HAAR, Michel_Vida e Totalidade Natural

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cadernos Nietzsche 5, p. 13-37, 1998 Vida e totalidade natural * Michel Haar ** Resumo: Adotando como paralelo a filosofia estóica, o autor procura investigar os meandros e as implicações da concepção nietzschiana da natureza. Através do resgate das noções de vida e caos, apresenta-se uma compreensão renova- da da Physis. Palavras-chave: vida – estoicismo – filosofia da natureza – caos – vontade de potência – eterno retorno Chaos sive natura(1) Minha hipótese de partida será a seguinte: o modelo que comanda a filosofia nietzschiana da natureza, e talvez mesmo o pensamento do Eterno Retorno, não é o modelo estóico? Este modelo seria evidente- mente aquele de um estoicismo invertido: a afirmação de uma totalida- de não dotada de razão, mas sem razão. Um fatalismo não ataráxico e resignado, mas dionisíaco e alegre. Assaz numerosas indicações reve- lam em efeito uma afinidade, fortemente ambivalente, em relação ao estoicismo. Esta afinidade é marcada por um assentimento e por uma recusa tão vigorosos um como a outra. Do lado do assentimento: “Permaneçamos duros, nós, os últimos estóicos” (2) . “A doutrina do Eterno Retorno poderia, no fim das contas, * Publicado, em outra versão, em Nietzsche et la Métaphysique. Paris: Gallimard, 1993. Tradução de Alberto Marcos Onate. ** Professor da Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne.

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  • cadernos Nietzsche 5, p. 13-37, 1998

    Vida e totalidade natural*

    Michel Haar**

    Resumo: Adotando como paralelo a filosofia estica, o autor procura investigaros meandros e as implicaes da concepo nietzschiana da natureza. Atravsdo resgate das noes de vida e caos, apresenta-se uma compreenso renova-da da Physis.Palavras-chave: vida estoicismo filosofia da natureza caos vontade depotncia eterno retorno

    Chaos sive natura(1)

    Minha hiptese de partida ser a seguinte: o modelo que comandaa filosofia nietzschiana da natureza, e talvez mesmo o pensamento doEterno Retorno, no o modelo estico? Este modelo seria evidente-mente aquele de um estoicismo invertido: a afirmao de uma totalida-de no dotada de razo, mas sem razo. Um fatalismo no atarxico eresignado, mas dionisaco e alegre. Assaz numerosas indicaes reve-lam em efeito uma afinidade, fortemente ambivalente, em relao aoestoicismo. Esta afinidade marcada por um assentimento e por umarecusa to vigorosos um como a outra.

    Do lado do assentimento: Permaneamos duros, ns, os ltimosesticos(2). A doutrina do Eterno Retorno poderia, no fim das contas,

    * Publicado, em outra verso, em Nietzsche et la Mtaphysique. Paris: Gallimard, 1993.Traduo de Alberto Marcos Onate.

    ** Professor da Universidade de Paris I Panthon Sorbonne.

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    j ter sido ensinada por Herclito. O estoicismo, ao menos, que herdoude Herclito a maioria de suas representaes de base, guardou os tra-os(3). O estoicismo citado ainda como exemplo disto que faz o ca-rter inaprecivel de toda moral, de ser um longo constrangimento(4).A despeito de sua crena ilusria na ordem moral do mundo, os esticoscompreenderam a necessidade desta auto-tirania que a Vontade dePotncia; eles compreenderam que na tirania que se encontra a natu-reza e o natural e no na negligncia(5). Da mesma forma que Nietz-sche sugere s vezes a superao do cristianismo por um hipercris-tianismo, ele afirma tambm a necessidade de ser de alguma maneirahiperestico, isto , de possuir simultaneamente a dureza e a doura.No nada ser duro como um estico; pela insensibilidade somos de-sapegados. preciso ter o contrrio em si a sensibilidade terna e acapacidade oposta de no perder seu sangue, mas de poder com plas-ticidade de novo voltar ao melhor todo infortnio(6). Tudo dependeem Nietzsche da amplitude da fora afirmativa. H no estoicismo umagrande fora e Sneca, que ousa dizer Deus nudus est(7), poderia jter sacudido um pouco seu prprio colar (carcan) moral.

    Pois evidentemente, em relao rigidez moral dos esticos,que a oposio a mais radical. O sbio estico uma caricatura, umaexagero brbaro(8). Sua suspeita, seu dio em relao ao prazer, dei-xam pairar dvidas sobre seu amor declarado da vida e do mundo, comos quais ele no quer fazer seno um. fora de se enrijecer, de afastaras paixes, os prazeres, ele chega insensibilidade total, petrificaode si. E a divindade que ele abraa, diz Nietzsche, ela mesma umaesttua! Que significa abraar uma esttua no inverno, desde quandonos tornamos insensveis ao frio?(9). O estico no ama o mundo; afir-mando o fatum, ele no afirma seno uma srie de abstraes: a ordem,a bondade, a beleza, a razo, a providncia. Ele no faz seno amar a simesmo, sua prpria frieza, seus prprios raciocnios.

    O ideal do amor fati, da aprovao universal, da fuso da existn-cia singular com a totalidade, no pode retomar sentido, segundoNietzsche, seno se esta totalidade despojada de seus atributos mo-rais, isto , de seus antropomorfismos. Isto no significa que seja pre-

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    ciso simplesmente render o mundo vida, reconhecer-lhe o carter deum ser vivente. necessrio, ao contrrio, diz ele, rejeitar com fora aidia estica de que o cosmo seria um grande vivente, o Grande Viven-te. A isto, ao menos duas razes so dadas: primeiro a suposio deque o todo seria um organismo contradiz essncia do orgnico(10).Um organismo tem necessidade de um meio exterior a si mesmo para sesustentar, para se nutrir; seria absurdo que ele crescesse se nutrindo delemesmo. At onde se estenderia, j que ele o todo? Segunda razo: umatotalidade orgnica seria necessariamente guiada, como o querem osesticos, por um logos universal, por uma razo ou uma alma divina.Assim, uma representao biolgica da natureza forneceria talvez altima forma da representao de Deus(11). Quid aliud est natura quamdeus? dizia Sneca(12). Mas que ento o mundo, se ele no deus? Omundo no absolutamente um organismo, mas o caos(12a).

    Esta recusa da organicidade do mundo, esta afirmao do chaoscomo definindo a vida mesmo do todo, levanta numerosas questes,que so todas metafsicas, j que elas debatem o ser ltimo da totalida-de. Como pensar uma totalidade sem unidade? Como a totalidade podeser vivente, mas no orgnica? Que significa o conceito de necessida-de, que para Nietzsche o nico que podemos atribuir sem antropo-morfismo ao caos, natureza ou ao mundo (os dois ltimos termos noso realmente distintos em seu vocabulrio)? Citemos uma passagemessencial: O carter do conjunto do mundo de toda eternidade aqueledo caos, em razo no da ausncia de necessidade, mas da ausncia deordem, de articulao, de forma, de beleza, de sabedoria, quaisquer quesejam os nomes dados s nossas humanas categorias estticas(13). Oconceito de caos simplesmente um conceito preventivo que interditaessencializar, eternizar, divinizar a natureza? Chaos sive natura, dizNietzsche. Mas no precisamente a eternizao do mundo que deveproduzir a experincia do Eterno Retorno: haec est vita sempiterna tua?A divindade do todo no parece de modo algum excluda pelo conceitode caos, j que ela reaparece tanto na invocao de Dioniso quanto naenigmtica frmula: circulus vitiosus deus. Qual crdito acordar entos palavras de ordem que Nietzsche se d: necessrio reabilitar a

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    natureza e no a divinizar, ou ainda: minha tarefa: a desumanizaoda natureza e em seguida a naturalizao do homem, aps que ele tiveradquirido o puro conceito de natureza?(14) Que pode significar puranatureza para um filsofo que demonstra que todos nossos sentimen-tos da natureza, para no falar de nossos conceitos, so inteiramenteaprendidos, inteiramente herdados, jamais imediatos, jamais espon-tneos? Que seria uma idia da natureza que no fosse humana? Estaidia no humanizada pelo simples fato de que ela um pensamentohumano? A negao do antropomorfismo no ainda uma humanizao?Ns veremos que Nietzsche se esfora para apoderar-se do conceito depura natureza por uma relativizao do vivente face ao inanimado, epor uma definio insistente da vida como imoralidade.

    A filosofia nietzschiana da natureza no conduz, entretanto, sobreesta via mesma, a uma restaurao da teologia que ela visava a evitar, eisto sob o duplo aspecto de uma teologia negativa com o conceito decaos e de uma teodicia com o conceito de uma necessidade que aquelada imperfeio ela prpria? Aqum deste ponto de conseqncia fatal (afatalidade prpria lgica interna da metafsica), no h em Nietzscheuma ontologia da natureza que no seria j uma teologia?

    I. A vida no a totalidade, nem o bem nem o mal, masuma lgica das pulses, origem de toda lgica consciente

    No encontramos em Nietzsche exaltao incondicional da vida.A vida no a totalidade, ela no o objeto da afirmao mais alta.Certamente a Vontade de Potncia pensada sobre o modelo da vida,como faculdade de se conservar e de se acrescer, de exercer operspectivismo de suas foras. Mas: a vida no seno um caso parti-cular da Vontade de Potncia. Esta ltima estende seu domnio bemalm do vivente. A natureza inteira Vontade de Potncia. Donde umareabilitao da natureza inorgnica face vida. Todo corpo, todo tomo

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    estende sua fora, sua ao to longe quanto pode. Toda fora motriz vontade de dominar(15). A natureza em seu conjunto neutra, no so-mente em relao ao Bem e ao Mal, mas em relao vida e morte.Em todo caso, ela no toma por essncia o partido da vida. No h nanatureza nenhuma parcialidade por isto que vivo ou contra isto que morto. Se algo no chega a se conservar vivo, nenhum objetivo falha-do por isso! O carter de finalidade, acrescenta Nietzsche, acess-rio, humano...(16). Assim, a vida no o objetivo supremo da natureza.O vivente no seno um gnero disto que morto, e um gnero muitoraro(17). A natureza se encontra certamente desumanizada, mas a qualpreo, j que a unidade superior de que o vivente no seno gneroseria isto que desprovido de vida! Parece, pois, que haveria uma sortede preponderncia, at de superioridade do mundo inorgnico. Superi-oridade paradoxal que viria de que a natureza bruta tambm se esfora,age, percebe, e mesmo pensa, isto , produz formas: pensar, noestgio primitivo (pr-orgnico), realizar as formas, como nos cris-tais(18). Haveria mesmo na ao e no pensamento da natureza inanima-da maior clareza que do lado da vida, essencialmente sujeita iluso eao erro. Admitir que h percepes no mundo inorgnico, e percep-es de uma exatido absoluta: a que reina a verdade! Com o mun-do orgnico comea a impreciso e a aparncia(19). Quando passamosdo inorgnico ao orgnico, passamos do claro e do certo ao obscuro e aoindefinido. Comparado a um corpo qumico, um protoplasma, dizNietzsche, tem apenas uma percepo incerta e vaga(20) das formasexteriores sua, precisamente porque elas so mltiplas.

    a incerteza da vida, sua necessidade de tatear, de errar, que fazfinalmente sua potncia. A vida obrigada a inventar a astcia. Ela seencontra face multiplicidade, a sua prpria e a multiplicidade das for-as exteriores. Ela deve criar principalmente simplificaes por trs dasquais ela se dissimula. No mundo inorgnico, a dissimulao parecefazer falta potncia contra potncia brutalmente no mundo orgni-co que aparece a astcia(21). A astcia a iluso espontnea, ela noresulta primeiro de um clculo. O ser vivente no pode primeiro se apre-sentar seno outro que ele no . Ele constrangido a enganar enquanto

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    que ele se engana, isto , essencialmente se fia estreiteza de sua pers-pectiva. Viver para o vivente extrair do mundo isto que lhe serve parase conservar e crescer, e abandonar o resto. Viver aceitar ou recusar, e,para isto, abstrair. Nietzsche concebe a interpretao, a faculdade deescolher unilateralmente segundo seu ponto de vista, como a essnciada vida: o processo orgnico pressupe uma atividade interpretativacontnua(22). Em conformidade lgica do platonismo, ele nomeia ilu-so, erro ao prprio princpio vital, na incapacidade em que ele est deprocurar uma verdade outra que perspectivista. Donde a frmula: Oerro, me do vivente(23).

    A vida astucia com o inorgnico, como ela astucia com seu meio ecom ela mesma. Ela no pode nem dominar absolutamente nem dissol-ver a fora absoluta do no-vivente. Ela no pode seno fingir de lheceder. Assim se estabelece um equilbrio de foras sempre instvel. Olao do orgnico com a natureza um lao de dominao recproca,dominao recproca e enredamento infinito, precisamente da verdade edo erro!

    Se ns seguimos bem o raciocnio segundo o qual a vida se definea partir do erro, parece mais estranho primeira vista que Nietzscheassocie a todas as definies que d do orgnico uma conotao de imo-ralidade. A vida repousa sobre pressupostos imorais(24). Por que taispressupostos? Qual sentido tem eles? Nietzsche espera graas a elesinverter no somente o naturalismo otimista das luzes ou o mito rousseau-niano da bondade original da natureza, mas ainda a idia estica de umaessncia simultaneamente divina e moral da natureza. Ele quer tambmdar cabo ao finalismo, ao providencialismo e a toda teodicia. Mas umantropomorfismo invertido no permanece um antropomorfismo? Dizerque a vida o contrrio do bem no sentido da virtude, a anttese perfeitado estoicismo, conduz inevitavelmente mesma concluso: necess-rio, bom que seja assim! Entre os atributos negativos que retornamcom mais freqncia como qualificativos da vida: injustia, mentira,explorao, a propsito do termo injustia que a inverso restabelecea mais transparente das afirmaes. a justia absoluta (unbedingteGerechtigkeit) que conduz idia de que a vida essencialmente injus-

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    ta(24b). A injustia, quando ela toca a essncia mesma da vida, no podeser injusta. Ela no injusta seno aos olhos daqueles que ignoram seuperspectivismo fundamental.

    Mas examinemos rapidamente, um aps outro, os trs atributosnegativos. Eles aparecem num fragmento da Wille zur Macht: Nos gran-des homens as propriedades especficas da vida injustia, mentira,explorao so acentuadas ao mais alto(25).

    A injustia parece ter, segundo isto que dissemos, um sentido maismetafsico que moral. Podemos ler a tambm sem dvida, em efeito,uma inverso da dikaiosun platnica. No menos patente que a injus-tia e a violncia das definies de Nietzsche se deixam dificilmenteatenuar e reduzir a uma pura ontologia desprovida de conseqnciasticas, como tende a faz-lo Heidegger. Citemos quatro textos que, alis,ele nunca cita:

    Viver essencialmente despojar, ferir, dominar o que estranho emais fraco, oprimi-lo, impor-lhe duramente sua prpria forma, englob-lo e ao menos, no melhor, explor-lo(26). A vida no consiste em julgar, preferir, ser injusto, limitado, emquerer ser diferente?(27). A vida procede essencialmente, isto , em suas funes elementares,por infrao, violao, explorao, destruio, e ela no pode ser pen-sada sem isto... Do ponto de vista biolgico mais elevado, o direito nopode ser seno um estado de exceo(28). Arruinaramos a fonte da vida se quisssemos nos desfazer disto queh nela, em um certo sentido, de nocivo(29).

    A ambigidade desses textos, como de todas as proposies ditasimoralistas de Nietzsche, dupla. Eles tratam, de uma parte, simulta-neamente da vida enquanto processo orgnico ( questo das clulasviventes, do metabolismo, da nutrio, da secreo e da excreo), e davida enquanto existncia social do homem (o direito). E, de outra parte,eles tm simultaneamente um sentido ontolgico, descritivo, fenome-nolgico se desejamos, e um sentido normativo, prescritivo. Assim, dirNietzsche, o homem forte e livre age (...) maneira de um organis-

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    mo(30): ele assimila e rejeita, sob forma de astcia, de louvor e de cen-sura, de subjugao de outrem ou de submisso. O orgnico torna-seum modelo. Isto que mostra que o imoralismo um moralismo inverti-do. Nietzsche no afirma a injustia no sentido absoluto, mas que istoque a moral tradicional chama injustia justo. A justia, supremarepresentante da vida mesma no outra coisa que a essncia de todaestimao, de toda posio de valor. Se a justia torna-se assim, comoo sublinha Heidegger, o nome da verdade, concebida como adequaoentre a vida e os valores que ela firma, no saberamos em todo rigorqualificar o que quer que seja de injusto. Qualificar a vida de injusta,isto se reporta a um procedimento retrico, sofstico. Nietzsche, disseFink, tanto filsofo quanto sofista.

    Ocorre o mesmo com os atributos negativos que so a mentira e aexplorao. A vida uma mentira enquanto aparncia, dissimulao,jogo de mscaras ao infinito. Para viver, necessrio crer em fices,em efeitos de superfcie. Nietzsche entende por mentira vivente a ficoproduzida pela Vontade de Potncia artstica que ela mesma uma po-tncia da natureza. Esta faculdade graas qual o homem refora arealidade pela mentira, esta facilidade artista por excelncia, o homema tem em comum com tudo que . Ele prprio bem um fragmento dognio da mentira!(31). Em outros termos, para ser um fragmento de ver-dade, preciso ser um fragmento de mentira. Isto significa, em boa l-gica, que a mentira um atributo essencial da verdade. Assim, quandoNietzsche diz a vida mentira, ele entende: a vida , desta maneira, averdade mais verdadeira.

    Examinado de perto, o termo explorao reenvia expressamente Vontade de Potncia: toda esfera mais forte domina, se assimila ou mo-dela a seu grado uma esfera mais fraca. Isto vale para a nutrio comopara as relaes sociais. A explorao no o prprio de uma socieda-de imperfeita; ela inerente vida de que ela constitui uma funoprimordial, ela decorre muito exatamente da Vontade de Potncia(32).A tambm o imoralismo ostentado se retrai e se dissipa, mas deixa olugar para uma espcie de nivelamento ou de indiferena em relao essncia dos fenmenos. No do niilismo colocar sobre o mesmo pla-

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    no a digesto e as relaes entre dirigentes e dirigidos? A inverso dametafsica que conduz a dizer: tudo natural, pe a terrvel questo daausncia desde ento desesperadora de toda hierarquia na pura nature-za. Nietzsche no encontrar em nenhuma parte verdadeira hierarquia,j que ela no est nem no rebanho, nem no Alm-do-homem, por es-sncia isolado, incomunicvel, incomensurvel como um esplndidosistema solar.

    Se a definio negativa da vida encontra-se constantemente desa-finada pelo fato da luta anti-platnica que ela recobre, a verdadeira ori-ginalidade de Nietzsche no se encontra do lado da definio positivada vida como potncia criadora, como capacidade dos instintos e daspulses de dar forma? A tambm, infelizmente, as conseqncias dainverso, no somente de Plato mas tambm de Hegel, vm constante-mente pesar sobre a fenomenologia do vivente... A intuio genial deNietzsche consiste em tomar a vida como faculdade de incorporao:Einverleibung. Neste sentido, a faculdade fundamental do ser vivente a nutrio, a ponto de que Nietzsche pode escrever: O que chamamosvida uma pluralidade de foras religadas por um fenmeno de nutri-o que lhes comum...(33). Para realizar a nutrio, o ser orgnicodeve ser capaz de sensibilidade, de apetite, mas sobretudo de avaliao,de escolha, de assimilao e de eliminao, logo, diz Nietzsche, de pen-samento. Todo o organismo pensa, ou seja, coloca em ordem, condensa,hierarquiza. Todo ser orgnico age como o artista(33b). O fenmeno daincorporao, de que a nutrio a forma mais aparente, pressupe nosomente a interpretao, a seleo, mas ainda a memria... O organis-mo no esquece nada. Ele incorpora no somente o estranho, oinorgnico, mas o prprio, no sentido em que ele integra e coordenasuas experincias. Ele incorpora enfim o conjunto da vida orgnica quecontinua a se demandar nele. Eu suponho uma memria e uma seqn-cia de esprito (Geist) em todo ser orgnico.... necessrio revisarnossa idia da memria; ela consiste na massa de todas as experinciasde toda a vida orgnica, experincias viventes que se ordenam elas mes-mas, se formam por ao recproca, lutam umas contra as outras, sim-plificam, resumem e transformam os fatos em numerosas unidades. H

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    necessariamente a um processo interno anlogo ao que se passa quan-do, de numerosos casos isolados, tiramos um conceito (...). Os senti-mentos de inclinao, de repulso, etc, so sintomas de unidades j for-madas; nossas pulses, como as chamamos, so de tais formaes. Ospensamentos so o que h de mais superficial...(34).

    em textos deste gnero que se situa a inverso. O corpo viventecom sua memria absoluta toma o lugar do esprito absoluto. Pois opensamento consciente no mais que um sintoma da vida. A vida oesprito ele mesmo. O elemento lgico a pulso ela mesma(Trieb)...(35). Ou ainda: O que atribumos comumente ao esprito meparece compor a essncia da vida orgnica(36). A lgica de nosso pen-samento consciente no seno uma forma grosseira e simplificadadeste pensamento de que nosso organismo, e bem mais cada um de seusrgos particulares, tem necessidade(37). As distines, as nuanas, osentido da rapidez, da simultaneidade e da consecuo de que capaz ocorpo so bem mais refinados, bem superiores s categorias simples,como aquela da causalidade, de que dispe o intelecto. A extraordinriasutileza do pensamento orgnico capaz de apreender as flutuaes in-finitas do vir-a-ser sem fix-lo sob formas rgidas, em identidades arbi-trrias. Seria necessrio aqui citar como exemplo todas as descriesque Nietzsche faz das relaes da conscincia e do corpo. A conscincia um simples rgo, um instrumento muito parcial mantido parte dosprocessos de conjunto que se desenvolvem no corpo. A conscincia tema iluso de reinar, de decidir, mas ela no governa. Ela o instrumentoque executa as escollhas e decises j adquiridas em profundidade. Tudoque emerge conscincia o reflexo de um equilbrio momentneo nojogo das pulses. Quem decide deste equilbrio? A grande razo que o corpo, isto , o pensamento orgnico que no cessa de fazer o clculosutil e espontneo das relaes entre os quanta de fora. A vida umalgica encarnada que combina segundo o melhor segundo a mais grandevantagem de sua conservao e de seu crescimento o conjunto de suasforas. Isto muito leibniziano. Dum vita calculat, fit mundus, poderiater dito Nietzsche. O que justifica a idia de que ele o precursor da

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    Tcnica como universal instrumentalizao (cada pulso torna-se r-go) e calculabilidade integral.

    Entretanto, no h uma falha no sistema nietzschiano da vida?Nietzsche, em efeito, no deveria se dar, maneira de Schopenhauer edos romnticos, a intuio intelectual deste pensamento orgnico qualno podemos entretanto ter acesso direto e da qual em todo rigor nopodemos nada saber, pois que em virtude da essncia deformadora esuperficializante da conscincia e da linguagem, ns s temos umaimagem falsificada ou infinitamente diminuda? A grande razo emtodo rigor inefvel. Se os fenmenos elementares, sutis, da vida soinacessveis a nosso pensamento grosseiro, o pensamento superior quelhe atribudo no seno uma perfeita fico, ao menos uma simpleshiptese?

    Da vem a importncia do conceito de caos. No ele em efeitocomo que o corretivo indispensvel face ao hiper-racionalismo da Von-tade de Potncia, a idia de qualquer sorte reguladora que preserva oenigma do mundo, face s exigncias desmedidas de um racionalismoinvertido, mas tanto mais desenfreado?

    II. O caos da totalidade, desde o instante em que ele seafirma, absolutamente, torna-se necessidade divina.O Eterno Retorno como nova teodicia

    Mas que o caos? No um nome para designar a superabundn-cia das foras do vir-a-ser, muito ricas ou muito diversas para seremlimitadas vida? Caos universal significa que a totalidade no sub-metida lgica do vivente, grande razo. Que uma tal totalidadecatica forma, apesar de tudo, um s e mesmo mundo, o mundo, omundo da Vontade de Potncia, e nenhum outro... e nada de outro, esta, evidncia, um pressuposto radicalmente metafsico, absolutamenteindemonstrvel. Da mesma maneira, a finitude das foras, cuja totali-dade uma grandeza invarivel estrita e eternamente encerrada em seuslimites, um outro pressuposto que no releva de nenhuma prova poss-

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    vel, mas de uma afirmao que em verdade auto-afirmao do mundoele mesmo. isto que enuncia um texto admirvel onde Nietzsche des-creve este mundo como a divindade, j que Dioniso seu nome. Leia-mos esse texto, que nos d por antecipao a resposta questo dondevem a unidade da totalidade do caos?. Ela vem da afirmao por elemesmo do crculo eterno no qual o caos recolhido, contido, sem sersuprimido, nem superado.

    Sabeis bem o que o mundo para mim? Um monstro de fora semcomeo nem fim; uma soma fixa de fora, dura como o bronze, que noaumenta nem diminui, que no se desgasta, mas se transforma, cujatotalidade uma grandeza invarivel (sublinhamos), uma economiaonde no h despesas nem perdas, nem crescimento nem cobranas;encerrada no nada que o limite, sem nada de flutuante, sem desper-dcio, sem nada de infinitamente extenso, mas incrustado como umafora definida num espao definido e no num espao que compreende-ria o vazio; uma fora onipresente; una e mltipla como um jogo deforas e de ondas de foras, se acumulando num ponto se elas diminu-em em outro; um mar de foras em tempestade e um fluxo perptuo,eternamente em vias de mudar, eternamente em vias de refluir, comgigantescos anos de retorno regular, um fluxo e um refluxo destas for-mas, indo das mais simples s mais complexas, das mais calmas, dasmais fixas, das mais frias s mais ardentes, s mais violentas, s maiscontraditrias, para retornar em seguida da multiplicidade simplici-dade, do jogo dos contrastes necessidade de harmonia, afirmando aindaseu ser nesta regularidade dos ciclos e dos anos, se glorificando na san-tidade do que deve eternamente retornar, como um vir-a-ser que noconhece nem saciedade, nem desgosto, nem lassido(38).

    Este mundo, Nietzsche a insiste, sem objetivo, sem querera menos que a felicidade de ter cumprido o ciclo no seja um objetivo,a menos que um anel tenha a boa vontade de retornar eternamente sobresi mesmo(39). S o crculo do Eterno Retorno salva o caos do no-sentido e inversamente o caos salva o mundo da armadilha da finalidaderacional e moral. O caos do todo, enquanto excluso de toda atividadeteleolgica, no est em contradio com o pensamento do curso circu-

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    lar: este ltimo bem uma necessidade irracional, com desprezo detoda considerao formal, tica ou esttica(40). Assim, h pois um con-ceito negativo e um conceito positivo do caos; negativamente, o termotem por funo preventiva afastar ao mesmo tempo tanto a representa-o antiga do grande vivente csmico quanto os temas otimistas diver-sos da ordem do mundo, de sua beleza, de sua finalidade. Positivamen-te, o caos designaria todas as foras brutas da natureza, animadas ouinanimadas, tomadas nelas mesmas tais como se oferecem ao deesquematizao da Vontade de Potncia. Quando Nietzsche diz: A Von-tade de Potncia esquematizao de um caos, ele implica que o caossobrevive a esta imposio de uma ordem ou de formas. O caos odegrau zero do ser que se reforma eternamente no por entropia(Nietzsche a rejeita), mas para lhe permitir percorrer um novo ciclo pas-sando pelo Niilismo (o caos seria o nome natural do Niilismo). Comoesta imposio de formas s foras no lhes vm do exterior, mas ela uma auto-hierarquizao, o caos de certo modo o fundo, a base ou amatria primeira da Vontade de Potncia. Se esta sempre hilemrfica,o caos seria sua dimenso somente hiltica. Heidegger, que consagranumerosas pginas interpretao deste conceito, sublinha muito justa-mente que o caos significa metafisicamente para Nietzsche uma certarelao do mltiplo ao um: jamais o mltiplo chegar ao um, jamais ovir-a-ser chegar a um estado estvel, ao ser. O caos, escreve ele, uma multiplicidade originariamente exclusiva de toda unidade, e de todaforma(41). Mas ele reconduz arbitrariamente, parece, o caos essnciapulsional da vida em vias de organizao, fazendo do caos o fluxo vitalaparentemente indomvel, mas que sempre aspira constncia(42).

    notvel ver a que ponto a leitura heideggeriana se emprega portodos os meios a reduzir o catico no conceito mesmo de caos, se em-prega a racionaliz-lo. Primeiro ao nvel da essncia mesmo da pulso.Esta, diz ele, diluir-se-ia, destruir-se-ia ela mesma, se no encontrasseem si prpria a fora de se estabilizar. H na essncia da pulso a neces-sidade de resistir a ela mesma, de ter-se firme no afluxo pulsional parano se repelir ela mesma e desaparecer sob seu prprio impulso

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    irresistvel. A pulso se apia sobre ela mesma e assim supera seu elcatico.

    As trs interpretaes que Heidegger d do caos so todas alta-mente positivas. Primeiro, ele associa o caos a um pensamento da physise da althia. O caos pura natureza no sentido em que esta puraabertura. Caos significa etimologicamente a brecha, a fenda, o abismoque se abre. O conceito de caos, enquanto reenvia a um surgimento ori-ginal, a um desabrochar espontneo da totalidade, seria essencialmentedirigido contra o conceito de criao por um deus pessoal, quer sejagrego ou bblico. O grande vivente do Timeu supe o demiurgo. Estadesdivinizao da natureza no deve ser grosseiramente reconduzida aum materialismo, ou a um hilozoismo e a um atesmo. O pensamentometafsico, escreve Heidegger, pressente uma via na extrema desdivini-zao, desprovida de todo atalho (...) uma via que seria a nica sejamais isto fosse ainda possvel na histria do homem sobre a qual osdeuses vm ao seu encontro(43). No se trata realmente de uma proje-o sobre Nietzsche da expectativa heideggeriana. Que sonhemos noclebre: Quantos novos deuses so ainda possveis!. Esta possibili-dade est seguramente ligada relao nova do mltiplo ao um.

    Donde a segunda interpretao, que se situa no prolongamentodesta busca da divindade. O pensamento do caos enuncia que do entesupremo, do mundo ou da totalidade, no podemos nada dizer. Esta pa-rada, este indizvel constitui uma sorte de teologia negativa, sobretu-do pela negao de todos os atributos humanos da totalidade.

    A terceira interpretao apresenta uma distoro ou uma denegaoto grosseira da doutrina incontornvel de Nietzsche que afirma,lembremo-lo: o mundo no de nenhuma maneira um organismo, maso caos(44), que ficamos primeiro perplexos. Pois Heidegger identifica omundo, o caos e um organismo vivente. Caos, escreve ele, o nome davida corporante, da vida como grande corpo vivente (...) caos o nomede um projeto prvio particular relativo ao mundo em totalidade. Esteprojeto representa o mundo como um corpo vivente estendido por assimdizer em dimenses gigantescas. a que se enraiza a experincia fun-damental do mundo enquanto caos (...). O mundo enquanto caos quer

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    dizer o ente em sua totalidade projetado relativamente imagem do cor-po e de seu corporar(45). Um tal contra-senso no pode ser seno volun-trio. Ele revelador do mal-estar que produz em Heidegger este con-ceito, e do fato de que lhe difcil renunciar noo metafsica de umaordem imanente totalidade. Heidegger repete que no se deve compre-ender o caos como a confuso, a desordem em si, ao qual a ordem seriaaplicada do exterior, mas como este elemento pulsional, afluente, mo-vimentado, cuja ordem oculta, cuja lei no nos imediatamente co-nhecida(46). Qual esta ordem oculta, esta lei, seno a ordem e a lei daVontade de Potncia? Certo. Mas Heidegger sugere abusivamente que aVontade de Potncia revela ou contm a ordem e a lei intrnsecas, defi-nitivas e absolutas do mundo enquanto que ela no uma essncia ni-ca (Nietzsche o diz: h sempre vrias Vontades de Potncia parciais),mas que ela aporta somente, aqui ou ali, provisoriamente uma ordem,uma lei, que so como ilhus de sentido destinados de novo a se apagar. um antropomorfismo crer que a natureza obedece a leis como o cida-do ou o funcionrio modelo. No h nada de semelhante ordem ocul-ta do mundo! H colocaes em ordem temporrias e locais, isto ,hierarquizaes de foras, mas no conjunto o caos retorna e domina. Seo caos um atributo necessrio da totalidade natural, precisamentepara preserv-la da ordem universal em si.

    Mas se a natureza esta massa de foras sem unidade, sem forma,sem identidade (pois o movimento circular no uno), o que pode sig-nificar o tema nietzschiano insistente de uma natureza catica a reen-contrar, a restabelecer, a reabilitar? Uma natureza catica no pare-ce poder fornecer modelo a imitar. Entretanto, h primeiro a imitaodo ciclo: vir-a-ser dos seres cclicos, semelhantes existncia, serescapazes de passar por vrios pontos de vista contrrios, por vrias filo-sofias opostas, de ver a sade do ponto de vista da doena, e vice-ver-sa... Em seguida, a ausncia de ordem moral da natureza deve conduzira reabilitar a fisiologia. Trata-se de progredir na aceitao dos instin-tos desprovidos de racionalizao ou de idealizao sentimental, ou distoque Nietzsche chama a natureza nua. Uma poca onde a velha hipo-crisia e o mal-vestir (accoutrement) moral das paixes inspira o desgos-

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    to: a natureza nua(47). Nietzsche est longe de se opor radicalmente aonaturalismo do sculo XIX, ele quer liber-lo do positivismo ingenua-mente cientificista e de seu peso animal. H signos que mostram que oeuropeu do sculo XIX tem menos vergonha de seus instintos: ele fezum bom passo no sentido de afirmar sua absoluta naturalidade, isto ,sua imortalidade, sem amargura(48). A natureza nua, isto significa anatureza sem julgamento, sem bondade nem maldade. Imoralidade querdizer de fato aqui moralidade. Porque nos sentimos cmodos no meioda natureza floresta ou montanha no porque ela nos apresenta aimagem da bondade mesma, como o cria Rousseau, ou porque o ar a mais so, mas porque a livre natureza no tem opinio sobre ns!(49)

    Reinserir o homem na natureza reencontrar um texto primitivodespojado de interpretaes aberrantes. Mas que diz esse texto primi-tivo? Que aprendemos da natureza nua, que no mais para ns ummodelo de virtude, que no nem inocente nem boa, nem bela, somenteum pouco mais besta (mas no lugar de desprez-la por isto que senti-mos desde ento maior parentesco e familiaridade com ela, nela(50))?Isto que ensina a natureza nua , ainda uma vez, sobretudo a fisiolo-gia. Assim, a amizade, o amor, a criao artstica dependem da dispo-sio do corpo. Durante sculos, o homem conheceu mal seu corpo, ouo desprezou, o maltratou. Trata-se de admirar, de imitar sua sabedoria,de aprender dele a viver, isto , de aprender isto que convm sade. Deno considerar a preocupao com o clima, o lugar, o momento, o regi-me alimentar, a escolha dos lazeres, como indignos de um filsofo.

    Escutar msica. Caminhar. No ler demasiado. Ler um livro cedopela manh, ao levantar do dia, quando se est fresco, na aurora de suafora, eis a o que chamo de vcio(51). Conhecer-se saber praticar seuprprio regime. Seguir seu prprio ritmo de vida. Ns morremos todosmuito jovens, pela seqncia de uma prtica manchada de erros e deignorncias sem nmero(52).

    Compreendido neste sentido, o retorno natureza, ou melhor, oprogresso em naturalidade, no tem mais nada de metafsica. Seguir anatureza torna-se uma prudente profilaxia vital que considera a inser-o do homem em seu meio vivente. Somos compostos da mesma subs-

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    tncia que a natureza, e, como o faz notar Nietzsche, quantitativamentecompostos de mais elementos inorgnicos que orgnicos. O lao com ocosmos aqui afirmado. Ns somos os brotos de uma mesma rvo-re(53). O homem absolutamente dependente (...) de todas as forascsmicas, de sua repartio, de seu movimento(54). Nietzsche reencon-tra a a idia muito antiga, presente no estoicismo ou no Renascimento,de uma relao orgnica do microcosmo e do macrocosmo. Mas estaidia no est em contradio com a afirmao do caos universal? Paraseguir um regime alimentar ou procurar um clima melhor que outro,no preciso crer num lao universal?

    Reencontramos aqui o problema da totalidade. Se nada no univer-so destacvel, se, como Nietzsche o afirma, de uma forma muito pr-xima de Leibniz, o menor detalhe implica o todo, como evitar que adespeito do conceito preventivo de caos e malgrado seu esforo dedesdivinizao, a filosofia nietzschiana da natureza no retorne a umajustificao racional da totalidade? Encontramos mais que fragmentosde teodicia em Nietzsche. Primeiro a necessidade do todo, depois suabondade supramoral, enfim sua divindade. Os textos abundam nestesentido e so bem conhecidos. Cito alguns que exprimem, alm do mais,o pensamento de um fatalismo ativo, alegre. No Crepsculo dos dolos,a propsito do homem forte segundo Goethe: Um tal esprito liberadose eleva ao centro do universo num fatalismo feliz e confiante, com a fde que no h nada condenvel seno o que existe isoladamente e quena totalidade tudo salvo (erlst) e se afirma. Ele no nega mais...(55).

    O pensamento do fatum, anttese absoluta de todo idealismo que,diz Nietzsche, frouxo face necessidade, este pensamento exaltantepara aquele que sabe que ele faz parte.

    No podemos excluir o carter fatal de seu ser do carter fatal detudo que , de tudo que foi e de tudo que ser.... H assim equivalnciaentre necessidade, fatalidade, totalidade e inocncia: ns somos ne-cessrios, ns somos um fragmento de fatalidade (man ist ein StckFatum), ns fazemos parte de um todo, ns somos neste todo no hnada que possa julgar, pesar, comparar, condenar o todo... Mas fora dotodo, no h nada(56).

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    H a evidentemente um sofisma, pois se verdade que no hnenhuma medida para avaliar o todo, se o valor de conjunto do mundo impossvel de estimar (isto contra Schopenhauer), o lao universal noimpedir distines internas: de dizer por exemplo que certas coisas oucertos seres so menos belos, menos bons que outros. Alis, uma talproposio no contrria filosofia de Nietzsche, que exige que hajauma hierarquia entre os seres e que ns possamos dizer de certos seresque eles no deveriam ser, j que eles prprios por exemplo no somais que ressentimento em relao ao mundo? Mas a totalidade a afir-mar tal como ela , sem um iota a mais ou a menos: procurar isto quedeveria ser mas no ou isto que devia ter sido, condenar o cursototal das coisas. Pois este no comporta nada de isolado: o menor deta-lhe implica o todo... A menor crtica endereada a um detalhe condena oconjunto (57). Como no concluir que o mundo perfeito at mesmo nomenor detalhe, ou no mnimo suficientemente bom, como em Leibniz, adespeito de algumas sombras no quadro. Nietzsche no hesita em diz-lo, infringindo seu prprio interdito em relao a todo julgamento devalor sobre a totalidade: certo que medidas (gemessen) de um pontode vista econmico, as foras da natureza so no total boas (allesamtgut), isto , teis, malgrado a assustadora e irremedivel fatalidade(Verhngnis, poder fatal) que emana delas(58). Poder fatal, poderdestrutor, Nietzsche se apercebe que ele distingue de novo o bem datotalidade e o mal no detalhe. Ele se insurge ento contra seu prprioraciocnio e conclui, provisoriamente: pois bem, desembaracemo-nosda totalidade! Parece-me importante que nos desembaracemos do todo,de no sei qual absoluto: no poderamos faltar de tom-lo por Deus...O conceito de todo recolocaria sempre os mesmos problemas: Como omal possvel?, etc. Pois no h todo(59).

    Ei-nos aqui face antinomia de que o Eterno Retorno deve ser asoluo. Ou bem h um todo, e nesse caso no podemos faltar de justific-lo racionalmente, de lhe atribuir alm do mais uma potncia totalizante,um sensorium universal, logo de reintroduzir Deus como conscin-cia de conjunto do vir-a-ser, o que seria, diz Nietzsche, a maior obje-o contra o ser(60). Ou bem no h todo, e ento no h nem fatalismo

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    alegre, nem lao supra-individual, e o vir-a-ser se perde no indefinido.Cada ente soobra no fracionamento. Tudo fragmento, enigma, hor-rvel azar.

    Mas o Eterno Retorno no uma soluo idealista? Pois sou euque digo que h um todo. Ego fatum. A unidade do mundo no orgni-ca, mas depende de um sim. Este sim pode ser dito; ou no... Em todocaso, ele deve ser dito. Dizer que tudo retorna, aproximar ao mximo(= ao extremo die extremste Annherung) o mundo do vir-a-ser (onico mundo) do mundo do ser (mundo fictcio)(61). Afirmar vir-a-ser oser , o pleno, o perfeito, o idntico, o nico (no sentido de Plato), tal o cume da contemplao, isto , a interpretao suprema, mas inter-pretao ainda e somente. Para chegar a esta afirmao dionisaca douniverso tal como ele , sem possibilidade de subtrao, de exceo, deescolha(62), preciso que esta afirmao se apie de novo sobre a ne-cessidade. preciso que a interpretao se torne numa pura necessida-de, que a afirmao vinda do ego no faa seno corresponder auto-afirmao absoluta do mundo. Em outros termos, a totalidade, o ci-clo eterno, as mesmas coisas, a mesma lgica ou o mesmo ilogicismodos eventos, que quer seu prprio retorno e que o afirma atravs da-quele que afirma, de tal sorte que sua afirmao seja a afirmao deuma afirmao em si. Est a o degrau ltimo da inverso inverso dainterpretao suprema em afirmao da afirmao tal como a encon-tramos no Canto de embriaguez do Zaratustra ou nos Ditirambos aDioniso:

    Que tu sejas eterno!Que tu sejas necessrio!Meu amor, eternamente,Se abrace necessidade somente.Emblema de necessidade,Sublime constelao do Ser,Tu que nenhum voto atinge,que nenhuma negao suja,eterno sim do Ser,para sempre eu serei teu sim(63).

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    Posso dizer que o sim ilimitado, porque o ser j disse sim a simesmo, se deu j a si prprio sua eterna beno. Ele tem sempiterna-mente dito de si mesmo que ele bom. Ele se ama e porque eu o amo.O amor fati no seno o eco do amor ao mesmo tempo jubiloso e semlimites que o Ser porta a si mesmo. O Ser no de novo integralmente omodelo?

    A atrao e a rejeio de Nietzsche frente coeso substancial dotodo manifestam sua ambivalncia em relao metafsica grega queele inverte, mas no saberia restabelecer. Pois o Ser que se afirma e que afirmado um crculo quebrado, e que inclui o Caos. Porque estaambivalncia em relao aos modelos invertidos particularmente agu-da quando se trata de modelos emprestados Grcia? Pois este amor-dio por Plato no se reencontrar mais na relao com Descartes oucom o idealismo alemo. Certos temas platnicos, como aqueles da hi-erarquia ou da justia, permanecem intatos, contudo, na inverso.

    Assim, o amor fati, a afirmao da totalidade, inspirada doestoicismo, uma vez despojada de seu racionalismo moralizante comotambm de seu substancialismo ingnuo, guarda sua potncia. Sem d-vida porque no prprio Plato e at na decadncia estica sobreviveobscuramente o ideal de unidade e de totalidade que foi aquele dos Pr-socrticos, o ideal dionisaco dos Gregos; a afirmao religiosa da vidaem sua inteireza, de que no renegamos nada, de que no suprimimosnada(64). A Grcia pr-socrtica, repete com freqncia Nietzsche, um modelo de vida. Este conceito de vida no tem sentido biolgicoe este modelo no tem nada de um modelo inteligvel. a idia de umavida total sem corte, sem chrismos, entre o inteligvel e o sensvel, obem e o mal, o ser e o vir-a-ser, o divino e o humano. um sentido doser anterior a estas divises. O estoicismo que no renega a unidade domundo, que afirma que o mundo a casa comum dos homens e dosdeuses, tem a lembrana vivente desta indiviso prvia catstrofesocrtica.

    Para Nietzsche, a cultura grega na idade trgica, isto , pr-pla-tnica, soube realizar um equilbrio vital fundado sobre uma continui-dade harmoniosa entre os instintos naturais, mesmo os mais temveis,

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    e as prticas sociais, as obras, as instituies, o culto, que, assumindotodo o instintual, permitiam lhe oferecer uma desembocadura cultural.Os gregos anteriores a Scrates tinham a fora e a coragem de no fazerpassar as pulses mesmo selvagens ou para ns imorais sobre oleito de Procusto da virtude. As foras naturais se integram culturasem ser nem reprimidas nem extirpadas, nem domesticadas do exterior.Assim, a inveja torna-se a boa ris: uma competio regrada nos qua-dros institudos. Citemos um texto particularmente audaz, entre nume-rosos outros do mesmo perodo (1874-1876):

    O prazer da embriaguez, da astcia, da vingana, da inveja, da inj-ria, da obscenidade tudo isto foi reconhecido pelos gregos como hu-mano e por conseguinte integrado no edifcio da sociedade e dos costu-mes. A sabedoria de suas instituies repousa sobre a ausncia de dis-tino entre bem e mal, negro e branco. A natureza, tal como ela semostra, no renegada, mas integrada, limitada aos cultos e aos diasprecisos... Procurava-se para as foras da natureza uma descarga suamedida e no uma destruio ou uma denegao(65).

    A natureza, tal como ela se mostra, em seu surgimento multiformee inquietante de Physis, acolhida, integralmente afirmada, sem ser porantecipao, sob certos de seus aspectos, acusada, depreciada e conde-nada. A vida grega encarna o ideal de uma cultura que no um adornoda vida, mas a vida mesmo: uma Physis nova e melhorada, sem dis-tino entre o interior e o exterior, sem dissimulao nem artifcio, acultura concebida como esclarecimento mtuo da vida, do pensamento,da aparncia e do querer(66). Mas o segredo desta harmonia est perdi-do sem retorno. aquele da co-pertinncia ou da reversibilidade da cul-tura e da vida, do homem e da natureza, que o niilismo reativo destruiupara sempre. Mesmo quando h a f no Eterno Retorno, a natureza emseu fundo permanece para ns modernos impenetrvel e seu logosnos inacessvel: a totalidade, dilacerada, catica, labirntica, insond-vel, no reencontra coeso, sacralidade, necessidade, seno nos instan-tes de alegria, nos instantes de afirmao plena. Estes instantes formam

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    uma cadeia contnua por uma ligao substancial ou pelo s encadea-mento da afirmao? Na maioria das frmulas do Eterno Retorno, a har-monia suprema assemelha-se melhor ao relmpago de uma unidade so-bre a qual a noite a cada vez se torna a fechar, que a uma constelaopara sempre inscrita no firmamento.

    Abstract: Adopting the stoic philosophy as a parallel, the author tries to scruti-nize the meanders and implications of Nietzsches conception of nature. Throughthe rescue of the notions of life and chaos, a renewed comprehension of Physisis presented.Key-words: life stoicism philosophy of nature chaos will to power eternalrecurrence

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    Notas

    Mantivemos a nomenclatura de citao empregada originalmentepelo autor, a saber:G.S. A Gaia Cincia, 2a. ed. revista e corrigida, 1982, constante das

    Obras filosficas completas, Gallimard, seguida da numeraopara os Fragmentos pstumos.

    P.B.M. Para Alm de Bem e Mal.

    C.I., I a IV Consideraes inatuais.

    K., I ou II em Krners Taschenausgabe (Alfred Krner Verlag, Stuttgart,1956): Os volumes I e II dos Fragmentos pstumos reunidos sobo ttulo Unschuld des Werdens, A inocncia do vir-a-ser, segundoum plano e uma numerao de pargrafos introduzidos pelo edi-tor, Alfred Bamler. Estes fragmentos so publicados por Colli eMontinari na ordem estritamente cronolgica.

    W.z.M. Wille zur Macht, Krners Taschenausgabe, Alfred Krer,Stuttgart, 1956.

    V.P., I ou II La Volont de Puissance, trad. G. Bianquis, 26a. edio,Gallimard, 1948.

    (1) G.S., Fragmentos pstumos, 11 (197), p. 387.(2) P.B.M., 227.(3) Ecce Homo, p. 288.(4) P.B.M., 188.(5) P.B.M., 188.(6) K., II, 269.(7) G.S., 11 (94), p. 345.(8) K., II, p. 267.(9) G.S., 11 (55), p. 528.(10) G.S., 11(55), p. 392.(11) G.S., 11 (16), p. 319.(12) Cartas, 65, 12.

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    (12b) W.z.M., 711.(13) G.S., 109, p. 138.(14) G.S., 11 (211), p. 392.(15) V.P., I, p. 213.(16) G.S., 12 (111), p. 464 (trad. modificada)(17) G.S., 109.(18) V.P., I, p. 218.(19) V.P., I, p. 225.(20) Ibid.(21) V.P., I, p. 238.(22) V.P., I, p. 239.(23) V.P., I, p. 236.(24) K., II, p. 273.(24b) Ibid.(25) W.z.M., 968.(26) P.B.M., 259.(27) P.B.M., 9.(28) A Genealogia da Moral, II, 11.(29) W.z.M., 584.(30) V.P., I, p. 248.(31) W.z.M., 853.(32) P.B.M., 259.(33) V.P., I, p. 289.(33b) Ibid.(34) V.P., I, p. 238.(35) V.P., I, p. 289: ela (a pulso) que faz que o mundo se desenvolva logicamente

    segundo nossos julgamentos.(36) V.P., I, p. 262.(37) W.z.M., 202.(38) W.z.M., 1067/ V.P., I, p. 216.(39) Ibid.(40) G.S., p. 395 (trad. modificada).(41) Nietzsche I, p. 274.(42) Nietzsche I, p. 443.(43) Nietzsche I, p. 276.(44) V.P., I, p. 117/ W.z.M., 711.(45) Nietzsche I, p. 439-440.(46) Nietzsche I, p. 439.(47) W.z.M., 1024.

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    (48) W.z.M., 120.(49) Humano, demasiado Humano, I, 508.(50) W.z.M., 120.(51) Ecce Homo, p. 271.(52) V.P., I, p. 248.(53) V.P., II, p. 385.(54) V.P., I, p. 257.(55) O Crepsculo dos dolos, p. 144 (trad. modificada). (Ns sublinhamos: na tota-

    lidade tudo salvo e se afirma).(56) O Crepsculo dos dolos, p. 95.(57) V.P., II, p. 152.(58) W.z.M., 931.(59) V.P., II, p. 153.(60) W.z.M., 708.(61) W.z.M., 617.(62) V.P., II, p. 229.(63) Ditirambos de Dioniso, Gallimard, p. 71.(64) W.z.M., 1052. Cf. O estico diz: qualquer coisa que me ocorra, tudo me

    bom. (G.S., p. 529).(65) C.I., III-IV. p. 318.(66) IIa. Considerao inatual, in fine.