O Vale de Lágrimas

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Um retrato do Vale do Pirangi e da contínua morte que há na região inundada pelo rompimento da barragem Algodões I

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“A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas.”

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Um retrato do Vale do Pirangi e da contínua morte que há na região inundada pelo rompimento da barragem Algodões I

Francicleiton Cardoso

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Este texto é fruto da dis-ciplina Comunicação e Gênero Literários do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Pi-auí, sendo solicitado pela Profª. Msc. Luciana Chagas.Elaborado a partir da visão in locu da realidade das pes-soas que “sobreviveram” ao rompimento da Barragem Al-godões I, na cidade de Cocal, Piauí, está escrito em um gênero que tende muito ao literário, mas que não destoa em momento algum da realidade daquele povo. L

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Um olhar à margem

Os Algodões encheram de pranto o vale do rio Pi-rangi. Inútil dizer que não me afoguei. Conversar com aquele povo sofrido que viu imergir todos os seus son-hos fez de mim uma daque-las almas sofridas. Eu senti o peso da tromba d’água ao fazer esta reportagem. Peço que me perdoem se há mui-tas referências minhas na história, a culpa disso está senão na dor que senti a cada palavra escutada e que, com a mesma emoção com que foram pronunciadas, me propus a escrevê-las.

***

Do alto da grande ladei-ra que dá acesso ao acanhado povoa-do de Franco de Baixo na cidade de Cocal, Pi-auí, era possível ver, an-tes do dia 27 de maio

de 2009, uma imensa área verde irrigada pela alegria dos balneários e do chuveiro gigante. Agora, anos depois do rompimento da bar-ragem Algodões I, nota-se apenas uma igrejinha que, cercada de ruínas, impera solitária como que impon-do um respeito misterioso e solene por ter a essência do que sobrevive. Seu pa-droeiro, São Gonçalo, santo protetor das enchentes, op-erou em seu favor, abraçan-do-a para não a deixar ruir.Não resisti a uma visão tão vazia daquilo que tantas vez-es foi

minha diversão. Algodões, e agora a falta dele, con-tinua cravado em mim. Eu chorei um choro interno. Era sexta-feira, dia dezes-seis de setembro de 2011 e não passava das quatro da tarde quando chegamos – um amigo meu que estuda a região e eu – à primeira co-munidade atingida. Arrepiei a espinha. Uma sensação de pisar à soleira de um cemité-rio onde repousam parentes p r ó x i - mos. Um

cemitério de pessoas mortas e vivas, construído sobre os escombros de um paraíso.O vasto deserto de cinco mil quilômetros quadrados em que se tornara a área ocupada por cerca de vinte comunidades, parcialmente inóspito hoje em dia, acol-heu-me com sonolência e luto. O rio, em outro mo-mento turbulento e ameaça-dor, corre tranquilo entre os pedregulhos. A igreja vista do alto foi recentemente pin-

tada na busca de apagar as marcas que

a água e os dest ro ços

deixar-a m

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nas paredes. Há bandeiras juninas ondulando à sua volta, como que anunciando que houvera um festejo há pouco tempo. Idealizo como devem ter sido as comemo-rações e mergulho num in-stante de êxtase e contem-plação. Acordo quando meu amigo me chama atenção para um senhor que segue com um jumento carregado de vasilhas, supostamente cheias de água – imagino. Seguimos para alcançá-lo por uma estrada de terra, uma terra grossa que hoje em dia está sendo aprovei-tada ilegalmente para a con-strução civil. É possível ver, quando se está à margem do rio, o que sobrou do paredão imenso, onde intac-to permanece escrito “BAR-RAGEM ALGODÕES” em letras graúdas.Cerca de três quilômetros de terra, entulho e pedras sepa-ram a igreja de São Gonçalo da parede da barragem, mas o deserto que existe nesse caminho dá a impressão de que ela está a poucos metros.

Quando o vale chorou

Há algumas semanas a chuva abençoava a região fazendo com que os moradores, que eram todos agricultores, en-

chessem os olhos de alegria e medo. Alegres presencia-vam a possibilidade de uma colheita lucrativa que lhes rendessem fartura e assus-tados miravam com olhos atentos a parede da bar-ragem que ameaçava ruir. Terça-feira, 12 de maio de 2009, a barragem dá os primeiros sinais de desastre. O volume de água ultrapas-sou os 52 milhões de litros suportáveis. As primeiras lágrimas começaram a es-correr pela enorme esca-daria que existia no lado direito da barragem e funcion-ava como sangrador. P r e v e n t i v a -mente as au-t o r i d a d e s e x i g i r a m a retirada de todas as pessoas da região, uma vez que a previsão de alagamento era irremediável. A ordem foi clara, deveriam sair o quanto antes das proximi-dades da barragem. Saíram, com a dor de quem deixa para trás uma vida in-teira que será inundada.Dormiriam as próximas se-manas no chão de alguns colégios da região. Foram noites de poucos sonhos, o principal deles era que

os deixassem voltar para suas casas, que o risco pas-sasse e que pudessem seguir o curso natural como o rio os ensinara a viver.Sonho realizado. Passa-dos poucos dias, depois de avaliarem que os gastos com aquelas pessoas esta-vam ultrapassando os lim-ites, resolveram pô-las de volta em seu habitat natural. Largaram-nas como bichos nas suas casas, garantido que não havia mais perigo de rompimento. O engen-heiro responsável assinou essa garantia pela quan-

tia de nove vidas.No dia o

c a l e nd ár i o marcava 27 de maio, mas não

havia hora. Não há horas

para acontecer des-graças. O relógio estava neu-tro. As donas de casa, como todas as donas de casa, cum-priam seus afazeres com aquele prazer que só elas compreendem, enquanto seus maridos tratavam de tratar das coisas. Todos es-tampavam uma alegria só-bria nos rostos pálidos. A barragem não estouraria, era o que haviam prometido.Segurança é saber hesitar

“O engenheiro responsável assinou

essa garantia pela quan-tia de nove vidas.”

Da vez primeira que me assassinaram

Da vez primeira em que me assassinaram

Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...

Depois, de cada vez que me mataram

Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou

O mais desnudo, o que não tem mais nada...

Arde um toco de vela, amarelada...

Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!

Ah! Desta mão, avaramente adunca,

Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Hor-ror! Voejai!

Que a luz, trêmula e triste como um ai,

A luz do morto não se apaga nunca!

Mário Quintana

(1906-1994)

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na hora certa, e foi o que não aconteceu com aque-las pessoas. A barragem rompeu enquanto eles menos esperavam. Alguns ainda ajeitavam suas coisas, e outros acabavam de che-gar com as malas dos colé-gios onde estavam seguros.Os milhões de litros de água começaram a ser despe-jados sobre todas aquelas pessoas que olhavam de-screntes para aquela onda de dez metros que corria em sua direção, varrendo tudo o que havia num compri-mento de três quilômetros.

***Pauso. Talvez por que ache que esta parte precise de um minuto de silêncio. Peço que imaginem detalhadamente o que me foi dito pelas pes-soas que presenciaram tudo isso e que, do modo mais fiel possível transcrevo.

***“No dia que arrombou, meu filho, gritavam e chora-vam velhos e novos. Nin-guém acreditava que ia escapar. Nem eu mesmo.” “Foi um desespero total. Não podia pensar em outra coisa, senão na morte que se aproximava de mim. Nós ia morrer afogado. Não tinha dúvida” [SIC].“Três criancinhas. Eu vi elas

correndo para chegarem mais perto do morro. A onda foi se aproximando e elas subiram num cajueiro. De-pois eu não vi nem cajueiro nem meninas. Foram acha-das mortas, todas as três.”“Não ficou nada. A água lev-ou até as covas do cemitério.”“Eu vi minhas filhas agar-radas numa cerca de arame, ela gritavam por mim, mas eu não pude fazer nada!”

***Cada pessoa que me acolheu nessa sexta-feira me deixou um pouco de si. Enquanto contavam para mim essas histórias eu não pude conter a comoção. Por mais que o instinto do jornalismo peça que sejamos neutros, eu não pude evitar a interferência de minhas lágrimas internas nas lágrimas que todos eles deixavam escorrer como um rio. As lágrimas e o rio. Um rio de lágrimas. Um vale de um rio de lágri-mas. Um vale de lágrimas.Saí de lá naquela tarde com um sentimento que eu desconhecia. Uma tristeza, um re-morso, uma revolta. Aquele povo ainda morre constante-mente. Morrem ao não terem mais a identidade. Por

não saberem mais onde fica-vam suas calçadas e suas ár-vores favoritas. Morrem por não poderem plantar nem colher, que era a única coisa que sabiam. Morrem de sede contínua. De fome de justiça.

Personagens da Salve Rainha

São tantos e com tantas dores, que não cabe-riam todos aqui. Vieram todos a mim. Eu não os

busquei. Eles que disseram que queriam falar comigo, mesmo antes de saber quem eu era ou que o estava fazen-do ali. Eles são o tipo de pes-soas que precisam falar para ao menos tentar desabafar um pouco de tudo aquilo.

“O quê foi aquilo? O que foi aquilo?

Meu Deus! Eu sobreviv i? ” Apenas uma dessas almas

que vague-iam por o vale

sombrio da de-sordem e

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do descaso disse que não iria falar. “- É do acidente? Eu num falo não. Dói demais. É uma faca na gente.” [SIC]É Socorro Santos, mas já sem nenhum santo, que se dirigi a mim assim. Ela es-conde algo em seu olhar perdido e quase não olha ninguém na face. Eu arran-quei dela apenas poucas pa-lavras e um papel, um papel em que ela narra tudo o que passou naqueles dias turbu-lentos. A carta começa e as minhas lágrimas rompem. É inevitável. “27 de maio, este dia nunca vai sair da minha cabeça. (...) Foi uma água assassina.” A água lhe levou duas filhas, uma delas nunca encontrada, a mãe, o mari-do, uma sobrinha e com todos eles um coração. É de-pressiva, m a s sincer-

amente, q u e m não seria?E l a

e todos os outros sofrem os efeitos nocivos do trauma, além do efeito devastador da indiferença de seus san-tos, de nossos santos de terno e gravata. Esses san-tos que dão de milagre, migalhas para quem vivia de plantar em abundância. Na casa ao lado da de So-corro, ou melhor, no que lhes deram como casa, en-contrei D. Maria das Graças, já com seus 60 anos, de pele enrugada e de lágrimas nos olhos. Sobreviveu depois de escalar, sem nem mesmo saber onde encontrara forças, as paredes da casa em que morava. Ela medita constante-mente, como se o pas-sado fosse algo em que a sua vida esteja pro-fundamente

fincada. E l a sofre

ainda pela água, agora pela água da chuva que invade sua casa: “Quando a chuva vem, leva tudo meu filho. Por isso às vezes eu choro (e chora). Sinto saudades da minha cozinha. Sei lá o que foi isso! Sei lá!” Saio e ela continua chorando. As suas lágrimas se mistur-am com um chuvisco fino.Vivi essas pessoas. Vivi Antônio o enfermeiro, que me diz ter ficado uma se-mana sem beber: “como eu

podia tomar a as-sassina. Era como beber veneno.”; vivi Fátima que

me sorri ao falar que encontrara sua filha

em

putrefação e sendo devo-rada por urubus. E tantos outros que compartilham dores e lacunas em si. Eu saí dali com sede e cer-to medo de toda aquela história. Não tive coragem de pedir água, eles passam sede pela falta dela hoje em dia. Quando dei por mim que atravessava o rio, o mesmo rio violento, não hesitei, tomei a água entre as mãos e a deixei cair pela garganta, enquanto pertu-badoramente uma voz me dizia que eu estava comun-gando uma assassina. Bebi com revolta. A mesma re-volta daquele povo ribeiro. Que vive à margem do rio, que vive à margem da vida.Chorei, enquanto seguia para casa e definia o título da reportagem rezando a oração que mais me lem-

brava aquilo tudo: “Salve, Rain-

ha, mãe d e m i s -

ericór-dia, vida,

doçura, es-perança nossa,

salve! A vós br-adamos os degredados

filhos de Eva. A vós suspira-mos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas...”

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“Arrepiei a espinha. Uma sensação de pisar à soleira de um cemitério onde repousam parentes próximos. Um cemitério de pessoas mortas e vivas, construído sobre os escombros de um paraíso.”