O velho choupo

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O Velho choupo Alguém me dissera que ele nascera, ali junto ao leiral, duma semente vinda não se sabia donde; e as suas pequenas raízes perfuraram, numa árdua e persistente, a terra húmida e calcária. Fora num dia de Primavera, suave e alegre, que as folhas, viçosas e escuras, brotaram do chão, em busca da luz solar, amena e quente. E, dia após dia, o seu tronco tornara-se grosso e lenhoso e ele crescera sempre, em busca das alturas, fendendo o espaço com os seus braços ramalhudos e verdes. Quando reparei nele, ainda eu era uma criança , de saias curtas e tranças caídas, mas, lembro-me bem que, por mais que me esticasse, os meus dedos pequenos e rechonchudos não atingiam as suas folhas duras. E isso acontecia sempre que me aproximava dele. Sentava-me, então, à sua sombra, escutando deliciada, as maravilhosas histórias que o meu avô me contava, lançando pedrinhas no rio, fazendo coroas de violetas, malmequeres e mimosas. Se, acaso, ia chorar junto dele os meus caprichos infantis insatisfeitos, fazia roçar pelo seu rosto húmido, como uma carícia, uma pequenina folha desprendida do alto. Um dia o rio encheu-se e as águas quiseram arrastá-lo, na enxurrada vinda da Serra. Manteve-se firme, agarrado ao solo, indiferente à tempestade, se bem que naquele Inverno, ficasse quase despido. Recordo as noites outonais, em que, sentada à lareira ouvia o vento assobiar, por entre a sua ramagem. Ao outro dia, ia encontrar, caídas na relva húmida e fria, folhas amarelas e avermelhadas, que guardava, como relíquia, entre as páginas dos meus livros escolares. No tempo quente, ao entardecer, as aves realizavam um concerto nos ninhos construídos nos seus ramos. Na Primavera as borboletas estouvadas e ligeiras, voltejavam ao seu redor, elogiando a beleza da sua verdura. E vinham as grandes nevadas, os vendavais tenebrosos, as chuvas torrenciais, as trovoadas medonhas - e ele crescia sempre, tornando-se mais alto e mais forte que os outros.

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O Velho choupo Alguém me dissera que ele nascera, ali junto ao leiral, duma semente vinda não se sabia donde; e as suas pequenas raízes perfuraram, numa árdua e persistente, a terra húmida e calcária. Fora num dia de Primavera, suave e alegre, que as folhas, viçosas e escuras, brotaram do chão, em busca da luz solar, amena e quente. E, dia após dia, o seu tronco tornara-se grosso e lenhoso e ele crescera sempre, em busca das alturas, fendendo o espaço com os seus braços ramalhudos e verdes. Quando reparei nele, ainda eu era uma criança , de saias curtas e tranças caídas, mas, lembro-me bem que, por mais que me esticasse, os meus dedos pequenos e rechonchudos não atingiam as suas folhas duras. E isso acontecia sempre que me aproximava dele. Sentava-me, então, à sua sombra, escutando deliciada, as maravilhosas histórias que o meu avô me contava, lançando pedrinhas no rio, fazendo coroas de violetas, malmequeres e mimosas. Se, acaso, ia chorar junto dele os meus caprichos infantis insatisfeitos, fazia roçar pelo seu rosto húmido, como uma carícia, uma pequenina folha desprendida do alto. Um dia o rio encheu-se e as águas quiseram arrastá-lo, na enxurrada vinda da Serra. Manteve-se firme, agarrado ao solo, indiferente à tempestade, se bem que naquele Inverno, ficasse quase despido. Recordo as noites outonais, em que, sentada à lareira ouvia o vento assobiar, por entre a sua ramagem. Ao outro dia, ia encontrar, caídas na relva húmida e fria, folhas amarelas e avermelhadas, que guardava, como relíquia, entre as páginas dos meus livros escolares. No tempo quente, ao entardecer, as aves realizavam um concerto nos ninhos construídos nos seus ramos. Na Primavera as borboletas estouvadas e ligeiras, voltejavam ao seu redor, elogiando a beleza da sua verdura. E vinham as grandes nevadas, os vendavais tenebrosos, as chuvas torrenciais, as trovoadas medonhas - e ele crescia sempre, tornando-se mais alto e mais forte que os outros.

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Ano após ano, quando vinham as férias, ia visitá-lo e encontrava, amorosamente enroscadas no seu tronco, heras e rosas trepadeiras, que buscavam junto dele, a atmosfera das alturas. Via-o mirar-se, orgulhoso, do seu porte, ora nostálgico, ora balouçante, nas águas límpidas e serenas do Ceira, onde seixos azulados apareciam aqui e ali... E os anos rolavam velozes... Numa tarde de Outono, fui visitá-lo. Um vento gélido fazia balouçar, freneticamente, os seus quase despidos braços, e as folhas mortas caídas no solo estalavam sob os meus sapatos enlameados. Ergui os braços até às alturas, onde ele terminava, e vi alguns dos ramos decepados, cobertos de musgo, sem folhas, prestes a caírem nas águas escuras do rio. Depois, baixei os olhos até à lama calcada a meus pés e vi as suas raízes vermelhas e ressequidas aparecerem, aqui e ali, no solo cor de tijolo, escorregadio. Fiquei muda, fitando o rio, e encostei-me, carinhosamente, ao seu tronco nu e carcomido. Então, na voz sibilante do vento agreste, pareceu-me ouvir uma voz, suplicante, saída do velho choupo: «-Afasta-te. Mal posso com o teu peso. Quem precisa de apoio sou eu. O Inverno está a chegar...» Desviei-me. «Pobrezinho!» - consegui murmurar. Então, atrás de mim, ouvi a voz do caseiro dizer: - «Amanhã, deitarei abaixo este mostrengo. Antigamente, ainda dava folhas para os animais e sombra para as pessoas, mas agora, aí está a comer o melhor que a terra tem. O milho já...» Não ouvi mais nem me esforcei por ouvir. Alguma coisa senti dentro de mim, que os meus olhos se encheram de lágrimas e, pesarosa, me encaminhei para casa. Ao outro dia, ouvi o barulho, inconfundível, do serrote fazendo o seu tronco musgoso e o brado dos homens saudando a sua descida sobre a terra. Ficou ali à chuva e ao vento, caído no solo, noites sem conta, meio mergulhado no rio lamacento. Quando voltei ao lugar, onde ele crescera e onde eu passara os melhores dias da minha vida, duas lágrimas rebeldes e quentes, deslizaram no meu rosto de mulher. Olhei o rio e não vi a sua sombra, entre tantas, dos que se miravam nostálgicos e serenos. Confidenciei a mágoa que me possuía a meu avô. Vi-o sorrir, tristemente e responder com doçura: - Tudo tem um fim, minha filha. Tal como o choupo do teu desgosto, tudo nasce, tudo cresce, tudo vive, tudo morre. Ele

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rompeu da terra sempre em direção às alturas, tal como tu deves crescer e viver, com os olhos postos no Céu. Tudo vem de Deus e vai para Deus... Eis o destino de toda a vida terrena». ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Lembrei-me do velho choupo, da minha infância, porque, há pouco tempo, quando procurava nos meus velhos manuscritos alguma coisa que eu pudesse ler, caiu sobre o meu regaço um punhado de folhas amarelas e bolorentas, folhas daquele velho choupo, que nascera ali, junto ao Ceira, duma semente vinda não se sabia de onde... Maria Helena AmaroIn, «Maria Mãe», 1973. Data da conclusão da edição no blogue - 02 de janeiro de 2012. http://mariahelenaamaro.blogspot.com/