, reconhecendo o vínculo

empregatício dos ACS contratados, por interposta pessoa jurídica.

Em junho de 2009 foi editada uma Medida Provisória 297 que revoga a Lei

10.507/02 no que diz respeito à contratação de ACS e agentes de endemias, e a

reproduz quase integralmente, inovando apenas alguns aspectos referentes a

contratação. Havia uma polêmica referente à contratação do ACS que tinha, por

exigência, ser morador da comunidade, já que a lei só exigia o cumprimento de tal

critério posteriormente ao concurso. Isso invalidava a exigência porque a razão de

ser de tal critério era a garantia de que o ACS a ser contratado tivesse

conhecimento das pessoas e modo de vida da comunidade onde vai trabalhar. A

MP 297 buscou dá um fim nesta polêmica ao dispor em seu artigo sexto que o ACS

deverá residir na área da comunidade em que for atuar, desde a data de publicação

do edital do processo seletivo.

Não é intenção aqui nos determos nesta polêmica que envolve o

reconhecimento jurídico da profissão do ACS. O ponto que chamo atenção são as

raízes desta discussão. O critério de seleção para ACS era o candidato morar no

lugar em que vai atuar. Isto fere o principio Constitucional que defende a igualdade,

na medida em que impedia qualquer pessoa se candidatar a vaga no serviço público.

O fundamento de tal critério era o profissional conhecer a comunidade, mas não se

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trata de conhecimento técnico, pois isso se resolveria tomando pé de dados sociais

e demográficos sobre o lugar.

Há um ponto importante aqui, algo que até então, era natural para a

humanidade, os vínculos sociais com pessoas e lugares, passou a ser foco do pensamento

jurídico e político do setor saúde. Ter vínculo com a comunidade e ser liderança

local eram critérios que traçavam um perfil que expressa a relevância do saber

oriundo da vivência. Competências requeridas para operar uma abordagem

educativa que objetive, sobretudo, uma mudança comportamental.

Penso que isso talvez integre um cenário que explicita alguns aspectos da

gênese do uso do termo vínculo como um princípio da PNAB. Esta genealogia

talvez forneça algumas pistas para adentrarmos à semântica que envolve seu uso no

âmbito da ESF e os significados que adquire hoje, tanto na PNAB como na PNH

como duas principais políticas do SUS que abordam a relação entre profissionais de

saúde e usuários como eixo central de sua efetividade, conforme sintetizei

anteriormente.

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1.3. Problematização do Vínculo como tema de pesquisa em Saúde Coletiva. Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na dúvida,

não aprendo nem ensino. (Paulo Freire)

Após apresentar um panorama geral do cenário histórico, político e

cultural que configurou a gênese do uso da palavra vínculo no âmbito da APS no

Brasil até ser inserida como princípio da PNAB, focalizamos agora, o uso do termo

no âmbito da produção acadêmico-científica, apresentando como o vínculo é

abordado em pesquisas, tendo em vista os desafios inerentes às investigações

qualitativas no campo da Saúde Coletiva.

No intuito de fazer um levantamento sobre a literatura relacionada ao tema

pesquisamos nas bases Scielo e Lilacs a palavra vínculo associando-a aos seguintes

descritores: Atenção Primária à Saúde, Atenção Básica à Saúde, Sistema Único de

Saúde, Saúde da Família, Estratégia Saúde da Família, Saúde Coletiva, Saúde

Pública. A leitura atenta destas pesquisas me suscitaram muitas reflexões tomando

em conta a coerência que requer a postura qualitativa que refere Bosi. A seleção dos

artigos foi feita buscando nas bases de dados incluindo quaisquer dos descritores

mencionados nos campos assunto ou título. Localizamos 52 trabalhos que tocavam

a dimensão do vínculo na atenção em saúde, e destes, apenas dois apresentaram

conceitualmente o termo. Os demais o colocavam junto com outras palavras, tais

como, responsabilização, acesso, autonomia, longitudinalidade, acolhimento sem

fazer qualquer distinção para os termos da investigação pretendida.

Apresentamos inicialmente uma dimensão de análise que busca

compreender os conceitos em que se amparam, e os referenciais teóricos aos quais

se filiam os artigos. Trata-se de uma análise que foca o tema a partir de um ponto

de vista semântico. Em seguida retornamos às pesquisas com outro olhar, voltado

para as suas proposições metodológicas. Todos os estudos encontrados assumem o

enfoque qualitativo em seus desenhos de pesquisa. Neste sentido, é importante

compreender também os desenhos das pesquisas e o emprego das técnicas usadas

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em sua articulação com o referencial teórico proposto. Trata-se aqui de uma

dimensão de análise metodológica, tendo em vista a complexidade do fenômeno. E

ainda, como terceira dimensão de análise, apresento algumas considerações no que

diz respeito ao plano epistemológico comentando os desafios inerentes a esse

enfoque em pesquisa, no campo da Saúde Coletiva.

Estes três planos de análise que faço não apresentam apenas um

levantamento sobre a literatura publicada sobre o assunto, mas agrega uma

problematização do tema em termos de sua produção conceitual, suas proposições

metodológicas, bem como, seus fundamentos ontológicos e epistemológicos. A

problematização é empreendida em um plano tridimensional em que agrego três

dimensões de análise que se intercruzam. A análise em cada plano referencia-se na

leitura dos mesmos artigos, refeita no sentido de apresentar novas

problematizações a partir de outro plano de análise. Como mostra a figura abaixo:

1 – Planos Intersecionais de análise

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1.3.1. Dimensão Semântica.

Inicio este tópico comentando de forma especial dois artigos porque ambos

fazem uma Revisão das publicações relacionadas ao tema vínculo, em seguida

retomo a análise dos demais em conjunto. O primeiro é uma Revisão Integrativa

que tem como foco a relação entre profissionais de saúde e usuários do SUS que

inclui o termo vínculo. (SCHIMITH, M. D et al. 2011). A pesquisa examinou nas

bases Lilacs e Pubmed os descritores: acolhimento, relações profissional-família,

relação profissional-paciente, humanização da assistência e a palavra vínculo

associada ao descritor Sistema Único de Saúde, selecionando 290 estudos

publicados entre 1990 e 2010.

O recorte temporal de 20 anos do estudo aponta a relação entre

profissionais de saúde e usuários como uma preocupação recente dos

pesquisadores. Há um destaque em termos quantitativos para a produção brasileira

comparada à internacional. Em termos gerais, segundo os autores, o estudo aponta

uma produção científica centrada no hospital como campo de investigação desse

fenômeno. No caso brasileiro, tal concentração é explicada pelos autores em

função do lançamento do Programa Nacional de Humanização da Assistência

Hospitalar, pelo Ministério da Saúde em 2001, embora também se considere a

Política Nacional de Humanização, do Ministério da Saúde, lançada em 2003.

Em sua análise os autores apresentam cinco núcleos de sentido: a relevância

da confiança na relação profissional-usuário; sentimentos e sentidos na prática do cuidado; a

importância da comunicação nos serviços de saúde; modo de organização das práticas em saúde; e,

(des)colonialismo, (SCHIMITH, M. D et al. 2011, p.479), destacando a dimensão

transformadora das relações estabelecidas nas práticas de saúde. O estudo conclui

como tônica principal a necessidade urgente de um reconhecimento dos usuários

dos serviços de saúde como sujeitos de direito de cidadania, digno de respeito e

singularização.

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Os autores deste estudo caracterizado como uma Revisão Integrativa,

declaram em suas conclusões que a transformação das práticas de saúde só é

possível na medida do reconhecimento do usuário como sujeito do processo de

saúde por parte dos profissionais, e que o campo das práticas em saúde é ainda

organizado e efetivado, predominantemente, em função de uma visão biologicista e

fragmentada dos serviços. Em relação, especificamente, ao termo vínculo, o estudo

conclui que é algo essencial para tomada de decisões compartilhadas, sendo

fundamental para adesão e continuidade do tratamento, mas nada aponta no que

concerne a uma demarcação conceitual..

Uma dimensão interessante que este estudo destaca é quando evidencia o

colonialismo das relações como obstáculo para emancipação e para esta tomada de

decisão compartilhada para a qual o vínculo é considerado importante. Ancorados

no pensamento de Boaventura de Sousa Santos o estudo defende que é preciso

descolonizar as mentes para que seja possível distinguir as hierarquias,

reconhecendo que a luta pela igualdade pressupõe um reconhecimento das

diferenças, sem homogeneizações.

O segundo estudo (BRUNELLO, M. E. F et al, 2010) teve como objetivo

realizar um levantamento das produções científicas brasileiras relacionadas ao

vínculo na atenção primária, também utilizou como fonte as bases de dados Lilacs

e Scielo destacando as seguintes palavras-chave: atenção primária à saúde, acolhimento,

tuberculose (indexados), vínculo, adesão, saúde, atenção básica, longitudinalidade e abandono (não

indexados). Foram selecionados 50 artigos no período de 10 anos. Em suas

conclusões os autores afirmam que o vínculo é fator importante para a atenção à saúde e

tende a melhorar o conhecimento dos reais problemas da população atendida pelos serviços, além de

facilitar o relacionamento dos usuários com os profissionais que os atendem. (BRUNELLO, M.

E. F et al, 2010, p.131).

Em síntese, os dois artigos que fazem uma revisão de literatura sobre as

publicações que abordam em seus descritores o tema vínculo, apontam que esta é

uma preocupação recente dos pesquisadores, impulsionada pelo advento das

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políticas de humanização em saúde do SUS. Ambos os estudos reconhecem a

importância do vínculo para melhorar as relações entre profissionais da saúde e as

pessoas que usam os serviços. E em termos gerais, caracterizam o vínculo como

algo que melhora, facilita alguma coisa, ou mesmo, teria uma tendência para tal.

Esta importância adquire relevo em função da necessidade de reconhecimento do

outro como sujeito de direito e cidadania.

Passamos agora a analisar as demais pesquisas que abordam a palavra

vínculo em seus descritores, focalizando a atenção para a semântica que envolve a

palavra. O uso do termo é sempre conotado, ora como sendo um dispositivo, seja de

atenção integral à saúde, seja um dispositivo do cuidado; ora como uma tecnologia

leve, fazendo referência à caracterização feita por Merhy (2005), quando diferencia

tecnologias, duras, leves-duras e leves. É uma palavra também referenciada como

tecnologia relacional ou ferramenta relacional, e até mesmo, um instrumento de trabalho

relacional.

No geral, o vínculo é compreendido ou mencionado como parte ou

exemplo do que se convencionou chamar de tecnologia leve, no dizer de Merhy

(2005). No bojo que sinaliza tal compreensão, vínculo é uma palavra que sempre

vem junto com acolhimento e autonomia. Nesta perspectiva a literatura aborda a

palavra formando uma espécie de amálgama semântico com algumas outras,

próprias do campo da saúde coletiva, sempre escritas lado a lado em diversos

artigos, como destaco abaixo:

Acesso-acolhimento-vínculo,

Acolhimento–vínculo–responsabilização,

Acesso–acolhimento–vínculo–responsabilização,

Responsabilização–vínculo–autonomia,

Acolhimento–vínculo–diálogo,

Acolhimento–vínculo–acesso, e ainda,

Longitudinalidade–vínculo-autonomização.

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O uso do hífen não é referido na literatura. Usei-o aqui para esboçar o

sentido de amálgama semântico, já que as palavras são sempre expressas em

conjunto, e sempre lado a lado. Não há uma diferenciação entre elas e seu sentido

esboça seu uso como sinônimos.

As palavras que abarcam o amálgama semântico referem sempre, em seu

conjunto, as categorias: ferramenta, instrumento, dispositivo e ou tecnologia, ou seja, todas

elas, inclusive o vínculo é compreendido a partir destas categorias. Os artigos não

apresentam nenhuma reflexão que justifique tais categorizações e/ou classificações,

ou uso em conjunto das palavras.

As referências ao vínculo que denotam o uso da palavra categorizada como

ferramenta, instrumento, recurso terapêutico, dispositivo de cuidado, revelam

algumas formas de sentido que a palavra encarna. Um primeiro seria a

compreensão de vínculo como uma ferramenta capaz de aumentar a eficiência e a

eficácia dos serviços, sendo a referência aqui a um serviço específico da atenção

básica. O vínculo aludido como dispositivo do cuidado sugere uma relação de

Vínculo

Acesso

Responsabili-zação

Longitudi- nalidade

Diálogo

Autonomia

Acolhimento

2 – Amálgama Semântico em que se encerra o Vínculo

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condicionamento, isto é, sem vínculo não é possível o cuidado, ou este fica

comprometido.

Outro uso do vocábulo é feito para referenciar a importância da dimensão

subjetiva das pessoas que usam os serviços para as ações de cuidado. É um sentido

que expressa a valorização do vínculo em sua negatividade, isto é, em função de sua

suposta fragilidade ou ausência nos serviços. Por outro lado, tal relevância denota

um reconhecimento da subjetividade das pessoas que usam os serviços, quando se

foca as relações entre os profissionais de saúde e a população.

O vínculo é também referido nestes estudos de forma recorrente como

sinônimo da palavra confiança. Sua definição é sempre feita com referência a

dicionários que a definem como elo, ligação. É uma definição a partir da qual se

entende, ou talvez se confunde, vínculo com a ideia de relação estreita, fortes laços

interpessoais, afinidade, cumplicidade, amizade, cuidar.

O mais frequente é o uso da palavra sem quaisquer diferenciações entre os

termos. O estudo do tema é sempre tangenciado e a palavra é amiúde apresentada

como condição para algo ou alguma coisa. Assim, vínculo se apresenta como

condição para a autonomia, para longitudinalidade do cuidado, para a confiança.

Esta última explicada, até mesmo, no sentido de expressar a permissão ao paciente

em superar sua vergonha de contar algo para o profissional da saúde.

É comum o vínculo ser confundido ou identificado com um simples

contato, qualquer que seja, por meio de consultas, grupos, visitas domiciliares,

momento em que acontece um encontro entre profissional da saúde e as pessoas

que usam os serviços de atenção primária à saúde.

Em suma, o uso do termo vínculo denota um sentido que ora favorece,

facilita, condiciona, amplia, cria e fortalece “quase tudo”. O quase tudo aqui

entendido como autonomia, participação longitudinalidade, confiança, etc. Este é o

polo positivo. Em decorrência disso, por outro lado, este “quase tudo” se fortalece

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e/ou se fragiliza em função de como “esteja” esse vínculo entre os profissionais de

saúde e as pessoas que usam os serviços.

Após esta análise geral foram emergindo a partir da leitura algumas

categorias com as quais a palavra vínculo é relacionada, são elas: gestão dos serviços

da Atenção Básica, Ações específicas da Atenção Básica, Assistência, Terapêutica,

Participação e democratização dos serviços, competência/formação profissional e

práticas educativas na atenção básica. Identificamos para cada categoria uma lista de

aspectos aos quais, a literatura associa com o vínculo, ora em um polo positivo, ora

negativo. O polo positivo se expressa quando os estudos constatam a presença do

vínculo como favorecendo determinado aspecto da categoria em questão. O polo

negativo está as pesquisas que referem a suposta ausência do vínculo um fator,

dentre outros, responsável por desfavorecer os aspectos importantes ligados a

categoria em questão. Assim, em sua via positiva, as pesquisas abordam o vínculo

como algo que facilita, promove, permite, amplia o “quase tudo”. Na via negativa,

não o vínculo, mas a sua ausência suposta, não permite, não facilita, não cria, não

amplia o “quase tudo”.

Importante esclarecer que, mesmo no polo positivo, os verbos que indicam

sua suposta presença se conjugam em um futuro do pretérito, na forma de um

dever ser normativo. O vínculo, então, acaba sempre referido em função de sua

ausência pressuposta, já que o futuro do pretérito é um tempo verbal usado para

indicar hipótese, incerteza ou irrealidade. Então, seja na via positiva ou negativa, a

referência ao vínculo denota sempre uma ausência, é quase sempre não visto.

As palavras referentes a cada categoria identificada, tanto podem ser

encaixadas na via positiva, quanto negativa, ou seja, em termos de leitura. Um

aspecto importante para facilitar a compreensão do leitor é quando, por exemplo, o

vínculo se relaciona à gestão dos serviços da atenção básica, pela via positiva, a sua

suposta ausência não permitiria uma gestão participativa. Pela via negativa, se

existisse, ou se fizesse presente, o vínculo permitiria uma gestão mais participativa.

Como podemos ver, não há uma diferenciação de ausência ou presença. O polo

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positivo ou negativo denota apenas o modo como a pesquisa referencia o termo. É

um discurso que encerra uma confusão semântica, relacionada provavelmente a

metodologia de investigação utilizada.

Para evitar repetições nas categorias, em termos positivos e negativos,

esclarecemos que sua leitura pressupõe ambos os polos. Ressaltando ainda, que a

via positiva integra um dever ser no futuro de pretérito. O vínculo, portanto, é algo

que favorece ou favoreceria, evita(ria), contribui(ria), aumenta(ria) melhora(ria) o

que refere todas as categorias identificadas. Essa é chave de leitura para

compreender as categorias abaixo:

Gestão dos serviços da Atenção Básica

Categoria que agrega estudos relacionados à melhoria da gestão dos serviços de

saúde na atenção básica em vários aspectos: participação, eficácia de ações, acesso,

resolutividade, etc. Em relação a esse tema os estudos referem o vínculo como algo

que:

Favorece(ria) a Gestão participativa;

Evita(ria) ações desnecessárias;

Contribui(ria) para eficácia das ações em saúde;

Aumenta(ria) a resolutividade dos serviços e/ou programas (Saúde Mental, Saúde do Trabalhador, Saúde do Adolescente, Acompanhamento de pacientes com TB, HA, Dia, Pré-natal, Programa Família Saudável, etc)

Melhora(ria) o acesso aos serviços;

Diminui(ria) a rotatividade de profissionais médicos e enfermeiros na ESF;

Favorece(ria) o uso racional de medicamentos.

Ações da Atenção Básica

Sugerimos esta categoria, a despeito de ter apresentado a categoria anterior porque

os estudos relacionados aqui tem outra nuance relevante que se afasta de uma

forma de gestão. O que é ressaltado são as ações próprias deste nível de atenção à

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saúde, tendo o vínculo, como condição para sua efetivação. Aqui o vínculo

favorece(ria):

Ações de promoção de saúde;

Ações intersetoriais;

Formação de grupos;

Intervenções coletivas;

Visita domiciliar;

Capacitações em geral na comunidade (oficina e cursos os mais diversos).

Assistência

Esta categoria reúne estudos referentes às práticas de assistência, bem como, ao

modo como tais práticas são realizadas visando êxito ou resultados. O vínculo aqui

é algo que contribui(ria) para melhorar, ou tem ou teria efeitos de correlação

positiva no(a):

Acolhimento;

Atendimento humanizado;

Responsabilização;

Autonomia;

Clínica Ampliada;

Abordagem e cuidados de vítimas da violência doméstica;

Dá permissão para que o profissional supra necessidades, intervenha, aconselhe, partilhe opinião, promova suporte psicológico para alívio da ansiedade;

Terapêutica

Esta categoria refere, especificamente, a terapêutica ligada à assistência na APS. A

literatura refere uma série de estudos sobre adesão aos diversos programas próprios

dos pacotes da atenção básica. Em todos eles, o vínculo é referido como algo

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condicionante para adesão das pessoas. Aqui o vínculo aumenta(ria) ou

melhora(ria) a(o):

Adesão à terapêutica e/ou continuidade do tratamento;

Adesão aos programas (Tuberculose, Hipertensão, Diabetes, Pré-natal, às ações de promoção de saúde etc);

Acompanhamento de recém-nascidos de baixo peso;

Confiança entre profissionais e usuários.

Participação e democratização dos serviços

Esta categoria está relacionada aos estudos específicos sobre gestão participativa no

SUS. São estudos que avaliam práticas na atenção básica que devem fomentar a

democracia. O vínculo aqui é também algo condicionante para o fomento de

práticas como:

Cidadania;

Participação da comunidade;

Criação de espaços de convivência.

Competência/Formação Profissional

Esta categoria congrega estudos sobre a competência e a formação profissional

para atenção básica. Também, neste caso, o vínculo é condicionante no sentido de

favorecer o aprendizado, ou mesmo, a prática profissional na atenção básica no

tocante a: competência profissional, a Atividade Clínica.

Práticas Educativas na Atenção Básica

Os estudos que referem vínculo relacionado a esta categoria apontam as

metodologias utilizadas nas práticas educativas da atenção básica. Tais estudos

ressaltam que o uso de metodologias tradicionais, não favorece(ria) o vínculo.

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Essas categorias de análise nos permitem pensar que há uma compreensão

geral do vínculo no discurso da Saúde Coletiva como algo que condiciona o

trabalho na APS tornando-o algo para o qual tudo converge ou deva convergir.

Recorro a uma imagem que facilita uma compreensão disso. Uma espécie de

vórtice traduz bem o uso da palavra vínculo no âmbito da atenção básica. Algo que

gira em torno de si mesmo e para o qual tudo converge, e não se sabe o que está

causando a força centrípeta. Nesta perspectiva, tudo que trata de assuntos

relacionais converge para a palavra vínculo. Essa imagem é interessante, e revela

também, um reconhecimento da sua importância no âmbito da atenção básica,

mesmo, que seu significado seja tão nebuloso, considerando seu poder de

convergência.

Conforme procuramos evidenciar a literatura é escassa em abordar vínculo

em termos teórico conceituais, algo sempre tangenciado. Sua expressão como

amálgama semântico dificulta e/ou escamoteia sua conceituação. Em suma, quando

conotado no âmbito da atenção básica o vínculo é percebido como requisito do

modelo de Saúde da Família, algo que favorece(ria) as ações de integralidade da

atenção à saúde, que permite(ria) agir sobre os condicionamentos de saúde,

3 - Vórtices

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possibilita(ria) o conhecimento das necessidades de saúde da população, sendo por

fim, essencial para longitudinalidade do cuidado.

Há um tangenciamento conceitual que se limita ao uso de sinônimos, quase

sempre referindo confiança, elo, relação interpessoal estreita. Não há uma lapidação

semântica em termos conceituais que o diferencie, por exemplo, do vínculo

terapêutico, vínculo de amizade, vínculo profissional, ou mesmo, vínculo

institucional. Como na imagem do vórtice, tudo a ele converge.

Os demais artigos que tem como tema de investigação o vínculo, mesmo

que inserido, neste amálgama semântico, que já é o lugar comum da palavra no

âmbito acadêmico, fazem referência, seja de forma direta ou indireta, citando de

forma mais recorrente, os seguintes autores Ellias Merhy, Gastão Wagner e Túlio

Franco. O vínculo quando definido fora do amálgama, em alguns artigos, tem uma

conotação polissêmica e adquire diversos significados, e fazem referência ao

discurso desses autores que citei. Assim, ora aparece ligado à clínica, e no caso,

pode ser caracterizado como o vínculo terapêutico. Em outros casos também é

abordado como princípio de ação, um dever ser normativo que preconiza as

políticas PNAB e PNH. E também, por vezes, aparece conotando um núcleo de

sentido que se referencia numa relação de confiança e amizade.

Por fim, destaco de modo especial outro estudo pelo fato de, apesar de

inserir o vínculo no amálgama semântico que referi anteriormente, apresenta um

conceito para referir-se ao termo. Trata-se de uma pesquisa que objetivou

compreender a utilização do acolhimento, vínculo e a corresponsabilização na

construção do cuidado direcionado aos usuários com hipertensão arterial. Os

autores definem vínculo da seguinte forma: um instrumento relacional que permite a

circulação de afetos entre pessoas, além de se constituir em ferramenta eficaz na horizontalização e

democratização das práticas de cuidado, pois favorece a negociação entre os sujeitos envolvidos nesse

processo. (LIMA, L. L.; MOREIRA, T. M. M.; JORGE, M. S. B., 2013.).

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Este conceito apresentado neste artigo se referencia em outro estudo

(SILVA JÚNIOR, A.G.; MASCARENHAS, M.M, 2004), cujo objetivo é refletir

sobre conceitos e abordagens metodológicas com intenção de contribuir para

aumentar a capacidade de análise das pessoas envolvidas no trabalho da atenção

básica à saúde. Para conceituar o vínculo os autores apresentam inicialmente, a

definição do dicionário Aurélio “tudo que ata, liga ou aperta; ligação moral; relação.” E

mais a frente, define-o recorrendo a um autor chamado Chakkour. Assim

escrevem:

Chakkour (2001, p.6), a partir de Pinchon-Rivière (1982), conceituou vínculo como „o desenvolvimento de circularidade de afetos entre trabalhador e usuários, construindo a interação entre duas pessoas criando uma maneira particular de se relacionarem, a cada caso e a cada momento‟. Criar vínculos, na visão de Merhy (1997), é ter relações tão próximas e tão claras que a equipe possa se sensibilizar com o sofrimento ou demanda dos usuários ou da população adscrita. (SILVA JÚNIOR; MASCARENHAS, 2004, p. 248).

O estudo, portanto, cita outro que, por sua vez, cita um outro autor

chamado Chakkour que definiu o vínculo referendado numa publicação de Pichon-

Rivière (2007) intitulada Teoria do Vínculo. A partir da ideia Chakkour os autores

propõem pensar o vínculo em três dimensões: a afetividade, a relação terapêutica e a

continuidade. A afetividade referida na primeira dimensão foca, não a relação entre

profissional e a pessoa que utiliza o serviço, e sim, trata do gostar que o profissional

deve(ria) ter em relação à sua profissão, e em decorrência disso, ter um interesse

pela pessoa do paciente, e só assim, construir um vínculo firme e estável que se

torne um valioso instrumento de trabalho.

A dimensão terapêutica está ligada ao ato de dar atenção, uma nova forma

de cuidado. Para expressar isso o autor refere Boff (1999) em sua publicação Saber

cuidar: ética do humano, compaixão pela Terra, onde o teólogo defende o cuidar como

atitude numa relação de interação e convivência, zelo e desvelo. O artigo destaca

ainda, em relação a este ponto, as diversas publicações ligadas à corrente de atenção

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centrada no paciente quando enfatizam a potência do vínculo para compreensão do

sofrimento; referenciam também as publicações que apontam a relação profissional

paciente, fundamental para as intervenções e a maior adesão, tanto à terapêutica

quando as medidas de prevenção e promoção. E a terceira dimensão, a de

continuidade, é compreendida como responsabilização que, segundo os autores, é o

profissional assumir a responsabilidade pela vida e morte do paciente, dentro de uma dada

possiblidade de intervenção, nem burocratizada nem impessoal. (SILVA JÚNIOR;

MASCARENHAS, 2004, p. 250).

De forma geral, estas três dimensões se caracterizam como um apelo-

exortação para um dever ser; expressam fatores que condicionam o vínculo

exortando que o profissional deve(ria) gostar da sua profissão, para então assumir

uma postura de cuidado que expresse uma atitude de compreensão, empatia e se

responsabilize pela vida e morte de quem cuida, guardando as devidas limitações de

contexto. Há um pano de fundo que justifica a postura de distanciamento entre os

profissionais e os pacientes sendo explicado pela falta de gosto do profissional em

relação à profissão que escolheu.

Um ponto central do conceito está na palavra afeto, sendo o vínculo algo

que supostamente permite que o afeto circule, para então, ser uma ferramenta

eficaz nas práticas de cuidado. Sem o vínculo, parece que supostamente o afeto

estagnaria de alguma forma, impedido de circular. É preciso indagar neste conceito:

de que forma o vínculo faz circular o afeto entre as pessoas? Pensar o vínculo

como condição de circulação de afeto nos faz pensar em afetos estagnados. O que

seria um afeto que circula e um afeto que não circula? Não seria razoável pensar

também que o próprio afeto favoreceria o vínculo? Que relação há entre vínculo e

afeto? Surgem muitas perguntas intrigantes a partir desta definição de vínculo e

uma sugestão contundente de uma fragilidade conceitual.

É interessante ressaltar que a dimensão afetiva implicada no conceito é

centrada no profissional, e só depois, direcionada a pessoa que está sob seus

cuidados. A afetividade fica condicionada ao dever ser por parte do profissional,

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isto é, se tal dever não se esboça, não é possível o interesse do profissional em

relação à pessoa que cuida e, por consequência, não haveria vínculo. E se isso não

ocorre seria, pois em função de uma não identificação do profissional com sua

profissão que o afeto não circularia e o vínculo não se faz presente! Será que seria

mesmo assim? Há alguns equívocos em torno da compreensão da relação entre

afetividade e vínculo que deve ser apurada em termos conceituais.

Uma conceituação atende a uma finalidade científica. É uma necessidade

que nos auxilia em uma aproximação e/ou uma compreensão mais profunda sobre

os fenômenos da realidade. A conceituação de primeiro estudo que referi sobre

vínculo no início, que se embasa na linha de pensar foucaultiana, atende a

finalidade de pensar o vínculo em termos das relações que se estabelecem entre os

governos, na forma de Estado, e a população, relacionando-o aos constructos de

verdade e liberdade, tal como propõe o pensar de Foucault. Já este segundo estudo

que se embasa na visão de Pichòn-Rivière, vai buscar outro para tecer

considerações sobre o vínculo que trata como assunto central a patologia do

vínculo, embasado no referencial teórico da Psicanálise.

É importante esclarecer melhor do que trata o livro A Teoria do Vínculo de

Pichòn-Rivière, ao qual referenciam os autores direta e indiretamente. O autor

argentino propõe seu estudo esclarecendo seu uso em três dimensões de

investigação: a do indivíduo, a do grupo e a da instituição ou sociedade. Cada uma

permite um tipo de análise: a psicossocial, a sociodinâmica e a institucional que se

inter-relacionam e se integram. Para Pichon-Rivière:

Uma Psiquiatria concebida a partir das relações interpessoais, da relação do indivíduo com o grupo e/ou com a sociedade, nos dará dados para construir uma psiquiatria que podemos denominar Psiquiatria do Vínculo, quer dizer, a psiquiatria das relações interpessoais. Uma psiquiatria concebida desse modo é uma psiquiatria dinâmica construída com os postulados da psicanálise. Historicamente, podemos dizer que o último passo da psicanálise foi o estudo das relações de objeto. Isso nos leva a tomar como material de trabalho e observação permanente a maneira particular pela

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qual cada indivíduo se relaciona com os outros, criando uma estrutura particular a cada caso e a cada momento, que chamamos vínculo. Vamos então estudar a patologia do vínculo. (PICHON-RIVIÈRE, 2007, p.2).

Em função do seu referencial teórico o autor vai discorrer sobre as

alterações do vínculo focalizando seu estudo no vínculo patológico classificando-o em:

paranoico, depressivo, obsessivo, hipocondríaco, histérico, etc. Ao final, Pichòn-

Rivière se pergunta o que seria o vínculo normal. Para que possamos compreendê-

lo, diz ele, é preciso analisar as principais características das relações de objeto: o

objeto diferenciado e o indiferenciado. Com isso, parte das relações de dependência

e de independência. Na relação adulta normal, o pressuposto é que de que a relação

de objeto esteja diferenciada, isto é, tanto o sujeito quanto o objeto faz uma eleição

livre de objeto.

Aprofundando a reflexão, o autor menciona os extremos desta relação à

máxima não-diferenciação (está referindo a relação humana mãe-bebê em seus

primórdios) e sua progressiva diferenciação, em que sujeito e objeto não estão mais

confundidos, e sim, diferenciados. Então, finalmente, o autor pergunta: de que modo

se estabelecem vínculos entre objetos totalmente diferenciados? Ele mesmo responde dizendo:

“É provável que não seja possível defini-lo, porque tais vínculos não existem e isso nos leva ao

paradoxo de que o sujeito mais maduro alcançaria uma diferenciação total em relação aos outros

objetos; por conseguinte, criar-se-ia para ele uma situação de distanciamento que nós, do ponto de

vista de nossa posição não-madura, poderíamos qualificar de indiferença. (PICHON-

RIVIÈRE, 2007, p.15).

Um ponto interessante é pensar a distancia que tomou o conceito de

vínculo usado no campo da Psiquiatria por Pichòn-Rivière, cujo núcleo de

significado é a patologia do vínculo em sua expressão paranoica, histérica, obsessiva

etc, e o seu uso no campo da saúde coletiva nas publicações que se referenciam no

autor, direta e indiretamente, e traz o afeto como núcleo de significado. Um recorte

é feito de um campo de saber a outro sem uma compreensão mais precisa do

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contexto do qual emerge as ideias do autor argentino. Isso, por vezes, desfigura o

conceito e compromete o estudo.

Considero de fundamental importância não perder de vista a relevância de

um referencial teórico para construção de conceituações, ou mesmo proposição de

uso de conceitos quando se transpõe de um campo a outro. Dependendo do

referencial as conceituações nos levam para determinado rumo. Se o referencial é o

pensamento de Foucault as categorias analíticas serão bem diferentes daquelas cujo

referencial é a Psicanálise. É necessário, pois um posicionamento ético e uma

clareza do lugar a partir do qual se constrói uma posição teórica e epistemológica.

1.3.2. Dimensão Metodológica.

Bosi (2011) quando traça um panorama geral referindo-se ao enfoque

qualitativo no campo da Saúde Coletiva destaca os desafios que precisam ser

enfrentados. Ela delineia instigantes reflexões entre os planos epistêmico, ético e

operativo em suas interrelações com o estatuto cientifico deste enfoque de

pesquisa. A autora ressalta três problemas advindos de posturas que se estendem

entre a confusão e o reducionismo e que se relacionam com o emprego dos

conceitos, o uso indiscriminado de termos, e o debate ou embate entre enfoques

qualitativo e quantitativo.

Transladando essas proposições para o exercício aqui desenvolvido é

importante relembrar que a dimensão metodológica abordada neste tópico é outra

visão a respeito dos mesmos estudos que referi na dimensão semântica. O que

acrescento aqui é outro ponto de vista para enriquecer o olhar. Focalizo doravante

o desenho da pesquisa em sua articulação teórico-metodológica, bem como, as

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técnicas e instrumentos utilizados nas pesquisas que abordam o vínculo direta e

indiretamente.

Um dos aspectos chaves do SUS é pensar práticas de atenção à saúde que

se embasem nos princípios da universalidade, integralidade e equidade. Um

primeiro aspecto que me chama atenção é relacionado à coerência com o plano

epistêmico, e diz respeito a uma fragmentação do olhar. As pesquisas que abordam ou

tangenciam o vínculo, tendo-o como foco, ou como parte do amálgama semântico

referido anteriormente, com raras exceções, integram o escopo de investigações

sobre o princípio da Integralidade do SUS, e tem como preocupação central avaliar

em que medida os serviços se caracterizam em termos da integralidade da atenção.

A fragmentação do olhar que me refiro especificamente no tocante as

investigações que tem o vínculo como descritor se relaciona com uma busca de

investigar, em termos avaliativos, a Integralidade. Além de uma compartimentação

que isola um dos princípios do SUS, há outra que isola o tipo de serviço oferecido.

O que em geral se busca com essas pesquisas é investigar se os serviços oferecidos

da atenção à saúde, como por exemplo, os cuidados voltados para a gestante, ou

aos hipertensos, ou a pessoas com tuberculose, ou a quaisquer outros, podem ser

ou não, caracterizados como serviços integrais.

As pesquisas elencadas no Quadro 3, no Apêndice, ao final, as pesquisas

identificadas, em sua maioria, tem desenhos que se propõem a avaliar os diversos

serviços da atenção básica em termos de integralidade da atenção. São artigos

publicados sobre gestantes que focalizam o pré-natal, avaliando-o em termos de

integralidade. Outros investigam a integralidade da atenção relacionada,

especificamente, ao acompanhamento de pessoas com tuberculose, sobretudo

investigando a adesão ao tratamento. Outras ainda se voltam para os serviços de

cuidados com a diabetes ou com a hipertensão. Uma produção mais expressiva

aborda a saúde mental, também em termos de integralidade da atenção, relacionada

aos doentes mentais. Uma produção menos expressiva, está ligada à Saúde Bucal,

Saúde do Trabalhador, Saúde do Adolescente, Saúde da Criança, este último

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focaliza, exclusivamente, ações de vacinas ou as doenças prevalentes na infância.

Todas estas pesquisas tangenciam a questão do vínculo compreendendo-o como

algo importante seja para adesão às terapêuticas, para as práticas de prevenção e de

promoção de saúde relacionadas aos serviços que mencionei, em separado, cabe

enfatizar.

Há ainda as pesquisas que avaliam os serviços de atenção básica após a

implantação do PSF. Estas, agrupei no Quadro 4, conforme mostra o Apêndice ao

final. São estudos que fazem um recorte de contexto focalizando o período após a

implantação do PSF. Também focalizam isoladamente o princípio da integralidade

do SUS buscando investigar a distancia que tais práticas se encontram do que

preconiza a integralidade da atenção a saúde de acordo com as políticas. Todos

também tangenciam o vínculo e apresenta-o como algo que favorece e condiciona a

qualidade da atenção à saúde em termos de integralidade no âmbito da atenção

básica.

Os desenhos metodológicos das pesquisas que intencionam investigar a

integralidade da atenção à saúde, geralmente, isolam um tipo de serviço oferecido a

um determinado público, quando não vão mais longe ainda, fragmentando o olhar

e focando apenas um determinado aspecto do serviço, como, por exemplo, a

adesão ao tratamento (quase sempre tuberculose), ou o pré-natal, quando aborda a

saúde da mulher. Em geral no esboço do desenho da pesquisa não há nenhuma

justificativa ou análise que problematize os recortes feitos relacionando com o

significado da palavra integralidade, escopo de suas investigações.

Uma pergunta salta em função destas reflexões: a integralidade da atenção à

saúde pode existir no serviço de acompanhamento à gestante, por exemplo, e

deixar de existir quando trata do acompanhamento de pessoas com tuberculose, em

se tratando do mesmo contexto e dos mesmos atores? Poderíamos responder

rapidamente que não! Porém, não seria tão simples assim, posto que a integralidade

da atenção pode ser compreendida, tanto como uma atitude por parte do profissional,

como também uma marca dos serviços, como defende Mattos (2009). Esse serviço

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pode ser organizado de uma determinada forma e efetivar-se de forma diferente, a

depender do alvo. Pode se efetivar de uma forma quando trata do

acompanhamento das pessoas com doenças crônicas, e de outra ainda, quando se

volta para o acompanhamento das gestantes, ou de adolescentes, ou do doente

mental, etc. Isso vai interferir na efetivação da integralidade como marca e/ou atitude

nos serviços.

Se a integralidade tal como define Mattos (2009) enquanto marca do serviço

e/ou atitude dos profissionais, como construir desenhos de pesquisas que nos

permitam ver um e outro? A que se voltam os desenhos de pesquisa em sua

investigação, para integralidade como marca do serviço ou como atitude dos

profissionais? O que se avalia realmente em termos de integralidade da atenção, seja

como marca do serviço ou atitude, quando se focaliza apenas um determinado

aspecto de um dado serviço na atenção básica? Isso é importante porque tais

estudos partem do conceito de integralidade apresentado por Mattos (2009).

Por outro lado, levando em conta a coerência com o plano epistêmico, é

importante refletir em que medida realmente se avalia e/ou analisa a resolutividade

ou efetividade da integralidade da atenção à saúde no âmbito da atenção básica com

uma visão fragmentada, compartimentada e disjuntiva. Importante esclarecer que

um recorte é relevante, mas é preciso ter clareza se o foco pretendido é fruto de um

recorte que aponte suas potencialidades e limites para os resultados, ou resulta de

uma visão compartimentada a priori, que isola o fenômeno e empobrece sua

compreensão.

Em síntese, a partir da constatação que a maioria dos estudos que tratam da

integralidade da atenção à saúde no âmbito da atenção básica e que tangenciam, ou

mesmo, focam o vínculo, raramente o conceituam, e quando o fazem, não

delineiam com clareza o que justifica sua opção teórico-metodológica em sua

coerência com o desenho proposto e com as técnicas de que fazem uso.

Tampouco, esclarecem ou depuram com clareza o porquê ou as razões em função

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das quais o vínculo aparece, ou se articula, ou se insere no escopo da integralidade

da atenção à saúde.

Há uma complexidade inerente quando se intenciona investigar os

fenômenos da realidade em sua interface subjetiva que se apresenta como um

grande desafio para os desenhos de pesquisas com enfoque qualitativo. Como

destaca Bosi (2012) este caráter complexo dos objetos de que se ocupa este

enfoque de pesquisa nos convida à flexibilidade, não apenas reconhecendo uma

necessária interdisciplinaridade, mas uma inter(trans)culturalidade. A autora ressalta

esta transculturalidade na pretensão de operar um deslocamento nesta discussão do âmbito

científico estrito ampliando-a para outras arenas sociais. Nestas são produzidas, se não

conhecimentos disciplinados pela racionalidade científica moderna, saberes „nativos‟ que precisam

formar alianças, religarem-se a outros, processo de importância primordial para o campo da Saúde

Coletiva. (BOSI, 2012, p.7).

De fato, há pouca permeabilidade no quadro conceitual da saúde coletiva.

Na análise das pesquisas sob o ponto de vista metodológico percebo que falta um

diálogo mais abrangente com outras áreas de saber das ciências humanas. A

psicologia, por exemplo, tem uma ampla literatura sobre vínculo, grupos, relações

interpessoais que podem subsidiar as investigações no âmbito da Saúde Coletiva.

Exemplo desse escasso diálogo, como vimos, está na referência à Teoria do

Vínculo de Pichon-Rivière, cujo conceito é referenciado por citações de citações de

citações, correndo o risco de subsumir o conceito em seu constructo original. As

pesquisas não apresentam uma justificativa, ou mesmo, uma indagação sobre as

escolhas conceituais que fazem, situando-as em seu contexto de origem, sua

finalidade e proposições, e em que medida, ou que aspectos, se relacionam com o

objeto que investigam.

Ainda como reflexões pertinentes ao ponto de vista metodológico no que

concerne aos métodos e instrumentos de investigações, as pesquisas citadas com

enfoque qualitativo, apontam como instrumentos utilizados grupos focais e/ou

entrevistas. Raramente saem dessas clássicas técnicas para fazer uso de observação

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em campo, observação participante e/ou diário de campo, para citar as mais

comuns em ciências humanas. Raramente incorporam contribuições de outras áreas

de saber fazendo uso das artes, literatura, fotografia, etc.

Fica evidente que, apenas por meio do emprego dos instrumentos clássicos,

que se obtêm as informações das pesquisas. Somente a partir do discurso e do

recorte de falas é que se analisam as percepções, ou as (in)satisfações e/ou

representações sociais, relacionadas ao fenômeno em foco. Os resultados das

análises, geralmente, expressam constatações, presenças ou ausências de determinado

fenômeno, sobre a resolutividade deste ou daquele serviço; percepções, sejam por

parte dos profissionais, ou das pessoas que usam os serviços, bem como, satisfações e

insatisfações relativas à oferta de algum serviço.

As análises das falas (“achados”) são feitas no sentido de revelar e/ou

desvelar isso ou aquilo do fenômeno investigado. Porém, os resultados se

expressam sem ir muito além das constatações. Há um pressuposto de que a fala

sempre conota algo que existe concretamente na realidade, e raramente refere e/ou

articula o sistema de significados que o contexto daquela linguagem pode

representar. Os resultados correm o risco de supor que as falas expressas na

linguagem dos sujeitos conotam alguma suposta “verdade” encontrada ou achada

sobre o fenômeno que se investiga. As falas, geralmente, são tomadas como um

dado empírico do real, um suposto dado objetivo que revela, denota, confirma ou

desconfirma isso ou aquilo.

É preciso levar em conta também o alcance e limite dos instrumentos de

pesquisa como uma entrevista, por exemplo. Em que pese toda sua contribuição

inequívoca para a pesquisa, uma entrevista guarda o pressuposto de que o sujeito

entrevistado tenha um pensamento elaborado verbalmente sobre o que se fala.

Sabemos que isso nem sempre é possível. É preciso considerar os limites de

quaisquer instrumentos para ter clareza em que medida esse instrumento contribui

para elucidação do estudo em questão.

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~ 79 ~

Em geral, desconsidera-se a linguagem em seus aspectos antropológicos,

culturais e psicológicos, bem como a sua relação com a realidade que se investiga.

Geralmente, o discurso dos profissionais da saúde, oriundo das entrevistas e/ou

grupos focais, refere o que diz a política em termos do que deveria ser isso ou

aquilo em termos normativos. As investigações raramente confrontam as falas com

observações em campo. Ocorre que, no geral, as falas são consideradas um dado

empírico. Não fica claro em que medida a linguagem é considerada e analisada

como uma mediação, um sistema de significação próprio, ou um sistema abstrato

cujo significado refletiria realidade tal qual é. Em função disto, as constatações

e/ou conclusões daí resultantes são conclusões de pesquisa que apresentam

limitações nem sempre expressas.

A constituição da Linguagem para espécie humana é requisito de

humanização. Somos seres inscritos na linguagem, seres falantes, mais que

mediação, somos seres feitos de histórias. Em termos da atividade humana de

produção cientifica não podemos desconsiderar o viés antropológico, sociológico,

cultural e psicológico que isso acarreta para a produção das ciências, sobretudo

quando se trata de pesquisas qualitativas.

Os resultados de uma pesquisa deve se articular ao arcabouço teórico

conceitual ao qual se filia. Tal articulação é que direciona os resultados. Uma

pergunta de pesquisa tem pressupostos teórico-conceituais que devem ser

explicitados, porque é justamente em função deles que os resultados se delineiam

quando se analisa as falas dos sujeitos. É a pergunta e seu referencial teórico

conceitual que permite visualizar nos discursos os significados que fazem sentido

como respostas para aquilo que a investigação intenciona desvelar.

Os desafios apresentados por Bosi (2012) em pesquisa qualitativa no campo

da Saúde Coletiva chamando a atenção para uma necessária coerência e

consistência nos níveis ontológico, metodológico e ético precisam urgentemente

ser enfrentados. Como ressalta a autora o que se processa nas pesquisas qualitativas

pertence ao plano das construções intersubjetivas, imersas em relações sociais, e não a mera

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aplicação de técnicas. Aceitando-se tal concepção impõe-se considerar a dimensão ético-política nas

decisões de pesquisa, entendendo-as como critério de qualidade sob a ótica aqui defendida. (BOSI,

2012, p. 8).

1.3.3. Dimensão Epistemológica.

Um olhar na dimensão epistemológica inclui questionamentos que

perturbam, isto é, provocam tanto as nossas formas de pensar o mundo, como

nossas crenças a respeito. Envolve reflexões sobre em que acreditamos quando

afirmamos algo sobre a natureza da realidade. Podemos nos fiar naquilo que nossos

sentidos nos dizem sobre a natureza das coisas? O que é a natureza da realidade?

Como é possível conhecer o que conhecemos? Qual a natureza do conhecimento?

Talvez por essa característica perturbadora a tomada de posição em relação a tais

perguntas, ocupe, por vezes, o lugar do silêncio ou da ausência em publicações de

pesquisas.

Este lugar de silêncio e ausência, no entanto, se revela, uma vez que não há

construtos teóricos conceituais que se firmam no espaço silenciado de tais

questões, que por vezes, podem passar despercebido de seus autores, mas estão

pressupostos em suas crenças em termos ontológicos e epistemológicos do seu

fazer científico, mesmo que silenciosamente ou silenciadamente. Digo

silenciadamente porque tais crenças pertencem às ideias que constroem um

paradigma de compreensão de mundo. Em se tratando de ciências há um

paradigma hegemônico que é pressuposto, e dispensa(ria) um discurso a respeito.

Contudo, como vivemos um momento de crise de paradigmas, tais questões

requerem posicionamentos. Há campos de saber em disputas na seara das ciências,

sobretudo, no Campo da Saúde Coletiva.

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Retomo as pesquisas analisadas para acrescentar esta dimensão de olhar

com o crivo ontoepistemológico. A análise que faço aqui não diz respeito, claro a

uma epistemologia específica para pesquisas com o tema vínculo, mas aborda um

análise crítica do lugar da epistemologia nas pesquisas com enfoque qualitativo que

trazem a subjetividade como aspecto crucial na construção do conhecimento.

A maioria das pesquisas publicadas nas bases de dados onde investiguei

silenciam sobre o paradigma ao qual se filia, ou o referenciam de forma indireta

quando adota construtos teóricos de outros autores para fundamentar seus estudos.

Há um padrão que consiste basicamente em introdução - espaço dedicado a

abordagem ao problema e sua justificativa - objetivo, metodologia adotada, seguida

da apresentação de resultados e conclusões.

Na introdução, geralmente, apresenta-se o contexto da investigação e os

argumentos que justificam a pesquisa, seja com dados epidemiológicos ou

normatizações de alguma Política de Saúde, bem como, também, sintetizam os

conceitos chave que embasam a discussão dos resultados. Como comentei, os

resultados e discussões são sempre referentes a recortes de falas oriundas de um

discurso, obtidos por meio de entrevistas e/ou grupos focais. Raramente há alguma

referência à Teoria ou Escola de pensamento ao qual se filiam para a análise das

falas. Esta análise, no geral, é feita fazendo uma articulação com os conceitos

apresentados na introdução. Desta forma, a análise dos resultados responde, em

geral, questões a respeito de como tal ou tal política tem se efetivado no âmbito dos

serviços da atenção básica, ou de que forma este ou aquele conceito está presente

em determinado serviço, podendo ser qualificado ou enquadrado, por exemplo,

como integral, ou humanizado no sentido do “acolhimento-vínculo-responsabilização-

acesso-longitudinalidade-autonomia”, tal como preconiza esta ou aquela política e ou

construto teórico que a fundamenta.

Há raras exceções a esse padrão. Encontrei dois estudos que explicitaram

seus construtos teórico-conceituais, um já comentado, está amparado no pensar

crítico social de Foucault. A título de ilustração sobre esta análise comentamos

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agora outro estudo (VIEGAS, S. M. F. at al, 2010) que adota o enfoque qualitativo

e declara adotar os constructos conceituais da sociologia compreensiva, destacando

o pensamento do sociólogo Michel Maffesoli. Em seus resultados, destacamos a

seguinte assertiva:

(...) o cuidado como fazer cotidiano‟ e „acolhimento, vínculo e acesso‟ foram temas incorporados pelos profissionais no desenvolvimento do seu trabalho. (...) o processo de produção do cuidado deve ser pensado em seu microespaço, ressaltando-se o acolhimento, o estabelecimento de vínculo e a responsabilização no sentido de se garantir uma rede de cuidados pertinente e acessível àqueles que necessitem transitar por ela. É preciso que se eliminem as fragmentações presentes tanto na forma de organização dos serviços de saúde quanto nas práticas cotidianas dos profissionais, para se oferecer uma assistência integral, resolutiva e para se humanizarem essas práticas, visando sempre à qualidade de vida da população e à saúde enquanto direito de cidadania. (VIEGAS, at al, 2010, p. 769, grifos nossos).

A questão que se coloca em termos ontológicos e epistemológicos a

respeito desta afirmação é pensar o que significa esta incorporação de que fala os

autores. Do que se fala quando se afirma que tal ou tal coisa foi incorporada no

cotidiano de trabalho do SUS? Incorporar um tema significa incluir no discurso ou

nas práticas? Incluir no discurso garante sua efetividade em termos de ações

cotidianas? A leitura do texto deixa margem para dúvidas a esse respeito. Esta

incorporação aludida está, todavia, provavelmente, presente no discurso dos

profissionais em função da sua fala, captada pelo uso da entrevista, técnica utilizada

pela pesquisa. A questão que se apresenta aqui é sobre a possibilidade de se analisar

mudanças no cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde somente em função

do discurso, uma vez que a metodologia utilizada recorreu à entrevista.

Certamente acolhimento-vínculo-acesso são temas presentes no discurso dos

profissionais que atuam no âmbito do SUS, sobretudo na atenção básica, em

função mesmo das políticas que preconizam o SUS. Mas até que ponto é possível

afirmar que acolhimento, vínculo e acesso sejam incorporados no cotidiano, se se

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tratam de três constructos teóricos distintos, mas que estão colocados juntos,

indistintamente? De que forma um pesquisador deve propor “observar” de maneira

que possa identificar no cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde, algo que

expresse ou denote, por exemplo, o vínculo destes com os usuários? O discurso de

tais profissionais seria suficiente? Identificar a presença de tais palavras no discurso

já é algo importante, é preciso reconhecer, mesmo sendo dito de forma indistinta

com outras palavras. Entretanto, a palavra incorporar tem várias conotações, cuja

precisão de significado deve ser exposta com mais clareza e fundamentação

epistemológica.

Esse tipo de compreensão da realidade que denota o plano epistemológico

que fundamenta o artigo em questão não difere dos demais. Os artigos que li, no

geral, esboçam um modo de apreensão da realidade com um viés positivista, apesar

de, alguns, recorrerem a constructos teóricos da sociologia crítica.

Recordo aqui observações feitas em sala de aula pelo professor Eduardo

Diatahy5 em seus comentários sobre o Positivismo quando advertiu que a tradição

positivista do século XIX tem um peso enorme em nossas cabeças. Concordo com o

professor, e compreendo que podemos até citar teorias, e assumirmos uma

ontologia sobre o real, mas o que realmente acreditamos como visão de mundo é

aquilo que traduz o lugar epistemológico em que me firmo para perceber e dizer

sobre o real. Este lugar não pode ser retirado ou trocado como quem troca de

roupas, mas é parte de nós como humanos, como nossas demais crenças o são, e

como tal, faz parte dos nossos esquemas cognitivos de apreensão do mundo de que

somos parte.

Assim, como pesquisadores, acreditar que o real existe fora e independente

de nós, faz parte de um modo positivista de pensar o mundo em que a abstração

formal do pensamento, por vezes, se confunde com a própria realidade, e o que

5 Professor titular da Disciplina: Novas perspectivas em Ciências Humanas, ministrada pelo professor Eduardo Bezerra Diatahy, ofertada pelo Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Anotações pessoais de sala de aula.

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não pode ser captado por meio da empiria, passa a não existir como verdade para

esse paradigma de ciência.

Denise Gastaldo (2012), pesquisadora da Universidade de Toronto,

fazendo uma análise sobre a pesquisa qualitativa no tocante ao mundo anglo-saxão

ressalta que, apesar do domínio da vertente pós-positivista nas ciências da saúde, a

pesquisa qualitativa vem ganhando espaço. O desafio que a autora apresenta para o

contexto anglo-saxão é o que ela chama de colonização dos métodos quantitativos pela

abordagem pós-positivista. Isso ocorre, esclarece a autora, porque:

Ao entender a relevância da pesquisa qualitativa para explorar e explicar fenômenos sociais em saúde, muitos investigadores quantitativos passaram a utilizá-la como ferramenta metodológica desvinculada das suas origens teóricas (crítico-social ou interpretativista). Esse fenômeno resulta em estudos 'mixed methods', nos quais o qualitativo é descritivo, em geral pouco sofisticado analiticamente, e subordinado a corroborar resultados quantitativos. Outros estudos - o que eu denomino pesquisa qualitativa pós-positivista - são integralmente qualitativos, mas não se vinculam a nenhuma teoria para explicar os processos ou os padrões que constituem o fenômeno do estudo. Em princípio na América do Norte, e agora em muitos países, tais estudos são apresentados com frequência como 'grounded theory' (teoria fundamentada). (GASTALDO, 2012, p. 592-593).

Creio que esta colonização que refere Gastaldo é também uma realidade

presente no contexto latino-americano em muitos aspectos. Digo isso porque a

impressão que resulta após a leitura atenta das pesquisas, não difere dos pontos

levantados pela autora. No geral, as pesquisas nos passaram a ideia de que há uma

busca por parte dos pesquisadores em constatar se a realidade se encaixa ou não, ou

a que distancia esta(ria) o real de uma ideia normativa ou construto teórico aos

quais deveriam ou poderiam se enquadrar. A análise dos resultados não vai além da

descrição, e a pergunta que sempre me faço é o que fazer com tais constatações.

Não compreendemos a produção do conhecimento sem o pressuposto ético de

transformação da realidade. Neste aspecto é preciso refletir até que ponto a

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realidade pode ser transformada mediante a elaboração de leis ou teorias que,

automaticamente, as pessoas passa(riam) a seguir pelo simples fato delas existirem

como normas ou diretrizes.

As pesquisas que se propõem a avaliar se esta ou aquela proposição,

inserida nas políticas, ou em algum construto teórico, se efetiva ou não, se

incorpora ou não, no âmbito dos serviços, não apresentam questionamentos sobre

o que tem sido feito para que tais políticas sejam incorporadas. No meu

entendimento penso ser necessário saber, ou mesmo, se perguntar pelo o que tem

sido feito tem alguma validade no sentido de incorporação desta ou daquela

premissa ou princípio normativo no âmbito dos serviços de saúde. Um exemplo

para clarear este pensamento seria uma pergunta do tipo: a promulgação da PNAB

ou da PNH em si tem alguma força de transformação da realidade?

Talvez seja importante refletir sobre o entremeio. O que se tem feito para

incorporar esta ou aquela premissa princípio, norma, teoria? Penso que isso seja

algo relevante e válido como um passo anterior para creditar com mais rigor as

pesquisas avaliativas com objetivos similares. Ocorre que uma pergunta desta

natureza não cabe quando se assume posturas epistemológicas que partem do

pensamento formal abstrato para pensar a realidade. É comum no plano

epistemológico, posicionamentos frente ao real que pressupõem uma relação linear

entre teoria e prática, em que primeiro elaboramos as teorias, para depois as

colocamos em prática, seguindo um curso linear e abstrato, e que ainda

desconsidera a subjetividade humana presente, encarando-a como viés ao qual se

credita as falhas do processo.

Muito embora possamos reconhecer o papel histórico fundamental que o

Positivismo assumiu em libertar a consciência humana da religião, e buscar a

liberdade da razão, embora ainda, reconhecendo que o modo de apreensão da

realidade oriundo deste paradigma teve e tem, inegavelmente, relevante

contribuição para a construção das ciências e seus resultados, com um valor

inestimável no campo da saúde, é preciso reconhecer também, seu alcance e

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limitações em face às críticas que lhe pesam como paradigma científico no atual

contexto.

Não tenho aqui a pretensão de trazer respostas para tais indagações. Tal

assunto, contudo, não desmerece atenção quando se trata do ponto de vista

epistemológico. Para comentar recorro as Notas de Aula6 de uma das disciplinas que

cursei durante as aulas do doutorado, chamada Novas Perspectivas em Ciências

Humanas, ministrada pelo professor Diatahy Bezerra, na pós-graduação da

Sociologia, da Universidade Federal do Ceará.

Este curso foi bastante válido em termos de proposta de estudo e

bibliografia para situar a crise da Sociologia e das Ciências Humanas em geral.

Trabalhamos em sala de aula com um conjunto de Notas de Aula escritas pelo

próprio professor que contribuíram para enriquecer minha compreensão no campo

da sociologia. Transcrevo uma passagem do texto chamado “Constatação da „Crise‟:

dissipação da Poeira”, em que o professor reflete sobre paradigma:

Um paradigma, na sua origem lingüística, significa um modelo ou padrão de flexão do nome, do verbo ou de outra parte flexível da fala. Mais de quarenta anos depois da publicação da obra de Thomas S. KUHN [The Structure of Scientific Revolutions, 1962], que difundiu esse termo no discurso da comunidade científica, ele padece de uma utilização cada vez mais confusa e superficial. Mas o próprio Kuhn, ao longo do seu livro, é hesitante em seu emprego e conceituação. Margaret MASTERMAN, que analisou os múltiplos significados que Kuhn atribui ao termo „paradigma‟, identifica nele pelos menos 21 acepções [«The nature of paradigm», in LAKATOS and MUSGRAVE (ed.): Criticism and the Growth of Knowledge]. Como quer que seja, um paradigma é um misto de pressupostos filosóficos, de modelos teóricos, de conceitos-chave, de resultados prestigiosos de pesquisas que compõem um universo habitual de pensamento para pesquisadores num dado

6 Em suas notas de aula o professor escreve um rodapé esclarecendo o seguinte: “Toda a exposição dos 3 primeiros

tópicos ou capítulos desta IIª Parte destas minhas anotações [pp. 8-21] seguiu quase literalmente o texto de Richard BROWN [A poetic for sociology: a logic discovery for the human sciences.]. De meu, só resta o esforço de traduzir, adaptar, resumir e ordenar, e, às vezes, acrescentar um ou outro comentário pessoal sobre algum pormenor. Seguirei o mesmo procedimento no capítulo seguinte sobre os pontos de vista como distanciamento, como instrumento e como método de reflexão dialética nas Ciências Sociais.”

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momento do desenvolvimento de uma área de conhecimento ou disciplina. Numa palavra, um paradigma constitui uma Weltanschauung que orienta a atividade da comunidade científica num período de sua história.

Diante das críticas, Kuhn reformulou sua concepção, desdobrando „paradigma‟ em duas noções: exemplares, que são soluções acolhidas como “paradigmáticas” por uma comunidade, em certo momento; e matrizes reguladoras, que são elementos partilhados pelos integrantes da comunidade e que dão caráter “não-problemático” à comunicação entre cientistas (entre elas: generalizações simbólicas, adesão a certas crenças, aceitação de certos valores, receptividade em face de certos exemplares). Se historicamente constata-se a existência de momentos “revolucionários” no desenvolvimento da ciência, isso supõe os momentos de ciência normal, que ocorre quando a comunidade adota uma matriz reguladora: o treinamento por meio de determinados livros-texto, mediante a pesquisa supervisionada, por meio de “normas” de publicação de artigos, etc., proporciona exemplares a cada membro da comunidade, os quais por sua vez condicionam o pesquisador, fornecendo-lhe a imagem do que seria “boa ciência”. A habilidade que o pesquisador adquire ao interpretar e aplicar teorias leva-o a acolher uma concepção do mundo, uma Weltanschauung, que constitui a matriz reguladora (do paradigma). (DIATAHY, E. B. Notas de Aula).

A configuração histórica da Saúde Coletiva como um campo de saber

requer que se aprofunde o debate sobre paradigmas, exigindo, por isso, um

posicionamento epistemológico por parte do pesquisador. Como ressalta o

professor, exige uma habilidade para interpretar e aplicar teorias de forma coerente

com uma concepção de mundo que se constitua como uma matriz reguladora.

Com efeito, estas considerações em torno da noção de paradigma aludem ao

desafio de pesquisar no campo da Saúde Coletiva, uma vez que os seus três núcleos

de saber - Epidemiologia, Ciências Humanas e Sociais em Saúde e as Políticas da

Planificação e Gestão de Sistemas de saúde - demarcam, cada um, uma Weltanschauung

própria.

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Compreendo que fazer ciência hoje exige uma ética em dupla expressão.

Primeiro não é possível prescindir de uma honestidade intelectual e um profundo

respeito pela construção do saber que se expressa numa postura assumida e

expressa epistemologicamente e ontologicamente na relação do pesquisador e seu

fenômeno de investigação. O contexto atual da ciência em que o modelo cartesiano

não figura como referência hegemônica na construção do conhecimento, convoca

o pesquisador a situar-se epistemológica e ontologicamente.

Em síntese, apesar do necessário intercruzamento dos três aspectos

analisados, como inerentes ao fazer cientifico, o que parece ocorrer na prática, é um

paralelismo entre eles. O plano epistemológico raramente é mencionado. O

semântico carece de densidade e clareza. E o metodológico não logra interligar os

demais na proposição de um desenho de pesquisa que se aproxime do fenômeno

investigado com uma linguagem que faça dialogar os três planos.

Após esta análise uma pergunta é inevitável. É possível o vínculo se

constituir como objeto de pesquisa? Abordo no capítulo seguinte as questões que

se desdobram desta pergunta, apresentando, por conseguinte, a minha posição

epistemológica como pesquisadora deste fenômeno.

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1.4. O Vínculo como fenômeno de investigação desta pesquisa

UM CONTO PARA COMEÇAR... Os cinco Sábios do Reino de *, de volta depois de larga permanência na República de **, estavam quietos e temerosos ante sua soberana a Rainha: estavam a informar a Rainha sobre a Coisa Rara que existe naquela república. “Dize-nos, ó sábio Prótos, que aspecto tem a Coisa Rara?” perguntou a Rainha ao sábio mais ancião. “A Coisa Rara a que chamam Ciência, ó Majestade, pode registrar e comprimir todos os fatos. Na realidade, a Ciência é um enorme Registro.” Assim falou Prótos. “Cortem-lhe a cabeça!”, gritou a Rainha roxa de ira. “Como podemos crer que a Coisa Rara seja uma máquina sem pensamento, quando até Nós temos idéias?” Após o que dirigiu-se a Deúteros, o mais velho dos sábios que restavam: “Dize-nos, ó sábio Deúteros: que aspecto tem a Coisa Rara?” “A Coisa Rara, Majestade, não é um registrador passivo, mas sim um atarefado moinho de informação: absorve toneladas de dados brutos e os elabora e apresenta ordenados. Minha decisão é que a Ciência é uma

enorme Calculadora.” Assim falou Deúteros. “Cortem-lhe a cabeça!”, gritou a Rainha verde de ira. “Como podemos crer que a Coisa Rara seja um autômato se até Nós temos caprichos e fraquezas?” Após o que dirigiu-se a Trítos, o de meia idade: “Dize-nos, ó sábio Trítos: que aspecto tem a Coisa Rara?” “Na há tal Coisa Rara, Majestade. A ciência é um jogo esotérico. Os que o jogam estabelecem suas regras, e as modificam de vez em quando de um modo misterioso. Ninguém sabe por que jogam nem com que fim. Admitamos, pois, que a Ciência, como a linguagem, é um Jogo.” Assim falou Trítos. “Cortem-lhe a cabeça!”, gritou a Rainha amarela de ira. “Como podemos crer que a Coisa Rara não leva as coisas a sério, quando até Nós somo capazes de fazê-lo?” Após o que dirigiu-se a Tétartos, sábio maduro: “Dize-nos, ó sábio Tétartos, que aspecto tem a Coisa Rara?.” “A Coisa Rara, ó Majestade, é um homem que medita e jejua. Tem visões, tenta provar que são erradas e não se orgulha quando não o consegue. Creio que a Ciência – e repto a todos que me refutem – é um Visionário Flagelante.” Assim falou Tétartos. “Cortem-lhe a cabeça!”, gritou a Rainha roxa de ira. “Este informe é mais sutil que os outros, porém como podemos crer que a Coisa Rara não se preocupa com justificação ou gratificação quando até Nós podemos fazê-lo?” Após o que dirigiu-se a Pêntos, o jovem sábio. Todavia Pêntos, temendo por sua vida, já havia fugido. Fugiu sem parar por dias e noites, até que cruzou a fronteira do Reino de * e chegou ao meu escritório, no qual tem estado a trabalhar desde então. Pêntos terminou de escrever seu volumoso Informe sobre a Coisa Rara, sua Anatomia, sua Fisiologia e seu Comportamento, que eu traduzi para o inglês. Ainda acossado por suas dolorosas recordações dos rudes costumes vigentes no Reino de *, Pêntos deseja permanecer no anonimato. Teme, talvez com razão, que esta exposição acerca da Coisa Rara será pouco apreciada, visto que as pessoas preferem simplificados credos em preto e branco, nos quais possam crer com certeza. A impressão de Pêntos sobre a Coisa Rara é, de fato, muito mais complicada do que os modelos do Registro, do Computador, do Jogo ou do Visionário Flagelante, ainda que reconheça sua dívida para com seus quatro desgraçados e defuntos colegas. Tudo isso explicará ao leitor a razão pela qual o quinto informe sobre a Coisa Rara aparece com um título diferente e sob o nome de outro autor. Esperemos que este expediente salve Pêntos da ira dos zelosos seguidores de

credos simplificados.7

7 Nota acrescentada nas provas: Os quatro Sábios do Reino de * continuam vivos. Prótos e Deúteros sobreviveram porque o carrasco não achou cabeça neles para cortar. Trítos, porque após a execução conseguiu que lhe crescesse um novo crânio por convenção. Tétartos, porque inventou para si um cérebro novo enquanto lhe refutaram o que possuía. [Conto extraído de BUNGE, Mario: La Investigación Científica: su estrategia y su filosofía. Barcelona: Ariel, 1969, pp. 13-14.].

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A leitura deste conto marcou a primeira aula da disciplina “Novas

perspectivas em Ciências Humanas”, ministrada pelo professor Diatahy, do

Departamento de Sociologia da UFC, e o escolhi para iniciar este capítulo. A

Ciência, “Coisa Rara”, assunto a ocupar as mentes com conjecturas que tentam

defini-la de uma vez por todas é um assunto que perpassa a linha do tempo

humano. E ela, a Coisa Rara, sempre escapa. O tempo é seu aliado, e faz dela nova,

a cada passagem em que a humanidade se renova e se conserva, refazendo-se,

recriando-se.

Em certa passagem do tempo, os olhos dos que passavam o tempo

conjecturando sobre o conhecimento do mundo, depois de muito pensar sobre,

concluíram que faziam ciência, essa “coisa rara”. Houve um consenso entre os

privilegiados que participavam do debate sobre a ciência. A verdade, doravante, não

teria mais um caráter de revelação divina. A ciência seria a tarefa por excelência de

tudo registrar, catagolar, classificar, objetivar, para assim, se chegar à “Verdade”

sobre o que se estivesse buscando. Para obtê-la bastava obedecer a um método,

então, eis a Verdade. Tudo solidamente sustentado pela Razão, faculdade humana

superior.

Os privilegiados que faziam ciência, coisa muito rara, se diziam

Racionalistas. Porém, perguntas são formuladas, e algumas, abalam consensos. Será

que podemos confiar em nossa razão? Como chegamos ao conhecimento

verdadeiro? Todo conhecimento provém do objeto, ou seria o sujeito, que a partir

de uma capacidade inata pode chegar ao conhecimento acerca do objeto? Não

houve consenso! Porém, entre ambas as posições, havia algo em comum. Embora

eles preferissem ver somente suas diferenças, havia a crença comum na existência

de um mundo real, objetivo, em que o sujeito observador, observa o objeto e o

define. Postulavam um Realismo Metafísico equiparando a realidade à ideia que se

constrói do mundo.

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Todavia, perguntas inquietantes continuaram gerando dissenso. Talvez

possamos conhecer algo porque a nossa experiência dos sentidos codetermina

nossa visão de mundo. A razão humana opera dentro de categorias dadas a priori

de causa e efeito, espaço e tempo. Talvez nunca possamos saber o que são as coisas

em si, mas podemos saber como as coisas se mostram para nós. Restabelecia-se

assim a posse da verdade para quem sabe lidar com a coisa rara.

O tempo começou a dar voz a outras conjecturas. O conhecimento é

construído em nossa ação sobre o mundo, ou seja, quando agimos, nos

construimos ao construir o mundo, incluindo nossas capacidades cognitivas de

espaço, tempo, número. A gênese do conhecimento não provém nem das

estruturas de um sujeito conhecedor, e nem de um objeto que se apresenta ao

sujeito. A elaboração do conhecimento estaria na relação entre o sujeito

conhecedor e o objeto cognocente em função de sua ação no mundo.

E assim, o tempo mostrou que, a depender das perguntas inquietantes, a

coisa rara se redefine. A aliança entre ciência e tempo preserva-se. Mas, e se o que

vemos depende da estrutura do olho que temos? Novas perguntas inquietantes

põem o mundo em muitas perspectivas, e coloca verdades em perigo.

O fazer científico é uma atividade humana complexa. Além do

posicionamento epistemológico é preciso também uma postura ética. Durante as

agradáveis aulas do professor Diatahy, ele comentou o seguinte: O que institui um

saber é um ato de poder8. Para mim, esta assertiva instiga a pensar sobre a coisa rara

compreendendo que a produção da ciência não é separada da sociedade que a

produz. Como qualquer outro fazer humano, a ciência é perpassada pelo mundo

valorativo e histórico dos humanos. Somos filhos de um tempo histórico que

molda nossa percepção do universo e da vida cotidiana.

Durante o curso, em outro interessante artigo e com o sugestivo título

Nietzsche, ou como se livrar do „dogma‟ da Imaculada Percepção, o professor Diatahy nos

8 Anotações pessoais da aula do professor Diatahy “Novas perspectivas em Ciência Humanas”, do Departamento de

Sociologia da UFC.

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apresentou o pensamento de Nietzsche salientando que a busca do filósofo não se

detinha na formulação de críticas em relação ao conhecimento, no que diz respeito

ao verdadeiro ou falso. A novidade do pensar de Nietzsche não é a crítica aos maus

usos do conhecimento, mas incide no próprio valor que se atribui à verdade,

revestindo-a de uma superioridade, evidenciando assim, a sua posição na hierarquia

de valores. Para o filósofo a oposição verdade/mentira tem origem moral, e aqueles

que defendem arduamente sua posse, na verdade, anseiam pelo usufruto dos efeitos

de tal posse. Por outro lado, aqueles que têm a vida como um valor máximo,

seguem indiferentes, ou apenas hostilizam essas querelas. Para Nietzsche o

conhecimento é um instrumento, dentre outros, que não deve se sobrepor ao valor

da vida, uma vez que seus efeitos residem no engano.

Livrar-se do dogma da imaculada percepção é realmente uma frase muito

pertinente, sobretudo, quando mergulhada no pensamento de Nietzsche que

reposiciona o valor da verdade. A percepção humana revestida de poderes de

chegar à verdade assume realmente características dogmáticas e nos convida a

heresia. As contribuições do biólogo Maturana e do físico David Bohn nos trazem

outras contribuições para nos livrarmos do dogma da imaculada percepção do

ponto de vista da biologia e da física. As contribuições desses dois autores

comentadas na sequência, trazem fundamentos para uma epistemologia, e

colaboram para situar o vínculo como um fenômeno de investigação nesta

pesquisa.

1.4.1. Como conhecemos o que conhecemos?

Em nosso cotidiano temos a tendência de querer viver em um mundo de

certezas e de solidez. Adotamos cotidianamente a crença de que as coisas são

exatamente como as vemos. E para alguns, somente há uma alternativa correta,

uma perspectiva de visão verdadeira. Mas, como conhecemos o que conhecemos?

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Maturana e Varela pensaram sobre esta questão em seu clássico A Árvore do

Conhecimento, livro em que defendem a tese que o mundo não nos é pré-existente,

nós o criamos à medida que interagimos com o mundo de forma coletiva. Os

autores argumentam que não se pode tomar o fenômeno do conhecer como se houvesse „fatos‟ ou

objetos lá fora, que alguém capta e introduz na cabeça. A experiência de qualquer coisa lá fora é

validada de uma maneira particular pela estrutura humana, que torna possível „a coisa‟ que surge

na descrição. (MATURANA & VARELA, 2001, p. 31).

O conhecer depende da estrutura do sujeito que conhece, e o modo de

conhecer se enraíza no ser, em função de sua organização. Embora os seres vivos

sejam diferentes em suas estruturas, são iguais em temos de sua organização

autopoiética, que os caracterizam como seres autônomos. O que é peculiar para os

seres vivos, afirmam eles, é sua organização ser tal que seu único produto são eles mesmos.

Donde se conclui que não há separação entre produtor e produto. O ser e o fazer de uma unidade

autopoiética são inseparáveis, e isso constitui seu modo específico de organização. (MATURANA

& VARELA, 2001, p. 57).

Uma Teoria do conhecer para os autores deveria ser aquela em que o

próprio fenômeno do conhecer gera a pergunta que leva a conhecer. A Teoria de

Santiago, como ficou conhecida a tese de Maturana e Varela, dispensa ponto fixo ou

qualquer ancoragem para afirmações de validade. Os autores explicam que não é

possível entender o funcionamento do nosso sistema em sua dinâmica estrutural

quando supomos, simplesmente, que há um mundo fixo e objetivo. Por outro lado,

quando não afirmamos a objetividade do mundo corrremos o risco do puro

relativismo, e fica complicado compreender como a nossa experiência se acopla ao

mundo.

Os biológos chilenos se afastam tanto do idealismo como do objetivismo,

afirmando a regularidade do mundo sem quaisquer referências independente de nós

mesmos, que forneçam garantias de estabilidade absoluta. Para eles o mundo que

construimos cotidianamente é uma mistura de regularidade e mutabilidade, típico

da experiência humana. Segundo afirmam, o conhecer não se dispõe como uma árvore como

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um ponto de partida sólido, que cresce gradualmente até esgotar tudo o que há para conhecer.

Assemelha-se mais à situação do rapaz na „Galeria dos Quadros de Escher‟9, que reproduzo

abaixo:

2 - Galeria de Quadros, de M. C. Escher

Se abrimos mão da atitude de simplesmente aceitar nossa capacidade de

conhecer como algo dado a priori, e nos perguntamos como isso é possível, então

adentramos na possibilidade ou não das explicações sobre a experiência. É o que

propõem Maturana e Varela. Para eles o conhecimento do conhecimento nos

obriga a abrir mão das certezas e da crença de que elas são provas de verdade

obrigando-nos a pensar o mundo que cada um vê, como um mundo, e não, como o

mundo.

Habitualmente nos acostumamos a traduzir a percepção como capacidade

de captarmos uma realidade externa a nós, mediante um processo representacional.

Em geral, tanto a neurologia como a psicologia conotam a percepção como a

9 Maurits Cornelis Escher nasceu no final do século XIX e foi um artista gráfico holandês e era conhecido pela execução de transformações geométricas (isometrias) nas suas obras e por suas xilogravuras, litografias e meios-tons que tendem a representar construções impossíveis, preenchimento regular do plano, explorações do infinito e as metamorfoses - padrões geométricos entrecruzados que se transformam gradualmente para formas completamente diferentes. (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Maurits_Cornelis_Escher.).

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capacidade do sistema nervoso de um organismo computar objetos externos, a

partir da captação de informações por seus órgãos sensoriais, em sua interação com

o meio. Para Maturana esse modo de compreender a percepção, para além de um

valor metafórico ou didático, revela uma postura epistemológica implícita com

alguns pressupostos. Primeiro, a existência de uma realidade externa e

independente do organismo; segundo, o observador é capaz de conhecer essa

realidade como resultado de suas interações com ela; e terceiro, as categorias

descritivas utilizadas em suas explicações, tais como: objetos, relações, estrutura,

pertencem a essa realidade, e não ao que o observador faz ou diz.

Ocorre que se alteramos a biologia do organismo, se alteramos a sua

estrutura, também alteramos a sua percepção. Daí é que Maturana se pergunta: se a

captação de informação depende do instrumento, que base temos para afirmar que aquilo que o

instrumento mostra é algo que podemos dizer ser uma característica de um objeto independente

desse mesmo instrumento? (MATURANA, 1999, p. 69). Para Maturana o operar de um

sistema nervoso capaz de captar informações e formar uma representação do meio

revela um paradigma explicativo inadequado em termos biológicos e

epistemológicos, porque pressupõe que as mudanças sofridas por um organismo

em sua interação com o meio são determinadas pelo meio.

Segundo afirma Maturana, o meio não especifica o que acontece em um

sistema vivo, e sim, desencadeia, em sua estrutura, mudanças determinadas por sua

própria estrutura. Há uma congruência estrutural do organismo com o meio, de

cuja conservação depende a própria vida do organismo. Ora, se o organismo é um

sistema determinado estruturalmente, então, é o próprio organismo quem

determina qual configuração estrutural do meio desencadeia ou não, em si próprio,

alguma mudança estrutural, em sua interação com o meio. Portanto, é impossível

para um observador caracterizar tal configuração estrutural, independentemente, ao

que se passa ao organismo, em consequência de sua interação com o meio. Um

observador somente pode caracterizar alguma contingência como sendo algum

objeto para o organismo, isto é, algo independente dele, através das mudanças de

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condutas que ocorre em função de alguma perturbação. Para Maturana, a palavra

percepção consiste na configuração que o observador faz de objetos perceptivos, mediante a

distinção de cortes operacionais na conduta do organismo, ao descrever as interações desse

organismo no fluir de sua correspondência estrutural com o meio. (MATURANA, 1999, p.

72).

Há uma harmonia entre o organismo e o meio configurada no fluir de

mudanças estruturais do organismo na conservação de sua adaptação, da qual

depende essa correspondência estrutural organismo-meio. Esse fluir se aplica

também a nós humanos! Para Maturana a explicação da percepção no contexto do

determinismo estrutural dos sistemas vivos invalida qualquer tentativa de dar conta do fenômeno

da cognição (incluindo a linguagem) com noções que implicam a denotação ou conotação do domínio

da realidade independente das distinções do observador. (MATURANA, 1999, p. 67).

Por fim, Maturana nos apresenta algumas implicações dessa noção de

percepção em termos epistemológicos. A primeira é a impossibilidade da distinção

que comumente fazemos sobre ilusão e percepção. Se concebemos a percepção

como capacidade de captar a realidade fora e independente do observador, decorre

disso, que a ilusão seria uma experiência que se vive como se fosse uma percepção

decorrente de uma conexão inadequada com a realidade externa. Ocorre que,

constitutivamente, não há essa captação. A distinção entre ilusão e percepção se dá

somente em referência a uma outra experiência, diferente da que se qualifica com

essa distinção, argumenta Maturana.

Na verdade, a segunda implicação disso, é que o mundo dos objetos

perceptivos que flui na convivência dos organismos, incluindo o próprio

observador, somente são objetos perceptivos quando são configurados pelas

condutas dos organismos, quando operam conservando sua correspondência

estrutural mútua. Tanto é assim, argumenta o biólogo, que o mundo em comum

surge na e pela comunidade do viver. Esse mundo de objetos perceptivos se

configura em função da linguagem, que por sua vez, implica em um modo de viver

na recursividade de coordenações de condutas, próprias da comunidade do viver.

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Em função disso é que Maturana afirma que o mundo das descrições e explicações do

observador é um mundo de modos de convivência gerador de objetos perceptivos, o qual o observador

surge como um deles ao surgir na linguagem. (MATURANA, 1999, p. 73).

E por fim, ainda, o biólogo esclarece que o fato de cotidianamente

manejarmos na linguagem objetos como sendo entidades estruturalmente

independentes do observador, não contradiz essa explicação dada à percepção. Isso

porque os objetos surgem com a linguagem, e em função disso, consistem em

coordenações de ações em uma comunidade de observadores, configurando uma

espontaneidade do fluir das nossas experiências em sua coerência operacional

intrínseca. Nestas circunstâncias, esclarece ele, o determinismo estrutural que respeitamos e

utilizamos em nossa explicação pertence ao operar com objetos perceptivos como expressão das

coordenações operacionais da experiência do observador, e não viola as condições epistemológicas de

nossa explicação, nem valida um acesso a uma realidade independente. (MATURANA, 1999,

p. 74).

Para responder à pergunta “como é que conhecemos?” é preciso, pois reconhecer

que nós humanos somos o que somos, ao sermos seres humanos, argumenta

Maturana (2009). Ora se aceitamos que nossa capacidade de conhecer não é algo

dado a priori, então, precisamos de uma explicação. Explicar implica propor uma

reformulação da experiência que queremos explicar de forma aceitável para o nosso

interlocutor. É o que nos diz o autor acrescentando que nenhuma proposição

explicativa é uma explicação em si, mas depende da aceitação do observador, que

pode aceitar ou rejeitar uma explicação.

Com essas argumentações Maturana busca separar duas atitudes em relação

ao observador e sua capacidade de conhecer, que para ele, se mostram como dois

caminhos de reflexão, bem como, dois caminhos de relação humana. Diz ele, se não

nos fazemos a pergunta pela origem das capacidades do observador, nos comportamos, na verdade

como se tivéssemos a capacidade de fazer referência a entes independentes de nós, porque não

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dependem do que fazemos.(MATURANA, 2009, p. 42). A este caminho explicativo, o

chileno chama de Caminho da objetividade-sem-parênteses.

Por outro lado, quando aceitamos a pergunta pelas origens da possibilidade

de conhecer estamos, no caso, aceitando as perguntas: como é que posso, como

observador, fazer as afirmações que faço? Como é que posso dar-me conta, se é que me dou conta,

do que realmente é, e também equivocar-me? Maturana esclarece que ao aceitarmos tais

perguntas, reconhecemos que se alteramos a nossa biologia, também alteramos

nossa capacidade cognitiva de conhecer. Em sua explanação do assunto o biólogo

distingue o erro da mentira. Quando dizemos: cometi um erro, no momento em que

afirmei o que agora considero um erro, aceitava a afirmação honestamente como

válida, algo que agora reconheço que não é assim. Dessa forma, o erro ou o

equívoco, são sempre a posteriori. Isso ocorre porque o erro é, na verdade, uma

experiência desvalorizada em função de outra que se considera, indubitavelmente,

válida.

Nesta altura Maturana se pergunta como se dá o erro. Essa é uma questão

interessante em função da hipótese de se considerar que temos a capacidade de

acesso a uma realidade independente de nós, na observação ou reflexão. O biólogo

argumenta que não é possível para nós distinguirmos entre ilusão e percepção na

experiência. Diz ele, Ilusão e erro são qualificativos que desvalorizam uma experiência a

posteriori por referência a outra experiência que se aceita como válida: a pessoa não se equivoca

quando se equivoca. (MATURANA, 2009, p. 44). E se assim o é, a questão sobre o

que conotamos quando falamos de conhecer, se torna premente.

Com essa indicação da impossibilidade de distinguirmos entre erro e ilusão

na experiência humana Maturana nos convida a colocarmos a objetividade entre

parênteses no processo de explicar. Com isso ele apresenta um segundo caminho,

distinto do primeiro – a objetividade-sem-parêntese. Neste caminho explicativo

operamos na aceitação que existe uma realidade independente de nós que valida

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nosso conhecer e nosso explicar, e que fundamenta a universalidade e objetividade

do conhecimento.

No caminho explicativo da objetividade-sem-parêntese sou sempre irresponsável na negação do outro, pois é „a realidade‟ que o nega, não eu; no caminho explicativo da objetividade-entre-parêntese ninguém está intrinsecamente equivocado por operar num domínio de realidade distinto do que eu prefiro. Se outro ser humano opera num domínio de realidade que não me agrada, posso opor-me a ele ou ela, posso inclusive fazer algo para destruí-lo ou destruí-la, mas o farei não porque o mundo que ele ou ela traz consigo esteja equivocado num sentido absoluto ou transcendente, mas porque este mundo não me agrada. (MATURANA, 2009, p. 50).

Quando, ou talvez seja melhor, se operamos no caminho explicativo da

objetividade-entre-parêntese não há verdades absolutas, nem verdades relativas, e muitas

verdades convivem em domínios distintos. Contudo, isso instala desconforto ao

destituir-nos a posse de um saber como verdade objetiva irrefutável. E retorno ao

comentário do professor Diatahy em sala de aula sobre a ciência quando afirmava

que “o que institui o saber é um ato de poder”. Ao comentário, poderíamos acrescentar:

um ato de poder que se firma em suposta posse da verdade. O professor fala de

instituição de saber, cujo condicionante é a “posse” da verdade que será sempre

uma suposta posse. Neste ponto, a postura epistemológica em coerência com o seu

fazer, é imprescindível para um agir ético. Para o biólogo o fato de saber que

sabemos nos leva a uma ética, cujo ponto central é:

(...) assumir a estrutura biológica e social do ser humano equivale a colocar no centro a reflexão sobre aquilo de que ele é capaz e que o distingue. Equivale a buscar as circunstâncias que permitem tomar consciência da situação em que se está – qualquer que seja ela – e olha-la a partir de uma perspectiva mais abrangente, a partir de uma certa distância. Se sabemos que nosso mundo é sempre o que construímos com os outros, cada vez que nos encontrarmos em contradição ou oposição com outro ser humano com o qual desejamos conviver, nossa atitude não poderá ser reafirmar o que vemos do nosso próprio ponto de vista. Ela consistirá em apreciar que nosso ponto de vista é o resultado de um

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acoplamento estrutural de domínio experiencial, tão válido quando o de nosso oponente, mesmo que o dele nos pareça menos desejável. Caberá, pois a busca de uma perspectiva mais abrangente, de um domínio experiencial em que o outro também tenha lugar e o qual possamos construir um mundo juntamente com ele. (MATURANA & VARELA, 2001, p. 267-268).

O fazer científico é uma atividade humana exigente, não somente em

termos cognitivos, mas em termos sócio-afetivos porque se trata não só de

construir, elaborar, criar algo, mas também envolve se deparar com perguntas do

tipo, por que faço, para quem faço, em benefício do quê, ou de quem, faço.

Maturana nos apresenta ricas ideias sobre o conhecimento e sua

possibilidade em termos da nossa biologia argumentando que o mundo que temos

resulta de uma cocriação, em que o ser e o fazer, em função de nossa organização

autopoiética, são inseparáveis porque se fazem em acoplamento estrutural entre o

nosso organismo e o meio em que vivemos. Logo, o conhecimento não tem

nenhum ponto de partida sólido que se expande e se acumula. Maturana nos trouxe

valiosas contribuições para nos compreendermos como humanos no processo de

construir conhecimento, mas o que dizer deste mundo que co-criamos? Como

compreender um mundo em que não nos separamos dele? Como conceber a

realidade de maneira a não fragmenta-la nos separando dela? Não se trata como

vimos de negar a objetividade do conhecimento, tampouco, cair no relativismo.

1.4.2. O mundo em holomovimento.

O atomismo tem sido uma ideia estruturante para o pensamento cientifico.

Doutrina elaborada pelos gregos no século V a.C. e retomada por Demócrito (460

a.C. -370 a.C.) acredita que a matéria é formada por átomos, partículas minúsculas,

indivisíveis e eternas, que unindo-se e separando-se por meio de forças mecânicas

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determinam o nascimento e desagregação de todos os seres. Esta ideia central teve

consequências para a forma como compreendemos o real e nossa relação com o

mundo, sobretudo, com a era moderna da hegemonia do pensamento cientifico.

O atomismo gera uma visão de mundo mecanicista em que o relógio, com

sua precisão e predição mecânica, é sua grande metáfora explicativa. Tudo que há

no universo, inclusive os humanos, são entendidos na perspectiva de maquinário. A

consequência dessa visão de mundo é a fragmentação generalizada da realidade que

divorciou ciência, arte, ética, espiritualidade, bem como, dividiu o conhecimento

em disciplinas que não se interligam.

David Bohm em seu livro A Totalidade e a Ordem Implicada tece valiosas

contribuições sobre a realidade em holomovimento, ideia que se distancia da

metáfora maquínica. Segundo ele a fragmentação da realidade nos leva a uma

espécie de confusão mental e se torna um problema que interfere na nossa

percepção da realidade, que se torna ilusória na medida em que a compreendemos

de forma fragmentada. Esta forma de ver o mundo leva os humanos a agirem e a

fracionar a si mesmos e ao mundo, adverte Bohm.

Tal fragmentação, todavia, encontra-se difundida no nosso modo de

pensar. O físico pondera que sempre fora adequado um pensar que divide e separa

as coisas de maneira a reduzir os problemas em proporções controláveis.

Entretanto, esclarece ele, o processo de separabilidade foi levado além dos limites

sobre o qual este tipo de pensamento pode operar de forma adequada.

Bohm (1980) argumenta que produzimos a fragmentação em função do

hábito quase universal de equivaler o conteúdo do pensar à descrição do mundo

como ele é, isto é, consideramos o nosso pensar em direta correspondência com a

realidade objetiva. Bohm defende a existência de uma totalidade ininterrupta como

um movimento fluente, indiviso e sem fronteiras, na qual não cabe uma relação

mecanicista. Para ele, a ideia de uma substância fundamental separada e

independente, é uma abstração útil somente até um certo domínio limitado. Ele

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defende que o universo inteiro deve ser entendido como um todo indiviso, sendo

que a análise de partes separadamente não deve ter qualquer valor fundamental. O

holograma é segundo ele, a melhor analogia que se aproxima do real. Vejamos o

que ele nos argumenta em relação a isso:

A ordem implicada tem sua base no holomovimento, o qual, como já vimos, é vasto, fecundo e se acha num estado de fluxo interminável de dobramento e desdobramento, com leis a maioria das quais apenas vagamente conhecidas, e que talvez sejam, em última análise, até mesmo incognoscíveis em sua totalidade. Logo, ele não pode ser apreendido pelos sentidos (ou por nossos instrumentos) como algo sólido, tangível e estável. Não obstante, como foi indicado anteriormente, a lei global (holonomia) pode ser suposta tal que, numa certa subordem, dentro de todo o conjunto da ordem implicada, há uma totalidade de forma que possuem um tipo aproximado de recorrência, estabilidade e separabilidade. Evidentemente, essas formas são capazes de aparecer como os elementos relativamente sólidos, tangíveis e estáveis que elaboram o nosso “mundo manifesto”. A subordem especial e distinta acima indicada, que é a base da possiblidade desse mundo manifesto, é então, com efeito, aquilo que se entende por ordem explicada. (...) A ordem implicada [é] um processo de dobramento e desdobramento que ocorre no espaço tridimensional ordinário. (...) Tudo o que é importante aqui é que se descobre, mediante um estudo das implicações da teoria quântica, que a análise de um sistema total num conjunto de partículas independente existente, mas interagente colapsa descortinando uma via inteiramente nova. (BOHM, 1980, p. 245-246).

A noção de totalidade e de ordem implicada nos oferece uma explicação

mais coerente com as propriedades quânticas da matéria do que a visão

mecanicista. Bohm coloca que precisamos abandonar a visão de um mundo

constituído por objetos, algo do tipo “blocos de construção”, e passarmos a ver o

mundo em termos de eventos e processos. Isso requer um novo modo de olhar

para as partículas subatômicas, que inclua na própria matéria, também, os humanos,

com seus cérebros e instrumentos de observação.

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Bohm defende uma nova forma de insight, uma nova teoria que chama de

Totalidade Indivisa em Movimento Fluente. Esta visão consiste em olhar para o mundo como

um todo indiviso, no qual todas as partes do universo, incluindo o observador e seus instrumentos

se fundem e se unem numa totalidade. (BOHM, 1980, p. 31). Não haveria, portanto, uma

separação sujeito-objeto, de forma que o observador humano se encontra

radicalmente imbricado neste processo.

Assim é que mente e matéria são apenas aspectos diferentes de um mesmo

movimento total e ininterrupto. Esta ideia do físico se coaduna com a ideia de

acoplamento estrutural apresentada por Maturana. Para o físico é preciso ter claro

que o atomismo ainda é uma forma válida de insight, considerando que há vários

padrões que podem ser abstraídos desta totalidade indivisa no movimento fluente,

e que tais padrões possuem uma autonomia e estabilidade relativa, fornecidas pela

lei universal do movimento fluente. Ocorre que a partir dessa forma de insight há

mais nitidez sobre os limites dessa autonomia e estabilidade. E podemos assim, em

contextos específicos, simplificar certas coisas, tratando-as como se fossem

autônomas e estáveis, mas em momentos específicos e para fins específicos. Isso

nos permite livrar-nos da armadilha de olharmos para nós mesmos e o mundo de

forma separada.

Em função dessa forma de ver o mundo Bohm alerta para a necessidade de

considerarmos qualquer teoria como uma forma de insight, dentre outras. As

nossas teorias não são descrições da realidade como ela é. Argumento válido

inclusive para sua própria teoria, esclarece o físico. Ele defende que as teorias são

formas de insight sempre em transformação e que cabe ao leitor ver por si mesmo

se tal forma de insight é claro ou obscuro, e quais são seus limites e contribuições.

Considero de fundamental importância os argumentos e conclusões do

físico em favor de uma percepção de mundo como uma totalidade indivisa em

holomovimento, que certamente tem implicações científicas, sociais e políticas. Seu

pensamento, construído do ponto de vista da física se coaduna com o modo de

pensar de Maturana que constrói suas ideias a partir da biologia. Os autores nos

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convidam a uma perspectiva de perceber e tecer ideias, formas de insight sem cair

na ilusão que há um mundo fora de nós e que podemos apreendê-lo

irrefutavelmente. E isso é possível em função de um acoplamento estrutural

próprio de nossa organização biológica em sua relação com o meio como uma

totalidade em holomovimento cujos desdobramentos produz tudo o que há

inclusive a nós mesmos.

As ideias de Maturana e Bohm nos permitem a possiblidade de um diálogo

genuíno com o outro porque nos convidam mais a comunhão de ideias do que à

sua defesa; possibilitam mais a construção de novos insights pela inclusão, do que

argumentação e refutação as ideias de outrem. Permitem lidar com o erro, a

verdade, a objetividade e a subjetividade em uma perspectiva mais ampla, sem

precisar excluir ou negar, e sim, co-criar. A exclusão e/ou negação de ideias do

outro é próprio da ilusão a respeito de um mundo inteligível que existe

independente de nossa estrutura bio-psico-socio-cultural, que podemos apreender,

ter a posse de alguma verdade e usufruir do lugar de poder gerado por tal

apropriação.

1.4.3. Vínculo, o humano vínculo, pode ser objeto?

Para uma visão mecanicista do mundo baseada no atomismo e na separação

sujeito/objeto o vínculo é invisível, obscuro, incognoscível. Afortunadamente, a

visão complexa de mundo, de um mundo em holomovimento, nos permite

perceber os fenômenos em (inter)relação, compreender nossa percepção em co-

criação com uma realidade que não contém fragmentos, e sim fluxos.

A ciência clássica fincou suas bases na objetividade, na crença de um

universo constituído de objetos isolados submetidos a leis universais. Nesta

perspectiva, o objeto existe de maneira positiva e, como esclarece Morin, não há

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aqui participação do observador/conceituador com as estruturas de seu

entendimento e as categorias de sua cultura. Ele [o objeto] é substancial; constituído de

matéria, tendo plenitude ontológica, ele é auto-suficiente no seu ser. O objeto é então uma entidade

fechada e distinta que se define isolando em sua existência, suas características e suas propriedades,

independentemente de seu ambiente. Quando mais o isolamos experimentalmente, melhor

determinamos a sua realidade „objetiva‟. (MORIN, 2003, p. 124). A partir desta visão se

impõe uma explicação, para alguns, científica, para outros, reducionista, esclarece

Morin.

Como sabemos, esse modo de fazer ciência que impulsionou a física foi

inspiração para outras ciências que seguiram o mesmo caminho, de igualmente

isolar seu objeto do ambiente e do observador, e tentar explica-lo a partir dos

elementos mais simples que o constituem, e das leis gerais às quais se submete.

Assim fez a biologia fazendo da célula sua unidade elementar. A Genética elegeu o

genoma. A Sociologia, a família como célula da sociedade... Contudo, Morin nos

fala que a “partícula” não sofre apenas uma crise de ordem ou de unidade, mas de

identidade, uma vez que não mais se pode isolá-la retirando-a de suas interações,

ela pulsa hesitante, ora como onda, ora como partícula. Ela perdeu toda substância,

clareza e distinção, e até mesmo, toda a realidade. Não se pode defini-la sem aludir

para as interações das quais ela participa, e nenhum caractere ou qualidade sua pode

ser induzido em função de características próprias. Com efeito, tais caracteres, que

configura traços próprios, só podem, no átomo, por exemplo, ser compreendidos

quando, e se, referimos à organização do sistema. Por conseguinte, argumenta

Morin, a ideia de sistema vivo herda simultaneamente parte da animação do ex-princípio vital e

parte da substancialidade da ex-matéria viva. Enfim, a sociologia tinha, desde a sua fundação,

considerado a sociedade como um sistema, no sentido forte de um todo irredutível a seus

constituintes, os indivíduos. Sendo assim, em todos os horizontes, físicos, biológicos,

antropossociológicos, se impõe o fenômeno-sistema. (MORIN, 2003, p. 128).

O vínculo é um fenômeno complexo, relacional, multidimensional,

sistêmico e, irredutível à substancialidade. Só pode ser compreendido na e pela

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relação a partir de uma visão sistêmica. Como humanos, se abrangemos toda a

comunidade em termos planetários, estamos todos interligados, e há aqui, uma

relação dialógica de oposição/complementaridade. Em face dessa elasticidade

extrema, de que maneira, ou mesmo seria válido, compreender o vínculo entre os

profissionais de saúde e as pessoas que usam os serviços na atenção básica do SUS?

Recorro à ideia de sistema de Morin. Bem, o fenômeno que investigo se

torna questão em um contexto específico: a atenção básica do SUS. Contexto em

que devo (re)inserir o fenômeno em termos de ecossistema. Isso é diferente de

retirá-lo do contexto em termos de objeto. E mais diferente ainda de perceber um

conceito/fenômeno presente ou não na realidade empírica. Não se trata da

impossível tarefa de fazê-lo objeto nos moldes da ciência clássica, e sim,

compreendê-lo em seu movimento fluido interrelacionado com o contexto que o

gera. Trata-se aqui de buscar compreendê-lo a partir de uma visão sistêmica e não

fragmentada da realidade no sentido de separação sujeito/objeto.

O conceito clássico de objeto nos abre apenas dois caminhos: ou somente

ao real, ou somente ao ideal. O conceito de sistema marca uma diferença em

relação a essa conceituação. A noção de sistema nos remete tanto ao real, como ao

sujeito, porque o coloca, ele próprio, imerso no sistema. É um conceito construído

na e pela transação sujeito/objeto, e que não resulta na eliminação de um pelo

outro. Para isso, é preciso alguns cuidados, como adverte Morin. Tomar o sistema

por objeto real elimina o sujeito, e acaba por desembocar em um realismo ingênuo.

Por outro lado, tomar o sistema por um esquema ideal acaba por eliminar o objeto,

e também o próprio sujeito, uma vez que, no modelo ideal se considera, não a

estrutura subjetiva do sujeito, e sim, seu valor de eficiência na manipulação e na

previsão. Morin quando afirma que,

O sistema remete profundamente ao real, ele é mais real porque muito mais enraizado e ligado à physis que o antigo objeto, quase artificial no seu pseudo-realismo; ao mesmo tempo, ele remete muito profundamente ao espírito humano, ou seja, ao sujeito, ele próprio imerso, culturalmente, social e

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historicamente. Ele requer uma ciência física e também uma ciência humana. (...) Por esta via sistêmica, o observador, excluído da ciência clássica, e o sujeito, enucleado e jogado no lixo da metafísica, voltam ao próprio coração da physis. Daí tal ideia cujos rastros seguiremos: não há mais physis isolada do homem, ou melhor, isolável de seu entendimento, de sua lógica, de sua cultura, de sua sociedade. Não há mais objeto totalmente independente do sujeito. A noção de sistema assim entendida conduz o sujeito não apenas a verificar a observação, mas a integrar a auto-observação ao sistema. (MORIN, 2003, p. 177-179).

Segundo Morin (2002) tudo que era objeto tornou-se sistema. Tudo que

era, até mesmo, uma unidade elementar, inclusive e, sobretudo, o átomo, virou

sistema. Na verdade, todos os objetos-chaves das ciências, seja a física, a biologia, a

astronomia, a sociologia constitui um sistema. Fora dos sistemas, há apenas a

dispersão particular, constata Morin quando afirma que o nosso mundo organizado é um

arquipélago de sistemas no oceano da desordem. (MORIN, 2003, p. 128). O autor, porém,

ao ressaltar que tudo o que é matéria (o átomo, a molécula) virou sistema, e tudo o

que é social também foi concebido como sistema, chama atenção para a noção de

que essa generalidade não é o bastante para se compreender o lugar epistemológico

da ideia de sistema, e alerta para o cuidado de não se cair numa visão reducionista e

simplificadora. Para Morin, o universo organizado tem um caráter polissistêmico e

se define como:

(...) uma impressionante arquitetura de sistemas se edificando uns sobre os outros, uns entre os outros, uns contra os outros, implicando-se e imbricando-se uns nos outros, com um grande jogo de concentrações, plasmas, fluidos de microsistemas circulando, flutuando, envolvendo as arquiteturas de sistemas. Assim, o ser humano faz parte de um sistema social, no seio de um ecossistema natural, que está no seio de sistema solar, que está no seio de um sistema galáctico: ele é constituído de sistemas celulares, que são constituídos de sistemas moleculares, que são constituídos de sistemas atômicos. (MORIN, 2003, p. 128).

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O autor esclarece que não é o caso de se conceber uma teoria geral

abrangendo átomo, a molécula, a estrela, a célula, o organismo, o artefato, a

sociedade, mas, à luz de uma complexidade sistêmico-organizacional, considerar o

átomo, a estrela, a célula, o organismo, a sociedade..., enfim, todas as realidades,

sobretudo, a nossa. A partir disso, conclui Morin, o sistema não é uma palavra-chave

para totalidade, mas uma palavra-raíz para a complexidade. (MORIN, 2001, p. 274). Em

um sistema, ao invés de objetos, essências ou substâncias, temos a organização; ao

invés de unidades simples ou elementar, temos unidades complexas; ao invés de

agregados formando corpos, temos sistemas de sistemas de sistemas...

Morin apresenta também algumas distinções que permitem categorizar os

sistemas, para em seguida fazer alguns esclarecimentos importantes. Assim,

podemos usar a palavra sistema dos seguintes modos:

- sistema, para todo sistema que manifeste autonomia e emergência com relação ao que lhe é exterior;

- subsistema, para todo sistema que manifeste subordinação em relação a um sistema no qual ele é integrado como parte;

- suprasistema, para todo sistema controlando outros sistemas, mas sem integrá-los em si;

- ecossistema, para o conjunto sistêmico cujas inter-relações e interações constituem o ambiente do sistema que aí está englobado;

- metassistema, para o sistema resultante das inter-relações mutuamente transformadoras de dois sistemas anteriormente independentes.

O autor esclarece que as fronteiras entre tais termos não são nítidas e

podem ser substituíveis entre si de acordo com a focalização ou o recorte que o

observador quer fazer na realidade sistêmica em consideração. Assim o caráter

sistêmico ou subsistêmico ou metasistêmico vai depender da escolha do

observador. Dessa forma introduz-se aqui a incerteza que pode dominar a

caracterização. Sempre vai haver na extração de um sistema algo de incerto e

arbitrário, isto é, sempre há uma decisão, uma escolha que é do sujeito que observa.

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Morin lembra que o sujeito intervém na definição de sistema através e por seus interesses, suas

seleções e finalidades, ou seja, ele traz ao conceito de sistema, pela sua determinação subjetiva, a

superdeterminação cultural, social e antropológica. (MORIN, 2003, p. 176).

As ideias de Maturana e Bohn nos retiraram da ilusão de poder nos

posicionar como sujeitos frente ao real, ou perante algum objeto a ser apreendido

em um mundo existente fora e independente da nossa existência. E Morin nos

apresenta um método para lidar com a realidade complexa que co-criamos, e na

qual estamos imersos como parte do(s) sistema(s).

Esta ideia de sistema nos auxilia pensar que no ecossistema em que o

vínculo é questão, ele não possui um ponto de partida ou início, mas pertence a

uma realidade em holomovimento, cujo desdobramento surge em função de nossa

interrelação com ela, como parte do sistema que somos.

Reitero a ideia de que não se trata aqui de torna-lo objeto a partir do

conceito clássico de ciência; verificando a pertinência do conceito à realidade, ou

buscando apreendê-lo na realidade empírica. Trata-se de colocar uma espécie de

contorno no sistema. Quando Morin nos fala de sistema, subsistema, supra-

sistema, ecossistema e metassistema esclarece que não há fronteiras nítidas entre

estes termos, que são intercambiáveis entre si de acordo com o ângulo de visão, a

4 - Ecosistema – Serviço de Atenção Básica do SUS

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focalização e o recorte que se quer imprimir. O caráter do que é sistêmico ou

subsistêmico resulta de seleções, escolhas e autonomia de decisões, bem como, de

condições culturais e sociais no qual se insere o observador/conceituador. Para

Morin, o mesmo „holon‟ pode ser considerado ecossistema, sistema, subsistema, de acordo com a

focalização do olhar do observador. (MORIN, 203, p. 176).

Há sempre algo de arbitrário no recorte do sistema, sendo justo aí que se

insere o sujeito com suas escolhas, interesses e decisões. O sistema requer,

portanto, a presença de um sujeito que o isole do burburinho polissistêmico, como

denomina Morin. Desta forma, o sistema não remete apenas à realidade empírica

no que ela pode ser irredutível para o sujeito, mas também, alude às estruturas do

próprio sujeito e ao contexto cultural e social em que se insere e, também, aos

interesses do conhecimento científico.

Assim, para caminhar nesta senda duas consequências decorrem deste

caráter subjetivo de recorte do sistema, segundo adverte Morin. A primeira é o

princípio da incerteza em relação à determinação do sistema ao seu contexto, e a

segunda, é o princípio da arte. Sobre isso diz o autor,

O recorte do sistema pode ser um talhamento no universo fenomenal, que será dividido em sistemas arbitrários, ou, ao contrário, a arte do açougueiro que corta seu boi seguindo o traçado das articulações. A sensibilidade do sistemista será como a do ouvido absoluto que percebe as competições, simbioses, interferências, sobreposições dos temas na mesma corrente sinfônica em que um espírito brutal conhecerá apenas um tema rodeado de barulho. O ideal sistemista não poderia ser o isolamento do sistema, a hierarquização do sistema. Ele está na arte aleatória, incerta, mas rica e complexa como toda arte, de conceber as interações, interferências e encadeamentos polissistêmicos. As noções de arte e ciência, que se opõem na ideologia tecnoburocrática dominante, devem aqui, como por todo lugar onde há realmente ciência, se associar. (MORIN 2003, p. 177).

Para mim, esse talhamento no universo fenomenal implica pensar o vínculo

buscando compreendê-lo em termos de recursão, retroação e co-produção com

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outros elementos que compõem o (eco)sistema de que é parte. Isso evidencia outro

modo de pensar e perceber o entrelaçamento da rede em que o profissional da

saúde e as pessoas que demandam, ou não, os serviços, se inserem, exigindo que

ambos se coloquem como tecelões dos nós que compõem as inter-relações e

consubstanciam o vínculo se desdobrando em função do ecossistema em que se

insere. Enfim, talhar o vínculo como um circuito deste ecossistema não significa

isola-lo, ao contrário, significa compreendê-lo em suas inter-retro-relações com os

demais subsistemas, cuja organização faz do (eco)sistema o que ele é, em um dado

contexto em que se apresenta.

Morin nos ensina que para operarmos o pensar complexo não basta

associar noções antagônicas percebendo o que elas têm de concorrente e

complementar, é necessário ainda considerar o próprio caráter da associação,

porque não se trata somente de relativizar estes termos entre si. O que é crucial,

segundo as palavras do autor, é a sua integração no seio de um metassistema que transforma

cada um desses termos no processo de um circuito retrativo e recursivo. (MORIN, 2003, p. 460).

O vínculo aqui em foco se torna questão em função de um contexto, ou

melhor, do (eco)sistema de que é parte. Fora deste sistema, provavelmente,

adquiriria outras características que o reconfiguram em função de suas inter-retro-

relações, e se reorganizam configurando outros (eco)sistemas com características

próprias.

E, ainda, em função dessa visão sistêmica, uma vez operado um recorte no

(eco)sistema, para que faça sentido, necessariamente, implica a inclusão do sujeito

observador/conceituador no sistema, uma vez que o sistema remete não só a

realidade empírica, mas alude, concomitantemente, à empiria em sua co-produção

com o sujeito e a realidade de que é parte. Concordo com Morin (2003) quando diz

que o método se torna crucial apenas quando reconhecemos a presença de um

sujeito pensante, quando se considera que o conhecimento não resulta de

acumulação de dados ou informações, mas de sua organização viva; quando a

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lógica se destitui de seu valor absoluto; quando a sociedade e a cultura, em vez do

tabu da crença, permitem a dúvida da ciência; quando se entende que a teoria estará

sempre aberta e inacabada, e que no conhecimento haverá sempre incertezas,

ignorâncias e interrogações. A teoria é possibilidade de tratar o problema, e só

ganha vida com a plena atividade mental do sujeito. E é justamente essa

intervenção/inserção do sujeito que dá ao termo método, o seu papel

indispensável.

1.4.4. A Senda do Método.

Há uma frase do poeta espanhol de Sevilha, Antonio Machado,

recorrentemente, referida pela comunidade científica para dizer do método:

caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar. Geralmente, apesar de tal frase

ser bastante utilizada, e até concordarmos com ela, exigimos certezas ou pelo

menos algo que nos dê alguma segurança para se por a caminho. Apresento um

pouco mais dos versos do poeta:

Caminante, son tus huellas el camino y nada más;

Caminante, no hay camino, se hace camino al andar.

Al andar se hace el camino, y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar.

Caminante no hay camino sino estelas en la mar.

Cuatro cosas tiene el hombre que no sirven en la mar: ancla, gobernalle y remos,

y miedo de naufragar. (Antonio Machado10)

10 Dois versos do poeta espanhol Antonio Machado, XXIX e XLVII, que integram os Proverbios y cantares em Campos de Castilla.

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O desafio, primeiramente, foi enfrentar o medo do naufrágio sabendo que

velas, remos, âncoras, bússolas e o próprio medo, não me serviriam no percurso

desta senda. E depois, foi necessário seguir sem fazer do medo obstáculo

intransponível, mantendo a esperança de que, tendo aceitado fazer o caminho ao

caminhar, talvez, ao chegar ao final da estrada, eu pudesse olhar para traz e

perceber o caminho percorrido, identificando as estrelas que antes não via, quando

a estrada estava à minha frente, e que delas nada saberia, se pelo caminho, não

tivesse afundado meus pés.

Os versos do poeta traduzem muito bem o meu espírito ao percorrer a

senda que se descortinou para mim ao escolher este tema de pesquisa. Sim, fui com

medo! O pouco que tinha comigo, que talvez pudesse me servir de bússola, tive

que largar no meio do caminho para seguir. A frase do poeta não foi retórica, foi

literalmente vivida por mim. Com os ventos da incerteza soprando frio segui,

apenas com a esperança de ver alguma estrela ao entrar no sistema para percorrer

seus circuitos.

Morin em seu primeiro livro da série O Método I. A Natureza da Natureza

afirma que não traz um método, e sim, parte em busca dele com uma recusa

consciente da simplificação disjuntiva e com a vontade de não ceder ao

pensamento simplificador. Percorrendo a senda, também me esforcei para isso.

Em seu caminho do Método, o filósofo confessa que parte com um

princípio de conhecimento que respeita e reconhece o não-idealizável e o não-

racionalizável, e o que escapa às regras. Ele defende que precisamos de um princípio de

conhecimento que não respeite, mas revele o mistério das coisas. (MORIN, 2003, p. 36). Morin

nos alerta para inutilidades de algumas coisas ao percorrer o caminho, e fala da

necessidade de nos livrarmos delas. Primeiro, ele diz ser preciso deixar as idealizações

que nos fazem crer que a realidade pode ser absorvida pela ideia, e que o real é

inteligível. Segundo, é necessário abrir mão da racionalização, convite sedutor que

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nos move a encerrar a realidade na ordem e na coerência de um sistema,

dispensando quaisquer transbordamentos e buscando justificativas racionais para a

existência dos fenômenos da realidade. E as normatizações com suas sugestões

acalentadoras de eliminar o estranho, o irredutível, o mistério. Também elas, devem

ficar pra traz.

Para seguir precisei me livrar de tais coisas reconhecendo sua inutilidade em

mim. Livrar-se de coisas como essas das quais Morin fala não significa,

simplesmente, se desfazer de algo como quem se livra de roupas ou objetos que

carregamos conosco. Equivale sim, a arrancar a própria pele, raspar a cabeça,

exorcizar fantasmas, caminhar sem proteção nos pés...

O que levaria eu comigo para percorrer esta senda? Não havia instrumentos

pré-formulados, não era o caso desta pesquisa. Olhando hoje para o caminho que

percorri, considero que contei com duas coisas muito valiosas.

A primeira foi o pensamento complexo que me ajudou a me repensar o

tempo todo, reformulando o meu pensamento por meio dos operadores cognitivos

que propõe, e que me auxiliaram, desde o início, tecer, revisitar e amadurecer as

ideias aqui apresentadas. O pensar complexo me ajudou a perceber o caminho que

se descortinava para mim como um novo cheio de possibilidades inspiradoras, me

ajudando a seguir apesar das incertezas do caminho. Algo que aprendi em minha

existência como estudante e aprendiz da vida foi que o saber é algo que nos

transforma, quando nele, nos implicamos. Nesta perspectiva o pensar complexo faz

todo o sentido para mim nas palavras de Morin, quando nos diz que nunca é

afastando o conhecente que se vai rumo ao conhecimento complexo (...) É a partir da ideia de

circuito e de metassistema que precisaríamos conceber um conhecimento que produza ao mesmo

tempo auto-conhecimento. (MORIN, 2003, p. 467).

O modo de conhecer e de pensar a partir da complexidade é também,

necessariamente, um novo modo de agir com possibilidades de auto-conhecimento

que reconhece a desordem, o caos e o mistério das coisas, e advoga um princípio

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de ação que não ordena, mas organiza, não manipula, e sim, comunica, não dirige,

anima. O método que construí durante a pesquisa se volta ao começo em um

movimento espiralado do aprender a aprender e do aprender aprendendo. E o que

sou agora é mais, e é menos do que era quando iniciei a jornada. Tudo isso acalmou

o medo natural que emerge em nós frente ao desconhecido.

A segunda coisa valiosa que me auxiliou seguir nesta senda foi a

Sociopoética que me serviu de inspiração e me ajudou a fabricar escadas e pontes

que precisava para prosseguir no caminho. Foi durante o meu mestrado em

Educação pela UFC, que por ocasião de um curso/vivência oferecido pelo

Programa, ministrado por Jaques Gauthier, que conheci a Sociopoética. Considerei

a metodologia muito interessante em seus princípios. E durante aqueles anos do

mestrado tive outra oportunidade de vivenciar a metodologia quando acompanhei a

pesquisa sociopoética de uma colega como auxiliar voluntária no intuito de auxiliar

e aprender. A vivência da metodologia ficou na minha memória e me retornara

como inspiração nesta pesquisa de doutorado. Retomei as leituras e percebi a

coerência da proposta sociopoética com o caminho que precisava seguir.

A Sociopoética é uma metodologia de pesquisa que nasceu na encruzilhada

entre a Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire), a Análise Institucional (Renè

Lourau) e a Educação Simbólica ou Escuta Mito-poética (Renè Barbier). Segundo

Gauthier, a Pedagogia do Oprimido fez brotar o coração da sociopoética quando se

propõe trabalhar com o grupo-pesquisador. Da Análise Institucional a Sociopoética

herdou a análise, a auto-análise e a auto-crítica como dispositivos de pesquisa para

tornar visível o que está escondido no cotidiano, sempre por meio de uma análise

crítica da realidade social, trazendo à tona desejos e poderes que agem de maneira

velada na vida social. Da Escuta Mito-poética ou Educação Simbólica referenda a

poeticidade da existência humana porque reconhece que criamos a vida social

incessantemente. Cabe ao pesquisador escutar falas e silêncios que dão ritmos e

cores aos processos de criação em cada ser, pois são deles que se derivam os

processos de conhecer. Segundo Gauthier:

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Na poética (tal como existe na palavra „sociopoética‟) da pesquisa e da aprendizagem encontramos a diferença do outro sob a forma de criação imaginária. O outro é realmente sujeito da pesquisa, uma vez que ele cria uma realidade que não existia antes da sua expressão-criação poética. A nossa hipótese é que os seres humanos estão sempre se fazendo e desfazendo, que a humanidade neles é precisamente este perpétuo fazer e desfazer. A sociopoética, ao considerar todos e cada um como poeta, pesquisa o que é humano no ser humano, sua plasticidade, seu poder de devanear, de encontrar-criar, cada dia, a realidade. (GAUTHIER, 1999, p. 14).

O que encontrei de muito valioso na Sociopoética e que me serviu de

inspiração foi os cinco princípios que a fundamentam. Gauthier apresenta-os em

seu livro “Sociopoética. Encontro entre Arte, Ciência e Democracia na Pesquisa em Ciência

Humanas e Sociais, Enfermagem e Educação”. Para esta pesquisa busquei respeitar estes

princípios em função de sua coerência com a proposta desta pesquisa.

O primeiro princípio da Sociopoética consiste em reconhecer todo o corpo como

fonte de conhecimento. O corpo pensa! De acordo com Gauthier (1999) é na

comunidade que esse corpo pensa, é em interação com as pessoas e com o entorno

que ele pensa, se pensa e se (re)pensa. A sociopoética reconhece o corpo e no

corpo em interação uma preciosa fonte de conhecimento. É um conhecer

relacional que considera a emoção e o sentimento encarnado como forma de

conhecer o mundo. Nas palavras de Gauthier a emoção é a raiz vital de todo

pensamento. Assim, a ideia mais abstrata, o conceito mais distanciado, a teoria mais crítica,

sempre existem sob dois aspectos: uma emoção, no lado físico, corporal, do nosso modo de estar no

mundo, e uma imagem dinâmica no lado mental. (GAUTHIER, 1999, p. 23).

Estas ideias da Sociopoética corroboram com esta pesquisa e se coadunam

com o pensamento de Dalmásio (2011) quando define e diferencia emoções e

sentimentos. Emoções são complexos programas de ação, e os sentimentos que

sempre decorrem das emoções são percepções compostas, relacionadas com o que

ocorre no corpo e na mente, quando tem uma emoção em curso. Sentimentos são

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imagens de ações, e não as ações propriamente ditas. Tal distinção instaura um

diálogo entre os autores confluindo para a ideia de que o corpo pensa e se constitui

como rica fonte de conhecimento. Gauthier defende que é preciso usar nossa

potência emocional como potência de pensar, e assim, nos tornarmos mais artistas

em processos de pesquisar e aprender. Para ele o momento da emoção corresponde

ao momento em que tocamos nossa força vital e reencontramos a nossa origem

expressa na nossa história coletiva e individual.

Reconhecer o corpo como fonte de conhecimento traduz um modo de

pesquisar coerente com esta investigação. Os vínculos humanos por sua raiz afetiva

se instauram na memória do corpo, estão encarnados, e por isso, podem adquirir

substancialidade consciente com nossa capacidade de representação simbólica.

Considerar o corpo como fonte de conhecimento é algo muito pertinente para o

que buscava compreender. Para compreender o vínculo é importante considerar

este registro corporal, nem sempre acessível à consciência por meio da fala

elaborada.

O segundo princípio da Sociopoética apresentado por Gauthier (1999) é

pesquisar com categorias e conceitos oriundos das culturas dominadas e de resistência. O interesse

sob o qual se erige a metodologia sociopoética é buscar encontrar o que foi

silenciado, o saber que está nas raízes e que dorme. Des-cobrir o pensamento

silencioso e silenciado, vivo, intenso e rico de significados. Como nos diz Gauthier,

há os saberes da luz, já consagrados na luz da Razão. E os saberes escuros, da lama,

reconhecidos somente por culturas antigas, culturas dominadas (africana, indígena)

e obrigadas, em função da colonização, a não reconhecer seus saberes como

válidos, a considerar sua expressão cultural como inferior em relação à cultura

dominante europeia ocidental. São os saberes práticos das mulheres, vistos e não-

vistos como saberes, porque misturados de afetividade e confinados a mero fazer;

saberes de sobrevivência das culturas africanas, saberes populares marginalizados e

desqualificados. Gauthier reconhece a emoção como um canal pelo qual, também,

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geralmente, se expressam tais saberes. A pesquisa é sempre uma troca de saberes

entre o pesquisador e o grupo-pesquisador no qual se insere.

A produção de sentido para sociopoética é sempre contextualizada e

desvirtuada de quaisquer abstrações sem vida. O conhecimento produzido propõe

outro tipo de abstração, mais contextualizado, dita abstração por sobre-contextualização.

Isso porque propõe cada um mergulhar no contexto de sua vida, da sua experiência

singular, da sua memória e desejos inscritos no seu corpo. Tal abstração é possível

em função da escuta sensível da fala do outro sobre si mesmo, da fala do outro

sobre o que ele mesmo expressou de sua própria fala, de sua própria experiência.

Isso é possível, graças também, à criatividade artística, onde cada um expressa, e

escuta, também, do outro, o sentido de sua expressão, numa escuta plural, por

vezes, contraditória, pela visão e integração das diferenças, e pela polifonia da vida.

Uma escuta que inclui os saberes não apartados de outras fontes de saber, não

restritos somente à razão, mas inclui a emoção, o sentimento e a intuição como

suas fontes.

Este segundo principio também se coaduna a esta investigação direcionada

para busca de compreender o que está silenciado, adormecido. Há os saberes não

reconhecidos, relegados e destituídos de sua legitimidade, como bem reconhece

Gauthier. Ora, não são assim os saberes oriundos do sentir? O que há de mais

negado em função da cisão mente/corpo que instaura a modernidade ocidental?

Neste aspecto todos vivemos a opressão que nega a legitimidade do sentir. Como

afirma Toro a afectividad es una de las funciones psicológicas más perturbadas y reprimidas

dentro del mundo relacional, social, educacional e político actual. (TORO, 2012, p. 31).

Na perspectiva aqui delineada a opressão, o silencio que aqui se alude não é

“privilégio” de classe social, cultura, etnia ou gênero etc. A legitimidade do sentir

como expressão da identidade humana, como um dos aspectos mais negados e

silenciados no mundo ocidental, se apresenta como uma enfermidade da

civilização. E a opressão aqui também tem a face da modernidade colonialista que

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mascara a relação opressor/oprimido tornando-a mais complexa porque não a

reduz aos aspectos econômicos e de escolaridade. Este princípio da pesquisa

sociopoética adquire legitimidade quando refiro ao contexto desta pesquisa e os

sujeitos que dela participam, quais sejam, os profissionais de saúde e usuários da

atenção básica do SUS.

O terceiro princípio da sociopoética segundo Gauthier (1999) é considerar

os sujeitos pesquisados como responsáveis pelos conhecimentos produzidos. O centro-vivo da

sociopoética, como defende o autor, é o grupo-pesquisador que se torna uma exigência

ético-política da sociopoética. As pessoas pesquisadas são convidadas a compor um

grupo-pesquisador. Isto vai além de compreendê-las somente como sujeitos

produtores de dados e/ou informações, para quem o sentido final da pesquisa,

acaba, por vezes, escapando-lhes quase que totalmente. Sobre esse ponto Gauthier

apresenta importantes reflexões. O que esta pesquisa trará para esses sujeitos? Que

efeitos, favoráveis, úteis trará ou não? Ficará nas gavetas? Sua utilidade se restringe

ao uso acadêmico do pesquisador e se prende à lógica individualista utilitária? A

pesquisa terá um sentido partilhado, dialogado com o grupo produtor dos dados?

Estas eram questões também muito cara para mim.

A partir de seus princípios a sociopoética busca criar dispositivos para

romper com estas práticas ao transformar os sujeitos da pesquisa em grupo-

pesquisador, outorgando-lhes poder na produção e realização da pesquisa até o seu

final, com a socialização, que assume a forma criativa que o grupo sugerir. Os

pesquisados são co-pesquisadores, parceiros dos facilitadores da pesquisa, tanto em

termos de construção, como de decisões sobre a pesquisa. Isso implica um planejar

cuidadoso sobre a entrada no grupo sujeito da pesquisa. A escolha do tema que

gere interesse por parte do grupo em aprender e/ou gerar conhecimento, a

produção, a análise e a interpretação dos saberes que serão gerados pela pesquisa,

sua socialização e teorização. Na sociopoética importa, pois uma co-construção ou

co-produção, ou ainda, co-criação de conhecimentos.

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Este princípio, embora à primeira vista, pareça não ter coerência com a

proposição desta pesquisa, em função do tema previamente escolhido, adianto aqui

que, ao longo do seu percurso metodológico, o tema passou a ser também de

interesse para o grupo pesquisador. Reconheço aqui que a proposição e o desejo de

saber sobre o tema foi meu, inicialmente, até compor o grupo pesquisador.

Entretanto, reconheço que passou a ser curiosidade também do grupo pesquisador.

Primeiro porque era um tema inerente ao seu processo de trabalho e, segundo, por

tratar de um assunto nunca antes debatido entre eles.

O quarto princípio de acordo com Gauthier é a criatividade de tipo artística no

pesquisar, no conhecer e no aprender. Para o autor a sociopoética transgride a linha

divisória entre arte e ciência. Ela solicita as pessoas sua expressão sobre o não dito,

o escondido, seja no pensar, seja no sentir por sob a camada da pele, e presente no

corpo. Durante o processo de pesquisar o grupo pesquisador é sempre convidado a

um relaxamento que propicia baixar o nível de controle consciente para que possa

ter espaço para expressão de saberes imersos, congelados, enterrados na história

coletiva e individual do grupo-pesquisador. Esse relaxar é o caminho para

expressão da imaginação que também fez parte do nosso caminho como grupo

pesquisador. A criatividade também faz parte da sociopoética na criação e

proposição de dispositivos com potencial capaz de mediar a produção de

conhecimento por parte do grupo pesquisador.

O quinto e último princípio da sociopoética é o sentido humano e espiritual da

pesquisa e da construção do conhecimento, como apresenta Gauthier (1999). Esse

princípio é o que afirma o posicionamento ético da sociopoética sintetizando os

anteriores. Para a sociopoética o grupo-pesquisador é construído e o pesquisar

junto é um aprender mútuo em que o pesquisador facilita o processo de

aprendizagem criando dispositivos e proporcionando um espaço-tempo para

construção de conhecimento.

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As experiências vividas se constituem como troca em que a visão crítica e

autocrítica, em um espaço de autonomia e liberdade, desvela novos saberes e abre

para construção de outros. Gauthier esclarece que a espiritualidade no pesquisar toma

uma forma iniciática através da descoberta de que nosso saber é abertura para um não saber

radical. Já, o respeito fiel, carinhoso, da palavra dos outros, nas nossas análises e experimentações,

era uma preparação para este não saber. (GAUTHIER, 1999, p. 71). Para o autor esse

não saber é duplamente crítico. Primeiro porque essa atitude respeitosa, imbuída de

uma escuta sensível, proporciona distanciamento crítico em relação às demais falas.

E assim, ele não se deixa abusar por estes conhecimentos novos, alvo de críticas e

questionamentos, tanto em termos institucionais como espirituais.

Estes cinco princípios da pesquisa sociopoética foram fundamentos e

inspiração para os passos do caminho que aqui trilhei. Reconheço como

pesquisadora que ciência, arte, filosofia e espiritualidade não se separam. E mais, há

uma preocupação em (re)criar a democracia na produção do conhecimento.

Gauthier afirma que a sociopoética não é uma nova teoria científica, inclui uma

teoria da pesquisa e do ensino/aprendizagem. Sobre isso, ele declara que:

A sociopoética é uma construção, talvez feita de pedras, talvez de águas, talvez de lama, talvez de chamas, talvez de magmas, talvez de ventos e nuvens e relampados, mas uma construção sim, explicitamente filosófica. Instituir um grupo-pesquisador, convidar culturas de resistência para participarem da leitura de dados produzidos pelo corpo inteiro, a partir de técnicas artísticas intensificando as potências do inconsciente, da emoção, das sensações, de intuição e da razão, questionar o sentido da pesquisa, todo isso é, além de um posicionamento filosófico, uma prática específica da filosofia. Assim torna-se o grupo-pesquisador um filósofo coletivo, um pensador consciente de si, um fragmento de espaço-tempo na vida popular, que participa da criação filosófica. (GAUTHIER, 2005, 25).

O filosofar para sociopoética não é tarefa reservada somente para

especialistas, mas deita suas raízes no “plano da imanência”. Este, segundo o autor,

é o plano em que mergulha o grupo-pesquisador, tendo na escuta sensível e na

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escuta-fala sensível dos facilitadores e dos membros do grupo, a condição para um

desvelar e analisar os problemas da vida social no plano do pensamento.

Os cinco princípios apresentados permitem um modo de tradução de

problemas formulados do plano da imanência para o plano de consistência, explica

Gauthier. O plano da consistência é um lugar onde os conceitos filosóficos são

(re)criados, (re)formulados, destruídos, (re)organizados em redes e nós, tecendo

uma composição artística criadora, desveladora da realidade. A produção de

conhecimento pelo grupo pesquisador ocorre justo na passagem do plano da

imanência para o plano da consistência em que se dá a criação dos confetos -

conceitos misturados com afetos, explica Gauthier. Os confetos se constituem como

crítica aos conceitos instituídos. Isso porque traçam linhas de desterritorialização,

linhas de fuga que expressam novos desejos e desvelam a atividade filosófica.

Para Petit e Adad (2009) a elaboração do pensamento pelo grupo-

pesquisador mediante a produção de confetos é um diferencial da sociopoética e

convergem para o objetivo de potencializar o grupo pesquisador para ser capaz de

criar pensamento. Nesta perspectiva a sociopoética se constitui como criadora,

potencializadora, reveladora e analisadora de confetos. Os confetos, que podem ser

inéditos ou não, são elaborados mediante a transferência do grupo-pesquisador do

plano da imanência para o da consistência; plano em que não dependem mais do

seu contexto de nascimento, e passam a se relacionar com outros conceitos.

Gauthier esclarece que podemos dizer que raramente, antes, a não ser em experiências

literárias e artísticas radicais, encontrou-se tal possibilidade de criação de confetos. Expressamos

isso ao dizermos que “o corpo pensa”. Talvez seja esse momento a mais rica e específica

caracterização da sociopoética. (GAUTHIER, 2005, p. 56).

A auto-análise e a análise coletiva das implicações de cada participante do

grupo-pesquisador com o tema da pesquisa tem potencial para gerar processos de

conscientização, um conhecimento crítico de si e da instituição em que se inserem.

Desse modo, a pesquisa sociopoética implica criar e proporcionar momentos em

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que a imaginação possa entrar em cena. Para tanto recorre a diversas técnicas e/ou

dispositivos que instigam a imaginação do grupo pesquisador e fazem brotar os

mitos coletivos e individuais, que dão significado ao cotidiano e desvelam os

saberes submersos.

A arte e a imaginação foram os mediadores a que recorri como quem usa

redes de pescar ideias/pensamentos, ideias/sentimentos silenciados. O pensar

complexo e os princípios da sociopoética se constituíram como o jeito de caminhar

com coerência por esta senda que me serviram ora como bússola, ora como escada,

ora como barco para percorrer a trilha para a qual me direcionei.

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PARTE 2

São as perguntas que nos movem,

bem mais que as respostas.

São os ventos da dúvida

que alçam voos aos pensamentos

E a imaginação são as asas

que os conduzem a planar pelos ventos

E, então, tudo se mostra

em outras perspectivas.

(Idalice)

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2.1. A Saúde Coletiva e a necessidade de um Pensamento Complexo.

É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. (Edgar Morin)

A Saúde Coletiva, como vimos, configura-se como campo de saber em

meio a querelas e contradições de ideias e ideais. Bourdieu (1976) desnuda a

produção científica como uma atividade humana mergulhada em um campo

marcado por disputas. Trata-se, na verdade, de uma arena em que se desenrola um

jogo político em que se busca o prestígio do poder social cujo usufruto confere

monopólio de determinadas competências científicas, outorgadas por agentes que

legitimam socialmente tal autoridade. Esse campo, segundo Bourdieu, produz suas

formas específicas de interesses que afastam, desde logo, do equívoco de confundir

competência científica com a pura capacidade técnica destituída do poder

simbólico, ou seja, a legitimidade da competência científica não se deve a pura

competência técnica.

Bem, se na produção científica a legitimidade não se equipararia à

competência técnica, certamente é preciso compreender os fatores que legitimam as

pesquisas como um saber válido voltando-se para a conduta ética dos que

trabalham na produção científica. A pesquisa qualitativa no campo de saber da

Saúde Coletiva não desfruta de total legitimidade, mas certamente, menos por falta

de competência técnica na produção científica com enfoque qualitativo, do que pela

(in)compreensão epistemológica da subjetividade como parte inerente da produção

do conhecimento como um processo subjetivo e objetivo ao mesmo tempo.

A crise de paradigma datada do início do século passado anuncia hoje que

já não se pode produzir conhecimento reduzindo-o somente ao que é quantificável,

com base em certezas absolutas e postulados de verdades. Segundo Bourdieu

(1976) há uma predisposição em relação às teorias das ciências em preencher

funções ideológicas no campo científico quando universalizam propriedades

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próprias de estados particulares desses campos. É o caso do Positivismo segundo

relata o autor, afirmando que este “confere à ciência o poder de resolver todas as questões que

ela coloca (desde que cientificamente colocadas) e de impor, pela aplicação de critérios objetivos, o

consenso sobre suas soluções; inscreve assim, o progresso na rotina da „ciência normal‟ e age como se

pudesse passar de um sistema para outro − de Newton a Einstein, por exemplo − pela simples

acumulação de conhecimentos, pelo refinamento das medidas e pela retificação dos princípios.

(BOURDIEU, 1976, p. 21).

Em face das críticas já não é possível o pesquisador se manter numa

posição de neutralidade, expressa pela impessoalidade do discurso científico

clássico, do qual o sujeito desaparece e, ao fazê-lo, se instala como portador da

verdade e, por meio de uma posição de “faz-de-conta-que-não-estou-aqui”, investe-se de

um espírito ptolomaico que se acredita no centro, ao identificar-se com a

objetividade soberana.

A ideia de sistema se impôs na Biologia já no final do século XIX e

intensificou-se na década de 60 do século passado com a noção e ecossistema que

opera com uma ideia de conjunto das interações entre populações vivas, que

inserida no mundo geofísico, constitui uma unidade complexa em sua organização.

A Biologia se amplia e enriquece hoje com as contribuições da ecologia profunda.

Os atuais conhecimentos da Física nos apontam que todos os elementos

subatômicos apresentam um comportamento dual apresentando-se, ora como

onda, ora como partícula. Tais concepções esclarecem a impossibilidade de apartar

observador e fenômeno observado, tanto numa realidade microfísica como

cosmofísica. O observador humano está tão intimamente inserido em todo o

processo do conhecimento que é, ele próprio, que contribui para determinar a

natureza dos fenômenos. Não há, portanto, uma separação sujeito-objeto, e o

observador humano se encontra radicalmente imbricado neste processo.

O fazer científico neste século já não pode ignorar a presença do caos e da

desordem e, tampouco, o fato de que tudo o que há no universo constitui sistemas

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bem articulados, e menos ainda suas posições ideológicas. É inegável hoje que a

complexidade se apresenta como infra-estrutura do universo, e que precisamos

elaborar novas formas para pensar que articulem o geral e o específico.

Segundo o biólogo Maturana (1998, 1999, 2004) nossa condição humana é

decorrente do modo como nos relacionamos uns com os outros e com o mundo

que construímos enquanto vivemos. Na origem, tudo se conecta, e o mundo tal

como o percebemos, é uma coautoria dos humanos em suas relações recíprocas

entre as demais espécies, vivas e não vivas. Em seu livro clássico A Árvore do

conhecimento, escrito em parceria Francisco Varela, defende como tese central de co-

construção do mundo ao longo da coexistência humana e com os demais seres

vivos com os quais compartilhamos nosso processo vital. A argumentação central

do livro é que o mundo não nos é pré-existente, nós o construímos, e por ele

somos construídos de forma compartilhada com os demais seres vivos em um

movimento de co-dependência, que não exclui a autonomia, mas coloca autonomia

e dependência em relação dialógica e circular.

É preciso reconhecer como o faz Mariotti que a complexidade não é um conceito

teórico e sim um fato da vida. (2002, p. 87). Tudo está em relação com tudo, nada está

isolado e coexiste com tudo. Os fenômenos existem intricados em suas

circunstâncias e a dualidade se insere na totalidade e lhe confere dinamismo e

elegância. Reconhecendo a complexidade como um fato da vida é necessário, pois,

um pensar complexo. Mas do que trata isso? O que seria um Pensar Complexo, e em

que medida se relaciona com a Teoria da Complexidade?

Edgar Morin em seu livro Cabeça bem feita. Repensar a Reforma. Reformar o

Pensamento apresenta ideias que articulam o Pensar Complexo às Teorias da

Complexidade. Morin reconhece de início que a hiperespecialização nos impede de

ver o global porque o fragmenta e, também, o essencial, porque o dilui. As ciências

compartimentadas em disciplinas trouxeram a vantagem de divisão do trabalho, e

também a inconveniência da superespecialização, que produz, junto com o

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conhecimento, ignorância e cegueira. Um mundo globalizado com problemas

multidimensionais e planetários torna seus problemas impensáveis, sem uma

inteligência capaz de perceber o contexto e a complexidade dos fenômenos.

É necessário, segundo Morin (2003a), um conhecimento pertinente, um

modo de conhecer que situe a informação em seu contexto, uma capacidade de

pensar que ao invés de separar e compartimentar, articule os saberes para propor

explicações, novas compreensões e soluções. Como defende o autor é necessário

integrar os saberes, primeiro em função de sua gigantesca produção, cuja expansão

escapa ao controle humano e, segundo, porque a limitação do conhecimento

fragmentado restringe seu uso, ao técnico, e assim, se perde da essência da vida

humana, se tornando estéril para lidar com os problemas globais.

Morin defende que a necessidade do pensamento complexo se desenha em

função de três grandes desafios: o desafio do global, o do complexo e o da

expansão descontrolada do saber (MORIN, 2003a). Em função deste cenário o

autor francês argumenta que ao invés de acumular o saber é necessário desenvolver

uma aptidão geral para tratar os problemas e dispor de princípios organizadores que nos

permitam ligar os saberes conferindo-lhes sentido. E o que seria essa aptidão geral de

que fala Morin? Ao contrário do comumente aceito, quando mais se desenvolve a

inteligência geral, maior será sua capacidade de tratar problemas específicos, pois as

aptidões gerais da mente é que permitem um desenvolvimento de competências

específicas. Para Morin uma cabeça bem feira é uma cabeça apta a organizar os conhecimentos

e, com isso, evitar sua acumulação estéril. (MORIN, 2003a, p. 24).

Para enfrentar a fragmentação dos saberes e a separação dual

sujeito/objeto, corpo/mente, objetivo/subjetivo é preciso conceber o que os une,

recolocar os objetos em seu contexto natural de onde foi isolado. A progressão do

conhecimento, de acordo com a psicologia cognitiva, salienta Morin, resulta menos

da sofisticação, formalização e abstração do que da aptidão para integrar o

conhecimento em um contexto geral. Isso não apenas favorece a progressão do

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conhecimento, como também, nos ajuda a perceber que o contexto modifica o

objeto e/ou ajuda a explicá-lo de outra maneira. Esse modo de pensar é que

configura um pensar complexo.

Morin nos esclarece que o pensamento complexo é aquele que não apenas

descobre novas perspectivas de explicação em função da articulação que resulta da

aptidão geral, mas também, é capaz de operar com inter-retro-ações entre os

fenômenos e o contexto no qual se inserem, e compreender como as partes se

relacionam com o todo em reciprocidade, reconhecendo a unidade na diversidade,

e vice-versa. Com esse modo de pensar é possível então perceber a unidade

humana em meio à diversidade cultural, bem como, perceber as diversidades

culturais em meio à unidade humana em suas individualidades.

Para seguir nesta senda, Morin deixa claro que o problema a ser enfrentado

não é abrir as fronteiras entre as disciplinas, e sim, transformar o que gera as

fronteiras. Daí a necessidade de reformar o pensamento a partir de novos

princípios organizadores. Segue o autor com sua linha de argumentos a partir das

questões: quais são os princípios que poderiam elucidar as relações de reciprocidade entre partes e

todo, bem como reconhecer o elo natural e insensível que liga as coisas mais distantes e as mais

diferentes? Quais são as maneiras de pensar que permitiriam conceber que uma mesma coisa possa

ser causada e causadora, ajudada e ajudante, mediata e imediata? (MORIN, 2003a, p. 25-

26).

Para reformar o pensamento é preciso reformar os princípios que

organizam o nosso pensar. Morin aborda esse ponto recordando o Discurso sobre o

Método, de Descarte, em seu segundo e terceiro princípio, quais sejam: Divisar cada

uma das dificuldades, que examinarei em tantas parcelas quanto seja possível e requerido para

melhor resolvê-las... e conduzir meus pensamentos por ordem, começando pelos assuntos mais

simples e mais fáceis de conhecer, para atingir, pouco a pouco, como que degrau por degrau, o

conhecimento dos assuntos mais complexos... (MORIN, 2003a, p. 87).

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Tais assertivas desvelam, segundo Morin, os princípios da separação e da

redução, princípios com os quais operam a consciência científica. O segundo

princípio que se traduz na segunda assertiva, o da redução, comporta ainda, duas

ramificações: a primeira que reduz o conhecimento do todo ao conhecimento

adicional de suas partes, e a segunda, que limita o conhecimento ao que é

quantificável. Tal redução condiciona a validade conceitual apenas ao que pode ser

mensurável.

Sabemos que tais princípios hoje se revelam insuficientes face à

planetarização e à globalidade dos problemas que enfrentamos como humanidade.

É preciso então, defende Morin, substituir um pensamento disjuntivo e redutor por

um modo de pensar que distingue e une, ou seja, é preciso um pensamento capaz

de pensar o sentido original do complexus, como aquilo que é tecido junto. Morin aponta

sete diretivas complementares e interdependentes para um pensar capaz de unir e

religar, que apresento suscintamente:

1. Princípio Sistêmico ou Organizacional - ligação das partes ao todo;

2. Princípio Hologramático - evidencia que o todo está parte e vice-versa;

3. Principio do Circuito Retroativo - permite conhecer processos auto-

reguladores;

4. Principio do Circuito Recursivo - circuito gerador em que os produtos e os

efeitos são, eles mesmos, produto e causa do que os produz;

5. Princípio da autonomia/dependência (auto-organização) - auto-produção dos

seres vivos que se auto-produzem na dependência de energia do meio

ambiente para manutenção da vida;

6. Princípio Dialógico - união de dois fenômenos que apesar de excluírem-se

reciprocamente, são ao mesmo tempo, indissociáveis. Exemplo: a

dialógica entre ordem/desordem/organização.

7. Princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento - restaura o

sujeito desvelando que tudo saber é feito por uma mente/cérebro

contextualizada e datada na história.

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Estas imagens fractais nos ajudam a compreender de forma imagética

alguns desses conceitos.

Morin explica ainda que a reforma do pensamento não pode ser

programática, mas é de natureza paradigmática porque, justamente, refere a nossa

maneira de organizar o pensamento. Como diz Mariotti (2000), corroborando

Morin, a complexidade diz respeito a um entrelaçamento múltiplo de uma

infinidade de sistemas que fazem parte da composição do mundo natural. Estamos

inseridos em uma complexidade que precisamos compreender para conviver com

ela, já que não é possível reduzir a multidimensionalidade a explicações simplistas,

com fórmulas simplificadoras e esquemas fechados de ideias.

A partir dos princípios apontados por Morin, Mariotti propõe um pensar

complexo com ajuda do que ele chama de operadores cognitivos do pensamento

complexo, traduzidos como instrumentos epistemológicos úteis para colocar em

prática esse modo de pensar, são eles: o pensamento sistêmico, a circularidade, a noção de

circularidade produtiva, o operador hologramático, o operador dialógico e a transacionalidade

3 – Conjunto de Fractais

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sujeito-objeto. (MARIOTTI, 2000, p. 89). O interessante nesta proposição do autor é

apresentar tais princípios alçados à qualidade de operadores cognitivos porque nos dá

uma visão prática de tais princípios apresentados por Morin.

Um saber de fronteira exige um pensamento complexo e a Saúde Coletiva

vem se aproximando deste modo de pensar em função da difusão das Teorias da

Complexidade, que adquirem significativa expressividade neste início de século.

Esta aproximação se evidencia em uma publicação no campo da Saúde

Coletiva intitulado: Complexidade e Metodologia: um refinado retorno às fronteiras do

Conhecimento apresenta como desafio para esse campo de saber situar a ideia de

complexidade. O estudo apresenta o complexo a partir de sua etimologia, que o

define como entrelaçado, abraçado, intricado em suas circunstancias, e o reconhece

como uma das formas de apreensão do mundo pela mente humana. Neste estudo a

autora explicita que A Saúde Pública tem-se interessado pela investigação do conceito de

complexidade e daqueles que lhe são estreitamente aparentados, como o de transdisciplinaridade,

ora esmiuçando a sua pertinência para o nosso campo teórico ou o seu estatuto epistemológico, ora

explorando as vantagens das metodologias a que ele remete, em termos de sua utilidade para uma

mais efetiva intervenção na realidade. (ALEKSANDROWICZ, 2002, p. 57).

O texto comenta as contribuições de autores da Nova Ciência, destacando

a Teoria da Auto-organização de Henti Atlan, a Teoria do Caos e a contribuição de

diversos outros nomes da ciência para pensar os campos limítrofes da Física,

Química e Biologia, reunindo por fim construtos da filosofia espinosana para

pensar a ética e os desafios das ciências e seus dilemas no século XXI. Ao final do

estudo a autora afirma que o proposto retorno ao pensamento moderno com um

olhar centrado na complexidade constitui-se em um esforço de renovação que vem

se refinando e consolidando o termo complexidade como uma significação cultural mais

ampla, intermediária às várias conotações correlatas a sua utilização por esse ou aquele autor, que

nos parece ter mais aspectos positivos do que negativos, em especial quando fazendo parte da defesa

de uma atitude audaz diante dos saberes instituídos. (ALEKSANDROWICZ, 2002, p. 71).

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Outra publicação no campo da Saúde Coletiva de Helena Oliveira em

parceria com Maria Cecília Minayo refere, especificamente, um texto com o título

Complexidade e Mortalidade Infantil em que a autora aborda os conceitos de auto-

organização da vida, da Cibernética, referindo também os conceitos de Entropia da

Termodinâmica e de acoplamento estrutural proposto por Maturana e Varela

(1995) para descrever, de um modo inovador, a interação dos organismos vivos

com o meio. Elas referem tais conceitos para problematizar a morte, sobretudo, a

morte precoce, e se pergunta o que é a vida. A partir desses fundamentos as autoras

reconhecem que a vida e a morte são aspectos de um mesmo processo. A partir

disso ela tece argumentações explicitando que não há uma determinação de vida ou

de morte, de saúde ou de doença. Ela conclui o artigo ressaltando que a história

mostra trajetórias de pessoas que nasceram em condições totalmente desfavoráveis e conseguiram, a

partir da desordem e do ruído, construir sua expressão social. A imagem do caleidoscópio é de

grande valia para se compreender a relação complexa que estabelecem os vários fatores na

determinação do viver e morrer das crianças. (OLIVEIRA; MINAYO, 2002, p. 45).

Tais publicações que remetem à complexidade a que me referi no campo da

Saúde Coletiva integram uma publicação organizada por Minayo e Deslandes

(2002) com o título Caminhos do Pensamento. Epistemologia e Método, que reúne textos

que buscam novos fundamentos para pensar velhas questões da saúde coletiva

como, por exemplo, a mortalidade infantil, e o faz de maneira tal que torna possível

escapar dos circuitos deterministas ambientais ou individuais para explicação do

fenômeno. Acredito que além de fundamentar-se em teorias que compõe a Nova

Ciência, é preciso reformar o pensamento buscando um modo de pensar em

função dos operadores cognitivos para usar os termos de Mariotti.

Reconheço que não é uma questão de simples desejo ou escolha a opção de

reformar o pensamento. Não é uma simples decisão em que nos propomos de

agora por diante usarei somente os operadores cognitivos do pensar complexo.

Reconheço que nosso modo de pensar está condicionado por séculos de

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construção da ciência clássica. É preciso questionamentos desconfortáveis que nos

tirem de nossas crenças e façam rachar o nosso chão.

Mariotti (2002) adverte sobre os condicionamentos do pensar e apresenta

interessantes comentários a partir da pergunta: como começou a unidimencionalização de

nossa mente pelo raciocínio linear? O autor tece longos comentários sobre os

condicionamentos culturais oriundos da cultura hegemônica patriarcal que marcou

o início de um longo processo de moldagem da mente humana em função do

modelo mental linear. Portanto, não seria uma simples decisão, mas uma constante

auto-vigilância, porque se trata de condicionamentos de pensar.

Marriotti segue suas considerações sobre as culturas patriarcal e matrística,

para esclarecer os condicionamentos da nossa mente. Trata-se de

condicionamentos porque o nosso cérebro está naturalmente preparado para o pensamento

complexo, seus neurônios funcionam não apenas em termos de binariedade zero/um, sim/não,

mas estão também preparados para lidar com situações complexas, nas quais é preciso pensar em

termos de „talvez‟ ou “e se‟? Após apresentar os modos de pensar das culturas patriarcal

e matrística, que não me deterei aqui, o autor esclarece, que ao contrário do que

comumente poderíamos pensar, a cultura matrística não excluía os valores

masculinos e não se trata, portanto, de substituir uma cultura pela outra. O que está

em jogo é, segundo argumenta o autor, o que hoje vemos em várias partes do

mundo, é um movimento que busca as complementaridades, que se traduz pelo

entrelaçamento dos modelos linear e sistêmico de pensar. Trata-se, portanto, de

convivência e, segundo adverte Mariotti, esta não é uma possibilidade garantida,

tampouco, se poderia afirmar o contrário, concebendo-a como impossível.

Procurando ser vigilante com meus condicionamentos assumo minha

escolha, ancorada no meu desejo de produzir conhecimento sobre a realidade e

fazê-lo apostando na possibilidade de operar com um modo de pensar capaz de

unir, já que me proponho a pensar sobre o vínculo, que tem por definição

etimológica a ideia de elo, ligação, tudo que ata, liga ou aperta.

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~ 135 ~

2.2. O vínculo no campo da Saúde Coletiva – nexos e desconexos. Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa,

mas dialogar com a incerteza. (Edgar Morin)

Toda referência ao vínculo no âmbito da Saúde Coletiva aparece, como

vimos, inserida em um amálgama semântico junto com outras palavras:

acolhimento, responsabilização, autonomia, longitudinalidade do cuidado... Todas

elas aludidas no discurso da Integralidade do SUS. Há nexos que unem

indistintamente o vínculo com outras palavras, e há também, desconexos de sua

semântica e o contexto em que se inserem.

Para mim, mais importante do que retirar a palavra do amálgama semântico

em que se encerra é buscar compreender os nexos que possibilitaram esta

construção, tal como se apresenta. Isso porque acredito que são os nexos que a

constituiu desse modo que nos dará a visão do discurso em termos de seus

fundamentos ontológicos e epistemológicos.

A tarefa que me proponho agora é buscar explicitar o que fundamenta este

modo de compreensão no âmbito da produção do saber em saúde coletiva e

problematizar o discurso no intuito de ampliar e aprofundar a questão. Recorro

agora aos operadores do pensamento complexo - sistêmico, hologramático,

retroativo, recursivo, dialógico e auto-organizativo - para refletir sobre o vínculo e

problematizar o discurso no qual se insere. Farei isso explicitando alguns eixos que

considero importantes para problematizar o tema a partir de perguntas.

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~ 136 ~

2.2.1. O vínculo tem lugar no campo da Saúde Coletiva?

Por que a palavra vínculo se enquadra no discurso da integralidade como

princípio do SUS? Por que as práticas de saúde são analisadas e pensadas referindo

os princípios em separado, ou isolado uns dos outros, a depender da natureza das

práticas de saúde que se investiga? Em que medida tal separação aprofunda e/ou

empobrece nossas análises? Estas são as questões as quais vamos nos ater neste

primeiro eixo de problematização.

Se observarmos bem, há um discurso particular que se ancora com ênfase

neste ou naquele princípio do SUS. Assim, por exemplo, se o discurso aborda as

políticas de Humanização o princípio chave é a Integralidade da atenção à saúde. Se

o discurso refere o acesso e/ou a inclusão de minorias, tais como da população

negra, indígena, etc, o princípio aludido é a Equidade. A Universalidade já não é tão

referida em função de análises que constatam seu avanço como conquista de

relativo avanço no SUS, sendo pouco referida como tema de pesquisa. Como já

nos referimos anteriormente, há aqui uma fragmentação do olhar.

Como ilustração desse modo de pensar fragmentado, destacamos o pensar

de Cecílio (2009) quando tenta se afastar deste foco e aborda os princípios do SUS

se propondo a toma-los em sua interrelação. Para o autor os princípios do SUS

Universalidade, Integralidade e Equidade formam um conceito tríplice entrelaçado,

apresentando-se como um signo poderoso capaz de expressar o ideário da Reforma

Sanitária no Brasil.

Seguindo esta linha de pensar, Cecílio se propõe a refletir sobre isso

tomando como princípio analisador as necessidades de saúde reconhecendo a

incontornável complexidade do conceito, mas ao mesmo tempo, buscando

conceituá-la de maneira tal que possa ser apropriada pelos trabalhadores de saúde

com vistas à humanização e a qualificação dos serviços.

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~ 137 ~

O autor assume essa difícil tarefa aceitando um pressuposto que reconhece

as necessidades de saúde em sua determinação histórica e social sendo, por isso,

captadas em sua dimensão individual, mas que, por outro lado, trata-se de uma

conceituação que, em sua operacionalização, não pode suprimir a dialética

individual/social. Cecílio propõe então uma taxonomia em que as necessidades de

saúde poderiam ser apreendidas de forma abrangente em quatro conjuntos.

O primeiro deles aponta para o usufruto de todos de “boas condições de

vida”. Cecílio chama atenção aqui para o fato de compreendermos isso tanto em

termos funcionalistas quanto marxistas. Ele justifica isso afirmando que os fatores que

determinam processos de adoecer são tanto ambientais, ou seja, externos, mas

também, são relacionados aos lugares que os humanos assumem nos processos

produtivos das sociedades capitalistas. O que é importante reter aqui é considerar

que para o autor é preciso abraçar ambas as ideias no que elas trazem de consenso,

qual seja “a maneira como se vive se „traduz‟ em diferentes necessidades de saúde”

(CECÍLIO, 2009, p. 118).

O segundo conjunto da taxonomia que destaca o autor é a necessidade “de

se ter acesso e se poder consumir toda tecnologia de saúde capaz de melhorar e prolongar a vida”

(CECÍLIO, 2009, p. 118). Aqui o autor abandona toda pretensão de hierarquizar as

tecnologias. Auxiliado pelos conceitos de Merhy (1997) das tecnologias leve, leve-duras e

duras que permite compreender mais apuradamente que o valor de uso de cada

tecnologia é definido em função da necessidade de saúde da pessoa em momento

singular de vida, e não apenas do ponto de vista técnico.

O terceiro conjunto de necessidades apontado por Cecílio é a

“insubstituível criação de vínculos (a)efetivos entre cada usuário e uma equipe e/ou

um profissional – vínculo enquanto referência e relação de confiança, algo como o

rosto do sistema de saúde para o usuário” (...) o estabelecimento de uma relação contínua

no tempo, pessoal e intransferível, calorosa: encontro de subjetividades. (CECÍLIO, 2009, p.

119). Construir o vínculo nesta perspectiva vai além da adscrição formal da clientela

ao serviço, ressalta o autor.

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~ 138 ~

Por fim, o quarto conjunto de necessidades de saúde relaciona-se com

crescentes graus de autonomia que o ser humano tem ou adquire no seu modo de

levar a vida. Cecílio reconhece aqui que a saúde e a educação são apenas parte nesse

processo de construção e autonomia dos sujeitos. Em síntese, a taxonomia de

Cecílio pode ser melhor visualizada no esquema a seguir:

É importante refletir sobre o porquê da proposição de uma taxonomia das

necessidades de saúde para reconceituá-las. Taxonomia deriva da junção de algumas

palavras gregas, táksis cujo significado está ligado à palavra classificação e nómos, que

significa regra, lei, uso. Segundo o dicionário taxonomia seria então uma teoria ou

nomenclatura das descrições e classificações científicas. Percebo que o uso da

taxonomia pode nos conduzir facilmente para a ideia própria da natureza da

proposição das grades taxonômicas em hierarquizações. No caso, as necessidades

de saúde aqui podem ser tomadas em seus condicionamentos lineares do tipo: isso

primeiro, para depois aquilo. Em outras palavras, tal uso da taxonomia poderia

fundamentar discursos, muito em voga, de que se não há boas condições de vida

como saneamento, emprego, etc. (primeiro conjunto da taxonomia) e não há acesso

ou disponibilidades de todas as tecnologias, não é possível, então, construir um

vínculo e autonomia que condicionam as práticas integrais de saúde.

A linha pensar de Cecílio, apesar de partir do conceito tríplice segue

focando somente o princípio da integralidade a partir de sua taxonomia

1

•Boas condições de vida; •A maneira como se vive se traduz em diferentes necessidades de saúde.

2

•Ter acesso e consumir tecnologia de saúde capaz de melhorar e prolongar a vida; •Valor de uso de cada tecnologia (leve, leve-duras, duras) definido em função da necessidade de saúde da pessoa no momento singular da vida.

3 •Criação de vínculos afetivos entre usuário e equipe de saúde

•Vínculo – além da adscrição de clientela

4 •Crescente graus de autonomia que o humano tem ou adquire no seu modo de levar a vida.

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apresentando-a em duas dimensões. A primeira, a Integralidade Focalizada, que como

o próprio nome sugere, é a dimensão trabalhada por uma equipe de saúde que atua

em seu espaço delimitado, seja em um hospital ou em um Centro de Saúde da

atenção básica. A segunda é a Integralidade Ampliada que decorre do reconhecimento

de que a integralidade nunca será plenamente exitosa se depender apenas dos

espaços singulares dos serviços. É preciso também pensar em termos “macro” e

visualizar os serviços em rede. Nas palavras do autor, a integralidade ampliada é

fruto desta articulação em rede, institucional, intencional, processual, das múltiplas

„integralidades focalizadas‟ que, tendo como epicentro cada serviço de saúde, se articulam em fluxos

e circuitos, a partir das necessidades reais das pessoas – integralidade do micro, refletida no macro.

(CECÍLIO, 2009, p. 123).

Embora o próprio autor não explicite isso em seu texto, é fácil perceber

que os dois primeiros conjuntos da taxonomia tem relação estreita com as

exigências da integralidade em sua dimensão ampliada. Seguindo a mesma lógica, a

integralidade focalizada depende de uma sensibilidade para os dois outros

conjuntos de necessidades, vínculo e autonomia. Como forma de efetivar a

integralidade o autor propõe o uso de uma taxonomia como forma de reconceituar

as necessidades de saúde. Segundo afirma, os temas integralidade podem ser

trabalhados com as equipes a partir da adoção de uma taxonomia quando diz que a

adoção de uma taxonomia de saúde é o primeiro passo para isso, mesmo que „enquadrar‟ um tema

tão complexo em alguma forma de classificação acabe sendo sempre, um risco de reducionismo ou

simplificação excessiva. (CECÍLIO, 2009, p. 127). A figura abaixo é uma síntese minha

sobre a linha de pensar de Cecílio:

Conjunto 1

Condições de Vida Integralidade Ampliada

A que é pensada em

rede

Integralidade Focalizada

A que é trabalhada em equipe de CSF

Conjunto 2 Acesso a

tecnologias

Conjunto 3

Graus de autonomia

Conjunto 4

Vínculo

5 – Taxonomia para efetivação da Integralidade da atenção à saúde (Cecílio, 2009)

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~ 140 ~

Esta perspectiva de pensar os Princípios do SUS partindo das necessidades

de saúde tem um peso considerável do pensamento linear e hierárquico. A

proposição de uma taxonomia, no meu entendimento, teria pouco ou nenhum

efeito para efetivação do conceito tríplice, uma vez que há um direcionamento de

partida de operar o pensamento de forma linear e disjuntiva. Para ampliar a visão

creio ser importante uma mudança de perspectiva. Ao invés de um pensar

hierárquico, um modo de pensar recursivo e sistêmico.

Cecílio defende pensar a integralidade tomando em conta a ideia de rede

com múltiplas entradas, múltiplos fluxos, porque reconhece a integralidade como

objetivo de rede, e não apenas de um serviço. Todavia, apesar de Cecílio

reconhecer que a imagem modelo de um sistema de saúde piramidal hierárquico e

racionalmente organizado dá conta apenas parcialmente para efetivar o tríplice

conceito-signo do SUS, sua forma de pensar em rede recorrendo a uma taxonomia

pouco ajuda nesta ideia de fluxo com múltiplas entradas, pois remete mais a lógica

de pensar linear e hierárquico do que a ideia de rede. Apesar reconhecer a

importância de pensar em rede é a dualidade que prevalece em seu modo de pensar

a realidade quando hierarquiza as necessidades de saúde e busca operar a

integralidade a partir do binômio: integralidade focalizada e ampliada, onde a ideia

de rede só se apresenta na parte ampliada do binômio.

Acredito que os operadores do pensamento complexo nos auxiliam a

compreender de outro modo esta questão contribuindo na elucidação dos nexos

que articulam os princípios do SUS, trazendo outra forma de pensar o tipo de

relação que pode nutrir as partes e o todo. Para isso é necessário uma perspectiva

de pensamento sistêmico que seja capaz de perceber e operar as inter-retro-relações

a partir da compreensão de como ocorre a articulação do todo com as partes em

termos hologramáticos, cuidando para não tomar o todo pelas partes ou, ao

contrário, a parte pelo todo.

O ponto central para pensar a efetivação dos princípios dos SUS é menos

compreendê-los em termos duais em função de categorias tais como micro/macro

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~ 141 ~

presença/ausência, viabilidade/inviabilidade, limitações/potencialidades,

individual/coletivo, do que pensar sobre os nós ou pontos que articulam estes

conceitos em termos práticos. Isso porque tal articulação não se caracteriza de

forma mecânica, hierárquica e/ou justaposta. Sua efetivação não segue uma ordem

cronológica ou hierárquica, porque há entre eles uma relação de coprodução que os

efetivam de forma recursiva, não linear. Creio que essa forma de compreender

possibilita visualizar uma substancialidade prática aos princípios que fundamentam

o SUS na direção da superação de reducionismos.

Vou recorrer a algumas imagens para ajudar a pensar os princípios do SUS,

cada uma esboçando o modo de compreender suas interrelações. Apresento a

primeira figura a seguir:

Esta figura apresenta os princípios do SUS esboçando partes que se juntam

para formar um todo. A relação entre as partes é mecanizada, ou seja, sua

justaposição forma um todo. Esse modo de compreensão nos leva a crer que as

ações e políticas dos princípios do SUS podem se efetivar em separado, de forma

gradativa e hierárquica priorizando-se um princípio depois outro, considerando o

que seja mais prioritário, importante ou urgente. Passemos para a segunda figura:

Universalidade

7 - Princípios do SUS - Interrelação

Integralidade

Equidade Universalidade

SUS

Figura 7 – Princípios do SUS em justaposição

SUS Integralidade

Equidade Universalidade

6 - Princípios do SUS - Justaposição

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~ 142 ~

Esta já expressa um modo de compreensão do SUS a partir da interrelação

de suas partes. Colocar as partes em relação não mecânica muda o jogo. Esse modo

de compreensão nos leva a crer que as ações e políticas dos princípios do SUS

devem ocorrer de forma concomitante. A pergunta que surge é que tipo de relação

há entre as partes, e destas com o todo. De que forma podemos intervir em uma ou

outra de forma a mexer no todo. O pensamento de Cecílio tenta ir nesta direção

quando se propõe a ver os princípios do SUS como um conceito tríplice. Porém

sua análise focaliza a relação das partes com o todo em termos duais de

micro/macro, ou seja, ora focalizo o todo, ora as partes.

Podemos pensar os princípios do SUS a partir de uma relação sistêmica

entre as partes e todo como na figura de um. A inter-relação entre os princípios do

SUS seria mais de recursividade do que de complementariedade. Como mostra a

figura 3:

Esta imagem hologramática nos possibilita pensar de forma sistêmica de

modo a conceber uma relação de recursividade dialógica entre as partes que

compõem o todo. Penso que a recursividade pode mover a efetivação destes

princípios dando sentido para uma visão sistêmica. Esta recursão consiste em

atentar e reconhecer que a universalidade (acesso de todos) sem a equidade (tratar

os diferente os diferentes) é injusta, e só a integralidade (visão integrada do ser em

Universalidade Universalidade Universalidade

Universalidad

e

8 – Princípios do SUS - Holograma

SUS

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seu ambiente) nos permite efetivar a universalidade e equidade, ao mesmo tempo.

É a efetivação da integralidade que revela as iniquidades e faz-nos avançar em

direção da equidade, e ambas se efetivam na mesma medida da universalidade.

Quando o serviço de saúde não reconhece e/ou considera as diferenças a partir de

uma visão integral dos sujeitos, isto se transforma numa barreira que impede

determinadas pessoas do acesso aos direitos, se distanciando tanto da equidade

como da universalidade. Portanto, se ferirmos um princípio, sistemicamente,

ferimos a todos, ou seja, há uma relação de coprodução recursiva que dá

substancialidade ao SUS. Isso é algo sutil que exige refinar a percepção de suas

inter-relações de maneira tal a repercutir em sua praticidade no SUS.

Considerando o princípio sistêmico com suas relações de recursividade é

possível escapar do risco de tomar a parte pelo todo, e fazer opção por algum deles

de forma isolada. Relembrando agora a tarefa de compreender o porquê da palavra

vínculo se encontrar inserida no discurso da Integralidade reitero a importância não

de retira-la deste lugar, mas de compreender os nexos de relações que resultam

neste enquadramento. No meu entender de nada adiantaria retornar ao amálgama

que a encerra dentro do discurso das palavras que efetivam a integralidade da

atenção à saúde para defini-la com melhor precisão conceitual, para aí coloca-la

novamente. Isso no meu entendimento seria colocar o vinho novo em odres

velhos. Algo que talvez resultasse na quebra dos odres.

Considero como tarefa urgente e necessária pensar as políticas e as práticas

de saúde que efetivam os princípios do SUS superando um modo de compreendê-

las de forma isolada e fragmentada.

É próprio da ciência clássica separar o fenômeno em partes na tentativa de

explica-lo. Como apresenta Morin (2000) a ciência clássica opera com 4 pilares de

certezas. O da ordem, que postula um universo regido por leis imperativas de caráter

absoluto, tendo o mundo como máquina perfeita. Um outro pilar que opera com o

princípio da separabilidade, segundo o qual para se resolver um problema é preciso

decompô-lo em elementos simples. Um terceiro, a redução, em suas duas vertentes

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que assume que conhecer os elementos de base dispensa o conhecimento do

conjunto, e reduz o conhecimento àquilo que é passível de mensuração. E o quarto

pilar é a lógica indutivo-identitária identificada com a Razão, que assume o postulado

da indução, dedução e dos três axiomas identitários aristotélicos como forma de

assegurar a validade das teorias e axiomas aos quais defendem.

O problema da separação no processo de produção do conhecimento é o

isolamento que resulta em disjunção e apaga os nexos que compõe a complexidade

dos fenômenos. A reforma do pensamento é de natureza paradigmática e nos

convida a compreender os fenômenos em suas inter-retro-relações inseridas em um

determinado contexto em que as partes e o todo se relacionam em reciprocidade.

Acredito que pensar em práticas de saúde com potencial para efetivar os

princípios do SUS tem como exigência considerar a relação sistêmica e não

disjuntiva entre eles, e deles com o SUS. Propor sua efetivação significa pensar em

práticas de saúde universais, equânimes e integrais ao mesmo tempo. Até que

ponto um serviço pode ser caracterizado como integral sem incorporar a equidade?

Até que ponto um serviço pode ser equitativo sem ser universal? Isso acontece

somente na abstração formal própria de um certo modo de compreender a

realidade. Mas a realidade é complexa, tudo se tece em conjunto. E a complexidade,

como nos ensina Morin é muito mais uma noção lógica do que uma noção quantitativa.

(MORIN, 2000, p. 47). Logo, separar o emaranhado de coisas que se tecem junto

não resolve o problema.

Colocar o vínculo dentro ou fora da efetivação das práticas integrais em

saúde adquire um sentido ou outro a depender da forma como compreendemos a

interrelação das partes com o todo, isto é, da integralidade em sua relação sistêmica

com os demais princípios e o SUS. Daí é que não importa se retiramos ou

colocamos a palavra em tal ou tal lugar. Considero que o importante é

compreender do que falamos quando aludimos efetivar os princípios do SUS por

meio de práticas, políticas ou serviços de saúde compreendendo a lógica que une os

nexos que compõem o todo.

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Em síntese, no meu entendimento creio que o importante é compreender o

vínculo em sua relação sistêmica com as práticas que organizam os serviços de

saúde do SUS em termos universais, equitativos e integrais.

2.2.2. Que sujeito vincula?

Neste eixo busco compreender e explicitar qual noção de subjetividade

ampara as reflexões no campo das relações humanas em saúde, isto é, quem é o

sujeito que vincula. Os autores que tocam a questão subjetiva no campo da saúde

coletiva têm como fonte de referência recorrente Emerson Merhy, Gastão Wagner

e Tulio Franco, dentre outros. Estes autores, por sua vez, trazem uma compreensão

de subjetividade depositária das ideias dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Felix

Guatarri. Apresento a seguir de maneira sucinta as ideias que abordam a noção de

subjetividade defendida pelos filósofos.

Duas publicações de Deleuze e Guatarri “O Anti-Édipo” e “Mil Platôs”

marcam o contexto dos anos 70. As ideias defendidas por eles se apresentam como

uma reação à Psicanálise e desenvolve uma crítica ao Inconsciente de Freud, se

opondo a clássica interpretação freudiana do desejo como falta. Deleuze e Guatarri

fazem uma inversão do conceito e apresentam um inconsciente como produção

desejante, isto é, instância responsável pelo desejo como algo cuja intensidade

produz a realidade. Eles propõem a Esquizoanálise como forma de resistência ao

modelo edipiano clássico.

Resumidamente a Esquizoanálise regula-se por três tarefas. A primeira é a

destruição do “eu normal” cuja intenção é desneurotizar o indivíduo, retira-lo de

seu entorpecimento de se entender pela falta que lhe impossibilita criar, e o faz

reprodutor de modelos. A segunda tarefa consiste em fazer o indivíduo descobrir-

se como máquina desejante fazendo com que o desejo retome o seu lugar e

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potencialize o indivíduo a criar coisas por meio de novas territoliaridades e linhas

de fuga. O indivíduo deve afastar-se da esfera do interpretar e aproximar-se do sentir

na produção de si mesmo, aumentando assim a sua potência, criando para si um

corpo sem órgãos. E a terceira tarefa consiste em subordinar o social às máquinas

desejantes, isto é, trata-se de inserir o corpo individual como peça de uma máquina

social na micropolítica das relações que subordinam o campo social às máquinas

desejantes que são.

A proposição da Esquizoanálise é interferir na produção da realidade se

afastando de interpretações do tipo “o que significa isso” para abraçar o “para que serve

isso”. Um esquizoanalista não diz em que mundo devemos viver, ou se interessa em

como o mundo deveria ser. Considera o desejo em si como revolucionário, algo

que por nada espera para realizar-se; o desejo só quer a si mesmo. A Esquizonálise

se apresenta como o processo de retirar do indivíduo sua sujeição a normas,

despertando-lhe o desejo. O sujeito, como máquina desejante, adquire a potência

necessária para subordinar o social e recriá-lo à imagem e semelhança do seu

desejo.

A Esquizoanálise se detém na micropolítica das relações desejantes e de

poder. Traça uma relação entre Capitalismo e Esquizofrenia, e não mais entre Família e

Neurose como na psicanálise. O inconsciente é visto como uma usina intensiva e o

desejo é produção, não falta. Tal arquitetura de ideias traz novos conceitos, tais como

o de rizoma, corpo sem órgãos, linhas de fuga.

A Esquizonálise também se afasta de leituras marxistas e busca apreender o

político relacionando-o aos fenômenos psíquicos. Para Deleuze e Guatarri o capital

agenciou a todos numa mentalidade que o reproduz, do operário ao rico

empresário, tornou a todos servos prisioneiros, situação em que a luta de classes

perde sentido para dar lugar a luta pelo acúmulo do capital. O micropolítico em que

se insere a produção de novas subjetividades não tem relação com um macro, em

termos reduzidos, mas relaciona-se com a análise dos agenciamentos desejantes do

campo social. A arena micropolítica é palco para o encontro entre as máquinas

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desejantes e o campo social. A política nesta arena refere às forças do desejo que

atuam na configuração do poder instituído, e resultam na produção da vida e de

subjetividades.

Nesta perspectiva de compreensão dos processos subjetivos delineados por

Deleuse e Guatarri os autores Tulio Franco, Emerson Merhy e Ricardo Ceccim

analisam os processos de produção do cuidado em saúde. Apresentarei

suscintamente a linha de pensar desses autores para em seguida tecer alguns

comentários e problematizações.

Inspirados nas ideias de Deluse e Guatarri os autores acreditam no desejo

como força motriz revolucionária para invenção da realidade social e a criação de

um novo devir na produção subjetiva do cuidado em saúde. A noção de

subjetividade encara o desejo como a força motriz para tornar os sujeitos

protagonistas dos processos de mudança social. Nas palavras dos autores a força

motriz de construção da sociedade é o desejo, que se forma em nível inconsciente, é constitutivo das

subjetividades, que no plano social torna os sujeitos protagonistas por excelência de processos de

mudança. (FRANCO & MERHY, 2013, p. 155).

Franco e Merhy (2013) advogam a inclusão da subjetividade como

dimensão de análise nos processos de avaliação qualitativa e seus modos de

produção em saúde. Incluir a subjetividade implica compreender a micropolítica no

cotidiano de trabalho no sentido de desvelar os modos de produzir o cuidado, ao

mesmo tempo em que revelam a produção de si mesmo como sujeitos do trabalho.

Inspirados na ideia do Rizoma os autores defendem que o modo de

produção do cuidado se revela na micropolítica das relações cotidianas sendo

marcada por uma constante construção e desconstrução de territórios existenciais.

A ideia de rizoma significa um movimento em fluxo horizontal e circular ao mesmo tempo,

ligando o múltiplo, heterogêneo em dimensão micropolítica de construção de um mapa, que está

sempre aberto, permitindo diversas entradas e ao se romper em determinado ponto, se refaz

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encontrando novos fluxos que permitem seu crescimento, fazendo novas conexões no processo.

(FRANCO & MERHY, 2013, p.152).

Na microfísica do trabalho em saúde o lugar da produção do cuidado passa

a ser visto como um platô, lugar em que ocorrem encontros de intensidades que

afetam os sujeitos em interação. O encontro dos trabalhadores da saúde entre si, e

destes com os usuários, formam um campo energético que funciona como fluxos

circulantes que envolvem o cuidado em ato. Esse fluxo pode, segundo os autores,

se configurar como linha de vida, caso resulte em acolhimento, vínculo, autonomia,

satisfação, ou linha de morte, quando o modo de agir é preponderantemente

burocrático, gerando heteronomia e insatisfação, aumentando ou reduzindo a

potência de agir, conforme a linha para qual se direciona o resultado.

Franco e Merhy apresentam, então, a Cartografia como método de análise do

processo subjetivo de produção do cuidado em saúde. Segundo eles, numa

cartografia há processos de formação e desconstrução de territórios existenciais,

que são formas singulares de significar e interagir com o mundo. A cartografia

delineia o percurso dinâmico de produção subjetiva da realidade revelada pela

multiplicidade da ação humana na micropolítica de sua interação social.

A complexidade da tarefa de se avaliar os serviços de saúde por meio de

uma cartografia que revele os processos de produção de subjetividades faz dela um

método ad hoc, reconhecem os autores. Isso porque ela não teria e nem poderia ter

alguma pretensão de verdade ou funcionar como um modelo a ser seguido. Os

autores esclarecem, contudo, que a realidade social pode se manifestar não na produção,

mas na reprodução, em processos de captura subjetiva dos sujeitos, em que a ética do cuidado está

aprisionada pela normatividade da vida e do trabalho, pela repetição de sentidos, a desfiguração

dos signos. (FRANCO & MERHY, 2013, p. 160).

Na visão dos autores uma mudança nos processos subjetivos de produção

do cuidado se opera mediante uma desterritorialização das subjetividades que deve

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~ 149 ~

ocorrer nos limites do atual modelo, ainda agenciado pelos modos de produção

capitalísticos.

Uma transição tecnológica que resulte numa reestruturação produtiva deve

ser capaz de romper com as atuais estruturas do modelo biomédico, cujos

processos de trabalho centram-se no ato prescritivo. Nenhuma ruptura á possível,

advertem os autores, se a dimensão relacional do cuidado em saúde é vista como

secundária em relação ao consumo das tecnologias duras. Uma mudança estrutural

duradoura nos processos de trabalho pressupõe a produção de novas subjetividades

que sejam ativas na produção do cuidado e tenham como centro o campo

relacional, em que o encontro com os usuários seja um espaço aberto para uma

comunicação que faça sentidos para usuário e trabalhador que, juntos, formam o

centro dos processos de trabalho.

Em síntese é em função de encontros-acontecimentos transcorridos na

micropolítica do cotidiano, que se criariam linhas de fuga para invenção de novas

práticas em saúde e produção subjetiva do cuidado em saúde.

Em outra publicação, essas ideias são reafirmadas por Merhy e Ceccim

(2009) como aposta para as Políticas de Humanização do SUS. Como primeiro

ponto os autores falam dos encontros micropolíticos que, por serem abertos,

apresentam distintas possibilidades de subjetivação. Esses encontros podem seguir

um caminho que sairia de uma ordem biopolítica, serializadora, para a ordem da

biopotência e singularização. Eles defendem que tais encontros são intensamente

pedagógicos, operam, ante as práticas inculcadoras/homogeneizadoras, com trocas entre domínios

de saberes e fazeres, construindo um universo de processos educativos em ato, em um fluxo contínuo

e intenso de convocações, desterritorializações e invenções. (MERHY & CECCIM, 2009 p. 8).

Um segundo ponto que eles levantam é compreender que em um mundo marcado

por uma fragilização da vida há o paradoxo de que os processos de mudanças são,

como sempre, estratégias de resistência e criação. Assim há um confronto não

muito explícito entre os vários modos de subjetivação capitalísticos, que convivem

com seu contrário, como paradoxo. Contudo, onde há captura, há também,

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disruptura e processos de singularização. O paradoxo, defendem eles, seria

oportunidade de invenção de novas práticas no plano individual e coletivo em cada

lugar onde se produz saúde, seja no hospital, nos serviços básicos ou

especializados.

Os autores trazem para a cena um aspecto que quase sempre está no

escuro, embora presente nas práticas de saúde: a subjetividade humana. Afirmam

que a transformação das práticas em saúde em direção da humanização depende de

novos processos de subjetivação que recriem os sujeitos em interação no ambiente

de trabalho. Trazem para cena o aspecto relacional implicado nos processos de

trabalho em detrimento dos aspectos técnico normativos.

A subjetivação implicada nestes processos tem no desejo sua força motriz

para criar um novo devir na produção do cuidado em saúde. Há uma crença que

aposta numa transformação das pessoas em seu cotidiano de trabalho mediado por

tais encontros-acontecimento. Não estou convencida dessa possibilidade em função de

um relativismo que se mostra na aposta em linhas de fuga, que pode apontar em

toda e qualquer direção. Importa é fugir do que está dado, afastar-se da ordem do

biopoder normatizador e serializante que dita modos de produção do cuidado.

Cada coletivo, em sua co-gestão, guiados pela força revolucionária de seus desejos,

criariam novas práticas em saúde, mediante novas formas de subjetivação baseadas

em encontros acontecimento. A solidariedade, no caso, se apresenta como algo

importante no processo. Mas aonde se quer chegar com tais linhas de fuga?

Quando acendemos ou direcionamos a luz para a subjetividade implicada

nos processos sociais, institucionalizados ou não, não quer dizer que tais processos

não estejam presentificados desde sempre. As práticas normatizadoras e

serializantes da ordem do biopoder é um modo de produção subjetiva da qual se

quer fugir em função do seu resultado em termos da produção do cuidado em

saúde. O resultado seria a superação dos desafios que se apresentam, como por

exemplo, a deshumanização dos serviços revelada na desresponsabilização dos

profissionais em relação a produção do cuidado, no descompromisso com seus

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processos de trabalho, e também no descaso e despersonalização que marcam a

relação do trabalhador da saúde com os usuários. Ora, tal resultado não seria,

justamente, já as linhas de fuga dos processos de produção subjetiva do cuidado,

quando centrados em normatizações da ordem do biopoder? É possível construir

quais linhas de fuga apostando no desejo dos trabalhadores e usuários implicados

nesse processo?

Tais formas de encarar os processos subjetivos se coadunam com a

Esquizoanálise que em sua proposta não menciona ou se interessa na defesa de

qual mundo devemos viver ou como o mundo deveria ser, e colocam no desejo, a

força motriz de transformação sem, no entanto, se ater que transformação se quer.

Para o esquizoanalista o que interessa é retirar o indivíduo de seu entorpecimento

neurótico que o torna reprodutor de modelos, e fazê-lo descobrir-se como máquina

desejante capaz de subordinar a máquina social para tecer realidades à imagem e

semelhança de seus desejos. Há um pressuposto da neurotização de todos em

função dos agenciamentos capitalísticos.

O modo como a produção do cuidado se dá hoje no cotidiano de trabalho

é sustentado pelo desejo de grande parte das pessoas implicadas, tanto usuários

quanto trabalhadores da saúde. A situação tal qual se apresenta em sua

normatividade serializante, certamente, é benéfica e realizadora para o desejo de

muitos que o sustentam. Se assim não o fosse, tais linhas de fuga já teriam traçados

novos rumos para processos sociais que se institucionalizam na produção do

cuidado em saúde.

Há toda uma rede invisível de privilégios que atende aos desejos e

justificam posturas normatizantes, despersonalizadas e burocráticas na produção do

cuidado em saúde. A desvalorização do público somada às condições de trabalho

precarizadas do SUS criam limites e ditam as formas de agir na produção do

cuidado, gerando processos de trabalho em que toda desresponsabilização e

descaso têm justificativa plausível traduzidas em frases do tipo: “com estas condições de

trabalho a gente faz o que pode”, “recebe o serviço de graça e ainda deseja ser bem tratado?”

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Outro ponto para refletir é como transformar práticas de cuidado em saúde

em direção da humanização imerso em um cotidiano social em que a justiça é vista

e sentida como privilégio de alguns em termos de processos subjetivos em questão.

A injustiça se torna lugar comum e esperado para processos sociais em que o

direito à saúde é encarado como favor; um serviço de “graça” oferecido para os que

não podem pagar. Que compromisso com a qualidade é possível criar em

processos subjetivos de produção do cuidado em que a oferta de serviços é

compreendida e sentida como benesse ou favor, e não como um direito humano

que se presta àqueles que recorrem aos serviços? Como os encontros-acontecimentos

solidários impulsionariam uma renovação das práticas de cuidado em saúde? A

biopotência e as singularidades seriam os meios ou os fins para produção de novas

subjetividades? Que novas subjetividades seriam estas? Ficaria a mercê do desejo de

cada processo social? Que solidariedade é essa que se fala como necessária? É

aquela pautada no favor que se concede aos que não podem recorrer aos serviços

privados, encarados sempre como melhor e mais qualificados? O desejo seria a

força motriz revolucionária para quem?

Tais apostas em processos de produção subjetiva do cuidado centradas nas

micropolíticas do cotidiano revelam um modo de compreensão do tencionamento

entre o individuo/coletivo. Parece que o crédito da aposta incide sobre o individuo

com o trunfo da força do desejo que carrega, como fenômeno inconsciente.

Em que pese a importância dos trabalhadores em saúde se sentirem capazes

de transformar seus cotidianos de trabalho pela força de seu desejo e qualificar os

processos de produção do cuidado, a questão a se pensar é: até que ponto estas

linhas de fuga criariam realmente novos processos subjetivos com potência de

transformação na efetivação das políticas públicas, ou apenas trariam uma ilusão de

poder aos indivíduos que participam de processos de mudança com tais

pressupostos?

As experiências individuais de se sentir capaz de influir e mudar processos

nem sempre se relaciona com a real habilidade e possibilidade de ser influente para

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gerar uma transformação social e política com capacidade para criar novos

processos de subjetivação. Até que ponto não há uma confusão instalada entre as

habilidades de poder e influência de cada um no processo de produção do cuidado,

e o real poder dos indivíduos circunscritos aos seus espaços de trabalho? Claro que

isso não significa que os indivíduos não experimentem algum poder de influência

embalado pelo seu desejo, e até possam mudar algo aqui e ali em seu cotidiano.

Acredito que isso de fato ocorra. Até que ponto tais transformações, que de fato

podem acontecer no espaço das micropolíticas, não se encerrariam justo aí, ou

teriam alguma força de transformação mais ampla em termos macro? Isso se torna

delicado porque há uma aposta que incide no desejo dos indivíduos de forma

isolada, embora se reconheça que a força de transformação esteja na interação e no

tencionamento que ela gera. A relação desejo e poder expressa pelo poder do

desejo, ou pelo desejo de poder tenciona por conservação ou transformação, a

depender dos processos sociais em jogo.

Há certamente um avanço nas ideias pós-estruturalistas em que o poder

não está mais identificado com a figura do Estado, como na tradição moderna que

tende a confundir relações de poder com relações de dominação. Há um avanço

em retirar as relações de poder do âmbito macro para compreendê-las na

microfísica das relações sociais em cotidianos diversos de interação humana, e

trazer à tona o desejo imbricado na micropolítica cotidiana. O poder é algo que se

presentifica em quaisquer âmbitos de relações humanas, desde o ambiente familiar,

amoroso até o institucional, e passa a ser visto mais como prática social do que

como algo natural da posse de alguns. O poder compreendido de forma difusa e

com capacidade de tecer uma complexa teia de relações sociais traz a vantagem de

refletir sobre sua positividade e capacidade de produção de novas subjetividades e

domínios de verdade, bem como, permite explicitar melhor as estratégias e

mecanismos que se usam para manipular e governar coletivos sociais.

Entretanto, o que gostaria de ressaltar neste ponto é o modo de

compreender a relação indivíduo/coletivo que está por traz destas questões do

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poder e do desejo imbricados. Há um dualismo que resulta em tencionamentos que

desembocam em paradoxos. As apostas são feitas creditando as transformações,

aos paradoxos, vistos como oportunidade de invenção de novas práticas de

produção subjetiva do cuidado em saúde. E a aposta transformadora incide ou

acontece nos espaços micro, embalada pela força do desejo dos indivíduos. O olhar

se volta mais para os indivíduos e seus desejos no espaço micropolítico das relações

sociais e a relação indivíduo/coletivo é tomada por um tencionamento excludente

que tende para um dos lados. O micropolítico no caso não se relaciona com um

macro, mas com os agenciamentos desejantes do campo social, e a política se reduz

as forças desejantes que atuam na configuração do poder instituído. Há um silêncio

para falar do coletivo e dos âmbitos macrossociais de formulação de políticas que

parece, simplesmente, desaparecer de vista, em função das três tarefas magnas da

Esquizonálise. Tais processos de subjetivação tende para um lado, o do individual,

e parece reduzir o humano à máquina desejante.

Algumas ideias de Morin (1996, 2002, 2003a, 2003b) em seus escritos

sobre a identidade humana nos permitem compreender a articulação complexa que

se tece entre o individual e o coletivo. Para o autor, o indivíduo não deve ser

entendido como noção primeira, nem última, mas está no nó górdio da trindade

humana indivíduo/sociedade/espécie. Aqui o indivíduo é um termo desta trindade, e

cada termo contém os demais.

A relação indivíduo/sociedade/espécie é dialógica, o que significa que são

antagônicos e complementares ao mesmo tempo, são meios e fins uns dos outros.

Cada um dos termos é irredutível ao outro, ainda que deles dependam. É isso que

constitui a base da complexidade humana que, segundo explica Morin, o indivíduo é,

ao mesmo tempo, o fim da espécie e o fim da sociedade, permanecendo meio para ambas. Contudo,

as finalidades do indivíduo humano não se reduzem nem ao viver para a espécie nem ao viver para

a sociedade. O indivíduo aspira viver plenamente a sua vida. Finalidades individuais desenvolvem-

se ao longo da história: felicidade, amor, bem-estar, ação, contemplação, conhecimento, poder

aventura... (MORIN, 2003a, p. 52).

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Há aqui uma concepção particular do humano imbricado da relação

espécie/indivíduo/coletivo que nos permite acessar a complexidade desta tensão

individual/coletivo sem dualismos excludentes. Morin explica que

O sujeito é egocêntrico, mas o egocentrismo não conduz somente ao egoísmo. A condição de sujeito comporta, ao mesmo tempo o princípio de exclusão e um princípio de inclusão; este nos permite nos incluirmos numa comunidade, um Nós (casal, família, partido, igreja) e incluir esse Nós no centro do mundo. Enfim, por apego intersubjetivo, o sujeito pode, por amor, dedicar-se a outro (...) Portanto, o egocentrismo do sujeito favorece não somente ao egoísmo, mas também ao altruísmo, pois somos capazes de dedicar o nosso eu a um Nós e a um Tu (...) Assim há na situação do sujeito uma possibilidade que vai até o sacrifício de tudo para si, e uma possibilidade altruísta que vai até o sacrifício de si. (MORIN, 2003b, p. 75-76)

A nossa relação com o outro está na origem, esclarece Morin, pois o outro

é virtual em cada um em termos do princípio de inclusão (amor). Este é necessário

ao princípio de exclusão que ao nos colocar no centro do mundo nos permite aí

situar o outro. Na intersubjetividade está a possibilidade de compreensão do outro

como sujeito, por processos intuitivos e de ressonância psíquica. Na

intersubjetividade também não se separa a necessidade humana de reconhecimento

da de auto-afirmação. Desprezado, o sujeito sente aniquilado, ferido mutilado

porque a necessidade do outro é radical porque se origina na incompletude do

Eu/Ego sem reconhecimento do outro.

Nestes termos não há aqui uma visão egocentrada do sujeito, tampouco,

um modo de compreendê-lo antes de tudo e somente na relação com o outro, mas

um modo de compreender que engloba estas duas visões por meio do duplo

programa que reconhece na origem a simultaneidade da auto-afirmação do Eu e da

sua relação com o outro.

Os processos intersubjetivos serão humanizados tanto quanto for a

capacidade de inclusão do outro em nosso site egocêntrico, processo que possibilita

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a integração de outras subjetividades na sua. Há um delicado processo de auto-

afirmação e reconhecimento do outro que cria humanidades. Como explica Morin,

O indivíduo pode encontrar-se incluído num anel transubjetivo e, se este anel é duradouro, constitui uma comunidade, isto é, uma organização solidária inter e transubjetiva. (...) o princípio de exclusão que funda o sujeito egocêntrico não é só compatível mas correlativo com um princípio de inclusão do sujeito numa comunhão ou comunidade. (MORIN, 2002, p. 230).

Sem essa capacidade de inclusão do outro e do coletivo em meu espaço

egocêntrico, não haveria possibilidade de conjugar os verbos na primeira pessoa do

plural e nos sentirmos partes de um “Nós”. O indivíduo pode viver para si e para o

outro, dialogicamente, isto é, ora pode prevalecer o egocentrismo, ora o altruísmo;

entretanto, tal processo, por vezes, situa o indivíduo na zona de tensão em meio a

duas forças poderosas, impondo ao indivíduo uma decisão dolorosa ou deixando-o

paralisado. A subjetividade comporta, assim, a afetividade. Segundo Morin, o

sujeito está também potencialmente destinado ao amor, à entrega, à amizade, à

inveja, ao ciúme, à ambição, ao ódio. Fechado sobre si mesmo ou aberto pelas

forças de exclusão ou de inclusão. (MORIN, 2003b, p. 79).

Os princípios de inclusão e exclusão da identidade humana que retrata

Morin são inseparáveis um do outro e possibilita pensar um “nós” como uma

propriedade emergente da integração de subjetividades. Estas noções permitem

compreender a relação complexa entre indivíduo/sociedade/espécie e entender

com maior nitidez a humanidade em grupo e em sociedade. Morin fala que,

Muitas vezes se produzem conflitos entre o princípio de inclusão e o princípio de exclusão. (...). Há, pois, uma ambivalência que nós mesmos experimentamos, conforme as condições, a respeito de nossos próximos, de nossos parentes, da gente a que estamos ligados subjetivamente. O mesmo ocorre a respeito da pátria, nos momentos de perigo. Prontamente esta sociedade na qual vivemos de maneira egocêntrica, guiando-nos pelo interesse, se vê em perigo, e então, de repente, nos sentimos tomados por uma onda

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comunitária, somos ´nós´, somos irmãos, somos os filhos da pátria, a pátria é nossa mãe, o estado é nosso pai. Devemos obedecê-lo: Adiante!... Mas alguns fogem. Dizem: `eu quero salvar a minha vida`. Desertam. Aqui também há uma luta entre o princípio de inclusão e o princípio de exclusão. Assim, pois o sujeito, e em particular o sujeito humano, pode oscilar entre o egoísmo absoluto, ou seja, o predomínio do princípio de exclusão, e a abnegação, o sacrifício pessoal, de inclusão. (MORIN, 1996, p. 51).

Morin também acrescenta que a qualidade essencial do sujeito está em sua

aptidão para objetivar. Ele nos diz que a frase “Eu sou eu” que pode ser

compreendida como uma tautologia, revela na verdade a possiblidade de auto-

objetivação. Diz ele, o Ego é uma objetivação do Eu para si mesmo que permite ao Eu

‟refletir-se‟ e reconhecer-se objetivamente. (...) Paradoxo: a objetividade só pode vir de um sujeito.

Ideia inacreditável para quem subjetivamente nega toda existência ao sujeito. O ponto capital é

que cada sujeito humano pode considerar-se, ao mesmo tempo, como sujeito e como objeto e

objetivar o outro enquanto o reconhece como sujeito. (MORIN, 2003a , p.80).

É justamente essa dupla capacidade de auto-objetivação e de objetivação do

outro que também nos torna como humanos capazes de desumanidades quando

olhamos para o outro somente como objetos e ignoramos sua subjetividade. A

humanidade e sua humanização dependem tanto do desenvolvimento de um

conhecimento objetivo do mundo quanto um conhecimento intersubjetivo do

outro, adverte Morin. O sujeito humano é, pois complexo por natureza e por

definição, precisa ser incorporado à trindade humana e situar-se ainda na cultura e

na história.

Neste modo de compreensão que Morin nos apresenta está também a

possibilidade de autonomia, sem excluir modos de sujeição. Para ele ser submetido

não necessariamente significa uma dominação a partir de fora. A submissão

acontece também quando uma potência subjetiva mais forte impõe-se no centro do

programa egocêntrico subjugando o indivíduo, que acaba como escravo de si

mesmo. O sujeito em sua autonomia pode se tornar sujeito, no sentido de assujeitado,

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dependente. Desta forma podemos ser possuídos por um Deus, um mito ou uma

ideia que nos comanda imperativamente nos fazendo crer que servimos

voluntariamente.

Para compreendermos a relação indivíduo/coletivo sem cair em dualismos

excludentes que desembocam em reducionismos que mutilam o conhecimento é

preciso pensar a complexidade que abarca esta relação em termos dos operadores

complexos. Há uma dialógica que une e reúne indivíduo/espécie/sociedade em

delicadas e intricadas interrelações que conformam as subjetividades em as colocam

em transubjetividades. Os coletivos humanos são mais que agrupamentos ou

indivíduos isolados em disputa em nome daquilo que desejam para criar a realidade

que querem. O desejo humano pode aniquilar e produzir desumanidades se

compreendido em termos de satisfação de necessidades do ego.

2.2.3. O vínculo se manuseia?

Como terceiro eixo de problematização gostaria de tecer algumas reflexões

em relação a semântica que aglutina o amálgama em que se insere o vínculo no

discurso da saúde coletiva. Esta semântica converge seu sentido para o que se

convencionou chamar de Tecnologias Leves, fazendo referência a classificação de

Merhy. Tudo que refere ao campo das relações humanas no âmbito da saúde, seja

em termos da clínica ou dos processos de trabalho, é aludido recorrendo a palavras

como tecnologia, ferramenta, instrumento ou dispositivo relacional, sendo este

bojo, o lugar da palavra vínculo.

A primeira estranheza que me assalta é o uso da palavra tecnologia para

falar sobre as relações humanas em que o vínculo passaria a ser considerado como

uma ferramenta, dispositivo, ou instrumento para manuseio No cotidiano, estas são

palavras que se referem a objetos usados normalmente no trabalho, algo que

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precisamos como meio para um determinado fim. No vocabulário de uso da saúde

uma ferramenta pode ser um estetoscópio; um dispositivo pode ser aquele

intrauterino, que se usa para determinada finalidade; um instrumento pode ser uma

caneta, maca, etc. Penso que talvez haja aqui uma necessidade de objetivar algo

próprio da subjetividade humana na tentativa de evidenciar sua importância, ao

equiparar tais palavras no mesmo campo ontológico.

O uso de tal vocabulário remete a uma postura utilitarista e pragmática,

própria do campo da saúde, que adquire um sentido quando falamos de relações

humanas. No que diz respeito ao vínculo, ou a qualquer outro aspecto relacional

entre os humanos, até que ponto é válido apresenta-lo ou abordá-lo como algo para

se chegar a um fim? Uma ferramenta ou instrumento uma vez que serviu para

alcançar a finalidade que se propôs, perde sua utilidade. Essa característica se

aplica(ria) ao vínculo entre os humanos? De que forma podemos colocar algum

mediador na relação entre os humanos se estamos falando mesmo é da própria

relação? A perspectiva pragmática e utilitarista se aplica(ria) às relações entre as

pessoas? Se somos humanos inscritos na Linguagem, que repercussão tem o uso de

tais significados no cotidiano de trabalho e de relações entre as pessoas que atuam

na saúde e as que usam seus serviços?

Morin (1999) no terceiro volume da série O Método 3. O conhecimento do

conhecimento nos fala que o espírito humano produz um duplo pensar: um

simbólico/mitológico/mágico, e outro racional/lógico/empírico. A tradição

científica sofre da tendência de só perceber antagonismos e antinomias entre essas

formas de conhecimento. O conhecimento humano do mundo, porém, vai além da

explicação, e inclui a compreensão.

Para Morin (1999) a relação explicação/compreensão comporta tanto

complementaridades quando oposições. A compreensão diz respeito a capacidade

humana de apreender sentimentos, valores, intencionalidades do outro por meio da

empatia/simpatia. É um modo de conhecer que comporta projeção e identificação

num duplo movimento circular, que vai de si para o outro, e retorna. Por meio

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deste ciclo de projeção-identificação compreendemos de forma espontânea

sentimentos, desejos, temores uns dos outros.

Compreendemos o que sente o outro por projeção, isto é, sabendo o que

nós mesmos sentiríamos em seu lugar, estando nesta ou naquela situação. Com

efeito, a compreensão não é uma confusão de mim com o outro, mas comporta

uma distinção entre o Eu e Tu em conjunção. Morin exemplifica isso nos romances

e filmes quando projetamos e nos identificamos com a vida dos heróis e

compreendemos até as lágrimas a vida do vagabundo, do bandido, da prostituta, do

herói. É quando essa capacidade de compreensão está mais aflorada do que na vida

real.

Morin explica que na esfera psíquica humana a compreensão tem na

projeção/identificação sua força voltada para as relações e situações humanas. Em

nosso cotidiano nossa atividade psíquica funciona na dialógica

compreensão/explicação. Contudo, esclarece ele, é aí que reside uma importante

questão. A compreensão não tem sua validade apenas no modo privado das

relações intersubjetivas, que a coloca fora da esfera do conhecimento sério,

adjetivando-a de pré-racional ou não-científica enquanto forma de conhecer. A

compressão vale como conhecimento psicológico, sociológico e antropológico,

defende Morin.

Para Morin a compreensão é o conhecimento que torna inteligível para um sujeito não

somente outro sujeito, mas também tudo o que é marcado pela subjetividade e pela afetividade.

(MORIN, 1999, p. 162-163). No entanto, se entregue as forças de projeção-

identificação é também passível de erros. Quando concentrada nos fenômenos

humanos a compreensão comporta limites uma vez que a compreensão só pode

compreender aquilo que compreende, e aí, corre o risco da incompreensão. O

estranho, o diferente e o estrangeiro dificilmente estarão inclusos no circuito de

projeção/identificação. Daí, em um mesmo grupo ou sociedade pode haver

barreiras de incompreensão em função das diferenças de sexo, raça, classe, etnia,

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cultura, etc. Morin segue em frente e acrescenta que a compreensão da

compreensão necessita, então, da explicação da compreensão.

Morin chama atenção para a dialógica presente no circuito

compreensão/explicação. Enquanto a compreensão se faz por projeção e

identificações, a explicação se dá em razão de demonstrações lógico-empíricas

pertinentes. Diz ele, enquanto compreender significa captar os significados existenciais de uma

situação ou um acontecimento em relação à sua origem ou modo de produção, partes ou elementos

constitutivos (...) a explicação refere-se por princípio à objetivação, à determinação à racionalidade.

(MORIN, 1999, p. 162-164). O quadro abaixo, apresentado por Morin, situa bem

esta questão:

COMPREENSÃO EXPLICAÇÃO

Concreto

Analógico

Apropriações globais

Predominância de conjunção

Projeções/identificações

Implicação do sujeito

Pleno de emprego da subjetividade

Abstrato

Lógico

Apropriações analíticas

Predominância da disjunção

Demonstrações

Objetividade

Dessubjetivação

Fonte: (Morin, 1999, p. 164)

Entre a compreensão sem explicação não há apenas antagonismos, mas

uma dialógica, ou seja, uma relação complexa que contem complementaridade,

concorrência e antagonismos. A própria Linguagem humana é metafórica e

proposicional, e como tal, é potencialmente compreensiva e explicativa. A

compreensão contém a explicação e vice-versa. Em nosso pensamento, que se

opera por meio da linguagem, há uma necessidade dessa dialógica explicação-

compreensão. Se nos referimos a fenômenos humanos, e os humanos não são

objetos, tais fenômenos podem e devem ser referidos como tais. Sabiamente,

Morin fala que,

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(...) considerando a condição humana, deveríamos menos temer as insuficiências da compreensão do que os excessos da incompreensão. Reservamos a nossa compreensão apenas para alguns confrades, correligionários, compatriotas, congêneres, e a estendemos somente a alguns animais e familiares. Ora, a compreensão deveria e poderia abrir-se a todos os nossos congêneres, nossos „irmãos humanos‟; deveria poder superar não apenas a face negra da subjetividade, feita de desprezo e de ódio, mas também a face cinza da objetividade, a indiferença, ambas nos impedem de compreender; ora recusar a compreensão a outro significa recusar-lhe a subjetividade e assim recusar-lhe o direito à autonomia, ou mesmo à existência. (MORIN, 1999, p. 166).

A compreensão não saberia compreender-se a si mesma do mesmo modo

que a explicação não explica a si mesma, ambas ajudam-se mutuamente a conhecer-

se. Para além de algum metanível que as supere, o circuito compreensão-explicação

pode funcionar como um estratégia de correção mútua, esclarece Morin.

Todas as palavras que compõem o amálgama semântico pertencem ao

campo relacional humano e diz respeito a um modo compreensivo de conhecer.

Reportar-se ao vínculo, ao acolhimento, à autonomia das pessoas como um

instrumento, uma tecnologia (leve) encerra as relações numa pragmática que faz do

outro objeto do conhecimento e não alvo da compreensão. E talvez a leveza do ser

se torne insustentável, pela pragmática utilitarista.

Compreender é um modo de conhecer em que há uma implicação daquele

que conhece. E tal modo de conhecer não é menos científico. Concordo com

Morin que erraremos menos se o objetivismo não obscurecer nossa capacidade de

compreender o outro. Se nos reportamos a relações humanas não há mediadores

que a objetivem, e sim, outro modo de conhecimento implicado e implicante.

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2.2.4. Vínculo de quem com quem?

Após problematizar o que orbita no entorno da palavra vínculo

comentando o lugar de discurso em que se insere (Integralidade da atenção à

saúde), a compreensão de sujeito e subjetividade implicada, a semântica que confere

sentido ao amálgama em que se encerra (tecnologia, ferramenta, dispositivo), passo

agora a problematizar o aspecto relacional nele implicado.

O vínculo humano sem dúvida, como o próprio significado alude, é algo

que liga, une, ata. No entanto, por uma compreensão empática, sabemos que o

vínculo que nos liga, por exemplo, a nossa mãe tem qualidade diferente do vínculo

que nos liga aos nossos irmãos, aos nossos amigos, aos nossos professores, aos

nossos colegas de trabalho, e também, aos profissionais de saúde aos quais,

eventualmente, interagimos. E terá uma qualidade diferente ainda, se referimos a

um profissional médico, psicólogo, fisioterapeuta, agente comunitário de saúde, etc.

E ainda, podemos pensar no vínculo que temos com pessoas que não conhecemos,

mas nos sentimos vinculados por partilhar algo em comum como o lugar de

nascimento, um time de futebol, uma profissão. Com efeito, de partida, já não

podemos colocar os vínculos que há entre os humanos no mesmo patamar, embora

saibamos e reconheçamos que haja vínculos.

Se estivermos no âmbito da saúde, e o vínculo a que estamos nos

reportando refere-se à relação entre os profissionais da saúde e as pessoas que usam

seus serviços, ele pode ter um caráter terapêutico ou não. Se nos reportamos ao

ambiente clínico, certamente esse caráter estará presente. Não obstante, se nos

reportamos ao nível de atenção primária à saúde, em que a relação entre

profissionais e usuários se estabelece não, necessariamente, em função de alguma

doença, mas adquire outro caráter em função das ações de promoção e prevenção

da saúde, o traço terapêutico que reverte o vínculo, perde sua premência, em

detrimento do pedagógico.

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~ 164 ~

Por conseguinte, o vínculo é, conforme sua referência. E ainda se ele

reportar a relação entre profissionais de saúde no ambiente da clínica terá um

caráter eminentemente diferente se o ambiente referido for a

comunidade/território, e outro ainda, se fizer referência ao vínculo dos

profissionais de saúde entre si, em seus processos de trabalho. Acontece que tudo

isso se mistura no discurso. Daí, então, é preciso adentrar profundamente no

vínculo, o humano vínculo, para desvelar as facetas que o reveste em cada uma

dessas circunstâncias em que se desdobra.

******

Considerando esses eixos em função dos quais problematizei o vínculo no

campo de saber da saúde coletiva à luz de um pensar complexo, algumas

conclusões são importantes para seguir:

A. Sobre o lugar que ocupa no discurso da saúde coletiva. Inserir ou não a palavra no

discurso da integralidade da atenção à saúde não é o mais importante. Importa

compreender os nexos de sentido que faz desse âmbito, um lugar profícuo ou

adequado para situa-lo. Com efeito, o que é importante aqui é ter em mente

que vínculo não é algo que aí se encerra por uma questão disjuntiva, ou que diz

respeito somente à integralidade da atenção, e não teria relação com a equidade,

tampouco, com a universalidade, e menos ainda, com a participação, enquanto

princípios doutrinários e operativos do SUS.

B. Sobre o amálgama semântico em que se encerra importa dizer que não está amarrado aí

em função de uma indistinção com as demais palavras com as quais,

geralmente, se hifeniza para se aludir ao vínculo na ESF do SUS. É preciso

diferenciar e conceituar. Com efeito, não se constrói conceitos sem

fundamentos ontológicos e epistemológicos. E, a depender da fundamentação

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em que se ampare, direcionamos o modo de pensar e compreender sobre o

vínculo, o humano vínculo.

C. Sobre o uso do termo em si é indispensável fazer referência sobre qual vínculo me

refiro no universo em que esta palavra cabe para referir-se aos laços humanos.

Se me situo no campo da saúde, é importante não confundir ou equipara-lo aos

vínculos familiares, maternos, paternos, fraternos. Isso porque podemos nos

reportar a eles, transferencialmente falando, para usar uma linguagem

psicanalítica. E ainda, é claro, não se trata também de vínculos de amizade,

amorosos e/ou apaixonados. E por fim, não se trata, ou melhor, não se reduz a

vínculos institucionais em que o poder é a liga, embora tal dimensão aqui não

se exclua.

Há que separar os grãos se quisermos compreender mais do fenômeno.

Vamos em frente agora focando o vínculo, o humano vínculo, em termos

conceituais.

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2.3. Vínculo, humano vínculo.

Cuando amamos,

nos asciende a los brazos

una sabia inmemorial y remota... esto que nosotros amamos

no es sólo uno,

un ser que ha de venir,

sino la innumerable fermentación;

no una criatura individual,

sino todos los antepasados que,

como ruinas de montañas,

reposan en el suelo profundo de

nuestra existencia.

(Las Elegias de Duino, 1922 de Rainer Maria Rilke)

O vínculo humano é um fenômeno de natureza complexa, justamente por

se tratar de algo humano e humanizante. É algo a respeito do qual todos nós temos

um conhecimento tácito, oriundo da vivência e inscrito em nossa história de vida.

Não é algo sobre o qual normalmente costumamos refletir, simplesmente o

vivemos. Comumente nossos vínculos apenas se tornam centro de nossas reflexões

quando, por algum motivo, se rompem, se enfraquecem ou se desgastam, gerando

intenso sofrimento. Do contrário, os vínculos que tecemos ao longo da vida são

fonte apenas de bem-estar, alegria e prazer, e talvez, por isso, não ocupam nossos

pensamentos. Com efeito, o que sabemos sobre o fenômeno, isto é, o

conhecimento formal que produzimos a respeito dele, geralmente, tem seu ponto

de partida e seu foco de atenção mais voltado para o rompimento dos vínculos.

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Fazer um levantamento bibliográfico sobre o tema apresentando um

panorama da literatura sobre o assunto é tarefa relevante, mas não é a proposta

aqui. Como fenômeno, o vínculo possui múltiplas dimensões conexas, cujo

entrelaçamento compõe histórias de vida. Com efeito, abordarei o tema em sua

multidimensionalidade articulando a contribuição de diversos campos de saber,

recorrendo a diversos olhares, a partir de um pensar complexo. A tarefa que

assumo é de entrelaçamentos para formar uma ideia mais rica do fenômeno em seu

todo, tecendo diálogos com diversos campos de saber.

Nesta perspectiva apresento inicialmente um olhar da psicologia. Escolhi,

para isso, as contribuições de John Bowlby, pesquisador e estudioso do assunto.

Em seguida, acrescento e articulo um ponto de vista da Etologia11 amparada no

pensamento de Elbl-Eilbesfedt em sua publicação Amor e Ódio. Esses dois

campos de saber, creio eu, nos permitirão adentrar na compreensão do fenômeno

em termos de sua ontogênese e filogênese.

Acrescento em seguida contribuições da psicologia sócio-histórica e da

sociologia buscando compreender o fenômeno a partir do pressuposto que o

indivíduo humano não o é, isoladamente, mas se constrói na e pela sociedade, e se

insere na cultura. Com efeito, amplio um pouco mais a visão do fenômeno em sua

ontogênese e filogênese entrelaçada à diversidade sociocultural humana.

Mesmo a despeito de sua natureza quase inefável, buscarei também

compreender o vínculo humano em sua substancialidade, focando a atenção em sua

natureza afetiva. Recorrerei, para isso, à psicogenética e a neurologia, porque são

11

No prefácio do livro Amor e Ódio de Irenaus Eibl-Eibesfeldt tece longos comentários sobre a Etologia, ramo da

ciência desenvolvida no século XX. Interessante assinalar que a Etologia, como estudo do comportamento animal, tão desconfortavelmente evocador do nosso próprio comportamento, se propõe a descortinar os universais de comportamento específicos do humano, invariáveis com a cultura, emergentes da unidade da espécie, impressos nas três instâncias articuladas do seu ser: genes, sistema nervoso central, comportamento. Mesmo de encontro a objeções ideológicas, contra motivações éticas e interdições religiosas que de certo atrasaram suas pesquisas, a etologia segue e propõe uma metodologia de estudo que lhe confere legitimidade e seriedade. Renè Zazzo, estudioso da psicologia

infantil com base na etologia afirma que a oposição radical entre a natureza animal e humana é falsa porque, tanto em uma como em outra, funcionam operando com sistemas inatos, e o vínculo é um desses sistemas. Para mais esclarecimentos é importante ler as obras de Konrad Lorenz, prêmio Nobel de Medicina, autor que popularizou a etologia e obras de seu discípulo Eibl-Eibesfeldt, cujas ideias fecundaram o campo da psicologia tendo como expoentes John Bowlby e Réne Zazzo.

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campos de saber que apresentam uma produção significativa sobre a natureza das

emoções e sentimentos humanos.

Em função de sua multidimensionalidade abordarei o fenômeno

articulando as contribuições de diversos autores com diferentes pontos de vistas

que se coadunam em termos epistemológicos, isto é, considero a raiz

epistemológica a partir da qual as multidimensões se apresentam, para tecer o

diálogo entre autores de diferentes campos de saber.

Em termos didáticos, como forma de facilitar a compreensão do que

proponho apresentar, recorro a uma imagem-metáfora. Apresento o vínculo

representado por uma estrela de diversas pontas, cuja articulação lhe confere

densidade e tamanho. Cada lado, ou ponta, representa as contribuições de um

campo de saber e abrange uma articulação com os demais. A estrela, em si,

representa o fenômeno vínculo. A sua forma é hologramática, ou seja, a parte

contém o todo, e o todo contém as partes. Somente o conjunto das partes é que dá

sentido ao todo conferindo-lhe forma, densidade e expressão, de maneira que o

fenômeno vai adquirindo mais luz à medida que cresce em densidade e tamanho,

como mostra a figura abaixo:

Biologia

Psicologia

9 – Estrela

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Metaforicamente a estrela (vínculo) se torna mais nítida, mais densa e maior

à medida que articula e integra ideias oriundas de diversos campos de saber. Cada

ponto de vista agrega algo importante ao tema, enriquecendo e alargando a

compreensão do fenômeno. Como diz o poeta:

Do ponto de vista da terra quem gira é o sol

Do ponto de vista da mãe todo filho é bonito

Do ponto de vista do ponto o círculo é infinito

Do ponto de vista do cego sirene é farol

Do ponto de vista do mar quem balança é a praia

Do ponto de vista da vida um dia é pouco

(...) Às vezes o ponto de vista tem certa miopia,

Pois enxerga diferente do que a gente gostaria

Não é preciso por lente nem óculos de grau

Tampouco que exista somente

Um ponto de vista igual

(Ponto de Vista, Casuarina)

Nesta perspectiva é preciso dialogar a partir de diversos pontos de vista na

tentativa de articular e compreender de forma mais profunda. Vou dialogar com

diversos autores com ideias oriundas de diversos campos do saber, e assim, tecendo

ideias, sobre o vínculo buscando compreender sua filogênese e ontogênese. Como

se trata compreender humanidades, cuja diversidade é a marca, busquei reunir

ideias para compreender a multiplicidade do uno e a unidade da multiplicidade que

encerra o fenômeno. Ao final retorno à estrela (ao tema) para delinear uma nova

compreensão sobre ele, juntando as ideias para além do conhecimento tácito que

todos temos sobre o vínculo, buscando delinear uma ideia conceitual do fenômeno.

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2.3.1. Filogênese e ontogênese do vínculo entre os Humanos.

Um ponto de vista da Psicologia.

Não se pode negar a relação íntima entre Psicologia e vínculo Humano, isto

é, não se pode falar de um sem, necessariamente, remeter ao outro. Considero

então esse como um bom começo. Antes, porém, de iniciar o assunto creio ser

relevante um comentário geral sobre a Psicologia.

O rótulo de psicologia pode ser atrelado a uma diversidade de linhas

teóricas. Podemos perguntar: o que poderia haver de comum entre a Psicanálise e o

Behaviorismo? Que fio pode ligar estes, à epistemologia genética de Piaget ou às

teorias Humanistas de Carl Rogers? O que dizer da psicologia sócio-histórica e a

Psicologia da Libertação de Martin Baró? O que elas teriam a dizer sobre o vínculo,

o humano vínculo? Reconheço que é com essa tal diversidade que tenho que me

ater e me situar para abordar esse assunto, considerando a raiz epistemológica que

funda esse estudo.

Tal diversidade se deve certamente a fatores históricos, sociais e

epistemológicos que produzem modelos explicativos distintos sobre o

comportamento e/ou humana e sua natureza psíquica, a partir de concepções

idealistas ou materialistas, racionalistas ou empíricas, que ora privilegiam aspectos

orgânicos, mentais, estruturais e/ou funcionais.

Um ponto de partida em psicologia que considero promissor neste assunto

são os estudos sobre o vínculo de John Bowlby, autor referência no assunto neste

campo de saber. Segundo analisa Bowlby (1990), até a metade da década de 50

predominava uma concepção sobre a natureza e origem dos vínculos. Tanto Freud

e seus discípulos quanto os teóricos da psicologia da aprendizagem compartilhavam

explicações que remetiam ao alimento e ao sexo como explicações para o

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~ 171 ~

comportamento de vínculo. Essa concepção teórica propunha duas espécies de

impulsos: os primários, ligados ao alimento e ao sexo; e os secundários, ligados à

dependência e outras formas de relações pessoais. As explicações sobre o porquê

uma criança se liga a sua mãe ou uma figura substituta giravam em torno do fato da

sua dependência em termos de satisfação de necessidades fisiológicas. Em relação à

ligação dos adultos, o sexo era considerado uma explicação óbvia e suficiente.

Entretanto, segundo informa Bowlby, esse modelo tradicional de

explicação foi colocado em questão por estudos sobre a privação dos cuidados

maternos e seus graves efeitos no desenvolvimento da personalidade. Dois estudos

clássicos citados por Bowlby contribuíram para pensar a inadequação desse modelo

explicativo. No início dos anos 50 os trabalhos do etologista Konrad Lorenz sobre

o Imprinting tornam-se mais conhecidos e suas pesquisas colocaram em cheque a

importância da alimentação na formação de vínculos entre mãe e bebê. Lorenz

(1935) demonstrou em suas pesquisas que durante os primeiros dias de vida,

algumas espécies de aves desenvolvem fortes vínculos com a mãe, somente com a

exposição do filhote à figura materna ou a figura com a qual se familiarizou, sem

nenhuma referência ao alimento.

Outro estudo importante no campo da etologia, também mencionado por

Bowlby, são os estudos de Harlow (1958). O resultado de suas pesquisas com

filhotes de macacos Rhesus criados com mãe-boneco substituta demonstram que o

bebê se agarra de forma preferida à mãe substituta que não o alimenta, desde que

seja um boneco macio e confortável.

A partir destas pesquisas e de numerosos outros estudos empíricos com

crianças, bem como de suas próprias pesquisas, Bowlby amplia sua teoria e se afasta

dos conceitos que propunham as chamadas Teorias da Dependência. Assim,

fenômenos que, antes compreendidos em termos de necessidade de dependência, ou

relações objetais ou simbioses e individuação, adquirem uma nova compreensão à luz dos

estudos etológicos, que segundo o autor, são mais compatíveis com as concepções

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da neurofisiologia e da biologia do desenvolvimento. Bowlby apresenta sua teoria

da ligação definindo-a como:

Um modo de conceituar a propensão dos seres humanos a estabelecerem fortes vínculos afetivos com alguns outros, e de explicar as múltiplas formas de consternação emocional e perturbação da personalidade, incluindo ansiedade, raiva, depressão e desligamento emocional, a que a separação e perda involuntárias são origem. (...). O comportamento de ligação é concebido como qualquer forma de comportamento que resulta em que uma pessoa alcance ou mantenha a proximidade com algum outro indivíduo diferenciado e preferido, o qual é usualmente considerado mais forte e (ou) mais sábio. Embora seja especialmente evidente durante os primeiros anos da infância, sustenta-se que o comportamento de ligação caracteriza os seres humanos do berço à sepultura. (BOWLBY, 1990, p. 122).

Para o autor o comportamento de ligação pertence a uma classe distinta do

comportamento de alimentação e do comportamento sexual, colocando-os com igual

significado na vida humana. O contraste com o conceito da dependência é

esclarecido pelo autor em função do fato de que nenhuma função biológica lhe é

atribuída, não se relaciona com nenhum indivíduo específico ou com a manutenção

de proximidade, tampouco se associa a emoções fortes. Além disso, há implicações

de valor que opõem a teoria da dependência ao conceito de ligação, esclarece o

psicólogo, ao afirmar que enquanto que qualificar uma pessoa como dependente tende a ser

depreciativo, descrevê-la como ligada a alguém pode muito bem ser uma expressão de aprovação.

Inversamente, ser uma pessoa desligada em suas relações pessoais é considerado, usualmente, como

um comportamento que nada tem de admirável. (BOWLBY, 1990, p. 124). Para o autor

esse elemento depreciativo não favorece o uso clínico do conceito. Dependência e

independência para ele são mutuamente excludentes, ao passo que terminologias,

tais como, confiar em, ligado a, contar com, autoconfiança guardam entre si uma relação de

complementaridade. E mais, o conceito de ligação subentende uma ou mais

ligações a pessoas amadas, e o de dependência tende a ser anônimo, e não implica

um tal relacionamento.

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Bowlby apresenta as seguintes características para o comportamento de ligação:

1. Especificidade: refere-se a um ou mais indivíduos específicos em ordem de

preferência;

2. Duração: ligação que se estende pelo ciclo vital humano, embora sejam

mais vívidos na infância e adolescência;

3. Envolvimento Emocional: relaciona-se com as intensas emoções que surgem

durante a formação, renovação e/ou rompimento de vínculos;

4. Ontogenia: refere-se aos vínculos formados nos primeiros meses de vida

do bebê;

5. Aprendizagem: relacionada ao aprender distinguir o familiar do estranho,

aprendizado que persiste em situações de repetidas punições

ocasionadas pela figura de ligação;

6. Organização: criação de vínculo por meio do refinamento de sistemas

comportamentais que adquirem maior complexidade pela incorporação

da capacidade de representação;

7. Função Biológica: refere o valor de sobrevivência do comportamento para

espécie, cuja função é a proteção, especialmente contra predadores.

Com base em seus estudos Bowlby formula o conceito de Base Segura.

Amparado em evidências que o ser humano em todas as idades serão mais felizes, e

se sentirão mais capazes quando sabem e acreditam que podem contar com a ajuda

de outro ser humano, caso precise. Tal pessoa definida como figura de ligação, é aquela

que fornece ao companheiro ou companheira uma base segura a partir da qual poderá atuar.

(BOWLBY, 1990, p. 97).

Tal figura de ligação não se

limita, contudo, a fase infantil da

vida humana, esse é o ciclo da vida

em que isso se torna mais evidente,

entretanto, tal necessidade existe até

a fase adulta da vida humana. 4. Mãe e Criança - Picasso

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Bowlby defende a hipótese de que a autoconfiança é alicerçada em paralelo

com a confiança em um dos pais ou figura de ligação que proporciona a criança

uma base segura a partir da qual ela pode realizar explorações. O alimento

desempenha apenas um papel secundário no comportamento de ligação que se

manifesta com seu máximo vigor nos primeiros anos de vida, e persiste, menos

intensamente, por toda a vida, a partir de sua função originária de proteção.

Relacionado ao padrão do comportamento de ligação, o psicólogo faz

alusão a outros padrões, tais como, o comportamento de exploração e o de cuidar.

A atividade exploratória é algo imprescindível na vida animal, inclusive a humana,

porque ajuda ao animal e/ou ao humano a formar um quadro das características

ambientais que podem significar sua sobrevivência. Com efeito, esses padrões de

comportamentos são antitéticos um do outro, e se alternam em indivíduos

saudáveis, acrescenta o autor. Por outro lado, o comportamento de cuidar, que assume a

figura de ligação, é complementar ao comportamento de ligação e atende a duas funções:

estar disponível quando solicitado e pronto para intervir caso a criança ou pessoa a

quem se dispensa cuidados, que pode ser um idoso, esteja em apuros. Tais funções,

a depender de como sejam desempenhadas pela pessoa que cuida, podem

determinar, em grau considerável, se a criança será mentalmente saudável em seu

desenvolvimento.

A partir de tais pressupostos Bowlby ainda esclarece o equívoco comum

das teorias psiquiátricas e da psicopatologia em relação ao medo. Tradicionalmente,

tais teorias defendem que o medo só pode manifestar-se em situações que

realmente representem perigo. Fora disso, tal expressão de comportamento é

considerada neurótica. Isso leva a uma conclusão erronia baseada no fato de que a

separação da figura de ligação não ser considerada realmente perigosa, e que a

ansiedade gerada por tal separação, ser compreendida como neurótica. O exame de

tais questões, segundo o autor, evidencia que tanto o pressuposto, como a

conclusão, é falsa.

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Embora a situação de separação não represente um perigo real, a reação de

temor por parte dos indivíduos frente a tais situações podem ser explicadas,

segundo as teorias de Bowlby, porque situações como essa envolvem

potencialmente um risco que ameaça a sobrevivência. Assim, por exemplo, ruídos,

estranhamentos, isolamento, e para muitas espécies, a escuridão, são situações que

potencialmente significam o prenúncio de um risco real. Como o comportamento

de temor e alarde frente a tais situações tem valor de sobrevivência para muitas

espécies, o comportamento é tal como se o risco de fato estivesse presente. Assim,

esclarece o psicólogo “respostas de medo suscitadas pela ocorrência natural de tais indivíduos

de perigo fazem parte do equipamento comportamental básico do homem.” (BOWLBY, 1990,

p. 127). Tal explicação deixa claro que a ansiedade, produto de separação

involuntária da figura de ligação, pode ser indício de uma reação normal e

perfeitamente saudável. O que ainda causa indagações são as diferenças individuais

em termos de grau de intensidade que tal ansiedade causa em diferentes indivíduos.

Em síntese, Bowlby com seus estudos, defende a tese de que a capacidade

humana para estabelecer vínculos saudáveis possui estreita relação com as

experiências vividas com os pais ou a figura de ligação, e o modo de desempenho

desse papel de cuidador. Em termos ontogenéticos a capacidade humana para

vincular-se surge desde a infância a partir de seu comportamento de ligação com a

mãe ou figura de ligação responsável pelo cuidado. Uma pessoa adulta

autoconfiante resulta da confiança da criança depositada em um dos pais ou na

figura de ligação capaz de proporcionar uma base segura a partir da qual a criança

possa realizar explorações. O vínculo humano e a autoconfiança e autonomia que

dele derivam, é uma capacidade humana que inicia com o nascimento e perdura por

toda a vida humana.

A compreensão de Bowlby sobre o vínculo se ampliou a partir dos estudos

e pesquisas oriundas da etologia. A partir daí, o psicólogo direcionou seus estudos

para o campo da psiquiatria, embora sua teoria sobre o vínculo humano não se

restrinja a idade infantil ou a patologias. Creio, contudo, que seguindo seu percurso,

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e ampliando nossa visão do vínculo no campo da etologia e da biologia, é possível

elucidar ainda mais a compreensão sobre o vínculo humano.

Assim, seguindo na esteira de pensar de Bowlby buscarei um diálogo com a

etologia para pensar o vínculo como capacidade humana para relacionar-se com os

demais seres humanos e outras espécies animais.

Um ponto de vista da Etologia

Antes de iniciar o assunto propriamente a partir deste ponto de vista,

tecerei alguns comentários importantes para situar os estudos etológicos.

A Teoria da Evolução de Charles Darwin datada do século XIX nos

arrebatou, como humanos, de um lugar privilegiado na criação e nos colocou como

mais uma, dentre outras espécies animais. Tal fato, ainda hoje é um tema polêmico

para humanidade. Desde a publicação da primeira edição da Origem das Espécies, em

1859, a divulgação das ideias darwinistas, como em qualquer campo de saber,

possui tendências ideológicas, que ora fundamentam crenças que somos produtos

do meio, ora seres programados geneticamente, cuja evolução é regida pela lei do

mais forte.

A Teoria Evolucionista de Darwin fora o marco para outras formas de

compreender os humanos para além das ideias criacionistas de que somos a

imagem e semelhança de Deus. As ideias de Darwin, tanto quanto as de Freud,

reposicionaram nossa compreensão sobre o humano descentrando-nos do centro

superior da hierarquia animal no que diz respeito a nossa biologia e a nossa

racionalidade. Na modernidade, onde a máquina é a metáfora que explica o

universo, nos sentimos mais confortáveis sendo comparados a máquinas que aos

animais, sobretudo, em função da herança teológica que coloca o humano no topo

da hierarquia nos seres vivos.

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Entretanto, seja qual for nossa origem - divina ou animal - é anterior, e

permanece a polêmica em torno de nossa natureza humana que longe está da

máquina em termos de similitudes, embora, na modernidade, fiquemos mais a

vontade e agimos com mais naturalidade sendo comparados à máquinas do que aos

animais. Há correntes de pensamentos que fazem uma leitura das ideias darwinistas

e sustentam a crença de que somos seres antissociais, competitivos e que

sobrevivemos em função da lei do mais forte e do mais apto, tão amplamente

divulgada na sociedade contemporânea, e já tão apropriada no senso comum,

quanto a ideia criacionista. segundo a qual, somos imagem e semelhança de um

Deus. A polêmica sobre nossa verdadeira natureza prossegue em ambas as

convicções com defesas implacáveis, matizadas por diversas correntes ideológicas.

A questão chave permanece polêmica e pontos de vistas extremos ainda

prosseguem em suas defesas. O ser humano é bom por natureza e a sociedade é

que o corrompe, assim como o apresentava Rousseau (1712-1778), um dos

principais filósofos Iluministas. Ou, ao contrário, o ser humano é possuidor apenas

de instintos de conservação e avidez de poder, como assim acreditava Hobbes

(1588-1689). Entre tais posições extremas, é preciso um pensar sereno que se

interrogue para onde nos levam tais convicções.

Feito essas considerações, passo agora para a contribuição da Etologia cuja

produção de saber é generosa em apresentar estudos e fundamentos que

apresentam nossa natureza humana como possuidora tanto de instintos de

agressividade como instintos gregários e altruístas. É nessa senda que se situa uma

produção de conhecimento significativa que ultrapassa as matizes ideológicas e

maniqueístas sobre a natureza humana e nos oferece uma valiosa contribuição para

compreensão do vínculo humano em sua filogênese.

Eibl-Eibesfeldt, discípulo de Konrad Lorenz, em seu livro Amor e Ódio, de

1970, defende a tese que, tanto o comportamento agressivo como o altruísta, são

pré-programados através de adaptações genéticas processadas ao longo da história

das espécies. Para o etólogo nossos impulsos agressivos são equilibrados por uma

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tendência, também inata, de sociabilidade e de cooperação. Segundo compreende o

autor nós humanos somos capazes de viver em grupos, mesmo em face à

agressividade que nos é inerente. A partir dessa premissa o autor se propõe em seu

estudo responder a várias questões. As perguntas chaves que trata seu livro são:

Com que meios constituímos e mantemos vínculos com os nossos semelhantes, ultrapassando a

barreira da agressividade? Haverá instintos vinculadores inatos que se oponham ao instinto

agressivo? Que papel desempenha neste caso o instinto sexual? Como se desenvolveram a

sociabilidade e o amor no processo histórico de evolução das espécies e durante o período evolutivo

da juventude (ontogenético)? Como se desenvolveu o ódio? (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p.

27). A leitura é bem instigante, entretanto, para fins deste capítulo, vou reter apenas

algumas ideias chaves do autor, focando aquelas relacionadas à origem dos vínculos

humanos.

Para Eibl-Eibesfeldt o vínculo pessoal nasce concomitante aos cuidados

dispensados à prole. O autor refere o conceito de amor em seu livro esclarecendo

que não o utiliza em referência ao amor sexual, mas o aborda, de um modo geral,

como um vínculo emocional e pessoal que une um ser humano a outro ou ao vínculo resultante

da identificação com um grupo determinado. O contrário do amor é o ódio, enquanto rejeição

emocional individualizada, e o ódio de grupo daí resultante. (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p.

28).

Em capítulo mais a frente quando aborda a agressividade e os rituais

vinculadores o etólogo afirma, conforme apontam suas pesquisas, que

filogeneticamente não poderia haver a amizade sem os cuidados maternais. O amor

entre os humanos resulta, em termos da filogênese, dos cuidados e defesa das crias,

e como o grupo pode ser considerado uma ampliação da família, a defesa do grupo,

com suas emoções correspondentes, também tem derivação da defesa da prole e da

família.

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O cuidado da prole condiciona precocemente associações individuais em

função dos cuidados individualizados em relação às crias, esclarece o autor. É isso

que vai oferecer condições para uma vida social diferenciada. A defesa da prole e

do grupo é a força de coesão. Os répteis e anfíbios, esclarece ele, são espécies cuja

agressividade se distingue comparada às espécies que cuidam de seus filhos. Em

espécies que não dispensam cuidados as suas crias não se observa quaisquer

indícios de camaradagem de luta ou defesa de grupo. Eibl-Eibesfeldt afirma que:

não conheço nenhum vertebrado terrestre que se una para atividade comum, como a caça ou a luta,

desenvolvendo aí um vínculo pessoal com membros da mesma espécie, e que entre seus antepassados

não tenha comprovada alguma forma de cuidados para com a prole. (EIBL-EIBESFELDT,

1970, p. 152).

Em relação ao instinto sexual, o etólogo afirma dele resultar forte

motivação para estabelecer contato. Por ser um instinto tão ou mais ancestral que a

agressividade, uma vez que até os organismos monocelulares a ele se submetem, é

pertinente pensar se através dele, poderá se estabelecer uma vinculação duradoura

entre congêneres. O etólogo adianta que este é um caso mais raro do que se

poderia supor. Apenas os humanos e alguns símios estabelecem vinculação

duradoura através dele. O instinto sexual é raramente utilizado na criação de

vínculos, embora, entre os seres humanos, desempenhe um papel importante. De

5 - Mamíferos

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acordo com o etólogo o amor não radica na sexualidade para o fortalecimento secundário do

vínculo. (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p. 153).

Segundo Eibl-Eibesfeldt há duas raízes principais de sociabilidade entre os

vertebrados. A primeira resulta da procura pelo contato motivada pelo instinto de

fuga. O congênere adquire um valor de lar, pois em grupo, há segurança. Isso vale

dos peixes, que vivem em cardumes, até os primatas superiores. A segunda raiz de

motivação para sociabilidade é o instinto de cuidados paternos que une os pais à

prole, e que se presta para uma consolidação da vinculação entre adultos. Segundo

o etólogo apenas os animais que cuidam de suas crias são propensos à criação de

vínculos ultrapassando a barreira da agressividade.

Para o etólogo as observações e pesquisas de Korand Lorenz, de quem foi

discípulo, não há dúvidas de que o amor é um filho da agressividade. Explica ele,

que esse pensar de Lorenz a partir de suas meticulosas observações justifica-se

porque a agressividade intra-específica é muito anterior, em termos evolutivos, do

que a amizade e o amor. O vínculo pessoal só aparece nos teleóstos, uma subclasse

de peixes; nas aves e mamíferos, que são grupos animais que só aparecem depois

do período mesozoico tardio. O autor acrescenta que há uma agressividade intra-

específica sem o seu contrário, o amor, mas por sua vez não há amor sem agressividade.

Contudo, Eibl-Eibesfeldt acrescenta suas ideias às de Lorenz afirmando que a

função da agressividade reorientada é, justamente, fortalecer o vínculo por meio das

cerimônias de apaziguamento e que, certamente, podemos verificar que não pode

haver amizade sem agressividade. Não obstante, salvo raras exceções, o autor

acrescenta que não haveria amizade sem os cuidados maternais. De acordo com

suas pesquisas e observações nenhum caso foi registrado de união entre animais

exclusivamente por meio da agressividade. Em suas palavras de um modo geral o amor

não é primordialmente um „filho‟ da agressividade, mas que nasceu com o desenvolvimento dos

cuidados maternais. (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p. 27).

A ontogênese “repete” a filogênese em termos hologramáticos. Em função

disso, nossa capacidade de amar está profundamente relacionada com a experiência

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vivida no seio da família, em particular, na relação mãe/bebê, que nos habilita

como seres de sociabilidade, como bem nos mostrou as pesquisas de Bowlby.

Como defende o etólogo “A capacidade de estabelecer um vínculo pessoal evolui

filogeneticamente e em conjunto com os cuidados para com a prole e que isso se repete, até certo

ponto, no período ontogenético. A criança adquire a faculdade de amar o próximo através do amor

para com a mãe. Sem passar por esta fase seria difícil, senão impossível, para a criança identificar-

se com o grupo.” (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p. 28).

Em sua origem, nós humanos evoluímos para uma vida em grupos

individualizados. Entretanto, com a vida moderna, formaram-se comunidades

anônimas, e com elas, a dificuldade de identificação. Se temos impulsos inatos para

estabelecer vínculos com estranhos, também temos a tendência para fecharmo-nos

em grupos isolados. Tais circunstâncias geram padrões de comportamentos de

atribuir papel de inimigos a membros de grupos estranhos. Os seres humanos

sentem-se menos vinculados a estranhos, e dessa forma, esclarece o autor, estamos

mais propensos e menos inibidos em nossa agressividade em relação a

determinados grupos que consideramos estranhos. Eis a razão para o aumento de

conflitos intragrupais, explica o etólogo. Caberia a nós, defende ele, descobrir se

isso acontece de forma involuntária, a depender da associação de determinadas

ideias. Tal ponto é relevante para colaborar no caminho de construção e

manutenção da paz mundial, sobretudo, com nossa vida em sociedades anômimas

como, por exemplo, na contemporaneidade com a vida urbana, completa o autor.

Em todo seu livro Eibl-Eibesfeldt defende a tese que, tanto o

comportamento agressivo como o altruísta são pré-programados por adaptações

genéticas processadas ao longo da história das espécies. O etologista busca

esclarecer pontos de vista que ideologicamente servem a visões maniqueístas e

pragmáticas sobre a natureza humana que justificam, desculpam e defendem a

agressividade como algo inato a serviço da seleção e sobrevivência dos mais aptos,

sendo o controle a única saída. A declaração da agressividade como um instinto de

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sobrevivência que explica e naturaliza uma cultura de violência só se justifica em

função de uma visão reducionista e unilateral sobre a biologia humana.

Os etologistas, em geral, defendem que referir um comportamento como

uma disposição inata não significa de modo algum que tenha que ser aceito como

imutável e inacessível a uma influência pedagógica. Segundo o Eibl-Eibesfeldt

Qualquer comportamento desenvolvido no decurso da história genética das espécies (filogênese) pode

perder de um momento para o outro a sua função primitiva. Assim, é possível compreender que,

outrora, um forte instinto agressivo tenha contribuído para impulsionar o desenvolvimento

intelectual do homem (...) e tenha forçado a difusão do homem por toda a terra. Hoje, um excesso

de agressividade pode perfeitamente conduzir à sua auto-destruição. (EIBL-EIBESFELDT,

1977, p. 25-26). É preciso reconhecer que, não obstante toda a agressividade

humana, tecemos e mantemos vínculos como nossos semelhantes ultrapassando a

barreira da agressão. Lorentz aborda os instintos, na verdade ele fala de um

parlamento dos instintos, esclarece Eibl-Eibesfeldt, e que em função disso o repertório

comportamental humano compõe-se de um complexo sistema de condutas, muitas

vezes, de ação contrária.

Creio que é nesta relação dialógica de oposição e complementaridade entre

padrões de comportamento inatos que estabelecemos condições para criar e manter

vínculos com nossos semelhantes. Em suas conclusões o autor defende que:

A nossa análise biológica do comportamento humano mostrou, em primeiro lugar, que o instinto da agressividade, que nos é inato, tem opositores naturais. Com a sua ajuda estamos em condições de estabelecer e manter vínculos com os nossos semelhantes. Na verdade há um forte impulso para a sociabilidade, que nos é inato. Todos esses mecanismos de vinculação ao grupo são filogeneticamente muito antigos e tudo parece confirmar que se desenvolveram mão em mão com os cuidados para com a prole. Com esta „invenção‟ as aves e os mamíferos adquiriram, independentemente uns dos outros, a capacidade de prestar apoio mútuo e, assim, de formarem agrupamentos altruístas que disputam em conjunto a luta pela sobrevivência. O apoio mútuo adquire deste modo um papel cada vez mais significativo na evolução dos organismos

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superiores. Dos agrupamentos familiares nasceram as grandes famílias, as hostes, e por fim os agrupamentos anônimos fechados dos mamíferos e dos seres humanos. Os meios de vinculação permanecem, no fundo, sempre os mesmos e derivam quanto à sua origem essencialmente do repertório dos tipos de comportamento que vinculam mãe e filho. A relação mãe-filho foi filogeneticamente, e é no desenvolvimento individual, o centro cristalizador de toda a vida social. (...) encontra-se aqui a raiz para a nossa tendência visível para o estabelecimento de vínculos pessoais, tendência que nos é inata. Através da relação pessoal mãe-filho desenvolvem os seres humanos a confiança original sobre a qual se desdobra a nossa atitude sociável fundamental. (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p. 268-269).

Em face às sociedades anônimas se coloca como questão crucial pensarmos

em maneiras de despertar um novo sentimento de unidade social, arremata o

etólogo em suas reflexões. A hostilidade e a educação sem o amor aniquilam, em

nós humanos, nossa capacidade inata para o vínculo e o amor. Quando optarmos

por dar mais relevo aos aspectos vinculares de nossa natureza humana, aí então,

podemos nos assegurar de proporcionar um futuro mais feliz para as próximas

gerações, defende o etólogo.

Ele tem razão em suas observações porque testemunhamos um fazer

humano voltado para preservação da vida em todos os aspectos. Há pessoas e

cientistas que produzem conhecimento e dedicam suas vidas na preservação da

diversidade da vida, da saúde humana e ambiental. Entretanto, há também ações

humanas cujas consequências são a destruição e o aniquilamento de diversas

formas de vida. Lamentável é que somente essa segunda classe de ações tem amplo

espectro em termos de divulgação.

Construir modos de vinculação saudável é uma tarefa humana urgente se

quisermos apostar em um futuro feliz para a humanidade, é o que conclui Eibl-

Eibesfeldt em seus estudos etológicos.

Michel Chance, outro etologista, em seus estudos sobre as sociedades de

macacos (chipanzés, babuínos, rhesus, símios e gorilas) classifica as sociedades

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constituídas por esses primatas em dois tipos. O primeiro é a sociedade agonística,

termo utilizado para descrever a tensão constante entre fuga e agressão vivenciado

intermitentemente pelos membros de uma sociedade, que devem permanecer

juntos para beneficiar-se da proteção de um macho dominante, em que este mesmo

é uma constante fonte de ameaça para os próprios membros do grupo. Tal modo

de comportar-se gera uma constante fonte de tensão que domina os movimentos

dos membros do grupo. Este modo de vida se caracteriza por uma separação, e a

agressão e a ameaça são constantes nas relações entre os membros do grupo.

O segundo tipo é o modo de vida hedonístico dos grandes chipanzés que

se caracteriza pelo modo sensível de contato (beijos, toques, apertos de mão,

abraço) e as relações entre os membros são controladas pelo contato, e não pela

agressão e ameaça. O contato constante tranquiliza o grupo impedindo o aumento

da tensão e excitação, e suas relações sociais estão ligadas por uma fonte recíproca

de cuidado e atenção.

As sociedades agonísticas se caracterizam por sua estrutura fechada, rígida e

de permanente vigilância, com relações de distanciamento provocadas por ameaças

e agressões. As sociedades hedonísticas se estruturam em função da relação

sensível, do contato e da atenção entre seus membros.

Pelo exposto, com as contribuições da etologia podemos compreender que

em nossa natureza humana somos tão propensos ao auto-aniquilamento quanto à

convivência amorosa. Somos capazes de construir um modo de conviver em uma

sociedade agonística ou hedonística em função da plasticidade do nosso

comportamento. Contudo, é preciso construir processos de consciência e

inteligência que direcione nossa liberdade em direção à convivência amorosa.

Afirmar que o amor e o afeto é uma propensão inata do humano não

significa de modo algum a ideia romântica que exclui nossa tendência agressiva e

sua propensão à guerra, homicídios, genocícios e infanticídios. Isso porque como

vimos em termos de filogênese é da agressividade que se desdobra o padrão de

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comportamento vinculador. O que é importante em termos de construção de

conhecimento sobre a natureza humana é retirar o amor e o afeto de um lugar

metafísico inalcançável e compreendê-lo em nosso cotidiano, tanto em termos

filogenéticos, quanto da ontogênese humana.

As pesquisas de Bowlby contribuem para nossa compreensão sobre o

vínculo e sua importância na vida humana em todos os ciclos da vida. Seus estudos

demonstram claramente que a autoconfiança na vida adulta resulta de uma base

segura proporcionada pelo modo de vinculação saudável da criança com seus pais.

Em contrapartida, Eibl-Eibesfeldt também nos aponta luzes para compreensão da

natureza humana no que temos de comum, esclarecendo a unidade que há na

diversidade humana expressada pela afetividade que nos vincula uns aos outros

como espécie.

Em síntese, vínculo, o humano vínculo, é um fenômeno gerador da

humanidade em termos da filogenia, e também de humanidade, em termos da

ontogenia. Somos uma espécie capaz de aprender o amor a partir, e em função de

nossa biologia.

A afetividade é o fio que nos vincula uns com os outros e diz respeito a

nossa capacidade de se emocionar e sentir. Isso é o que temos em comum como

espécie humana, a despeito da diversidade social, histórica e cultural pela qual se

forja e se expressa nossa humanidade. Por outro lado, como nos adverte Morin, o

indivíduo, como o nó górdio da trindade indivíduo-sociedade-espécie, não se reduz à

espécie. Tampouco, pode ser dissolvido na sociedade. Como nos convida o pensar

complexo de Morin é preciso operar com um pensamento capaz de perceber a

unidade em meio à diversidade e, ao mesmo tempo, captar as diferenças sem,

contudo, subsumi-las no diverso.

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2.3.2. Vínculo humano e a multiplicidade do uno.

Separar as partes do todo e analisar as partes separadamente é essencial

para o pensamento clássico científico. Entretanto, é preciso ir além e não perder de

vista aquilo que une, isto é, não perder o todo, e com isso, correr o risco de tomar a

parte pelo todo. É justo neste ponto que devemos perceber a unidade na

diversidade e a multiplicidade do uno, reconhecendo como diz Morin (2003a) que a

diversidade criadora é nosso tesouro, mas a unidade geradora é a fonte da nossa

criatividade.

Seguindo na senda dessa lógica complexa de pensar e no intuito de alargar e

clarear mais o fenômeno que me ocupo, agregarei ao tema algumas contribuições

oriundas da psicologia sócio-histórica e da sociologia, buscando compreender agora

a multiplicidade do uno.

Um ponto de vista da Psicologia Sócio-histórica.

A afetividade é o fio que nos vincula a todos como espécie, todavia, nossa

humanidade não se reduz à espécie, somos humanos como cultura e história, nos

humanizamos na e pela sociedade. Os estudos da psicologia sócio-histórica

inserem o indivíduo, nó górdio da trindade, na cultura, evidenciando a diversidade

inerente aos processos de vinculação entre os humanos.

Sheila Daniela Medeiros dos Santos (2009) da Universidade de Campinas

traz uma contribuição interessante em seu artigo intitulado A natureza do vínculo na

vida humana. Ela propõe uma reinterpretação do vínculo em uma perspectiva

histórico cultural, e avança por outras sendas a partir dos pressupostos apontados

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por John Bowlby. Para ela a necessidade de criar vínculos surge entre a natureza e a

cultura, cruzamento responsável pela sociabilidade humana.

Segundo analisa Santos em seu artigo as diversas teorias que abordam o

vínculo do bebê humano com a figura de ligação apresentam diversos pontos de

inconsistência e, por isso, se apresentam como objeto sistemático de reflexões.

Segundo ela, a ideia intrigante e nebulosa não é o fato em si do estabelecimento

desta união mãe/bebê, e sim, a origem deste vínculo e suas implicações para

existência humana.

Após apresentar os principais conceitos da teoria da ligação de Bowlby e

sua aproximação dos estudos etológicos de Konrad Lorenz, Santos se propõe

agregar à noção de vínculo alguns constructos da psicologia sócio-histórica para

compreender mais amplamente a natureza do vínculo na vida humana.

Com base na afirmação de Renè Zazzo12 (1974) segundo a qual tanto as

proposições psicanalíticas quanto as derivadas das teorias da aprendizagem são

insuficientes na explicação sobre a origem do vínculo na vida humana. A autora

afirma que, embora os teóricos das relações objetais e da aprendizagem

reconheçam a importância chave do vínculo na vida humana, ainda não há uma

abordagem científica que forneça uma compreensão mais adequada sobre a criação,

manutenção e rompimentos dos vínculos afetivos.

A partir disso a autora apresenta a perspectiva sócio-cultural em psicologia

que compreende as funções biológicas como os substratos sobre os quais se

constroem as funções sociais. Com base nessa premissa a autora defende que as

relações sociais se sustentam numa sociabilidade cuja base é a necessidade de criar vínculos.

(Santos, 2009, p. 192). Os humanos somos sociais por natureza, em função disso,

argumenta a autora, há uma natureza biológica da sociabilidade que poderá ser

entendida no processo de conversão da função biológica, em função simbólica,

desde que se diferenciem claramente as noções de vinculação e de sociabilidade

12 Renè Zazzo é estudioso da psicologia infantil e direcionou seus estudos com base nas pesquisas em etologia.

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para evitar armadilhas etiológicas. Tal afirmação converge com as proposições de

Eibl-Eibesfeldt, embora a autora não lhe faça referência e baseie seus estudos

somente nas ideias de John Bowlby.

A autora segue sua argumentação apoiada na relação dialética que a

psicologia de base sócio-histórica estabelece entre as funções biológicas e culturais

na constituição do psiquismo humano, e ressalta que a função cultural jamais poderá

substituir uma função básica; afinal, nenhum tipo de relação interpessoal substitui aquela relação

básica que é sentir que o outro o reconhece enquanto espécie, seja quem for. Isso quer dizer que não

se pode construir uma sociabilidade em cima de princípios abstratos, metafísicos. (SANTOS,

2009. p. 19). A sociabilidade humana, explica a autora, não é simplesmente dada

pela natureza como ocorre com a sociabilidade animal. Os humanos a assumem

concretizando-a de formas diversas, a partir de seus processos de significação. A

função biológica que permite, tanto aos humanos quanto a algumas espécies

animais, identificar e reconhecer o familiar e o estranho, especificando do que deve

se afastar, e do pode se aproximar, se reveste de uma mediação simbólica nos

humanos, que a engloba e ultrapassa. O ser humano como produtor do real

transcende o plano biológico e inscreve sua natureza no plano simbólico.

Com efeito, a sociabilidade humana não pode ser explicada por modelos

animais a não ser por analogia, jamais por semelhança ou redução. Os princípios

que estão na origem da sociabilidade humana são outros que vão além do

biológico, embora neles tenham sua base. A partir disso a autora argumenta que o

problema fundamental é procurar saber quais processos, e em que condições o

vínculo dá origem a sociabilidade humana, isto é, como conceber a passagem do biológico

ao cultural?

A autora vai buscar na Teoria de Vygotsky, principal referência da vertente

sócio-histórica em psicologia, os subsídios para suas proposições. Para Vygotsky

são as relações sociais que originam as funções psicológicas superiores e estruturam

a natureza psíquica humana. Embasada na proposição do autor soviético segundo a

qual a criança passa de um estado biológico a um estatuto de ser cultural na medida

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de constituição de suas primeiras interações sociais, Sousa afirma que, sendo o

outro e as relações sociais constitutivas do ser humano, é “evidente que a necessidade de

criar vínculos não pode ser explicada apenas no mundo animal, uma vez que é essa mesma

necessidade, imersa no mundo simbólico ou da significação, que leva a sociabilidade humana.”

(SANTOS, 2009, p. 196).

Segundo defende a autora a necessidade de criar vínculos é um ponto de

intersecção entre a sociabilidade biológica e a sociabilidade humana, uma vez que

sem a necessidade biológica do vínculo não haveriam as relações sociais, e ao

contrário, se não houvesse relações sociais não haveria como se instituir os

vínculos. Se a vida humana, em termos de sua natureza psíquica, possui a marca

das relações sociais, a vida humana é que imprime um sentido de dramaticidade às

relações sociais, defende Santos.

A autora conclui em seu artigo que as proposições da psicologia sócio-

histórica trazem uma nova gama de possibilidades para compreendermos o vínculo

humano, fenômeno de fronteira entre o mundo natural, biológico e o mundo

cultural, o que nos abre o desafio de perceber os enlaces e as intersecções de tais

fronteiras. Desafio que a autora deixa em aberto!

Compreendo que as contribuições são relevantes aqui porque ela amplia o

discurso sobre o vínculo e o coloca para além do lugar eminentemente clínico ao

qual tem se limitado o discurso no campo da psicologia. Ela amplia a visão e traz o

simbólico e o cultural como nuances importantes dos vínculos em termos da

sociabilidade humana. Em termos da ontogênese e filogênese o vínculo humano

tem sua unidade ancorada na afetividade como algo comum à espécie. No entanto,

tal natureza afetiva dos vínculos humanos tem inscrição simbólica.

Há certamente uma forma particular e singular de cada cultura expressar

sua capacidade inata para formar e manter vínculos, propiciada por outra

capacidade humana: a de representação simbólica. É justo neste ponto que

devemos nos atentar para a multiplicidade do uno que inscreve o fenômeno

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vínculo na diversidade cultural e histórica em termos de sociabilidade humana. De

que forma as emoções e sentimentos que compõe a afetividade humana que

consubstancia o vínculo adquirem expressividade?

Um ponto de vista da Sociologia.

Um interessante ensaio escrito pelo sociólogo Eduardo Diatahy Bezerra de

Menezes (2002) da Universidade Federal do Ceará, intitulado A modelagem

Sociocultural na Expressão das Emoções, traz contribuições interessantes para

pensarmos neste assunto, oferecendo valiosas contribuições nesta perspectiva em

que adentramos agora.

O sociológico em seu ensaio inicia sua linha de pensar assinalando que o

ser humano possui uma amplitude de horizonte que lhe confere um vasto campo

fenomenológico e existencial, que abriga um tempo histórico com uma magnitude

significativa de alcance, tanto para o passado, como para o futuro, que se apoia

numa memória individual e coletiva. O autor chama atenção que um dos pontos

mais significativos neste vasto horizonte humano é sua capacidade de se tornar

objeto para si mesmo. Ele afirma que o ser humano não apenas sente emoções e

necessidades externas, em relação aos outros seres humanos e ao real, mas também percebe, sente e

pensa sua vida interior. (MENEZES, 2002, p.7). É esta capacidade que cria

subjetividades e nos proporciona assumir uma posição de pessoa no mundo,

arremata o autor.

Menezes reitera que a sociedade humana, tal como a conhecemos hoje,

resultou, dentre outros aspectos, de um grau de organização na captação de fatos e

relações pelo desenvolvimento de estruturas cognitivas complexas, em ausência das

quais, nenhuma sociedade humana, com seu complexo sistema organização e

ordenamento de relações sociais, seria possível. Ele explica que essas capacidades

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cognitivas, articuladas com as motivações e os sentimentos e afetos mais elaborados, que propiciam

a passagem do modo de vida bio-societário para modalidade do viver humano-social.

(MENESES, 2002, p. 8).

Há uma unidade psíquica básica como já bem demonstraram as pesquisas

em epistemologia genética que não se restringe aos processos cognitivos, uma vez

que a nossa estrutura emocional também possui similitude generalizada. Em termos

cognitivos há uma lenta maturação na construção de noções de espaço, tempo,

número, e demais categorias fundamentais do entendimento humano. Por outro

lado, também é certo, que as nossas estruturas emocionais, também passam por

transformações, tão complexas quanto as cognitivas.

Meneses segue seu pensar explicando que quase todas as emoções humanas

ocorrem em função da presença ou ausência dos outros. Em termos de expressão

das emoções humanas estas são sistemáticas e não episódicas, ou seja, se organizam

em torno de objetos permanentes (pessoas e grupos assimilados por um complexo

jogo de códigos sociais) e incorporam objetos sociais, grupos, instituições, até

incluir a sociedade, a humanidade. Em última instância, somente em sociedade nos

humanizamos e/ou também nos deshumanizamos, esclarece o autor.

Com base nestes pressupostos é que Menezes tece interessantes reflexões

sobre a contribuição das expressões emocionais para compreendermos a vida

social. Ele nos esclarece que a forma humana é o objeto mais expressivo do

ambiente que vivemos. A captação de tais expressões em suas formas mais sutis

amplia nossa compreensão do outro na mesma medida que aumenta, em rapidez e

complexidade, a interação social. Há mutações sutis e infinitamente ricas na forma

humana de se expressar que integra uma escala mais ampla de atributos expressivos

que povoam nosso ambiente e que condicionam nossa forma de nos aproximar das

pessoas e dos ambientes para captar formas, jeitos, gestos, símbolos e que, por sua

vez, modulam nossa interação no mundo. Há uma linguagem expressiva que é bem

mais ampla que a linguagem verbal e a antecede. E mais, até mesmo a linguagem

verbal é dotada de tal grau de sutileza, finura e acuidade, que reveste a comunicação

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humana, que torna o modo de apreensão das emoções dos outros, uma

problemática importante e crucial para o estudo da vida social, arremata o autor.

É neste ponto que Meneses apresenta o coração de suas reflexões e indaga:

existiria uma expressão específica para cada tipo de emoção? Isso é fundamental

para esclarecer se o que liga a experiência emocional a sua forma de expressão

ocorre pela via inata, ou por aprendizagem sociocultural, pondera Meneses. O

autor lembra que há um ponto de vista clássico sobre essa questão já apresentado

por Darwin quando tratou da expressão das emoções nos seres humanos e animais.

Nesta obra o naturalista britânico defende que os movimentos expressivos são, em

sua origem, partes de atividades práticas, como, por exemplo, arreganhar os dentes,

cerrar os punhos, estremecer com um ruído, cuja permanência, tem valor de

sobrevivência para espécie em face a situações análogas. Com base nesta ideia,

Meneses explica que:

Na expressão emocional, existe uma relação de isomorfismo entre a experiência interna e a ação exterior, que constitui condição necessária para a compreensão recíproca, isto é, esta não é subproduto daquela. Em resumo, as funções da expressão emocional são, primeiramente, uma ação externa de tensões que provêm de situação que provoca emoção, ampliando a resposta emocional. Num plano simbólico, elas servem à liberação de tendências impedidas de se completarem em determinadas condições. É a expressão, finalmente, que serve para comunicar a outros a qualidade de nossas experiências emocionais e de nossos sentimentos. (MENESES, 202, p. 18).

Para concluir suas reflexões sobre a modelagem sociocultural das emoções

o autor exorta um espírito crítico capaz de nos salvaguardar da sedução que

convida a crer que quando nossa consciência se deixa absorver por expressões de

dor, gozo, tristeza, etc, encontramos, enfim, o “homem universal”. Há uma ampla

gama de estudos etnológicos, lembra o autor, que comprovam, com abundancia de

fatos seguramente registrados, uma intensa variedade de expressões emocionais.

Assim, choro, lágrima, beijo, riso, raiva, evitação, agressão, associados a situações

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de alegria, separação, ciúme, morte, perda, disputas, conflitos, que, por sua vez,

inseridos em diversos contextos culturais, ou diferentes épocas históricas, se

revestem de ampla variedade.

Meneses destaca que há três pontos de vistas que tornam relevantes os

fatores socioculturais do comportamento afetivo. Primeiro, quando eles representam

quase sempre um papel saliente na determinação das situações que provocam esta ou aquela

emoção; segundo, quando condicionam também o nível do comportamento emocional

manifesto que se produzirá em tais situações. E por fim, quando eles tendem a influenciar

poderosamente o modo como as emoções se manifestam. (MENESES, 2002, p. 19). A

expressão das emoções é uma linguagem e, portanto, possui seus códigos a partir

dos modelos que lhe fornece a cultura na qual se manifesta. O sociólogo apresenta

vários exemplos disso. Um deles, que gostaria de destacar, é o riso e sua variedade

de significações. Diz ele que,

(...) os Cafres e os Dayaks de Bornéu costumam sorrir para exprimir seu desdém; já no Japão tradicional, não se costuma sorrir por júbilo, mas antes para exprimir embaraço, quando por exemplo um superior passa uma reprimenda ou quando traz má notícia; quando uma mãe de samurai sabia da morte do marido ou do filho em combate, ela sorria. (MENESES, 2002, p. 20).

As situações vividas pelos humanos exigem expressões e reações emocionais que

variam amplamente e que, em limites amplos, destaca o autor, podemos afirmar

que há uma modelagem cultural das emoções e de suas expressões. É na e pela

afetividade, reconhece o autor, que os humanos tomam conhecimento dos valores

que incorporam e transformam em crenças. Não há sociedade que não se interesse

pelo comportamento afetivo porque é justamente aí que reside suas manifestações,

podendo, até mesmo, se tornar perturbações de difícil gestão com capacidade de

comprometer a ordem coletiva. Esse é o motivo, segundo aponta Menezes, para a

sociedade sempre intervir com definição de valores e regulação de condutas a

ponto de institucionaliza-las. O sociólogo finaliza suas conclusões apontando a

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importância de uma teoria dos sentimentos humanos e da relevância da

contribuição da sociologia e da antropologia neste debate.

Em síntese, o vínculo humano em sua filogênese e ontogênese tem a

afetividade como unidade singular da espécie. Todavia, a compreensão do humano

em termos da complexidade que entrelaça indivíduo-espécie-sociedade insere a

unidade, na diversidade. Com efeito, a afetividade adquire uma expressão cultural

em função da representação simbólica que caracteriza o indivíduo, e a multiplicidade

do uno se revela na sociedade em sua diversidade cultural.

A afetividade é o que consubstancia o vínculo nos permitindo compreender

sua unidade na diversidade. Com efeito, perguntas e inquietações daí se desdobram.

Se falando de vínculo pressupomos afetividade em seu colorido de emoções e

sentimentos é preciso clarear esta noção amplamente polifônica, tanto para o

pensamento científico quanto para o pensamento do senso comum. É importante

ampliar a estrela agora buscando clarear o que conotamos quando nos referimos a

6 - Diversidade Humana

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emoção que, por vezes, pode ser referida como sinônimo de sentimento, e ambos,

podem ser reduzidos aos afetos. A psicogênese e a neurologia trazem importantes

contribuições para aclararmos estas questões.

2.3.3. O Vínculo Humano e a unidade na multiplicidade.

Seguimos adentrando a estrela que apresentei inicialmente como metáfora

para compreender o vínculo em sua complexidade que se desdobra em diversos

pontos de vistas, cada um agregando algo e enriquecendo a compreensão. A partir

das contribuições da psicogênese e da neurologia vamos adensar nossa

compreensão sobre o vínculo focando sua raiz afetiva, cujos fios, consubstancia-o

conferindo-lhe unidade.

Os estudos psicogenéticos abordam a estrutura cognitiva humana, sua

gênese e maturação em direção da construção de categorias fundamentais para o

entendimento humano, como as noções de tempo, espaço, número. Todavia, um

aspecto pouco referido neste ponto de vista é a influência afetiva nos processos de

aprendizagem. Embora não seja uma influência negada, os estudos psicogenéticos

apontam, mas não aprofundam esta questão. Hoje, entretanto, diversos estudos

relacionados à Educação fazem uma releitura de autores clássicos da psicogênese

como Vygotsky, Piaget e Wallon, dentre outros, revendo a referência aos afetos no

processo de aprendizagem, tecendo novas relações entre afeto e cognição.

Um ponto de vista da Psicogenética

Compreendendo a afetividade como algo que consubstancia o vínculo

humano agregarei ao diálogo autores do campo de saber da psicogenética que

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trazem uma importante contribuição sobre o tema correlacionando-o com os

estudos sobre a cognição humana. Para isso destaco uma publicação organizada por

Valéria Amorim Arantes (2003) chamada Afetividade na Escola. Alternativas Teóricas e

Práticas em que vários autores oriundos da educação, psicologia, neurologia

linguística e matemática fazem uma releitura das principais teorias ligadas à

cognição humana, tendo como questão central sua dimensão afetiva.

Em termos gerais os autores de diferentes disciplinas teóricas convergem

para o consenso de que os sentimentos modificam os pensamentos, a ação e o

entorno. Este, por sua vez, influi nos pensamentos, nos sentimentos e na ação,

bem como, os pensamentos influem os sentimentos, no entorno e na ação. Creio

que tal relação pode ser expressada em suas interrelações dialógica e recursiva com

ajuda da figura abaixo:

Essa figura representa o meu modo de ver a ideia geral do livro que

apresenta uma serie de estudos a partir de diversas disciplinas. Vou me ater, porém

aos artigos que destacam as Teorias de Piaget, Vygotsky e Wallon, principais

referências das teorias psicogenéticas.

A Teoria de Piaget é leitura clássica para os estudos da cognição humana

em termos epistemológicos e psicológicos. Sua obra, contudo, nunca foi associada

ao tema da afetividade. Embora não tenha escrito sobre os afetos de forma

ostensiva não significa que o assunto não tenha tido uma dimensão importante para

Pensar Agir

Sentir

Entorno

10. Dialógica: pensar - sentir - agir - entorno

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o aprendizado no pensar de Piaget. É o que diz Maria Thereza Souza em seu artigo

O desenvolvimento afetivo segundo Piaget em que busca demonstrar o rompimento da

dicotomia inteligência/afetividade na Teoria Piagetiana.

Segundo ela o psicólogo suíço apresenta o desenvolvimento de forma una

em suas dimensões afetivas e cognitivas. A autora se ampara em um curso

ministrado por Piaget na Sorbonne nos anos de 1953-54 que trata das Relações

entre afetividade e inteligência no desenvolvimento mental da criança. Neste curso

Piaget demonstra o desenvolvimento genético da afetividade em paralelo com os

estágios do desenvolvimento da inteligência. O “curso da Sorbonne”, como ficou

conhecida as aulas de Piaget sobre o tema.

A autora esclarece que o autor de Genebra não restringe a afetividade às

emoções e sentimentos, mas inclui as tendências e a vontade. Quando fala do papel

da afetividade e da inteligência na conduta humana Piaget refere a sua ideia de

adaptação em seus componentes de assimilação e acomodação em que o desequilíbrio

se traduz em função da consciência de uma necessidade, isto é, de uma impressão

afetiva particular. A conduta finda quando a necessidade é satisfeita e há um

retorno ao equilíbrio, sentido como um sentimento de satisfação.

De acordo com a autora quando Piaget defende uma correspondência entre

o desenvolvimento afetivo e cognitivo, ele busca elementos centrais relacionados à

afetividade que equivalem aos elementos centrais do desenvolvimento da

inteligência, tais como os esquemas e operações. Ela diz que Piaget utiliza a expressão

esquemas afetivos para designar a construção equivalente sobre a base de sentimentos iniciais da

criança, ligados à satisfação de suas necessidades. (SOUZA, 2003, p. 60). A autora

esclarece que Piaget usa o temo “vontade” ou “força de vontade” referindo o

campo afetivo em equivalência ao conceito de operações, do campo cognitivo. Ele

reveste o termo vontade com a mesma força reguladora descrita para construção do

pensamento lógico.

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Seguindo o pensar de Piaget a inteligência se desenvolve a partir da ação, da

interação do individuo e seu meio, surge, em função disso, os afetos perceptivos. São

os prazeres e às dores ligadas às percepções de agrado e desagrado do bebê. A

correspondência entre desenvolvimento afetivo e cognitivo é genérica, neste início

do desenvolvimento humano, com regulações elementares acompanhadas de

sentimentos de êxitos e fracassos. Quando o indivíduo atinge uma inteligência

verbal ou socializada, com a aquisição da representação por meio da linguagem, e

constrói os esquemas pré-operatórios e operatório da inteligência Piaget considera

as interações entre as pessoas, do ponto de vista afetivo. Às representações pré-

operatórias que caracterizam as ações destituídas ainda de reversibilidade,

corresponde aos afetos intuitivos, sentimentos sociais elementares e aos primeiros

sentimentos morais (amor, temor, respeito, obediência). Tais sentimentos estão

ligados ao que Piaget identifica como moral heterônoma, fruto de relações sociais

assimétricas da inteligência pré-lógica, e dos sentimentos relacionados à autoridade.

Em função da gênese do novo esquema da inteligência operatória concreta que

opera com as classes e relações, corresponde aos afetos normativos, (os

sentimentos morais autônomos, respeito mútuo e justiça), com a intervenção da

vontade que age como reguladora de forças.

Em função da capacidade de reversibilidade do pensamento surge a moral

autônoma, de acordo com Piaget, decorrente de relações sociais simétricas e dos

sentimentos ligados à reciprocidade que permite ao sujeito colocar-se no lugar do

outro, tornando possível a cooperação. A vontade é responsável por uma

hierarquização dos sentimentos e valores e corresponde, no plano afetivo, ao papel

das operações no plano cognitivo, porque regula as forças que estão em jogo nas

tomadas de decisões no estabelecimento de metas a serem atingidas etc.

Por fim, os esquemas formais das operações cognitivas com sua lógica

proposicional e o raciocínio hipotético dedutivo permitem ao sujeito tornar, como

conteúdo dos seus pensamentos, os seus próprios sentimentos, elevando-os a uma

categoria abstrata. As operações formais exigem instrumentos afetivos e cognitivos

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em que o sujeito é capaz de elaborar planos de reformas sociais políticas e

ideológicas articulados aos sentimentos que escolhem ideais como objetivos a

serem atingidos. Há um movimento que vai da adaptação da realidade ao “eu”, no

início da adolescência, para a adaptação do “eu” à realidade da vida adulta, que

permite ao jovem passar de reformador a realizador, diz Piaget.

Todo o desenvolvimento, de estágio a estágio, ocorre em função de uma

equilibração progressiva e possui um aspecto afetivo, energético, e cognitivo

estrutural, de forma a romper com a dicotomia afetividade e inteligência no

desenvolvimento humano. É o que conclui Piaget no seu “Curso da Sorbonne”.

Para Piaget não é possível explicar a inteligência pela afetividade nem o contrário,

mesmo que as teorias enfatizem a um ou outro aspecto, os dois, estão imbricados

na gênese do intelecto humano para o autor de Genebra.

Os Estudos que tratam da Teoria de Vygotsky são de autoria de Marta

Kohl de Oliveira e Teresa Rego. Elas buscam evidenciar a intricada relação

cognição e afeto na perspectiva sócio-cultural. Elas contextualizam o estudo

esclarecendo que as ideias do autor soviético, datadas do início do século passado,

se contrapunham ao cartesianismo em seu dualismo corpo-mente. Tal cisão

influenciou o nascimento da psicologia separando os estudos sobre o afeto e a

cognição tornando-os, equivocadamente, dimensões isoláveis do funcionamento

psicológico humano. O autor se opõe a uma tendência mecanicista da explicação

das emoções humanas e defende que o desenvolvimento da consciência, de um

modo geral, se conecta com a vida emocional em uma relação dialética.

De acordo com Oliveira e Rego para a psicologia histórico-cultural o

sujeito é produto do desenvolvimento de processos físicos e mentais, cognitivos e afetivos, internos

(constituídos na história anterior do sujeito) e externos (referentes às situações sociais de

desenvolvimento em que o sujeito está envolvido). (2003, p. 19). O autor aponta uma

diferença qualitativa entre as emoções humanas e animais, bem como, a que há nos

adultos e nas crianças, e distingue as emoções primitivas originais, tais como a

alegria, o medo, a raiva, das emoções superiores complexas: o despeito, a

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melancolia, postulando que as emoções primitivas se desenvolvem em emoções

superiores mais sofisticadas.

As emoções vão se afastando de sua origem primitiva e se constituindo

como fenômeno histórico cultural. Dessa forma, o entendimento segundo o qual as

emoções são consideradas inatas e, por isso, imutáveis, e assim, cabe, em relação a

elas o controle, foi substituído por outro entendimento. O papel da Razão em

Vygotsky não se reduz ao controle de impulsos emocionais ou se confunde com

um papel repressivo para anulação dos afetos. Em seu desenvolvimento a razão se

põe a serviço da vida afetiva na medida em que se transforma em um instrumento

de elaboração e refinamento dos sentimentos. De acordo com o autor soviético o

ser humano adulto tem a possibilidade de construir um universo emocional

complexo e sofisticado (em comparação com os animais e as crianças) se

distanciando da ideia de ausência, controle e/ou negação das emoções suprimidas

pela razão.

A vida afetiva tem uma gênese social mediada pelos significados do

contexto cultural em que o sujeito vive. Nós humanos aprendemos em função do

legado da cultura de nossos antepassados na interação com outros seres humanos

em seu agir, pensar e falar. Os modos de pensar e sentir são pertinentes a uma dada

cultura, e carregados de conceitos que os constitui como fenômenos históricos e

sociais. A afetividade humana é, portanto, construída culturalmente, os significados

que possibilitam um sujeito acessar emoções como ternura, inveja, ciúme adquirem

relevo na e em função da cultura em que vive, e na forma como interagimos e

falamos nesta cultura. Assim nomear as emoções nos permite identifica-las,

compreendê-las, torna-las consciente e compartilha-las com os outros.

Outra referência importante para psicologia cognitiva é Henri Wallon

(1879-1962). Segundo Izabel Galvão sua leitura psicogenética supera as visões que

compreendiam as emoções como acessório da ação humana ou elemento

perturbador delas. Wallon adota uma abordagem que busca compreender a

imbricação entre fatores de origem orgânica e social dos fatores ligados às emoções

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em suas relações de complementaridade e oposição com os campos do

desenvolvimento humano.

Wallon diferencia emoções das manifestações afetivas, cuja gênese está

ligada a representação simbólica, tais como, os sentimentos e as paixões. As

emoções são compreendidas pelo francês como atividades proprioplásticas que

precedem ao surgimento da representação e da consciência de si. Sua gênese está

nos primeiros contatos entre a mãe e o bebê, interação em função da qual

desenvolvemos aptidões de expressão voltadas incialmente para as pessoas e não

para as coisas. O bebê demonstra uma preferência pelas pessoas em detrimento de

objetos e dispõe de competências para interação, mediadas pela emoção que o

torna capaz de mobilizar pessoas no seu entorno numa espécie de contágio afetivo.

Há uma ênfase para autor relacionada ao caráter expressivo das emoções. Segundo

Galvão uma originalidade dessa abordagem é chamar atenção para o fato de que o gesto,

estabilizado em postura, em atitude corporal, desempenha outro papel que não de executar: ele

exprime as disposições afetivas do sujeito. (SOUZA, 2003, p. 75).

Em função do desenvolvimento psíquico as emoções se ampliam e se

complexificam. A preponderância de sua expressividade orgânica vai sendo

gradativamente substituída pelas imagens e impressões subjetivas, e o processo

ideativo possibilita ao indivíduo experimentar a emoção como um desdobramento

íntimo, por meio de imagens mentais. O pensamento e a linguagem aumentam as

possibilidades do indivíduo de ter o controle sobre suas próprias manifestações

emocionais balizadas pelos parâmetros culturais e singularizadas no jeito de ser

particular de cada um. Importante esclarecer que a progressiva cognitivização da

emoção não elimina seus componentes corporais. É uma atividade situada entre o

orgânico e o social, e se nutre permanentemente dos efeitos que causa no outro.

Em síntese, todos os estudos psicogenéticos convergem para ideia de há

uma relação estreita entre os afetividade e cognição. Piaget fala de uma enérgica que

define como vontade e não aborda a emoção em sua expressão orgânica, assim

como o faz Wallon. Vygotsky aborda o assunto e reconhece a implicação entre

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afeto e cognição e apresenta as emoções como elementos volitivos que adquirem

sofisticação e refinamento no desdobrar do desenvolvimento cognitivo, cuja gênese

das funções psicológicas superiores se estende de um estagio primitivo para

estágios superiores, mediados pelo simbólico da cultura.

Esta releitura das teorias psicogenéticas trazem valiosas contribuições sobre

a relação afeto e cognição, fazendo uma releitura da importância dos afetos na

psicogênese humana no sentido de rever a dualidade a qual estava circunscrita tal

relação. Atualmente a psicognética supera a visão da afetividade como algo passível

de macular a racionalidade, sempre sujeito ao controle em nome de racionalidade

pura. Por outro lado, os autores da psicogenética não diferenciam claramente

sentimento, emoção, afeto e vontade que, por vezes, são palavras usadas como

sinônimos. Cada autor apresenta sua teoria e seu modo de compreender, sendo o

consenso geral que a afetividade tem uma relação co-produtiva com a cognição

humana.

Considero importante a necessidade de assinalar com clareza sobre o que

conotamos quando nos referimos a determinadas coisas. Por vezes falamos de

afeto quando nos referimos a emoções, falamos de emoções quando na verdade

estamos dizendo de sentimentos, e falamos sobre o que nos afeta para referir-se a

reações, e por aí vai. Penso que é necessário precisar melhor tais conceitos para,

então, compreender, mais apuradamente, a afetividade imbricada no vínculo

humano. As pesquisas no campo da Neurologia trazem valiosas contribuições

nesse sentido da diferenciação dos conceitos.

Um ponto de vista da Neurologia.

A distinção entre emoções e sentimentos implica uma compreensão nova

sobre a afetividade humana que não a reduz a um conjunto de reações emocionais

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em relação ao entorno. O neurologista Antonio Dalmásio com seus estudos sobre a

consciência humana oferece valiosas contribuições para compreensão desse

fenômeno no sentido de distinguir sentimento e emoção. Em seu livro O Mistério da

Consciência. Do corpo e das emoções ao conhecimento de si, Dalmásio explica que, em uma

primeira vista, não há nada essencialmente humano nas emoções, uma vez que elas

são comuns a outros animais. Entretanto, é o modo como as emoções se vinculam

às ideias, aos valores e aos juízos complexos, que faz dela, a emoção humana, algo

especial. Com base em numerosas pesquisas empreendidas nocampo da neurologia

o autor distingue emoção e sentimento.

Segundo Dalmásio (2000) há um núcleo biológico comum que

fundamentam todos os fenômenos que costumamos rotular de emoções. Ele

classifica as emoções em primárias ou universais (alegria, tristeza, raiva, surpresa,

repugnância), secundárias ou sociais (embaraço, ciúme, culpa, orgulho) e emoções de

fundo (bem-estar, mal-estar, calma, tensão). Pois bem, há para todos esses

fenômenos um núcleo biológico comum que o autor descreve em cinco pontos

descritos, sinteticamente, a seguir:

1. As emoções formam conjunto complexo de reações químicas neurais

que formam um padrão. Todas elas têm um papel regulador que auxilia o

organismo a conservar a vida;

2. Embora o aprendizado cultural possa alterar sua expressão as emoções

são processos determinados biologicamente e dependem de mecanismos

cerebrais estabelecidos de modo inato provenientes de uma longa

história evolutiva;

3. Há mecanismos produtores de emoções que ocupam um grupo

razoavelmente restrito no cérebro que integram um conjunto de

estruturas que regulam e apresentam estados corporais;

4. Todos os mecanismos podem ser acionados de forma automática, sem

uma reflexão consciente, mesmo em face das variações individuais e do

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papel indutor da cultura, tais mecanismos não modificam a natureza

estereotipada e automática, nem a função reguladora das emoções;

5. Todas as emoções acontecem no corpo como um teatro (meio interno,

vísceras, vestibular e musculo-esquelético) e afetam o modo de operação

de inúmeros circuitos cerebrais que modificam a paisagem do corpo e do

cérebro.

Para Dalmásio as emoções são parte dos mecanismos bioreguladores com os quais

nascemos visando à sobrevivência. (DALMÁSIO, 2000, p. 77). Há um propósito

biológico para as emoções que não são dispensáveis, mas adaptações singulares que

integram os mecanismos com os quais os seres vivos garantem sua sobrevivência.

Como parte da regulação homeostática as emoções conservam a integridade dos

organismos, e sua perda pode significar a morte, ou seu prenúncio.

O neurologista justifica seu extenso estudo sobre emoções esclarecendo

que os organismos equipados para ter emoções garantem um impacto sobre a

mente no aqui e agora. E mais, em organismos equipados com consciência, isto é,

capazes de saber que sentem existem outro nível de regulação mais refinado. A

consciência é que permite que os sentimentos sejam por nós conhecidos

promovendo um impacto interno sobre a emoção permitindo que ela, a emoção,

permeie o pensamento. Segundo ele, a consciência torna possível que qualquer objeto seja

conhecido – o „objeto‟ emoção e qualquer outro objeto – e, com isso, aumenta a capacidade do

organismo para reagir de maneira adaptativa, atento às necessidades do organismo em questão. A

emoção está vinculada à sobrevivência de um organismo, e o mesmo se aplica à consciência.

(DALMÁSIO, 2000, p. 80).

Em outra publicação com o título Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência

dos sentimentos, Dalmásio (2009) nos oferece mais claramente a distinção entre

emoção e sentimentos quando afirma que são os sentimentos que abrem a porta

para o controle voluntário daquilo que, até então, era automático. Segundo ele há

um processo evolutivo que vai da produção de reações a objetos e circunstâncias

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que estruturam as emoções, até mecanismos que produzem complexos mapas

cerebrais que representam as reações e os seus resultados que estruturam os

sentimentos. Bom, e o que são os sentimentos?

Segundo Dalmásio o que justifica o uso do termo sentimento é a ideia de que

este se difere de qualquer tipo de pensamento, e tem a ver com uma representação

mental do corpo funcionando de uma certa maneira. Segundo sua compreensão os

sentimento emergem de variações homeostáticas que traduzem o estado da vida na

linguagem do espírito. Ele diz que sua proposta de definir os sentimentos é que as

diversas reações homeostáticas, das mais simples às mais complexas, são acompanhadas

necessariamente de estados do corpo que são bem distintos. (...) Um sentimento é uma percepção de

um certo estado do corpo, acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e pela

percepção de um certo modo de pensar (DALMÁSIO, 2009, p.93).

Segundo o autor a ideia tradicional que refere os sentimentos sem alusão

aos estados do corpo esvazia o conceito de emoção e de sentimento. Quando se

remove a essência corporal a noção de sentimento desaparece e não é possível, por

exemplo ,dizermos: “sinto-me feliz”. E mesmo que disséssemos penso-me feliz,

cabe perguntar por que razão os pensamentos são felizes. Ter a experiência de

sentimento para o neurologista, como o prazer, por exemplo, corresponde a ter

uma percepção do corpo em um certo estado. Isso requer a apresentação de mapas

sensitivos nos quais padrões neurais são executados, e em função dos mapas

imagens, são construídos. Trata-se de um complexo sistema em estreita cooperação

para fabricar o que chamamos, ao final, de sentimento.

O conteúdo essencial de um sentimento é sempre um estado corporal

mapeado em um sistema de regiões cerebrais em função do qual forma-se uma

imagem mental do corpo. Na sua essência, um sentimento é uma ideia, uma ideia do corpo,

uma ideia de um certo aspecto do corpo quando o organismo é levado a reagir a um certo objeto ou

situação. Um sentimento de emoção é uma ideia do corpo quando este é perturbado pelo processo

emocional, ou seja, quando um estímulo emocionalmente competente desencadeia uma emoção.

(DALMÁSIO, 2004, p. 93).

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A capacidade de sentir está estreitamente ligada a alguns fatores, destaca o

neurologista. Primeiro é preciso um corpo com capacidade de representar esse

corpo dentro de si mesmo, e um sistema nervoso que faça um mapeamento de suas

próprias estruturas transformando padrões neurais desses mapas em padrões

mentais, gerando imagens. E por fim, para haver um sentimento é necessário que

os conteúdos de tais sentimentos sejam conhecidos pelo organismo, ou seja, é

preciso a consciência do sentimento. Com isso, Damásio defende a hipótese que o

que sentimos se baseia, na sua essência, num padrão de atividade de regiões cerebrais

somatossensitivas. Se essas regiões somatossentitivas não estivessem disponíveis nada seríamos

capazes de sentir, exatamente no mesmo modo que não seríamos capazes de ver coisa nenhuma se

estivéssemos privados das regiões visuais do cérebro. (DALMÁSIO, 2004, p. 121).

Ocorre que tais regiões somatossensitivas podem produzir um mapa

preciso daquilo que de fato está acontecendo no corpo ou não. Em algumas

circunstâncias o mapa pode perder sua fidelidade. Isso acontece, esclarece o autor

português, em razão de uma modificação ocorrida nas atividades das regiões que

executam o mapeamento, ou nos sinais vindos do corpo. É quando o mapeamento

do corpo e o estado do corpo deixam de coincidir. Dalmásio argumenta que esta

não coincidência de forma alguma compromete sua hipótese. Ele explica que isso

ocorre porque os sentimentos não, necessariamente, se originam no estado real do

corpo, mas tem sua origem no estado real dos mapas cerebrais que são construídos

pelas regiões somatossensitivas a cada circunstância. Qualquer interferência no

mapeamento acaba por criar mapas “falsos”. E tais interferências sempre ocorrem

porque a única fonte de imagem consciente sobre o corpo é construída pelos

padrões de atividade das regiões somatossensitivas, esclarece Dalmásio.

Como um exemplo da criação de tais mapas falsos o neurologista apresenta

a nossa experiência de dor, circunstância em que o nosso cérebro é capaz de

eliminar com eficácia a transmissão de sinais cujo mapeamento levaria a uma

experiência de dor. Outro exemplo ao qual o autor discorre longamente está no

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sentimento de empatia, quando o cérebro simula certos estados emocionais do

corpo e a emoção de “simpatia” se transforma no sentimento de “empatia”.

Em síntese, as áreas somatossensitivas funcionam como uma espécie de

teatro em que as representações falsas e/ou verdadeiras do estado do nosso corpo

se apresentam. Os mapeamentos são transitórios e se modificam rapidamente em

função de influências mútuas e reverberativas da interação cérebro e corpo ocorrida

por ocasião circunstancial de um sentimento, em sua valência positiva ou negativa.

Por fim, Dalmásio junta o que separou, diz ele:

Uma das razões por que distingui emoção de sentimento tem a ver com uma estratégia de pesquisa. Para conseguir compreender a série completa de fenômenos afetivos é importante separar os seus componentes, estudar as suas operações, tentar compreender como esses componentes se articulam no tempo. Mas, uma vez conseguidos esses propósitos, ou pelo menos alguns deles, é também importante colocar tudo quanto separamos no seu próprio lugar para que possamos apreciar, mesmo que transitoriamente, o todo funcional que constituem. A apreciação do todo deve recordar Espinosa e a sua proposta de que corpo e mente são atributos da mesma substância. Separamo-los sob o microscópio da biologia porque queremos saber como é que essa substância única funciona, e como é que os atributos corpo e mente se constituem dentro dessa substancia. Depois de investigar a emoção e o sentimento de forma relativamente podemos, durante um pequeno intervalo, juntar os dois de novo, sob a forma de afetos. (DALMÁSIO, 2004, p. 144-145).

Após separar e explicar a natureza da emoção e o que a distingue do

sentimento com a ajuda de Dalmásio, retornamos para o fio que nos vincula todos,

a afetividade humana para juntar o que foi separado. Minha intensão em juntar

novamente é buscar compreender a afetividade em sua articulação com a

capacidade de vinculação humana.

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2.3.4. Níveis de vinculação afetiva

El genio de la especie no es la inteligencia sino la afectividad orientada hacia la tolerancia, la compasión, la amistad y el amor.

(Rolando Toro)

Trago agora para diálogo Rolando Toro Araneda, cientista e poeta

chileno que nos oferece importantes contribuições para compreensão da

afetividade humana. Toro apresenta a afetividade também ressaltando sua distinção

das emoções e sentimentos. Ele compreende a afetividade humana como um

estado evolutivo superior que, não necessariamente, está relacionado à sensibilidade

e a inteligência. Há pessoas inteligentes e sensíveis, diz o autor, capazes de

inconcebíveis níveis de violência.

Toro (1991) apresenta as emoções/sentimentos como componentes

qualitativos da afetividade. Ele aponta que há padrões básicos de respostas

emocionais tais como o medo, a tristeza, a alegria que se combinam e alcançam

graus variados de complexidade. Como exemplo, o autor refere música, poesia e

pintura como elementos capazes de suscitar emoções/sentimentos numa

complexidade e sutileza de grande intensidade. Uma canção ou um poema pode

nos fazer chorar. Um conto pode nos provocar pavor, sensações de mistério. Toro

analisa sensivelmente obras artísticas ligadas à música, poesia e as artes plásticas e

afirma que podemos ver em Leonardo da Vinci, Rembrandt, Goya não somente

como gênios da pintura, mas suas obras traduzem uma profunda penetração

psicológica no humano.

As emoções/sentimentos para Toro devem ser vistos em sua

multidimensionalidade complexa. O ódio pode ser relacionado ao desespero. A

surpresa pode ser combinada com o pânico; o desejo com a timidez; o amor com o

ódio, etc. Um sentimento de alegria pode ter matizes ou qualidades diferentes.

Temos a alegria eufórica que pode nos acometer numa festa; a alegria íntima, muito

diferente da primeira, pode nos arrancar lágrimas de felicidade; a alegria extática,

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suscitada por uma canção de Bach, que se diferencia da alegria que podemos sentir

frente à visão do oceano ao amanhecer.

Toro (1991) descreve uma riqueza do mundo dos sentimentos/emoções

que raramente são objetos de nossa reflexão. Para ele a psicologia tem uma visão

reduzida em relação ao tema. Entretanto, os grandes gênios literários, poetas e

pintores são quem melhor descrevem sobre essa dimensão humana. Ele cita um

poema de Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, para expressar a natureza

indiferenciada e primordial do amor:

Cuando amamos, nos asciende a los brazos una sabia inmemorial y remota... esto que nosotros amamos no es sólo uno, un ser que ha de venir, sino la innumerable fermentación; no una criatura individual, sino todos los antepasados que, como ruinas de montañas, reposan en el suelo profundo de nuestra existencia. (Rainer Maria Rilke, citado por Toro 1991).

Em consonância com os estudos etológicos Toro aponta uma gênese

biológica da afetividade relacionada aos instintos de solidariedade intraespécie,

impulsos gregários, tendências altruístas e rituais de vínculo. Os impulsos

biológicos de cooperação, integração e solidariedade culminam nos humanos com

sentimentos altruístas que constituem a gênese do amor. Porém, lembra que os

humanos, somos a única espécie animal que é capaz de se reunir para destruir sua

própria espécie.

Segundo define Toro (1991) a afetividade é um estado de afinidade

profunda entre os humanos capaz de originar sentimentos de amor, amizade,

maternidade, paternidade, companheirismo, e também, sentimentos opostos como

a ira, ódio, insegurança, inveja, ciúme, são parte do complexo fenômeno da

afetividade. É em função da afetividade que nos identificarmos com outras pessoas

e somos capazes de compreendê-las, amá-las, protegê-las, e também, rechaça-las,

agredi-las e odiá-las. Contudo, é o sentimento de amor à humanidade que se

relaciona a um processo evolutivo da espécie e se expressa em ações.

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Para Toro, a afetividade, em sua positividade, se desdobra em duas

dimensões. Uma primeira que ele chama de Amor Diferenciado, direcionado as

pessoas significativas e o Amor Indiferenciado, direcionado à própria espécie e dirigido

a toda humanidade. E, no geral, se estrutura em função de alguns componentes.

Um primeiro componente que ele se refere é a Identidade de cada indivíduo

que inclui as funções orgânicas, o humor endógeno, a percepção e o sentido ético.

O indivíduo cuja identidade está alterada não é capaz de identificar-se com o outro,

e expressa uma conduta defensiva, intolerante e destrutiva. O medo do diferente ou

da diversidade é produto da insegurança que desperta o estranho, que não são

vistos como semelhantes em função de uma alteração do vínculo do indivíduo

consigo próprio. Tais indivíduos têm dificuldades de acessar sentimentos de

altruísmo e empatia, e os únicos sentimentos de coesão são patológicos, formando

grupos racistas, mafiosos, sectários em função de alteração do vinculo consigo

próprio que distorce sua vinculação com os demais.

Há um segundo componente da afetividade expresso pelo que Toro chama

de nível de comunicação. Neste ponto ele chama a atenção para um nível de

comunicação sutil que é acompanhada de um tom de sinceridade na linguagem. A

linguagem expressa uma compreensão íntima de tácito acordo que fala direcionado

não ao intelecto, mas ao campo afetivo que elevam o significado de gestos e

palavras. A comunicação por meio da linguagem, esclarece o autor, tem um sentido

geralmente preciso, porém pode se revestir de novos significados de acordo com a

tonalidade da voz e o componente afetivo que carrega. Há formas de comunicação

que transmitem intensidade, calor, sensações sutis que revestem o significado da

linguagem em seu comunicado essencial.

Em relação a esse componente Toro chama a atenção ainda para a

patologia da linguagem gestual que se caracteriza por uma patologia expressiva de

gestos que dificultam a aproximação. O sorriso e o olhar são as chaves para o

vínculo entre os humanos e a comunicação tem matizes expressivos que revelam se

há ou não um nível de receptividade e afetividade global, cujo formato pode ser

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gestual, ou mesmo verbal. As emoções a cada instante atualizam padrões

expressivos que comunicam de forma sutil. Como exemplo comum há uma

patologia da convivência caracterizada por uma desqualificação do outro. É um

vício de comunicação que se reveste de uma crítica construtiva e é acompanhada de

uma gentil qualificação, que surge em frases do tipo: “você é um diamante bruto sem

lapidação” “És muito bonita, só falta emagrecer alguns quilos”. Toro nomeia essas

desqualificações de assassinato ontológico, um vício capaz de impedir uma

convivência feliz.

Toro identifica os Ecofatores, isto é, elementos do ambiente e também os

antecedentes biográficos como componentes estruturantes da afetividade e estão

relacionados ao entrelaçamento da história de vida individual do sujeito em seu

meio sociocultural. Em consonância com as ideias de Bowlby, ele afirma que as

experiências infantis são determinantes das tendências afetivas adultas de amor e

ódio. O chileno acrescenta que o contexto social - os ecofatores - pode desencadear

a agressividade nas massas humanas, uma vez que há uma agressividade latente que

pode ser expressa em resposta ao meio. Ele exemplifica tais momentos em

governos totalitários em que pessoas aparentemente afetivas são capazes de realizar

atos infames.

E por fim, a afetividade tem ainda um componente estruturante que Toro

denomina de nível de consciência. É o componente por meio do qual se expressa a

relação do indivíduo e seu entorno, vinculando-o à natureza de que é parte de

forma orgânica. O nível de vinculação com a natureza torna-o capaz de perceber

uma conexão profunda e sutil com todas as formas de vida e ampliar seu campo de

percepção da realidade e seu nível de consciência. Para o autor as pessoas cujo nível

de consciência é baixo, e não possui uma visão de totalidade, não percebem

conexões mais amplas de si com a natureza de que é parte são propensas a viver de

forma miserável girando em torno de conflitos miseráveis ligados ao ego.

Em síntese, para Toro, a afetividade humana em função desses

componentes desdobram-se três níveis de vinculação que expressa a complexidade

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da natureza afetiva humana. O primeiro nível é a vinculação consigo, que permite ao

indivíduo dar conta de si, do que sente e pensa em relação ao meio em que se

insere. A vinculação com outro que se expressa por meio da história de vida particular

de cada um, na forma de comunicação gestual e verbal que estabelece com o outro.

E o nível de vinculação com a natureza que o torna capaz de perceber as conexões sutis

que o vincula com a natureza de que é parte alargando seu nível consciência e

percepção da realidade.

Percebemos por seus desdobramentos que esses três níveis de vinculação se

entrelaçam de forma complexa, ou seja, há uma relação de co-produção recursiva

entre eles em função do qual a afetividade humana se expressa em amorosidade.

Quanto mais me vinculo com a natureza, mais sou capaz de vinculação comigo

mesmo e com o outro. Quando mais desenvolvo meu nível de vinculação comigo

mesmo, mais sou capaz de compreensão e empatia em relação ao outro e com a

natureza de que sou parte.

Penso que uma imagem nos ajuda a compreender a natureza imbricada

desses três níveis de vinculação. Cada alça representa um nível de vinculação do

qual se desdobra os demais e compõe a afetividade humana, como mostra a figura

abaixo:

10 – Dialógica dos Níveis de vinculação afetiva

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Toro defende que, a partir de um estado ampliado de consciência, em que

aprofundo esses três níveis de vinculação, é possível uma regulação das condutas

humanas no sentido de transcender a agressividade, que também é inerente a

condição humana. Sendo assim, é um fator determinante na evolução completa do

humano desde a vida intrauterina até a sua maturidade.

Toro (2012) complementa estas ideias em outra publicação La Inteligência

Afectiva. La unidad de la mente com el universo. Ele defende que a ética como fruto da

integração da consciência e da afetividade. Não refere uma ética normativa que se

baseia em normas de comportamento impostas do exterior que se alimentam da

alienação e da coesão. A consciência ética, para ele tem componentes afetivos

como a empatia, a ternura, a compaixão, a misericórdia e o sentido de justiça. Está

intimamente relacionada com a Estética em sentido de co-produção, sendo a

afetividade o fator comum entre ética e estética.

Toro (2012) chama atenção para o fato de que a afetividade e a inteligência

ao longo do tempo tem sido estudados separadamente. Porém, ele defende que só

há um tipo de inteligência, a afetiva, que não é nenhum tipo especial, mas se

expressa em múltiplas dimensões, cujas formas diferenciadas de expressão motora,

espacial, mecânica, semântica, social provêm de uma fonte comum: a afetividade.

Para compreendermos esse enlace é preciso examinar as relações entre a

percepção a motricidade, a memória, a aprendizagem, a elaboração simbólica e a

linguagem com sua estrutura afetiva. O autor apresenta vários estudos que

examinam o assunto e nos informa que a percepção se organiza não apenas em

função de uma estrutura sensorial neurológica, mas a partir de um núcleo afetivo.

Também a motricidade possui núcleos afetivos de fundo e fornece o impulso a

ação. Do mesmo modo, a memória, possui filtros seletivos e se reorganizam em

torno das experiências afetivas e não se reduzem a padrões mnêmicos de ordem

neurológica. Por fim, a aprendizagem não se desenvolve apenas em função de

padrões cognitivos, mas depende de motivações afetivas. A partir disso o autor

conclui que a Inteligência em suas formas abstrata, semântica, social, estética

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provém da afetividade. Existe uma inteligência afetiva responsável pela significação

existencial humana. Segundo ele La evolución del lenguaje en el niño es la creación

embriológica de una semántica amorosa primal. Aún en el orden y la regulación de los órganos se

encuentran como un holograma que tiene como centro la afetividad. (TORO, 2012, p. 82).

A percepção estética surge de uma integração entre a sensibilidade

cenestésica e a afetividade. O autor explica que no cérebro humano tais funções

possuem representações anatômicas separadas, porém se unem por circuitos de

retroalimentação córtico-diencefálicos. São funções que compartilham uma mesma

origem psicológica onde a ética é a forma inteligente e afetiva de agir consigo

próprio e com os outros, e a estética expressa uma participação na gênese da beleza

em ação. A ética e a estética para Toro (2012) são, portanto, formas de percepção

que induzem a evolução da vida até sua plenitude cujo fundo comum é a

afetividade que dimensiona a ação humana. Neste processo é a afetividade que está

na base estrutural da inteligência. De acordo com o autor:

La inteligencia tiene su base estructural en la afectividad. Todo el proceso de adaptación inteligente al medio ambiente y la construcción del mundo se organiza en torno a las experiencias primales de la relación afectiva. (…) La capacidad de aprendizaje, la memoria y la percepción están fuertemente condicionadas por la afectividad. (…) El estudio de la estructura afectiva constituye, a mi modo de ver, la más urgente y necesaria investigación actual, en nuestra sociedad cuya patología afectiva es ostensiva. El genio de la especie no es la inteligencia sino la afectividad orientada hacia la tolerancia, la compasión, la amistad y el amor. (TORO, 1991, p. 56).

Enfim, todas as emoções humanas são componentes qualitativos da

afetividade comunicada de forma sutil em termos verbais e gestuais. É por meio da

afetividade podemos nos vincular de forma saudável ao outro, ao mundo e nós

mesmos nos conectando ao significado essencial dos fatos, impregnando nossa

percepção de beleza, imaginação e compromisso.

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2.3.5. Afetividade - fio que tece vínculos Humanos.

O amor é a experiência fundamental de ligação dos seres humanos. (Edgar Morin)

Em função da complexidade do fenômeno me ocupei até aqui de entrelaçar

ideias oriundas de diversos campos de saber, sem escolher um ponto de vista ou

eleger um autor, mas incluir as contribuições de cada um para aprofundar a

compreensão do fenômeno para além do conhecimento tácito vivencial que temos

a respeito e, sobretudo, com o cuidado de não tomar as partes pelo todo, e me

perder do todo.

Reapresento a imagem-metáfora da estrela

para clarear esta tarefa que me propus. Cada ponta

da estrela, representada por um campo de saber,

trouxeram ricas contribuições que enriqueceram,

adensaram e ampliaram a compreensão do

fenômeno. O brilho que agora clareia a minha visão

resultou do entrelace dialógico entre diversas

teorias para recompor o fenômeno em uma perspectiva nova, delineando uma

compreensão conceitual do tema sem perder de vista o todo em função das partes.

Conforme propõe Morin (2003a), a capacidade de pensar complexo está

em articular saberes para propor nova compreensão o que implica compreender

como as partes se relacionam com o todo reconhecendo a unidade na diversidade e

vice-versa. Sintetizo doravante as diversas ideias que me ajudaram a compreender o

vínculo a partir desta interligação complexa.

O comportamento humano é um sistema hipercomplexo interligado de

forma co-produtiva ao ambiente. Há uma relação dialógica de oposição e

complementaridade entre os padrões de comportamento inatos em função dos

quais se constrói nossa capacidade inata para tecer vínculos com os semelhantes.

Em nossa natureza somos tão propensos à agressividade quanto à convivência

Biologia

Psicologia

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~ 216 ~

amorosa, em razão de que ambos os repertórios comportamentais foram

indispensáveis à sobrevivência da espécie. A tecedura de vínculos humanos em sua

filogênese é produto de um refinado sistema de comportamentos que se

complementam e se interligam adquirindo maior complexidade, sobretudo, com

nossa capacidade de representação simbólica.

A ontogênese repete a filogênese em termos hologramáticos. O vínculo

está na base do comportamento de ligação e se estende da figura de ligação (mãe ou

substituta) para família, congênere e espécie, proporcionando a identificação com o

grupo e fortalecendo laços que garantem a sobrevivência de todos. E no caso dos

humanos, não se restringe à infância e adolescência, mas se estende por todo ciclo

vital, do nascimento à morte. Estamos todos interligados em função de nossa

capacidade de vinculação natural de formar laços.

A afetividade é a unidade que consubstancia o vínculo, e se desdobra tanto

para criar e manter laços uns com os outros expressos pelo amor, amizade e

solidariedade, como também se desdobra em agressividade manifesta pelo ódio,

rechaço e hostilidade. Tais desdobramentos não são excludentes, ao contrário,

convivem em nós e formam uma complexa teia de emoções/sentimentos que

compõem o complexo fenômeno da afetividade humana. Podemos nos ligar ao

outro pelo amor e/ou pelo ódio, e entre um e outro, há uma miríade de variações

complexas em função das quais tecemos relações ao longo da vida que se renovam

e atualizam em função do contexto em que vivemos.

O pensar complexo nos convida a perceber a unidade em meio a

diversidade sem perder de vista a multiplicidade do uno. O vínculo tem na

afetividade sua unidade que se expressa de forma múltipla em sua diversidade

cultural. A natureza humana engloba e ultrapassa o biológico em direção ao

simbólico, inscrito na, e pela cultura. A afetividade humana possui uma modelagem

cultural assimilada em um complexo jogo de códigos sociais que organizam a vida

em sociedade e institucionaliza comportamentos. É na e pela sociedade que nos

(des)humanizamos.

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A afetividade é o fio que tece os vínculos humanos adquirindo um alto

refinamento a partir de processos conscientes que vão se desdobrando e se

complexificando. Em suma, há uma complexidade crescente que se desdobra dos

níveis básicos de regulação da vida. A relação do organismo com o meio vai se

sofisticando. De uma reação simples e estereotipada (irritabilidade) o organismo

adquire maior complexidade para captar as mínimas variações do meio,

aumentando sua capacidade de sobrevivência (sensibilidade), conferindo-lhe maior

amplitude relacional. Surgem as emoções como sensações variadas e o organismo

adquire capacidade de adquirir informações sobre seu próprio estado interno frente

ao que lhe chega por meio de modificações fisiológicas e motoras, que formam um

padrão mais complexo de reações do organismo visando a sua sobrevivência. Este

processo adquire maior complexidade com a representação simbólica tornando o

organismo capaz de representar o próprio corpo em seus estados internos,

interligando o sentir e o pensar em processos altamente refinados que torna o

organismo capaz de saber que sente em processos conscientes. O quadro abaixo

sintetiza esse processo:

AF

ET

VID

AD

E

CONSCIÊNCIA

Relacionada a processos altamente refinados com a capacidade de saber que sente Envolve o pensar como instrumento de elaboração e refinamento dos sentimentos

SENTIMENTOS

Estrutura híbrida e multifacetada. Refere uma representação mental do corpo funcionando de certa maneira. Difere que qualquer tipo de pensamento

EMOÇÕES

Padrão de Reações, Complexo e Estereotipado. Conjuntos complexos de reações químicas e neurais que assume um papel regulador no nosso organismo visando à sobrevivência.

REGULAÇÃO BÁSICA

DA VIDA

Padrão de Reações Simples Estereotipados

• Regulação metabólica

• Reflexos

Quadro 1 – Esquema representativo - Emoção/Sentimento/Consciência

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Afeto, afetividade, emoção e sentimento não se separam, mas se

distinguem. Os afetos relacionam-se com a nossa condição de ser afetado e se

ligam a respostas emocionais e fazem parte do mundo de reações, não tem

permanência. Os sentimentos são processos mais estáveis relacionados com nossa

refinada capacidade de decodificar o meio em relação a si mesmo. As emoções se

distinguem dos sentimentos e os dois tomam parte da afetividade, tanto em sua

positividade quanto em sua negatividade. Nomear emoções significa torna-las

conscientes e compreendê-las em termos de sentimentos na medida em que o

pensar atua no processo, esboçando uma complexa relação entre afetividade e

cognição. Este processo aumenta nossa capacidade de compreensão do outro e do

mundo, capacidade esta, estreitamente ligada à autocompreensão.

Saber o que sente e o porquê sente é fator humanizante. O alhear-se do

sentir é também um alhear-se do pensar, porque a consciência é que permite que

conheçamos os sentimentos em função dos impactos que nos causam as emoções.

Os sentimentos torna voluntário uma função automática reativa, e estão

relacionados com uma representação mental do corpo funcionando de certa

maneira, e engloba a consciência e o pensar, porque sentir é pensar-se.

Em suma, a afetividade humana em sua complexidade apresenta fatores

genéticos, fisiológicos, culturais e ambientais e se refere a um estado de vinculação

que perdura no tempo e pode ser compreendida por seu desdobrar-se em três

níveis: vinculação consigo, com o outro e com a natureza. Tais níveis tecem entre si

uma relação de co-produção recursiva que expressa o estado afetivo do sujeito em

sua relação entrelaçada em emocionar, sentir e pensar. Como humanos, estamos

todos, de antemão, interligados por vínculos que se qualificam em laços que nos

conectam uns aos outros como indivíduo/espécie/sociedade, como sintetiza a

figura abaixo:

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Como exigência do pensar complexo é preciso compreender o fenômeno

inserindo em seu contexto para perceber de que forma o contexto modifica ou

ajuda a explicar/compreender o fenômeno, operando com as inter-retro-ações

entre contexto e fenômeno. A tarefa agora consiste em contextualizar esta

compreensão sobre vínculo inserindo-a em um contexto geral da sociedade

contemporânea, e também, em um contexto específico: a Estratégia Saúde da

Família do SUS.

Sociedade 12 – Unidade trinitária Indivíduo/Espécie/Sociedade

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PARTE 3

Quando nas asas da imaginação

O meu pensamento voa

Há em mim Revelação.

Quando no compasso do desejo

O meu pensamento dança;

Há em mim, Epifania.

(Idalice)

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3.1. Vínculos Humanos no contexto da Atenção Primária à Saúde.

Cada homem carrega a forma inteira da condição humana. (Montaigne)

Recolocar o fenômeno em seu contexto certamente pode modificar ou

trazer novas explicações e compreensões. Inicialmente vou reinserir o fenômeno

no contexto geral da contemporaneidade, para depois situa-lo, mais

especificamente, no contexto da atenção primária em saúde do SUS. Isso é

relevante no meu entendimento porque, embora o que interessa para esta pesquisa

sejam as relações tecidas no contexto institucional da ESF como modelo de APS

do SUS, tais relações se desdobram a partir do contexto mais amplo da sociedade

contemporânea.

3.1.1.Vínculos Humanos na contemporaneidade.

Imagem 7- Portinari – Da série, Guerra e Paz

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Cândido Portinari em sua belíssima obra “Guerra e Paz” comove por sua

(des)humanidade. Esta pintura foi encomendada ao artista, por ocasião da

inauguração da nova sede da Organização das Nações Unidas, quando em 1950, o

secretário Geral da ONU solicitou aos países membros que doassem obras de arte

para a nova sede em Nova York. O Brasil designa Portinari que aceitou de pronto.

O artista não foi convidado para participar da cerimônia, por seu envolvimento

com o partido comunista, motivo que o impedia entrar nos EUA, mas declarou

sobre sua obra: Guerra e Paz representam sem dúvida o melhor trabalho que já fiz… Dedico-

os à humanidade…

Certamente a guerra e a paz em diversos graus são possibilidades de

convivência humana que marcam a humanidade não apenas no século XX, período

marcado por duas horripilantes guerras mundiais. Com efeito, períodos sangrentos

sempre marcaram a história humana de forma ininterrupta. A questão é que hoje,

com o avanço das tecnologias, somos capazes de autodestruição não só da espécie,

mas de todo o planeta. Frente a isso uma premente questão que emerge deste

cenário contemporâneo: quem somos nós?

Esta é uma pergunta de fundo inesgotável em termos de respostas e que

sempre se atualizará no tempo. Contudo, acredito eu, que as respostas devem

sempre encarar a complexidade que é o humano e compreender nossa natureza

desdobrando-se sempre em indivíduo/sociedade/espécie, constituindo a trindade

de que nos fala Morin para dizer do humano. Como vou me deter aqui sobre o

vínculo humano na contemporaneidade, e desejo agora acercar-me do contexto,

vou adentrar a trindade pela via da coletividade em termos de sociedade que

também nos define.

O sociólogo francês Alain Touraine nos traz um interessante ponto de vista

em duas publicações em que tece considerações interessantes sobre a noção de

sujeito no cenário da (pós)modernidade. No livro Crítica da Modernidade, publicado

em 1994 no Brasil, Touraine argumenta que o rompimento definitivo que separou a

Modernidade e a Pré-Modernidade foi uma ruptura da crença em um universo

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supra-ordenado racionalmente por uma vontade divina. O desencantamento do

mundo pós-moderno não é o resultado do triunfo da razão instrumental, e sim da

cisão operada entre o divino e a ordem natural.

Para o sociólogo a ideia clássica de Modernidade equiparada ao

racionalismo, que exclui toda singularidade, desejo e emoção, é incapaz de dar

conta do que hoje chamamos de Modernidade. Ele alerta para o perigo de

limitarmos a visão moderna a um modo particular de modernização inerente ao

capitalismo, que se expressa na extrema autonomia de mercado. Tampouco, é ela a

unidade do mundo revelada pela Ciência. A Modernidade não se completa no

racionalismo instrumental nem na diferenciação trazida pela burguesia – figura

central da Era Moderna – entre a Política, a Economia e a Religião.

A condição moderna, segundo o sociólogo, está na regulação das condutas

humanas pela consciência, seja ela em relação à ciência ou à economia. A

modernização não se completa sem a subjetivação, pois é esta é que possibilita a

criação de uma ética da convicção oposta à visão tradicional, presa à contemplação

e à busca por conformação à ordem sagrada.

A angústia pós-moderna é oriunda de um indivíduo entregue a si mesmo,

cuja tarefa é produzir-se sem qualquer referência transcendente, seja Deus, a Razão

ou a História. O resultado deste corte é o abandono do indivíduo, doravante

entregue a si mesmo, inaugurando-se um processo de subjetivação do qual emerge

o sujeito. O desejo de ser sujeito é, pois, a ordem mais premente da Modernidade.

Tal desejo não se coaduna a uma determinação externa a ele. Com efeito, o sujeito

está sempre na contramão da ordem social vigente e se define como vontade,

resistência, luta e busca de libertação.

Touraine (1999) complementa sua visão em outra publicação que tem uma

pergunta no título: Podemos viver juntos? Iguais e diferentes. Neste livro ressalta outra

perspectiva menos otimista que quebra o equilíbrio entre a racionalização e a

subjetivação. Segundo autocrítica do próprio autor ele afirma que mantém esta

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análise feita na Crítica da Modernidade, mas acrescenta que colocava o tema da

subjetivação no mesmo patamar da racionalização. Todavia, o sociólogo esclarece

que o conjunto que compôs a modernidade que forma o pensamento sociológico

clássico, qual seja, a racionalização, o individualismo moral e a comunidade dos cidadãos,

implodiu quando a sociedade de produção se transformou em sociedade de

mercado, e a identidade pessoal se fechou em identidade comunitária. Com isso a

noção de sujeito também se degrada e essa dupla degradação - a

desinstitucionalização e a dessocialização - é que faz emergir um sujeito situado no

universo da instrumentalidade e da identidade. O sociólogo não mais define sujeito

como uma das faces da modernidade, mas como única noção que permanece face a

degradação (pós)moderna. Como diz o próprio autor:

Não é mais o sujeito vencedor da Declaração dos direitos do homem que encontramos hoje em nosso universo estraçalhado por guerras civis, mas um sujeito que luta pela sobrevivência, única força de resistência diante da ruptura completa e definitiva entre o mundo dos mercados e o das comunidades. Força frágil, à mercê simultaneamente da cultura de massa e do autoritarismo comunitário e, no entanto, força a partir da qual, em toda parte, se vão esboçando tentativas de construção da vida pessoal e da vida social. (TOURAINE, 1999, p. 105).

Para o francês há muita continuidade entre as ideias de consciência moral,

que submete o indivíduo a deveres, e a consciência política, que provoca também

submissão a uma causa coletiva de natureza transcendente. Como escapar destas

forças que transformam o indivíduo ou em um consumidor, ou em um membro

fiel da comunidade? Para Touraine isto supõe a intervenção de uma ação coletiva, e

a emergência do sujeito não acontece fora da ação coletiva.

Neste ponto Touraine une a noção de sujeito e de movimento social, que

não existe sem a vontade de libertação do sujeito. Para o sociólogo o sujeito não se

constrói assumindo papéis sociais, na conquista de direitos e de participação, como

no modelo clássico, e sim, impondo à sociedade instrumentalizada, mercantil e técnica,

princípios de organização e limites em conformidade com o seu desejo de liberdade e sua vontade de

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criar formas de vida social favoráveis à afirmação de si mesmo e ao reconhecimento do outro como

sujeito. (TOURAINE, 1999, p.102).

É a complementaridade de três forças que constrói a identidade do sujeito,

conforme Touraine: o desejo pessoal de salvaguardar a unidade da personalidade, dividida

entre o mundo da instrumentalidade técnica e do comunitarismo; a luta coletiva e

pessoal em duplo combate, que se opõe à transformação da cultura em comunidade

e à mercantilização do trabalho; e o reconhecimento interpessoal e institucional do outro como

sujeito. Vê-se que o sujeito é definido mais negativamente, em função de uma recusa

de identificação do humano com seus papéis sociais.

Os principais atores políticos do futuro próximo, segundo Touraine, não

serão nem o cidadão, como o fora na primeira modernidade, nem o trabalhador da

sociedade industrial, mas indivíduos ou grupos animados por um desejo de ser

sujeito, traduzido por um desejo de vida e defesa de uma identidade pessoal

estilhaçada pelo vazio do apelo ao consumo e pela fidelidade comunitária. Esse

desejo de vida substitui a defesa da sociedade ideal pela defesa da vida pessoal não

reduzida ao consumismo tampouco ao comunitarismo.

Se o sujeito se define na e pela ação coletiva em busca de sua liberdade,

como se efetiva esta passagem? Segundo o sociólogo francês, a subjetivação se

constitui em força de transformação na medida em que rompe com os mecanismos

de reprodução cultural e controle social por um duplo combate do sujeito que luta

por sua liberdade. Para Touraine sem esse reconhecimento do outro como sujeito

não seria possível a passagem de sujeito a ator social, uma vez que sua liberdade só

adquire substância em função desse reconhecimento.

As relações sociais estabelecidas entre os sujeitos não são baseadas num

princípio de similaridade por uma pertença a uma mesma cultura, ou ainda, por

uma partilha de relações profissionais e econômicas, mas por uma vontade comum

deste duplo distanciamento e busca de constituição de si mesmo. São relações

estabelecidas entre sujeitos que empreendem esforços comuns para se constituírem

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como tais, com base na simpatia, na empatia e na amizade. São relações que,

sobretudo, exigem respeito e consideração do outro como igual a si-mesmo sem,

necessariamente, essa relação impor ou pressupor um conjunto que ambos

partilhem.

Essa necessidade de reconhecimento do outro como sujeito é presente

também na análise de Bauman (2003) em sua Modernidade Líquida em que também

nos fala sobre uma individualidade estilhaçada presa em um consumismo que se

expande e se diversifica e nos coloca, como humanos, invisíveis uns aos outros pela

desesperança de uma comunidade utópica. Tudo se liquefaz se não temos

visibilidade na legitimidade do nosso ser perante um outro que nos reconheça.

Vivemos um momento histórico em que mesmo no âmbito da sociologia

não é possível ignorar o sujeito que se desponta e emerge como questão. Gostaria

de focar um ponto central nas ideias sociológicas cujo discurso faz uma denúncia

geral de uma negação do sujeito como um sintoma de um mal estar geral da

modernidade em função do que o nega. Penso que este ponto precisa de foco no

sentido de aprofundar nossa compreensão neste sentido. Que sujeito é esse que

não está sendo reconhecido? Quem os nega? Do que se fala quando se aponta para

essa negação? Quem nega quem? E o quê, precisamente, se nega quando os sujeitos

são negados?

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Modernidade e Colonialidade

“... Os ventos do norte não movem moinhos...

Minha vida, meus mortos meus caminhos tortos. Meu Sangue Latino13...”

A construção da modernidade em

termos materiais e epistemológicos

envolveu diretamente o contato do

europeu com o povo americano. Seria

necessário dar um passo mais atrás nesta

análise. Estudiosos e pesquisadores da

América Latina, tais como Edgardo

Lander, Aníbal Quijano, Enrique

Dusseal, Catherine Wash, dentre outros,

integram um grupo que investigam

sobre o tema Modernidade/

Colonialidade.

Tais autores sustentam que a modernidade não teve início no século XVIII

e XIX, com a Revolução Industrial, e sim, com as grandes navegações e invasões

do continente americano nos séculos XV e XVI, quando se deu início o circuito

comercial do atlântico.

Dussel (2005) chama atenção para um deslizamento semântico do conceito

de “Europa”. Ele argumenta que historicamente a Europa é filha de fenícios e que

a Europa Moderna (direção do norte e oeste da Grécia) não é a Grécia originária.

Ele esclarece que há uma diacronia unilinear Grécia-Roma-Europa e que na

verdade se trata de um invento ideológico de fins do século XVIII romântico alemão; é então

uma manipulação conceitual posterior ao „modelo ariano‟, racista. (DUSSEL, 2005, p. 24).

13 Música: Sangue Latino, Composição de João Ricardo e Paulinho Mendonça, canta Ney Matogrosso.

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Dussel faz uma extensa apresentação da sequencia história do mundo

Grego à Europa Moderna fazendo uma demonstração da construção ideológica da

sequencia tradicionalmente aceita sem que ninguém pense que se trate de uma

“invenção” ideológica, que raptou a cultura grega como sendo exclusivamente

europeia e ocidental, e a apresenta como centro da história mundial. Segundo ele o

esquema abaixo é, na verdade, uma sequencia ideológica. A história fabrica,

também, um passado.

Para Dussel tal visão é duplamente falsa porque ainda não temos uma

história mundial e porque o próprio lugar geopolítico que ocupa impede de ser o

centro. Ele esclarece que o Mar Vermelho ou Antioquia, lugar de término do

comércio do Oriente, são o limite ocidental do mercado euro-afro-asiático, e que,

portanto, não ocupa o centro. O que temos é a Europa Latina do século XV, sitiada

pelo mundo mulçulmano, periférica e secundária no extremo oriental do continente euro-afro-

asiático. (DUSSEL, 2005, p. 26).

Dussel se opõe à interpretação hegemônica sobre a Europa Moderna e

afirma que há dois conceitos de Modernidade. Um, que equipara Modernidade e

Emancipação, um processo evolutivo amparado por um esforço racional que

proporciona a toda humanidade sair da imaturidade, processo esse ocorrido na

Europa do século XVIII. Trata-se de uma visão eurocêntrica, provinciana e

regional, cujos acontecimentos históricos essenciais que possibilitaram os processos

de subjetivação inerentes da modernidade foram a Reforma, o Iluminismo e a

Quadro do autor Fonte: DUSSEL, 2005, p.26.

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Revolução Francesa. De acordo com o autor o tempo e o espaço deste fenômeno são

descritos por Hegel e comentados por Habermas (...) e são unanimemente aceitos por toda a

tradição europeia atual. (DUSSEL, 2005, p. 27).

O autor define esta visão de eurocêntrica porque tem como ponto de

partida exclusivamente fenômenos intra-europeus e sua expansão posterior é

explicada somente em função da Europa. Tal análise de Dussel coaduna-se com a

ideia de Santos (2006) quando alerta que a compreensão do mundo em sua forma

de criar e legitimar o poder social relaciona-se com as concepções de tempo e

temporalidade esboçando uma Razão Indolente em sua expressão de metonímia, que

toma a parte pelo todo e reivindica-se como única forma de racionalidade.

Dussel propõe uma segunda visão de Modernidade partindo do fato que

empiricamente antes de 1492 nunca houve História Mundial. Esta seria uma data

de início do que ele chama de operação do “Sistema Mundo”. Conforme o autor,

antes desta data, os impérios ou sistemas culturais coexistiam entre si. Apenas com a expansão

portuguesa desde o século XV, que atinge o extremo oriente no século XVI, e com o

descobrimento da América Hispânica, todo o planeta se torna o „lugar‟ de „uma só‟ História

Mundial. (DUSSEL, 2005, p. 27). O autor considera que a centralidade da Europa

Latina na História Mundial como determinante central da Modernidade em torno

do qual a subjetividade que lhe é constituinte, a propriedade privada e a liberdade

contratual, puderam substantivar-se historicamente como efeito, e não ponto de

partida, ao longo de mais de século de Modernidade.

A Revolução Industrial do século XVIII e o Iluminismo caracterizam uma

segunda etapa da Modernidade para Dussel. A Inglaterra substitui a França como

potência hegemônica até 1945 e comanda a Europa Moderna e a História Mundial.

A Europa Moderna, centro da história mundial a partir das grandes navegações,

constitui todas as demais culturas como sua periferia. O autor apresenta uma noção

distinta de Modernidade que inclui Portugal e Espanha do século XVI amparada

em outra concepção de racionalidade que se opõe tanto a ideia dos que imaginam

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realizar a racionalidade moderna, quanto aos que a ela se opõem como pós-

modernos.

O eurocentrismo é, pois, uma confusão entre uma racionalidade abstrata e a

mundialidade concreta tornada hegemônica pela Europa. Ao ego cogito moderno se

antecede o ego conquiro (eu conquisto) prático luso-hispânico que impôs sua vontade

sobre os povos amerídios. A superioridade da Europa é fruto das riquezas

exploradas de suas conquistas, sobretudo, na América Latina. A modernidade para

Dussel é um mito justificado de uma práxis irracional de violência que ele descreve

sinteticamente em sete pontos, que sumarizo a seguir:

2. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica);

3. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como exigência moral.

4. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear e à europeia o que determina, novamente de modo inconsciente, „a falácia desenvolvimentista‟.);

5. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra justa colonial);

6. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etcetera);

7. Para o moderno o bárbaro tem uma culpa (Imaturidade culpável, verschuldeten, de Kant) (por opor-se ao processo civilizador) que permite à „Modernidade‟ apresentar-se não apenas como inocente mas como „emancipadora‟ dessa „culpa‟ de suas próprias vítimas;

8. Por último, e pelo caráter „civilizatório‟ da „Modernidade‟, interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da „modernização‟ dos outros povos „atrasados‟ (imaturos) (Para Kant, unmundig: imaturo, rude, não educado), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil, etcetera. (DUSSEL, 2005, p. 29).

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Aníbal Quijano (2005) também alerta que a modernidade é uma narrativa

europeia, cujo lado complementar é a colonialidade, sendo esta, reverso inevitável

daquela. A modernidade naturaliza a crença da pretensa superioridade do europeu

em relação ao americano não-civilizado, não-crente, povo sem alma, e constrói o

mito da modernidade, como assim o denomina Dussel. A colonialidade foi o sustento

que permitiu e desenvolveu a modernidade europeia, e como substrato da

modernidade, manteve-se oculta em seu discurso, que a apresentou como algo

acidental e não constitutivo do desenvolvimento ocidental.

Dentro desse discurso da modernidade/colonialidade (LANDER, 2005)

há uma diferença marcante entre colonialismo e colonialidade. O colonialismo

compreende os processos coloniais relacionados à ocupação e à anexação de

territórios por um poder externo como uma derivação da modernidade. Já a

colonialidade descreve a lógica da ocidentarização e a contínua sujeição do povo a

uma herança colonial. Trata-se da colonização de ideias que capturam mentes, o

imaginário e a cultura. O colonialismo é um discurso que produz a colonialidade

como uma consequência da modernidade e carrega o pressuposto de que o

colonialismo foi superado nas Américas no início do século XIX.

Um olhar mais profundo, porém, revela que a colonialidade é constitutiva

da modernidade e se estamos ainda na modernidade, seja pós ou tardia, a

colonialidade também, se faz presente e segue viva no sistema reprodutor de

desigualdades da atual estrutura hegemônica neoliberal moderna. A forma como

representamos o mundo não é aleatória e as divisões norte/sul, acima, abaixo tem

um significado ideológico, já que a terra é redonda.

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Se recolocamos o mundo em outra perspectiva de olhar diferente da que

estamos acostumados a ver e naturalizar, como aponta o ponto de vista da

personagem Mafalda14, algo acaba. O que certamente acaba é uma uniformidade de

ver e pensar. Catherine Walsh (2008) complementa essas ideias de

modernidade/colonialidade e tece considerações sobre o tema na perspectiva de

pensar seus significados em relação ao Estado e sua refundação e descolonização.

Ela apresenta quatro grandes áreas nas quais se expressam a colonialidade.

A primeira é a Colonialidade do Poder fundamentada nos estudos de Quijano

que refere um estabelecimento de uma classificação social baseada numa hierarquia

racial e sexual e uma formação de identidades sociais classificadas como superiores

e inferiores: brancos, mestiços, índios e negros. O uso do termo raça mantem, da

colônia aos dias atuais, uma escala de identidades sociais com o branco masculino

14 “Toda Mafalda”. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 385.

Imagem 9 - Tirinha da Mafalda

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superior aos negros e índios identificados como identidades inferiores homogêneas

e negativas. Tal hierarquia é responsável pela instalação de um padrão conflitivo de

poder na sociedade que serve aos interesses do poder de dominação em termos

sociais e de exploração do trabalho sob a égide do capital.

A raça se constitui como instrumento de dominação e controle que foi

imposto a toda população do planeta em função da dominação colonial da Europa

mantido e apoiado pelas elites nacionais. Wash esclarece ainda que atualmente o

discurso da mestiçagem é renovado com o hibridismo da globalização que sustenta

que a racialização, o racismo e a injustiça racial não existem, negando o uso passado

e presente da raça como um padrão de poder que perpetua a colonialidade.

A segunda área que destaca a autora é a Colonialidade do Saber. Trata do

posicionamento do conhecimento europeu como perspectiva única descartando

outras racionalidades epistêmicas e outros conhecimentos que não advenham de

homens brancos membros da cultura europeia. Essa dimensão se evidencia

claramente em duas áreas: na educação, onde do ensino fundamental ao superior, o

conhecimento científico europeu se evidencia como marco-científico-acadêmico-

intelectual; e no modelo eurocêntrico de Estado-Nação fundamentado em

conceitos impostos e de pouca ressonância em face da pluralidade dos povos

amerídios.

Para Wash a Colonialidade do Ser é uma terceira área de efetivação do

colonialismo exercida por meio da inferiorização, subalternização e desumanização,

corresponde ao que Frant Fannon (2005) chama de não-existência. Os mais

humanos são os que integram a racionalidade formal clássica da modernidade

europeia concebida a partir do indivíduo “civilizado”. É justo em função desta

racionalidade que o Estado Nacional se erige, e em seu processo histórico

apresenta os povos ameríndios como bárbaros e não civilizados e os povos das

comunidades negras como não-existentes, ou como extensão dos povos indígenas.

Tal desenho racializado se reflete nas proposições das políticas públicas

direcionadas para grupos étnicos e especiais ante a norma (normalidade) branco-

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mestiça. A categoria étnico coloca os brancos-mestiços em uma não etnicidade que,

por um lado, é vista como um direito de reparação das ações afirmativas que lutam

pela igualdade e pela inclusão de indivíduos e coletivos. Por outro lado, contudo,

ser reconhecido como seres étnicos e especiais é uma forma de perpetuar uma

colonialidade do ser caso não se aponte para mudanças de estruturas institucionais que

continuam mantendo e reproduzindo uma racionalidade moderna como norma

ontológica.

A última área referida por Walsh como sendo a de menos reflexão até o

momento é a Colonialidade da Mãe Natureza e da Vida. Esta encontra sua base na

divisão sociedade/natureza. Para os povos amerídios, sobretudo da América do

Sul, a Mãe-Natureza é a que estabelece a ordem e dá sentido para o universo e a

vida. Os mandatos de controle e exploração da Mãe-Natureza que funda a

modernidade e seu modo de produção nega esse modo de ser e de viver que

caracterizam os povos ancestrais, tanto das Américas como afrodescendentes. Tal

modo de ser hoje é ressaltado e supostamente valorizado por meio de políticas que

incentivam o etnoturismo e sua folclorização, que mais ressalta a diferença

hierarquizada entre o normal naturalizado da cultura branca-européia civilizada

moderna, que prima pelo bem estar individual neoliberal. Walsh nos diz que esta

matriz em seu conjunto tem estruturado e segue estruturando as sociedades da

América do Sul, diz ela:

Al crear un Estado y sociedad que parten de y dan razón a los grupos y a la cultura dominantes haciendo que lo «nacional» los represente, refleje y privilegie y no al conjunto de la población, se estructura la conflictividad y problemática persistentes y pervivientes de la colonialidad, algo que difícilmente cambia sin transformar de manera radical las mismas estructuras fundacionales y organizativas del Estado y sociedad nacionales (y por ende las condiciones de poder, saber, ser y de la vida misma). (WALSH, 2008, p. 139)

As ideias provenientes dos estudos e investigações da

modernidade/colonialidade me parecem fornecer preciosas pistas na busca do sujeito

negado que referi anteriormente. O colonialismo, outra face da modernidade, é

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talvez a faceta que reinvindica o reconhecimento do outro e faz emergir a condição

moderna que refere Touraine quando fala do sujeito em termos de ação coletiva

construída somente em função do reconhecimento do outro. Talvez seja o

colonialismo um dos anteparos que nos torna invisíveis uns aos outros na

Modernidade Líquida de que nos fala Zygmunt Balman. Uma modernidade que

emerge a partir de uma abertura para as singularidades e individualidades em

liberdade de ação paradoxalmente se funda na negação radical do outro, expressa

pelo colonialismo e cria um paradoxo que reivindica o reconhecimento do outro

como condição de humanidade na contemporaneidade.

A necessidade de reconhecimento do outro como condição básica da

legitimidade do sujeito como ação coletiva da modernidade, como nos falou

Touraine, não pode ser reduzida a uma abstração em que é a “sociedade” que nega

o sujeito, quando o reduz ao consumismo ou ao comunitarismo. É provável que

essa negação resulte sempre como algo externo a mim. Se separamos indivíduo e

sociedade corremos o risco desta última não passar de uma abstração que redime

e/ou obscurece as relações de exclusão e negação. Quem nega quem efetivamente

e, também, o que negamos nessa relação é algo que precisa de resposta na ação

concreta dos humanos no mundo. A complexidade humana se define de forma

trinitária indivíduo-sociedade-espécie de maneira que a espécie humana não o é fora da

sociedade e os indivíduos só constituem em suas singularidades na e pela sociedade.

A modernidade fundada na negação do outro por sua face de colonialismo

revela o paradoxo, que impõe como condição moderna a alteridade, na exigência de

reconhecimento do outro como legítimo outro. Esta negação são formas de

vinculação humana que se expressam nas relações sociais de exclusão, racismo,

preconceito, sexismo, seja de forma institucionalizada ou não, que legitimam e

reproduzem os valores sociais de um colonialismo oligárquico presente na

sociedade brasileira. A condição moderna cria (des)humanidades que,

paradoxalmente, pressiona por humanização na proposição de políticas sociais.

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Os valores que permeiam a construção do SUS expresso pela

universalidade equitativa em suas ações integrais de saúde, certamente implicam

relações sociais em que o reconhecimento do outro é condição. Quando Martins

(2013) sugere para o SUS a retomada de uma terceira lógica que também o

fundamenta e traz para pauta de diálogo os direitos tradicionais referentes a nossa

existência, tais como o direito de amar, viver, comer, na verdade, ele sugere

repensar e propor novas formas de apropriação coletiva dos bens vitais. O que aqui

se apresenta ao debate é o colonialismo, sobretudo, quando se refere a sua outra

face de descolonização, no caso, mais especificamente, a Descoloniação da Mãe

Natureza e da Vida, tal como alude Walsh.

Acredito que as políticas de humanização do SUS que trazem a pauta das

relações entre os profissionais de saúde e população se inserem no contexto da

modernidade, não podendo prescindir da (des)colonialização necessária das

relações sociais que marcam o modo de ser em nossas formas de vinculação uns

com os outros, como brasileiros.

Contemporaneamente, de um modo geral, vivemos em uma cultura

enferma, uma civilização adoecida, estruturada na negação do outro expressa em

vários desdobramentos do colonialismo, fruto da colonização que deu início a

sociedade globalizada. A nossa civilidade fundamenta-se em função de valores anti-

vida que nos adoece a todos. Sobre isso Toro nos alerta que Actualmente el vínculo

humano es egocéntrico, se caracteriza por la explotación y el asesinato. (…) Nuestra época se

caracteriza por la disociación del hombre con la naturaleza. Hay en la civilización actual un bajo

nivel de conciencia y una absoluta falta de reverencia por la vida. (TORO, 2014, p. 114).

Neste cenário da modernidade/colonialidade Toro (2012) tem razão quando afirma

que a afetividade é uma das funções psicológicas mais perturbadas e reprimidas

dentro do mundo relacional, social, educacional e político na atualidade. Vivemos

um processo civilizatório enfermo baseado em valores antivida que se relaciona de

forma catastrófica por uma afetividade ausente de amorosidade e transbordante em

agressividade.

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Por outro lado, a convivência entre os humanos tem no amor sua base

social, mesmo a despeito da nossa propensão a altos níveis de violência, porque não

há aqui uma relação excludente, mas dialógica, distante de visões maniqueístas do

Bem ou Mal. O conceito de amor não se refere a algo transcendental ou metafísico,

mas diz respeito ao vínculo afetivo que une um ser humano ao outro e que resulta

da identificação com o grupo, tal como nos apresentou Eibl-Eibesfeldt. Nas

conclusões de seu livro amor e Ódio, o etólogo nos diz que a educação sem amor e a

hostilização tornam os homens duros e sepultam a sua tendência inata de amar o próximo. ...

quando começarmos a dar relevo aos aspectos vinculadores, então, poderemos estar seguros que

garantimos um futuro feliz aos nossos netos. As potencialidades do bem são biologicamente tão

nossas como as do auto-aniquilamento. (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p. 270).

A pintura de Portinari Guerra e Paz comove justamente pelo contraste. É

uma bela imagem que, sensivelmente, nos indaga sobre qual rumo devemos tomar

como civilização, e qual relevo imprimimos à nossa natureza humana de homo-

sapiens-demens em nosso processo civilizatório na atual era de sociedade global.

3.1.2. O circuito do vínculo na ESF do SUS.

De tanto sacrificar o essencial em favor do urgente, acabamos por esquecer a urgência do essencial.

(Edgar Morin)

Como vimos incialmente, tanto da PNAB como da PNH reconhecem a

necessidade de humanização em suas diretrizes políticas e objetivam, de um modo

geral, operacionalizar uma rede de relações em termos de trocas solidárias e

comprometidas com a saúde como um valor de uso, em que o vínculo com os

usuários se qualifiquem em função da adoção de atitudes ético-estético-políticas.

Estas diretrizes se desdobram do paradoxo da modernidade/colonialidade em que

a condição moderna cria (des)humanidades, e ao fazê-lo, pressiona por

humanização. As formas de vinculação humana baseada no racismo, preconceito,

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sexismo, presentes nas relações sociais de forma institucionalizada ou não, são

questionadas como modelo de relacionamento para a rede de serviços que integram

o SUS.

A PNAB apresenta o vínculo como uma necessidade para organização dos

serviços em função do qual condiciona suas práticas de saúde em razão do escopo

de suas ações, voltadas para a promoção de saúde e prevenção, que por sua vez,

impõem aos serviços, novas formas de relacionamento com a comunidade. A

organização da demanda acontece, não somente, em função do adoecer, mas deve

antecipar-se a episódios de saúde agudos e crônicos da população. Neste nível de

atenção é a saúde que vai ao sujeito, e com isso, torna o vínculo estratégia e

condição para o estabelecimento das formas de cuidado. E claro, tais vínculos entre

profissionais de saúde e população se delineiam desdobrando-se em função do

contexto mais amplo da modernidade/colonialidade.

Vamos tecer algumas considerações sobre o vínculo buscando inicialmente

problematizar seus desdobramentos na atenção primária à saúde a partir dos

operadores cognitivos, sistêmico e recursivo do pensamento complexo. É

importante buscar uma compreensão, tanto em termos da necessidade do serviço e

suas estratégias de vinculação para chegar à população, como também, das formas a

partir das quais a população se vincula e demanda esses serviços, compreendendo a

saúde como um direito e acesso a serviços de qualidade e humanizado. É

necessário levar em conta quem precisa de quem, isto é, de que forma o serviço

precisa e busca construir vínculo, e de que forma a população busca, ou não, se

vincular a eles e/ou aos profissionais de saúde.

Vou me deter, mais apuradamente, sobre os desdobramentos do vínculo na

ESF do SUS articulando-o às necessidades de saúde tendo em vista que isto inclui,

dentre outros aspectos, as estratégias de vinculação dos serviços com a população.

Apresento a seguir visões de alguns autores sobre o assunto, para em seguida,

apresentar uma visão sistêmica sobre a questão, a partir dos operadores do pensar

complexo.

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~ 239 ~

Vínculo: necessidade ou vontade?

Para Shraiber e Mendes-Gonçalves (1996) as necessidades de saúde

relacionadas ao serviço tem haver com a assistência que, por sua vez, é o que

caracteriza a demanda e/ou o consumo, quando se trata de um serviço. Para os

autores, a origem de tudo seria um carecimento, algo que precisa ser corrigido no

estado sóciovital da pessoa que procura o serviço, que se sente doente ou em

sofrimento. Como é próprio da organização do serviço antevê soluções para tais

carecimentos, a demanda é “tratada”, e até certo ponto, satisfeita, tornando a

intervenção reconhecida, e também, entendida como necessidade. O resultado é

uma intervenção sempre reiterada.

Os autores apresentam um modo de operar o conceito de necessidade de

saúde a partir de um contexto instaurador e recriador de necessidades. Segundo

esclarecem, haveria aí um aspecto circular porque carecimentos são criados e

recriados na vida em sociedade. E o problema surge ao se desconsiderar as

desigualdades das necessidades sociais com a criação de demandas voltadas apenas

para um segmento da população. Isso resulta em uma demanda silenciada, e

também na inoperância do sistema como um todo em razão da coisificação das

necessidades, quadro agravado pela burocratização das práticas. Tal modo de

funcionamento tenderá sempre para uma reprodução acrítica dos „cardápios‟ das

necessidades e da definição de suas „respostas‟. (SHRAIBER E MENDES-GONÇALVES,

1996, p.33), arrematam os autores.

Nesta perspectiva de visão dualista o pensamento esbarra em um circuito

estéril, incapaz de rupturas, tanto em termos de intervenção técnica quanto em

termos ético-políticos, no que diz respeito à produção dos serviços. A meu ver as

necessidades de saúde colocadas nesta perspectiva tem um problema de partida que

reside justamente em focar a doença e atrelá-la, tão somente, à assistência.

Concordo com Shraiber e Mendes-Gonçalves quando afirmam que: Dos anos de sua

proposição original até hoje, a atenção primária vem progressivamente se tornando um complexo

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assistencial que envolve difíceis definições de tecnologia apropriada. (SHRAIBER E

MENDES-GONÇALVES 1996, p. 43). Entretanto, percebo o nó górdio da

dificuldade em operar em função de um pensamento dual e que opera somente em

função da doença, que acaba por desembocar em um círculo vicioso em que não há

saídas.

Outros autores abordam o tema das necessidades em saúde ao referir a

construção social da demanda na atenção básica. Souza e Botazzo (2013) afirmam

que a ESF produz um ordenamento das práticas de saúde quando cria programas e

procedimentos. Embora isso defina suas ações também as limita, porque o

resultado é uma dificuldade de ofertar respostas adequadas às necessidades de

saúde das pessoas em função da fragmentação da oferta de ações e serviços,

desembocando em uma descontinuidade da atenção. O usuário fica impedido de

transitar na rede de atenção, ou sem saber qual direção tomar, e/ou ainda, sem

saber se sua necessidade será ou não sanada.

Os autores concluem afirmando que para se fiar numa aposta que

qualifique o cuidado centrado nas reais necessidades dos que procuram pelo serviço

e supere a produção centrada em procedimentos numéricos é preciso um modo de

produzir saúde construído de forma conjunta, tanto dentro da instituição, como no

território em que se insere. Os autores, no entanto, não apontam como fazer isso.

Em suma, a análise do conceito de necessidade de saúde, em sua

operacionalidade, geralmente, se atém a um consumo massificado que reiteram

demandas, voltadas para um perfil epidemiológico distanciado das reais

necessidades do território.

Tal perspectiva de análise se agrava ainda mais com a ideia de produção

imaginária da demanda apresentada por Franco e Merhy (2005). Os autores

comentam esse assunto esclarecendo três aspectos. O primeiro que afirma ser a

demanda construída a partir da oferta, já que não se demanda um serviço que não

se oferta; o segundo, que reconhece que a demanda relativa a um dado serviço é

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construída em face da não realização de certas necessidades por outros serviços; e o

terceiro que constata que a necessidade de saúde é fruto de uma associação feita

pelo usuário entre a solução de seus problemas e certos produtos realizados pelos

serviços, o que resulta em um fetiche, ao se atribuir a um procedimento o poder de

satisfazer uma necessidade, colocando no procedimento, toda expectativa de ser

cuidado e protegido.

A produção imaginária da demanda é fruto da construção histórica dos

modelos técnico-assistenciais que associam, equivocadamente,

procedimento/tecnologia com a qualidade do cuidado. Tal associação faz aumentar

a demanda por exames, que cotidianamente são solicitados, embora, muitas vezes,

as pessoas não os realizem e/ou não se interessem pelos resultados. Há aqui

novamente um círculo vicioso que induz uma demanda por

procedimentos/tecnologias, ao invés de cuidados. Todavia a pergunta que fica é:

onde estaria a válvula de escape que permite sair do círculo vicioso no caso da

produção imaginária da demanda? De que forma romper isso?

Franco e Merhy defendem que para esse rompimento é preciso que se

instalem novos padrões de produção do cuidado capazes de desconstruir o

imaginário da demanda por procedimentos. A saída proposta pelos autores passa

por uma ressignificação da relação entre os usuários e os profissionais de saúde,

uma aposta em um novo modo de agir por parte dos profissionais que se ancore

em novos significados do cuidado, e assim, se transmita para os usuários, de

maneira tal que resulte em um empoderamento destes. Em última instancia

poderíamos dizer que o escape, no caso, estaria n a relação entre profissionais e

usuários no âmbito da ESF.

Segundo esclarecem os autores tal mudança se dá por processos de

subjetivação capazes de fazer com que os usuários se sintam em condições de se

cuidarem, aumentando sua autonomia diante dos serviços. O pressuposto que

impulsionaria tal mudança está, segundo Franco e Merhy, na força do desejo,

quando afirmam:

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Um pressuposto para a mudança é tornar trabalhadores e usuários sujeitos do processo, isto é, capazes de um certo protagonismo que muda o sentido do trabalho e produção da saúde. O “desejo” tem sido apontado por Deleuze e Guattari como essa energia capaz de mobilizar os sujeitos em processos de construção do novo radical, isto é, mudanças sociais que apontem para um devir que signifique uma outra estrutura de funcionamento das instituições. (...) Os processos de mudança necessariamente devem reconhecer que está na fonte do desejo a energia motora capaz de produzir o instituinte, enunciar e construir o novo, resignificar o modo de fazer o cuidado. A mudança radical do modo de produzir saúde como tem sido sugerido aqui será um processo construído por sujeitos-desejantes-revolucionários, e o desafio é tornar os trabalhadores e usuários portadores desse sentido nas suas vidas. (FRANCO; MERHY, 2005, p. 16).

A meu ver há alguns pontos problemáticos nesta solução. O primeiro

ponto nodal é apostar que a mudança depende ou se inicia apenas a partir de um

polo da relação. Pensar em uma ressignificação implica raciocinar em mão dupla,

requer mudanças não no polo A ou B, mas no que está entre A e B. O segundo,

decorrente do primeiro, é considerar que o empoderamento dos usuários se inicia

graças à ação dos profissionais de saúde e seus serviços. Há uma crença equivocada

que coloca a autonomia das pessoas em seu mover-se no mundo e no cuidado de si

como algo que depende e/ou se inicia por obra e graça do cuidado dos

profissionais de saúde.

Outro ponto problemático na solução apontada pelos autores é sua

proposição de colocar o desejo como força motriz para transformação dos modos

de produzir saúde e romper com a produção imaginária da demanda. Quando se

fala de produção imaginária da demanda que associa qualidade do serviço à

procedimentos/tecnologias, como comentam os próprios autores, o que disso

resulta é que as pessoas atribuem ao procedimento/tecnologia o poder de sanar

suas necessidades. É onde o procedimento/tecnologia vira fetiche porque revestido

de um desejo. Isso ocorre como tudo o mais de produtos na sociedade baseada no

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consumo em que tudo vira mercadoria, e para isso se cria necessidades, imaginárias

ou não.

Bom, como defendem Deleuse e Guatarri o desejo só quer a si mesmo. E,

se a tarefa da Esquizonanálise consiste em subordinar o social à máquinas

desejantes, e se um esquizonalista não se interessa em como um mundo deveria ser,

mas convida a todos para sair da sujeição às normas em nome do que desejam, tal

não seria o que acontece com a produção imaginária da demanda? A associação do

procedimento/tecnologia com a qualidade torna-se fetiche em função do desejo.

De que forma o desejo que, no caso, pulsa no outro polo da relação, (nos usuários)

pode lidar com tal frustração, sem abrir mão do próprio desejo? Como fazer um

polo da relação, no caso os profissionais de saúde, gerar mudanças no desejo do

outro? No caso no desejo dos usuários, levando em conta o contexto moderno

neoliberal, em que se insere o SUS, permeado pela lógica do consumo, em que não

só a saúde vira mercadoria, mas tudo o mais que constitui o cuidado?

Ora, não seria justamente a força do desejo que poderia ter criado esta

produção imaginária da demanda, uma vez que o desejo não tem limites nem

objeto, para usar termos psicanalíticos? Será mesmo que o desejo teria essa força

frente à realidade que, mesmo que oferte os melhores procedimentos/tecnologias,

não resultará sempre em frustração? Até que ponto o desejo de um (no caso, dos

profissionais da saúde) modifica ou influencia na mudança do desejo do outro (no

caso, da população usuária)? A produção imaginária da demanda não resulta de um

desejo que se cria em função de uma “falsa” necessidade? Como tornar realidade

um desejo que, em realidade, não se satisfaz? Até que ponto a tecnologia ou o

procedimento substitui o cuidado humano? Até que ponto seria possível escapar

disso pela via do desejo?

Talvez uma resposta poderia ser a de mudar o objeto do desejo criando

uma nova associação entre qualidade do serviço com os cuidados ofertados. O

desejo, em termos psicanalíticos, embora não tenha objeto definido, mesmo que

temporariamente, encontra e se volta para um objeto que o satisfaça. Contudo, há

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um problema, um procedimento/tecnologia é algo bem mais fácil de transformar-

se em fetiche/desejo para satisfação de necessidades. Mas o que dizer quando

retiramos da relação o procedimento/tecnologia e deixamos somente a relação

revestida do cuidado? Algo se torna espinhoso quando o que resta para ser alvo do

desejo e satisfação de necessidades seja um outro, humano.

Em suma, o vínculo entre os profissionais de saúde e as pessoas que usam

os serviços se coloca entre o serviço e a população e se entrelaça como

desdobramento das necessidades de saúde como um nó górdio na ESF. As

categorias de análises das necessidades de saúde se enredam em um círculo vicioso

sem saída. O rompimento é uma aposta na força do desejo como força

revolucionária e foca somente um dos polos da relação. No caso, os profissionais

de saúde, que devem assumir como tarefa empreender a mudança a partir de novos

processos de subjetivação, o que acarreta pensar sobre a força do desejo enquanto

satisfação de necessidades, frente a frustrações que interpelam o próprio desejo.

Gostaria de analisar esta proposição relacional inicialmente com ajuda de

uma imagem gráfica que contém dois conjuntos: A (profissionais da ESF) e B

(população que utiliza os serviços do SUS). De acordo com a linha de pensar de

Franco e Merhy uma mudança poderia se operar de A para B, desde que, em A,

ocorra um rearranjo de seus componentes, isto é, um novo modo de agir da equipe

baseado em novos processos de subjetivação. Algo que pode ser representado pela

figura abaixo:

Novo modo de agir

Conjunto A Conjunto B

13. Serviços da ESF – Relação de conjunto

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A aposta dos autores é pensar que uma mudança poderia acontecer entre os

conjuntos A e B, ao mudar a inter-relação dos componentes do conjunto A, isto é,

os modos de agir dos profissionais. A mudança depende, então, de um movimento

de A para B. No entanto, em que medida o padrão expresso no modo de agir do

conjunto em B, também influencia o padrão do modo de agir do conjunto A? O

padrão de agir do conjunto B também não influenciaria de modo a conservar e/ou

mudar o padrão que caracteriza os modos de agir do conjunto A?

Considero importante problematizar a relação entre os conjuntos A e B,

uma vez que a mudança envolve os dois conjuntos, entretanto, a partir da ideia de

sistema. Penso que uma visão sistêmica nos ajuda a compreender um pouco mais

da relação entre A e B como partes de um todo, e não mais como conjuntos em

separado.

Vínculo como um fenômeno relacional sistêmico.

O vínculo como fenômeno relacional sistêmico e de natureza complexa se

situa entre, se entrelaça às necessidades de saúde e se desdobra na relação entre

profissionais e pessoas que usam os serviços de saúde. Vou retomar a visão

sistêmica sustentada por Morin (2003) quando a relaciona a ideia de organização

para, em seguida, retomar a questão.

O filósofo chama atenção para formulação do conceito de sistema como

algo complexo que vai além de um conjunto de partes. Morin chama atenção é que

não basta associar uma inter-relação e uma totalidade, é preciso ligar à inter-relação

pela ideia de organização, e conceber o sistema como unidade global, organizada de

inter-relações entre elementos, ações ou indivíduos. É uma noção que requer algo

mais do que ligar o caráter global e o aspecto relacional, mas é preciso ligar totalidade à

inter-relação pela ideia de organização. (...) Assim que adquirem um caráter regular ou estável, as

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inter-relações entre elementos, acontecimentos, ou indivíduos se tornam organizacionais e constituem

um trunfo. (MORIN, 2003, p. 132-133).

Morin esclarece que não há um princípio sistêmico que seja anterior, ou

mesmo exterior às interações entre os elementos. O que existe são condições físicas

de formação em que certos fenômenos, ao tomar forma de inter-relações, tornam-

se organizacionais. Para o autor o surgimento da inter-relação, da organização e do

sistema são três faces de um mesmo fenômeno. A organização é o encadeamento de

relações entre componentes ou indivíduos que produz uma unidade complexa ou sistema, dotada de

qualidades desconhecidas quanto aos componentes ou indivíduos. A organização liga de maneira

inter-relacional os elementos ou acontecimentos ou indivíduos diversos que desde então se tornam os

componentes do todo. (...) A organização, portanto: transforma, produz, religa e mantém.

(MORIN, 2003, p. 133).

O interessante aqui é a associação que Morin estabelece entre a ideia de

sistema e a de organização, em que a inter-relação liga os dois conceitos formando um

conceito trinitário de sistema. As inter-relações dos elementos, dos acontecimentos,

ou mesmo, entre os indivíduos, ao adquirirem um caráter regular ou estável,

tornam-se organizacionais, e então, produz um sistema. Em outras palavras, há

uma reciprocidade circular que liga os três aspectos: inter-relação, organização e sistema.

Morin continua esclarecendo que apesar de inseparáveis, os três termos

devem ser distinguíveis: A ideia de inter-relação remete aos tipos e formas de ligação entre

elementos ou indivíduos, entre esses elementos/indivíduos e o Todo. A ideia de sistema remete à

unidade complexa do todo inter-relacionado, às suas características e propriedades fenomenais. A

ideia de organização remete à disposição das partes dentro, em e por um Todo. (MORIN,

2003, p. 134, grifos meus).

Morin lembra que a natureza faz mais do que adições, ela integra. Ele

assinala que inter-relação, organização e sistema são termos indissolúveis e se

implicam, remetendo-se uns aos outros, sendo que a ausência de um mutila

gravemente o conceito. A problemática do sistema para Morin não pode, portanto,

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ser reduzida à relação todo/parte, mas deve ser mediada pelo termo interações.

Isso é importante uma vez que se considera que um organismo não é constituído

por suas células, e sim, pelas relações estabelecidas entre estas. Há um circuito

relacional não redutível à visão holística, e que vai além da ideia globalizante que

envolve o todo. Há um circuito polirrelacional que envolve os elementos e suas

inter-retro-relações em que a organização desempenha um papel nucleador,

esclarece Morin.

Com isso Morin chega a um paradoxo: o sistema é ao mesmo tempo mais,

menos, e também, diferente da soma das partes. As partes que compõem o sistema

podem ser menos e eventualmente, podem ser mais. Mas o importante aqui é ter

clareza que as partes em interação no sistema são diferentes do que são, ou seriam,

fora do sistema em questão. Essa formulação paradoxal torna o sistema irredutível

a quantificações. Só podemos compreender a ideia de sistema por uma descrição

qualitativa e, sobretudo, complexa.

O todo não é tudo, ele é menos e mais que o próprio todo e há nele

qualidades novas, as emergências que desabrocham como qualidades fenomenais dos

sistemas, que se perdem caso o sistema se dissocie. Morin chama de a face emersa do

sistema que é associativa, organizacional e funcional. Por outro lado, há também

imposições organizacionais que imergem no sistema. Há uma face sombria, imersa,

virtual, há antagonismo latente com potencial de desorganização e desintegração. É

o que Morin chama de princípio de antagonismo sistêmico: a unidade complexa do sistema

simultaneamente cria e rechaça o antagonismo. (MORIN, 2003, p. 152).

A noção complexa de sistema poderia colaborar para buscarmos uma

compreensão do fenômeno que envolve a relação entre os serviços de saúde e a

população, e toca a questão do vínculo. Isso exige uma nova perspectiva de visão a

partir de outros operadores cognitivos, em especial o princípio do circuito retroativo

que nos permite conhecer os processos auto-reguladores, bem como, a noção de

circuito recursivo que nos ajuda a compreender como produtos e efeitos são, ao

mesmo tempo, produto e causa daquilo que os produz.

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Conforme já esclareceu Morin, o ponto de vista da totalidade isolada é

limitado e mutilador. A ideia de totalidade se torna mais útil no policentrismo de

suas partes em autonomia relativa, do que no globalismo do todo. A partir disso

Morin apresenta a ideia de circuito como algo que instaura um jogo

retroativo/recursivo gerador de saber. Esta ideia supera o atomismo e o holismo

porque faz interagir de forma produtiva noções que seriam estéreis, se vistas

somente em seu antagonismo, ou em suas disjunções. O circuito nos afasta das

simplificações quando não o reduzimos a uma fórmula, mas o tomamos como um

convite a um pensamento generativo, como sugere Morin. Em suas palavras:

O circuito se gera ao mesmo tempo em que gera; ele é produtor-de-si ao mesmo tempo em que ele produz. Não é círculo vicioso porque ele busca seu alimento (informações) na observação dos fenômenos, ou seja, num ecossistema fenomenal (sua ecoteca) e que é animado pela atividade cognitiva do sujeito pensante (sua „genoteca‟). É um circuito aberto que se fecha, e assim pode se desenvolver em espiral, ou seja, reproduzir saber... Aquém do circuito, nada: não há essência, não há substancia, não há nem real: o real se produz através do circuito das interações que produzem a organização, através do circuito das relações entre o objeto e o sujeito. (MORIN, 2003, p. 461).

Uma compreensão/conceituação sobre o vínculo é indispensável para dizer

algo sobre o vínculo em qualquer contexto/sistema. Contudo, apenas abre

condições para isso. Para compreender o vínculo em um contexto específico,

necessário se faz buscar percebê-lo em suas interrelações singulares em função da

organização do ecosistema do qual é parte, uma vez que o real se produz por meio

das interações e interrelações entre os sujeitos que dela fazem parte.

Identificamos então um padrão de inter-retro-relação que liga dois

subsistemas. Temos assim um ecossistema formado por dois subsistemas que em

suas inter-retro-relações constituem outros circuitos no sistema, que os engloba.

Uma representação gráfica nos ajuda a compreender a ideia que apresento:

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Poderíamos identificar outros circuitos que se inter-relacionam interligando

os subsistemas população e profissionais de saúde e formando um ecossistema

maior, o nível de atenção primária do SUS. As necessidades de saúde formam um

circuito, mas dele se forma e deriva outros circuitos. Há uma inter-relação entre

eles e a existência de um, é gênese para outros, que se retroalimentam, conferindo

uma funcionalidade organizacional para o ecossistema.

Como ensina Morin, as partes em interação no sistema seriam diferentes do

que são, fora do sistema em questão. Em outras palavras, estas inter-retro-relações

que criam tais circuitos com este padrão de organização, assim se apresentam, se

consideramos o nível da atenção primária à saúde, uma vez que as necessidades de

saúde adquirem características específicas que a diferenciam, quando focamos

outros níveis de atenção relacionando ao SUS. A partir da visão sistêmica podemos

compreender o padrão de relação que conforma o ecossistema com visão mais

complexa que possibilita analisar as inter-retro-relações que compõem os

subsistemas em co-produção.

Ecosistema

ESF do SUS

Necessidades de Saúde

Serviços de Saúde

PROF ISSIONAIS DE SAÚDE POPULAÇÃO

Circuito 1

Circuito 2

14 – Circuitos do Ecosistema da ESF do SUS –Esquema I

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É a visão sistêmica é que integra os circuitos, e como vimos, as

necessidades de saúde formam um circuito que movimenta os serviços de saúde

funcionando de uma determinada maneira e gerando um padrão de organização

que, por sua vez, modela padrões de relação entre população e serviços. Todavia, é

preciso reconhecer que as necessidades de saúde é um dos circuitos que interligam

os sistemas, dentre outros. O vínculo entre profissionais e usuários dos serviços da

ESF forma outro circuito que também gera, influencia e é influenciado pelo padrão

de organização do ecossistema.

É com esta perspectiva de visão sistêmica compreendendo-o não como

totalidade, mas como palavra-raiz para complexidade que vou (re)inserir o vínculo

como mais um subsistema deste ecossistema em questão, lembrando que, como na

natureza não há adições, mas integração. Podemos visualizar agora alguns circuitos

que se retroalimentam configurando um padrão de organização para o ecossistema

em questão. Como mostra a figura a seguir:

Ecosistema

ESF do SUS

Serviços de Saúde

Necessidades de Saúde

Saúde

PROFISSIONAIS DE SAÚDE POPULAÇÃO

Circuito 1

Circuito 2

15 – Circuitos do Ecosistema da ESF do SUS – Esquema II

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Reiterando o que disse Morin sobre o sistema, não há um princípio

sistêmico anterior, ou mesmo exterior, às interações entre os elementos, e sim,

condições de formação em que certos fenômenos, ao tomar forma, tornam-se

organizacionais. Ou seja, são as inter-retro-relações dos elementos que, ao

adquirirem um caráter regular, tornam-se organizacionais, e então, produz um

(eco)sistema.

Tendo em conta o vínculo como um fenômeno complexo que se desdobra

do entremeio entre o serviço de saúde e a população é preciso, por fim, operar um

recorte no sistema, tal como sugere Morin. Referindo agora ao ecossistema é

possível operar este recorte, sem isolar o fenômeno, para assim, buscar

compreender o vínculo como um dos circuitos em suas inter-retro-relações com os

demais, como mostra a figura abaixo:

Por fim, após esse talhamento no sistema, a tarefa é compreender o

vínculo, o humano vínculo, em seus desdobramentos neste (eco)sistema, em

específico. A metáfora da estrela que alude a uma compreensão complexa do

Ecosistema

ESF do SUS

Necessidades de Saúde

Serviços de Saúde

PROFISSIONAIS DE SAÚDE POPULAÇÃO

Circuito 1

Circuito 2

16 – Circuito interrelacionado do vínculo na ESF do SUS – Esquema III

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vínculo humano, certamente, não diz respeito, de forma exclusiva, ao vínculo entre

os profissionais de saúde e as pessoas que usam seus serviços na ESF do SUS. É

uma compreensão elástica e com capacidade de abranger as relações humanas,

onde quer que haja humanos. Entretanto, certamente o ecossistema em que o

vínculo se torna questão, possui uma organização singular em seus circuitos inter-

relacionais que dão contornos singulares que caracterizam o fenômeno neste

contexto específico.

Algumas questões emergem em função desta visão sistêmica. O circuito do

vínculo se relaciona com os demais circuitos de maneira a conservar, transformar,

reiterar o modo de organização que compõe o sistema? Que padrão de

funcionamento organizacional confere o vínculo, ao ecosistema?

Bem, ninguém colocaria em questão que o vínculo entre os profissionais de

saúde e as pessoas que usam os serviços da ESF teria qualidades especiais que o

diferencie do vínculo, o humano vínculo. Contudo, quero aqui evidenciar uma

sutileza do fenômeno que investigo. Não é a qualidade ou a essência do vínculo que

muda ou não, mas o circuito gerador que o interrelaciona ao ecossistema,

instaurando um jogo retroativo/recursivo gerador de um saber, que só faz sentido

para o ecossistema em questão. É justamente esta reconfiguração que torna o

vínculo uma questão pertinente a este (eco)sistema. E são justamente as

interrelações novas que emergem a respeito do fenômeno, quando se desdobra

deste contexto específico, que interessa para esta pesquisa, e não o vínculo humano

em si.

A partir dessa visão sistêmica, conforme já assinalou Morin esclarecendo

que não há um princípio sistêmico que seja anterior, ou mesmo exterior às

interações entre seus elementos, e que são as interações entre os circuitos que

conformam suas interrelações e originam padrões organizacionais, podemos

aprofundar alguns pontos que tocam o cotidiano dos serviços de saúde na ESF.

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~ 253 ~

Assim, por exemplo, é comum pensar a organização dos serviços de saúde

como um ponto de origem que ignora o que antes já existia, seja quando a

comunidade não tinha o serviço e este está sendo implantado, seja quando chega

um novo programa, uma nova equipe, ou uma nova gestão em um Centro de Saúde

que já existia em algum território/comunidade. É comum pensar a organização do

sistema como um padrão ideal que deveria funcionar independente do contexto em

que se insere. E mesmo que esse padrão seja compreendido relacionando suas

partes entre si, o ponto de vista da totalidade isolada acaba sendo mutilador.

A visão complexa de sistema enraíza nosso olhar porque nos enraíza na

physis, como diz Morin, e nos ajuda a pensar a totalidade no policentrismo de suas

partes em autonomia relativa. Isso permite compreender o sistema sem reduzi-lo a

um esquema ideal, e tampouco toma-lo por um objeto real, sem a participação dos

sujeitos, nos afastando assim tanto das concepções idealistas como do realismo

ingênuo.

Isso nos permite pensar, por exemplo, que uma população que vive em um

determinado território/comunidade tem em seu percurso histórico, formas de

sanar suas necessidades de saúde que, comumente, são ignoradas ou negadas pelos

serviços que chegam. É o que comumente acontece quando um serviço de saúde é

implantado em um território. O que, na verdade, ocorre é que a partir daí um novo

sistema começa a se configurar, mas se configura a partir do que já existia, novos

circuitos se desdobram. Desta forma, um novo elemento qualquer, seja a chegada

de uma Unidade com oferta de serviços de saúde, seja a implantação de uma nova

gestão ou programa, seja a saída ou chegada de profissionais, seja uma reforma na

estrutura do prédio, seja uma grande mudança na comunidade, etc, tudo isso, passa

a integrar o sistema, e o modifica. E isso, tanto pode reiterar o que antes já existia,

como, também, pode operar mudanças no sistema, simultaneamente.

Em relação ao modo de inter-retro-relação entre profissionais de saúde e

população tem um percurso histórico singular que configura padrões de

organização de acordo com as políticas públicas de saúde em sua relação com a

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população e o território. Assim, por exemplo, se antes não havia um serviço de

atenção primária na comunidade e as pessoas costumavam se deslocar até um

hospital somente quando estavam doentes, isso configura um padrão de relação

que caracteriza um modo peculiar de inter-relação entre serviços de saúde e

população. Esse modo de relação não se reconfigura automaticamente com a

construção de um Centro de Saúde da Família, cujo modo de funcionar deve

efetivar ações peculiares e pertinentes a este nível de atenção à saúde. O que ocorre

é as pessoas procurarem os serviços do CSF da mesma forma, ou com a mesma

intenção que antes procuravam o hospital, ou seja, procuram, para sanar um

problema de saúde, buscar tratamento para alguma doença. Do mesmo modo, o

serviço de saúde de um CSF organiza-se, geralmente, com base no perfil

epidemiológico que homogeneíza territórios em função dos programas da PNAB e,

com isso, tem limitações para apreender as necessidades de saúde da população

adscrita de seu território.

Bem, os serviços de atenção primária incluem, não somente, o tratamento,

mas ações de promoção da saúde, de prevenção de doenças e reabilitação. É a

porta de entrada de um metassistema, no caso, o SUS. As práticas assistenciais e

preventivas que caracterizam os serviços de saúde se construíram historicamente

como um arranjo institucional dicotômico que separam as práticas assistenciais das

preventivas, não porque são dicotômicas em si. Tal arranjo assim se constrói em

função de um pensamento dual que, por natureza, dicotomiza. Ocorre que

assistência e prevenção não são práticas que guardam uma relação antagônica por

natureza, há uma dialogicidade neste antagonismo que precisa ser elucidada em

função de um conceito ampliado de saúde, e melhor compreendido em termos

históricos e a partir de uma visão sistêmica.

Os circuitos que compõem a inter-relação entre os subsistemas do

ecossistema em questão precisam ser reinventados, mas reinventados a partir do

que existe no contexto, e não partir de um dever ser que preconiza a PNAB,

embora possa incluir isso. É importante levar em conta, por exemplo, que o

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~ 255 ~

vínculo entre a população e os profissionais de saúde já existem como padrão em

termos sociais, simbólicos, culturais, econômicos, históricos, etc. As pessoas tem

uma ideia (imaginação/expectativa) construída acerca do serviço e do profissional,

embora nunca tenha utilizado o serviço de saúde. São estas ideias que moldam sua

forma de relacionar-se com o serviço de saúde e seus profissionais. Os

profissionais, por sua vez, também guardam uma ideia em sua imaginação e/ou

expectativa sobre as pessoas que procuram os serviços, que conformam um padrão

de relação que se relaciona com sua compreensão sobre o nível de atenção primária

para SUS, sua visão de mundo, sua cultura, etc.

É preciso superar o equívoco de pensar que o vínculo se inicia quando o

profissional chega ao serviço de saúde e devem assumir uma tarefa de construir um

vínculo. É preciso superar a pretensão de que tudo começa com a chegada dos

profissionais e das normatizações das políticas que norteiam os serviços de atenção

primária para o território, e que toda mudança depende dos profissionais de saúde.

Focando o vínculo, seria pretencioso conceber que é deste vínculo que se

origina ou deveria se construir a autonomia dos usuários e a responsabilização dos

profissionais. É preciso superar a ideia de considerar a autonomia das pessoas em

função da relação com os profissionais da saúde, como pressupõe,

equivocadamente, a relação proposta para vínculo e autonomia, tão referida na

literatura. A autonomia dos sujeitos é algo que se expressa na vida das pessoas em

seus ciclos de vida, bem como, em relação ao contexto em que se inserem. Tal

modo de vinculação reitera, ou não, esse fator. Não é algo que se inicia, está

presente ou ausente, a partir e em função somente da relação das pessoas com os

profissionais de saúde.

A visão sistêmica nos auxiliar a pensar nas articulações entre os diversos

circuitos que compõe o sistema em sua co-produção. Um exemplo para ajudar a

esclarecer esta questão é o sistema de referência e contrarreferência e os

encaminhamos feitos. A integralidade da atenção é na prática cotidiana,

equivocamente, e supostamente solucionada por meio de encaminhamentos, tanto

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para outros níveis de atenção, como também, para outras categorias profissionais,

dependendo da queixa. Digo equivocamente porque os profissionais, geralmente,

ao encaminhar, se desresponsabilizam do caso, e a contrarreferência é algo raro na

efetivação da rede que aponta a atenção primária como porta de entrada no

sistema. Bem, essa função de “encaminhador” gera ou faz surgir um complemento,

que podemos chamar de “peregrino sem rumo”, papel assumido pela pessoa que

demanda o serviço, configurando um padrão de relação que confere os contornos

da organização sistêmica. Isso ocorre porque, de um modo geral, as pessoas

desconhecem o SUS e não fazem ideia de seu funcionamento em rede em diversos

níveis de atenção e, portanto, não diferenciam as funções dos diferentes

profissionais dos serviços. Esse “não saber” da pessoa que demanda o serviço,

geralmente, não é considerado, e quando o é, grosso modo, é apreendido como

uma ignorância, “falta” tolerável ou não, a depender do profissional que atende.

A população em geral, e arriscaria incluir também os trabalhadores da

saúde, ignoram as proposições do SUS organizado em níveis de atenção, e julgam

como importante a disponibilidade de hospitais e procedimentos mediados por

tecnologias, porque esse foi padrão construído social e historicamente. O Centro de

Saúde da Família é geralmente visto e tratado pela população, e quiçá também pelos

trabalhadores da saúde, como um “mini-hospital”, isto é, um hospital que não dispõe

de muitos recursos, e que por isso encaminha.

Ocorre, por outro lado, que tanto há pessoas que chegam aos serviços de

saúde compreendendo-os como benesse ou favor que lhe fazem, e outras, que

chegam compreendendo-o como um privilégio que devem ter em detrimento de

outros, que também utilizam o serviço. E também, há profissionais que reiteram ou

não esse padrão de relação. Assim, é comum o assistencialismo e seus derivados

como o clientelismo, o privilégio, o nepotismo serem os elementos que configurem

o modo de relação Estado/Sociedade, que pode ser reiterado ou não no padrão de

relação que configura o vínculo das pessoas que utilizam os serviços de saúde, tanto

como trabalhador, quanto como usuário do sistema.

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Há aqui um modo de ressonância que cria uma espécie de eco

complementar de ações configurando padrões de inter-retro-relações que amoldam

a organização e o funcionamento dos serviços de saúde. No exemplo aqui temos

um padrão: encaminhador/peregrino-sem-rumo. Contudo, inúmeros outros padrões de

relações se configuram no sistema.

Outro padrão comum se configura a partir das pessoas que frequentam o

CSF quase todos os dias e, geralmente, são denominadas pelos profissionais de

poliqueixosos, porque na compreensão deles, tais queixas não tem fundamento em

alguma dor física, e é “somente” emocional e, portanto, são pessoas que só querem

atenção. Esse padrão resulta de um modo de inter-retro-relação em que o serviço é

organizado em função do procedimento queixa-conduta, sendo queixa válida,

somente aquela enquadrada ao modelo biomédico, em que as doenças decorrentes

do stress cotidiano são desvalorizadas e desconsideradas.

Estes padrões de relação são gerados e mantidos em função da organização

dos elementos que constitui o sistema. Trata-se de um circuito recursivo. Na

relação entre a população e os serviços de saúde há uma co-produção de

atitudes/condutas que se complementam e se reiteram em função do contexto em

que se inserem. Tais padrões sustentam a organização do sistema em função das

vantagens que trazem para seu funcionamento. Certamente há vantagens nos

privilégios, nas queixas nunca satisfeitas e nos diversos padrões de relações

estabelecidos que constitui a organização do sistema.

Certamente o cotidiano de um Centro de Saúde da Família amolda, cria e

reiteram processos de subjetivação cujo padrão de relação se desdobra em

conformidade com o contexto da modernidade/colonialidade. É um contexto em

que o assistencialismo e a cultura do privilégio convivem com a solidariedade e o

acesso a direitos. São esses processos subjetivos que configuram padrões de relação

que tecem os vínculos entre profissionais e pessoas que usam os serviços.

Certamente abrir mão de privilégios não é algo que facilmente se deseje, tampouco,

desistir de uma queixa, em função da qual, se obtém vantagens. A produção de

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novos modos de agir em saúde passa também por evidenciar o que não se deseja.

Passa pelo enfrentamento dos conflitos que permeiam naturalmente as relações

humanas e se enrijecem nos laços afetivos que a todos vinculam.

Acredito que um dos componentes da mudança seria investir em novos

padrões de relação que tenham como base novos valores, que nem sempre

coincidem com os desejos. Tais mudanças exigem coragem e esperança para lidar

com as incertezas e os desconfortos que causam. A criação de novos padrões de

relação que potencializem mudanças para efetivar práticas de saúde universais,

integrais e equânimes, é algo inédito, nunca vivenciado no padrão de relação no

cotidiano dos serviços de saúde. A questão é como tornar isso possível?

Uma questão pertinente quando refletimos sobre a humanização do padrão

de relações entre profissionais de saúde e população é como transformar um

sistema buscando torna-lo no que ainda não somos? Lembrando o que diz Morin,

o todo não é tudo porque há nele o que podemos chamar de emergências, qualidades

novas que surgem em função de novos padrões de organização, e também, podem

se perder, caso o sistema se dissocie. É preciso, então, estar atento ao potencial

latente do (eco)sistema que se releva em função do policentrismo de suas partes em

relativa autonomia. Há a face emersa do sistema que é associativa, organizacional e

funcional. Sempre vai haver algo de incerto e arbitrário na mudança que

configuram padrões de inter-retro-relações que conformam um (eco)sistema que

nos aponta para desconfortáveis incertezas. Contudo, a mudança não se instala sem

enfrentar as incertezas.

Em se tratando de processos subjetivos tal incerteza é inerente no processo

de gerar novos padrões a partir dos quais novas emergências (re)configurem a

organização do (eco)sistema e gerando novos padrões de relação que implicam

novos processos de subjetivação ainda não efetivados nos serviços. Contudo, em

função da plasticidade do que somos como espécie, é possível recriar padrões de

relação que renove o ambiente institucional, mesmo em face ao desconforto que

causa quaisquer processos de mudança, uma vez que, como humanidade, estamos

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sempre nos recriando como indivíduos e como coletividade. A questão se volta

então apara o como mexer no sistema de maneira a criar esses novos padrões!

Após reinserir o fenômeno vínculo no contexto geral da sociedade

contemporânea e problematiza-lo no contexto específico da ESF no sentido de

evidenciar suas inter-relações articulada aos diversos circuitos que interligam os

subsistemas que compõe esse ecosistema, cabe agora compreender esses padrões

enraizados em um contexto mais específico. Por esse caminho avançamos para

buscar compreender o vínculo em seus desdobramentos na Estratégia Saúde da

Família do SUS.

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3.2. Tauá – um lugar onde os vínculos me trouxeram.

Quem passa na minha terra bem ligeiro avistará Serrote Quinamuiú na cidade de Tauá beleza assim desse jeito em outro canto não há.

quem nasceu nessa terrinha conhece bem sua glória,

sabe de toda valia parte viva da memória patrimônio verdadeiro

e de Tauá grande história ... a essa imensa beleza

maravilha do sertão magnífica grandeza

Minha cidade é Tauá

Outra mais bela não há

Por esse imenso rincão

Digo sem tapeação

Para mostrar a verdade

...Chegar lá na Vera Cruz

No Distrito de Inhamuns

Encontrando ali alguns

Filhos de bastante luz

(Paulo de Tarso, poeta de Tauá)

Uma questão importante foi eleger Tauá como o lugar para propor esta

pesquisa. Após estudar a possibilidade de fazer o estudo na cidade de Fortaleza, a

vida mostrou outras possibilidades.

Imagem 10 – vista aérea do Serrote Quinamuiú, cidade de Tauá

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Aconteceu que em setembro de 2014 a Fiocruz do Ceará, juntamente com

a Universidade de Brasília, por meio do seu Observatório da Política de Saúde Integral das

Populações do campo, da Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas15, estava firmando

uma parceria com o município de Tauá para realizar pesquisas no âmbito da

atenção básica, e me convida para apresentar minha proposta. Eu já havia

compartilhado sobre o meu tema de investigação com Vanira Pessoa, pesquisadora

da Fiocruz e minha colega de doutorado, por isso, o convite.

O interesse da Fiocruz era colaborar, por meio de pesquisas participativas

com metodologias inovadoras, na produção de conhecimento para a atenção básica

em saúde no sentido de produzir novas práticas em saúde. Ocorre que eu já

conhecia a cidade e os gestores de saúde porque já tinha atuado na formação dos

agentes comunitários de saúde durante o período de 2004 a 2007. E como havia

um interesse de conhecer as pesquisas, tanto por parte da Fiocruz, como por parte

da Secretaria de Saúde do município, e eu já conhecia a cidade, aceitei o convite e

considerei a possibilidade de lá realizar o trabalho de campo.

Tauá foi apontado para realizar a pesquisa da UNB16 no Ceará por ser uma

cidade localizada na região dos Inhamuns e ser o segundo maior município em

extensão territorial do Estado, e também, apresentar uma população significativa na

zona rural. Estas características faziam de Tauá um cenário importante para o

desenvolvimento de pesquisas voltadas para a população do campo e das florestas.

Por outro lado, considero que foi em função dos vínculos que eu já tinha com

algumas pessoas em Tauá, que o cenário do município se descortinou para mim.

Achei auspicioso aceitar o convite para apresentar minha pesquisa no município e

estudar a possiblidade de fazer a pesquisa na cidade, uma vez que foram os vínculos

que já tinha com as pessoas de lá, que haviam me levado ao município, dez anos

depois.

15 www.saudecampofloresta.unb.br 16 A pesquisa da UNB acontecia em todo Território Nacional.

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Em 2014 a Fiocruz já havia realizado um total de 8 encontros para dialogar

sobre objetivos, perspectivas e metodologias para viabilizar as ideias que integrem

os interesses das diversas instituições envolvidas. Foi em um desses encontros, que

em setembro daquele ano, me somei à equipe aceitando o convite para apresentar a

pesquisa e estudar a possibilidade do município acolher a ideia, uma vez que meu

tema estava dentro do escopo da atenção primária à saúde do SUS.

No dia 10 de setembro, juntamente com pesquisadores da Fiocruz,

apresentei meu projeto de pesquisa para gestão de saúde do município. Estavam

presentes no encontro, além da equipe de pesquisadores, a secretária de saúde, a

Coordenação da Atenção Básica, Gerência de Educação Popular, Preceptoria da

Residência em Saúde da Família, as coordenações do Núcleo de Apoio à Saúde da

Família (NASF), da Residência em Saúde Mental, da Ouvidoria do SUS, do

Controle, Avaliação e Regulação, dentre outras. O encontro teve dois momentos, o

primeiro dedicado à apresentação da situação de saúde do Tauá, e o outro dedicado

às propostas das pesquisas.

Já se completara dez anos que havia trabalhado no município, muita coisa

havia mudado para melhor. Em relação à política de saúde percebi que Tauá possui

uma rede de serviços de saúde estruturada com 100% de cobertura em Saúde da

Família e oferece agora diversos serviços, tais como: Município Digital, Centro de

Atenção Psicossocial álcool e drogas, Casa de Parto, Policlínica, Centro de

Especialidades Odontológicas, Laboratório Central de Saúde Pública, Hospital. Em

relação a atenção básica em saúde também há os Núcleos de apoio à Saúde da

Família (NASF), e realiza investimento significativo em recursos financeiros para

capacitação de todos os profissionais envolvidos na atenção básica e provimentos

de insumos para qualidade da atenção. Destacam-se as seguintes iniciativas locais

de fortalecimento da atenção básica:

Realização do Curso de Planificação da Atenção Básica em parceria com o

Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), Conselho Estadual

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dos Secretários Municipais do Estado do Ceará (COSEMS/CE), Secretaria

Estadual de Saúde (SESA), Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE) e

Fiocruz Ceará;

Pesquisas locais avaliativas sobre atenção básica viabilizadas por meio do

curso de planificação em parceria com a UNIFOR;

Piloto do E-SUS em parceria com Ministério da Saúde;

Residência em Saúde da Família;

Residência em Saúde Mental;

Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde;

Proposta de criação de uma Escola de Saúde Pública;

Telessaúde.

Em termos de indicadores, desafios e perspectivas da gestão a equipe de

coordenadores da Vigilância em Saúde, da Atenção Básica, do Controle, Avaliação

e Regulação e de Infraestrutura e Desenvolvimento Institucional da Saúde e da

Educação Popular apresentaram, cada uma, dados e informações sobre a situação

de saúde geral procedendo-se uma breve reflexão sobre o quadro de saúde geral

com todos os participantes. Em seguida o pesquisador da UNB apresentou a

pesquisa sobre Avaliação da Política Nacional da Saúde do Campo e da Floresta e

Águas, e em seguida, a minha. Os gestores municipais demonstraram interesse no

desenvolvimento das pesquisas e como encaminhamento já sugeriram possíveis

locais que poderiam acolher as propostas.

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Após este encontro compartilhei com minha orientadora e decidimos que

Tauá seria o campo empírico para esta pesquisa. Apresentei o projeto ao Comitê de

Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Ceará, e após aprovação17, ,

iniciei o trabalho em campo no ano seguinte.

Em janeiro de 2015 fiz a primeira viagem a Tauá como pesquisadora e fui

visitar três Centros de Saúde da Família, os quais foram sugeridos pela gestão

durante o primeiro encontro em setembro de 2014. Eram eles: CSF de Bezerra e

Souza, CSF Alto Brilhante, ambos na sede, e o CSF Inhamuns, localizado no

distrito de Vera Cruz.

A receptividade em todos os CSF foi muito boa, sobretudo, por parte dos

agentes de saúde. Eu vivia alguns reencontros, pois já conhecia todos os agentes

comunitários de saúde de Tauá. Trabalhara na cidade de 2004 a 2007, época em que

o município era parceiro da Escola de Saúde Pública (ESP) e assumia a

responsabilidade de ser o piloto na formação técnica de seus ACS. Na época eu

trabalhava na equipe pedagógica da ESP e era responsável pela proposta

metodológica da formação técnica da categoria. A minha tarefa consistia em

elaborar a proposta e compartilhar os temas e a metodologia com os próprios ACS,

que eram parceiros na proposta. O contexto era do recente reconhecimento da

categoria como profissão, pela Lei 10.507/2002 e busca-se propor um curso para

17

O Projeto foi aprovação com o Parecer nº 4451831500005054

Imagem 11 - Equipe de Gestores da Secretaria de Saúde de Tauá e Equipe da Fiocruz

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profissionais com larga experiência em serviço, embora sem a formação oficial. A

intenção da ESP era oferecer uma proposta curricular pertinente ao contexto e as

necessidades de aprendizagem dos ACS do Ceará.

Em função desse contexto, visitar os CSF foi um reencontro com muitos

ACS, e quando apresentava o tema da pesquisa havia um reconhecimento de sua

importância e pertinência para a equipe do CSF.

Após visitar os três, escolhi o CSF de Inhamuns porque, dentre as

possibilidades de agenda, era o CSF em que poderia contar com a presença e

colaboração de toda equipe mínima: médico, enfermeira, dentista, agente de saúde

auxiliar de enfermagem, além de também estar disponível para integrar a pesquisa a

atendente de Farmácia, o profissional da recepção do CSF e o fisioterapeuta da

equipe do NASF.

Compartilhei a escolha com a secretária de Saúde do município e a

coordenação local da Atenção Básica18 que assinou um Termo de Anuência da

pesquisa (em anexo) e fizemos um cronograma para um trabalho conjunto com o

CSF de Vera Cruz para a pesquisa sobre O Vínculo na Atenção Básica do SUS (título

inicial da pesquisa).

Tauá é um município que avançou muito em termos de política de saúde.

apresento a seguir um pouco sobre Tauá, como um município que integra a Região

do Sertão dos Inhamuns, na divisa com o Piauí.

18

Na época a Secretária de Saúde de Tauá era a Dra Ademária Timóteo que autorizou a pesquisa assinando o Termo

de Anuência, e também o coordenador da Atenção Básica, Mário Paresque.

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3.2.1. Um pouco sobre Tauá: seu território, história e população.

Tauá é uma cidade que pertence ao

sertão dos Inhamuns, situada há 330km de

Fortaleza, no sudoeste do Ceará, vizinho ao

Piauí. A maior parte do território apresenta

ondulações pequenas. O serrote Quinamuiu se

eleva majestoso junto à cidade. As inclinações

das serras estão nas extremidades do

município, onde nascem os rios. A maior

altitude, 807m está a leste, no limite com o

município de Mombaça. As serras também

estabelecem os limites com Pedra Branca a nordeste, Independência ao norte,

Quiterianópolis ao noroeste, e Parambu ao oeste. No limite sul com Arneiroz, está

o ponto de menor altitude, 390m, onde o Jaguaribe penetra neste município.

Tauá é o segundo município mais extenso do Estado (superfície de

4.018km2) e sua pluviosidade média anual é de 597mm, com chuvas muito

irregulares. Em geral, as chuvas são poucas, suficientes para o crescimento das

pastagens bem adaptadas. A base de pedra, o cristalino, que está logo abaixo do

solo raso, dificulta a absorção da água para as camadas mais profundas, fazendo-a

escorrer rapidamente para os rios, que cessam de correr logo que as chuvas passam.

As grandes propriedades rurais, as sesmarias, doadas inicialmente aos

colonizadores pelo reino de Portugal no inicio do século XVIII, se dividem no

decorrer dos três séculos. Foi na primeira metade do século XVIII que a ocupação

dos Inhamuns se deu por conta dos criadores de gado que iam expulsando,

matando ou atraindo os índios para o trabalho nas fazendas. Por ser uma região de

clima semiárido e vegetação da caatinga com pastagens nativas a região atraiu a

Imagem 12- Mapa Ceará

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atenção de criadores, que se estendiam pelo nordeste para o abastecimento de

carne e peles para as populações da zona da mata açucareira.

Assim surge a cidade às margens dos rios Jucá, Trici, Puiu, Carrapateiras,

Favela e Umbuzeiro, cujas águas de todos desembocam no Juazeiro, que no

percurso de 600km até chegar ao mar, em Aracati, torna-se o maior rio do Ceará,

que corre poucos meses no ano. A produção de carne, leite e peles ainda forma a

base da economia rural: vacas, ovelhas e cabras, lembrando A Civilização do Couro.

A povoação que deu origem à Tauá nasce de modo mais plural, com a

presença de comércio, e se desenvolve quando diferentes famílias ocupavam as

sesmarias dos Inhamuns.

Em 1802 é elevada à condição de vila, com o nome de S. João do Príncipe

dos Inhamuns, ligada ao município de Quixeramobim, com o qual passou a ter

maior ligação, e daí à Fortaleza de N.S. Assunção, que se tornara Capital da nova

Província do Ceará, três anos antes.

Imagem 13. Pintura Vila São João do Príncipe dos Inhamuns

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Imagem 14- Coronel Lourenço Alves Feitosa e suas filhas Edwirges e

Maria de Lourdes

S. João do Príncipe dos Inhamuns tornou-se sede da Comarca de

Inhamuns em 1833, abrangendo Arneiroz e Maria Pereira (atual cidade de

Mombaça). Com a República em 1889, o nome Príncipe é retirado, e passa a ser S.

João dos Inhamuns; em 1892 é denominado Tauhá19. Em 1929 o município é

elevado a cidade.

A população rural continua dispersa nas fazendas. A cidade cresceu e já

concentra mais da metade da população do município. A vila de S. Teresa também

concentra a maior parcela da população daquele distrito. Nos demais distritos,

Trici, Marrecas, Marruás, Inhamuns, Carrapateiras e Barra Nova, as vilas têm pouca

expressão, com predominância da população rural.

Atualmente restam apenas duas famílias residindo na antiga cidade de

Cococi, que se encontra em ruinas. Foi o primeiro e principal núcleo da família

Feitosa, pioneira na colonização da região dos Inhamuns a partir de 1707.

Sua capela, construída em 1748 está conservada até hoje e ainda mantém viva a

tradição de celebração anual de N.S. da Conceição.

O historiador americano Billy Jaines Chandler

em uma publicação20 de 1980 intitulada “Os Feitosas e o

Sertão dos Inhamuns” descreve um período que vai da

chegada dos criadores de gado, em 1707, até o final

da Velha República em 1930. Ele nos conta que o

último Feitosa de grande poder foi o Coronel

Lourenço Alves Feitosa e Castro, nascido em Cococi

19 Dois livros podem ser destacados para os que se interessam pela história da região. Uma publicação com o título de “Retalhos do Passado” de Joaquim Pimenta, intelectual tauaense que se destacou nacionalmente, é um livro escrito em bem cuidada literatura, publicado em 1945, e reeditado pela Fundação Waldemar de Alcântara, de Fortaleza, traça um perfil da sociedade dos Inhamuns do início do século XX. O outro publicado em 1980 pelo historiador americano Billy Jaines Chandler, intitulado Os Feitosas e o Sertão dos Inhamuns, também encontrado nas bibliotecas e nos sebos, detalha os acontecimentos do período, com datas e nomes dos personagens que dominaram a região, especialmente dos Feitosas.

20 CHANDLER, Billy Jaines. Os Feitosas e o Sertão dos Inhamuns, 1980.

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em 1844, teve o seu poderio até 1912, ano em que se encerrou o mandato do

Presidente do Ceará Antonio Nogueira Acioli, seu aliado.

Com o declínio dos Feitosas, o Coronel Domingos Gomes de Freitas, do

distrito de Flores (Trici), assume um papel destacado em Tauá, e até o final da

República Velha, disputam a liderança. Os Feitosas concentram o seu poder em

Arneiroz e Cococi, e o Coronel Domingos firma então sua liderança no município

de Tauá. Em conclusão em seu livro ele descreve que

(...) Os Inhamuns formavam uma sociedade tradicional num sentido bem real, pois as relações humanas básicas que foram iniciadas no século XVIII subsistiram praticamente intactas até o século XX. (...) Muito pouco havia realmente mudado em qualquer parte dos Inhamuns, desde que Francisco e sua família haviam se estabelecido na região, principalmente no que dizia respeito à maioria dos habitantes. Os membros daquela imensa classe de moradores viviam suas vidas como o fizeram seus antepassados, havendo pouca diferença entre os padrões da década de 1720 e os da década de 1920.

A publicação de Joaquim Pimente descreve com elegância a vida da região

na primeira década do século XX, quando saiu da sua Tauá em viagem de três dias

a cavalo para tomar o trem em Senador Pompeu, com destino a Fortaleza, onde foi

estudar e trabalhar.

Tauá, quando, em 1909, o deixei pela última vez, era apenas uma larga e tortuosa rua, com algumas dezenas de casas em derredor, quase na encosta da serra de Quinamuiú, á margem esquerda do Trici. (...) o seu velho templo... corria a versão que teria sido obra do braço escravo (...) Cococi, em uma planura de onde se avistava ao longe, como uma cinta azul, a serra da Ibiapaba, era uma próspera fazenda de gado onde poderia se escrever uma interessante página de sociologia sertaneja. Ali dominava um núcleo da família Feitosa, de costumes patriarcais. Os antigos escravos, depois de alforriados, continuaram com os filhos, a servir aos mesmos senhores, sob o mesmo regime do tronco. Nada de código penal ou autoridade policial. A justiça e a polícia eram privativas do chefe daquele feudo minúsculo...

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~ 270 ~

Sobre a População

Segundo estimativas do IBGE para 2016 a população do município está em

57.914 pessoas, sendo que o saldo médio anual para a população, entre nascidos

vivos e óbitos é de, aproximadamente, 400 pessoas, a partir de 2010.

A Tabela 1 mostra a população de Tauá por faixa de idade e sexo.

Observamos um número maior de pessoas na faixa de 10 a 14 anos, menor na

faixa de 5 a 9 anos, e menor ainda nos menores de cinco anos. A redução da

natalidade acompanha o mesmo fenômeno do Ceará e de todo o Brasil. As

populações acima de 14 anos também apresentam números decrescentes, tanto pela

mortalidade das crianças nas décadas anteriores, como pela mortalidade de adultos

jovens, como pelas emigrações. Estas diminuíram muito a partir da década de 2000.

População de Tauá por Faixa de Idade e Sexo Censo de 2010

Imagem 16- Igreja Nossa Senhora do Rosário Atual

Imagem 15 - Igreja Nossa Senhora do Rosário Antiga

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Tabela 1

Idade (anos) Homens Mulheres Soma %

Menor que 1 383 352 735 1,32

1 a 4 1.697 1.574 3.271 5,87

5 a 9 2.460 2.476 4.896 8,79

10 a 14 2.970 2.863 5.833 10,47

15 a 19 2.674 2.696 5.370 9,64

20 a 24 2.329 2.431 4.760 8,54

25 a 29 2.016 2.097 4.113 7,38

30 a 34 1.881 2.073 3.954 7,10

35 a 39 1.697 1.763 3.460 6,21

40 a 44 1.668 1.808 3.476 6,24

45 a 49 1.574 1.580 3.154 5,66

50 a 54 1.272 1.446 2.718 4,88

55 a 59 1.020 1.242 2.262 4,06

60 a 64 1.039 1.129 2.168 3,89

65 a 69 868 884 1.752 3,14

70 a 74 689 776 1.465 2,63

75 a 79 437 519 956 1,72

80 a 84 369 356 725 1,30

85 a 89 283 197 410 0,74

90 a 94 68 96 164 0,29

95 a 99 27 35 62 0,11

100 ou mais 6 6 12 0,02

Total 27.357 28.359 55.716 100,00

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A Tabela 2 mostra a distribuição da população em áreas urbanas e rurais Os homens

são maioria na área rural, e as mulheres predominam nas urbanas e na soma do município.

Tabela 2

População de Tauá por Situação do Domicílio e Sexo Censo de 2010

Situação Homens Mulheres Soma

Urbana 15.251 17.008 32.259

Rural 12.106 11.351 23.457

Total 27.357 28.359 55.716

Fonte IBGE

Na Tabela 3 podemos observar a evolução da população do município a partir do

primeiro Censo Nacional de 1872. Entre este Censo e o de 1900, observamos uma grande

redução da população, provavelmente, em decorrência da grande seca de 1877 a 1879, de

1888 e 1889, e das secas que castigaram o nordeste brasileiro na década de 1890. Além da

grande mortalidade, a fome provocou uma corrente migratória para os Estados vizinhos do

Piauí e Maranhão, e para Fortaleza, muitos saindo daí para a Amazônia, que se desenvolvia

com o ciclo da borracha.

Muitos sertanejos regressaram com a volta das boas chuvas, e as grandes secas da

primeira década do século XX, e dos anos de 1915 e 1919, não impediram o repovoamento

dos Inhamuns. O Censo de 1960 mostra outra redução na população do município. Neste caso

foi a separação de dois dos seus distritos, que passaram a ser municípios isolados, Parambu e

Cococi. Este último foi incorporado posteriormente ao município de Parambu. Também no

Censo de 1960, o município de Arneiroz voltou a ter autonomia, após estar anexado a Tauá

por ocasião dos Censos de 1940 e 1950.

Tabela 3

Evolução da População do Município de Tauá. Censos de 1872 a 2010

1872 1900 1920 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010

15.976 2.604 13.756 29.088 43.511 33.920 44.855 46.670 51.339 51.948 55.716

Fonte IBGE

Censo de 1872

População livre 14.703

População escrava 1.273

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~ 273 ~

Fonte IBGE

Na Tabela 4 podemos comparar a evolução das populações urbana e rural e vemos

que a partir do Censo de 1940, o IBGE diferencia as duas populações, caracterizando como

urbanos, os moradores das vilas e da cidade. Com uma população predominantemente rural a

urbanização acelera na década de 1960, e no ano 2000, os habitantes da cidade e das vilas

ultrapassam os que habitam a área rural.

Tabela 4

Evolução da População do Município de Tauá pela Situação do Domicílio Censos de 1940 a 2010

Situação 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010

Urbana 3.189 5.099 5.957 11.264 14.461 22.619 26.721 32.259

Rural 25.899 38.412 27.963 33.591 32.209 28.720 25.227 23.457

Fonte IBGE

A Tabela 3 acima nos mostrou os escravos identificados no Censo de 1872, antes da

Lei Áurea. Nas tabelas seguintes, apresentamos a população em termos de distribuição da

população por raça e cor. Na Tabela 5 vemos a distribuição da população por cor ou raça,

sendo que o número de pardos mostra a grande miscigenação havida nos três séculos após a

chegada dos colonizadores quando os negros foram escravizados e trazidos para o Brasil.

Tabela 5

População de Tauá por Cor ou Raça - Censo de 2010

Idade Indígena Amarela Preta Parda Branca

0 a 4 2 38 176 1.874 1.916

5 a 9 - 53 254 2.432 2.157

10 a 14 5 68 331 3.121 2.308

15 a 19 2 71 363 2.783 2.151

20 a 24 1 66 314 2.345 2.034

25 a 29 2 49 294 1.999 1.769

30 a 34 2 49 245 1.950. 1.708

35 a 39 3 51 257 1.658 1.491

40 a 44 2 47 247 1.668. 1.512

45 a 49 3 29 236 1.493 1.393

50 a 54 1 41 175 1.314 1.187

55 a 59 3 28 153 1.073 1.005

60 a 64 - 31 145 1.015 977

65 a 69 - 23 108 808 813

70 a 74 1 22 103 632 707

75 a 79 - 14 73 364 505

80 a 89 - 12 74 425 624

90 a 99 - 2 11 101 112

100 ou mais - - - 7 5

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Total 27 694 3.559 27.062 24.374

As Tabelas 6 e 7 apresentam as taxas de alfabetização por cor ou raça das

pessoas. A população negra está menos alfabetizada. Na tabela 7 quando

observamos o percentual de alfabetizados por faixa de idade e sexo, identificamos

um grave problema com um número muito grande de analfabetos, mesmo entre os

adolescentes, jovens e adultos jovens, situação mais grave ainda para os homens.

Certamente, esse analfabetismo é um dos fatores para a baixa renda de grande parte

da população, como mostra a Tabela 8.

Tabela 6 População de Tauá Alfabetizada por Cor ou Raça

(em percentuais) Censo de 2010

Cor ou Raça Alfabetizada

Indígena 77,8

Amarela 67,4

Preta 61,5

Parda 65,7

Branca 72,2

Tabela 7 População de Tauá Alfabetizada por Faixa de Idade (em

percentuais) Censo de 2010

Idade Homens Mulheres Soma

10 a 14 88,5 95,6 92,0

15 a 19 92,0 96,9 94,5

20 a 24 86,9 95,8 91,4

25 a 29 81,5 91,7 86,7

30 a 34 69,2 87,1 78,6

35 a 39 64,8 83,2 74,1

40 a 44 61,5 81,1 71,7

45 a 49 60,0 77,2 68,6

50 a 54 54,2 71,0 63,1

55 a 59 46,3 62,6 55,3

60 a 64 43,7 57,2 50,7

65 a 69 39,3 50,3 44,9

70 a 74 40,9 47,6 44,4

75 a 79 38,9 44,1 41,7

80 a 89 37,1 41,4 39,2

90 a 99 27,4 26,7 27,0

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100 ou mais 16,7 50,0 33,3

Total 69,2 80,5 75,0

Tabela 8

População de Tauá de 10 ou Mais Anos por Classe de Rendimento em Salário Mínimo, Cor e Raça

Censo 2010

Renda

Cor ou Raça

Indígena Amarela Preta Parda Branca Total

Até 1/4 4 83 444 3.081 2.007 5.619

>1/4 a 1/2

3 69 392 2.549 1.796 4.809

>1/2 a 1 6 159 924 5.741 5.858 12.688

>1 a 2 5 41 155 1.175 1.625 3.001

>2 a 3 - 10 26 231 396 663

>3 a 5 1 6 9 149 317 482

>5 a 10 - - 8 66 223 297

>10 a 15 - - 1 14 28 43

>15 a 20 - - - 9 27 36

>20 a 30 - - 2 6 16 24

>30 - - - 6 11 17

Sem rendimento

6 235 1.168 9.729 7.997 19.135

3.2.2. A Travessia do Portal.

Considero que percorri um longo caminho até aqui. E percebo que ir a

Tauá, chegar à Vera Cruz e passar pela porta do Centro de Saúde da Família de

Inhamuns foi um momento vivido por mim como um adentrar um Portal. Embora

Imagem 17- Entrada da cidade de Tauá

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~ 276 ~

eu já tivesse entrado inúmeras vezes em diversos CSF do SUS, aquele momento, e

aquela situação, tinham para mim, características especiais.

Uso a expressão passar por um Portal para marcar a diferença de atravessar

uma porta. O sentido aqui se aproxima da semântica dessa palavra quando, por

exemplo, é utilizada no âmbito da informática, em que se usa a expressão portal da

internet, definindo-o como um lugar que funciona como centro aglomerador e

distribuidor de informações. Eu não estava simplesmente entrando pela porta de

um CSF, como assim o fiz outrora, tantas vezes. Mas era como se eu estivesse

adentrado um portal em que, possivelmente, encontraria um aglomerado de

informações em circuitos. Informações codificadas, concentradas e utilizadas pelas

diversas pessoas, trabalhadores, profissionais e usuários dos serviços que ali

circulavam diariamente, fazendo daquele espaço um lugar; o lugar de efetivação dos

serviços da Estratégia de Saúde da Família do SUS.

Outro uso para a palavra Portal cujo sentido traz similitudes para mim é sua

semântica no âmbito do misticismo/esoterismo. Adentramos portais em rituais de

iniciação quando se busca um desconhecido que está do outro lado. Esta tradução

também é pertinente aqui para expressar o uso do termo, porque realmente eu não

sabia se o circuito de informações que procurava ver, teria eu, realmente permissão

para desvelar, ou teria êxito em enxergar.

Eu precisava decodificar informações que tinham a ver com a relação entre

as pessoas. Não eram informações que envolviam apenas o fazer delas, mas sim, o

ser de cada uma delas. Esse processo, por sua natureza, precisava de permissão.

Falo de uma permissão para além da assinatura do Termo de Consentimento Livre

e Esclarecido - TCLE. Claro que esse momento não foi dispensado e a assinatura

do documento foi parte do procedimento da pesquisa. Eu sabia, contudo, que não

era a simples assinatura de cada um dos participantes que iria me permitir ver o que

buscava enxergar. Isso iria depender de se, e como, as pessoas iriam desvelar algo

para mim.

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~ 277 ~

Foi com o sentimento do mistério que adentrei a porta que, para mim, se

fez um Portal. O sentimento de mistério também me era presente porque, para

compreender como o circuito do vínculo ali pulsava e de que forma contribuía para

a organização do sistema, eu precisava me esvaziar, estar aberta para o encontro

humano com as pessoas. Ali estava para, por alguns momentos, fazer parte do

sistema, se fosse aceita. Ser ou não inclusa no sistema era o grande risco que corria.

Mas os vínculos que já tinha com os agentes comunitários de Saúde de Tauá me

acenavam positivamente em relação ao risco.

Considero que circular e conversar com as pessoas do CSF não,

necessariamente, significaria aceitação no sentido de ser merecedora de

compartilhar dos sentidos que faz aquela organização ser e funcionar da forma

como se apresenta. Reconheço que ser incluída como alguém com esse nível de

aceitação e compartilhamento era condição que me daria permissão para

decodificar informações sobre o vínculo, pertinentes àquele sistema. Não há para

mim algo mais pertinente para traduzir o momento em que cheguei ao CSF de Vera

Cruz como esse de me sentir na travessia de um Portal.

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Aprendemos com o fazer científico, que tudo ao nosso redor é objeto, e

assim, também, fazemos do outro, objeto. E é como objetos que olhamos para as

pessoas, e as observamos. Esse modo de estar no mundo já se naturalizou para nós

na vida cotidiana. É tão presente e óbvio dentro da Academia que, muitas vezes,

parece que não há outro modo de estar no mundo. Olhamos para tudo, das estrelas

ao nosso espelho, como objetos. Isso acaba reduzindo nossa compreensão do

mundo, reduzindo nossa compreensão do outro e, consequentemente, de nós

mesmos. Claro que observar o mundo, e ver os objetos que o compõem faz parte

da nossa maneira de interagir com o nosso entorno, e também de conhece-lo, mas

não se esgota aí as formas de conhecer para nós humanos.

Há uma revolução quando olhamos para o outro humano, como humano, e

vemos no outro, humanidade(s). Isso dificilmente acontece no olhar objetivo, e se

torna impossível se estamos somente neste nível de relacionar-se com o outro, e

com o mundo. Para enriquecer e ampliar nosso modo de perceber e estar no

Imagem 18 - Centro de Saúde da Família de Inhamus – Distrito de Vera Cruz

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mundo é preciso um olhar sensível, sensivelmente humano, sobretudo, para

perceber os laços que conformam vínculos.

Para minha pesquisa o olhar objetivo não seria muito útil, pois é justamente

o que tem de humano e de humanidade naquele lugar que gostaria de compreender

e decodificar. Era o modo como que ali se configuravam os circuitos do sistema,

sobretudo, o circuito do vínculo, que a mim interessava compreender. Mas não iria

nem poderia fazer isso sozinha. Então, a primeira tarefa foi propor a formação de

um Grupo Pesquisador.

3.2.3. O Vínculo pelo olhar do Centro de Saúde da Família de Inahmuns - o Grupo Pesquisador.

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito e o lance a outro; (...) e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos. (João Cabral de Melo Neto)

O passo seguinte foi convidar profissionais da equipe do CSF de Inhamuns

para, junto comigo, compor um Grupo Pesquisador. A respeito deste convite, tanto as

pessoas do CSF como os gestores e coordenadores da ESF comentaram que já

haviam passado alguns pesquisadores no município, que chegavam, faziam a

“coleta de dados” para suas pesquisas, e não mais voltavam para apresentar os

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resultados. Tendo em vista este cenário percebi que a proposta de formar um

grupo pesquisador foi bem acolhida por todos.

A visita seguinte que fiz ao CSF de Inhamuns teve como objetivo firmar o

compromisso do Grupo Pesquisador por meio da assinatura do TCLE21 e elaborar

um cronograma de encontros, que chamei de Oficinas, cujo material produzido

seria analisado pelo grupo. A seguir, a composição do Grupo pesquisador, com

total de 14 pessoas:

1 Pesquisadora UFC (Facilitadora); 1 Atendente/Recepcionista; 1 Preceptora de Território do CSF de Inhamuns; 6 Agentes Comunitários de Saúde; 1 Médico; 1 Enfermeira; 1 Dentista; 1 Fisioterapeuta; 1 Técnica de Enfermagem.

Durante este encontro também perguntei ao grupo: por que você aceitou

participar desta pesquisa? A intenção da pergunta era saber até que ponto as

pessoas tinham interesse em saber sobre o tema. Os profissionais expressaram que

reconhecem o vínculo como tema importante no trabalho do PSF e ressaltaram sua

relevâcia por ser um tema sobre o qual pouco se fala. Percebi que a motivação para

aceitar o convite, além da relevância do tema, foi também a possibilidade de

contribuir com uma pesquisa como participante. Havia uma curiosidade sobre a

metodologia utilizada.

(...) este tema é um dos princípios do SUS no dia-a-dia de trabalho da gente dentro do PSF é a relação de nós com os usuários do serviço. (Grupo Pesquisador - GP).

(...) e vínculo é de importância subjetiva que deveria ser mais, eu diria, escancarado, a gente fala pouco disso, como ele tanto pode aproximar como ele pode também pode distanciar, depende da forma como se trabalha. Então, isso daí foi o que me despertou. E também (...) sou altamente curiosa. (GP).

21 Em anexo o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido utilizado nesta pesquisa.

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Pra mim a metodologia foi o que mais me motivou. (GP).

(...) O que me despertou também foi exatamente a curiosidade pela metodologia... então, saber o que é. (GP).

As pessoas sempre esperam participar de alguma pesquisa de forma passiva,

e até brincam dizendo que são “cobaias”. Convidar o grupo para participar como

pesquisadores era algo bem diferente, e foi muito bem aceito pelas pessoas. Pelo

relatos, percebi a ressonância do tema para o grupo, e apesar de ter sido escolhido

por mim, era algo que as pessoas também reconheciam como importante para o

trabalho na ESF.

Acredito que o manejo de qualquer técnica em pesquisa qualitativa deve

buscar coerência com o solo epistemológico no qual se planta e alimenta a

produção do conhecimento. Na visão de Morin, a teoria é engrama, e o método, para ser

estabelecido precisa de estratégia, iniciativa, invenção e arte. (MORIN, 2001, p. 335). Foi

nesta perspectiva que, ao atravessar o Portal, busquei uma inspiração na

Sociopoética que reconhece a imaginação e a arte como aspectos relevantes na

produção do conhecimento.

Ao revisitar as leituras de Sociopoética encontrei Lia Carneiro Silveira,

pesquisadora sociopoética, que escreveu um artigo intitulado Abrindo Coisas e

Rachando Palavras: a utilização dos Dispositivos na Sociopoética. Ela defende que a escolha

e utilização dos dispositivos na sociopoética passa, antes de tudo, por sua própria

conceituação, e consequentemente, pela concepção de pesquisa que se propõe. É

preciso, diz ela, se ater a questão do que, precisamente, estamos chamando de

pesquisa e aceitar que certamente, não estamos nos referindo ao modo convencional de

investigação que pretende apreender uma realidade preexistente e generalizável. (...) Entendemos o

ato de pesquisar como uma expressão criadora, como uma ação produtora do real. (SILVEIRA,

2005, p. 152).

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Nesta perspectiva Silveira explica que antes de saber o que é um

dispositivo, seria mais importante perguntar: o que pode um dispositivo? Segundo ela

podemos conhecer um dispositivo muito mais por seus efeitos do que por sua

definição e o uso dos dispositivos em sociopoética tem relação com a própria

estruturação deste tipo de pesquisa. O que a autora apresentou de muito relevante

para mim foi o próprio Grupo Pesquisador como um dispositivo. Ela explica que a

abordagem grupal é apontada e utilizada por diversas correntes de pesquisa,

contudo, há para sociopoética, uma mudança significativa no conceito de grupo.

Silveira ressalta diversas correntes de pensamento que, apesar de

divergirem, guardam um ponto em comum. As concepções de Moreno, Kurt

Lewin, Bion e Pichon Rivière, para citar os grandes expoentes da abordagem

grupal, convergem na ideia de compreender o grupo como estrutura intermediária

entre o indivíduo e a sociedade, esclarece a autora. Ela segue explicando que não é

o caso para sociopoética, a cristalização do grupo como unidade abstrata que paira

acima dos indivíduos. Ao invés disso o grupo deixa de ser o modo como os indivíduos se

organizam para ser um dispositivo, catalisador existencial que poderá produzir focos mutantes de

criação. (SILVEIRA, 2005, p. 155). Neste entendimento há algumas rupturas,

ressalta ela. A primeira é a que rompe com a homogeneidade grupal uma vez que o

valor está nas diferenças, na heterogeneidade e na multiplicação do diverso. O

segundo rompimento é com a noção de equilíbrio, porque não se delimita papéis

fixos. O interesse foca o como cada um define seu território e a forma como entra

em contato com o território dos demais, para assim se formar uma configuração

grupal. E terceiro, há também uma ruptura com a noção de totalidade, pois o valor

se direciona para uma abertura do grupo, sua permeabilidade a tudo o mais que

possa perpassa-lo.

É em função desses rompimentos que a formação do grupo em

sociopoética pode funcionar como um dispositivo porque sua própria composição

já mobiliza todos em função do seu emaranhado. Esta ideia de grupo como

dispositivo me soou muito cara e apropriada porque nada mais diverso do que a

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equipe de saúde da família, que abriga e contém diversidades, seja de classe social,

nível de escolaridade, lugar de origem, ruralidade, urbanidade, etc.

Sem dúvida a composição do grupo já me trazia em si várias possiblidades.

Contudo, a interação entre as pessoas em torno do tema já era algo relevante,

embora também o uso de algum dispositivo fosse importante para produção de

conhecimento pelo grupo pesquisador. A autora ressalta tanto a importância da

escolha da técnica, como também a sua aplicação. E um ponto que ela chama

atenção é que um bom dispositivo é aquele capaz de provocar estranhamento no

grupo, aquele que tem potencial para suscitar outras respostas.

Silveira ainda comenta algo muito interessante quando afirma que a

sociopoética tem o objetivo ético-político de provocar os acontecimentos, promover devires.

Contudo a utilização dos dispositivos nesta proposta não visa promover a transformação

conscientizadora ou direcionada (seja lá em que sentido), pois o que cada pessoa fará depois com

eles nós nunca poderemos prever. (SILVEIRA, 2005, p. 161). Considero isso pertinente

para esta pesquisa uma vez que o tema envolve emoções e sentimentos, e

dificilmente, comporta regras ou condutas certa ou errada disso ou daquilo, bem

como de julgamentos, aos quais é comum se ater no espaço do serviço de saúde,

em que as normatizações e protocolos são a marca dos procedimentos. Em termos

ético-políticos a produção de um conhecimento sobre esta temática longe está de

estabelecer padronizações de comportamentos.

Percebi na Sociopoética uma coerência epistemológica que fazia de sua

proposta metodológica um caminho promissor para me servir de bússola nesta

pesquisa. Após as leituras inspiradoras a questão era: por onde começar? Eis a

pergunta que me latejava e que devia ser devidamente respondida até o próximo

encontro.

Foram muitas vivências ao longo de todo o trabalho com o Grupo

Pesquisador. Vivi com o grupo um percurso cujo caminho ia sendo traçado a cada

decisão, a cada pergunta que precisava responder para seguir. E eram muitas: que

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dispositivo poderia ser interessante e potente para esta pesquisa? De que forma

conversar sobre vínculos de maneira a sair do lugar comum? Como abordar o tema

evocando sentimentos de forma sensível, respeitosa e ética? Quais os limites éticos

que estariam implicados neste processo? Eram algumas perguntas que latejavam

meu espírito, mas com elas, eu teria que seguir.

Ao final, fiz um total de duas Oficinas Temáticas seguidas, cada uma, da

análise da produção realizada pelo grupo pesquisador. As oficinas foram gravadas e

transcritas por mim. A final de cada uma delas eu fazia uma primeira análise do

material produzido, e retornava ao grupo para uma nova análise. A partir desta

primeira categorização e sistematização do trabalho, o grupo fazia uma nova análise

em que concordava, acrescentava, discordava e/ou ampliava a primeira agregando

outros referenciais e produzindo um rico trabalho sobre o tema.

É importante agora antes de seguir, esclarecer alguns pontos

epistemológicos sobre esse trabalho de análise para esta pesquisa. Em seguida,

retomo o fio da produção do grupo pesquisador que resultou das Oficinas.

O Grupo Pesquisador (GP) assume nesta pesquisa a função de produzir

um saber sobre o tema. Esta é uma opção metodológica que julgo coerente com a

epistemologia que fundamenta esta investigação. Uma epistemologia que reconhece

que nenhum saber pode esgotar a realidade. A riqueza, então, consiste em se

aproximar dos fenômenos por uma multirreferência, como propõe a sociopoética.

O que pode causar estranheza numa multirreferencialidade é que ela não

pode, e nem mesmo se propõe a fornecer conclusões sobre os fenômenos da

realidade. Tal desconforto resulta da tentativa de equivaler ciências da natureza às

ciências humanas, em termos de desvelamento do real. Ninguém ousaria discordar

que, a uma explicação marxista, não se pode opor uma freudiana, no sentido de

refutação. Disso se conclui superficialmente que as ciências humanas equivaleriam

ou assemelhar-se-iam a certa forma de religião. A contra-argumentação é que a

riqueza está na complementaridade de tais referenciais para compreender os

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fenômenos, e sua cientificidade tem a medida que tais leituras nos permitem

transformar a realidade.

A pesquisa Sociopoética amplia a multirreferencialidade com o Grupo

Pesquisador que neste processo de gerar conhecimento é emergente e insurgente,

vivencia um processo autopoiético com regularidades, bifurcações e mudanças de

fases. Gauthier (2005) esclarece que o que acontece no grupo pesquisador é que os

referenciais de cada um, sejam teóricos, políticos, éticos, sistematizados ou não,

intercruzam-se nas análises e reflexões do grupo sobre o que ele mesmo produziu.

Cada um contribui a partir de um lugar discursivo, onde o intercruzamento de

todos, compõe uma sinfonia que traduz o pensamento do grupo pesquisador. Eram

justamente esses referenciais das pessoas que atuam no CSF que fazem mover os

circuitos e estabelecem padrões de funcionamento. Evidencia-los e compreendê-los

era algo importante nessa perspectiva.

Além da multirreferencialidade há uma interferencialidade que se firma por

um anarquismo epistêmico, conforme explica Gauthier. Não há exclusão, não há

fala mestre. Há acolhimento do outro, porque de nada serviria uma

multirreferencialidade para cortar ou excluir o outro. Segundo Gauthier toda e

qualquer referencialidade, mono, multi ou pluri, é imaginação de acadêmicos, é orgulho panóptico

do poder, demonstração vã de um saber-falar que ninguém contesta. (GAUTHIER, 2005, p.

49). Dessa forma, no grupo pesquisador, além das referências de vida, fluem e

influem referenciais míticos, religiosos, políticos, acadêmicos etc. Todos eles,

saberes, seja sua fonte ética, estética, religiosa, acadêmica, mística. Nenhuma fonte é

desprezada ou considerada inferior. E no intercruzamento de todas elas acontece

uma desterritorialização e, felizmente, perdem-se de suas origens, tornam-se fluidas

e entram em novas composições imprevisíveis, que podem trazer o novo, isto é,

produzir/desvelar novas formas de perceber o real.

À multirreferencialidade e enterreferencialidade soma-se a

interculturalidade, característica essa, decorrente da implicação do pesquisador com

o seu estudo. A cultura aqui entendida não como algo já dado previamente no real

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empírico do qual se poderia abordar ou falar, mas como um lugar de onde alguém

fala, lugar a partir do qual se constrói, delimita e possibilita esta fala. Nesta

perspectiva é preciso reconhecer a impossibilidade de falar da cultura dos outros no

sentido de que, ao fazê-lo, não se pode fugir de, primeiro, referenciar a si próprio.

É importante reconhecer que em ciências humanas é impossível escapar da

multiplicidade de referências. Toda prática e todo conhecimento é ao mesmo

tempo multirreferenciado e interreferencializado, justamente por sua característica

intercultural. Como ressaltou Bosi (2012) investigar os fenômenos em sua interface

subjetiva é um desafio que nos convida a uma necessária inter(trans)culturalidade que

inclua outras arenas culturais indo além do estritamente cientifico para incluir

saberes nativos no sentido de uma religação de saberes. Tal processo é de

importância fundamental para a Saúde Coletiva como já explicitou Bosi (2012). A

visão da ciência não pode esgotar a realidade, tampouco, substituir outras visões, e

há uma fecundidade no encontro de arte e ciência no sentido da produção de novas

formas de compreender e tecer a realidade. Esta foi a aposta que fiz.

Passo agora a relatar o processo de produção de conhecimento que

resultou do trabalho do grupo pesquisador ao longo do percurso que vivemos

juntos no Centro de Saúde da Família de Inhamuns. Trata-se de um percurso

vivido cheio de decisões e bifurcações que, ao final, já não éramos os mesmos.

3.2.4. Vínculos que tecem Identidade.

“...E aprendi que se depende sempre De tanta, muita, diferente gente Toda pessoa sempre é as marcas

das lições diárias de outras tantas pessoas” (Caminhos do Coração, Gozaguinha)

No ano anterior (2014) havia participado como acompanhante voluntária

de um trabalho com um grupo de professores em uma Escola em que a facilitadora

havia proposto uma Vivência Pedagógica em que utilizava a Visualização Criativa

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como recurso. Lembrei-me dessa Vivência porque sua proposta consistia em um

convite ao grupo em evocar os professores que foram significativos ao longo de

suas vidas, e com isso, tocava sensivelmente, o tema do vínculo. Resolvi adaptar o

recurso e utilizar nesta pesquisa.

Esta decisão se justificou para mim porque, primeiro, já tinha vivenciado e

senti sua potência para tocar o tema dos vínculos, não por meio da fala, e sim, por

meio da imaginação e da memória. Eu sabia dos limites da fala para esse caso em

específico. Segundo, porque sua proposta convinha com meu objetivo de trabalhar

inicialmente com o grupo pesquisador no sentido de trazer à tona um

conhecimento vivencial sobre os vínculos que tecem nossa identidade,

possibilitando um reconhecimento dos significados e implicações deles para o que

somos como pessoas, para nossas escolhas e para as nossas vidas. Evocar os

vínculos trazendo o conhecimento da vivência era um ponto de partida promissor

para gerar um conhecimento a partir do qual buscaríamos compreender o circuito

do vínculo no serviço da ESF.

Dei à primeira Oficina o título de Vínculos que tecem a Identidade.

(Programação detalhada no Apêndice). Esta oficina aconteceu nos dois primeiros

encontros do Grupo Pesquisador (GP), seguindo a proposta abaixo:

Oficina 1 - Vínculos que tecem a Identidade

Encontro 1

Momento 1 – Linha do Tempo

Momento 2 – Visualização Criativa “Vínculos que tecem a Identidade”

Encontro 2

Momento 1 – Boas Vindas e Memória do encontro anterior

Momento 2 – Análise da Produção do Grupo

Cada um desses momentos foi rico em termos de produção de

conhecimento para o grupo e sobre o grupo perpassado pelo tema. Sigo então

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apresentando o resultado da análise dessa primeira Oficina feita pelo Grupo

Pesquisador.

Momento 1 – A Linha do Tempo

Como todos, de certa forma, já se conheciam, e apenas eu não conhecia

todos, sugeri que poderíamos aprofundar o que sabemos uns sobre os outros

relatando o trajeto profissional que levou cada um a trabalhar na ESF do SUS. A

proposta foi que cada um, por meio do desenho de uma linha do tempo,

demarcasse acontecimentos em sua vida profissional, ressaltando eventos

importantes que julgam ter contribuído para se encontrarem hoje, todos juntos, no

CSF de Inhamuns. A intenção dessa proposta era conhecer um pouco da trajetória

profissional de cada um em termos de suas escolhas e motivações para atuar no

nível da atenção primária em saúde.

Para o grupo compartilhar da linha do tempo foi mais do que uma simples

(re)apresentação porque proporcionou conhecer o caminho singular de cada um até

aquele tempo vivido, que a todos juntou. Proporcionou também conhecer detalhes

da vida uns dos outros que não sabiam, contribuindo para o fortalecimento dos

laços entre pessoas, porque oportunizou um compartilhar dos percalços, lutas,

prazeres e dificuldades que cada um enfrentou para construir e fazer suas escolhas

profissionais.

Para mim, estar atento para trajetória profissional de cada um me trouxe

algumas reflexões. Cada trajetória compartilhada evocou singularidades e

evidenciou as diferentes oportunidades nas histórias de vida compartilhadas que se

relacionavam ao lugar em que nasceram, e ao contexto histórico, com suas

variações nas condições sociais, culturais e econômicas. Há diferenças significativas

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que marcam as histórias de vida das pessoas que tiveram acesso ao ensino superior,

e as que não.

Todos os profissionais do nível técnico compartilharam trajetórias que

retratam a vida no município de Tauá, origem de todos. Nos relatos desses

profissionais das pessoas haviam lembranças de um dia-a-dia de deslocamentos

diários em paus de arara em suas necessárias viagens com objetivo de estudar,

marcado por um cotidiano em que a seca era mais presente e premente.

Descreveram cenas diárias em que precisavam carregar água dos açudes para

abastecer os potes das famílias no lombo dos jumentos. Em suas vidas, marcas de

migrações para São Paulo com falas emocionadas de saudade da família e do lugar,

até o feliz regresso, quando a vida melhorava e oportunidades apareciam. Cearenses

com trajetórias de vida já um pouco diferentes das gerações anteriores, quando em

meados do século passado, migravam para São Paulo, e não mais retornavam.

Marcas de vida cearense tão bem traduzida nos versos de Patativa em sua A Triste

Partida: “Chegaro em São Paulo - sem cobre, quebrado. O pobre, acanhado, Percura um patrão.

Só vê cara estranha, da mais feia gente, Tudo é diferente do caro torrão. Trabaia dois ano, três

ano e mais ano. E sempre no prano de um dia inda vim. Mas nunca ele pode, só veve devendo, e

assim vai sofrendo tormento sem fim.” (PATATIVA, A Triste Partida).

A história desses profissionais acompanham as transformações sociais do

Brasil, sobretudo, os acontecimentos que contribuíram para construção do SUS,

como o PACS. São trajetórias de vida marcadas pelas condições sociais e históricas

do contexto nordestino. Uma ACS relata estar no programa desde a seleção que

houve para os bolsões da seca, quando em 1989, o Ceará dá início ao PACS. A

dedicação ao trabalho comunitário esteve presente nas falas que relatam

participação em pastorais, movimentos religiosos, e também, a ação de

Organizações Não Governamentais que atuavam no interior cearense. No caso do

distrito de Vera Cruz, onde fica hoje o CSF de Inhamuns, houve um trabalho

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marcante da ONG Terra Dos Homens22 responsável pela formação de lideranças

locais com ações voltadas para organização comunitária, educação e saúde,

sobretudo, no que diz respeito à atenção à crianças e adolescentes. Eis alguns

fragmentos dessas trajetórias de vida.

Comecei ser agente de saúde em 87 antes de começar o Programa, na experiência veio uma seca, então, eu me cadastrei né, neste bolsão e depois fui escolhida pra ser agente de saúde (...) (GT).

(...) em 2002 em vim embora [de São Paulo] (...) e surgiu a oportunidade de trabalhar na área da saúde. Não foi coisa assim tão programada por mim, mas eu acredito que sim, que era uma preparação de Deus pra minha vida, (...), mas eu posso dizer que foi o melhor que aconteceu na minha vida, foi trabalhar como agente comunitário de saúde porque se eu aprendi alguma coisa, e se hoje eu sou o que eu sou, eu devo a esse trabalho, as famílias as quais eu convivo. (GP).

(...) eu comecei a manter um contato maior com as famílias no ano de 83 quando eu comecei a trabalhar para ajudar a minha família [emoção]. Eu colocava água nas residências, nos jumentos, porque minha família não tinha uma condição financeira legal (...) Em 86 eu fui convidada a participar do Programa Terra dos Homens (...) eu fiz uma capacitação, (...) a gente fazia muita capacitação. E começou a despertar a curiosidade pela saúde. De vez em quando eu entrava no posto de saúde e ficava conversando com a enfermeira (...), que na época numa era técnica de enfermagem né, era visitadora sanitária que chamava (...). (GT).

Eu comecei a estudar a partir dos 7 anos de idade, aí quando eu terminei o segundo grau tive um convite pra trabalhar no posto saúde da Lagoa do Eufrasino, aí fiz um curso pra auxiliar de enfermagem em 97. Terminei. Fiz o concurso público em 98. Passei. Aí continuei trabalhando (...) e estudando em Tauá. Aí pegava o pau de arara, nesta época era assim, (...) pegava o carro para Lagoa do Eufrasino, descia, e ia pra Tauá pra estudar (...) (GT)

(...) um ponto marcante que eu tenho é a convivência com a minha mãe, desde que eu nasci e que eu tenho conhecimento ela é animadora da comunidade e coordenadora também da igreja e eu sempre aprendi com ela essa convivência com as pessoas, ela sempre repassou isso pra mim. (GT)

22 “A Associação Brasileira Terra dos Homens (Terra dos Homens) é uma organização sem fins lucrativos, fundada por Claudia Cabral, psicóloga atuante na área social desde 1977 e sensibilizada com o número de crianças afastadas de suas famílias, vivendo em abrigos. O nascimento da organização é um desdobramento do trabalho iniciado por Claudia em 1985, quando atuava como coordenadora de um programa de adoção inter-racial tardia da Fondation Terre des hommes, Lausanne, Suíça. A então responsável pelo

programa, criou a Terra dos Homens brasileira, e adquirindo autonomia jurídica em 1996. Tal autonomia possibilitou o estabelecimento de novas parcerias e a ampliação de seu campo de atuação no Brasil. No ano de 2003, a Terra dos Homens é certificada como entidade de Utilidade Pública Federal. Em 2006, é certificada como entidade de Utilidade Pública Estadual e Beneficente de Assistência Soc ial.” Disponível em: http://www.terradoshomens.org.br/pt-BR/conteudo/15/63--Nossa-Historia.htm. Acesso em 24.01.2015.

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(...) Foi uma coisa de deus, mas era algo que estava no meu sonho há muito tempo e eu não sabia que era um amor tão grande por participar do PSF, (...). E eu ingressei em 2002, e eu estou até hoje aqui. (...), mas eu me identifiquei (...) com a atenção básica eu permaneço até hoje e pretendo ficar! (GP).

Como canta Patativa em seus versos do livro “Canta lá que eu canto cá” as

trajetórias são bem diferentes entre pessoas que tiveram acesso ao nível superior e

as que não. “Repare que a minha vida é diferente da sua. A sua rima é polida. Nasceu no

salão da rua. Já eu sou bem diferente, meu verso é como a semente que nasce em riba do chão”

(PATATIVA). O que direcionou essas pessoas para ser trabalhador da saúde não

foi uma escolha, dentre outras, fora sim, as oportunidades que foram agarrando em

suas vidas: uma seleção para agente de saúde, um curso técnico de enfermagem,

uma ação comunitária voltada para formação de lideranças, etc. Foram

circunstâncias geradas pela história social, política e econômica do seu lugar que as

fizeram buscar oportunidades para ter uma vida melhor, e um reconhecimento

social. Ao agarrar as oportunidades que o campo da saúde começava a oferecer

foram descobrindo uma vocação, isto é, o que as qualificara, antes e hoje, para ser

um profissional da ESF fora o seu envolvimento com a vida comunitária, aliado a

uma vontade de não apenas sobreviver, mas de conhecer e fazer o seu melhor, e

não necessariamente, uma escolha pela área da saúde em si.

Há nos relatos satisfação e orgulho em atuar na saúde. Acredito que esse

orgulho pelo que fazem hoje resulta do valor social da função de trabalhador da

saúde, aliado ao prestígio de passar em um processo seletivo, que oferecia

oportunidade de trabalho digno em seu lugar de nascimento. Em suas trajetórias de

vida alcançaram, relativamente, o melhor lugar que a vida lhes ofereceu em termos

profissionais, e usufruem hoje do valor que esse trabalho passou a ter para si e para

a comunidade em que vivem.

Os profissionais de nível superior, no caso, médico, enfermeira,

fisioterapeuta e dentista, apresentam histórias de vida marcadas por outro contexto

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social, cultural e econômico que oportunizaram para suas trajetórias profissionais

outras possibilidades de escolhas.

Atuar na saúde se tornou uma vontade mais próxima, por ser uma área atrativa e também pela minha proximidade com as disciplinas mais específicas, no caso, a biologia e química. Optar por odontologia foi um desejo no vestibular, por ser uma categoria que trabalha com o bem estar das pessoas, e também, por ter um bom retorno financeiro. (GT).

(...) eu já sabia, eu quero ser da saúde, mas eu não sabia realmente o que eu queria ser da saúde. Daí eu via um primo meu que era fisioterapeuta e fazia um trabalho belíssimo, então assim... eu já fui pra essa érea da fisioterapia. Dentro da faculdade, não fui direto pra atenção básica, fui pra UTI, (...) só que lá a gente convive muito com a morte. E isso eu não me sentia bem, então... eu acabei desistindo da UTI (...) e, primeiramente, fui chamado pra trabalhar, ser coordenador, dentro da área de educação do campo e para o campo (...) e, após isso, me despertou o interesse, e eu entrei na unidade de saúde. (GT).

A minha escolha por atenção básica, (...) veio a partir de 2003, na faculdade de medicina, cursei em Fortaleza uma disciplina na ABS “Saúde, Ambiente e Trabalho”, e foi a primeira vez como pretenso profissional de saúde, eu tive oportunidade de conviver com comunidades... no caso dessa disciplina, era comunidade de trabalhadores. Foi colocado pra gente trabalhar com estivadores, foi uma atividade muito interessante não só porque eu tive oportunidade de conversar com o coletivo de trabalhadores, mas porque despertou também o interesse pela área da saúde dos trabalhadores. Em 2005 ainda na faculdade teve um projeto que trabalhava com comunidades nas dunas, era uma comunidade pobre, marginalidade, carente, índices de violência, craque, mas a presença da faculdade foi um diferencial para aquelas pessoas que nunca tinha recebido a presença de um grupo que se dispusesse a atender (...). Eu fiz um trabalho lá e desde então vi a importância que é trabalhar com pessoas que mais precisam de atenção saúde, grupos vulneráveis dá pra se fazer alguma diferença lá, um trabalho interessante.

Em 2006 eu ingresso na faculdade, em Ciências Biológicas, aos 16 anos, foi muita emoção de fazer, e eu conheci uma amiga que tinha muita vontade de fazer Enfermagem, e começou a planejar de tentar de fazer vestibular pra enfermagem. E em 2008, isso aconteceu, só que eu passei e ela não! E era um sonho mais dela, mas eu quis ficar, eu tinha 18 anos na época, poder vivenciar outras coisas, poder morar em outra cidade, estava deslumbrada em relação a isso. E tinha a perspectiva de me identificar, por que não! (...) Em 2010 começa os estágios, e o primeiro estágio foi no PSF, passamos um mês lá, e aí eu disse: é isso que eu quero (...). (GT).

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Uma questão sempre comentada na literatura sobre o vínculo na atenção

básica está associada à rotatividade dos profissionais de nível superior, geralmente,

compreendida como algo que dificulta o vínculo. Esta conclusão, a meu ver,

emerge de uma compreensão equivocada que confunde o conhecimento da

comunidade, do seu modo de vida com o vínculo, colocando aí uma relação

condicional.

Relembrando as dimensões do vínculo humano

que se desdobra em vinculação consigo, com o Outro

(alteridade) e com o Todo (sociedade/natureza), a

interrelação entre conhecimento da comunidade e

o vínculo não dificulta, ou mesmo, facilita o

circuito do vínculo entre os profissionais e a

comunidade. Claro que essas dimensões

estão imbricadas, e uma certamente,

alimenta a outra, mas não há aí uma

implicação condicional.

Em função disso podemos compreender que o vínculo entre os

profissionais e a comunidade revela e/ou desdobra-se em três níveis. O vínculo

com o outro/alteridade não depende, necessariamente, do conhecimento que se

tem sobre a história de vida do outro. Isto apenas abre possibilidades para isso,

quando, por exemplo, se oportuniza o compartilhar de histórias. Todos já tivemos

experiências de conhecer alguém e estabelecer uma relação de imediato, se sentido

a vontade e com confiança. Isso é bem mais comum no meio rural, uma vez que o

espaço urbano se caracteriza por relações marcadas pela impessoalidade,

distanciamento e individualismo. Da mesma forma, o conhecimento da

comunidade e seu modo de vida, revela e/ou desdobra-se da vinculação com o

todo (natureza/sociedade), no caso, o lugar/comunidade com seu perfil socio-

cultural. E o nível de vinculação consigo se desdobra a partir, e em função, dos

demais níveis, e pode ser expresso, também, por meio da trajetória singular de vida

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dos sujeitos, que traçam suas escolhas e tomam suas decisões em função dos

sentidos e significados do contexto em que vivem.

A capacidade de vinculação humana em sua estreita ligação com a

afetividade não, necessariamente, carece da cognição para ser estabelecida. Entre as

pessoas ocorre uma vinculação que, popularmente, são traduzidas com assertivas

do tipo: “eu nem a conheço, mas já fui com a cara de fulano” “o meu santo não

cruzou com o de fulano”, “apesar de eu ter conhecido fulano hoje, parece que já o

conheço a muito tempo”. Na vinculação humana está presente um núcleo afetivo

de base que, em termos filogenéticos, é mais arcaico que a cognição e precede a

racionalidade, embora, também, tenha relação com ela.

A partir dessa noção mais complexa do vínculo humano podemos

compreender que se uma pessoa possui uma história de vida, cuja trajetória

profissional traça um percurso imbricado com a história da comunidade, o

conhecimento que esta pessoa tem do lugar, e o vínculo que desfruta com as

pessoas, resulta em um conhecimento tácito sobre a comunidade. Se, por outro

lado, a trajetória profissional da pessoa a levou para um determinado lugar como

seu espaço de atuação profissional, é a sua capacidade de vinculação, desdobrada

em três níveis, que a qualifica para aprofundar ou não esse conhecimento do lugar e

do modo de vida de seus moradores. A capacidade de vinculação humana aqui

pode ou não aprofundar algum conhecimento sobre o outro, o lugar, e sobre si

mesmo, inserido neste contexto. Os três níveis de vinculação que se tecem

conjuntamente, se desdobram a partir dos diversos contextos em que vivemos. Por

conseguinte, o conhecimento que logramos sobre um lugar social, o modo de vida

das pessoas, cujas trajetórias de vida não conhecemos, depende da vinculação que

me é possível estabelecer, mas não há aí uma relação de condicionalidade. E isso

traz ou carrega um viés de sobrevivência, que possibilita ou não, minha

inserção/permanência no lugar.

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Como sabemos, para o trabalho na atenção primária é necessário, e até

indispensável, um conhecimento do lugar/território, que desvele os determinantes

dos processos de saúde/doença, e assim, se garanta um trabalho de promoção da

saúde, uma atuação/intervenção que não se restrinja somente ao foco na doença.

Ocorre que esse conhecimento, para ser gerador de ações de promoção de saúde,

deve ir além da técnica de traçar um perfil epidemiológico do território, ou

desenhar um mapa com a adscrição da clientela.

Historicamente, ao agente comunitário de saúde, sempre fora exigido, em

seu perfil profissional, um conhecimento do lugar em que irá atuar, e o critério

delineado para isso era ser morador da comunidade. Ora, quando se trata de

profissionais graduados, tal exigência, além de esdrúxula, é impossível, em função

mesmo da disponibilidade de pessoal. E a pergunta é: por que tal exigência não

parece esdrúxula para o ACS?

O conhecimento aí implicado como exigência do perfil do ACS era,

justamente, o que resulta da vinculação da pessoa com a comunidade e com seus

moradores. O que é preciso ter clareza aqui é sobre a importância desse

conhecimento, que o ACS, historicamente, trouxe como relevante para o serviço da

atenção primária, como prerrogativa para seu desempenho profissional.

Contudo, trata-se de um conhecimento que resulta de uma vinculação que

pode e deve ser aprofundada por qualquer pessoa que estabeleça uma vinculação

com as pessoas e lugar em que vivem. O fato de, historicamente, ser o ACS o

profissional com tal conhecimento deve ser fonte de aprendizagem de todos, e

também, aprendizagem sobre os serviços de APS no Brasil. Isso é importante

atualmente até mesmo para o próprio ACS porque os novos processos de seleção,

sobretudo, no meio urbano, trazem outro perfil de pessoas que, mesmo sendo

moradoras do lugar em vão atuar, não necessariamente, tem este conhecimento

vivencial do lugar em que moram em função das diferenças entre os modos de

vinculação dos espaços urbanos que possuem outras características.

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Se o que definira historicamente o ACS é o exercício da função elo entre a

comunidade e os profissionais, considero necessário refletir sobre isso, reiterando

tal prerrogativa como requisito importante para atuação de todos os profissionais,

inclusive do próprio ACS. A construção histórica do ACS nos revela algo sutil

sobre o trabalho na atenção primária e sua construção histórica imbricada ao SUS e

não apenas diz respeito ao profissional em si. É preciso ter claro que havia uma

necessidade de um profissional exercer a função elo entre os demais profissionais e

a comunidade porque havia e há um fosso cultural que separa os grupos de

indivíduos em função de suas trajetórias de vida e as oportunidades que tiveram ao

longo de suas vidas. Mas creio, contudo, que isso é algo que pode e deve ser

(re)aprendido, sobretudo, em função do novo contexto socio-cultural globalizado

que vivemos. Os processos de territorialização não devem restringir-se a

mapeamentos, georreferenciamento e estratificações de risco, ou mesmo, fazer do

conhecimento vivencial dos ACS, única fonte de saber sobre o modo de vida do

lugar, ou mesmo, considerar essa fonte de saber como algo não oficial, que resulta

em desqualificação do saber e do fazer do outro.

Enfim, pelas trajetórias de vida de todos os profissionais há um traço

interessante, o envolvimento com a vida comunitária. Claro que isso é mais

premente nos profissionais de nível técnico, sobretudo, os ACS. No entanto, esse

traço também se faz presente nas escolhas dos profissionais graduados, e deve ser

parte do aprendizado desses profissionais. Participar de uma disciplina que

proporcione os alunos de medicina conhecer um pouco mais do modo de viver de

outras coletividades é algo interessante que influencia escolhas de vida. O

envolvimento com a história de uma coletividade é algo que pode estar presente em

qualquer ser humano que se dedica a um fazer que implica cuidado com o outro,

mesmo que esta história não seja a sua história de origem.

A capacidade de vinculação humana nos possibilita esta implicação desde

que tenha oportunidades para ampliar seus vínculos para além do âmbito familiar e

ampliar sua capacidade de viver na coletividade, sustentando vínculos de maneira

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que se desdobrem em mais conhecimento de si, do outro e de sua própria

humanidade. Como vimos é na e pela sociedade que nos (des)humanizamos. E

nossa humanidade é tanto mais refinada quanto for nossa capacidade de

vinculação, que adquire substância na, e pela, afetividade, que pode se desdobrar,

tanto para fortalecer laços ancorados no amor, respeito, amizade, solidariedade,

altruísmo, como também, para gerar agressividade ancorada no rechaço, hostilidade

de forma mais contundente, ou gerar distanciamento e indiferença, em sua

expressão mais branda.

Nossas escolhas e capacidades que adquirimos com as experiências ao

longo da vida tem estreita relação com o contexto em que vivemos. Um contexto

sociocultural que oferece possibilidades para experimentar uma vinculação que

oportunize laços simpatia oportuniza a empatia, o altruísmo e a solidariedade como

marcas de suas relações sociais. Quando o curso de medicina proporciona

experiências como, por exemplo, conta o médico do grupo-pesquisador, se afasta

do distanciamento e da indiferença como forma de vinculação que humaniza o

exercício da medicina, não por normatizações, ou estudo da PNH, mas uma

humanização com raízes ficadas na nossa natureza afetiva solidária. Tais

experiências podem florir em escolhas de vida que vão de encontro ao

distanciamento e frieza dos consultórios baseados nos valores do Dr. House23.

Relembrando que nos disse Elbl-Eilbesfedt é preciso optar, sobretudo, quando

lidamos com formação humana, por dar mais relevo a dimensão afetiva que cria

laços solidários. E fazer isso é oportunizar experiências em que sentimentos de

simpatia e altruísmo possam ser vivenciados e enraizados.

23 House, M.D. ou simplesmente House (no Brasil, Dr. House), foi uma aclamada série médica norte-americana, criada por David Shore e exibida originalmente nos Estados Unidos pela Fox de 16 de novembro de 2004 a 21 de maio de 2012. Já recebeu vários prêmios, entre eles dois Globos de Ouro. O personagem principal é o Dr. Gregory

House, interpretado pelo ator inglês Hugh Laurie. House é um infectologista e nefrologista que se destaca não só pela capacidade de elaborar excelentes diagnósticos diferenciais, como também pelo seu mau humor, ceticismo e pelo seu distanciamento dos pacientes, comportamento anti-social (misantropia), já que ele considera completamente desnecessário interagir com eles. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/House,_M.D. Acesso, 16.10.2015

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Momento 2 – Visualização Criativa

O segundo momento desta Oficina foi dedicado a uma vivência pedagógica

em que utilizei o recurso da Visualização Criativa. A intenção era evocar os

vínculos de cada um com algumas pessoas significativas, cujo vínculo foi deixou

um aprendizado importante para suas vidas.

Como forma de preparar o grupo para a vivência convidei todos para um

relaxamento do corpo com movimento e música, finalizando com todos numa

posição corporal relaxada. Após esse momento, cada um foi convidado a evocar

em sua memória algumas pessoas, por meio de uma narrativa. Sinteticamente as

pessoas significativas eram: alguém que influenciara a escolha profissional; outra

que tenha sido inspiração para a visão política do mundo e da sociedade; outra

pessoa que direcionara a vida espiritual e/ou religiosa; e por fim, ainda, outra

pessoa com a qual aprendera a amar.

O compartilhar da vivência reservou muita emoção para o grupo e

oportunizou as pessoas a pensar sobre fatos sutis em suas vidas, cuja relevância

ainda não se tornara tão evidente, por falta de oportunidade dedicada para esse tipo

de reflexão.

O objetivo da oficina foi alcançado com pleno êxito. Mas tenho clareza

que, não obstante, termos sensivelmente evocado o tema em termos vivenciais, o

conteúdo dessas memórias é relevante somente de forma indireta para essa

pesquisa. A minha intenção com a vivência era evocar os vínculos das pessoas a

partir de seu núcleo afetivo, para só a partir disso, aprofundar o tema do vínculo

como algo que perpassa o trabalho de todos, no CSF do Inhamuns. Diversas

pessoas significativas foram evocadas e o grupo compartilhou isso com escuta

atenta, respeito e emoção, se dando conta de um aprendizado, até então, não

evidenciado como algo importante que faz parte, não apenas, do trabalho

profissional, mas da vida de cada um.

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Em função disso o conteúdo em si dessa vivência não será relatado aqui e,

tampouco, será alvo das análises do grupo. O conteúdo é parte de narrativas que

contavam histórias e descreviam pessoas significativas para cada um, e já foram

compartilhados no grupo durante o primeiro encontro. O próprio compartilhar da

vivência tornara o grupo, um dispositivo, como assim sugere Silveira (2005), em

função dos rompimentos com as noções clássicas de grupo que ali se tornavam

presentes. Havia uma heterogeneidade de profissionais, e geralmente, quando há

pessoas graduação e não graduadas forma-se uma hierarquia que concentra o poder

da fala e do saber, e isso não ocorreu. Creio que, em razão do compartilhar da linha

tempo, o que se tornou premente no grupo não foram os papéis sociais de cada

um, e sim, a vida humana em sua trajetória, que trouxe horizontalidade.

Como facilitadora da Oficina, após transcrever e ler o material, organizei

uma primeira versão de análise para o grupo sem fazer alusão ao fio condutor das

narrativas. O que emergiu para mim da leitura do registro dos relatos desta vivência

foram algumas palavras que se repetiam nas falas e, na minha imaginação, davam

um colorido especial ao papel. As palavras eram características que traduziam

gestos humanos, sentimentos e posturas de pessoas significativas para vida de cada

um do grupo. Eram também, palavras que remetiam a categorias conceituais,

bastante subjetivas e abstratas. Percebi que eram palavras cujo significado dava

indícios a perguntas que a leitura me suscitava. Organizei o material em um Quadro

que apresento a seguir.

O que tecem os vínculos entre os humanos?

Que características humanas mais nos vinculam uns aos outros?

Vínculos se rompem? Por quê?

Companheirismo / parceria

Amorosidade / Afetuosidade

Liderança / Referencia

Paciência Generosidade Saber se comunicar

Persistência Inocência Respeito ao outro

Responsabilidade Compaixão Torcer pelo outro /

valorizar o outro

Quadro 2 – Fios que tecem Vínculos

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O objetivo do próximo encontro com o Grupo Pesquisador foi fazer a

análise da produção do grupo. A tarefa era refletir sobre o tema de forma a

aprofundar, acrescentar, retirar, redimensionar a esta primeira análise feita por mim.

A intensão foi fazer emergir uma multirreferencialidade em seus intercruzamentos,

de modo a interreferencializar interculturalmente as diversas visões. Tal como

sugere Gauthier eu buscava clareza do meu papel como facilitadora. Para isso, me

direcionava para o que diz Gauthier quando afirma que ao facilitador cabe esse papel

de leitor exterior, com o objetivo de mostrar da maneira mais objetiva possível qual é a estrutura de

pensamento do grupo-pesquisador, ou seja, como faria um matemático procurando identificar

relações, regularidades e bifurcações, numa realidade dada. (GAUTHIER, 2005, p. 63).

O Quadro que elaborei era a primeira versão de análise do material

produzido pelo grupo. Essa leitura, claro, era a minha forma singular de

sistematizar o material produzido, a minha referência, mas não era a única. Para que

a nova análise do material fosse perpassada por uma multirreferência era preciso

propor um caminho para isso. Havia a possibilidade do grupo se prender a minha

forma de análise, sobretudo, em função do papel de pesquisadora que assumia no

grupo, um lugar de poder que poderia ser a referência do “certo”, da maneira

correta de fazer. Eu precisava amenizar esse risco.

Então pensei em utilizar o significado dos 4 elementos na intenção de

“livrar” o grupo da possibilidade de se prender a primeira análise do material feita

por mim, caminho que poderia empobrecer a análise. Recorri ao arquetípico dos 4

elementos: água, terra, fogo e ar apostando que eles poderiam ser úteis para

contribuir numa análise que transformasse as características mais sutis relacionadas

ao vínculo em algo que a imaginação pudesse tocar e traduzir de forma metafórica

e ou poética, para assim, gerar compreensão maior, com a multirreferencialidade

intercultural do grupo.

Levei para o encontro seguinte, a materialidade dos elementos. Cheguei

com o Fogo representado pela vela. O Ar, representado por um incenso e penas de

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pássaros. A Água estava presente dentro de uma bacia. E a Terra, presentificada

com um jarro de planta. Levei também imagens dos elementos, com suas variadas

expressões na natureza.

Os quatro elementos trazem um simbolismo universal que se articula com

as mais diversas áreas de conhecimento. Na filosofia, desde Tales de Mileto (600

a.C) afirmava que tudo o que conhecemos é formado pelos quatro elementos: terra,

água, fogo e ar. Platão (427-347 a.C.) considerava o fogo e a terra os elementos

fundamentais que sustentavam a si mesmos, sendo a água e o ar responsáveis por

facilitar a conexão entre as todas as coisas. Os estudos antropológicos mostram que

os povos primitivos em sua convivência com a natureza elaborou e transmitiu um

conteúdo simbólico em referência aos quatro elementos, geração após geração. Na

psicologia os estudos de Jung também se apoiam na simbologia dos quatro

elementos para compreender a natureza humana quando propõe a existência de

quatro funções psíquicas opostas e complementares: sentimento, sensação,

pensamento e intuição. Ele representou isso utilizando a quaternidade da Alquimia

utilizando a simbologia dos elementos água, terra, fogo e ar. Enfim, a simbologia

dos quatro elementos possui elementos arquetípicos que poderiam ajudar a mediar

Imagem 19 - Cenário Oficina 1 – Análise da Produção do Grupo Pesquisador

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o pensamento do grupo servindo como rede de pescar ideias, ancoras para puxar

pensamentos.

Ao iniciar a Oficina percebi/senti o grupo motivado, e creio que ficaram

ainda mais curiosos com a presença dos 4 elementos no centro da sala. Ao

perguntar sobre as expectativas do grupo, as pessoas comentaram:

(...) veio todo mundo com vontade de botar a mão na massa!

A gente não parou de ficar olhando para trás de dá valor a todas as pessoas que nos ajudaram até aqui! [alusão a vivência dos vínculos que tecem a identidade]

(...) O tempo aqui nas oficinas se renova!

Senti também que havia ansiedade frente ao que iria acontecer. Creio que

em função das emoções suscitadas no primeiro encontro. Iniciei com uma memória

do encontro anterior e apresentei o Quadro por mim sistematizado, juntamente

com as perguntas geradoras. Em seguida convidei o grupo para analisar e pensar

sobre o tema tendo como base o significado dos quatro elementos. Apresentei cada

um dos elementos evocando suas características e convidei a todos a entrar em

contato com as imagens e os elementos apresentados no centro da sala.

Imagem 16 – Cenário Oficina 1 – Análise da Produção do Grupo Pesquisador

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Após esse momento convidei o grupo para retomar o Quadro e refletir a

partir das perguntas suscitadas. Sugeri que poderiam expressar suas reflexões de

forma livre, seja por meio de poesia, música, cordel, paródia, ou outra expressão

que o grupo desejasse. Para a realizarmos a tarefa subdividi o grupo em 3 equipes.

Como resultado das análises, duas equipes trouxeram sua compreensão

sobre o vínculo humano a partir de músicas conhecidas do povo da comunidade. A

outra equipe elaborou uma poesia para traduzir sua compreensão sobre o tema.

EQUIPE 1

Vem me fala tu de liberdade Desta igualdade que todos queremos Desta vida nova que todos buscamos Desta paz que um dia alcançamos

Vem me fala tu de tua vida Desta amizade mais querida

Desta ansiedade de amar de novo Desta sua vida doada ao povo Vem me falas tu de esperança

Deste novo ser criança Desta paz que traz bonança

Desta luta pra vencer Vem me fala de você.

EQUIPE 2

O Amor é o bem maior O amor é o bem maior, riqueza de valor para o coração

O amor é eficaz e a alegria traz ao coração O amor transforma a vida numa comunhão

Fazendo o coração abrir-se para o irmão O amor é paciente, não mente e faz o sol brilhar

O amor junta as pessoas, alimenta a esperança de um tempo melhor O amor transforma a vida numa comunhão

fazendo o coração abrir-se para o irmão O amor é inspiração na vida uma canção, o amor

O amor leva a missão, traz força, traz perdão num mundo desigual O amor que fez Jesus levar a Santa cruz até morrer

Foi este amor que fez a sepultura abrir e o meu salvador em glória ressurgir

O amor é inspiração, na vida uma canção, o amor

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EQUIPE 3

Vaso - água, terra fogo e ar Cachoeiras da afetuosidade

Da responsabilidade que iluminando quando deságua sobre as pedras

e se multiplicam as suas gotículas se espalhando para todos os lados Seria possível quebrar o processo da construção do vaso?

Não! A terra molhada, moldada, queimada e exposta ao ar para concluir o processo de fabricação. Mas aí se iniciar a fase mais delicada, o processo do cuidado com zelo e amor Vaso decora, guarda a água, quebra

A generosidade do companheirismo no cuidado para preservar o vaso que quebrado colar e se colar, se vincular a outrem

Seria como conquistar o além Como a preciosidade do ar, na beleza de saber voar Descobrindo que suas características são essenciais

no saber se comunicar Aí sim, respeitando os limites como o fogo a água com persistência...

na paciência do saber moldar, trabalhar, fertilizar Abrir o coração deixar jorrar como água o ao mar descobrindo entre as matas.

Uma poesia de Manoel de Barros traduz bem a minha impressão inicial

sobre a produção do grupo:

Escrever nem uma coisa nem outra. A fim de dizer todas.

Ou, pelo menos, nenhumas. Assim, ao poeta faz bem desexplicar –

tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

Aqui a multirreferencialidade, outros referenciais para dizer do mesmo. O

quadro que havia feito fora somente um novo ponto de partida para novas e velhas

compreensões sobre o vínculo. Novas pela expressão, e velhas, porque já

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conhecíamos aquelas músicas, tão presentes nos encontros e missas da Igreja

católica.

O grupo (des)explicou o vínculo, o recolocou em um lugar habitual: o

amor. E assim, trouxe outras luzes, como diz o poeta. As duas músicas traduzem

fortemente o amor humano em sua expressão coletiva, indiferenciada, para utilizar

a compreensão de Toro (1991). Amor pela humanidade de cada um, amor

humano. Amor de comunhão. São músicas que remete ao um tempo de vida

comunitária, fala de liberdade, fraternidade. O grupo disse novamente do que o

vínculo é feito, e se afastou da obviedade de explicar o já dito. Desexplicou, e

acendeu vagalumes!

Como Água, o vínculo pode ser traduzido em cachoeiras de afetuosidade,

de águas que se espalham com persistência. Como Fogo tem seus limites. Como

Terra do vaso, nutre a planta, não quebra, quando aí há um cuidado para preservar

o vaso, que pode quebrar, mas também pode se colar novamente. Como Ar remete

ao saber voar na comunicação do essencial.

Cada grupo apresentou sua produção, cantando as músicas e interpretando

a poesia. Ao final, perguntei ao grupo: como se sentiram com a tarefa de hoje? O

que foi difícil?

Essa tarefa de hoje, você fazer essas perguntas, fazer comparações com algo que você já trabalhava, mas só que nós começamos, assim, a esmiuçar, (...) nós víamos o vínculo de maneira à parte, vamos dizer assim, era vivenciado, existia esse vínculo, mas só que nós fomos ver agora várias maneiras de construir esse vínculo ou de usar as diversidades que tinha, as dificuldades para se criar esse vínculo, porque antes ele podia ser quebrado por qualquer coisa, né, mas agora a gente viu que ele é algo mais além, ele pode ser reconstruído e criado dia após dia.

(...) Pra mim eu não posso dizer que foi difícil porque nós já falamos muito sobre isso, foi algo bom, gostoso, de se lidar, após aquela oficina, após aqueles pensamentos, aqueles sentimentos que pudemos sentir e vivenciar facilitou a responder essas respostas de hoje.

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Na nossa equipe sempre existiu o vínculo né, nós estávamos precisando era justamente de momento desse para aprimorar mais (...) tá abrindo aqui a mente de todos né, e que não tem dificuldades.

Senti todos esses momentos, momentos prazerosos, momentos delicados porque a gente não tem o hábito de falar das coisas subjetivas, a gente não foi trabalhado, a gente tem dificuldade de expressar o companheirismo, de expressar o amor que tem pelo outro, de expressar a solidariedade, e expressar, até, através de um simples abraço. E isso permitiu, (...) essas coisas precisam ser tocadas, que a gente, ao longo do tempo, não sei se a gente se permitiu, ou mergulhou no que o mundo capitalista foi colocando. Colocando sempre os valores humanos abaixo e aquém dos valores econômicos, e a gente vai vendo que tudo o que a gente aprendeu ao longo da vida não tem dinheiro nenhum que pague, e não é o banco de faculdade, não é a formação profissional que a gente tem que vai dando isso! A gente vai encontrando e vem sendo moldado nas vivências que a gente tem com a família com os amigos com a questão religiosa, os movimentos sociais. E isso enobrece a alma, e quando a gente começou, no início era tão difícil tocar nisso que a gente, as vezes, expressava até em choro né?! Era um sofrimento. Hoje a gente pra mim foi uma leveza falar disso hoje, foi uma beleza e prazeroso. É bom você dizer assim que alguém é importante na sua vida porque te lembra isso, porque te ensinou isso, e traz algo que a gente vai carregando para o resto da vida. E acho que até permitiu ver assim a importância que é a gente expressar essas coisas que as vezes a gente ou os outros não dão tanto valor, mas que tem um significado e uma repercussão positiva em todos os aspectos da nossa vida, seja pessoal profissional ou religioso, então a gente falar disso foi muito bom.

A experiência dessa pesquisa pra mim só me proporcionou um enriquecimento, mais ainda, da importância que é a questão afetiva, a gente falar de amor, falar das coisas boas, de expandir isso, e de fazer com que as pessoas possam germinar isso, para que as pessoas também se permitam vivenciar isso, e tornar a vida prazerosa, né, porque foi isso que eu presenciei e vivi aqui nessas oficinas, foi que a vida é prazerosa demais e que a gente se prende a pequenas coisas, muito pequenas e bestas, e tem tanta coisa boa e bacana pra viver!

Ao finalizar esta Oficina foi o momento em que senti que tinha obtido a

permissão de entrar no Portal. Senti também que o próprio grupo fora fonte de

saber que aprofundou mais a compreensão sobre o vínculo, o humano vínculo.

Certamente, o grupo aqui era o próprio dispositivo a gerar conhecimento

como alude Silveira (2005) uma vez que naquele momento o grupo não se prendia

aos papéis de forma fixa, como comumente se estruturam as relações grupais. O

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grupo estava aberto para o novo e se deixou perpassar pelo significado dos 4

Elementos como fonte e inspiração para produção de saber. O grupo pesquisador

era, ele mesmo, um dispositivo, ou seja, uma fonte geradora de saber.

Havia um clima de aceitação para um compartilhar da vida de forma fluida,

sem grandes entraves. O próximo passo seria avançar para refletir sobre o vínculo

como parte do circuito de interrelações do serviço da ESF naquele CSF. E para

isso, senti que havia obtido a permissão do grupo.

3.2.5. Os Vínculos Humanos na Estratégia Saúde da Família.

O olho vê A lembrança revê

E a Imaginação transvê É preciso transver o mundo.

(Manoel de Barros)

Como proposta para esta segunda Oficina utilizei como recurso a técnica

dos Lugares Geomíticos. Eu já tinha vivenciado o uso dessa técnica em duas ocasiões,

quando participei de um curso facilitado por Jaques Gauthier, e como colaboradora

em uma pesquisa sociopoética, ambas experiências, vividas ao longo do meu curso

de mestrado. A técnica foi criada pelo próprio Jaques Gauthier durante sua tese de

doutorado24. Gauthier fala que foi inspirada nas culturas indígenas do Pacífico.

Estas culturas pensam em termos de lugares geomíticos, e sugere que o

pensamento humano parece obedecer a uma lógica geopoética inconsciente,

interpreta o autor. A técnica consiste na criação de um principio diferente, inacostumado,

para gerar a expressão de energia imaginativa das pessoas do grupo. Sendo a forma inacostumada,

é provável que emerjam conteúdos, expressões, imagens inacostumadas, inesperadas. O objetivo é

ver o outro lado da vida, aquele que nossa formação teórica e, mais geralmente, nossa cultura

nativa não permite enxergar. Estranhar para conhecer. (GAUTHIER, 1999, p. 55).

24 A tese de Jaques Gauthier chama-se Educação e Desenvolvimento: as escolas populares Kanak, Universidade de Paris 8, 1993.

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Dei como título para Oficina: Os Vínculos na Estratégia Saúde da Família

(Programação detalhada, no apêndice) que aconteceu em três encontros:

Oficina 2 – Os Vínculos na Estratégia Saúde da Família

Encontro 1

Momento 1 – Boas Vindas e Memória

Momento 2 – Visualização Criativa “Lugares Geomíticos”

Momento 3 - Compartilhar

Encontro 2

Momento 1 – Boas Vindas e Memória

Momento 2 – Análise Classificatória da Produção do Grupo

Encontro Momento 1 – Boas Vindas e Memória

Momento 2 – Análise Transversal da Produção do Grupo

Iniciei com as boas vindas, e com a ajuda do GP fizemos uma memória dos

encontros anteriores. Em seguida, convidei todos para a vivência, trabalhando

novamente com a imaginação por meio da visualização criativa. A narrativa da

“viagem” consistiu em levar as pessoas a percorrem, em sua imaginação, um

caminho que as levaria a um lugar especial, um lugar em que os vínculos fossem

algo bem presente nas relações entre os profissionais do CSF e as pessoas da

comunidade.

Após convidar o grupo para um relaxamento corporal e todos estarem em

uma posição confortável, iniciamos a “viagem”. Por meio de uma narrativa fui

convidando as pessoas para visualizar um caminho, e ao percorrê-lo, encontrarem

uma ponte, um obstáculo, um aliado, e finalmente, chegarem ao lugar, observarem

com atenção um símbolo do lugar. Após a vivência compartilhamos a “viajem”

com direito a muitas risadas e estranhamento.

Agendamos o próximo encontro que seria dedicado a análise do material.

Li atentamente os registros gravados e transcritos por mim, e organizei a fala de

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todos, agrupando por categorias, conforme o caminho percorrido (Quadro com a

sistematização do material produzido pelo grupo no Quadro 5 do Apêndice). Esta

Oficina se desdobrou em mais dois encontros para análise do material, uma

classificatória e outra transversal. A análise classificatória intenciona esmiuçar,

classificar, separar, categorizar as ideias para compreendê-las de um determinado

modo. Em seguida fizemos a análise transversal que consiste em juntar o que foi

separado, e para isso, utilizei a técnica de elaboração de narrativas.

Para a análise desta produção, a compreensão sobre o vínculo seria

direcionada. Eu precisava de algo que tirasse o grupo do lugar comum do discurso

sobre vínculo, quando comumente se alude amizade, confiança, conhecimento. Há

uma tendência geral de ressaltar a positividade das emoções quando abordamos

nossos vínculos.

A intenção era focalizar e compreender o vínculo entre os profissionais e a

população em seus desdobramentos que delineiam um circuito nos serviços da

ESF. Retornei ao grupo com algumas perguntas geradoras, além da primeira

categorização do material, conforme os Lugares Geomíticos. Segue abaixo as

perguntas:

Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um CAMINHO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um caminho? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse uma PONTE, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é uma ponte? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um OBSTÁCULO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um obstáculo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

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Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um ALIADO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um SÍMBOLO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um símbolo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um LUGAR, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um Lugar? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

Estas perguntas, assim formuladas, eram importantes para ajudar ao grupo

não se prender somente aos aspectos positivos da afetividade que sustentam os

vínculos. Comumente, somos mais propensos a ver a si e ao outro, somente como

pessoas altruístas e solidárias. No entanto, a presença de emoções e sentimentos

que efetivam uma cultura agonística, cujo modo de vinculação é caracterizado por

uma rigidez de papéis com permanente vigilância, em que a ordem é mantida por

meio de ameaças e agressões, é também, muito presente nas estruturas sociais

humanas, e se efetivam na organização de estruturas fechadas e hierárquicas que,

comumente, organizam os serviços de saúde, educação, dentre outros, sobretudo,

em um país com história de colonização.

Considerei importante proporcionar ao grupo evocar uma riqueza maior de

emoções e sentimentos que tocam e contornam os níveis de vinculação humana,

buscando não cair em maniqueísmos. Esse cuidado era importante porque foi esse

o caminho que o grupo já tinha vivido quando trouxe o amor universal para

traduzir os vínculos na primeira oficina. Permanecer nesta direção seria o caminho

mais provável, porém mais restrito. O GP já tinha tocado aspectos do modo de

vinculação humana que possibilita uma convivência hedonista, isto é, baseada na

aceitação, no contato, e na solidariedade entre as pessoas. Contudo, como ficou

claro para mim, aquele modo de vivenciar o vínculo estava bem presente na

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comunidade de Vera Cruz, onde fica o CSF dos Inhamuns. Contudo, até que ponto

o circuito do vínculo nos serviços de saúde da ESF integravam formas de

vinculação que efetivam uma cultura agonística e/ou hedonista? De que forma

esses modos de vivenciar o vínculo se fazia, ou não, presente na cultura

organizacional do serviço de saúde daquele CSF?

Análise Classificatória da Produção do Grupo Pesquisador

Iniciamos o encontro seguinte com as boas vindas ao grupo e fizemos uma

memória resgatando os encontros e a produção do grupo. Em seguida, expliquei a

tarefa do grupo: responder as perguntas geradoras com base na imaginação que o

grupo trouxe ancorando nas experiências no CSF. O objetivo era dar concretude e

ancoragem à imaginação a partir das experiências vividas no cotidiano de trabalho

para compreendermos o vínculo como caminho, ponte, obstáculo, aliado, símbolo

e lugar. O grupo foi divido em 3 equipes e, novamente, deixei o grupo livre para

pensar formas como iriam sistematizar e apresentar o trabalho.

O resultado da análise foi muito rico. Percebi que as perguntas ajudaram ao

grupo adentrar a complexidade do sentir humano para dizer de nossos modos de

vinculação. Em sua análise o GP recorreu a linguagem metafórica dos Lugares

Geomíticos e utilizaram analogias para expressar sua compreensão do tema.

O Vínculo-caminho tanto era livre, verde, plano, arborizado, aberto, florido,

como também, era deserto, árido, cheio de pedras, com atalhos e penhascos. O

Vínculo-caminho se transformava: do verde, passava a ser estrada difícil pedregosa,

com chão de terra batida, carroçada. Apesar de difícil, estreito, era perfeitamente

trafegável. Ora acompanhava um penhasco, ora tinha, do outro lado, um verde

muito verde. O GT assim expressou sua análise sobre o vínculo-caminho ancorado

nas experiências do seu cotidiano do CSF.

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O vínculo-caminho pode ser deserto difícil de andar e com obstáculos, quando

cada um trabalha de forma individual e quando um não entende o outro,

quando não existe comunicação. É deserto, difícil de andar com obstáculos,

estreito quando é vazio mecânico, limitado. Quando não se tem uma relação de

diálogo, quando há resistência para o novo. Mas quando se aprende a trilhar

em meio as adversidades, não se deixa arestas.

O vínculo-caminho é livre quando profissionais e comunidade são abertos às

mudanças, quando há uma relação conciliadora. Porém não concordamos que

não existem obstáculos. Podemos ver que o caminho pode ser verde, no entanto,

quando a verdade de um sobrepõe a do outro, pode romper.

O que faz do vínculo-caminho ser verde é a comunicação e o diálogo, quando há

engajamento de profissional e comunidade. É quando tanto o usuário quanto o

profissional se sentem satisfeitos com o serviço oferecido.

O Vínculo-ponte também trouxe várias possibilidades de compreensão sobre

o circuito do vínculo. Os elementos que a imaginação do grupo trouxe sobre a

ponte foram molhados de sentimentos que expressam, em um mesmo pulsar,

medo/coragem, seguro/inseguro, estável/instável. Todas as pontes eram feitas de

madeira. No entanto, havia pontes estreitas sem corrimão, inseguras, que

balançavam e traziam medo e insegurança. Havia outras, largas que davam para

passar sem medo algum, tinham cordas como corrimão por onde se passava

tranquilamente. Outras pontes eram difíceis de enxergar, a ela só se chegava por

outros caminhos. Pontes altas, que apesar do medo da altura se atravessava. Pontes

por sobre águas, com barulho de rios a correr debaixo, feitas de madeira velha e

antiga, mas que apesar da aparência era segura para atravessar. Todos atravessaram

a ponte, e ao analisar o Vínculo-ponte refletiram o seguinte:

O vinculo-ponte é de madeira sem corrimão, estreita e larga, mas jamais deve ser

quebrado, pois a ponte fortalece o vínculo e assegura que vamos chegar onde

desejamos, vamos conquistar o que queremos e juntos somos mais fortes, por

isso, o vínculo é tão importante!

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O vínculo é uma plataforma ou uma ponte de madeira sem corrimão quando a

relação entre usuários e profissionais não é concreta, não há uma confiança entre

os profissionais e a relação se torna estreita;

O vínculo representa um abismo antes da ponte quando há uma enorme

dificuldade de construí-lo, quando se tem medo de que a equipe possa

apresentar-se fechada à conversação. Mesmo assim, os usuários acreditam que

possam chegar até ele, e ele ajudá-los a resolver seus problemas.

O vínculo é ponte quando ele é linear usado pelos usuários para continuar o

trajeto para resolução de seus problemas;

O vínculo-ponte insegura é quando há falta de confiança, expectativa,

permissivismo. Quando o tecnicismo sobrepõe o subjetivo. A falta de confiança

entre ambos [profissionais e usuários] gera medos, deste modo, um vínculo

negativo;

O vínculo-ponte segura é quando se confia em si e no outro, quando o respeito é

mútuo.

O Vínculo-obstáculo teve múltiplas expressões. Os obstáculos que o GP

trouxe em seu imaginário e que impediam a passagem pelo caminho eram: uma

pedra grande, uma parede, um buraco, uma rocha, dois touros valentes, uma

montanha de papel que impedia de enxergar a pessoa do outro lado, uma floresta

de proporções amazônicas. Na análise do GP, tais obstáculos se constituem como

expressão do vínculo quando:

O vínculo passa a ser um obstáculo quando nos paralisa por ser totalmente

dependente um do outro!

O Vínculo-obstáculo é de Pedra quando as informações são distorcidas. É uma

Parede quando separa. É um Buraco quando ambos não acreditam um no

outro, quando não se vêm como pessoa humana, não se olha para o outro. É de

papel quando o papel vale mais que a fala do paciente. Quando a fala do

paciente não existe! É um obstáculo que se coloca como um vínculo, a meu ver

um vínculo muito ruim, porque eu castro a fala da pessoa eu não dou nem

oportunidade de fala pra pessoa, só vou ditando as regras e anotando.

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O Vínculo-obstáculo é uma floresta pode ser também o momento por nós

vivenciado bem antes da Planificação25, porque não se sentava pra analisar

nada, não se conversava entre a equipe, é cada um vivendo na sua, fazendo o

seu fragmento, então, pra mim era uma floresta em que não estava ninguém

adentrando para conhecer é que quando eu me permito conhecer o papel do outro

a função do outro o que ele faz eu permito conhecer esta floresta, esmiuçar, pra

poder trilhar.

O Vínculo-aliado se articula ao vínculo-obstáculo. A figura materna e paterna se

apresentavam como pessoas que apontavam soluções para superar o obstáculo, ou

mesmo, ajudavam com alguma ação. Além dessas figuras arquetípicas a simples

presença de um amigo era a soluções para superar o obstáculo, a figura do marido

como pessoa mais forte que traz uma solução empreendendo uma ação solidária, e

também, pessoas desconhecidas, cuja presença, traz uma solução inesperada para o

problema. O aliado também surgiu como uma ideia, uma corda trazida pelo vento,

um mapa que serve de guia e também as mãos das pessoas da equipe de trabalho

no CSF foram aliados na superação do obstáculo. Analisando o vínculo-aliado a

partir das experiências vividas pelo GT em seu cotidiano de trabalho o grupo assim

se expressou:

O vínculo-aliado é quando existe cooperação mútua [entre profissionais e

usuários];

O vínculo-aliado como o Pai e Mãe – pai é aquela pessoa mais dura, mais

centrada, mãe eu vejo aquela pessoa mais acolhedora, aquela que dá soluções

pras coisas, é um racional amoroso. O pai é amoroso também, mas ele de uma

certa forma fala com propriedade para passar segurança. Então, eu vejo que tem

esse vínculo quando, por exemplo, as pessoas mais idosas elas são escutadas,

porque pela experiência de vida que elas tem, pela história que elas construíram

independente de saber científico, a vivência dela por si só já dá esta bagagem, e

então acho que quando tem essa relação, de pai e mãe com as pessoas idosas se

encaixa como se fosse o pai e a mãe, aquela que orienta, você escuta se coloca

25

Planificação é um curso que a secretaria de Saúde oferece para todos os profissionais da atenção básica em parceria

com o Ministério da Saúde.

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como no papel, não só como o profissional que sabe, mas o profissional que

também tá no processo de aprender, aprender com o saber do outro.

Vínculo-aliado [como figura do marido], o marido eu vejo como

companheirismo, porque marido é um companheiro, embora alguns não sejam,

mas é cúmplice e está ali pra ajudar, pra sonhar junto, pra está ali incentivando

e você incentivando a ele. Esta relação eu vejo que é importantíssima entre

profissionais e usuários porque, se você tem os usuários e os profissionais que

caminham lado a lado, eu acredito mais nas coisas dando certo, porque eu deixo

de fazer as coisas para alguém, mas eu passo a fazer as coisas com alguém.

O vínculo-aliado é corda quando é um conselho, uma palavra amiga pode ser

uma corda que puxa. Cumplicidade. Às vezes a gente se lamenta muito, e se

lamenta por não conseguir determinada coisa, e fica na lamentação, e não faz

nada pra sir, só lamenta, e às vezes, o outro chega e dar um puxão de orelha e

diz que é possível sim! Por isso ... por isso... e por isso! Eu acho que é uma

corda que lhe dá pra você permitir sair de lá de onde vocês tava, sair dos muros

das lamentações e passar pro muro das ações, e reverter.

O Vínculo-aliado é as mãos dadas das pessoas da equipe quando há parceria

entre colegas de trabalho. Eu vejo, quando, por exemplo, o problema que é de

fulano não é de fulano é problema do território, da equipe, é como se fosse, eu

vou buscar soluções para poder resolver, eu acho que isso é uma relação de

vínculo e muito boa. Quando eu substituo o pronome minha, e meu passa a ser

nosso, os desafios são nossos, os problemas são nossos, como também, os louros

são nossos.

O vínculo-aliado é um amigo quando você vivencia algum problema, alguma

angústia, e você conversa com o paciente.

O vínculo com o usuário como amigo eu tive em um momento muito difícil. Um

período que eu tinha uma tia doente em fortaleza que passou quase três meses e

eu assumi, além do agente de saúde em, eu assumi a classe também como

presidente da associação, então foi um período muito difícil, em que eu tinha às

vezes, o que todo mundo tinha pra fazer num mês, negociações com coordenação,

com a minha enfermeira, eu fazia, geralmente, numa semana, uma semana e

meia, pegando os finais de semana, e entrava pela noite, então, eu vi a amizade

das mães dos menores de 2 anos da minha área muito forte neste período,

porque eu ligava, eles sabiam do que eu estava vivendo, a lei não me daria

direito pra ir acompanhar minha tia que só tinha uma filha única, uma doença

muito rara que passou quase três meses para descobrir, é tanto que ela não

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sobreviveu. E era só eu ligar e eles verem aquele momento que eu estava vivendo

eles eram muito solícitos comigo, sabe! D‟eu ligar e dizer assim olhe eu gostaria

que vocês trouxessem as crianças pra minha casa tal hora, e eu nem precisava

ligar pra todas, eu ligava pra uma, e elas mesmo, que chamavam as outras, e

iam pra minha casa no horário marcado. [E porque tu acha que elas iam?]

Eu acho que ela iam pela relação de respeito, de vínculo e de amizade, sabe,

porque eu já sentia isso, mas eu senti isso bem mais forte neste período, sabe.

Deles se preocuparem, eles ligavam pra mim, diziam que eu não se preocupasse,

qualquer coisa que eu chamasse eles iam, mobilizavam eles mesmo

mobilizavam a área, se articulava direitinho, e eu cumpria. Isso me sentindo na

obrigação eu já fazia, eu não me importava com horário. O horário é até 5, mas

se uma família dissesse assim “foi Deus que mandou você aqui” eu sentia na

obrigação, só por aquela palavra, de ouvir, embora eu não tivesse nada pra

dizer, mas pelo menos ouvir, eu me sentia na obrigação de ouvir sabe. E eu acho

que isso estabeleceu um vínculo muito forte e grande amizade, e quando eu

precisei eles me ajudaram muito, eu até costumo dizer que eu recebi uma

amostragem de uma amizade sincera mais deles do que dos meus colegas, que

não entendiam porque que eu tava trabalhando no domingo, e diziam que era

porque eu queria ser muito responsável e muito organizada, e de não entender

porque que eu ia a noite, eu tendo uma filha, com menos de dez anos de idade

pra criar e eu deixar com meus pais, sabe. E eles não compreendiam, mas as

minhas famílias compreendiam. Teve um elo de amizade muito grande, é tanto

que até hoje, sabe, assim de compartilhar as coisas que nem compartilha com a

própria família, mas compartilhavam comigo, acho que foi um vinculo de

amizade muito grande porque, se não, não faziam isso.

O vínculo-aliado como mapa são as pessoas que você delega dentro da

comunidade, não tem mapa melhores que eles, que é quem lhes situa de tudo que

acontece dentro da comunidade. Você chega na comunidade, porque, por

exemplo, a comunidade que eu peguei agora, e você já estabelece as pessoas que

eu já tenho mais vínculo uma amizade que já tinha, aí eu já repasso alguma

informação ou elas que me dão alguma informação de alguém que está doente,

alguma coisa que aconteceu na comunidade e você já vai direto. (...) precisando

mais, e você já vai. São pessoas que você descobre que tem informação e

liderança. A gente descobre tudo, rezadeira, você descobre vexado. Pra você

saber de diarréia, por exemplo, de alguma coisa que você ficou de ver, gravidez, é

vexado! Até as fofoqueira, elas são aliadas. Pra mim descobrir de uma gestante,

tinha uma gestante, e eu já tinha um vínculo de amizade com uma pessoa, e eles

me repassaram, e eu disse, pois daqui eu vou agora, lá. Ah! já sei tem uma

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turminha delas, eu digo: é lá! Aí eu já fui, mas tinha um vínculo ali já

estabelecido.

O vínculo-aliado também aqui é o mapa da área da abrangência da equipe dos

profissionais saber que onde é região critica saber dos problemas da equipe.

Durante a viagem imaginária com a Visualização Criativa havia um lugar de

chegada, cuja entrada, havia um símbolo. Foi sugerido na narrativa cada um prestar

atenção que símbolo estava na porta de entrada do lugar do vínculo. Nos relatos,

alguns chegaram à própria Unidade de Saúde em que trabalhavam, e o símbolo era

uma placa branca com as iniciais ESF. O símbolo também estava em um prédio

com as letras ESF pintado de amarelo, tipo caiado, de cor quase laranja, e tinha as

inicias ESF em vermelho. Os símbolos estavam nas portas de lugares de muita paz,

rodeado de florestas e muito agradável. Um outro lugar de chegada diferente foi

uma oca verde, indígena, tinha como símbolo uma placa verde com uma flor como

seta. Em quase todos os lugares de chegada havia festa para receber quem estava

chegando. O lugar de chegada também foi representado pela casa materna/paterna.

Nos lugares de chegada sempre havia pessoas conhecidas, familiares, amigos do

trabalho, e também, pessoas desconhecidas. Algumas pessoas do grupo não

conseguiram chegar ao lugar, ou não lembravam que lugar havia chegado. Em

relação ao lugar de chegada e ao símbolo que representava o lugar do vínculo entre

profissionais e população o GP fez a seguinte análise:

O vínculo é uma área coberta com árvores grandes e um lugar bem verde,

quando ele tem forma, e é agradável. O vínculo é uma placa branca quando ele

é notável e fácil de ser identificado; O vínculo é um símbolo quando ele tem

representatividade quando ele é concreto. Os elementos da imaginação trazem

significado de notoriedade, paz, beleza “que o vínculo tem forma”.

O vínculo é um prédio rodeado de floresta quando os usuários sentem a paz e o

conforto de estarem próximos à equipe. Vínculo é ponto de referencia é o maior,

é onde as pessoas vão pra se cuidar, prevenir porque não é só tratamento é

prevenção, ali eu sei que vou e encontro algo;

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O vínculo passa a ser símbolo quando existe união entre usuário e profissional

todos trabalhando em prol de um bem comum à saúde. O vínculo é o lugar de

chegada quando os usuários visualizam que a unidade também é sua casa e que

ele também tem responsabilidade para com a mesma e respeito com os

profissionais. Quando o vínculo é sua própria casa, quando ele é um lugar que

você recebe as pessoas com festa. É aconchego, onde se sente segura, sempre tem

festa;

Esse lugar... eu vou compreender a minha própria casa, como uma casa que

acolhe, que abraça, uma casa que eu sei que vou chegar e as portas vão se abrir

pra mim, pra mim família, vínculo como casa seria isso. Tem família junto, de

fácil acesso. Se fosse um lugar seria de fácil acesso e seguro, e lá encontro um

rosto que, as vezes, no momento que você tá precisando, você encontra um rosto e

uma palavra, já lhe traz satisfação e segurança.

Se o vínculo é entendido como um Lugar é esse lugar que acolhe, que abraça e

que faz festa quando eu chego. Eu vejo isso aqui, um lugar onde se abraça, onde

se comunga, onde se chama pelo nome, por isso, que eu tô aqui. Onde você chega

e você sente assim, “esse lugar aqui, me querem bem”, então, acho que esse

vínculo entre profissional e usuário quando é essa casa é essa festa é um lugar

onde me dá prazer e se tem esse prazer é bom demais, é ótimo, é muito bom.

Tanto como estratégia, como a família em si, como a minha casa, como a ESF.

Eu acho que é isso que as pessoas buscam também na ESF porque tem pessoas

que vão uma, duas, três vezes, às vezes, vê, tem algumas pessoas que só de olhar

já lhe transmite um aconchego, as vezes, ela tá buscando isso. Chega lá pra ir

buscar aquele aconchego, por causa que tá sozinha solitária em casa, mas que

também reflete isso. Esse lugar!

Após esta análise, no momento das equipes compartilharem, as pessoas

narraram algumas cenas interessantes para exemplificar suas ideias. Foi neste

momento que me veio uma ideia de solicitar ao GP que, a partir das análises do

vínculo-caminho, ponte, obstáculo, aliado, símbolo e lugar, elaborassem narrativas

com as histórias que haviam contado. Essa seria a forma a partir da qual

poderíamos fazer a análise transversal do material. O grupo topou de pronto e

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elegemos algumas histórias dentre as que foram comentadas, para expressar a

vivência do vínculo entre os profissionais e a população do CSF de Inhamuns.

Elegemos quatro histórias para as quais demos um título para cada uma. O

GP assumiu a tarefa de desenvolver a narrativa a partir dos fatos ocorridos. As

histórias receberam os seguintes títulos: 1) A Confiança; 2) O Mal Entendido; 3) A

Flexibilidade do Médico; 4) Solidariedade.

Análise Transversal da Produção do Grupo Pesquisador

As narrativas iriam ajudar-nos na segunda análise do material. Uma análise

de tipo transversal em que se junta o que fora separado para evidenciar uma nova

compreensão. A aposta foi que estas narrativas pudessem evidenciar a forma como

as relações de vínculo eram vividas no circuito que envolve as necessidades de

saúde da população. Apostava que as narrativas pudessem evidenciar, isto é, trazer

mais para consciência do GP os sentimentos que estão envolvidos neste circuito de

relações, e que modos de viver a afetividade estava presente e que padrões de

relações são preponderantes. Segue as histórias escritas pelo GP.

A CONFIANÇA

Em um determinado dia, ao chegar ao serviço, uma funcionária da unidade, foi procurada em sua casa por uma senhora por nome de D. Lúcia que pedia intervenção para sua mãe, idosa que supostamente desenvolvia um nódulo na mama, e que não concordava em receber consultas do médico.

No dia seguinte a funcionária da ESF se deslocou até a residência da Sra. Mãe de Dona Lúcia que conversando e mostrando a necessidade de levar ao conhecimento do médico, foi aceito e no mesmo dia, foi a ESF e foi feito todo o atendimento como consultas e encaminhamentos.

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SOLIDARIEDADE

Ao chegar ao nosso PSF vindo de outro município, o médico tomou

conhecimento do histórico de uma usuária quando a ACS de uma

determinada área, procurou o serviço para apresentar resultados de exames

de uma Senhora. Ao fazer a leitura, o médico avaliou sugestão para CA

de mama, e encaminhou para consultas em Fortaleza. Por se tratar de

uma paciente que tinha resistência, por ser restrita ao município. A sua

ACS atendeu de prontidão ao convite desta usuária em acompanha-la

nesta viagem à Fortaleza. Embora houvesse a boa vontade da ACS esta

não tinha conhecimento em Fortaleza, e isso, dificultava um pouco a viagem

um pouco a viagem.

Ao tomar conhecimento, o médico que na data da viagem, se encontrava de

férias, se comprometeu em espera-las em Fortaleza e acompanha-las

durante o período que estas permanecessem lá. E assim foi. Tudo ocorreu

conforme o combinado num grande ato de solidariedade.

A FLEXIBILIDADE DO MÉDICO

Era uma tarde mais ou menos às 14:00h da tarde, o médico acabara

naquele momento o atendimento do turno manhã. Não haveria

atendimento no turno tarde por motivos de força maior. Antes de retornar

para Tauá, o médico iria almoçar, e neste meio tempo, chega uma usuária,

D. Neta, querendo apresentar resultados de exames laboratoriais de sua

sogra. Ao procurar uma funcionária da ESF procurando por atendimento

foi orientada que esta retornasse no dia seguinte. Após esta conversa, a

funcionária saiu para almoçar.

Quando o médico saía da cozinha após o almoço, foi abordado pela D.

Neta que ainda permanecia na ESF insistindo em apresentar seus exames

e conseguiu, pois o médico a atendeu, marcando de ver os exames em visita

domiciliar com a paciente no dia seguinte.

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O MAL ENTENDIDO

Em um determinado dia da semana em dias de atendimento normal, onde

muitas pessoas procuraram por atendimento, entre demanda agendada e

demanda espontânea, uma senhora procura a recepção do ESF querendo

falar com o médico sobre sua mãe idosa e não se encontrava ali para a

possível consulta [a senhora idosa que precisava de atendimento].

Ao ser informada pelas atendentes sobre não ter mais fichas para o

atendimento, mas que ela permanecesse ali que, entre um intervalo e outro

das consultas, daria para ela falar com o médico.

Em alguns instantes o médico sai do consultório para obter alguma

informação condizente ao atendimento que este realizava naquele momento

e ao ser indagado pela Senhora sobre a patologia tal de sua mãe [a

senhora idosa] recebeu uma orientação devida do médico, de acordo com

a sua exata pergunta.

Ao sair do prédio da ESF a Senhora começou a espalhar insatisfação no

atendimento, o que de imediato, procuro a sua ACS e esta esclareceu sobre

o ocorrido, o que de nada adiantou, pois a Senhora, após alguns dias,

procurou a SMS [Secretaria Municipal de Saúde] e queixou-se do

atendimento, não colocando a verdadeira versão do ocorrido.

Passado alguns dias a Senhora encontrou uma das atendentes que teria lhe

atendido, mostrando arrependimento por ter tomado a atitude de denunciar

os serviços da ESF, e o arrependimento oi mais longe. Em uma Pré-

conferência de Saúde que foi realizada nesta localidade, ao ser aberto a fala

aos comunitários presentes, a Senhora fez uso do microfone e elogiou os

trabalhos da ESF local.

Ocorreu que no próximo encontro do GP nem toda equipe estava

presente. O médico da equipe estava fazendo visitas domiciliares, e nos dias

seguintes iria sair de férias e, em seguida, se desligaria do município. A equipe já

havia compartilhado que ele não mais retornaria para o município, por decisões

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pessoais. Da mesma forma, a enfermeira da equipe também não estava presente

neste dia por conta de outros compromissos em Tauá. O município vivia a

realização das pré-conferências de saúde, e o curso de Planificação dificultava o

agendamento de encontros com o GP. Em razão das dificuldades de novamente

reunir o GP completo conversei com as pessoas presentes. Como não gostaria de

perder a oportunidade de conversar com o médico da equipe sobre as histórias,

tendo em vista o seu envolvimento com quase todas as narrativas escolhidas pelo

GP, resolvi fazer uma entrevista com ele. A oportunidade me veio neste mesmo

dia, em razão do convite, estendido à mim, para um almoço de despedidas do

médico da equipe, ofertado pela agente de saúde, em sua casa, em Vera Cruz.

Inicialmente, fiquei apreensiva com a impossibilidade de conversar com o

grupo completo, em razão da agenda do município e das pessoas. Por outro lado,

compreendi depois, que as pessoas se sentiram mais a vontade, e tivemos mais

tempo para aprofundar sobre as narrativas.

Elaborei uma pergunta geradora para refletirmos sobre o vínculo a partir

das narrativas: o que essa história revela sobre o vínculo entre profissionais da ESF

e a população? Entretanto, houve também espaço para esclarecimentos sobre as

histórias que trouxeram ricas reflexões e permitiu aprofundar o pensamento sobre a

vivência do vínculo pelos profissionais, fazendo emergir daí uma compreensão do

fenômeno no âmbito da ESF.

Sobre a narrativa “Solidariedade”

Uma das questões que me interessou esclarecer nesta história era

compreender a visão dos profissionais a respeito da assertiva que utilizaram para

referir-se a pessoa com a suspeita de CA de mama: paciente que tinha resistência.

Quando essa história foi relatada durante o encontro anterior do GP e, mesmo

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quando foi escrita na forma de narrativa, a senhora da história continuou sendo

referida como uma paciente resistente, mesmo não oferecendo qualquer resistência ao

tratamento, conforme a história. A palavra era utilizada como uma adjetivação, cujo

sentido dado ficava desfocado do significado corrente da palavra, que segundo

consta no dicionário, é oposição, defesa contra um ataque. Sobre essa assertiva, as

reflexões e comentários do GP foram os seguintes:

(...) essa resistência é aquela pessoa que, mesmo precisando, procura pouco o serviço de saúde. É o caso dela.

Esses exames já tinham sido solicitados pelo médico anterior [um médico que trabalhava no CSF de Inhamuns anterior ao atual] e que tinha parado. Não sei por que tinha parado! Foi que a agente de saúde trouxe a história para o médico [o atual], por inciativa dela, e ainda acompanhou ela numa consulta pra mostrar os exames.

Indaguei, na sequencia, sobre o porquê aquela paciente era chamada de

resistente, se em nenhum momento ela havia feito qualquer objeção em ser

atendida, ou se recusado a ir à Fortaleza, quando foi encaminhada. O GP

esclareceu o seguinte:

Não! Eu acho que ela tinha dificuldade.

(...) ela era uma pessoa que mora sozinha não tem ninguém por ela, tem uma filha que não mora com ela, mora em outro local, ela mora sozinha na casa dela (...) e nunca saiu de Tauá e era a primeira vez que ela saia do município de Tauá que foi a Fortaleza, ela iria ficar perdida.

A equipe foi vendo a própria resistência, a própria restrição dessa pessoa. Ela não sai sozinha, é só aqui mesmo no município, ela não é uma pessoa que é acostumada viajar.

Percebi que a palavra restrição era usada como um sinônimo de resistência

para esclarecer seu sentido. O uso desta palavra (resistente) é bem comum no

cotidiano dos profissionais da ESF em diversos CSF em que tive oportunidade de

convivência. E, geralmente, a palavra é usada para referir aos pacientes que não

obedecem às prescrições, sobretudo, as pessoas com diabetes e hipertensão que

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precisam fazer uso de medicação diariamente, e também fazer dieta. Insisti um

pouco mais indagando se, para aquele caso, seria essa a palavra adequada, porque

percebia que a senhora não resistiu ao tratamento. O GP assim refletiu:

(...) era uma falta de apoio. Quando ela se sentiu apoiada, quando ela sentiu e percebeu que tinha um suporte, ela se mostrou disponível, até então, ela não tinha percebido nenhum tipo de apoio ao problema dela. Então, eu vou dizer duas palavras: era a falta de apoio que ela, até então, não tinha.

Existia uma rede apoio. Se ela soubesse que precisaria ir sozinha ela não iria. Estaria até hoje esperando que alguém resolvesse o problema por ela. É uma senhora idosa, analfabeta, que não sabe ler, não iria para Fortaleza não tinha como ela fazer isso.

Resistência é uma palavra que responsabiliza a pessoa sem razão e o contexto não é isso, tem uma lógica, uma razão de ser: o fato dela nunca ter saído de Tauá, o desconhecimento da doença (...), mas ela não estava com medo da doença, pelo contrário, no dia que fui conversar com ela, pessoalmente, [médico] ela me falou que, ela é uma pessoa religiosa e que, tinha sido curada. Ela tava muito tranquila, muito tranquila em relação ao problema dela (...). Não havia nem medo nem resistência porque ela tinha certeza que tinha sido curada.

Percebi que, mesmo esclarecendo que não havia resistência para o caso, o

GP continuava usando a palavra. Compreendi que talvez o uso do termo se a

necessidade das pessoas em fazer uso de termos técnicos para referir algo em uma

paciente, porque mesmo diante da constatação de não haver nenhuma resistência,

as pessoas evocavam outro significado para o uso da palavra não importando a

contradição com o seu significado corrente. O que me parece é que o uso do termo

paciente resistente estaria no rol da terminologia da saúde, talvez mais como jargão, do

que propriamente um termo técnico. Conforme tenho percebido seu uso em outros

contextos, ou melhor, em outros CSF de outros municípios, percebo que o uso do

termo é feito a partir de uma visão unilateral dos casos, porque a resistência é

pressuposta pelos profissionais sem, geralmente, contextualizar, por

desconhecimento do contexto de vida das pessoas, sem uma busca de compreender

o porquê da resistência. E isso passa uma ideia de responsabilização da pessoa que

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se recusa a ser atendida. No caso da história, como ficou claro o contexto de vida

da paciente que ela não tinha resistência e sem o apoio da equipe, ela não iria a

Fortaleza fazer o tratamento.

Continuamos o diálogo sobre o caso com mais duas perguntas: por que a

equipe se mobilizou para acompanhar a paciente até Fortaleza? E o que esta

história revela sobre o vínculo entre os profissionais da equipe e a comunidade?

Sobre isso o GP refletiu:

Visto a necessidade, por se tratar de uma pessoa carente de cuidados, que a equipe através da agente de saúde, fez essa mobilização.

A equipe se mobilizou porque havia a necessidade de buscar a solução do problema dela, que poderia mata-la. E nossa equipe tem responsabilidade, e se tá nas nossas mãos o poder de fazer a diferença, e a gente não iria se omitir de usar esse poder, é uma responsabilidade nossa.

(...) Eu continuo médico quando eu tô de férias, eu sou médico deles durante as minhas férias na noite, no fim de semana, e não deixei de ser médico. Eu compreendo que isso não é o comum ou o usual.

O que a história revela do vínculo?! (...) uma compreensão, o poder da palavra, da conversa, da explicação melhor em relação a seguir os problemas de saúde, uma palavra bem dada e encaminha, ela vai ser bem aceita. Uma palavra bem dada é uma palavra (...) em que se mostra aberta a ouvir, a aceitar o profissional em relação a ela, o profissional se colocar aberto pra falar com franqueza e clareza, em um linguajar de forma que entenda, e explicar tudo e trazer solução. A gente não trouxe só o problema mas uma solução pra ela.

(...)[a história] revela que há um vínculo bem aberto, não é uma coisa fechada, porque veio fazendo esse círculo, era conhecimento da agente de saúde. A agente de saúde trouxe ela, porque se a agente de saúde não tivesse esse vínculo com ela, também teria dificultado mais um pouco, teria sido preciso levar mais alguém para fazer esse encaminhamento dela até a unidade. Eu acredito que ela não teria vindo.

Eu acho que isso aí é uma definição verdadeira do que é vínculo, porque não houve dificuldade, e nenhuma resistência por nenhum profissional em hora nenhuma. Quando a agente de saúde tomou conhecimento do caso, abraçou a causa, se encaminhou de trazê-la, de vir com ela, não só de encaminha-la, mas acompanhar pra vê o andamento da coisa, e que ao colocar pro médico e ele vê, de prontidão, abraçou a causa. Ele estava de férias e se comprometeu de

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acompanhar na rodoviária, levar ao hospital, aguardar a consulta e leva-las de volta. Vai além do atendimento é solidariedade.

Sobre a narrativa “A Confiança”

Em relação a essa narrativa as reflexões trouxeram outros aspectos sobre o

vínculo, revelando sua multiface e uma ética exigente. A história envolvia

diretamente a atendente de farmácia, que foi a pessoa que convenceu à senhora ir à

consulta médica. Um ponto que achei interessante tocar era que, comumente, esse

convencimento, era esperado que fosse feito pela agente de saúde da área. De

acordo com a narrativa a profissional que foi chamada para convencer a senhora foi

a atendente de farmácia. O GP elaborou ricas reflexões sobre isso, sobretudo, com

a colaboração da própria atendente de farmácia que integrava o GP. Segue abaixo, a

análise transversal do vínculo a partir desta narrativa:

Eu acho assim que pra você ter um vínculo com a equipe a questão da confiança, e eles confiam, independente qual seja dos profissionais que pertence a equipe, dependendo do caso, eles sabem quem chamar, com quem conversar, às vezes, é por questão de vizinhança, de afinidade eu acho, que meu problema tem que ser repassado para essa pessoa, que eu acredito que solucione. Houve uma afinidade com a Salete [atendente de Farmácia], a família identificou a Salete como essa pessoa da equipe com capacidade de resolver.

Ela [a atendente de farmácia] foi clara, franca, sincera com a paciente, e dizer pra ela que a gente oferecia nosso apoio, nosso suporte.

Dependendo de a gente ter um vínculo, mas, às vezes, pra aquela determinada doença, ele não acha que é aquele profissional que vai solucionar, vou procurar aquele outro ali, que ele tá lá mais perto, por exemplo, nó agente de saúde, nós estamos aqui bem mais próximos das famílias e mais distantes da unidade porque de manhazinha o que eu tenho que fazer é ir direto pras família. A Salete não! Sai da casa dela direto para unidade. A Ediene [técnica de enfermagem, integrante do GP) vai direto pra unidade e nós não, tamo mais na ponta. Eu acredito que ela tenha deduzido que além de ser irmãs de igreja, já facilitou esse contato. A Salete tem o contato direto durante o dia acolá, então ela pode indagar o profissional lá, ela tem mais acesso a eles do que eu que tô aqui fora, porque eu vou chegar lá eu vou dá meu nome pra mim se consultar. E que, na verdade, não era uma consulta, mas sim, ela queria contar

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o que estava acontecendo né. (...) Cada profissional tem sua profissão determinada.

Eu até citei naquele caso, no outro dia que nós estivemos juntos [Oficina do GP], que ela sempre me chama de minha enfermeirinha [refere a atendente de farmácia da unidade]. Por quê? Porque ela tinha tido um problema recente de pele, e que estava necessitando de cuidados, e como ela é uma idosa, a gente faz isso em casa.(...) e ela sempre ao me ver passar pela rua, ela não vinha aqui, ela perguntava: „tem o meu remédio?‟ „Tem!‟ Eu levava, por ser uma idosa. Eu sempre tive aquela atenção de procurar saber como é que ela tava e tudo! E assim, eu acho que é algo muito pessoal dela! Eu não sei dizer porquê! Eu não sei!

“E porque você acha que ela mudou de ideia e veio para o atendimento?” Indagação feita por mim diretamente para a profissional protagonista da história.

Eu acho que foi por essa própria atenção, esse respeito, ela sempre mostrou um carinho a mim, eu acho que é algo bem dela! Eu não sei dizer, porque, se for ver a questão da agente de saúde, eu seria hipócrita de dizer que eles não olham com bons olhos esses casos, né! Eles orientam direitinho, fazem aquela abordagem de busca ativa. E eu acho que é algo bem dela!

Eu acho que é uma atenção incondicional, eu acredito que atenção incondicional é aquela que você tem tanto no seu horário de serviço, como independente da sua hora. Você passa a noite, você cumprimenta né! Principalmente, aquele período que a pessoa tá necessitada daquele atendimento, (...), mas assim, esse carinho por ser uma pessoa idosa, não era só naquele dia, há muito tempo, né, por mais que eu não seja daqui, sempre eu (...) tenho esse carinho por ela, mesmo ela não sendo nada da família. Eu passo e tenho a preocupação de perguntar como é que tá, se tá tudo bem! Eu acredito que seja essa atenção.

Eu fui lá porque a filha dela me procurou, eu fui lá. Eu acho que, por a filha vê, essa atenção, saber que ela (...) aqui e acolá, eu estava lá, passava na calçada, não de viver na casa, e por eu já ter feito aqueles procedimentos de limpeza, nos ferimentos e tudo. Eu acredito que não fosse nem por saber exatamente que eu convenceria ela, mas eu acho que seria arriscando, seria uma opção, né, como ela já tinha tentado convencer e não conseguiu, então apelou, foi um apelo, vou tentar com a Salete.

Após esses esclarecimentos e reflexões, ao retomar a pergunta geradora (o

que a história nos revela do vínculo entre profissionais e comunidade?), o GP fez a

seguinte análise:

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Na realidade (...) essa palavra [vínculo] existia, mas pra nós, embora houvesse, na realidade, aqui, o vínculo, (...) o verdadeiro significado dela, tava como se tivesse no armário, estava arquivada. A gente não sabia que isso seria uma coisa tão a ser trabalhada e de tamanha valia, a gente nunca tinha se voltado para isso.

(...) revela um verdadeiro sentido do vínculo (...). É uma palavra de tanta valia que você se sente realizada quando você sabe que você foi procurada né, que as pessoas estava tendo uma certa resistência e que você teve esse poder de conversação, e de convencer a pessoa a procurar o atendimento médico.

Esse poder do vínculo que saiu do armário, que lhe dá um poder, que poder é esse? Como você entende esse poder que você passou a enxergar quando começamos a conversar sobre isso e tirar isso do armário?

É um poder de aperfeiçoar aquilo que você já fazia antes, né. Só que, de uma maneira que, digamos assim, sem saber o verdadeiro sentido da palavra, (...) você não trabalhava essa palavra. Então, esse poder do vínculo ele dá só prazer, quanto à mim, de continuar fazendo, fazendo mais, de se abrir mais pra obter esse vínculo com as pessoas.

Até que ponto esse vínculo te ajuda no trabalho enquanto atendente de farmácia ou ele te atrapalha? Esse poder no sentido que você tá trazendo? Indaguei novamente.

Até agora, no momento, enquanto atendente de farmácia, ele tem me ajudado, (...), porque nele você está aberto de acolher bem, receber bem, mas nele também você tem liberdade de colocar os limites da coisa, porque se chega uma pessoa e procura por um medicamento, e a pessoa não tá com a prescrição em mãos, então, ele lhe dá uma garantia, lhe dá uma liberdade de você esclarecer a pessoa, os limites: „essa medicação não pode ser liberada, porque você não está com a prescrição em mãos‟. Ele lhe dá poder pra você encaminhar essa pessoa (...). Então, quanto a mim, esse vínculo só tem me ajudado porque ele tem me embasado, ele me dá bases pra mim falar com a pessoa e ser entendida.

O vínculo me ajuda a ser entendida pelo outro. Que não só nesse vínculo eu posso ceder! Não! Eu tenho esse vínculo com a pessoa, eu tenho que ceder toda hora?! infligir as normas!? Não! É ao contrário! Eu tenho esse vínculo, e eu tenho liberdade com a pessoa pra seguir as normas. Porque muitas pessoas, a gente vê no nosso dia-a-dia, as pessoas vem aqui pra outros fins, pra só se beneficiar. Assim, “eu sei que uma coisa não pode ser liberada, mas como eu tenho conhecimento com uma certa pessoa, eu vou lá, e peço, e ela vai me liberar, embora não podendo, porque ela é minha amiga!” Então, o vínculo, ele é muito importante, mas quando ele é bem usado! Porque em todas as questões existem regras, embora estas regras tenham a suas exceções. Tem pessoas que chegam

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aqui, dizem: „Ah! Eu sei que você não pode, mas tem como?‟ Vamos analisar o caso! É uma dipirona?! É um captopril?! É um paracetamol?! A gente sabe do histórico dessa pessoa? Se costuma fazer uso disso? Estamos sem médico no momento? A febre a está muito alta? (...) Então é uma palavra muito bonita, é como eu digo, a gente fazia, mas não tinha conhecimento da plenitude da palavra.

Pode ser usado tanto pra cumprir as regras quanto para infringi-la. O profissional tem que saber até onde eu posso utilizar que vai beneficiar a mim e aos outros, porque eu não posso pensar só em mim, e quanto ele vai prejudicar os outros também! Vai prejudicar o meu trabalho, vai prejudicar o trabalho do outro né. (...) A gente costuma muito debater isso nas planificações. É feito esse aperfeiçoamento, com todos os profissionais com toda equipe, nível superior, nível médio, pra que se venha falar a mesma língua. Quando eu falo aqui uma coisa que é norma, que chega bem ali, que outro distorce, porque tem um certo vínculo com a pessoa, eu não uso essa palavra como vínculo né!. Ela tem outro significado. É uma coisa bem isolada, não é amizade, não é vinculo, eu não teria uma palavra agora, mas uma coisa eu sei, o trabalho do outro deve ser respeitado em todas as suas dimensões.

Que tipo de vínculo seria esse? Que diferenças há entre eles?

Esse vínculo, ele nos torna igual já que a gente trabalha com o SUS, eu acredito quando você leva em prática os princípios do SUS. Quando você passa a atender com equidade levando em consideração todos os princípios, mas nesse caso, na história da “Confiança” que foi diferente, tanto por eu fazer parte da equipe, mas tinha mais um porém, eu ser uma pessoa da comunidade. De estar mais próxima, diferente de um profissional superior que vem lá de fora que está aqui por um certo período. Eu acredito que isso dificulta, mas quando há o verdadeiro vínculo (...) ele facilita, embora há essa diferença de vínculo, ele não complica porque o que aconteceu? A agente de saúde tomou conhecimento, e ela trouxe ao conhecimento do médico, então, há essa ligação, há esse rodízio que a gente faz, a gente que está na comunidade, que tem mais conhecimento, e que pode levar isso ao conhecimento do médico, então, eu acho que é benéfico, ele ajuda, embora aja essas limitações, a gente tenha mais um grau de vínculo maior, e eles menos, com algumas pessoas, mas isso não atrapalha.

Seria proximidade ou vínculo? Porque o vínculo teria uma medida que poderíamos medir como maior ou menor? Por outro lado há uma diferença de quem mora e de quem não mora na comunidade. Que palavra a gente poderia usar pra dizer dessa diferença que não fosse pra medir, porque não seria uma palavra que se mede, que palavra traduziria?

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Acho que vai na proximidade. No momento, a palavra exata, não sei, mas percebo que é diferente! Acho que a diferença é na convivência, um maior período de convivência aí. Acredito que sim, o que diferencia é a convivência.

Sobre a narrativa “O Mal Entendido”

Essa foi uma história que mobilizou toda a comunidade e toda equipe em

função da denúncia/queixa que a pessoa da comunidade fez da equipe à Secretaria

de Saúde do município. Como na narrativa conta que a senhora foi denunciar a

SMS sem dar a verdadeira versão do corrido, antes da pergunta geradora, busquei

esclarecer o que gerou o mal entendido, e porque a pessoa se mostrou arrependida

quando elogiou a equipe publicamente. A narrativa trouxe à tona outros elementos

do vínculo como a abordagem de família e os limites da responsabilidade do

cuidado. Sobre esse caso o GP trouxe a seguinte análise.

A não busca de orientação correra por parte do acompanhante [o que gerou o mal entendido]. Ela me abordou no caminho quando tava entrando no consultório, e me abordou, me fez uma pergunta, e nessa pergunta que ela fez, eu respondi, e segui meu caminho em direção ao consultório, e ela tomou aquilo como um atendimento, me parece. Essa abordagem que ela me pegou numa conversa de corredor, ela tomou como atendimento, que, na verdade, não era nem pra ela, era pra mãe dela, (...) e ela tomou isso como atendimento, não gostou, (...) aumentou o caso e foi denunciar. E gerou essa repercussão.

Eu acredito que, na verdade, ela queria ter tido essa conversa com ele [médico] talvez dentro do consultório, mas como foi no corredor, (...), mas além disso, eu acredito, que ela queria que tivessem vindo até a casa.(...) Mas eu acho que quem fez a confusão total foi ela. Porque se ela tivesse retornado até as meninas da recepção e tivesse dito „ele já me orientou que eu desse a medicação a minha mãe, mas eu quero que ele vá até lá pra ver a situação‟. (...) Eu acredito que o atendimento teria sido completo. O que faltou foi ela dizer o que a paciente tinha, ela não disse, apenas falou da questão do uso do medicamento.

Essa pessoa queria tirar a responsabilidade que ela tinha de cuidar da mãe e passar para equipe. Depois que a equipe se reuniu, depois da queixa, da denuncia, da reclamação, (...), é que veio a tona essas informações, eu não sabia!

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Essa história mobilizou as ACS a SMS os funcionários do CSF e a comunidade. Eu soube que a na pré-conferência houve o elogio por parte da mesma pessoa que fez a queixa.

[a causa do arrependimento] A melhor explicação do que deveria ter sido feito com ela, do melhor atendimento que ela deveria ter, caso ela quisesse esperar como todo mundo, e como as pessoas que estavam na unidade naquele dia, naquela hora, aguardando. Bastava esperar, se ela quisesse uma visita domiciliar [do médico], eu iria depois visitar a mãe dela, mas ela não quis esperar.

Acredito que ela analisou o caso bem depois, houve uma análise da parte dela, e também houve uma necessidade de um acompanhamento maior, porque o caso da senhora não se agravou na questão do uso do medicamento, mas devido um outro problema. Eu [ACS] fui chamada na casa pelo irmão dela que é meu tio, e chegando lá eu me deparei com uma situação que (...) naquela hora, a necessidade era levar realmente pra Tauá porque (...) aquele caso teria que ser visto por um atendimento urgente. (...) Ela ficou um pouco afastada assim de mim, porque eu entrei em contato com ela, debati um pouco com ela dos atendimentos que já tinha acontecido antes, e durante, porque aí, sempre que era convidada, ou mesmo, sem ser convidada, ela tinha um atendimento dentro do domicílio. Eu, [ACS] como moro perto, raramente, é eu não ir lá duas, três, vezes na casa da senhora, e aí, a primeira pessoa quando o problema lá se agravou, eu entrei em contato com ela, e disse o quê que estava acontecendo, e que realmente precisava levar pra Tauá, (...) diante daquilo ali, ela se sentiu envergonhada pelo que ela tinha feito, ela se sentiu envergonhada porque logo depois desse atendimento ela procurou uma das atendentes e já pediu desculpa pelo que tinha feito e, diante de tudo isso, ela tentou mais aproximação da equipe. E a gente puxou ela.

A responsabilidade não é nossa, e sim, da família, nós também temos. Sempre que era preciso ir alguém lá, era avisado a ela que a equipe vai lá, que era pra ela ver o quê estava sendo feito, porque, como ela não estava presente o tempo todo, ela poderia dizer ou achar que não estava sendo feito o atendimento.

Como ela não estava presente na doença da mãe dela, (...) Eu entendo que ela queria que a equipe fizesse, tomasse a responsabilidade da família pra equipe, por quê? Por que ela não estava tão presente. E assim, eu mesmo, enquanto família, enquanto profissional, analisei: ela é muito distante, ela só vem aqui e visita e vai pra casa dela, ela mora aqui distante da mãe e ela deixou a responsabilidade total em cima de dois irmãos. (...) Como ACS e também como família eu ligava pra ela, porque como família, eu avalio que ela estava querendo jogar a responsabilidade dela e tirar a culpa que ela estava tendo e jogar pra gente, porque, na verdade, eu acredito que ela se sentiu culpada. (...) A responsabilidade estava todinha em cima de um homem, a gente sabe que a mulher em questão de limpeza, a mulher tem mais habilidade do que um

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homem! E na verdade, assim, quando ele percebeu o problema que estava na mãe dele, a pessoa que ele procurou foi a mim agente de saúde, mas assim, ele teve um receio de chegar até a mim: „será que eu chamo porque ela denunciou a equipe?‟ Ele fez essa indagação pra vizinha! E a resposta que a vizinha disse: „não! Chame ela porque ela quem sabe e eu acredito que isso aí não vá atrapalhar para ver a necessidade que ela tá tendo agora‟. Quer dizer, a vizinha (...) teve mais consciência daquilo ali do que ela própria. Porque você visitar uma mãe domiciliada, acamada não, domiciliada, uma vez por dia, e só vinha pra olhar você já banhou? Se já deu de comer? Eu acho que a responsabilidade não é essa!

(...) porque, até então, ela queria jogar a responsabilidade pra equipe! E que a gente sabe que nós temos a nossa responsabilidade, mas a responsabilidade maior é da família. E em plena conferencia ela pegou o microfone e disse que a equipe estava de parabéns, que a equipe era de profissionais com responsabilidade e capacidade também. E assim foi bom, porque ela se auto-avaliou. Porque uma pessoa que denegriu a imagem da equipe numa secretaria e perante a comunidade, e depois diante de uma comunidade ela dizer que estava legal!!

Após os esclarecimentos sobre o caso, refletimos sobre o que a narrativa nos revela sobre o vínculo:

[revela] as duas faces do vinculo: um vínculo mais frágil e um vínculo mais fortalecido. A fragilidade veio na relação que a paciente, que poderia ter tido mais com a equipe. Todas as pessoas da comunidade, eu acredito, entendem que tem a equipe como uma equipe acolhedora. Mas o fato da mãe dela tá doente, tá precisando de uma ajuda, mas todo quer ser atendido na hora, e como ela queria algo mais rápido, e ela não era uma pessoa muito presente na comunidade, e talvez, ela não tivesse essa ideia da equipe, que boa parte da nossa comunidade nos entende como uma equipe acolhedora. (...)

Ela sabe que ela poderia ter resolvido com a gente. É tanto que as meninas [ACS] foram lá conversar com ela. E essa nossa atitude não é porque a gente recebeu uma queixa, todas as nossas atitudes são entrar na casa da pessoa e conversar, e não de pedir explicação ou retratação, não era isso. Então essa senhora, por não fazer parte da nossa comunidade, tinha esse vínculo mais frágil, e depois, foi mostrado como é realmente nossa atitude de conversar diretamente com as pessoas, e aí veio o vínculo fortalecido. O vínculo frágil e forte aparece nessa história.

Eu acho assim, diante do surgimento, a comunidade, em momento algum, apontou o dedo dizendo que a equipe tinha culpa, em momento algum, ninguém! Aonde a gente passava: „aconteceu isso e isso, mas eu acho que a equipe não tem culpa! A responsabilidade maior tem que ser da filha da família, entendeu?!‟

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(...) Assim é muito bom, quando a gente escuta dizer que a equipe funciona que a equipe tem responsabilidade! Então, o vínculo da equipe com a comunidade foi o que fortaleceu a gente neste momento. Porque foi um momento difícil pra todo mundo. Teve repercussão na comunidade, mas nunca a comunidade apontou o dedo que a equipe tem culpa.

(...) Eu acho que como a equipe é uma equipe comprometida, porque se não fosse a comunidade não tinha apontado o dedo como uma equipe responsável, com compromisso, e assim, eu acho que o nosso vínculo com a comunidade é muito grande. Porque, até então, a gente sempre escuta elogio da nossa equipe. E assim é, o nosso vínculo não só com a comunidade, mas também, com ela, eu acredito que mudou.

Sobre a narrativa “Flexibilidade do Médico”

Essa narrativa também nos possibilitou muitas reflexões trazendo outras

faces da vivência do vínculo no cotidiano do CSF. A particularidade dessa história é

que toca as relações profissionais e a organização do processo de trabalho no CSF

em sua interrelação com a comunidade, envolvendo diretamente o médico e os

atendentes. Além de esclarecer o que a história revela do vínculo, era interessante

compreender por que essa narrativa tinha sido escolhida como exemplo para

expressar o vínculo entre profissionais e comunidade no CSF. Então, como forma

de gerar reflexão, eu indaguei sobre as consequências que a ação de flexibilidade do

médico trouxe para equipe. As reflexões do GP evidenciou diversos pontos de

vista.

Eu resolvi a questão do paciente, lógico, mas eu acho que eu não deva agir sempre assim! Porque não sou mais nem melhor do que ninguém lá! E os meninos, os que são atendentes, eles tem uma certa autonomia de organização de fluxo de atendimento, e na hora que eu quebro as regras, eu crio uma brecha, onde outras pessoas podem passar por ela também, e é uma brecha que pode expandir e ninguém sabe o que acontece. Eu acho que nem sempre a gente tem que ser flexível dessa forma, sabe! Eu acho que regra tem que ser seguida. Lógico que cada caso é um caso. A questão dessa senhora, (...), mas se fosse hoje, eu provavelmente, atenderia da mesma forma, porque (...) ela tava

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trazendo um exame da sogra (...) a gente não trata exame, a gente trata a pessoa. (..) Foi só uma questão de conversa. E essa conduta não era do atendente era uma conduta, uma iniciativa minha [médico], e como de fato, foi feito. Mas eu acabei passando por cima das regras e normas que existem pra organizar, não pra dificultar nada pra ninguém!

A conduta humana é diferente da burocrática. A conduta humana foi comtemplada na postura, mas houve uma consequência para organização do serviço, e que a flexibilidade precisa ser contextualizada, porque você resolve o problema de imediato, mas cria outras dificuldades dentro da organização da unidade. (...) E todo mundo vai entender que, sempre depois do almoço, pode chegar lá que eu vou atender! Eu tirei a autoridade das meninas. A consequência disso para comunidade?! É temeroso, eu não posso criar uma brecha e todo mundo vai querer passar por ela e a brecha acaba se estourando [risos], e tem uma consequência para o serviço que a gente faz de tudo para organizar, e que é um lugar complicado pela demanda, que é muito grande, e acaba criando uma possibilidade dessa. Não deveria! Mas pela questão humana, mas foi uma conversa, se de repente a gente chegasse a uma conclusão que não precisava resolver tudo naquela hora, coisa que não era obrigação da atendente saber, era uma iniciativa mais da equipe, que era minha e da enfermeira.

No caso aí, não era uma urgência nem uma emergência. Flexibilidade, às vezes, quem está lá na ponta, os profissionais atendentes, fica desacreditado. (...) Eles ficam desacreditados. Por quê? Ela vai lá indaga a pessoa: „não pode agora, e aí, no momento oportuno, a pessoa chega até ele, e ele faz [o médico], né! Essa flexibilidade, eu não sei se ele usa assim com o coração, a pessoa vem de fora, e um dos argumentos que eles [a comunidade] usam: „Ah! eu venho de fora, se eu vier de moto eu vou pagar uma quantia X, e quando eu não venho de moto, se eu perder o carro, é difícil eu retornar pra comunidade”. Isso aí, eu acho, é o que faz ele fazer isso, é esse argumento que eles [a comunidade] usam. E outra, eles acreditam tanto que ele vai atender que eles insistem.

Isso repercute lá na comunidade (...) quando chega lá na comunidade, eles [moradores] dizem: „eles [os atendentes] disseram que eu não podia, porque já tinha uma quantidade X ou que já tinha encerrado, e eu fui atendida!‟ Isso repercute lá na comunidade, porque a gente diz: „olhe, isso aqui não é uma coisa urgente‟. Por exemplo, na visita do ACS, a gente diz: „isso aqui não é uma coisa urgente, e lá, [na Unidade] está acontecendo um agendamento nas consultas e (...) tem as pessoas que chegam com urgência e emergência, mas deixa pra você ir em outra hora?!!‟ Mas, como a companheira já veio, e foi atendida no intervalo, que é um direito do profissional, o intervalo de almoço, elas vêm, e insiste. E quando elas chega lá, ainda dizem: „olha aí, você disse que eu num fosse, mas eu fui, e fui atendida‟. E, às vezes, é questão de não ter a credibilidade, (...) quebra aquele propósito que nós estamos

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querendo fazer que é de organizar toda uma demanda, porque nós temos uma demanda, uma agenda, pra organizar o fluxo, que nós temos, (...) nós temos um fluxo grande porque o nosso distrito é grande, estamos atendendo mais de 3 mil pessoas, e que se tiver tudo agendado, tudo ok, eu acredito que vá melhorar, eu não diria não 100%, porque não somos perfeitos, mas que 80, 90, 95%, eu acredito, que aconteça.

Nesse dia o atendimento foi terminado por volta de duas horas da tarde, e quando eu saio da farmácia ela ainda tava aguardando eu expliquei pra ela. Quando eu voltei a tarde, no outro dia, eu soube que ele tinha visto (...). São vários casos que se repetem dessa natureza. (...) Essa semana aconteceu a mesma coisa. Eu acho que isso é a questão do vínculo, as pessoas já sabem que, ao se direcionar a ele, [médico] ele não diz um não.

Eu acho que isso abre espaço pra as pessoas, mesmo quando a gente sabendo das normas, né, da quantidade de pessoas que devem ser atendidas por turno, devido a agenda, das consultas agendadas, e das outras, que ficam pra demanda espontânea. A gente tem um conhecimento disso, tenta colocar pro paciente, só que ele [o paciente] não entende isso, e como ele sabe da flexibilidade do médico, eles recorrem diretamente a ele. Isso causa constrangimento pra equipe porque foi uma coisa que, (...) teria partido da gente, e que isso, o médico, não tivesse conhecimento né! Um dia o Rui [atendente do CSF] veio e disse: „olha ela saiu, (...) e saiu rindo, e disse: „taí eu falei, fui atendida!‟ É constrangimento para os atendentes que estão de cara lá. (...) E pra comunidade isso é ruim, porque eles ficam aí fora, e eles ficam aí achando ruim, achando que a culpa é dos atendentes que colocou a pessoa na frente permitiu a entrada dessa pessoa.

A partir dos esclarecimentos, e das novidades que a narrativa traz

dialogamos sobre o que essa história nos revela sobre o vínculo:

Eu acho que quando existe um vínculo positivo, o diálogo, a conversa, ela é esclarecedora, e realmente, quando gente esclarece esses fatos, a gente pode resolver, de acordo com cada demanda individualizada em relação a cada pessoa. Em relação ao vínculo dos profissionais com a comunidade, eu acredito, que ela percebeu que ela [a comunidade] tem um acesso, mesmo que o acesso seja, ou tenha esse desvio, essa brecha, mas ela sabe que ela tem acesso, e isso gera confiança. Da mesma forma, dentro da própria equipe, eu entendo, que foi quebrado o contrato um pouco, do contrato social, mas tinha um motivo. Ninguém espera até duas três horas da tarde pra ver a palavra de um médico sem realmente estar precisando, tinha uma necessidade! Uma angústia, uma necessidade em relação ao problema, e o problema foi resolvido, a queixa foi acolhida, e foi só dado um prazo pra que fosse resolvido no dia seguinte na própria residência dela. A gente quebrou o pacto organizacional da quebra de regras dentro da própria equipe.

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Acho que a questão deles [a comunidade] acreditar que se eles vierem aqui não saem sem atendimento! Eu acho que eles acreditam nisso! „Eu vou porque eu não saio de lá sem ser atendido‟. „Eles dizem que não pode, mas eles acabam me colocando pra ter o atendimento.‟ Esse vínculo está restrito, porque assim, como nós estamos num processo de mudança ainda, de adaptação, com a questão das consultas agendadas, não está esclarecido pra todo mundo ainda, é uma coisa que a gente ainda tá esclarecendo pras pessoas.

Então, claro, é normal, é próprio do ser humano, não entender as coisas de imediato. É uma coisa a ser trabalhada gradualmente. Eu acredito que como há casos do vínculo (...) que não deixa a desejar, ele é bem esclarecido (...) mas não é em todos os casos que ele é aberto a toda equipe não! Tem horas que ele [o vínculo] é mais aberto a certos profissionais. Nem todas as pessoas tem o vínculo com a equipe como eles tem com o agente de saúde. No caso da senhora da outra história da “Confiança”, ela não teve com o agente de saúde que andava na casa dela todo dia, como ela teve comigo, né! Neste caso aqui, esta paciente teve mais com o médico. Com certeza, quando ela procurou os primeiros atendimentos, é a forma como o médico a atende que a acolheu, ela entendeu isso de forma diferente, ela entendeu que quando ela chegasse, toda hora que ela quisesse falar com ele, ela iria ser atendida. Eu acho que foi a forma como ele a atendeu que a acolheu que fez com que ela entendesse isso. Isso é um vínculo restrito, é mais próximo de um do que de outro. (...) Em alguns casos tem bons resultado como o caso da Confiança, e em outros casos negativos como desse caso.

Durante a apreciação final do encontro o GP trouxe alguns pontos de

reflexão e foi o momento que se viu, se apreciou, se auto-avaliou sobre sua atuação

como equipe, acredito que em função das narrativas.

É impossível fazer um trabalho sem amor, ou você faz com amor ou ele não funciona. -Não sai uma coisa bem feita quando a gente tem uma visão só do dinheiro. Independente da quantidade que recebam por mês independente do salário tem que fazer bem feito. A vista de fazer, fazer bem feito!

É esse amor, que quando vê a dificuldade de um e de outro dentro da equipe, ou na comunidade, e que acaba se doando e se prestado a ajudar aí se manifesta aquilo que ela disse, é como se tivesse guardadinho e a gente vai usar só na hora da necessidade.

Porque pra mim ele se resume em uma obrigação, mas mesmo assim, sendo interpretado dessa forma, ele não deixa de ser amor, com a mínima parcela possível de amor que seja.

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Aí é que a paciência tem que tá presente! Até um dia em que a paciência seja vista e que aquilo ali tem amor, mas a gente sente, a gente sente, mas mais quando é na necessidade e não aleatório.

Eu acho assim, que embora você tenha amor, ou mesmo que seja mais por necessidade, eu acho que a maioria quando vai entrar é por necessidade mesmo, mais do que por amor, mas acho, que o passar do tempo transforma em um amor tão grande! Eu acho que quando o doutor sair eu vou chorar muito! [o médico da equipe estava se desligando do município]

Mas é porque na nossa equipe existem vínculos, é porque existem vínculos que a gente consegue nutrir. E se já existia o vínculo, acaba sendo nutriente a mais pra que haja isso aí. Eu [médico] tô aqui só a um ano, e vocês estão bem a mais tempo, mas eu acho que não só as nossas conversas aqui, eu acho que uma coisa positiva é a Planificação também né! A gente tem oportunidade de ser dado um ou dois dias no mês e todos tem oportunidade de sentar juntos pra conversar sobre um tema ligado a saúde, (...) mas eu acho que o primeiro ganho, mais que os conhecimentos que já existem e que tão aí disponível na internet e tudo mais, e quem quiser pode correr atrás, mas a Planificação acho que ela criou vínculos num é! Eu até então, estou a tempos como médico de família, foi com a Planificação que existiu em Tauá que essa conversa e essa harmonia que nós temos de conversar de igual pra igual com todo mundo que, ao meu ver, não sei se existia antes, porque eu cheguei junto com a Planificação, mas eu vejo que foi muito importante, porque a gente pára pra conversar sobre o nosso trabalho, e isso nutre, a união e a percepção, por mais que, certamente, que existem temas que são viajantes, delirantes, e a que a gente não precisasse estar lá, mas a gente pára pra conversar a respeito do assunto. O vínculo faz a diferença.

Eu [facilitadora do GP] fico feliz de escutar isso, o que vocês trazem são questões humanas. Quando se junta seres humanos pra conviver um certo tempo, e pra fazer um trabalho com o mesmo objetivo, não é exceção aqui, mas em qualquer lugar, acontece esse vínculo. Há em nós essa amorosidade, essa afetuosidade essa abertura para o outro que nos permite tecer esses vínculos. A questão é o que que a gente faz com isso?! O que que eu faço com isso e com o lugar do meu trabalho dentro da ESF. O ACS, em termos de vínculo um pré-requisito, é ele conhecer a comunidade ter esse vínculo, isso não é assim por acaso. Esse vínculo é importante para um determinado tipo de cuidado. É o cuidado da ESF que é diferente do cuidado do Hospital! E esse vínculo que se tece dentro da ESF não é o mesmo, por exemplo, do profissional com o paciente dentro de um hospital. No hospital quando você já está doente você recebe uma prescrição e tem que fazer aquilo direitinho que o médico prescreveu. (...) Tem que fazer, até porque, tem a enfermeira lá pra aplicar a medicação a tal hora! Diferente da Atenção Básica que você vai tratar e cuidar a pessoa dentro da casa dela, desde a promoção a prevenção, você está chegando na casa da pessoa, você tá chegando no local dela, e ela não tá ali como no hospital. Isso tem uma

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diferença pra um tipo de cuidado e para um tipo de relações, e essa ideia desta pesquisa é estudar esse vínculo no que que ele é importante para o cuidado que é próprio da AB, um cuidado de que você precisa cuidar da saúde da pessoa e não só da doença, vê se as crianças estão vacinas, cuidar da prevenção das mulheres, trabalhar pra prevenir as doenças infecto contagiosas. Então é um tipo de cuidado diferente, você está cuidando da saúde, obviamente, o tipo de vínculo, a maneira de cuidar do outro, é diferente. Ela envolve a afetuosidade e a amorosidade. A Afetuosidade e a amorosidade está sempre restrita ao âmbito da igreja. Ela disse assim, eu acho que a gente tem amor no nosso trabalho. Bom se não tivesse amor o trabalho nem existia! Agora, o que que a gente faz com esse amor ao nosso trabalho? O que vocês tem feito? É essa a questão pra gente pensar.

Foram muitos os (re)aprendizados durante todo esse percurso com o GP.

Percorremos um caminho juntos em que refletimos, analisamos, avaliamos, auto-

avaliamos, ponderamos, questionamos, perguntamos, apreciamos, descobrimos,

esclarecemos, viajamos, rimos, choramos, repensamos, estranhamos, vivemos! E

muitos pensamentos e sentimentos emergiram, chegaram à luz da consciência.

Saberes guardados no coração, no corpo, na lembrança, em lugares ainda não

visitados de nossa mente, lugares recônditos de nosso espírito. Poderíamos

caminhar um pouco mais nas (re)descobertas que este caminho ainda poderia

trazer. Entretanto, considerei que já poderíamos parar por aqui porque percebi que

vagalumes já alumiavam o circuito do vínculo entre os profissionais que atuam na

ESF e as pessoas que usam seus serviços, e já era possível perceber esses

contornos.

Fiz um acordo com o GP de retornar uma última vez para encerrarmos

oficialmente a pesquisa e decidirmos juntos sobre o que faríamos com o material

produzido pelo grupo.

Quando retornei, foi um encontro de despedidas. Ainda pulsava com força

no grupo a despedida recente que a equipe tinha vivido do médico que fora para

outro município. E vivemos as nossas despedidas. Os sentimentos eram de alegria

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e dever cumprido, de gratidão pelo compartilhar de muitos aprendizados, velhos e

novos saberes.

Sobre o material o grupo decidiu que poderíamos compilar uma Cartilha ou

Manual que pudesse ser lido junto pela equipe, e também pela equipe com a

comunidade. Assumi a tarefa de sistematizar um primeiro esboço desse material e

levar para apreciação do grupo.

Durante esse último encontro como o GP, fizemos também uma

retrospectiva minuciosa de tudo que vivemos juntos, e ao final, lancei uma pergunta

geradora para finalizarmos nossas reflexões sobre o circuito do vínculo na ESF do

SUS, segue a pergunta:

O que ficou pra mim sobre esse tema do vínculo? Como profissional da

saúde, a gente passou várias horas pensando refletindo sobre o vínculo, de

maneira bem diferente, trazendo elementos da imaginação pra pensar:

vínculo como caminho, como ponte, vínculo como papel, como mãos, ora o

vínculo era um obstáculo, e obstáculos como parede, pedras, boi, e também,

era um aliado que apreciam como as mãos da equipe, uma corda, um amigo,

a ajuda do marido, dos pais ou de pessoas desconhecidas. Tudo isso trouxe

simbolismos, trouxe psra nós formas diferentes para pensar como vivemos o

vínculo dentro da profissão de saúde na ESF. Como foi para cada um viver

isso, e o que, ao final, ficou desse percurso para nós?

Conversamos sobre isso de forma muito alegre, aberta e celebrativa. Após

escutar, transcrever, ler e reler o que produzimos neste último encontro, resolvi

apresenta-lo em forma de Carta. Eu apenas fiz alguns recortes para tornar o texto

mais fluido na leitura. E também organizei dando uma lógica para as ideias que

emergiram da fala de todos. Redigi em terceira pessoa. Apresento o resultado como

uma carta aberta escrita por um coletivo em que expressamos nosso aprendizado

depois de um trabalho conjunto de refletir e produzir ideias, novas e velhas, sobre

o vínculo. A carta está impregnada de palavras-confetos, conceitos misturados com afeto,

como fala Gauthier (1999), sobre o vínculo, e finaliza esse percurso que fiz junto

com o GP de Tauá.

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Nós profissionais de saúde do Centro de Saúde da Família de Inhamuns, no distrito

de Vera Cruz, município de Tauá, ao final desse percurso em que vivemos e

sentimos o vínculo na ESF do SUS, consideramos que:

Esse percurso foi de conhecimento e de aprendizado, e foi também de esclarecimento. O vínculo era

algo que estava presente em nosso dia a dia, mas de qualquer forma, era um pouco desconhecido,

ninguém aqui nunca tinha parado para ver a importância dessa palavra. Era um assunto que a

gente não debatia não conversava, mas que a gente sabia que tinha que existir. E o seu significado

ia muito mais além do que a palavra.

O percurso foi de uma importância que não tínhamos imaginado. O vínculo deve estar presente,

deve ser levado em consideração minuciosamente porque é enriquecedor, é indispensável no nosso

trabalho para dar bons resultados. O vínculo pode ser enriquecido e facilitado de uma forma para

não ser esquecido e ir mais além. É preciso concretizar o vínculo que estava escondido na medida

que passemos a utiliza-lo e a trabalha-lo. Agora que temos conhecimento podemos trabalhar isso,

abrir caminhos, abrir essa vereda.

Aprendemos que o vínculo pode ser utilizado não só na facilidade. Percebemos ele dentro

dificuldade, quando a pessoa está um pouco recuada, em sua forma de ser resistente, difícil de

dialogar, de ser mais fechada, vimos que o vínculo cabe aí também. Podemos abrir caminhos, abrir

essa vereda que, embora esteja fechada, podemos deixar ela aberta. Com esse conhecimento,

enquanto profissionais, podemos enxergar essa dificuldade como verde, e podemos deixa-la mais

colorida e facilitar chegarmos até as pessoas, e nos vincularmos a elas não só na facilidade, mas

também no obstáculo.

Percorrer o caminho foi algo inovador para todos nós. Foi um momento em que a gente olhou pra o

nosso eu, para o nosso interior, a gente se reconheceu, nossos posicionamentos, nossos sentimentos

que trazemos no nosso dia-a-dia! Às vezes, a gente está aqui de forma muito mecânica. Quando a

gente trouxe não só o vínculo-legal, o lado do amor, mas também, o vínculo-muro, o vínculo-

parede. Não adianta trabalharmos em um ambiente onde a gente só se vincula àquele que pensa

igual e que age do mesmo jeito que eu. Nesse sentido é muito fácil! Aprendemos que temos também

um vínculo com aquela pessoa que pensa diferente, e não é porque pensa diferente de mim que

vamos excluir, que não vamos dá a mesma importância.

Para nós profissionais que não moramos na localidade, reconhecemos que aquele vínculo de

sentimento e de propriedade do ACS e dos funcionários que moram aqui é diferente. Nós, que não

moramos aqui, não temos aquele vínculo de amizade de parentesco, o vínculo da convivência. Mas

reconhecemos que a gente precisa trazer de casa o que temos de bom. Precisamos ir para um

ambiente de trabalho em que a gente se alegre com a alegria do doutro, em que a gente se entristeça,

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também, com a angústia do outro. Mesmo que não sejamos daquele meio, mas se conseguimos

adentrar e permanecer, isso é realmente por causa do vínculo.

Não é por conta da situação econômica, status profissional, ninguém vive só disso! Percebemos que

quando escolhemos permanecer nesse trabalho na atenção primária, e assumimos a

responsabilidade de conhecer a população e ter um vínculo com ela, é porque, fomos tocados,

sensibilizados no nosso eu interior.

Alguns profissionais tem o vínculo enraizado, por conta do convívio, o vínculo é enraizado pela

convivência. Mas a questão que tocou também do vínculo, não é ser amiga de fulaninha, não é

conhecer cicrano e saber dos problemas e tal... mas o vínculo é bem mais abrangente, ele vai além, é

o vínculo geral com todo mundo.

O vínculo precisa ser visto em seu verdadeiro significado, porque o vínculo tanto pode ser usado de

forma honesta, mas também, como forma de beneficiar a outrem, sem importar as barreiras, sem

importar os limites, sem importar as regras!

O vínculo pode ser usado de forma honesta, para beneficiar, para enriquecer, para melhorar a

produtividade no trabalho. Mas também, pode ser visto de outro ângulo. Quando há proximidade,

por questão da convivência, aí não devemos confundir as coisas! Porque quando temos esse olhar do

que é o vínculo, nessa hora, eu vou usar o vínculo e vou esclarecer para as pessoas, reconhecendo

que não é obrigado a ceder. Não é obrigado a concordar com a visão daquela pessoa (usuário) que

veio até nós, e por ter um vínculo, acharmos que podemos agir dessa ou de outra maneira.

Reconhecemos que não estamos quebrando o vínculo com isso!

Existe o vínculo da convivência e o vínculo profissional. Uma coisa pode potencializar a outra, ou

o vínculo da convivência pode também destruir uma forma de funcionamento com regras. Muitas

vezes, o vínculo fica restrito. A gente restringe o vínculo ao vínculo da convivência. O vínculo da

convivência é importante, mas o vínculo profissional com a comunidade não deve destruir o vínculo

da convivência. Tampouco, o vínculo da convivência destruir a forma como o trabalho deve ser.

Porque o trabalho é para todos, é coletivo, não é para um, ou outro.

Compreendermos isso falando do assunto. É uma compreensão que vem do coração e também da

cabeça. É uma compreensão que ajuda a diferenciar as formas de se vincular, sem confundir. Sem

achar também que só porque você não mora aqui, você não precisa do vínculo com a comunidade,

porque o vínculo de convivência e o vínculo profissional tem a mesma importância.

Aprendemos que é preciso desassociar a imagem de vínculo com a amizade como favoritismo. O

vínculo envolve também confiança, a negociação, tudo isso tá junto. Não podemos trabalhar com o

vínculo se só quisermos agradar ao próximo porque tem a necessidade do dia-a-dia, tem essa parte

do dever. Temos que entender o trabalho de cada amigo, a parceria que temos e termos a

compreensão. Acontece não só aqui, mas em todo canto, quando dizem “Ah! vamos dá um

jeitinho!” Não! Vamos olhar primeiro a necessidade, vamos olhar as prioridades.

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Antigamente tínhamos esse problema do favoritismo, mas hoje, com essas Conferencias de Saúde,

isso foi mudando. Mas ainda temos as impregnações. Tem pessoas que não tem a humildade de

dizer que não sabe responder! Tem gente que faz questão de dizer o não! E acontece, outras vezes,

de se chegar uma pessoa que se conhece e se relaciona bem, ou mesmo, se foi com a cara, toma a

frente de todo mundo que está na fila pra marcar, porque é uma amiga! Quando o não é

respeitoso, cabe dentro do vínculo, esse vínculo não é quebrado. Se você dá outro tipo de não, que

não é respeitoso, ele não tá dentro do vínculo, ele tá dentro de um favoritismo que não respeita!

Essa compreensão de que o vínculo que eu tenho com você não torna você mais humano ou melhor

do que outro humano é um processo para o outro entender. Não diminui de jeito nenhum o bem

querer. Por exemplo, eu quero muito bem a você, e muito mais do que a uma pessoa que não

conheço! Mas não podemos fazer um ser melhor do que o outro que eu não conheço. O vínculo aqui

vai para além da convivência e do conhecimento. O vínculo é aquilo que nos iguala como humanos,

nós somos todos humanos. Você, como humano, tem a mesma importância que qualquer outro

humano, não importa que você seja um conhecido, primo, amigo.

Falar de vínculo é também falar de nepotismo, favoritismo. Porque passa por isso, passa pelo

coração, não é uma regra. No momento que isso vira regra, e é vínculo só de sim, derruba a regra.

Um vínculo só de sim derruba qualquer regra!

Reconhecemos o valor das regras porque a partir do momento em que você se cobra, vira

banalidade e não dá prazer em fazer! Então é gostoso quando você faz com regra e que você é

cobrado. Aprendemos a gostar e a valorizar as regras.

O percurso foi maravilhoso, viemos empolgados pelo tema e pela forma com ia ser conduzido, pela

forma de fazer essa pesquisa, diferente radicalmente de todas as outras que a gente conhece. A

metodologia em si foi maravilhosa. Esse tempo todo, ela nos fez resignificar posturas, resignificar o

que tem realmente relevância na vida, repensar as práticas! Existem coisas que, às vezes, são tão

pequenas e que a gente nunca tinha parado pra pensar o quanto é importante as pessoas para as

nossas vidas, e o quanto a gente é importante na vida dos outros.

Aprendemos também a se empoderar do respeito. Às vezes, as pessoas gostam de usar do pouco

poder que tem para fazer nepotismo, ultrapassar as regras e confundem tudo. Um amigo de

verdade, ele não quebra as regras. E quando tem que dizer e não concordar com o que o outro diz,

deve também dizer o porquê. Quando a gente tem alguém como amigo é porque a gente gosta, é

afinidade, eu quero bem. E se eu quero bem, eu não vou, por exemplo, automedicar ninguém, e

sim vou fazer com que essa pessoa compreenda, sem sair da posição do bem querer, e dar um não,

um não com elegância, dizendo de forma compreensiva. Outras vezes, podemos acolher e nem

atender o que o outro veio demandar, porque as limitações nos impedem, mas a forma como

dizemos o não, também, pode fazer ela sair satisfeita.

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Esse percurso nos ajudou a compreender e pensarmos mais que não estamos aqui para agradar a

todo mundo e nem viver só as mil maravilhas. A vida é uma dialética que a gente tem que

aprender com sabores e dissabores. Isso faz a gente amadurecer. Agradecer minuciosamente todo

dia, todas as coisas e, ao final da tarde, pedir mais perseverança e sabedoria, para, no dia seguinte,

tentarmos ser melhor do que fomos.

Esse percurso mexeu com a gente, inspirou mais, incentivou a abraçar mais! Particularmente

aprendi isso, por exemplo, a noite, em minha casa, costumamos fazer oração agradecer a Deus, eu,

meu marido e meus dois filhos, e eles dizem: “bença mamãe”, eu respondia: “Deus te abençoe meu

amor”. E depois dava o abraço e pronto! Mas hoje é indispensável eu dizer assim: “eu já lhe disse

que lhe amava hoje? Não! Pois a mamãe tá dizendo agora, eu te amo muito meu filho!” Então

aquele lado que nós trouxemos, a parte sentimental, isso fortaleceu bastante a gente! E que à

medida que a gente pratica isso, dia-a-dia, no nosso lar isso alimenta para o nosso serviço também,

isso alimenta a nossa vida profissional e nos traz leveza no trabalho.

A recompensa do nosso trabalho não vem de imediato com o salário, mas é com o carinho dos

outros, com o respeito! Quando escutamos das pessoas: “há quanto tempo, eu estava com saudades

nunca mais você foi na minha casa pra gente tomar um café”. Eu digo: “vale a pena todos os

dissabores que a passamos no dia-a-dia no sol quente! Isso não tem dinheiro que pague!” Isso

fortalece o espírito, a alma, e a gente vai a entendendo que, por mais angustiante que sejam alguns

momentos, a nossa postura faz a diferença.

Houve um alguém que há muitos e muitos anos disse assim: “nem só de pão vive o homem, mas

das palavras!” Essas são palavras de uma pessoa que veio falar de Amor. Não é no sentido de

dizer que dinheiro não é suficiente. É porque, na verdade, o dinheiro é outra coisa, embora seja

importante também. Mas, a gratidão, o reconhecimento entre os humanos, ele é fundamental para

nós, como pessoas e como profissionais. Como pessoas, na nossa família, nos reconhecermos, e como

profissionais também, no dia-a-dia de trabalho, é preciso reconhecer o trabalho do outro, porque,

tem o lado técnico de cobrar, e o lado humano de reconhecer e ser grato ao outro. E o lado humano

fica esquecido, e é ele que fortalece nossos laços.

Em um vínculo cabe um sim, e cabe um não! Um vínculo que só cabe um sim, é um vínculo

distorcido, é um vínculo que tá tirando a humanidade, tá beneficiando só um, tá tornando a

humanidade de um, melhor do que a do outro! Porque no momento em que dizeos sim para uma

determinada pessoa dando um favoritismo ou um privilégio, estamos tornando essa humanidade

melhor que várias outras! Esse tipo de vínculo tem repercussão dentro das equipes de saúde da

família.

Você pode ser um ótimo profissional, saber dar injeção como ninguém saber fazer uma vacina,

uma prevenção, uma consulta de maneira maravilhosa, mas não é só isso! É preciso o reconhecer

do outro como humano. A gratidão humana ela não é algo pra ser relegado, é algo pra ser vivido, é

pra ser tirado de dentro do coração e é pra ser exposto. No momento que fazemos isso vamos nos

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humanizando. Isso é algo que aprendemos com o vínculo de sim e de não. Existe o sim e o não pra

que possamos estabelecer relações respeitosas humanas e igualitárias.

Tem uma frase que dizia que quando nós amamos alguém apenas pela utilidade que ele tem,

então, futuramente esse amor morrerá! Então, é como o vínculo, se for apenas por causa de alguma

utilidade, não tem como ser vínculo verdadeiro, não tem como funcionar.

Acreditamos que esse processo que nós passamos de nos aproximarmos mais uns dos outros, e na

nossa equipe já tem essa proximidade, a gente se entende muito bem! E tanto é assim que na

despedida do médico foi difícil! Isso que foi criado entre a equipe e o doutor não foi simplesmente

pela utilidade que ele tinha, mas pela pessoa. A gente sente que ele ficou aqui, embora ele não

esteja aqui ele está presente!

Muitas vezes a questão do vínculo se torna característica de uma equipe. Foi isso que me chamou

atenção aqui quando escolhi vir trabalhar aqui. O que me chamou a atenção foi essa proximidade,

todos que passaram por aqui falaram bem e definiam muito bem cada um. O vínculo também

atrai ele traz as pessoas para você.

O vínculo ele traz um bem-querer e, muitas vezes, é um bem-querer que surge e que fica difícil na

hora de se despedir. O vínculo de sim e de não! E quando é o sim, precisa ser dito o bem querer

também. Porque não estamos acostumados a trazer as emoções, os sentimentos, sejam positivos ou

negativos, para dentro do trabalho. Se demonstramos o bem-querer por alguém no trabalho, isso

pode até ficar mal visto. Mas nós somos humanos, o bem querer faz parte da nossa vida. E se vai

ter uma despedida, faz parte também da vida, uma despedida com elegância. E se a pessoa tem

que sair, ela precisa saber que foi importante, que merece lágrimas, isso também faz bem para

pessoa. Mas, às vezes, a gente não se permite chorar! E porque não se pode chorar?! Quem foi que

disse que não podemos dizer para o outro que estamos sofrendo porque ele vai embora, e dizer o

quanto ele foi importante!? Quando fomos agradecer ao doutor achamos mesmo que aquilo deveria

ser dito. Tem hora que precisamos dizer, embora que doa, mas precisamos dizer! É gostoso

homenagear!!

Um vínculo que cabe o sim e o não permite que os processos de trabalho sejam respeitosos e nos

iguale como os seres humanos que somos, não importa as diferenças. Entendendo que algumas

diferenças são importantes como a idade, a gravidade da doença que a pessoa tem. É quando a

gente tem que dizer, “você que é mais idoso pode ir na frente!” Esse é o favoritismo que tem que

ter, mas não é um favoritismo que tira o direito do outro. Ele tem que se adequar a cada setor!

Essa pesquisa nos possibilitou isso e nos fez ver que precisamos ter esses momentos. A gente cria

momentos, espaço e tempo para falar sobre vacinas, sobre as metas a serem alcançadas, mas que a

gente tenha o tempo também para falar o que a gente pensa, sente, deseja, e o que a gente pode

fazer de forma humana. Agimos de forma muito mecânica, como se não fôssemos humanos e nos

acostumamos tanto que tratamos o outro da mesma forma como está sendo tratado.

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O vínculo é um tema que merece ser discutido e não só aqui! É todo mundo em círculo, porque

percebemos nitidamente investimentos muito alto dentro do município, muitos cursos, mas que

ainda falta muito toque humano, muito! E não é o dinheiro, por maior que se ja o salário, não é o

salário que vai multiplicar, é o lado tocante dentro do teu coração. O lado humano da pessoa.

O vínculo deveria ser um tema para equipe tratar cotidianamente, ter esses momentos de falar do

coração de forma verdadeira, do que sente, do que pensa. Quando falamos assim, aprendemos a

conviver melhor, a respeitar as diferenças e a fazer muitas outras coisas bacanas, conjuntamente, já

que o trabalho não é de uma pessoa, é de uma equipe.

E que se trabalhe isso nas outras equipes. Não costumamos parar pra pensar sobre tudo isso! E

termos feito esta viagem, e termos parado pra ver o que estamos fazendo e o que estamos levando

uns para os outros foi muito bom. Estamos muito gratos, muito felizes por termos vivenciado esses

momentos. É muito importante como tudo isso foi expandido de forma assim tão linda!

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3.3. O Vínculo, humano vínculo, no Sistema Único de Saúde .

A viagem não começa quando se percorre distâncias, mas quando se atravessa as nossas fronteiras interiores.

(Mia Couto).

Após percorrer este caminho com o GP nenhum de nós éramos os

mesmos! O conhecimento gerado pelo diálogo transdisciplinar alimentado pela

vivência e pelo compartilhar das experiências da prática de cada um fez emergir

saberes sobre o vínculo na ESF do SUS que nos impregnou a todos,

redimensionando nossa visão e, consequentemente, nossa ação no mundo de

forma ampla, ou seja, não somente no âmbito profissional, uma vez que o vínculo

envolve um saber relacional sistêmico, e está presente em todos os âmbitos da vida

humana.

O diálogo sobre o vínculo e seus desdobramentos na ESF do SUS trouxe

para a luz da consciência novos significados e sentidos para ação dos profissionais

alumiando o circuito do vínculo na ESF. Percebi que o caminho que percorri com

o GP acenderam luzes suficientes para delinear algumas dimensões específicas do

fenômeno que se desdobram articulados aos circuitos entrelaçados que integram o

ecossistema no nível da atenção primária à saúde. Seria possível doravante cumprir

minha tarefa de percorrer o circuito do vínculo alumiado pelos passos que

avançamos juntos no GP e sistematizar uma compreensão sobre o vínculo em sua

multidimensionalidade, fazendo conexões, cruzamentos, costuras entre as

produções oriundas deste diálogo transdisciplinar que empreendi.

Esta tarefa realizei com um trabalho de Bricolagem. Rampazo e Ichikawa

(2009) apresentam e discutem esta ideia na pesquisa em ciências sociais. Segundo as

autoras foi Lèvi-Strauss o primeiro a se utilizar do termo, emprestado do idioma

francês, para referir-se a um tipo de pensar/conhecer, até então, chamado de

primitivo ou selvagem. Elas esclarecem que o ponto de partida do antropólogo era

combater a noção em voga de que o conhecimento dos povos considerados

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“primitivos” se produzia somente a partir de uma razão prática. O autor chama de

“pensamento selvagem” o pensar que surge em função da necessidade de dar uma

ordem a uma dada sociedade. Para Lèvi-Strauss o conhecimento é ordenador do

universo. Essa é a função dos ritos, dos mitos que se traduzem como formas

sistematizadas da observação e reflexão sobre a exploração especulativa do mundo

sensível. É no esforço de compreender este tipo de pensamento que o antropólogo

propõe a bricolagem, esclarecem as autoras.

As autoras esclarecem que para Lèvi-Strauss, mesmo antes do rigor

científico próprio da ciência moderna, o ser humano já construía um saber

sistemático fruto de suas observações e experimentações, sendo que foi justamente

este conhecimento que sustentou e deu origem à ciência moderna. Observar,

classificar, testar, categorizar são atos presentes na vida humana há séculos, e

equivocado seria achar que tais formas de organização do pensamento surgem com

a ciência moderna. Para o antropólogo, tanto o pensamento primitivo quando o

pensar da ciência moderna usam operações mentais e métodos de observação

semelhantes, e ambos produzem conhecimento, apenas de forma diferente.

Desta forma Lèvi-Strauss aponta para dois tipos de pensamento científico.

Um amarrado à intuição sensível e à curiosidade, que ele chama de ciência primeira,

e o outro mais afastado dela. É em referência a esse pensar guiado mais pela

intuição e pela vontade de conhecer que ele usa o termo bricolage.

Segundo Rampazo e Ichikawa no sentido moderno da palavra bricolage tem

relação com trabalhos manuais, com a ação de juntar diferentes elementos e ferramentas à

disposição formando algo novo, sem qualquer planejamento. É o mesmo que o „handyman‟ do

vocabulário inglês, que usa materiais e ferramentas diversas que inicialmente não se relacional,

mas que em suas mãos, de forma intuitiva, se transformam ou criam outro objeto. (RAMPAZO;

ICHIKAWA, 2009, p. 3). Assim, por exemplo, é possível fazer analogias entre

maçãs e bananas buscando nos conceitos físicos e químicos o que é comum entre

as frutas. Se a análise for feita com o uso da bricolage busca-se a analogia nos

signos que falam “por meio das coisas” e que são particulares a um contexto

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específico, usam-se os signos fazendo analogias e aproximações lançando mão da

criatividade.

Na bricolage a tarefa é trabalhar nos limites do conhecimento fazendo

conexões, não apenas juntando partes, ou coisas variadas em dada categoria, mas

conectando e criando algo novo a partir do contexto da pesquisa. Rampazo e

Ichikawa reconhecem que é um equívoco buscar compreender fenômenos

complexos a partir de uma visão unidisciplinar, sendo a interdisciplinaridade a

marca do trabalho com bricolage. Para uma análise bricoleur o fenômeno em questão

não é retirado do seu contexto social, cultural e histórico, e a subjetividade não é

determinada ou subsumida pela estrutura social, mas integrada de maneira intricada.

É um tipo de análise que rejeita estudo monológico, linear baseado no

conhecimento racional fincado na ordem e na certeza, onde a vida humana é

reduzida a uma dimensão objetiva e universalizante.

A bricolage permite caminhar na fronteira e fazer conexões no sentido de

criar o novo, novas formas de ver os fenômenos da realidade. Para as autoras cada

pesquisador irá descobrir e montar seus esquemas e modelos conforme o contexto da sua pesquisa e

sua própria história como pesquisador. Parece-nos que a bricolage em ciência, devido às suas

características, não deixa também de ser arte, no sentido de estimular o uso da criatividade..

(RAMPAZO; ICHIKAWA, 2009, p. 10).

Outra publicação “Tecendo a colcha de retalhos: a bricolagem como

alternativa para a Pesquisa Educacional”, artigo escrito por Neira e Lippi (2012),

define a bricolagem como uma articulação de vários elementos culturais que

resultam em algo novo (NEIRA; LIPPI, 2012). Segundo os autores é a

epistemologia da complexidade que nos permite compreender a bricolagem, cuja

pretensão não é desvelar possíveis verdades escondidas, e sim, buscar compreender

a sua construção e questionar sua produção pelos diversos atores sociais que as

reproduzem, em função de um discurso hegemônico.

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Na bricolagem não cabe separação entre fenômeno e contexto, e a

interpretação deve imbricar-se com a dinâmica social que tece e molda os

fenômenos, esclarecem os autores. Segundo eles, o bricoleur interpretativo entende que a

pesquisa é um processo interativo influenciado pela história pessoal, biografia, gênero, classe social e

etnia, dele e daquelas pessoas que fazem parte do cenário investigado. O produto final é um

conjunto de imagens mutáveis e interligadas. (NEIRA; LIPPI, 2012, p. 611). O ato

interpretativo, em função do qual deve se encharcar um bricoleur interpretativo é a

hermenêutica crítica em seu diálogo com a Teoria Crítica, argumentam os autores.

Sigo agora com o trabalho de fazer bricolagens. Minha tarefa é de tecelã

que para mim implica na arte de costurar ideias, as quais fui encontrando pelo

caminho que empreendi para compreender vínculo dialogando com os mais

diversos campos de saber, tanto aqueles oriundos da academia, quanto os saberes

fruto das vivências, da imaginação traduzida em metáforas e das narrativas

coletivas, cujos significados e sentidos avivavam o cenário com o qual me deparei

quando adentrei o Portal do CSF de Inhamuns. Sigo revisitando, ampliando,

reafirmando, resignificando e articulando esses saberes diversos, transdisciplinares,

multireferencializados, a serem integrados em uma moldura que traduza os sentidos

do vínculo entrelaçados aos demais circuitos que integram os serviços de atenção

primária do SUS.

O que apresento agora é um tecido entrelaçado pelo aprendizado, fruto de

todo esse percurso que empreendi para compreender o vínculo como um

fenômeno complexo que se desdobra do entremeio entre os serviços de saúde da

ESF e a população. Os desdobramentos do fenômeno neste ecossistema trazem

dimensões específicas que se articulam aos demais circuitos que integram a

organização dos serviços, próprios deste nível de atenção à saúde, e me fazem hoje,

compreender melhor os desafios da mudança paradigmática que exige a

consolidação da ESF como modelo de atenção primária em saúde enquanto

estratégia de organização dos serviços de saúde para o SUS.

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A dupla pulsação do vínculo como fator gerador de consciência ética

O vínculo entre os profissionais e usuários, como fenômeno relacional

sistêmico, se efetiva evidenciando uma dupla pulsação. O vínculo-caminho é tanto

livre, verde, largo e aberto, quanto também, deserto, estreito, pedregoso. O que faz

dele caminho verde é a comunicação e o diálogo, somados ao engajamento de

profissionais e cidadãos da comunidade. Mas pode ser caminho deserto, difícil de

andar, quando cada um trabalha de forma individual e não existe comunicação; é

deserto porque é mecânico, limitado, quando há resistência para o novo.

O vínculo-ponte é um tanto inseguro quando a população tem medo que a

equipe se apresente fechada à conversação, quando falta a confiança e há um

permissivismo, quando o técnico se sobrepõe ao subjetivo. Por outro lado é

vínculo-ponte segura quando existe confiança em si e no outro, e o respeito é

mútuo. O vínculo deve ser concreto, expresso quando o serviço oferece algo

concreto em termos de cuidado, que faz do espaço institucional, um lugar acessível,

alegre e acolhedor.

Há uma pulsação pendular que expressa o vínculo no entremeio revelando-

o como um caminho de mão dupla, em ambos os lados do pêndulo. De um lado,

uma pulsação obstáculo revelada quando a relação entre profissionais e usuários se

torna paralisante, quando é difícil lidar com a dependência, quando as informações

são distorcidas, a relação distanciada, quando o papel vale mais que a fala do outro,

um não acredita no outro, porque não se vêm como pessoas humanas. Por outro

lado, também, o vínculo pode ser vivido como aliado na medida da cooperação

mútua, que se instaura na segurança e confiança das orientações que oportuniza

uma aprendizagem, também, mútua, porque os serviços e as orientações são feitas

com alguém e não para alguém.

É uma pulsação de mão dupla porque exige um reconhecimento mútuo,

que se revela no incentivo, na parceria, entendida como uma corda que puxa uns

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aos outros quando a abertura ao diálogo abre espaço para um conselho que tira o

outro da lamentação e o direciona para ação. Quando também há parceria entre os

colegas de trabalho e o problema de um, é sentido e tratado como problema de

todos, do território e da equipe.

Os lugares geomíticos com suas pontes, caminhos, obstáculos e aliados nos

permitiu construir metáforas que foram âncoras para trazer à luz da consciência,

sentimentos que estavam na sombra e nomear os sentimentos presentes nos

diversos modos de vinculação entre a comunidade e os profissionais, e destes, entre

si. Revisitando as ideias de Dalmásio quando afirma que apenas conhecemos um

sentimento quando tomamos consciência dos conteúdos de tais sentimentos,

precisamos reconhecer que a consciência precisa se fazer presente, e sendo assim,

esta é uma tarefa humana, exclusivamente humana, e eminentemente, humanizante.

Não por acaso quando alguém considera os sentimentos de si ou de outrem,

costumamos a ela nos referir, como humana, “ele ou ela foi muito humano naquele

momento”.

Há deshumanização quando os sentimentos são desconsiderados, contudo

sem a presença da consciência não acessamos as emoções revestindo-as de

significado de modo a nos permitir conhecer os sentimentos, por meio de um jogo

complexo de emocionar/pensar/sentir. Trazer os sentimentos à luz é parte do

processo de humanização, e se torna condição para humanização dos serviços.

A imaginação ampliou a nossa percepção e permitiu evocar, reviver,

resignificar experiências molhadas de emoções e sentimentos. Como diz Morin,

cada um de nós, como humanos, vivemos para si e para o outro de maneira

dialógica, isto é, temos um duplo programa, egoísta e altruísta, de cuja dialógica

nasce o sujeito. Segundo as palavras do autor ser sujeito é associar egoísmo e altruísmo.

Todo olhar sobre a ética deve reconhecer o aspecto vital do egocentrismo assim como a

potencialidade fundamental do desenvolvimento do altruísmo. (MORIN, 2011, p. 21). A dupla

pulsação do vínculo tem sua configuração advinda deste duplo programa, no qual o

sujeito é forjado.

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Colocar os sentimentos em palavras, falar do que se sente no espaço de

construção dos serviços de saúde é uma forma de construir serviços humanizados,

e os sentimentos se presentificam nas diversas formas de vinculação humana.

Dalmásio nos fala do necessário trabalho realizado pelo cérebro humano na

transformação da simpatia em empatia. Ser simpático está relacionado à capacidade

de ser sorridente e agradável com o outro. Contudo, a empatia é mais exigente e

requer a capacidade de sair de si e se colocar no lugar do outro, exige uma operação

cognitiva em que participam ativamente a emoção, o sentimento e o pensamento.

Isso nos revela que um serviço humanizado de saúde deve se basear não somente

na simpatia, na cordialidade, mas deve colaborar e criar caminhos para desenvolver

a capacidade de empatia, capacidade humana mais sofisticada e exigente.

As vivências possibilitadas pelas oficinas ao GP permitiram aos

profissionais sair do automatismo mecânico que a rotina cotidiana nos faz imergir,

e trazer para a consciência experiências diárias quando trouxe à tona, sentimentos e

emoções em que, por meio da afetividade, foi possível perceber os fios que

vinculam uns aos outros, e resignificar as experiências do cotidiano de trabalho. A

afetividade está relacionada à nossa capacidade inata para agregar-se a nossa própria

espécie, e será tanto mais exitosa quando direcionada para cooperação e

solidariedade uns com os outros.

Toro nos fala de uma afetividade desdobrada em três níveis de vinculação:

consigo, como o outro (alteridade/coletividade) e com todo (espécie/ natureza).

Esses níveis não se expressam em graus de maior/menor, intenso/fraco,

pouco/muito, tampouco, se excluem ou se alternam, mas se integram numa

dialógica em que um se desdobra do outro e o potencializa. E é dessa dialógica que

nasce a empatia, a solidariedade, a cooperação.

As narrativas nos revelam dimensões do vínculo em termos de sentimentos,

de valores que fundamentam as condutas éticas. Percebi as diversas dimensões do

vínculo por meio das narrativas que continham experiências vividas, mas não

analisadas na perspectiva do vínculo pelos profissionais que o vivenciam

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cotidianamente. E quando o fizemos, por meio do percurso metodológico da

pesquisa, evidenciamos a conduta ética, indispensável para cuidado em saúde e as

práticas humanizadas do SUS por meio da afetividade. Foi por meio da afetividade

que a conduta ética tomando contornos visíveis para o grupo.

3.3.1. Vínculo, autonomia e responsabilização na ESF.

Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém.

(Paulo Freire)

Autonomia e responsabilização são palavras que integram o amálgama

semântico que encontrei na literatura. A narrativa da Solidariedade oportuniza refletir

sobre a questão da autonomia e da responsabilização tocando o delicado fio que articula

ambos os aspectos da relação no nível da atenção primária. Tais palavras não são

sinônimos, ou substitutos para o vínculo, mas se intercruzam na sua tessitura, e

podemos perceber a dialógica que há entre elas, expressa em antagonismos que se

apresentam quando a autonomia toca e implica a dependência.

O desenrolar da história Solidariedade nos mostra que a Senhora com

suspeita de CA longe estaria de ser considerada uma pessoa dependente. O fato de

morar sozinha revela uma capacidade de auto-cuidado e independência. A leitura

do caso feito pela equipe percebendo-a como uma paciente restrita ao município nos

revela que a autonomia é relativa. A equipe se somou formando uma rede de apoio

que possibilitou um alargamento do cuidado em função do conhecimento sobre a

história de vida da paciente, relatada pela agente de saúde à equipe, colaborando

assim, para que a equipe se responsabilizasse e se mobilizasse para resolutividade

do caso. Possibilitou também, que a Senhora aceitasse o tratamento que deveria ser

feito em outro nível de atenção da rede do SUS, em Fortaleza. Não havia recusa ou

limitação por parte da senhora que nunca havia saído de Tauá, e por sua idade

avançada, não se sentia em condições de prosseguir na rede com o tratamento sem

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um acompanhamento de perto que, no caso, foi feito pela agente de saúde e o

médico da equipe.

A visão que dicotomiza os conceitos de dependência/independência é

superada a partir da visão sistêmica quando Morin articula estes conceitos a partir

da noção de “auto-eco-organização”. Ele apresenta esta ideia explicando que a

auto-organização significa obviamente autonomia, mas um sistema auto-

organizador é um sistema que deve trabalhar para construir e reconstruir sua

autonomia e que, portanto, dilapida energia. (MORIN, 1996). Assim é que, para ser

autônomo, é preciso depender do meio externo. E mais, trata-se de uma radical

dependência, não apenas energética, mas também, informativa e organizacional.

Morin explica que para ser autônomo precisa-se depender do meio externo, ou seja,

articulado ao oikos, nenhum sistema vivo possui 100% de autonomia, a qual só

pode ser entendida plenamente, em seu desdobramento de dependência.

Considerar a possibilidade de existência de uma autonomia total se transforma em

um pensamento delirante, elucida Morin.

A autonomia da paciente era relativa, como sugere o uso da palavra “restrita

ao município”. Com a ajuda da equipe foi possível alargar essa autonomia pelo

reconhecimento da dependência, dos limites que a Senhora tinha em termos de

deslocamento para outra cidade, em função do contexto de sua vida. Sem um olhar

sistêmico, rapidamente, se poderia enquadrar a ajuda necessária a resolutividade do

caso como total dependência do usuário à equipe, que precisou acompanha-la à

Fortaleza. E caberia também um questionamento da pertinência da atitude da

equipe no desempenho de suas funções no que diz respeito aos limites.

É nesta perspectiva que é possível compreender mais apuradamente a

complexa relação entre vínculo e autonomia e se afastar do equívoco de considerar

a autonomia das pessoas somente em função da ação dos profissionais, traduzido

no pressuposto que as pessoas são, a priori, dependentes do sistema, e que cabe aos

profissionais trabalhar para que sejam mais autônomos em termos do

(auto)cuidado. O que cabe aos profissionais de saúde longe está de se

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responsabilizar por esta autonomia. Sua tarefa é se posicionar adequadamente

frente às pessoas em seus variados graus de autonomia de vida, de maneira a

favorecer a longitudinalidade do cuidado de acordo com os aspectos que a situação

requer. Há variados graus de autonomia que se relativizam em função do ciclo de

vida, do contexto cultural, social, econômico e emocional das pessoas. Se

posicionar em relação a isso de maneira pró-ativa requer sensibilidade e

compreensão, e disso decorre a longitudinalidade do cuidado como função da

atenção primária em saúde.

Perceber e lidar com a dependência respeitando os limites do vínculo

próprio do circuito da atenção primária, é algo extremamente delicado e exigente

para os profissionais de saúde, porque requer lidar com seus próprios limites e

frustrações. Desarticulada do oikos, da auto-eco-organização, não é possível lidar

com esses aspectos relacionais de forma saudável e sugerir encaminhamentos

coerentes na rede de atenção, de modo a garantir a longitudinalidade do cuidado.

Sobre esse ponto evoco agora um acontecimento específico ocorrido

durante as oficinas com o GP. Algumas aconteceram no próprio espaço do CSF de

Inhamuns, e durante uma delas, chegou uma jovem moça no CSF precisando de

atendimento, e o médico saiu da oficina para prestar o serviço. Logo começou a

circular alguns comentários que aquela moça estava quase todos os dias por ali

precisando de atendimento, que ela era uma paciente que vinha à CSF quase todos

os dias, quer precisasse ou não. Ao final dos trabalhos, fiquei conversando com o

médico sobre esse ocorrido. Retomei o assunto, pedindo permissão para gravar,

embora já tivesse concluído a oficina, como mais uma contribuição para pesquisa.

Perguntei a ele como se sentiu em relação ao caso, uma vez que os demais

profissionais que estavam no GP haviam me compartilhado que se tratava de uma

pessoa que estava ali todos os dias em busca de cuidados. Um fragmento da nossa

conversa revela alguns parâmetros que revela a dificuldade e delicadeza para lidar

com a dependência/autonomia, e os sentimentos que são acionados na vinculação

com outro.

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Eu gostaria de ter o poder de resolver todos os problemas. Eu me sinto frustrado. É um caso que demanda uma equipe multi, não somente médico, enfermeiro. Precisa de suporte de assistente social psicólogo... eu não tenho isso. É como se todo peso da responsabilidade tivesse em minhas costas. Eu não tento resolver. Eu tento acolher porque não é uma receita que vai solucionar. Acolho respeitosamente, atenciosamente na medida do meu possível, mas é frustrante, é uma carga que sobra pra gente, a gente médico, porque não temos uma boa estrutura de rede de atenção, mas te digo mais, não é questão de rede, é questão de formação, a gente não é formado pra lidar com vínculos não. Nessa faculdade a gente não tem uma formação de como lidar com os vínculos até que ponto os vínculos são sadios, eu não sei até que ponto um vínculo como esse pode ser, essa dependência afetiva pode estar presente em nosso trabalho no dia a dia porque a gente sabe que é uma pessoa que tá todo santo dia naquela lugar, naquela hora, naquela semana, ela vai tá lá, é fácil ter acesso a mim, e até que ponto permitir o acesso vai fazer ela ver a responsabilidade que ela tem com a vida dela? Ter que frustrar alguém! É frustrante! Dupla frustração! A conduta médica não é suficiente, (...) e se deparar com a impotência de resolver o caso como é que você lida com isso em termos do vínculo? São casos que você encontra muito na atenção básica e é diferente do nosso dia da dia, na atenção secundária a gente não ver mais o paciente. (GP).

Há um peso insustentável na palavra responsabilização que circunscreve os

cuidados próprios da atenção primária, que pode ser mais leve a partir de uma visão

sistêmica da rede de cuidados. Geralmente as palavras autonomia e

responsabilização são condicionadas ao vínculo, conforme sugere a literatura.

Todavia, há variados graus de autonomia, cuja variabilidade se expressa em função

da relação do ser vivo com seu contexto imediato. O vínculo se articula com a

autonomia na medida em que percebe as nuances desses graus, e a partir disso, se

colocar de maneira pró-ativa frente aos mesmos para viabilizar os cuidados e o

auto-cuidado que requer cada situação.

O GP sinalizou com suas reflexões que a logitudinalidade do cuidado toca

o vínculo em seu delicado circuito com a autonomia e responsabilização revelando

que a tarefa dos profissionais na ESF é saber posicionar-se frente aos variados

graus de autonomia que as pessoas constroem ao longo de suas vidas articulado ao

contexto em que vivem. Tal posicionamento tem implicação direta com o nível de

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vinculação que ambos, profissionais e usuários, tem consigo próprio. Entram em

jogo emoções e sentimentos que desfocam os limites do cuidado e da

responsabilidade que se deve assumir como profissional da saúde em relação à vida

do outro.

Em geral casos como esses são denominados de pacientes poliqueixosos, e

assim, não é dada tanta importância às suas queixas, em função da visão biomédica

ainda hegemônica, que foca o olhar apenas em sintomas físicos e não vê o

sofrimento. Tais casos, são encaminhados e sua resolução é sempre vista como algo

que cabe a um psicólogo, ou a um psiquiatra. A questão delicada de tais casos é o

receio de que dispensar a atenção demandada vai gerar uma dependência sem fim.

Creio que isso tem estreita relação com a compreensão de processos

saúde/doença que organiza, e apenas oferta serviços que abordam os sintomas e

não a pessoa. A abordagem sistêmica da saúde deve acompanhar uma oferta de

serviços coerente com um conceito de saúde para além da doença.

Capra (2014) ao abordar a visão sistêmica da saúde toca essa questão

quando afirma que uma compreensão sistêmica da saúde implica uma compreensão

sistêmica correspondente da cura. Ele nos alerta, em recente publicação, para a

necessidade de uma assistência a saúde, ao mesmo tempo, individual e social, e

afirma que,

Enquanto a responsabilidade do indivíduo terá importância crucial para um futuro sistema integrativo de assistência à saúde, será igualmente crucial reconhecer que essa responsabilidade está sujeita a severas restrições. Muitos problemas de saúde surgem de forças econômicas e políticas que só podem ser modificadas por meio de ação coletiva. Portanto, a responsabilidade individual precisa ser acompanhada pela responsabilidade social, e a assistência à saúde individual, por ações sociais e planos de ação política. (CAPRA, 2014, p. 412).

Capra aborda nesta publicação as implicações da visão sistêmica da vida

para os vários âmbitos da vida humana, e ao abordar o campo da saúde, reconhece

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que as políticas de saúde a serem elaboradas e administradas pelos governos devem

incluir políticas sociais capazes de prover as necessidades básicas das pessoas de

maneira a minimizar o estresse social.

A responsabilidade é individual e também social, e o reconhecimento dos

limites aí implicados passa pela superação de uma visão fragmentada da atenção à

saúde para tocar apenas em um ponto da questão. Há um reconhecimento por

parte dos profissionais de saúde que não se pode medicalizar o sofrimento humano

e tratá-lo apenas com receitas, contudo, ainda não temos um sistema de saúde

capaz de gerar serviços para lidar com a integralidade da atenção à saúde, embora

esta ideia componha a proposta legislativa do SUS.

São vários os desdobramentos decorrentes do vínculo em sua dialógica

com a autonomia e a responsabilização. O contexto em que se insere esse circuito

do vínculo aliado a uma visão sistêmica, permite o desenrolar do cuidado em

função de uma conduta ética de base afetiva. Contudo, não há um limite definido,

mas há um desdobramento contínuo de implicação mútua entre a autonomia dos

sujeitos, relacionada aos grupos dos quais somos parte.

A narrativa com título “O Mal entendido” revela outras nuances dos limites

da responsabilização e a relevância do vínculo na definição de tais limites. Havia

um vínculo profissional e familiar entre a agente de saúde e a senhora idosa que

precisava de cuidados, atenção e encaminhamento da equipe da ESF. Era um caso

que apresentava outro grau de dependência da pessoa em relação à família e aos

profissionais de saúde. Havia uma demanda por parte da filha da senhora, que não

morava com ela. E houve uma situação-limite vivida pela equipe, família e

comunidade, que envolveu a todos em uma situação constrangedora em que

pulsava a responsabilização da ESF em relação ao caso. Quais os limites das

responsabilidades dos atores envolvidos nessa narrativa, entre familiares, filhos,

filhas, médico, enfermeiro, agente de saúde, vizinhos?

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A clareza dos limites de responsabilização e cuidado está diretamente ligada

ao conhecimento da dinâmica familiar que envolve o caso, traduzido pela agente de

saúde. A abordagem de família permeada por uma visão sistêmica, conforme

demonstrou ter a agente de saúde, embasada em um conhecimento da vivência,

permitiu a equipe tecer tais limites de forma saudável para dar prosseguimento aos

cuidados e encaminhamentos na rede atenção. A percepção desses limites também

esteve diretamente ligada à sensibilidade, empatia e altruísmo que os profissionais

da equipe demonstraram ter, para dar resolutividade ao caso, agravado pela conduta

da filha em denunciar a equipe.

Morin explica que há uma vinculação entre o conhecimento (saber) e a ética

(dever) que surge quando um ato moral é visto de forma contextualizada e

enraizada nas suas consequências no mundo. Como explica o autor, a ética deve

enfrentar as incertezas. Há um hiato entre a intenção humana e a ação, e é preciso

reconhecer que as consequências de um ato de intenção moral, podem ser imorais.

E também, o contrário, as consequências de um ato imoral, podem ser morais,

esclarece Morin. Não se pode esquecer a relação complementar e antagônica que há

quando tomamos, em conjunto, a intenção moral e o resultado da ação moral. É

complementar na medida em que a intenção moral só adquire sentido em seu

resultado em ato e, ao mesmo tempo, antagônica, pois há consequências,

eventualmente, imorais em um ato moral. E consequências, eventualmente, morais,

em um ato imoral, adverte Morin.

A denúncia que houve no caso, como vimos, poderia gerar danos e

consequências graves, contudo, o diálogo, a abordagem familiar e comunitária, a

abertura para enfrentar a questão de forma clara e honesta foram os aspectos que

concretizaram e expressaram a vinculação da equipe com a família, até o desfecho

da história, com o reconhecimento público da competência dos profissionais diante

da comunidade.

O nível de vinculação consigo, que possibilita, por exemplo, assumir as

consequências de seu desempenho profissional, é tanto mais fortalecido na medida

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da vinculação com outro, em termos do reconhecimento do outro, alteridade,

como humano, igual e diferente. E ambos os níveis de vinculação adquirem sentido

e expressão na medida da importância que tem a comunidade humana em que nos

inserimos, e da qual somos parte, independente de morar ou conviver diariamente.

Isso ficou claro em relação ao vínculo expresso por esta narrativa.

Os limites para lidar com os graus de dependência e autonomia que as

pessoas logram em sua relação com o ambiente, e as eventuais necessidades de

saúde que demandam, podem gerar sentimentos de frustração. É necessário um

conhecimento da proposta de organização em rede dos serviços de saúde para que

o profissional seja capaz de perceber como ajudar, para que a pessoa usufrua dos

diversos níveis de atenção de acordo com suas demandas. Claro que isso exige uma

rede de serviços funcionando. Contudo, contribuir para o funcionamento da rede,

também, é fator que diminui as frustrações e a impotência que surge diante dos

fatos da vida, e para os quais não temos soluções imediatas.

Morin afirma que todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o

desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do

sentimento de pertencer à espécie humana. (MORIN, 2000, p. 17). Tais palavras traduzem

os limites do circuito do vínculo interrelacionado aos demais circuitos que se

entrelaçam para organizar os serviços de saúde em rede, compondo um

metassistema como o SUS. O circuito do vínculo é importante, todavia, não é

condição para o funcionamento de toda a rede. É o entrelace desses circuitos que

colaboram para que os serviços funcionem em rede.

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3.3.2. O vínculo como tessitura ética das relações.

O Outro significa, ao mesmo tempo, o semelhante e o dessemelhante. (Edgar Morin)

A história da Confiança trouxe outra nuance sobre o circuito do vínculo

quando expressou de forma contundente a exigência ética nele implicada. Os

vínculos entre profissionais e comunidade, sobretudo, quando se trata de

profissionais que moram na comunidade, pré-existem aos serviços, tanto em

termos de tempo de convívio, como em termos de valoração.

A comunidade tem uma trama social que lhe dá vida e movimento por

meio de suas relações sociais permeadas pela cultura na qual se insere. A cultura do

“jeitinho” brasileiro, do nepotismo, do favoritismo, resultantes de nossa herança

colonial, são aspectos que se fazem presentes no tecido social e permeiam as

relações que vinculam profissionais de saúde e comunidade. A atitude de se

posicionar em relação a esses aspectos de nossa cultura é tarefa necessária e

importante, e deve ser diferente da atitude que normalmente encontramos nos

espaços institucionais que consistem em negá-la, escondê-la, ou combatê-la

impondo regras.

A forma como se lida com isso na rede de serviços de saúde se articula

claramente com o vínculo, como deixou claro as reflexões no GP. Assumir um

posicionamento frente a esses aspectos que se entrelaçam no circuito do vínculo é

condição indispensável para humanização dos serviços de saúde de forma a tornar

seus princípios, ação, e não regras a serem impostas.

Tendo por referência a sua vivência e experiência cotidiana relacionada ao

vínculo o GP reconheceu o poder que o profissional usufrui quando aciona seus

vínculos com o outro, momento em que se depara com os limites da ética,

deparando-se com o conflito que vai, tanto na direção de fazer valer as normas,

como de burlá-las. Sem um posicionamento frente a tais questões a universalidade

se dissocia da equidade e se torna injusta, impossibilita, por isso, a integralidade

efetivada na acessibilidade universal e equitativa dos serviços em rede.

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Com efeito, o vínculo entre profissionais de saúde e usuários os levam

constantemente a encruzilhadas éticas. Como nos mostrou o GP com a narrativa

da Confiança, o bem querer a um amigo somente leva a infligir regras quando se

utiliza do poder decorrente desse vínculo de forma distorcida, para benefício de

um, em detrimento dos outros.

Quando a vinculação com um, retira a humanidade de outros, torna uns

mais humanos que outros, há um abuso de poder. É quando o poder do cargo - e

não importa seu lugar aqui - vale mais que a afetividade, que nos vincula a todos.

Digo que não importa o lugar porque esse poder pode se tornar abusivo, não em

função da importância social da função exercida, uma vez que todas as funções tem

um poder contundente, do atendente ao médico. E usar isso para beneficio de

alguns, não se torna mais grave ou menos grave, de acordo com as funções

exercidas. O duplo programa que nos torna sujeitos, do qual fala Morin, somente

cumpre essa tarefa na dialógica egoísmo/altruísmo, e também, se distorce, quando

colocamos o outro fora do nosso site egocêntrico. E aí se instala uma dicotomia

que torna a humanidade de uns, mais valiosa que outros, desumanizando os

serviços de forma coletiva.

Morin toca nesta questão aludindo a uma pluralidade de deveres aos quais

todos nos submetemos. Ele dialoga com Max Weber quando apresenta os

inevitáveis conflitos que há entre a ética de responsabilidade, que estabelece o

compromisso, e a ética da convicção, que os recusa, porque ambas, não podem ser

prescritas, sendo também impossível, indicar o momento em que se deve escolher

uma ou outra, tornando inviável a conciliação entre ambas.

Morin reconhece o conflito inerente e profundo que se apresenta no cerne

da finalidade ética, uma vez que a realidade humana envolve três instâncias:

indivíduo/sociedade/espécie, o que torna também, a finalidade ética, trinitária.

Temos um dever egocêntrico, que nos coloca no centro de si mesmo, nos fazendo

centro de referência, e também, de preferência. Temos também, um dever

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genocêntrico em que os nossos, genitores, prole, família, clã, grupo, se tornam o

centro de nossa referência e preferência. E temos ainda, o dever sociocêntrico em que

é a sociedade que surge como centro de referência, e também, de preferência. Tais

deveres são complementares, esclarece Morin, e se tornam antagônicos, embora

surjam ao mesmo tempo. E o agir ético é fruto da dialógica viva de tais deveres.

Morin nos propõe que,

Devemos incessantemente experimentar o conflito entre as injunções do universal e as da proximidade, campo da ação e da perspectiva pessoais onde se situam os íntimos, os amores e as amizades concretas; o imperativo universal pode desaparecer em benefício do imperativo particular (os seus); devemos sacrificar o bem geral em benefício do bem particular dos nossos, ou, ao contrário, sacrificar o bem dos nossos pelo bem geral? O bem geral corre o risco de permanecer abstrato e, sobretudo, podemos nos enganar sobre o que ele é como fizeram tanto militantes devotados que acreditaram contribuir para a emancipação humanidade quando estavam trabalhando pela sua submissão. Mais ainda, „o amor pela humanidade pôde inspirar as mais glaciais desumanidades em relação aos próximos‟. O bem dos nossos próximos é concreto, mas podemos nos enganar sobre o verdadeiro interesse deles e, sobretudo, corremos o risco de ficar encerrados em nossa pequena comunidade e indiferentes aos problemas fundamentais e globais da humanidade. Aqui, não existe linha preestabelecida, mas diagnósticos e decisões de urgência que nos levam a obedecer a uma dos imperativos contrários. (MORIN, 2011, p. 49-50).

Esse conflito humano que Morin aborda é algo vivido no cotidiano da ESF

no circuito do vinculo quando se enlaça as necessidades de saúde da população.

Conforme analisou o GP, o vínculo precisa ser visto em sua plenitude, ou seja, em um

sentido amplo, porque tanto pode ser usado de forma honesta, como também,

pode ser usado para beneficiar a outrem. Há o vínculo da convivência, da

proximidade que alude ao dever genocêntrico que nos fala Morin.

O GP apontou a necessidade de desassociar a imagem de vínculo ao

favoritismo, e informa que é possível preservar o vínculo dizendo sim e dizendo

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não, enfrentando o conflito dos deveres, compreendendo que o vínculo não é

incompatível com a ética que implica o dever sociocêntrico. O vínculo de sim e de não

aludido pelo GP é uma forma de enfrentamento da injunção do universal e da

proximidade de que fala Morin.

O ato individual ou coletivo de rejeição da alteridade, de colocar o outro

fora da identidade comum, ocorre em função de um fechamento egocêntrico. É a

inclusão do outro que se produz por uma abertura altruísta, que retroage e

possibilita a inclusão. Com isso Morin afirma que a ética altruísta é a ética da religação

que exige manter a abertura ao outro, salvaguardar o sentimento de identidade comum, consolidar

e tonificar a compreensão do outro. (...) A religação é um imperativo ético primordial que comanda

os demais imperativos em relação ao outro, à comunidade, à sociedade, à humanidade. (MORIN,

2011, p. 103).

Como indivíduos há separação, mas somos, como espécie, passíveis de

religação, defende Morin. É preciso reconhecer quando há um excesso de

separação, quando não há mais religação. Vivemos numa sociedade que separa

muito mais do que liga. O excesso de separação é perverso quando não é

compensado pelos vínculos que nos enlaça em união, solidariedade, amizade e

amor. Há, portanto, uma relação complexa que articula os processos de vinculação

consigo, com o outro (espécie/coletivo) e com o todo (natureza/cosmo). A

capacidade de vincular-se consigo mesmo é forjada na pela vinculação com o outro,

um outro que fornece uma base segura, como bem nos falou John Bowby, para

que, gradativamente, eu me compreenda como parte de um grupo/coletivo, como

singularidade única pertencente a natureza, lugar do qual sou parte.

Quando esse vínculo é desassociado da afetividade abre espaço para o uso

do poder de forma abusiva. É o que sugere Toro (2012) quando afirma que a ética

surge quando há uma integração entre consciência e afetividade, e não, por

submissão a normatividades. Segundo suas palavras,

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La Etica surge cuando la consciencia y la afectividad se integran. No existe una Etica normativa. La consciencia ética tiene componentes afectivos como ternura, compasión, empatía, sentido de justicia, misericordia. La consciencia ética surge del sentimiento de “amor infinito” que describen los místicos. La violencia contra las personas, el racismo, la guerra, la falta de escrúpulos, son obscenos, antiéticos y antiestéticos. La Etica no se basa en las normas de comportamiento que imponen las distintas religiones, las leyes de Manú, las Tablas de la Ley, las reglas del Corán, el fundamentalismo musulmán, las normas de Derecho Romano y la llamada moral de las costumbres y de la tradición. Estas normas son propuestas desde fuera, sin relación con la consciencia ampliada. Se basan en la alienación y coerción. (TORO, 2012, p. 45)

A tessitura do vínculo entre profissionais de saúde e usuários de seus

serviços baseado em uma ética da religação passa pela afetividade que permeia a

relação em seus três níveis de vinculação. As ideias de Morin complementam e

reforçam o pensamento de Toro quando afirma que o ato moral é um ato de religação:

com o outro, com a comunidade, com a sociedade e, no limite, religação com a espécie humana.

(MORIN, 2011, p. 29).

O GP apontou em suas análises a necessária distinção que devemos fazer

entre amizade e favoritismo, o que comungou com a visão Morianiana quando

aborda a ética da fidelidade à amizade aludindo a necessária distinção entre amizade

e camaradagem. Para o autor a amizade não é somente uma relação afetiva de apego e

cumplicidade; a verdadeira amizade estabelece um vínculo ético de fraternidade. (MORIN, 2011,

p. 107).

É em função de sua base afetiva que podemos perceber que o agir ético

não está condicionado ao grau de escolaridade dos sujeitos porque não é somente a

informação, códigos de conduta, ou o conhecimento cognitivo que garante

posicionamentos éticos, como nos faz perceber o GP. A firmeza de um

posicionamento ético está mais ligada a essa capacidade de religação que

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aprofundamos na vivência afetiva que abarca os três níveis de vinculação de que

nos fala Toro.

Perceber, trazer para consciência os vínculos que nos ligam uns aos outros,

e que tessitura compõe a semântica de tais vínculos é um caminho para rever

valores, e se revela como possibilidade de humanização das práticas em saúde na

medida em que as condutas éticas adquirem enraizamento afetivo pela religação de

si com a humanidade de todos. Por este caminho, seguir regras reveste-se de

sentido pelo seu enraizamento afetivo.

3.3.4. O poder do vínculo e a Humanização dos serviços de saúde.

Aquilo que se faz por amor, está sempre além do bem e do mal. (Nietzsche)

A narrativa “A Flexibilidade do Médico” toca os processos de trabalho e

traz novas dimensões do circuito do vínculo em seus entrelaçamentos com os

outros circuitos da atenção primária à saúde. A narrativa evidencia pontos de

interseção entre a comunidade e os serviços no tocante a sua organização e aos

processos de trabalho.

A história nos mostra que as pessoas fazem uma leitura sobre o

funcionamento dos serviços na medida de sua interação com eles, articulada à sua

forma de compreensão desses aspectos, nos termos da cultura na qual se inserem.

Do mesmo modo, os profissionais da saúde buscam organizar o serviço tentando

efetivar uma universalidade equitativa na integralidade de suas ações, de acordo

com o escopo de ações pertinentes ao nível de atenção primária do SUS.

Entretanto, como sabemos, a comunidade, de uma forma geral, desconhece os

processos de organização dos serviços de saúde em rede. E, claro, cada um tem sua

necessidade que gostaria de ver sanada, acolhida, ou mesmo, encaminhada de

pronto!

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Por conseguinte, tanto os serviços de saúde, como a comunidade, tem um

modo próprio de organização e funcionamento, cujos pontos de interseção nem

sempre potencializam e respeitam o modo de organização, um do outro. O que

mais se evidencia nesses intercruzamentos é o desconhecimento do modo de

funcionamento por parte das pessoas que estão em ambos os lados: serviços de

saúde e comunidade.

A visão sistêmica nos ajuda a compreender esses processos. Segundo

esclarece o GP a insistência das pessoas, no caso, para ser atendida pelo médico da

equipe do CSF de Inhamuns, se deve ao conhecimento que elas tem em relação à

flexibilidade do médico. E uma forma de acesso imediato que encontram está nos

argumentos utilizados, tais como, morar distante, falta de recurso para

deslocamentos, etc. Argumentos que podem corresponder, ou não, à realidade das

pessoas, no momento, embora, claro, certamente, sejam argumentos pertinentes ao

modo de funcionamento da comunidade.

Ao profissional de saúde, cabe acolher e fazer leituras da situação

buscando ponderar até que ponto é possível atender para além do que foi acordado

na organização de atendimentos entre demanda espontânea e programada. Ser ou

não flexível não é o ponto central, mas compreender a flexibilidade em seu delicado

equilíbrio para fortalecer as relações entre a população e os serviços de saúde é o

desafio em questão.

A partir de uma visão sistêmica a organização dos processos de trabalho é

tão mais efetiva e exitosa na medida do envolvimento e compreensão da

comunidade sobre esses intricados processos que organizam os serviços de saúde

em redes de atenção, processos esses, ainda, quase que totalmente, desconhecidos

da população que utilizam o SUS e que caminham pela rede, sem compreendê-la.

Da mesma forma, a manutenção da organização dos serviços logra êxito na medida

da compreensão do modo de vida da comunidade por parte dos profissionais de

saúde, de todos, e não apenas dos agentes comunitários de saúde. Entretanto, seria

tarefa de quem elucidar tais questões? Esta me parece ser uma tarefa esquecida. O

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que comumente ocorre é esperar que todas as pessoas conheçam o funcionamento

da rede, e tornar isso pressuposto, nas orientações e encaminhamentos. Mas, de

fato, não é isso o que ocorre, há desconhecimento de ambos os lados.

Por outro lado, os serviços, bem ou mal, funcionam, seguem sendo

disponibilizados. E como nos mostra a narrativa, a comunidade faz uma leitura do

funcionamento dos serviços ofertados, em sua dinamicidade. Como esclareceu o

GP para o caso, as pessoas sabiam que o médico iria atendê-las, no sentido de uma

aposta. O que parece é que sabiam disso em função do vínculo do profissional,

estabelecido com a comunidade, que expressava uma relação aberta e acolhedora.

Assim, mesmo sendo orientadas sobre a agenda que organiza as demandas ao

serviço, as pessoas se movem no sentido de sanar suas necessidades de imediato. O

que demonstra que não é apenas o acesso à informação que influencia o

comportamento e o posicionamento frente à situação. A exigência ética que abarca

posicionamentos, tanto por parte dos profissionais como da comunidade, passa

pela ética da religação como já esclarecido anteriormente.

É neste delicado ponto que o vínculo entra no circuito, tanto para fazer

funcionar, como para obstaculizar esse funcionamento e organização dos processos

de trabalho em saúde. A participação ativa das pessoas nos processos de

organização dos serviços é algo salutar para sua efetivação. A ética não é atitude a

ser trabalhada somente por parte dos trabalhadores da saúde, mas é parte da ação

humana de uma forma geral, e como tal, as posturas éticas devem ser esperadas em

ambos os polos da relação: profissionais de saúde e população, e é o vínculo que

interliga a ambos, que configura as posturas éticas.

Em que pese a complexidade que envolve a organização dos processos de

trabalho na atenção primária à saúde com base nas necessidades de saúde da

população, vou me ater ao circuito do vínculo nos pontos que interseciona a

organização dos processos de trabalho: a humanização. Retomo o que preconiza a

PNH, a qual define que a humanização consiste em “aumentar o grau de co-

responsabilidade dos diferentes atores que constituem a rede SUS, na produção da saúde, implica

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mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho. (BRASIL,

2004).

A humanização aparece no cotidiano dos serviços como ponto delicado do

processo, porque, por princípio, não pode ser vista ou encarada como um serviço

que gere satisfação, de imediato, para todos, ou que agrade a todos, em função de

inúmeras questões. Paradoxalmente, é possível que a humanização dos serviços se

efetive mesmo que falte estrutura. Ao contrário dos argumentos que justificam

condutas não éticas em nome da falta de estrutura, de equipamentos, de oferta de

serviços, de falta de insumos, etc, embora estas questões estejam aí implicadas

também. Como expressou o GP ao salientar as aprendizagens oportunizadas pelo

percurso da pesquisa afirmando que conversar sobre os vínculos ajudou a

compreender que não estamos aqui para agradar a todo mundo e, tampouco, viver

as mil maravilhas, há sabores e dissabores a serem vividos diariamente.

A articulação entre os circuitos das necessidades de saúde e do vínculo a

partir de uma visão sistêmica nos oferece novas luzes para compreendermos este

processo a partir das pistas que nos deixou o caminho percorrido pelo GP.

Segundo as análises que avaliam a efetivação da PNH, que comentei no início,

quando trazem para discussão a relação Estado/sociedade, presumem que a

humanização se efetive em razão das frestas que escapam ao biopoder exercido

pelo Estado Moderno, e colocam nos trabalhadores da saúde a responsabilidade de

reinventar a humanidade a partir de novas práticas em saúde embaladas pela força

emancipatória do ideário do SUS.

O caminho que iluminou o GP na tarefa de humanização dos serviços

passa pelo vínculo de sim e de não, e se apresenta como tarefa de ambos, como

cooperação mútua, como postura ética que tem base afetiva calcada pela integração

de seus níveis de vinculação, quando se expressa pela adoção de uma ética da

religação.

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Há uma visão reducionista quando falamos do vínculo focalizando somente

a dimensão do poder que lhe é inerente, como assim se avaliou as políticas na ótica

do biopoder. Ao ampliar a visão trazendo a dimensão afetiva e ética em seu

entrelace, percebemos que não é nas frestas da relação Estado/sociedade que a

humanização pode se efetivar, mas pela via da ressignificação das relações humanas

no seu intricado e delicado processo que diz respeito ao dever egocêntrico,

genocêntrico e sociocêntrico, cuja dialógica, conforma uma postura ética que

humaniza a todos.

O vínculo é humanizante e humanizador na medida de sua articulação

dialógica de seus três níveis de vinculação afetiva no sentido de uma ética da

religação. Uma das dificuldades desse processo, é que em termos ontogenéticos

podemos afirmar que a relação mais tardia é o vínculo que estabelecemos conosco

mesmos. Isso é assim porque, incialmente, depende da maturação de estruturas

cognitivas e afetivas. E é desta maturação que se desdobra nossa capacidade de

nomear emoções e sentimentos e diferenciar uma miríade de nuance que abarca a

diversidade do nosso emocionar/sentir. É dela que se desdobra um saber, e com

potencial de saber que sabe e se sente, e sermos seres de consciência. Essa

capacidade de vinculação não está garantida, e não é dada. Contudo, essa é uma

tarefa difícil, mas não impossível, como demonstrou o GP. O diálogo permeado

pela abertura, respeito e aceitação do outro permite acessarmos essa capacidade de

vinculo consigo mesmo, capacidade esta que, na atual sociedade contemporânea,

está distorcida em egocentrismo individualista.

A emoção é comum a várias espécies animais, e delas compartilhamos nas

relações intraespécie. O sentimento, porém, é marca genuinamente humana e,

portanto, o fio humanizante de nossas ações. O sentimento é fruto de nossa

refinada capacidade humana em sua interrelação com o mundo circundante. Na

medida em que o pensar atua no processo, esboçando uma complexa relação entre

afetos e cognição, esse processo adquire maior complexidade, chega à consciência,

e aumenta nossa capacidade de compreender o outro e si, o que significa que nossa

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compreensão do outro está estreitamente ligada à auto-compreensão, e então, o

agir ético adquire sentido e força e se efetiva e adquire sentido em regras e

normatizações.

Isso demonstra a impossível tarefa que é falar, abordar, propor, avaliar as

ações de humanização da PNH sem tocar, abordar, esclarecer, perceber e

reconhecer os sentimentos humanos aí implicados. A própria PNAB reconhece o

vínculo como construção de relações de afetividade entre os usuários e

trabalhadores da saúde que propicie um processo de corresponsabilização pela

saúde e longitudinalidade do cuidado. A PNH condiciona a humanização ao

aumento do grau de corresponsabilidade dos diferentes atores que compõe a rede

do SUS e reconhece a necessária mudança cultural implicada nestas relações. Com

efeito, não há mudança cultural sem tocar na questão dos valores. Como nos fala

Morin, se o real só é real saturado de valores, os valores só são valores saturados de afetividade.

(MORIN, 2003, p. 122).

A afetividade é parte integrante do humano e, como tal, é cocriadora, em

conjunto com a racionalidade, da realidade que vivemos. A nossa racionalidade,

esclarece Morin, nos dá uma radiografia da realidade, mas não a sua substância,

porque a realidade humana resulta de uma simbiose entre o racional e o vivido. A

nossa racionalidade nos fornece o cálculo, a lógica, a verificação empírica a

coerência, mas não o nosso sentimento de realidade. É este sentimento de realidade

que dá substância e consistência para o real, e não apenas em seus aspectos físicos

animados e inanimados, mas confere substancialidade a entidades tais como,

família, pátria povo, deuses, ideias, instituições. Tais entidades, uma vez dotados de

vida, retornam, de criaturas a criador, fornecendo plenitude à própria realidade.

Como fontes de realidade identificamos uma relação tanto complementar quanto

antagônica entre a racionalidade e afetividade, esclarece Morin, e complementa, a

evacuação total da afetividade e da subjetividade esvaziaria de nosso intelecto a existência para só

deixar lugar a leis, equações, modelos, formas. A eliminação da afetividade tiraria toda a

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substância de nossa realidade (por isso se poderia pensar que nossa realidade não tem substância

de não passa de samsara). (MORIN, 2003, p.122).

A capacidade afetiva de vincular-se consigo tem um grande potencial de

retroalimentar o circuito. Porém não se desenvolve de forma espontânea, ou

isolada, mas nasce de uma dialógica com os demais níveis de vinculação afetiva.

Isso exige esforço, educação. Exige uma compreensão complexa do humano que

não reduz o outro a um único aspecto, não toma o todo pela parte, mas o

considera em sua multidimensionalidade, em sua natureza de homo sapiens-demens.

A nossa auto-compreensão é gerada na e pela compreensão do outro, e é

preciso inclusive, compreender a incompreensão do outro, acrescenta Morin. Em

sua análise o autor pondera que o desenvolvimento do individualismo da sociedade

contemporânea nos trouxe grandes vantagens quando possibilita para todos nós a

reflexão pessoal, a decisão pessoal, oportunizando multiplicar e aprofundar as

relações afetivas de amizade e amor entre os humanos. Por outro lado, também

desenvolveu em nós a autojustificação e a incompreensão. Há apenas duas gerações

passadas, como sociedade, aprendíamos a obedecer normas e costumes, os filhos

obedeciam aos pais e os laços familiares e conjugais eram para sempre. Atualmente,

o individualismo exacerba-se nas relações, há uma dessacralização da autoridade

paterna, analisa Morin, e segue ponderando que o desenvolvimento do primado da

autonomia nos deu liberdade, mas também altos níveis de incompreensão.

Nesta perspectiva Morin alude para a necessária compreensão complexa do

outro. A incompreensão impera nas relações entre os humanos e está na origem

dos fanatismos, das imprecações, dos ataques de raiva, reconhece o autor. A

compreensão para abarcar a complexidade humana precisa alcançar a compreensão

sobre as condições em que as mentalidades foram forjadas, e as conjunturas em que

suas ações se apresentam. A ética da compreensão implica que compreendamos a

incompreensão, isto é, devemos compreender a incompreensão do outro, destaca

Morin.

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São muitas as cegueiras de nosso pensar que podem nos levar ao erro e a

ilusão e se tornam obstáculos geradores de incompreensão. O próprio medo de

compreender é também, parte da incompreensão. Tememos compreender por

medo de desculpar-se, explica Morin, como se a compreensão fosse uma fraqueza,

e acrescenta: Compreender não significa justificar. A compreensão não desculpa nem acusa.

Favorece o juízo intelectual, mas não impede a condenação moral. Não leva a impossibilidade de

julgar, mas à necessidade de complexificar o nosso julgamento. Compreender é compreender o

porquê e o como se odeia e despreza. (MORIN, 2011, p. 121). A compreensão deve nos

afastar da barbárie, nos civilizar profundamente, e para isso, devemos nutri-la de

razão e afetividade, pondera Morin. Sem a compreensão a convivência humana é

impossível, contudo é preciso reconhecer, como alude Morin,

o amor é a experiência fundamental de ligação dos seres humanos. (...) Nosso mundo sofre de insuficiência de amor. (...) Não se pode resolver tudo pelo amor. O amor tem seus parasitas íntimos, que o cegam, a sua ânsia autodestrutiva e seus surtos devastadores. (...) precisamos contar coma vigilância da razão. Mas não existe razão pura e apropria razão deve ser estimulada pela paixão. No mais frio da razão, precisamos de paixão, ou seja, de amor. (MORIN, 2011, p. 108).

Inspirada nestas ideias de Morin encerro esta bricolagem com uma fala

poética do GP elaborada por ocasião das oficinas de produção e análise do vínculo

a partir da vivência com os Lugares Geomíticos. A linguagem poética juntou as

ideias em um todo que não se separa, assim como não separamos o leite do café,

depois de misturados. A poesia do GP traduz vínculos vividos, e apresento a seguir:

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Sobre o Vínculo

Pode ser deserto

o caminho a percorrer,

Verde, livre ou terreno plano

é um destino a conhecer

Vi flores e verde,

Eu gostei!

Campos amplos avistei

Por outro lado pude ver

Penhascos difícil,

Aí parei!

A vereda bem verdinha

Veio de novo aparecer

Na estrada em terra batida

Renascia a fé adormecida

Que o obstáculo iria vencer

O obstáculo pode ser real

Ou imaginário também

Seria de algo que não sei bem

De touro, parede, buraco, e além

O medo surge do nada

Pedi ajuda, e quem viria me ajudar?

Então gritei pra Deus

Me ajude pra atravessar

Não posso ir sozinho

A surpresa veio no vento

Na pedra que arrodiei

Nas mãos que aparecem

Na equipe que encontrei

Coincidência ou destino?

Só sei que apareceu

Vindo lá do infinito

A corda, o homem, o tronco,

a rocha, a amiga

Eram meus pais que estavam

comigo

Eu escapei, pulei

A solução encontrei

Atravessei e continuei

Ao caminho de paz eu cheguei

Onde quero chegar

Andei e não consegui enxergar

Ouvi o canto dos pássaros

E logo pude sentir que iria

cochilar

Olhei de mansinho e vi

Pessoas e não conheci

Ansiosa, percebi

que apesar de difícil,

o negócio estava ali

pude ouvir ao chegar

aplausos ao meu redor

os amigos festejavam

que o trabalho a realizar

agora seria bem maior.

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3.4. De volta ao começo. Cheguei a tempo de te ver acordar

Eu vim correndo à frente do sol Abri a porta e antes de entrar

Revi a vida inteira Pensei em tudo que é possível falar

Que sirva apenas para nós dois Sinais de bem, desejos de cais

Pequenos fragmentos de luz Falar da cor dos temporais

Do céu azul, das flores de abril Pensar além do bem e do mal

Lembrar de coisas que ninguém viu O mundo lá sempre a rodar

E em cima dele tudo vale Quem sabe isso quer dizer amor

Estrada de fazer o sonho acontecer (Quem sabe isso quer dizer Amor, Milton Nascimento)

Ao final deste percurso volto ao começo. Retomo a genealogia da palavra

vínculo quando começou a ser usada, inicialmente, no âmbito do PACS, programa

que está na raiz da ESF. As ideias freirianas mostram que um conceito nasce de

uma prática enraizada numa reflexão profunda e comprometida com a

transformação da realidade. (FREIRE,1987, 2002).

Em geral, a literatura em Saúde Coletiva que aborda o vínculo, mesmo

estudos que fazem referência direta ao tema, não indagaram sobre a origem

histórica de seu uso no campo da saúde. Talvez porque pareça incomum pensar a

prática relacionada ao vínculo em função da natureza do fenômeno. Soa estranho

dizer ou pensar sobre a prática do vínculo porque, de antemão, já é algo dado, está na

raiz filo e ontogênica humana, condiciona processos bio-antropo-sociais e culturais

da humanidade em sua diversidade múltipla.

Quando tomamos em conta o contexto da ESF como modelo de Atenção

Primária do SUS, e percorremos seus construtos históricos, vemos que a palavra

vínculo tem um enraizamento prático, ligada mais especificamente, à prática

profissional do ACS. Os sentidos e significados que envolvem a palavra em sua

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origem articulam-se, operacionalmente, às exigências de um saber oriundo da

vivência, relacionado ao um conhecimento sobre o modo de vida da comunidade.

Um saber que diz respeito à forma de relacionar-se com as pessoas do lugar, ou

seja, um modo de ser liderança e/ou referência local para uma dada coletividade.

Esse conhecimento foi, e é fundamental para ações de promoção de saúde que

caracterizou o PACS, e caracterizam hoje, o cerne da APS na ESF.

Esta gênese nos mostra aspectos importantes para compreendermos o

vínculo em uma conceituação enraizada numa prática contextualizada. É possível

identificar claramente o desdobramento do vínculo em seus três níveis de

articulação: consigo, com o outro (alteridade) e com a sociedade (natureza).

Conhecer o modo de vida da comunidade requer acessar conhecimentos sociais,

antropológicos e históricos sobre o lugar, sejam oriundos ou não, da própria

experiência.

Com efeito, é o nível de vinculação com a comunidade, intimamente ligado ao

sentimento de pertença, que dá sentido e/ou motivação para que alguém se ocupe

em desenvolver ações em prol do bem coletivo e do desenvolvimento comunitário.

Ser liderança e/ou referência local é uma ação que traduz o nível de vinculação com o

outro (alteridade) no sentido de ser merecedor de um reconhecimento coletivo,

sendo identificado como alguém importante para a vida comum de determinada

localidade. E, claro, reconhecer a si mesmo como referência para coletividade de

que é parte, requer um nível de vinculação consigo, que exige posturas de respeito por

si que, por sua vez, se desdobra e um grau considerável de empatia e solidariedade.

Retomo as interessantes perguntas de Carlile Lavor (2004), idealizador do

PACS no Ceará, quando comenta sobre a construção histórica da identidade

profissional do agente de saúde, e indaga: o que faz o agente manter-se fiel à sua

comunidade, participando de um serviço fortemente hierarquizado? Como garantir esta fidelidade?

Sem o desenvolvimento do vínculo em seus três níveis de articulação, seria

impossível para estes profissionais ter logrado êxito para coletividade em geral,

como o que resultou com o PACS.

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Tendler (1998) ao analisar o Programa relacionando-o ao contexto histórico

cearense da descentralização/municipalização constatou uma relação incomum

entre governos estaduais e municipais, que classificou como um misto de local e

central. Apesar de constatar que havia uma forte pressão popular orquestrada pelo

Programa, sobretudo, para adesão dos prefeitos, a autora não identifica a

contribuição da sociedade civil como protagonista, também, nos processos de

descentralização/municipalização e superação do clientelismo assistencialista.

Um dos pontos a ser destacado deste processo histórico está relacionado ao

modo de vinculação dos profissionais de saúde e comunidade e seu impacto

causado na relação governo/sociedade com a implantação do PACS, que teve na

participação da sociedade civil, orquestrada pelas agentes de saúde, um papel

fundamental. Esse trabalho de casa a casa, combinado com a gestão dos processos

de implantação e seleção, trouxe novos termos de valores que pautaram a relação

governo/sociedade.

Segundo relata Lavor (2004) o teor das campanhas políticas paulatinamente

muda a tônica assistencialista de seu discurso e começa, doravante, a acrescentar

promessas relacionadas à saúde. O tema da mortalidade infantil começa a ocupar os

palanques políticos nas campanhas, passando a ser amplamente debatido em toda

sociedade em termos sociais e políticos. O Estado valorizava as ações do PACS

com reconhecimento público, os municípios que mais progrediam em relação às

metas, e as ações desenvolvidas pelos agentes passaram a ser valorizadas

socialmente, e talvez por isso, eram por eles abraçadas, como missão.

Havia um reconhecimento público, vale ressaltar, da importância do outro,

expressa na valorização das ações em saúde. Refiro-me a uma valorização em

termos da coletividade, e não somente, no nível da individualidade. Como relata

Lavor analisando o PACS (2004) os agentes são desafiados instigando-se sua inteligência. O

diálogo com o seu supervisor é estimulado pelo objetivo comum, tornando a relação entre eles mais

horizontal. A compreensão das metas como importantes para a comunidade, e não como imposição

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hierárquica do supervisor, faz os agentes aderirem a elas com entusiasmo. (LAVOR, et al,

2004, p. 127). O programa contribuía gradativamente para que as comunidades

ficassem bem mais informadas e exigentes gerando uma pressão social pela

melhoria da saúde.

A contribuição do PACS para mudança nas relações governo/sociedade,

marcadas pelo colonialismo, expresso no clientelismo assistencialista, tinha sua raiz

numa nova pauta de valores que primava pelo respeito mútuo e a colaboração

solidária entre o povo e a gestão de saúde. Uma nova visão forjava-se em função de

um trabalho que tinha um modo peculiar de vinculação entre os profissionais de

saúde e a população, se mostrando como um diferencial significativo para mudança

do cenário epidemiológico, social e cultural no final da década de 80.

Falar de vínculo é falar da relação e, necessariamente, quando se muda a

pauta da relação, há consequentes mudanças nas pessoas/coletividades implicadas.

Há uma sutil diferença aqui ligada aos processos de transformação social, que

requer alteração de comportamento cultural, e que se dá quando se operacionaliza a

mudança da própria relação, alterando o seu modo de vinculação. A modificação é

tímida, e muitas vezes, infrutífera quando se busca mudar um polo, ou outro da

relação, sem atentar-se que é a própria relação que requer mudanças.

Atualmente, a ESF dispõe de uma equipe multiprofissional e o agente

comunitário de saúde é parte dessa equipe. Apesar dos inegáveis avanços e de sua

valiosa contribuição para o SUS, até o reconhecimento legal da profissão, o ACS,

como categoria profissional, ainda não conquistou o seu lugar de saber na APS.

Creio que isso se mantém porque prevalece na ESF, tão somente, a função-elo

exercida pela categoria, entre a comunidade e os demais profissionais da equipe. O

diálogo mais horizontal, a liberdade de criar e gerir seus processos de trabalho, não

se prendendo, necessariamente, à protocolos rígidos, bem como, a relação de

horizontalidade que referiu Lavor, não logrou êxito em conservar esse modo de

vinculação, tanto entre os profissionais de saúde e a comunidade, como dos

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profissionais de saúde entre si, onde o respeito mútuo e a horizontalidade fertiliza o

diálogo e favorece a criatividade na proposição de soluções e a mudança cultural.

Não podemos negar os enormes avanços e mudanças neste processo

histórico de transição PACS/PSF/ESF. Tais mudanças, entretanto, quando vistas

em seus avanços, nem sempre os pontos críticos que diz respeito à relação entre os

profissionais de saúde e a comunidade, são alvos de reflexão. É necessário

empreender análises focando a atenção, tanto para o que deu certo e precisa ser

conservado, quando para o que ainda precisa avançar em termos de relações.

Hoje, claramente, a vinculação dos ACS com a comunidade já não são mais

vistos na ESF como algo importante para atingir as metas na melhoria dos

indicadores epidemiológicos de saúde, como o fora no final dos anos 80. Sumiram

na poeira do tempo, engolido pelo tecnicismo. É a normatividade e os protocolos,

próprios dos serviços de saúde, que hoje preponderam. Ao invés de uma

aprendizagem coletiva, que reconheça o que o ACS tem a ensinar sobre como fazer

atenção primária em parceria com a comunidade, é o contrário, o que vem se

firmando. Os ACS hoje passaram preponderantemente a seguir protocolos, e todos

os profissionais na ESF tem seus processos de trabalho distanciados da

comunidade e fincados em produtividade de número de visitas domiciliares,

número de consultas, e metas epidemiológicas para cumprir, de maneira

verticalizada e normatizada em seus processos de gestão.

Para termos uma APS funcionando como estratégia de organização em

rede de forma resolutiva em termos da longitudinalidade do cuidado, da

responsabilização e da coordenação do cuidado integral de saúde, como se

caracteriza a APS, é preciso avançar, não somente, a capacidade tecnológica e

operativa do sistema, mas implica também, operacionalizar uma mudança

paradigmática que toque a gestão dos processos de trabalho, fomentando a

capacidade cognitiva dos trabalhadores da saúde, como já apontou Mendes (2014).

Isso só é possível com o fomento de novas relações sociais baseada na inclusão de

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novas epistemes que inclua o saber não acadêmico, e seja capaz de um diálogo

transdisciplinar.

Mendes (2015) alude que os demais atributos da APS como a focalização da

família e a orientação comunitária exige o desenvolvimento de uma competência

cultural por parte dos profissionais de saúde que colabore para o desenvolvimento

de uma relação horizontal com a população, de maneira a respeitar suas

singularidades culturais. Se observarmos atentamente o processo histórico

atentando para os processos relacionais, tanto entre profissionais de saúde e

população, como dos profissionais entre si, e ainda, de forma mais coletiva, as

relações entre governo/sociedade, podemos ver que algo importante vem se

apagando com o tempo, e os valores implicados na vinculação entre os

profissionais de saúde e a comunidade, entre o governo e a sociedade adquire um

viés preponderantemente tecnicista.

Por outro lado, há indícios de que algo ainda se conserva quando levamos

em conta a análise do Grupo Pesquisador da ESF dos Inhamuns. O processo

reflexivo vivencial proporcionado pela metodologia da pesquisa retirou o tema

vínculo do silêncio, e ao fazê-lo, implicou os próprios profissionais na necessidade

de rever posturas e mudanças nos processos de trabalho da ESF.

A pesquisa mostrou que, a despeito do vínculo ser um saber silenciado na

organização dos processos de trabalho, é cotidianamente vivido, forma um circuito

mobilizador de ações e decisões, e atua como regulador de condutas na ESF. O

silêncio sobre o tema é um dos fatores que contribuíram, ao longo do processo

histórico, para descolorir os valores que estão na base de construção dos serviços

de atenção primária em saúde, desde sua raiz histórica do PACS.

Podemos compreender que esse silenciamento se deve a própria natureza

do fenômeno, uma vez que falar das relações sociais em termos individuais e

coletivos não é algo comum nas instituições, sendo que quaisquer temas

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relacionados a isso ficam restritos ao âmbito individual e privado. Assuntos que

tocam os relacionamentos, quando vêm à tona, acabam relegados aos espaços dos

corredores, e são caracterizados mais como desabafo e, raramente, encarados como

parte determinante para os resultados positivos dos processos de trabalho.

Isso está relacionado a alguns fatores. O contexto atual da

modernidade/colonialidade nos mostrou que a negação social do outro é a pauta

de valores que mobilizam e regulam as ações, o que denota um nível de vinculação

fragilizado consigo, e com o outro, na medida em que excluo o outro e me alieno

da sociedade de que sou parte.

O colonialismo, outra face da modernidade, nos deixou uma herança

clientelista e paternalista desdobrada em múltiplas faces. Uma, que se expressa no

poder, estabelecido por meio de uma hierarquia social, que classifica as

humanidades em termos étnicos, valorando de forma diferente, brancos, índios,

mestiços, negros, pobres, ricos etc. Outra, que adquire expressão nas sombras,

quando silencia e descaracteriza outras racionalidades epistêmicas, que não a

europeia, dando-lhes o estatuto da não existência, ou da não validade social e

científica. E outra face ainda, que se enraíza e se manifesta de forma mais sutil, mas

não menos efetiva, nos corpos que se vinculam em uma multiplicidade de laços,

que adquirem concretude na comunhão de uma diversidade de emoções e

sentimentos partilhados. A superioridade e/ou inferioridade é mais um sentimento

do que uma ideia, atacada ou defendida, por meio do discurso. A vida afetiva é

silenciada, contudo vivida no cotidiano, a despeito de prevalecer um racionalismo

que nega e deprecia os sentimentos e as emoções como algo inferior que denota

fraqueza humana.

Como denunciou Toro (2012), a afetividade é a função psicológica humana

mais perturbada e reprimida no mundo atual. Em função da fragmentação da nossa

visão de mundo moderna que separa corpo/mente, sujeito/objeto, razão/emoção,

a afetividade foi silenciada e encarcerada nos corpos, e seu discurso apenas aceito

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quando restrito ao ambiente familiar e/ou religioso. O mundo moderno vive uma

miséria afetiva, sendo pautado pela competitividade individualista que contribui,

sobremaneira, para a patologia dos vínculos sociais.

A produção de saber pelo GP, proporcionada pela via reflexiva vivencial,

sinalizou que o vínculo toca o delicado circuito que tece a autonomia e a

responsabilização da APS, revelando que se inclui, dentre as tarefas dos

profissionais na ESF, o posicionar-se frente aos variados graus de autonomia que as

pessoas constroem ao longo de suas vidas para efetivar a longitudinalidade do

cuidado na APS. Tal posicionamento possui implicação direta com o nível de

vinculação que ambos, profissionais e usuários, têm consigo próprio.

Outro desdobramento do vínculo na ESF está na regulação de condutas

éticas que interligam saber, afetividade e poder, relacionado ao nível de vinculação

dos sujeitos com a sociedade, mobilizando, tanto nossa capacidade de excluir o

outro, dissociando vínculo e afetividade, gerando favoritismos e abuso de poder,

como também, nossa capacidade de inclusão do outro, pela compreensão empática

e altruísta, que entrelaça universalidade e equidade, efetivando a integralidade do

cuidado humanizado em saúde.

A humanização dos serviços de saúde está implicada na dialógica entre os

três níveis de vinculação. A capacidade de vincular-se consigo tem grande potencial

de retroalimentar o circuito. Contudo, não se desenvolve de forma espontânea

numa sociedade em que o egocentrismo e o individualismo destituem nossa

humanidade pela negação do outro. A capacidade de se colocar como igual,

superando as relações colonialistas está estreitamente ligada a nossa afetividade, e

não se reduz a uma opção política. A vinculação que nos humaniza passa pelo

reconhecimento profundo das nossas diferenças, mas, sobretudo, resulta do

reconhecimento do que nos torna iguais: a nossa humanidade.

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É nesta perspectiva que a PNH, como política, não se efetiva nos discursos

ou nas boas intenções, mas passa por uma profunda revisão que toca a afetividade

humana na forma como é vivida nos espaços institucionais. Uma via de acesso a tal

caminho de humanização passa pelos níveis de vinculação humana que nos liga ao

mesmo tempo, a si mesmo, ao outro/alteridade, e ao todo, sociedade/natureza,

numa dialógica que funda uma transsubjetividade de comunhão, possibilitando uma

ética da religação, no sentido Moriniano.

Necessário se faz, como diz a canção do Milton, pensar além do bem e do mal e

lembrar de coisas que ninguém viu. O caminho que percorri com o GP, não apenas,

deixou marcas em cada um de nós, mas também, deixou pegadas no sentido de nos

atentarmos, como profissionais da saúde, o quão importante, necessário e urgente é

a tarefa de retirar a afetividade do silêncio e superar o tabu que nos faz evitar tocar

e acessar sentimentos que são pertinentes ao âmbito institucional da saúde.

Muitos avanços logramos com a construção do SUS em termos de

conquistas democráticas no Brasil. Mas as conquistas não estão livres dos

retrocessos. As relações sociais baseadas na reciprocidade e na solidariedade

contrastam de forma veemente com uma cidadania de mercado que torna o

cidadão, consumidor. Construir um sistema público efetivando os princípios da

universalidade equitativa, por meio de ações integrais, requer novas formas de

relações sociais em que a vinculação entre os atores se construam mediante laços

afetivos de solidariedade e empatia.

O trabalho desta pesquisa nos permitiu compreender que, mediante um

percurso reflexivo-vivencial, os níveis de vinculação que nos interligam uns aos

outros se mostra como um caminho para rever valores, revelando possibilidades de

aperfeiçoamento das práticas em saúde, na medida em que as condutas éticas

adquirem enraizamento afetivo pela religação de si com a humanidade de todos.

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TAN

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TUB

ERC

ULO

SE

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FONTANELLA, B. J.; SETOUE, C. S.; MELO, D. G. Afeto, proximidade, frequência e uma clínica hesitante: bases do "vínculo" entre pacientes com síndrome de Down e a Atenção Primária à Saúde? Ciência e Saúde Coletiva. v.18, n.7, p.1881-1892, 2013.

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2004 Caderno de Saúde Pública

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2004 Ciência e Saúde Coletiva

COELHO, M. O.; JORGE, M. S. B. Tecnologia das relações como dispositivo do atendimento humanizado na atenção básica à saúde na perspectiva do acesso, do acolhimento e do vínculo. Ciência e Saúde Coletiva, v. 14, (suppl.1), p.1523-1531, 2004.

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GOMES, M. C. P. A.; PINHEIRO, R. Acolhimento e vínculo: práticas de integralidade na gestão do cuidado em saúde em grandes centros urbanos. Interface (Botucatu). v. 9, n. 17, p.287-301, 2005.

2009 Revista Escola de Enfermagem USP

MONTEIRO, M. M.; FIGUEIREDO, V. P.; MACHADO, M. F. A. S. Formação do vínculo na implantação do Programa Saúde da Família numa Unidade Básica de Saúde. Revista Escola de Enfermagem USP. v. 43, n.2, p.358-364, 2009.

2011 Trabalho Educação e Saúde

SCHIMITH, M. D. et al. Relações entre profissionais de saúde e usuários durante as práticas em saúde. Trabalho Educação e Saúde, vol. 9, n. 3, p.479-503, 2011.

2010 Acta paulista de Enfermagem

BRUNELLO, M. E. F et al. O vínculo na atenção à saúde: revisão sistematizada na literatura, Brasil (1998-2007). Acta paulista de Enfermagem, v. 23, n. 1, p.131-135, 2010.

2011 Ciência e Saúde Coletiva

CUNHA, E. M.; GIOVANELLA, L. Longitudinalidade/continuidade do cuidado: identificando dimensões e variáveis para a avaliação da Atenção Primária no contexto do sistema público de saúde brasileiro. Ciênc. Ciência e Saúde Coletiva v. 16, (suppl.1), p.1029-1042, 2011.

2012 Ciencia y Enfermería

BARATIERI, T.; MANDU, E. N. T.; MARCON, S. S. Compreensão de enfermeiros sobre vínculo e longitudinalidade do cuidado na Estratégia Saúde da Família. Ciencia y Enfermería, v. 18, n. 2, p.11-22, 2012.

2013 Ciência e Saúde Coletiva

BERNARDES, A. G.; PELLICCIOLI, E. C.; MARQUES, C. F. Vínculo e práticas de cuidado: correlações entre políticas de saúde e formas de subjetivação. Ciência e Saúde Coletiva, v. 18, n. 8, p.2339-2346, 2013.

2014 Texto Contexto Enfermagem, Florianópolis

DE CARLI, R. et al. Acolhimento e vínculo nas concepções e práticas dos Agentes Comunitários de Saúde. Texto Contexto Enfermagem, Florianópolis, vol. 23, n. 3, jul-set, p. 626-632, 2014.

2014 Revista Baiana de Saúde Pública

AMORIM, A. C. C. L. A.; ASSIS, M. M. A.; SANTOS, A. M. Vínculo e responsabilização como dispositivos para produção do cuidado na Estratégia Saúde da Família. Revista Baiana de Saúde Pública. v. 38, n. 3, p.539-554 jul./set. 2014.

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Quadro 4 – Publicações que avaliam a Atenção Básica e a Estratégia Saúde da Família e referem o tema vínculo.

Ano Revista Referência

2008 Caderno de Saúde Pública ROCHA, P. M. et al. Avaliação do Programa Saúde da Família em municípios do Nordeste brasileiro: velhos e novos desafios. Caderno de Saúde Pública, vol. 24 (supl.1), p. 69-78, 2008.

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MONTEIRO, M. M; FIGUEIREDO, V. P.; MACHADO, M. F. A. S. Formação do vínculo na implantação do Programa Saúde da Família numa Unidade Básica de Saúde. Revista Escola de Enfermagem USP, vol.43, n.2, p.358-364, 2009.

2010 Revista Saúde e Sociedade

SILVA, A. C. M. S. et al. A Estratégia Saúde da Família: motivação, preparo e trabalho segundo médicos que atuam em três distritos do município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Brasil. Revista Saúde e Sociedade, v. 19, n. 1, p.158-169, 2010.

2011 Ciência e Saúde Coletiva

CUNHA, E. M.; GIOVANELLA, L. Longitudinalidade/continuidade do cuidado: identificando dimensões e variáveis para a avaliação da Atenção Primária no contexto do sistema público de saúde brasileiro. Ciência e Saúde Coletiva, vol.16, supl.1, p.1029-1042, 2011.

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~ 403 ~

PROGRAMAÇÃO DAS OFICINAS COM O GRUPO PESQUISADOR

OFICINA 1 - OS VÍNCULOS QUE TECEM A IDENTIDADE

Momento 1 - Apresentação dos participantes

Cada um faz o desenho de uma linha do tempo ressaltando sua vida profissional até chegar à atenção básica;

Compartilha.

Momento 2 – Visualização Criativa

Relaxamento (Música: Rhapsody on a Theme of Paganini)

Visualização criativa (pessoas significativas).

Momento 3 – Relato e análise

Cada um relata, individualmente.

Visualização Criativa – Os Vínculos que tecem a Identidade

1 – Explicação do Exercício

1. A Origem. A Gestalt, uma abordagem da psicologia, utiliza em seus processos terapêuticos.

2. O que é - evoca a imaginação, nossas emoções e sentimentos.

3. Como vai acontecer - O facilitador vai conduzir o exercício e os participantes relaxem e se deixe conduzir pelo facilitador;

4. A intenção - é entrar em contato com nossa própria identidade de forma consciente. Trabalhar com os pensamentos e a imaginação para evocar nossos vínculos. Nossa identidade é formada também pelos relacionamentos e a convivência com as pessoas que passaram e estão nas nossas vidas. Somos frutos das relações e dos vínculos que tecemos com muita gente.

2 - Relaxamento – (sugestão de música: Summer of 42. M.Legrand)

Sentar-se de forma relaxada, entrar em contato com seu corpo, perceber como estão os músculos do seu corpo e busque relaxar. Feche os olhos e respire lenta e profundamente.

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3 – Vivência

Trazer para mente a imagem da pessoa que influenciou na sua escolha profissional ou na sua vida profissional. Traga para sua mente a imagem da pessoa

Quem é esta pessoa?

Como era a pessoa, o seu jeito de ser no mundo?

Por que ela te influenciou na sua escolha profissional?

Não somos apenas nossa profissão. Nossa identidade é multi. Além da área profissional tem o também a nossa vida social, nossa visão de mundo, o nosso compromisso com a sociedade. Traga para sua mente a imagem da pessoa

Quem foi essa pessoa que lhe ensinou este compromisso social, a responsabilidade com o coletivo?

Como era o a pessoa, o seu jeito de ser no mundo?

Por que e em que ela te influenciou para formar a sua visão de mundo e seu compromisso com a sociedade?

Nossa identidade é multifacetada, temos muitas áreas na nossa vida. Uma delas muito importante é nossa vida espiritual, nossa conexão com o sagrado. Traga para sua mente a imagem da pessoa

Quem foi essa pessoa que lhe inspirou a sua vida espiritual e lhe ajudou a descobrir a importância do sagrado?

Como era a pessoa, o seu jeito de ser no mundo?

Por que e em que ela te influenciou na sua espiritualidade hoje?

E por ainda, temos outra área muito importante na nossa vida que paramos pouco para pensar. A nossa vida afetiva, nosso jeito de fazer amizade e viver o amor. Traga para sua mente a pessoa que mais influenciou no seu jeito de relacionar-se com as pessoas, quem te ensinou a amar.

Quem foi essa pessoa?

Como era a pessoa, o seu jeito de ser no mundo?

Por que você considera que ela te ensinou amar?

Finalização

Você tem agora em sua frente essas pessoas. Elas estão diante de você. Olhe para elas e evoque em seu coração o sentimento de gratidão por essas pessoas e por tudo que elas te ensinaram a ser o que você é hoje.

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OFICINA 1 – VÍNCULOS QUE TECEM A IDENTIDADE –

ANÁLISE DA PRODUÇÃO DO GRUPO

Momento 1

Boas vindas.

Em círculo, compartilhar o sentimento que traz para Oficina.

Momento 2

Compartilhar proposta de análise do material utilizando os 4 elementos;

Entrar em contato com os elementos através das figuras e da poesia.

Momento 3

Responder as perguntas:

Do que são feitos os vínculos entre as pessoas?

O que tece um vínculo entre as pessoas?

Por que estas características no vinculam uns aos outros?

O que representam os vínculos na vida humana?

Vínculos se rompem? Por quê?

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OFICINA 2 – VÍNCULOS NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA

Momento 1 - Boa vindas e Memória

O que ficou em minha memória do trabalho realizado?

Histórico das oficinas.

Momento 2 – Visualização Criativa - Lugares Geomíticos

1. Relaxamento

Respiração – (Música – Adágio, de Zamfir)

Imagine que você está agora diante de uma vereda, um caminho que vai te levar ao lugar do vínculo na ESF. Você começa a caminhar, percorrer este caminho. De que é feito este caminho? O que você vê na sua frente? Percorrendo o caminho, você vê que tem um abismo, olha do lado e do outro e vê ao longe algo parecido com uma ponte e vai em direção a ela. No caminho você vai tentando visualizar esta ponte. Do que essa ponte é feita? Qual material? É uma ponte segura? Você chega na ponte e resolve atravessa-la para chegar ao outro lado.

Chegando ao outro lado você continua percorrendo seu caminho. Mais a frente você vê em seu caminho um grande obstáculo para continuar em frente. Quando você vê pensa em desistir. Que obstáculo é esse? O que você sente diante desse enorme obstáculo a sua frente?

Não dá mais pra voltar atrás, pois já percorreu muito caminho para chegar até aqui. Você resolve seguir em frente e enfrentar o obstáculo. De repente surge algo para te ajudar a enfrentar o obstáculo. O que ou quem é que te ajuda? Que ajuda oferece para você enfrentar seu obstáculo? Você vence esse obstáculo e segue em frente Quando você está bem perto de chegar você começa e enxergar o lugar que você quer chegar, tem um símbolo na entrada, que símbolo é esse? Como é esse lugar, visualize os detalhes, observe tudo que vê em sua volta, o que você vê?

Agora você sente que esta imagem vai se desfazendo e você vai voltando para o aqui e agora.

Momento 2

Compartilhar a vivência.

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OFICINA 2 – VÍNCULOS NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA – ANÁLISE DA PRODUÇÃO GRUPAL

Momento 1 – Boas Vindas e Memória

O que vem comigo para oficina?

Memória dos encontros – retrospectiva dos encontros.

Momento 2 – Análise Classificatória da produção do grupo.

Em trios analisar o material a partir da pergunta escrevendo as respostas:

1. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um CAMINHO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um caminho? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

2. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse uma PONTE, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é uma ponte? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

3. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um OBSTÁCULO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um obstáculo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

4. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um ALIADO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

5. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um SÍMBOLO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um símbolo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

6. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um LUGAR, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um Lugar? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?

Momento 3 – Análise transversal da produção do grupo.

A partir da experiência cotidiana no CSF que histórias poderíamos contar sobre o vínculo entre profissionais e usuários dos serviços de saúde, a partir dos elementos que nos trouxe os lugares geomíticos?

O que essa história revela sobre o vínculo?

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SISTEMATIZAÇÃO DA PRODUÇÃO DO GRUPO PESQUISADOR LUGARES GEOMÍTICOS

QUADRO 5 – Sistematização da Visualização Criativa - Lugares Geomíticos

O CAMINHO

Deserto

Difícil de andar, sempre aparecia obstáculo, sempre tinha que dá um jeito de contornar este obstáculo que eu tinha que chegar ao objetivo

Caminho verde de um lado e outro, um caminho livre, não tinha obstáculo, terreno plano. Tinha mato e eu peguei um atalho pra chegar na ponte

Meu caminho era bem verde, tinha muitas flores, eu tava com muita curiosidade né, até que chegou o penhasco, a tal ponte, e eu me assustei que eu morro de medo de altura

Meu caminho era parecido com esses campos que a gente tem aqui na nossa lateral que são campos amplos e era bastante verde cheio de árvores

Eu vi a vereda de um lado e do outro, tinha mato verde eu saí caminhando na vereda

Minha vereda era muito verdinha, tinha muito capim verdinho, muitas flores, muito verde, andando em um lugar muito bonito, muito plano

quando eu comecei no caminho no início era verde de um lado e do outro, depois já tinha um outro tom que eu não sabia explicar porque era, mas era tranquilo caminhar.

As veredas era uma estrada de terra batida carroçada, o penhasco caminhava comigo ao meu lado, o caminho era bem estreito, mas perfeitamente trafegável. Do outro lado muito verde muito verde mesmo. Caminhando nesta estrada eu cheguei até a ponte

A PONTE

Era de madeira. O Sentimento de medo porque tava longe

Sem escora, só uma plataforma, sem os corrimãos. Ponte que não era segura. Senti um alívio quando atravessei e senti o medo do balanço. A ponte tava sobre água Quando atravessei pensei que já ia chegar e encontrei o obstáculo

Uma ponte de madeira sobre água e tinha corrimão. A ponte estava estalando bastante, eu estava com medo, mas sensação quando eu estava terminando de passar ela, eu pulei bem rápido e quando pulei dela eu comecei a andar na vereda verde.

Ponte de madeira sem corrimão, ponte bem estreita, mas eu tinha que atravessar, então, devagarinho cm medo, passei! E o caminho já não era tão bonito quanto no começo. continuei

A minha ponte não era estreita de madeira, era larga e dava pra passar sem ter medo nenhum. Eu naõ tive medo na hora da ponte, mas na hora do obstáculo

Mais a frente tinha a ponte, eu achei muito distante a ponte. E na ponte eu via de madeira, eu não lembro se tinha corrimão do lado e outro, sei que era alto e eu tava com medo, com medo e tudo, mas eu atravessei aponte.

Cheguei na ponte, era de madeira com corrimão de cordas e eu passei tranquilamente não tive medo não! Neste caminho aparecia um abismo e tinha uma ponte e pra atravessar essa ponte, primeiro eu olhava pra ponte e não via por onde passar, não sei como era que essa ponte era. Eu sei que corrimão eu tenho certeza que ela não tinha, mas o que eu fiquei surpresa é que eu morro de mede de altura e eu não tive medo, sei que era alto aí encontrei um caminho pra chegar na ponte era um outro caminho

Por baixo da ponte passava água, mas não era um rio coberto de água, era um rio pequeno que corria uma água muito agradável eu ouvia o barulho da água correndo por baixo da ponte. A ponte era feita de madeira, madeira muito velha e antiga, e parecia que estava chovendo porque tava bem molhado, mas em momento nenhum eu fiquei com medo de atravessar, apesar da aparência ser antiga eu estava seguro que aquela ponte iria me fazer atravessar para o outro lado

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O OBSTÁCULO

Pedra bem grande que tomava todo caminho

Uma rocha

Uma pedra muito grande.

O meu obstáculo era uma parede. Aí apareceu uma corda de escalar. Eu fiquei olhando a parede e não tinha pra onde ir. Não tinha saída.

Eu vi um buraco muito grande e que aí eu pedi ajuda: “Meu Deus me ajude pra mim atravessar, porque sozinha eu não posso!”

Eu não lembro do obstáculo não! Eu só sei que eu queria chegar

O medo foi quando eu cheguei no meu obstáculo que era dois touro! Dois touros valentes, aí eu fiquei parada e não saía

O obstáculo eu não sei identificar eu só sei que tinha muito papel!!! Era tanto papel minha gente e a pessoa que eu consegui enxergar

Atravessei tranquilo sem medo de ser feliz e do outro lado tinha o obstáculo. O obstáculo era uma floresta, um negócio bem grande, quase amazônico mesmo. E já que era pra entrar vamo entrar, eu não queria entrar não.

O ALIADO

O pai e a mãe conversou e procurou soluções para sair do obstáculo Arrodiei a pedra. Meus pais disseram que por um lado ou por outro que iria chegar lá.

A surpresa foi que as pessoas da equipe me deram a mão para eu atravessar essa rocha. Me deram a mão e eu subi. Eu vi as mãos das pessoas da equipe.

Só que eu não sei como tinha uma pessoa que tava praticando rapel que apareceu lá. E por coincidência me tirou de lá. Subi a pedra de rapel e passei por ela.

Até que deu um vento e apareceu uma corda. E lá vai eu subir, escalei com ajuda da corda e pulei. Continuei e o caminho já era verde de novo, um caminho mais bonito tanto quanto no início.

Aí chegou mamãe. E nós fomos buscar sabe o quê? Nós fomos buscar um tronco de madeira pra mim atravessar o obstáculo. E do outro lado era muito, muito verde. E eu não vi nenhuma placa

Quando eu dei fé meu marido chegou e botou o toro pra correr e continuei no caminho muito bonito

Era a Verônica, minha amiga. Inclusive quando eu enxergava me dava uma paz tão grande! É a amiga que anda comigo a Vevé, pareceu tanto papel e quando ela aparecia eu senti uma paz, não levava os papéis, mas era como se fosse uma paz, eu sentia, “agora tem alguém comigo pra isso né! Os papéis não sumiam, a presença dela era que confortava, era como se tivesse chegado alguém pra me ajudar naquilo ali, eu não lembro

De repente apareceu um mapa na minha mão, não foi uma pessoa, o mapa me conduziu por veredas, era o mapa da floresta, que dobra aqui, chegar acolá vai pra acolá, atravessar o riacho tem uma pedra, mas pode ir por outro lado, tudo bem orientado até chegar ao destino.

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O LUGAR

Cheguei em minha própria casa a minha família

Estratégia Saúde da Família Eu não consegui enxergar mais nada. Consegui chegar, o difícil foi chegar e um sentimento de realização

E eu botei meu rosto lá e vi várias pessoas juntas não sei quem eram, pra mim eram desconhecidas, do nada no meio da floresta e que me receberam com muita festa! Com muita festa! Eles eram civilizados!

Quando cheguei tinha várias pessoas conhecidas. Eu não lembro quem eram, eram daqui, da minha casa, eram pessoas próximas que estavam ansiosas pra que eu chegasse e contando que foram por outro caminho. E ainda teve isso, porque eu peguei o caminho mais difícil.

Por detrás das árvores grandes tinha uma casa enorme. Como se fosse uma fazenda, mas o que era que tinha lá não sei. Eu ouvi muito canto de pássaros. Eu fui querendo cochilar quase no final eu fui querendo cochilar eu percebi que eu ia cochilar. Eu fiquei cansada ao atravessar o tronco de madeira, e ao ficar cansada eu tossi, e toda vez que eu tossia é porque o negócio tava difícil

Cheguei na unidade e meus amigos estavam tudo lá me aplaudindo, festejando que eu tinha chegado bem. Eu cheguei aqui nesta unidade daqui mesmo!

Eu não lembro de ter chegado em nenhum lugar acho que dormi! Ei fiquei nos papéis

Engraçado o destino era um posto de saúde também e era um posto de saúde que aparentava ser muito antigo, mas muito tranquilo, diferente, muito tranquilo não tinham pessoas não parecia que tava desabitado mas eu sabia que tinha que tá ali. Era um lugar de muita paz

O SÍMBOLO

Uma placa branca ESF

E quando eu continuei no verde e tinha tipo uma área lá coberta de mato quase como as ocas indígenas só que era verde, e tinha a placa verde com uma flor e uma seta

Mas o que via na frente era muito pé de árvores grandes. Uma árvore grande

O símbolo tinha ESF o prédio era um amarelo tipo caiado era uma amarelo mais escuro quase laranja com ESF em vermelho era um lugar de muita paz onde eu encontrava no ambiente daquele, rodeado de floresta, de plantas grandes, mas muito agradável pra mim!

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE MEDICINA

DEPARTAMENTO DE SAÚDE COMUNITÁRIA

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE

Você está sendo convidado (a) para participar, como voluntário(a), de uma pesquisa. O documento abaixo contém todas as informações necessárias sobre a pesquisa que vamos realizar. Sua colaboração será muito importante para nós.

Título da Pesquisa: O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. Pesquisadora Responsável: Maria Idalice Silva Barbosa Departamento de Saúde Comunitária - UFC: Secretaria de Saúde de Tauá Telefone para contato (inclusive a cobrar): 85 - 99381776

Esta pesquisa tem como objetivo: “Compreender a expressão do vínculo entre

profissionais de saúde e usuários e seus desdobramentos para atenção básica do

SUS”. A expectativa desta pesquisa será refletir e sistematizar ideias sobre o vínculo

na atenção básica do SUS.

Convidamos você para integrar o grupo pesquisador responsável por esta

pesquisa, e como metodologia realizamos algumas Oficinas em que abordaremos o

assunto. Os relatos orais serão gravados para que a pesquisadora registre fielmente

o que lhe for dito, respeitando a fala e o pensamento de cada participante.

Destacamos a importância de sua participação nesta pesquisa que permitirá a

produção de saber a partir da contribuição de profissionais da saúde que vivenciam

cotidianamente o vínculo com as pessoas que usam seus serviços em seu trabalho

cotidiano de trabalho na atenção básica do SUS.

Informamos que em qualquer etapa do estudo, você terá acesso aos

profissionais responsáveis pela pesquisa para esclarecimento de eventuais dúvidas

Esclarecemos que a pesquisa, aparentemente, não traz risco a sua saúde e que o

(a) senhor(a) pode desistir de participar da mesma no momento em que decidir, sem

que isso lhe acarrete qualquer penalidade. Lembramos, ainda, que na pesquisa

qualitativa, habitualmente, não existe desconforto ou riscos físicos. Entretanto, o

desconforto que o sujeito poderá sentir é o de compartilhar informações pessoais ou

confidenciais, ou em alguns tópicos que ele possa se sentir incômodo em falar.

Nesse sentido, o (as) senhor (a), como já dito acima, não precisa responder a

qualquer pergunta ou parte de informações obtidas nas oficinas, se sentir-se que ela

é muito pessoal ou sentir-se desconforto em falar. O (a) senhor (a) tem a liberdade

de retirar seu consentimento a qualquer momento e deixar de participar do estudo,

sem nenhum prejuízo.

As dúvidas com relação à assinatura do TCLE ou os direitos do sujeito da pesquisa podem ser obtidas entrando em contato pela responsável pela pesquisa. Este documento foi elaborado em duas vias, uma ficará com o pesquisador responsável e a outra com o sujeito da pesquisa.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE MEDICINA

DEPARTAMENTO DE SAÚDE COMUNITÁRIA TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE

Você está sendo convidado (a) para participar, como voluntário(a), de uma pesquisa. O documento em anexo contém todas as informações necessárias sobre a pesquisa que vamos realizar. Sua colaboração será muito importante para nós.

Título da Pesquisa: O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE DO BRASIL.

Pesquisadora Responsável: Maria Idalice Silva Barbosa

Universidade Federal do Ceará / Departamento de Saúde Comunitária

Telefone para contato (inclusive a cobrar): 85 - 99381776

Consentimento da participação da pessoa como sujeito.

Eu, _________________________________________________________,

RG______________/ CPF/___________________, abaixo assinado, concordo em

participar do estudo O VÍNCULO NA ATENÇÃO BÁSICA como sujeito participante

do grupo pesquisador. Fui suficientemente informado a respeito das informações

que li ou que foram lidas para mim, descrevendo o objetivo do estudo. Ficaram

claros para mim quais são os propósitos do estudo, os procedimentos a serem

realizados, seus desconfortos e riscos, as garantias de confidencialidade e de

esclarecimentos permanentes. Ficou claro também que minha participação é isenta

de despesas. Concordo voluntariamente em participar deste estudo e poderei retirar

o meu consentimento a qualquer momento, antes ou durante o mesmo, sem

penalidades ou prejuízo ou perda de qualquer benefício que eu possa ter adquirido.

Tauá, __________________________ de 2015

Nome e Assinatura do sujeito ou responsável:

____________________________________

Este documento foi elaborado em duas vias, uma ficará com o pesquisador responsável e a

outra com o sujeito da pesquisa.

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CARTA DE ANUÊNCIA

Eu, ADEMÁRIA TEMÓTEO ROSA, Secretária de Saúde da Prefeitura

Municipal de Tauá, autorizo a realização da pesquisa “O Vínculo na Atenção

Primária à Saúde do Sistema Único de Saúde do Brasil” a ser realizada pela

pesquisadora Maria Idalice Silva Barbosa da Universidade Federal do Ceará a ser

iniciada após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

Autorizo os pesquisadores a utilizarem o espaço da Secretaria Municipal de

Saúde de Tauá e nos territórios adstritos das Equipes da Estratégia Saúde da

Família, para a realização de oficinas, entrevistas e observação. Afirmo que não

haverá qualquer implicação negativa aos profissionais da saúde e usuários do

sistema público de saúde que não queiram ou desistam de participar do estudo.

Autorizo também que o nome da Secretaria de Saúde do município de Tauá-

CE possa constar no relatório final desta pesquisa bem como em futuras

publicações científicas.

Declaro, ainda, conhecer e que será cumprida as Resoluções Éticas

Brasileiras, em especial, a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Fortaleza, 25 de março de 2015