o Uso Da Imagem Nas Ciêncais Sociais

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  • Os Usos da Imagem nas Cincias Sociais

    Maria Teresa Villela Bandeira de Mello

    Desafios da Imagem

    Organizado por Bela Feldman-Bianco

    e Mriam L. Moreira Leite.

    So Paulo, Editora Papirus, 1998.

    Os anos 1980 foram promissores e produtivos para as cincias sociais e humanas. A

    conhecida crise dos paradigmas redimensionou as metodologias e as tcnicas predominantes no

    campo das cincias humanas, fazendo com que os cientistas sociais percebessem os limites do

    alcance interpretativo dos modelos dominantes e buscassem alternativas. Um dos aspectos dessa

    crise foi o reconhecimento da distncia que separava as cincias sociais da discusso sobre as

    formas de representao da visualidade contempornea e dos avanos das novas tecnologias de

    comunicao e produo de suportes imagticos.

    Ests reconhecimento promoveu o desenvolvimento da discusso em torno das novas bases

    tericas e epistemolgicas das cincias sociais a partir da incorporao de novos temas, novos

    objetos e novas estratgias no campo de conhecimento dos cientistas sociais e historiadores. Como

    decorrncia, verificou-se um crescimento significativo de pesquisas e publicaes cujo objeto de

    reflexo vincula-se utilizao de imagens, sob os mais variados suportes, nas cincias sociais.

    O livro Desafios da imagem, organizado por Bela Feldman-Bianco e Miriam Moreira

    Leite, insere-se nessa busca de renovao do campo das cincias sociais e humanas. Resultado de

  • interlocues transdisciplinares, realizadas no Brasil, sobre a utilizao de iconografia, fotografia,

    cinema e vdeo tanto como instrumento quanto como tema ou produto de pesquisa, o livro uma

    coletnea na qual os autores buscam refletir criticamente sobre o cruzamento entre as cincias

    sociais e a linguagem visual na atualidade.

    O duplo reconhecimento da importncia das culturas visuais no mundo contemporneo e da

    necessidade de aprender a ler, produzir e interpretar criticamente as diferentes linguagens visuais,

    fornece o eixo central em torno do qual se articulam os 15 artigos que integram o livro.

    Em busca de novas perspectivas terico-metodolgicas, faz-se um questionamento da

    tendncia de construir o conhecimento por meio de modelos e classificaes e de utilizar a dimenso

    imagtica como documento da realidade objetiva ou como mera ilustrao de textos verbais. Ao

    invs do simples registro e da documentao visual do instantneo da experincia, ressalta-se a

    importncia de dedicar maior ateno aos significados culturais engendrados pelas imagens, bem

    como s formas pelas quais a produo e a leitura dessas imagens so mediadas. Essa nova forma

    de abordagem transforma a prtica de pesquisa. A utilizao de linguagens visuais acentua a

    necessidade de se redefinir as relaes entre pesquisadores e seus sujeitos e ajuda a dirimir

    oposies reducionistas entre subjetividade e objetividade na pesquisa. Em vez da postura neutra do

    observador participante, a pesquisa passa a ser o resultado da interao entre pesquisadores,

    pesquisados, produtos e contextos histricos (p. 11 e 12).

    Dividido em cinco partes, Desafios da imagem discute, mapeia e descreve os esforos das

    cincias sociais para dialogar com a modernizao e os avanos tcnicos, procurando, na discusso

    filosfico-conceitual e na experimentao, compatibilizar propostas de pesquisa e suportes tcnicos.

    Na parte I, Reflexes sobre a linguagem visual a que apresenta maiores contribuies

    tericas , o que h de comum entre os artigos a problematizao das questes interpretativas, a

    avaliao terica da incurso das cincias sociais na interface com os suportes contemporneos e a

    descrio dos primeiros resultados em termos de definio de fundamentos. Os textos questionam

    os antigos paradigmas interpretativos, discutindo as mudanas na natureza do olhar e enfatizando as

    relaes entre imagem, viso e compreenso como aquelas que produzem o aprendizado do

    significado do imagtico. Nesse sentido, os textos inserem no processo de interpretao das

  • imagens, alm dos contextos histricos especficos, os produtores de imagens, os produtos

    imagticos e seus suportes. A tarefa de renovao implica, a partir da, uma interface com os

    tericos da arte que foram os primeiros a colocar o carter construdo e subjetivo do conhecimento.

    Em Sob o signo do clic: fotografia e histria em Walter Benjamin, Maurcio Lissovsky

    retoma a linha interpretativa de Benjamin, para apresent-lo como um dos primeiros pensadores a

    se ocupar da elaborao de uma teoria da arte adequada aos tempos da imagem tcnica e a

    avaliar o impacto cultural de sua disseminao. De acordo com o autor, uma observao mais

    acurada sobre o olhar de Benjamin diante de uma fotografia nos leva a reconhecer, em sua reflexo

    sobre a imagem tcnica, as preocupaes do historiador com o que a imagem revela: ao provocar

    rupturas entre processos e contigidades histricas, essas imagens foram fotgrafos, historiadores e

    espectadores a ler uma totalidade ou idia. Lissovsky promove, ento, uma rediscusso do conceito

    de aura e de arte, acentuando as mudanas nas relaes entre autoria e suportes e indicando a

    eliminao das barreiras entre a produo da obra de arte e sua recepo no mercado, fazendo com

    que a reprodutibilidade tcnica seja repensada no mbito da visualidade contempornea.

    No artigo seguinte, Texto visual e texto verbal, Mriam Moreira Leite apresenta uma breve

    descrio da insero da fotografia no horizonte de preocupaes das cincias sociais, com o

    objetivo de subsidiar suas reflexes em torno da construo e da leitura da iconografia como fonte

    primria. Dessa forma, a autora busca uma compreenso mais ampla e profunda das formas de

    anlise e de interpretao da imagem fotogrfica. O centro das reflexes encontra-se nas relaes

    entre o texto verbal e o visual, sua complementaridade e sua oposio. Sua concluso de, que

    embora a linguagem visual seja considerada de transmisso direta, ela acaba tendo uma postura

    parasitria em relao linguagem verbal. A identificao de nveis de produo discursiva distintos

    acaba por manter a autora no espao da tradio, no identificando o processo de autonomia do

    texto visual e seu grau de equivalncia com o texto verbal.

    Com o texto Questes heursticas em torno do uso das imagens nas cincias sociais,

    Etienne Samain destaca a importncia da reflexo sobre as bases culturais e os estatutos

    diferenciados dos veculos produtores de imagens. O que singulariza o artigo no conjunto da

    coletnea a indicao mais pontual de uma alterao do olhar do cientista social na considerao

  • dos suportes imagticos, especialmente no sentido de no consider-los como mera ilustrao do

    saber constitudo. A partir da, o autor sugere, como procedimento, a observao dos diversos

    suportes comunicacionais fala, escrita, fotos, filmes, vdeos, tv, cd-Rom etc. para que o

    pesquisador perceba suas operaes cognitivas especficas, que no podem ser confundidas, nem

    hierarquizadas. Dessa forma, Samain observa que a natureza das imagens varia, e muito, de um meio

    de comunicao para outro, de tal maneira que se torna inprescindvel saber com que tipo de

    imagem pretendemos lidar.

    Outro aspecto a salientar no artigo de Etienne Samain que, ao retomar as discusses da

    histria da arte, o autor aponta para uma preocupao com o fato de que atualmente, quando se fala

    da aproximao entre verbalidade e visualidade, comum utilizar as expresses linguagem visual,

    discurso, estilo, gramtica e retrica da imagem, reduzindo a visualidade a uma matriz meramente

    lingstica.

    A parte II, Ler imagens: iconografia e fotografia como objetos de pesquisa, rene os

    trabalhos de Mauro Koury, Caixes infantis expostos: o problema dos sentimentos na leitura de

    uma fotografia, Maria Sylvia Porto Alegre, Reflexes sobre iconografia etnogrfica: por uma

    hermenutica visual, e de Llia K. Moritz Schwarcz, O olho do rei. As construes iconogrficas e

    simblicas em torno de um monarca tropical: o imperador D. Pedro II. Em comum, entre eles, a

    experincia da interpretao de imagens, atribuindo-lhes o papel de expresses reveladoras do

    imaginrio social. A relevncia do conjunto a caracterizao da documentao visual como

    indicadora de um determinado nvel de expectativas, estabelecendo a necessidade de um

    aprimoramento da maneira de olhar e interpretar a realidade expressa pelas imagens.

    Os textos da parte III, Acervos visuais e ensino, retratam trs experincias distintas de

    utilizao ou de constituio de acervos de imagens como fonte de pesquisa ou de ensino das

    cincias sociais. Em No garimpo do nitrato, Patrcia Monte-Mr contextualiza as aproximaes

    entre cinema e antropologia desde a dcada de 1950 e relata sua experincia como curadora da

    Mostra Internacional do Filme Etnogrfico para demonstrar a importncia da relao entre a

    constituio de acervos de documentrios etnogrficos e o ensino das cincias sociais. J Maria

    Beatriz Rocha Trindade, em Imagens e aprendizagens na sociologia e na antropologia, ressalta a

  • importncia da utilizao da imagem e de recursos multimdia no processo de aprendizagem

    distncia, a partir do trabalho desenvolvido pelo Centro de Estudos das Migraes e das Relaes

    Interculturais/CEMRI, da Universidade Aberta de Portugal. Encerrando esta parte, Ana Maria

    Galano, em Iniciao pesquisa com imagens, descreve a experincia do Ncleo Audiovisual de

    Documentao/Navedoc, do Laboratrio de Pesquisa Social do IFCS/UFRJ na constituio de

    acervos fotogrficos relacionados a projetos de pesquisa que utilizam a fotografia como instrumento

    ou tema de investigao.

    A parte IV, Produzir imagens: a dimenso imagtica como instrumento de pesquisa, rene

    textos que constituem reflexes crticas sobre a necessidade de aprender a observar e interpretar

    culturas visuais, com base em experincias especficas de produo de imagens fixas ou em

    movimento durante o processo de trabalho de campo. Dessa forma, os autores examinam e

    problematizam questes relacionadas ao processo de produo de conhecimento atravs da

    combinao entre o fazer e o pensar, trabalhando a eliminao da diferena entre o pensar terico e

    a ao emprica e transformando os artefatos imagticos em parte constitutiva da prtica de

    pesquisa.

    Assim, em Algumas consideraes sobre o uso da imagem fotogrfica na pesquisa

    antropolgica, Luciana Bittencourt procura analisar as caractersticas da imagem fotogrfica que

    possam contribuir para ampliar a compreenso dos processos de simbolizao prprios dos

    universos culturais com os quais os antroplogos se defrontam em suas pesquisa de campo.

    Recuperando a discusso sobre o papel da imagem e sua capacidade de registro e de representao

    do conhecimento antropolgico, Bittencourt constata que, na maioria das vezes, o uso da imagem

    em antropologia restringiu-se ao aspecto documental da realidade social. Como novo caminho,

    prope a utilizao da imagem como uma narrativa visual que informa o relato etnogrfico com a

    mesma autoridade do texto escrito. A partir de seu trabalho de campo com artesos do vale do

    Jequitinhonha, em Minas Gerais, demonstra como a fotografia, alm de registrar e documentar, pode

    auxiliar os atores sociais a interpretar as transformaes ocorridas na sua vida social e cultural.

    A elaborao de um audiovisual cientfico no campo das cincias sociais e as condies de

    sua realizao fundamentam o artigo Caleidoscpio de imagens: o uso do vdeo e a sua

  • contribuio anlise das relaes sociais, de Clarice Peixoto. Apontando para a importncia de

    um trabalho prvio de definio e problematizao sobre o qu, por qu, como, para que e para

    quem filmar, videografar, fotografar, a autora rompe com as abordagens tradicionais que utilizam a

    imagem meramente como ilustrao para atribuir-lhe um significado de contedo antropolgico.

    Ana Maria de Niemeyer, em Um outro retrato: imagens de migrantes favelados, relata a

    pesquisa que desenvolveu ao longo da dcada de 1970 em uma favela da periferia de So Paulo

    para discutir a representao do ideal de casa dos moradores desse ncleo urbano, formado

    basicamente por migrantes nordestinos. Para tanto, alm das fotografias produzidas durante o seu

    trabalho de campo, utiliza-se de fotografias e desenhos realizados pelos prprios moradores.

    A ltima parte do livro, Vdeo, etnografia e comunicao intercultural, constituda de

    artigos, como nos informa a introduo da coletnea, baseados em experincias de produo de

    mdia audiovisual, seja como meio de divulgar resultados de pesquisa, seja com o intuito de

    interveno poltico-cultural.

    Em Nos bastidores de um vdeo etnogrfico, Andra Cardarello, Cludia Fonseca, Nuno

    Godolphim e Rogrio Rosa relatam sua experincia na produo do vdeo Ciranda, Cirandinha -

    Histrias de circulao de crianas em grupos populares, para refletir sobre as frustraes e os

    desafios enfrentados por cientistas formados na tradio da escrita que do seus primeiros passos

    no mundo da antropologia visual.

    Outro exemplo de experimentao o artigo de Bela Feldman-Bianco, (Re)construindo a

    saudade portuguesa em vdeo: histrias orais, artefatos visuais e a traduo de cdigos culturais na

    pesquisa etnogrfica, que utiliza sua experincia na produo do vdeo Saudade para discutir as

    relaes, diferenas e complementaridades entre o texto etnogrfico escrito e a etnografia visual,

    reforando a mediao entre os vrios modos de apresentao de imagens e suas leituras.

    Finalizando, Dominique Gallois, em Antroplogos na mdia: comentrios acerca de algumas

    experincias de comunicao intercultural, toma como referncia o projeto Vdeo nas aldeias,

    desenvolvido pelo Centro de Trabalho Indigenista/CTI, uma organizao no-governamental, para

    propor uma mudana de comportamento do cientista social: para alm de utilizar o audiovisual como

    mtodo de pesquisa e produo de conhecimento antropolgico, preciso discutir o uso de agentes

  • visuais como meio de difuso de um conhecimento produzido em razo da comunicao

    intercultural.

    Como toda coletnea, Desafios da imagem apresenta artigos desiguais e por vezes

    redundantes, como pode ser observado na eterna discusso, recorrente na maioria dos artigos,

    sobre o carter de representao da realidade contido nas imagens. A clssica discusso sobre a

    pretensa objetividade da imagem, que se desenvolve em diversos campos do conhecimento humano

    comunicao, cincias sociais, histria etc. desde a dcada de 1970, muitas vezes apontada

    como uma grande descoberta por alguns autores.

    No entanto, a leitura da coletnea estimulante por tratar-se de um painel do estado da arte

    do debate sobre as novas estratgias metodolgicas para o ensino e a pesquisa em cincias sociais a

    partir do trabalho com as diversas formas de visualidade contempornea. Alm disso, revela as

    certezas e incertezas presentes no mundo das cincias sociais diante do desafio das novas formas de

    expresso dos conflitos, das sociabilidades, das subjetividades, enfim, de tudo aquilo que expressa a

    tenso proveniente da crise dos paradigmas.