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O UNIVERSAL SEM TOTALIDADE, ESSNCIA DA CYBERCULTURAPierre Lvy

A cada minuto que passa, novas pessoas assinam a Internet, novos computadores se interconectam, novas informaes so injetadas na rede. Quanto mais o ciberespao se estende, mais universal se torna, menos totalizvel o mundo informacional se torna. O universal da cybercultura est to desprovido de centro como de linha diretriz. Est vazio, sem contedo. Ou melhor, aceita todos, pois contenta-se com pr em contato um ponto qualquer com qualquer outro, qualquer que seja a carga semntica das entidades postas em relao. Eu no quero dizer com isso que a universalidade do ciberespao seja neutra ou sem conseqncias, pois o fato-mor do processo de interconexo geral j tem e ter ainda mais, no futuro, imensas repercusses na vida econmica, poltica e cultural. Esse evento est efetivamente transformando as condies da vida em sociedade. Trata-se, no entanto, de um universal indeterminado e que tende at a manter sua indeterminao, pois cada novo n da rede de redes em constante extenso pode tornar-se produtor ou emissor de informaes novas, imprevisveis, e reorganizar por conta prpria parte da conectividade global.O ciberespao possui o carter de sistema dos sistemas mas, por isso mesmo, tambm o sistema do caos. Mxima encarnao da transparncia tcnica, acolhe, no entanto, devido sua irreprimvel profuso, todas as opacidades do sentido. Desenha e redesenha a figura de um labirinto mvel, em extenso, sem plano possvel, universal, um labirinto com o qual o prprio Ddalo no poderia ter sonhado. Essa universalidade desprovida de significado central, esse sistema da desordem, essa transparncia labirntica, eu a chamo o universal sem totalidade. Constitui a essncia paradoxal da cybercultura.A escrita e o universal totalizantePara entender bem a mutao da civilizao contempornea, preciso fazer um retorno reflexivo sobre a primeira grande transformao na ecologia das mdias: a passagem das culturas orais para as culturas da escrita. A emergncia do ciberespao ter provavelmente j tem hoje at um efeito to radical sobre a pragmtica das comunicaes como o teve em seu tempo a inveno da escrita.Nas sociedades orais, as mensagens lingsticas sempre eram recebidas no momento e no local de sua emisso. Emissores e receptores partilhavam uma situao idntica e, na maioria das vezes, um universo semelhante de significado. Os atores da comunicao mergulhavam no mesmo banho semntico, no mesmo contexto, no mesmo fluxo vivo de interao.A escrita abriu um espao de comunicao desconhecido pelas sociedades orais, no qual tornava-se possvel tomar conhecimento de mensagens geradas por pessoas situadas a milhares de quilmetros ou mortas desde sculos, ou expressando-se desde enormes distncias culturais ou sociais. Assim sendo, os atores da comunicao no partilhavam necessariamente a mesma situao, no estavam mais em interao direta.Subsistindo fora de seus condies de emisso e recepo, as mensagens escritas mantm-se "fora de contexto". Esse "fora de contexto" que inicialmente se insere apenas na ecologia das mdias e na pragmtica da comunicao foi legitimado, sublimado, interiorizado pela cultura. Tornar-se- o ncleo de uma certa racionalidade e acabar levando noo de universalidade. difcil entender uma mensagem quando separada de seu contexto vivo de produo. por isso que, ao lado da recepo, inventaram-se as artes da interpretao, da traduo, toda uma tecnologia lingstica (gramticas, dicionrios). Do lado da emisso, houve um esforo para compor mensagens que fossem capazes de circular por toda a parte, independentemente de suas condies de produo, as quais contm em si, na medida do possvel, suas chaves de interpretao ou sua "razo". A esse esforo prtico corresponde a Idia do Universal. Em princpio, no h a necessidade de recorrer a um testemunho vivo, a uma autoridade externa, a hbitos ou a elementos de um determinado ambiente cultural, para compreender e admitir as proposies enunciadas nos Elementos de Euclides. Esse texto inclui em si as definies e os axiomas a partir dos quais decorrem necessariamente os teoremas. Os Elementos so um dos melhores exemplos do tipo de mensagem auto-suficiente, auto-explicativa, englobando suas prprias razes, que no teria pertinncia alguma numa sociedade oral.Cada uma sua maneira, a filosofia e a cincia clssicas almejam a universalidade. Eu formulo a hiptese de que porque elas no podem ser separadas do dispositivo de comunicao instaurado pela escrita. As religies "universais" (no estou falando apenas dos monotesmos: pensemos no Budismo) so todas elas apoiadas em textos. Se eu quiser converter-me ao Islamismo, posso faz-lo em Paris, em Nova Iorque ou na Meca. Mas se eu quiser praticar a religio bororo (supondo-se que esse projeto tenha um sentido), no tenho outra soluo que no ir viver com os bororos. Os rituais, os mitos, as crenas e os modos de vida bororo no so "universais", mas sim contextuais ou locais. De maneira alguma apiam-se numa relao com os textos escritos. Evidentemente, essa constatao no implica nenhum julgamento de valor etnocntrico: um mito bororo pertence ao patrimnio da humanidade e pode virtualmente comover qualquer ser pensante. Por outro lado, religies particularistas tambm tm seus textos a escrita no determina automaticamente o universal, ela o condiciona (no h universalidade sem escrita).Assim como os textos cientficos ou filosficos que supostamente contm suas prprias razes, seus prprios fundamentos e trazem consigo suas condies de interpretao, os grandes textos das religies universalistas englobam por construo a fonte de sua autoridade. Com efeito, a origem da verdade religiosa a revelao. Ora, a Tora, os Evangelhos, o Alcoro so a prpria revelao ou o relato autntico da revelao. O discurso no est mais no fio de uma tradio cuja autoridade vem do passado, dos ancestrais ou da evidncia partilhada de uma cultura. Somente o texto (a revelao) fundamenta a verdade, fugindo, assim, de qualquer contexto condicionante. Graas ao regime de verdade que se apia num texto-revelao, as religies do livro libertam-se da dependncia de um meio particular e tornam-se universais.Observemos, de passagem, que o autor (tpico das culturas escritas) , originalmente, a fonte da autoridade, enquanto o que o intrprete (figura central das tradies orais) faz apenas atualizar ou modular uma autoridade que vem de outro lugar. Graas escrita, os autores, demirgicos, inventam a autoposio do verdadeiro.No universal fundamentado pela escrita, o que deve manter-se inalterado pelas interpretaes, tradues, translaes, difuses, conservaes, o sentido. O significado da mensagem deve ser o mesmo aqui e acol, hoje e outrora. Esse universal indissocivel de um alcance de fechamento semntico. Seu esforo de totalizao luta contra a pluralidade aberta dos contextos atravessados pelas mensagens, contra a diversidade das comunidades que os fazem circular. Da inveno da escrita decorrem as exigncias muito especiais da descontextualizao dos discursos. Desde esse evento, o domnio englobante do significado, a pretenso do "tudo", a tentativa de instaurar o mesmo sentido (ou, para a cincia, a mesma exatido) em cada lugar est, para ns, associado ao universal.Meios de comunicao de massa e totalidadeOs meios de comunicao de massa (imprensa, rdio, cinema, televiso) seguem, ao menos em sua configurao clssica, a linha cultural do universal totalizante iniciada pela escrita. Dado que a mensagem meditica ser lida, ouvida, vista por milhares ou milhes de pessoas mundo afora, composta de maneira que encontre o denominador comum mental de seus destinatrios. Seu alvo so os receptores, no mnimo, de sua capacidade interpretativa. No cabe desenvolver aqui tudo quanto distingue os efeitos culturais da mdia eletrnica dos da prensa. S queria ressaltar uma semelhana. Por circular num espao desprovido de interao, a mensagem meditica no pode explorar o contexto particular que envolve o receptor, ignora sua singularidade, suas aderncias sociais, sua microcultura, seu momento e sua situao especial. Tal dispositivo, ao mesmo tempo redutor e conquistador, que fabrica o "pblico" indiferenciado, a "massa" dos meios de comunicao de massa. Universalizante por vocao, a mdia totaliza de maneira frouxa sobre o atrativo emocional e cognitivo mais baixo, para o espetculo contemporneo, ou de maneira muito mais violenta, sobre a propaganda do partido nico, para os totalitarismos clssicos do sculo XX: fascismo, nazismo e estalinismo. A mdia eletrnica, por exemplo, o rdio ou a televiso, trazem uma segunda tendncia, complementar da primeira. Paradoxalmente, a descontextualizao que eu acabo de mencionar estabelece outro contexto, holstico, quase que tribal, porm numa escala maior do que nas sociedades orais. Interagindo com os outros meios de comunicao, a televiso traz tona um plano emocional de existncia que rene os membros da sociedade numa espcie de macrocontexto flutuante, sem memria e de rpida evoluo. Percebe-se isso mais especialmente nos fenmenos do "ao vivo" e em geral quando a atualidade se torna quente. preciso reconhecer a McLuhan o fato de ter sido o primeiro a descrever esse carter das sociedades mediticas. A principal diferena entre o contexto meditico e o contexto oral que os telespectadores, embora emocionalmente implicados na esfera do espetculo, jamais podem s-lo praticamente. Por construo e no plano meditico de existncia, jamais so atores.A verdadeira ruptura com a pragmtica da comunicao estabelecida pela escrita no pode vir luz com o rdio ou a televiso, pois esses instrumentos de difuso em massa no permitem nenhuma verdadeira reciprocidade, tampouco interaes transversais entre os participantes. Em vez de emergir das interaes vivas de uma ou mais comunidades, o contexto global instaurado pela mdia fica fora do alcance dos que consomem apenas sua recepo passiva, isolada.Complexidade dos modos de totalizaoMuitas formas culturais derivadas da escrita tm a universalidade por vocao; porm, cada uma totaliza com base num atrativo diferente: as religies universais sobre o sentido, a filosofia (inclusive a filosofia poltica) sobre a razo, a cincia sobre a exatido reprodutvel (os fatos), a mdia sobre uma captao num espetculo siderante batizado como "comunicao". Em todos os casos, a totalizao opera-se sobre a identidade do significado. Cada uma sua maneira, essas mquinas culturais procuram reproduzir, no plano de realidade que inventam, uma sorte de coincidncia com eles mesmos dos coletivos que renem. O Universal? Uma espcie de aqui e agora virtual da humanidade. Ora, embora desemboquem numa reunio por um aspecto de sua ao, tais mquinas de produzir o universal decompem, por outro lado, uma multido de micrototalidades contextuais: paganismos, opinies, tradies, saberes empricos, transmisses comunitrias e artesanais. Por sua vez, essas destruies de local so imperfeitas, ambguas, pois por contragolpe os produtos das mquinas universais so fagocitados, relocalizados, misturados aos particularismos que eles gostariam de transcender. Embora o universal e a totalizao (a totalizao, isto , o fechamento semntico, a unidade da razo, a reduo do denominador comum, etc.) tenham sempre estado ligados, sua conjuno oculta fortes tenses, dolorosas contradies que talvez a nova ecologia da mdia polarizada pelo ciberespao permita desvelar. Essa resoluo, digam-lo com fora, no est em absoluto garantida, nem automtica. A ecologia das tcnicas de comunicao prope, os atores humanos dispem. Eles so quem decide em ltima instncia, deliberadamente ou na semi-inconscincia dos efeitos coletivos, do universal cultural que juntos esto construindo. E, para isso, devem ter percebido a possibilidade de novas escolhas.A cybercultura ou o universal sem totalidadeCom efeito, o maior evento cultural anunciado pela emergncia do ciberespao o desatrelamento entre esses dois operadores sociais ou mquinas abstratas (muito mais do que conceitos!) que a universalidade e a totalizao so. A causa simples: o ciberespao dissolve a pragmtica de comunicao que, desde a inveno da escrita, havia conjuntado o universal e a totalidade. Com efeito, leva-nos de volta a essa situao anterior a escrita porm, numa outra escala e em outra rbita na medida em que a interconexo e o dinamismo em tempo real das memrias em linha faz os parceiros da comunicao partilharem novamente o mesmo contexto, o mesmo imenso hipertexto vivo. Qualquer que seja a mensagem abordada, ela est conectada com outras mensagens, com comentrios, com gloses em constante evoluo, com pessoas que se interessam por elas, com os fruns onde so debatidas, aqui e agora. Qualquer texto o fragmento que se ignora talvez do hipertexto mvel que o envelopa, que o conecta com outros textos e serve como mediador ou meio para uma comunicao recproca, interativa, ininterrupta. Sob o regime clssico da escrita, o leitor est condenado a reatualizar dispendiosamente o contexto, ou ento a aceitar o trabalho das Igrejas, das instituies ou Escolas, obstinadas a ressuscitar e fechar o sentido. Hoje, porm, tecnicamente e devido iminente colocao em rede de todas as mquinas do planeta, quase no existem mais mensagens "fora de contexto", separadas de uma comunidade ativa. Virtualmente, todas as mensagens mergulham num banho comunicacional borbulhante de vida, incluindo as prprias pessoas, e do qual o ciberespao vai progressivamente sendo o corao.Os correios, o telefone, a imprensa, as editoras, as rdios, as incontveis redes de televiso formam doravante a franja imperfeita, os apndices parciais e diferentes, todos eles de um espao de interconexo aberto, animado por comunicaes transversais, catico, turbilhonante, fractal, movido por processos magmticos de inteligncia coletiva. verdade que jamais nos banhamos duas vezes no mesmo rio informacional, mas a densidade dos vnculos e a velocidade das circulaes so tais que os atores da comunicaes no sentem mais nenhuma grande dificuldade para partilhar o mesmo contexto, ainda que essa situao seja algo movedia e ocasionalmente confusa.Utopia minimal e motor primrio do crescimento da Internet, a interconexo generalizada emerge como forma nova do Universal. Ateno! O processo de interconexo mundial em curso realiza mesmo uma forma do Universal, mas essa no a mesma do que com a escrita esttica. Aqui, o Universal deixa de articular-se no fechamento semntico chamado pela descontextualizao. Muito pelo contrrio. Esse Universal no totaliza mais o sentido, mas sim liga pelo contato, pela interao geral.O Universal no o planetrioDir-se-, talvez, que no se trata propriamente do Universal, mas do planetrio, do fato geogrfico bruto, da extenso das redes de transporte material e informacional, da constatao tcnica do crescimento exponencial do ciberespao. Pior ainda, sob o pretexto de universal, no se tratar apenas do puro e simples "global, o da "globalizao" da economia ou dos mercados financeiros? Est certo que esse novo Universal contm uma alta dose de global e planetrio, mas ele no se limita a isso. O Universal por contato ainda universal, no sentido mais profundo, pois ele indissocivel da idia de humanidade. At os mais ferrenhos desprezadores do ciberespao rendem homenagem a essa dimenso quando eles lamentam, com razo, que a maioria esteja excluda ou que a frica ocupe to pouco lugar nele. O que que a reivindicao do "acesso para todos" revela? Mostra que a participao nesse espao que lega cada ser humano com qualquer outro, que pode fazer as comunidades comunicarem-se entre si e consigo, que suprime os monoplios de difuso e autoriza cada um a emitir para quem estiver interessado ou implicado, esse reivindicao revela que a participao nesse espao funda-se num direito e que sua construo se aparenta com uma espcie de imperativo moral.Em suma, a cybercultura d forma a uma nova espcie de Universal: o Universal sem totalidade. E, repetimos, ainda se trata de Universal, acompanhado de todas as ressonncias que se quiser com a filosofia das luzes, por ele manter uma profunda relao com a idia de humanidade. O ciberespao, com efeito, no gera uma cultura do Universal por estar de fato em toda a parte, mas sim porque sua forma ou idia implica direito totalidade dos seres humanos.Quanto mais universal, menos totalizvelPor intermdio dos computadores e das redes, as pessoas mais diversas podem entrar em contato, apertar a mo no mundo inteiro. Antes do que se construir sobre a identidade do sentido, o novo universo prova-se por imerso. Estamos todos no mesmo banho, no mesmo dilvio de comunicao. Ou seja, no mais uma questo de fechamento semntico ou de totalizao.Uma nova ecologia dos meios de comunicao est organizando-se em torno da extenso do ciberespao. Posso agora enunciar seu paradoxo central: quanto mais universal (extenso, interconectado, interativo), menos totalizvel. Cada conexo suplementar acrescenta mais heterogeneidade, novas fontes de informao, novas linhas de fuga, de maneira que o sentido global fica cada vez menos legvel, cada vez mais difcil de circunscrever, de encerrar, de dominar. Esse Universal d acesso a um gozo do mundial, inteligncia coletiva em ato da espcie. Faz-nos participar mais intensamente da humanidade viva, mas sem que isso seja contraditrio, ao contrrio, com a multiplicao das singularidades e a ascenso da desordem.De novo: quanto mais o Universal se concretizar ou se atualizar, menos totalizvel fica. Existe a tentao de dizer que se trata, enfim, do verdadeiro Universal, pois ele no se confunde mais com uma dilatao de local, e, tampouco, com a exportao forada dos produtos de uma determinada cultura. Anarquia? Desordem? No. Tais palavras refletem apenas a nostalgia do fechamento. Aceitar perder uma certa forma de domnio, dar-se uma chance de encontrar o real. O ciberespao no est desordenado, mas exprime a diversidade do humano. Que seja necessrio inventar os mapas e os instrumentos de navegao desse novo oceano, sobre isso cada um pode concordar. No necessrio, porm, fixar, estruturar a priori ,engessar uma paisagem fluida e variada por natureza, uma vontade excessiva de domnio no prende o ciberespao de maneira durvel. As tentativas de fechamento tornam-se quase impossveis ou por demais evidentemente abusivas.Por que inventar um Universal sem totalidade, quando j dispomos do rico conceito de ps-modernidade? que, precisamente, no se trata da mesma coisa. A filosofia ps-moderna descreveu bem a disperso da totalizao. A fbula do progresso linear e garantida no tem mais vigncia, nem na arte, nem na poltica, nem em campo algum. Ao no haver mais um sentido da histria, mas sim uma multido de pequenas proposies que lutam pela sua legitimidade, como organizar a coerncia dos eventos, em que tudo a vanguarda? Quem que est na frente? Quem que progressista? Em trs palavras, e para retomar a feliz expresso de Lyotard, a ps-modernidade proclama o fim dos grandes relatos totalizantes. A multiplicidade e o emaranhamento radical das pocas, dos pontos de vista e das legitimidades, trao distintivo do ps-moderno, v-se claramente acentuada e encorajada, alis, na cybercultura. Mas a filosofia ps-moderna tem confundido o Universal e a totalizao. Seu erro foi o de jogar o beb do Universal junto com a gua suja da totalidade.O que o Universal? a presena (virtual) para si da humanidade. Quanto totalidade, podemos defini-la como o agrupamento estabilizado do sentido de uma pluralidade (discurso, situao, conjunto de eventos, etc.). Essa identidade global pode encerrar-se no horizonte de um processo complexo, resultar do desequilbrio dinmico da vida, emergir das oscilaes e contradies do pensamento. Mas qualquer que seja a complexidade de suas modalidades, a totalidade ainda continua abaixo do horizonte do mesmo.Ora, a cybercultura mostra precisamente que existe outra maneira de instaurar a presena virtual para si da humanidade (o Universal) que no pela identidade do sentido (a totalidade).Estar a cybercultura em ruptura com os valores fundadores da modernidade europia?Em contraste com a idia ps-moderna do declnio das idias das luzes, afirmo que a cybercultura pode ser considerada como herdeira legtima (embora distante) do projeto progressista dos filsofos do sculo XVIII. Com efeito, ela valoriza a participao em comunidades de debate e argumentao. Na linha direta das morais da igualdade, ela incentiva uma maneira de reciprocidade essencial nas relaes humanas. Desenvolveu-se a partir de uma prtica assdua dos intercmbios de informaes e conhecimentos, que os filsofos das luzes consideravam como o principal motor do progresso. E, se alguma vez tivssemos sido modernos (1), a cybercultura no seria ps-moderna, mas estaria realmente na continuidade dos ideais revolucionrios e republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade. S que, na cybercultura, tais "valores" encarnam-se em dispositivos tcnicos concretos. Na era da mdia eletrnica, a igualdade se realiza em possibilidade para cada um emitir para todos; a liberdade se objetiva em softwares de codificao e em acesso transfronteirio para mltiplas comunidades virtuais; a fraternidade, quanto a ela, se converte em interconexo mundial.Assim, longe de ser resolutamente ps-moderno, o ciberespao pode aparecer como uma espcie de materializao tcnica dos ideais modernos. Em particular, a evoluo contempornea da informtica constitui uma surpreendente realizao do objetivo marxista de apropriao dos meios de produo pelos prprios produtores. Hoje em dia, a "produo" consiste essencialmente em simular, processar informao, em criar e divulgar mensagens, em adquirir e transmitir conhecimentos, em coordenar-se em tempo real. Assim sendo, os computadores pessoais e as redes numricas colocam efetivamente nas mos dos indivduos as principais ferramentas da atividade econmica. Mais ainda, se o espetculo (o sistema meditico), de acordo com os situacionistas, o mximo da dominao capitalista (2), o ciberespao ento est realizando uma verdadeira revoluo, pois permite ou permitir, em breve a cada um dispensar o editor, o produtor, o transmissor, os intermedirios em geral, para dar a conhecer seus textos, sua msica, seu mundo virtual ou qualquer outro produto de sua mente. Em contraste com a impossibilidade de responder e o isolamento dos consumidores de televiso, o ciberespao oferece as condies de uma comunicao direta, interativa e coletiva.A realizao quase tcnica dos ideais da modernidade coloca imediatamente em evidncia seu carter, no irrisrio, mas parcial, insuficiente. Pois est claro que nem a informtica pessoal, nem o ciberespao, por mais generalizada que seja a totalidade dos seres humanos, resolvem com sua mera existncia os principais problemas de vida em sociedade. verdade que realizam praticamente formas novas de universalidade, de fraternidade, de estar juntos, de reapropriao pela base dos instrumentos de produo e comunicao. Mas, no mesmo movimento, desestabilizam, em alta velocidade e freqentemente de maneira violenta, as economias e as sociedades. Ao mesmo tempo em que arruinam os antigos, participam da criao de novos poderes, menos visveis e mais instveis, mas nem por isso menos virulentos.A cybercultura aparece como a soluo parcial de problemas da poca anterior, embora constitua, por sua vez, um imenso campo de problemas e conflitos para os quais no se est desenhando ainda nenhuma perspectiva de resoluo global. A relao com o saber, o trabalho e o emprego amoedam a democracia, o Estado precisa ser reinventado, para citarmos apenas algumas das formas sociais mais brutalmente questionadas.Num sentido, a cybercultura perpetua a grande tradio da cultura europia. Noutro, ela transmuda o conceito de cultura.A cybercultura ou a tradio simultneaLonge de ser uma subcultura dos fanticos da rede, a cybercultura exprime uma grande mutao da prpria essncia da cultura. Conforme a tese que desenvolvi neste relatrio, a chave da cultura do futuro o conceito de Universal sem totalidade. Nessa proposio, o Universal significa a presena virtual da humanidade para si. O Universal abriga o aqui e agora da espcie, seu ponto de encontro, um aqui e agora paradoxal, sem lugar nem tempo claramente atribuvel. Por exemplo, uma religio universal dirige-se supostamente a todos os homens e os rene virtualmente em sua revelao, sua escatologia, seus valores. Da mesma maneira, a cincia exprime supostamente (e vale por) o progresso intelectual da totalidade sem homens, sem excluso. Os cientistas so os delegados da espcie e os triunfos do conhecimento exato so os da humanidade em seu conjunto. Da mesma maneira, o horizonte de um ciberespao que consideramos universalista o de interconectar todos os bpedes falantes e faz-los participar da inteligncia coletiva da espcie no seio de um meio onipresente. De maneira totalmente diferente, a cincia e as religies universais abrem lugares virtuais onde a humanidade encontra a si mesma. Embora exercendo uma funo anloga, o ciberespao rene as pessoas de maneira muito menos virtual do que a cincia ou as grandes religies. A atividade cientfica implica cada um e dirige-se a todos pelo intermdio de um sujeito transcendental do conhecimento, no qual cada membro da espcie participa. A religio agrupa por transcendncia. Para sua operao em que pe o homem em presena de si, ao contrrio, o ciberespao lana mo de uma tecnologia real, imanente, ao alcance da mo.Agora, o que a totalidade? Trata-se, na minha linguagem, da unidade estabilizada do sentido de uma diversidade. Quer essa unidade ou identidade seja orgnica, dialtica, ou complexa, antes do que simples ou mecnica, no muda em nada a questo; trata-se ainda de totalidade, isto , de um fechamento semntico englobante. Ora, a cybercultura inventa outra maneira de fazer advir a presena virtual para si do humano somente impondo uma unidade do sentido. Essa a principal tese defendida aqui. luz das categorias que acabo de expor, podemos distinguir trs grandes etapas da histria:a das pequenas sociedades fechadas, de cultura oral, que viviam uma totalidade sem Universal;a das sociedades civilizadas, imperiais, que usam a escrita, que fizeram surgir um Universal totalizante e,por fim, a da cybercultura, que corresponde mundializao concreta das sociedades, que inventa um Universal sem totalidade.Ressaltemos que os estgios dois e trs no fazem desaparecer os que os antecedem, mas relativizam-nos ao acrescentar dimenses suplementares.Numa primeira poca, a humanidade composta de uma multido de totalidades culturais dinmicas ou de tradies, mentalmente fechadas sobre si, o que evidentemente no impede nem os encontros, nem as influncias. Os homens por excelncia so os membros da tribo. So raras as proposies das culturas arcaicas que supostamente concernem a todos os seres humanos sem exceo. Nem as leis (nenhum direito humano), nem os deuses (nenhuma religio universal), nem os conhecimentos (nenhum procedimento de experimentao ou raciocnio reprodutvel em toda a parte), nem as tcnicas (nenhuma rede, nem padres mundiais) so universais por construo. verdade que o registro estava ausente. Mas a transmisso cclica de gerao para gerao garantia a perenidade no tempo. As capacidades da memria humana limitavam, no entanto, o tamanho do tesouro cultural s lembranas e aos saberes de um grupo de idosos. Totalidades vivas, porm fechadas, sem Universal.Numa segunda poca, civilizada, as condies de comunicao instauradas pela escrita levam descoberta prtica da universalidade. A escrita, a seguir o impresso, trazem uma possibilidade de extenso indefinida da memria social. A abertura universalista efetua-se paralelamente no tempo e no espao. O Universal totalizante traduz a inflao dos sinais e a fixao do sentido, a conquista dos territrios e a sujeio dos homens. O primeiro Universal imperial, estatal. Impe-se sobre a diversidade das culturas. Tende a cavar uma camada do ser em toda a parte e sempre idntica, pretensamente independente de ns (assim como o universo criado pela cincia) ou apegada a tal definio abstrata (os direitos humanos). Sim, nossa espcie existir futuramente como tal. Encontra-se, comunga dentro de estranhos espaos virtuais: a revelao, o fim dos tempos, a razo, a cincia, o direito Do Estado s religies do livro, das religies s redes da tecnocincia, a universalidade afirma-se e corporifica-se, porm, quase sempre pela totalizao, pela extenso e pela manuteno de um sentido nico.Ora, a cybercultura, terceiro estgio da evoluo, mantm a universalidade ao mesmo tempo em que dissolve a totalidade. Corresponde ao momento em que nossa espcie, com a planetarizao econmica, com a densificao das redes de comunicao e transporte, tende a formar apenas uma comunidade mundial, mesmo que essa comunidade seja e como ! desigual e conflituosa. nica de seu gnero no reino animal, a humanidade rene toda a sua espcie numa nica sociedade. Mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, a unidade do sentido surge, talvez porque comea a realizar-se praticamente, pelo contato e pela interao efetiva. No est voltando feito multido. Flotilhas espalhadas e danantes de arcas que abrigam a precariedade de um sentido problemtico, reflexos confusos de um tudo fugidio, evanescente, conectadas com o universo, as comunidades virtuais constroem e dissolvem constantemente suas micrototalidades dinmicas, emergentes, submersas, que derivam entre as correntes cheias de turbilhes do novo dilvio.As tradies se expandiam na diacronia da histria. Os intrpretes, operadores do tempo, transmissores das linhas de evoluo, pontes entre o futuro e o passado, reatualizavam a memria, transmitiam e inventavam no mesmo movimento as idias e as formas. As grandes tradies intelectuais ou religiosas construram, com pacincia, bibliotecas-hipertextos, s quais cada nova gerao acrescentava seus ns e laos. Inteligncias coletivas sedimentadas, a Igreja ou a universidade costuravam os sculos um com o outro. O Talmude gera uma profuso de comentrios nos quais os sbios de ontem dialogam com os de anteontem.Longe de desarticular o motivo da tradio, a cybercultura inclina-o num ngulo de 45, para arranj-lo na ideal sincronia do ciberespao. A cybercultura encarna a forma horizontal, simultnea, puramente espacial da transmisso. S liga no tempo como acrscimo. Sua principal operao est em conectar no espao, construir e estender os rizomas do sentido.Eis o ciberespao, o pulular de suas comunidades, a ramificao entrelaada de suas obras, como se toda a memria dos homens se abrisse no instante: um imenso ato de inteligncia coletiva sncrona, convergindo para o presente, raio silencioso, divergente, explodindo como uma cabeleira de neurnios.(1) Ver a obra de Bruno Latour, Nous n'avons jamais t modernes. La Dcouverte, Paris, 1991.(2) Ver La socit du spectacle de Guy Debord, primeira edio: Buchet-Chastel, Paris, 1967.