EM BUSCA DA VISÃO DE TOTALIDADE

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EM BUSCA DA VISÃO DE TOTALIDADE ·Sylvia Constant Vergara ··Paulo Durval Branco A necessidade de uma visão de totalidade por parte dos administradores em oposição a uma visão de mundo reducionista e fragmentada. Managers need of total vision in opposition to broken up and reduced world view. Durante muito tempo buscamos estabilidade e se- gurança através do desenvolvimento de modelos, artefatos e processos que garantissem a sensação de domínio e controle sobre a natureza. Dessa forma, criamos tecnologias que nos permitem viajar aos planetas vizinhos e mergulhar na estrutura do áto- mo. Ao mesmo tempo, pouco sabemos sobre nós mesmos. INTRODUÇÃO • Coordenadora do Curso de Mestrado e do Curso de Especialização em Recursos Humanos do Departamento de Administração da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Professora na Escola Brasileira de Administração Pública da FGV . •• Mestrando em Administração pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 20 Revista de Administração de Empresas São Paulo, 33(6):20-31 Nov./Dez. 1993

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EM BUSCA DAVISÃO DE TOTALIDADE

·Sylvia Constant Vergara··Paulo Durval Branco

A necessidade de uma visão de totalidade por parte dos administradores emoposição a uma visão de mundo reducionista e fragmentada.

Managers need of total vision in opposition to broken up and reduced world view.

Durante muito tempo buscamos estabilidade e se-gurança através do desenvolvimento de modelos,artefatos e processos que garantissem a sensação de

domínio e controle sobre a natureza. Dessa forma,criamos tecnologias que nos permitem viajar aosplanetas vizinhos e mergulhar na estrutura do áto-mo. Ao mesmo tempo, pouco sabemos sobre nósmesmos .

INTRODUÇÃO

• Coordenadora do Curso de Mestrado e do Curso de Especialização em Recursos Humanos do Departamento de Administração da Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro, Professora na Escola Brasileira de Administração Pública da FGV .•• Mestrando em Administração pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

20 Revista de Administração de Empresas São Paulo, 33(6):20-31 Nov./Dez. 1993

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Esse descompasso não poderia passardespercebido, levando-nos a reflexõessobre o que se convencionou chamarprogresso. Estarrecidos ao constatar queo entendimento do universo como umamáquina de grandes proporções já nãoexplica os fenômenos à nossa volta, de-batemo-nos entre a sensação de impo-tência e a imposição por novas visões demundo.

Os grandes problemas com os quaisnos vemos envolvidos, que inadequada-mente classificamos como sendo, exclusi-vamente, de natureza econômica, socialou política, demonstram ter em comumuma complexidade sem precedentes e ofato de fazerem parte de uma teia de rela-cionamentos interdependentes. Qualquertentativa de descrição dessa teia de rela-ções nos leva à metáfora que Ilya Prigogi-ne, Prêmio Nobel de Química em 1977,costuma utilizar quando analisa a meteo-rologia como um sistema caótico, instávele aleatório. Trata-se do chamado efeitoborboleta, segundo o qual o batimento daasa de uma borboleta em Pequim podeprovocar um leve sopro que, avançandogradativamente, vai dar nascimento a umfuracão na Califórnia.!

Não é preciso fazer muito esforço paraconcluirmos que fenômenos dessa natu-reza também fazem parte das teias comque lidam as organizações. Das oscila-ções no mercado financeiro à complexi-dade da natureza humana, muito poucodo que faz parte do universo dos admi-nistradores faz lembrar o determinismo ea linearidade que, supostamente, caracte-rizariam o mundo.

Aceitar uma realidade probabilística econcordar com a inconveniência das mui-tas externalidades manifestadas pelo mo-delo dominante de ciência, já não parecedemandar uma postura utópica, muitomenos romântica. Mas o que ainda semanifesta como um grande desafio, des-ses que sinalizam com muitas indagaçõese poucas respostas, é o enfrentamento deum ambiente gIobalizado e caracterizadopor fenômenos interdependentes, a partirde uma formação humana que privilegiao pensamento reducionista e fragmenta-do. Como fazê-lo?

Lançar luz sobre esse desafio, ou pelomenos não contribuir com sombras, tra-duz-se na motivação e compromisso des-

te trabalho. Assim, a seguir, discutimosas exigências por uma visão globalizante,postas ao administrador deste final demilênio; apresentamos a fragmentaçãocom o recurso atualmente disponível pa-ra alcançar aquela visão; evocamos a pos-sível origem da fragmentação; apresenta-mos esforços que têm sido realizados nabusca da visão de totalidade. Finalmente,

indicamos os programas de formação edesenvolvimento de administradores co-mo loeus privilegiado para expandiraqueles esforços. Movendo-se entre vi-sões fragmentadas da realidade eles po-dem, em princípio, superá-las.

AS EXIGÊNCIAS POR UMA VISÃOGlOBALlZANTE

Ao analisar as questões relacionadasao surgimento e ao desenvolvimento daglobalização da vida humana, Otáviolanni 2 chama atenção para o fato de quea complexa interdependência das nações,povos, classes, grupos, indivíduos, con-traditoriamente integrativa e antagônica,plena de possibilidades e de dilemas,apenas começa a merecer a reflexão e aação da sociedade global e das ciênciassociais em particular.

Ao mesmo tempo sujeito e objeto nes-se universo de possibilidades e dilemascaracterizado por lanni, o administradordesse final de milênio encontra-se àsvoltas com desafios de diversas nature-zas. Das escolhas exclusivamente instru-mentais às questões ontológicas e episte-

© 1993, Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil.

1. SORMAN, Guy. Os verdadei-ros pensadores de nosso tem-po. Rio de Janeiro: Imago,1989.

2. IANNI, Octavio. A sociedadeglobal. Rio de Janeiro: Civiliza-ção Brasileira, 1992.

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I1~lJARTIGO

3. FLOWERS, Betty Sue (org.) Opoder do mito. Joseph Camp-bel! com Bil! Moyers. São Paulo:Palas Athenas, 1990.

4. KIM, W. Chan, MAUBORGNE,Renée, A. Parables of leaders-hip. Harvard Business Review,p. 123-28, Jul./Ago. 1992.

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mológicas, parece que,nunca estivemostão próximos das fronteiras, nem tãoaflitos frente às incertezas das grandesmudanças.

Sejano interior das empresas, seja foradelas, se é que ainda podemos estabele-cer esses limites, lidamos com realidadesque já não são explicadas pelo rigor doparadigma cartesiano nem pela elegânciados modelos newtonianos, os quais sem-pre seduziram, e continuam seduzindo,gerações de cientistas sociais.

Ao falar sobre as possibilidades deconciliação entre ciência e religião, [o-seph Campbel ' faz referência a uma cenado filme Guerra nas Estrelas, onde o per-sonagem Lucas Skywalker recebe umaordem em que lhe dizem: "Desligue ocomputador e confie nos seus sentimentos".Semelhante ao personagem de Guerranas Estrelas, os administradores têm delidar com a precisão da lógica binária doscomputadores, ao mesmo tempo em quese envolvem com a abstração e a sutilezade sentimentos sempre presentes nas in-terações humanas e decisões organizacio-nais, como as que nos conta a parábolachinesa.

No século III o Rei Ts'ao mandou seufilho, O Príncipe T'ai, para um temploonde iria estudar sob a orientação doMestre Pan Ku. Como o princípe iria su-ceder seu pai, o mestre deveria instruí-lono sentido de tomar-se um bom dirigen-te. Com esse intuito, Pan Ku mandou queo jovem príncipe fosse sozinho para aFloresta Ming-Li, e só retomasse ao tem-plo depois de um ano, ocasião em quedeveria descrever os sons da floresta. Umano se passou e, ao ser questionado pelomestre sobre os sons que ouviu, o Prínci-pe T'ai respondeu: "Mestre, eu pude ouviro canto dos pássaros, o farfalhar das folhas, ozumbido dos beija-flores e das abelhas e o somdos ventos". Assim que o príncipe termi-nou sua descrição, o mestre mandou-o devolta para a floresta com a orientação deque ficasse atento ao que mais poderiaouvir. Ainda confuso, o jovem T'ai retor-nou e, após passar quatro dias e quatronoites atento aos sons, não conseguiuidentificar nenhum diferente dos que jáhavia ouvido. Até que certa manhã, sen-tado em silêncio entre as árvores, come-çou a discernir sons muito tênues, dife-rentes dos que havia percebido até então.

Sentindo-se profundamente esclarecido,o princípe voltou para o templo e, nova-mente abordado por Pan Ku, respondeu:"Mestre, ao prestar mais atenção pude ouviro inaudível - o som das flores se abrindo, osom do sol aquecendo a terra e o som do ca-pim absorvendo o orvalho da manhã". Fazen-do um gesto de aprovação, o mestre dis-se: "Ouvir o inaudível é uma qualidade ne-cessária ao bom dirigente. Somente quando odirigente aprende a ouvir atentamente o cora-ção das pessoas, percebendo seus sentimentosnão comunicados, suas dores não expressas esuas queixas não formuladas, é que ele podeinspirar confiança, entender quando algumacoisa está errada e identificar as verdadeirasnecessidades dos cidadãos. "4

Dando margem a várias interpreta-ções, a história apresentada expressa demaneira singela e profunda um desafiofreqüente com que se defrontam os ad-ministradores: o da liderança. Ocorreque, além das qualidades desejadas doPríncipe T'ai, espera-se dos atuais admi-nistradores a capacidade de atuarem emcenários onde a convivência da ordem edo caos se faz sentir. Espera-se que pos-suam múltiplas habilidades, tanto de na-tureza comportamental quanto técnicaque, ancoradas em valores e atitudes,lhes permita lidar adequadamente comambigüidades.

Além de versados nos mistérios da na-tureza humana e senhores de técnicas asmais diversas, os administradores devemestar aptos a navegar em uma economiaque há muito não respeita fronteiras geo-gráficas, muito menos os modelos econo-métricos. Devem mostrar-se hábeis paraconduzir ou participar de processos mul-disciplinares e que demandam poder deabstração e síntese. Devem ser capazesde, ao contrário dos meteorologistas, an-tecipar as conseqüências do bater de asasde uma borboleta em Pequim. Não sequer dizer com isso que os administrado-res devam tomar-se candidatos imbatí-veis a uma vaga no Olimpo, mas, sim,que estão frente à necessidade de uma vi-são globalizante da realidade, onde aspartes devem ser tratadas segundo osseus mútuos relacionamentos e o relacio-namento com o todo. Também onde osindivíduos possam ser considerados, nãosegundo uma perspectiva unidimensio-nal e excludente; antes, multidimensional

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5. ROSSI, Clóvis. China cresce eEUA param na entrada do sécu-lo 21. Folha de São Paulo, SãoPaulo, 31 jan. 1993. p. 4

6. Idem, ibidem.

7. WILBER, Ken. (org.) O para-digma holográfico e outros pa-radoxos. São Paulo: Cultrix,1991.

8. CAPRA, Fritjof. O tao da físi-ca. São Paulo: Cultrix, 1975.

9. Idem. ibidem. . OPonto de mutação. São Paulo:Cultrix, 1982; __ . Sabedo-ria Incomum. São Paula: Cul-trix, 1990; PIRSIG, Robert M.Zen e a Arte da Manutenção deMotocicletas: uma investigaçãosobre valores. São Paulo: Paz eTerra, 1984; WILBER, Ken. Aconsciência sem fronteiras. SãoPaulo: Cultrix, 1979.

10. BRUNSSON, N. The organi-zation of hipocrisy. London:John Wiley & Sons, 19a9.

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e integrativa. Com certeza, não se tratade uma necessidade fácil de ser atendi-da, mas é premente. Cada vez há maisindícios de que pouca habilidade temosdemonstrado no trato com a complexida-de dos problemas atuais. A crise com aqual nos defrontamos desafia a todos.Estaremos capacitados para reverter essequadro?

FRAGMENTAÇÃO: O RECURSO ATUALMENTEDISPONíVEL

No último Fórum EconômicoMundial,realizado na Suíça em janeiro de 1993,opsiquiatra espanhol Luis Rejas Marcostransmitiu a uma platéia perplexa os re-sultados de suas observações como co-missário do Serviço de Saúde Mental deNova York: "Conforme revelam estudos re-centes, a comunidade ocidental está sendo in-vadida por um novo mal coletivo, a depressão.De certo modo, pode-se dizer que de pais nar-cisistas estão nascendo filhos melancólicos". 5

Reforçando o discurso de Rojas Marcos,durante o simpósio mencionado, o inglêsPaul Kennedy. professor de História daUniversidade Yale, refere-se ao futuroimediato dizendo: "Deveremos viver emum mundo esquizofrênico". Segundo ele,essa esquizofrenia seria fruto da divisãodo mundo entre duas forças absoluta-mente contrapostas, mas igualmente po-derosas: de um lado, a globalização e, dooutro, a fragmentação.6

A depressão observada e a esquizofre-nia prevista fazem parte de uma realida-de que, muitas vezes, tenta-se encobriratravés de subterfúgios e justificativas,as quais, via de regra, atribuem às pres-sões e dificuldades da conjuntura econô-mica, política e social, a única origemdos problemas para os quais não encon-tramos soluções. O duelo entre as referi-das forças de globalização e fragmenta-ção é, ao mesmo tempo, resultado e su-porte das ações de indivíduos queapreendem o mundo à sua volta a partirde uma rede conceitual e valorativa esti-lhaçada e desconexa. Não é por acasoque David Bohm, físico da Universidadede Londres, alerta para a fragmentação eo estilhaçamento de nações, religiões,grupos, indivíduos nas famílias e no in-terior de si mesmos. Uma fragmentaçãoque gera caos, violência, destruição. 7 Ou,

como assevera Capra 8, nossa fragmenta-ção interna espelha a visão que temos deum mundo "exterior" constituído por fa-tos e objetos isolados. Resulta daí umainíquia distribuição de recursos naturais,desordem econômica, política e social eum ambiente feio e poluído.

Conforme demonstram inúmeros au-teres", essa fragmentação que caracterizao homem moderno está por trás de nos-sas relações desequilibradas com as ou-tras pessoas e coisas à nossa volta, as

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quais não vemos como fazendo parte deuma unidade. Não considerá-las dentrode uma perspectiva de unicidade e tota-lidade, leva-nos a identificar observadore coisa observada como entidades distin-tas e independentes, assim como a justi-ficar os mecanismos de controle e domi-nação largamente empregados nas rela-ções sociais.

Da mesma forma, a ilusão de umaciência isenta de valores, fundamentadanessa fragmentação e por tanto tempomitificada, mostrou-se conveniente paravalidar descomprometimento com os re-sultados de muitas experiências e práti-cas científicas. Idéias e ações não esta-riam relacionadas mas, enfatiza Bruns-son 10, estariam submetidas à mesma se-paração que coloca, de um lado, espíritoe mente e, do outro, matéria e corpo.

No contexto das organizações, expres-são que só adquire sentido quando seconsidera a ação humana como elementode sua formação, esta fragmentação se

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manifesta através de relações hierárqui-cas fundamentadas na ilusão de supre-macia do chamado trabalho intelectualsobre o braçal, através de especializaçãocompartimentalizada e do desmembra-mento de tarefas levado a extremos. Tu-do isso dá origem a um trabalho sem vi-da e desvinculado de suas relações com otodo.

Como não poderia deixar de ser, o quese verifica é um arranjo social baseadoem valores e premissas que espelham anatureza segmentada de nosso universointerior.

Como reflexo de uma postura que fazopções exclusivas pela parte e pelos obje-tos, em detrimento do todo e das intera-ções entre os objetos, privilegiamos de-terminados ângulos de visão da realida-de. Esses olhares escolhidos refletem, eao mesmo tempo realimentam, o nossoentendimento do real. É assim que flores-ceu e permanece dominante uma teoriada organização que, como aponta Guer-reira Ramos 11 parece: a. identificar ocomportamento econômico com a totali-dade da natureza humana; b. não fazerdistinção entre o significado substantivoe o formal da organização; c. não com-preender o papel da interação simbólicano conjunto das relações interpessoais; d.não distinguir a diferença entre trabalhoe ocupação. Em síntese, como GuerreiroRamos, percebemos que teóricos da orga-nização cedem a uma abordagem redu-cionista aos sistemas sociais.

Em trabalho desenvolvido por Burrel eMorgan 12, também fica evidente a opçãopela negação da diversidade quando bus-camos entender e intervir sobre a realida-de. Ao identificar e qualificar os váriosparadigmas subjacentes às ciências so-ciais em geral, e à análise organizacionalem particular, os autores demonstram sero funcionalista o paradigma dominantena teoria das organizações. Comprometi-do com a ordem, o controle e o forneci-mento de explicações acerca do statusquo, esse paradigma enseja uma imobili-dade em relação à busca e à aceitação deoutras visões de mundo, o que empobre-ce e limita a nossa apreensão da comple-xidade da qual somos parte.

Temos pois, de um lado, uma realida-de dinâmica, cenário de fenômenos com-plexos e interdependentes que insistem

em ser exceção às regras dos modelos daciência clássica; de outro, um homem quecompreende e age sobre essas mesmasrealidades a partir de abordagens redu-cionistas e fragmentadas, que - não raro- se deixa enganar pela ilusão de umaciência isenta de valores e que se imaginaseguro ao legitimar a racionalidade eco-nômica como a sua dimensão dominante.

Mobilizado pela constatação dessacontradição, um número crescente de vo-zes tem se levantado em várias áreas doconhecimento com o propósito de identi-ficar as origens da fragmentação e inves-tigar as possibilidades de sua superação.

A GÊNESE DA FRAGMENTAÇÃO

Segundo uma história contada na ín-dia, um homem encontrou em um tremum sujeito velho e com aparência bastan-te frágil, que carregava um saco de papelpardo dentro do qual colocava pedaci-nhos de comida. Depois de algum tempo,o passageiro não agüentou mais e per-guntou o que ele estava alimentando.

- uÉ um mangusto, sabe, aquele animalque mata cobras.

- Mas porque você o carrega?- Bem, respondeu o sujeito, eu sou alcoó-

latra e preciso do mangusto para espantar ascobras quando tenho algum ataque de deli-rium tremens.

- Mas você não sabe que as cobras são ape-nas imaginárias?

- É claro que sei, respondeu o homem. Omangusto também é."

Assim como o sujeito que alimentavaum animal inexistente, parece termos de-senvolvido modelos a partir de um uni-verso tão real quanto as cobras que habi-tam as alucinações do alcoólatra. A dife-rença é que o sujeito da história tinhaconsciência de que tudo não passava deilusão.

Pesquisas desenvolvidas a partir doinício desse século, envolvendo partícu-las sub atômicas, colocaram emquestio-namento concepções baseadas na teoriamatemática de Isaac Newton, na filosofiade René Descartes e na metodologia cien-tífica defendida por Francis Bacon, asquais se traduzem no alicerce de físicaclássica. Conforme o entendimento des-

11.GUERREIRO RAMOS, Alber-to. A nova ciência das organiza-ções - uma reconceituação dariqueza das nações. Rio de Ja-neiro: FGV, 1989.

12. BURREL, Gibson, MORGAN,Gareth. Sociological paradigmsand organizational analysis.London: Heinemnann Educatio-nal Books, 1979.

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13. CAPRA, Fritjof. O tao da Fí-sica. Op. cit.

14. WILBER, Ken. A consciênciasem fronteiras. Op. cít.

15. Idem, ibidem, p. 23.

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ses pensadores, fenômenos complexospoderiam ser compreendidos desde quefossem reduzidos aos seus componentesbásicos, e que fossem investigados os me-canismos através dos quais tais compo-nentes interagem. Conhecida como redu-cionismo, essa atitude encontra-se tãovinculada à nossa cultura que chega a seridentificada como sendo o próprio méto-do científico.

A visão reducionista está, pois, asso-ciada às origens da ciência moderna, aqual possui estreita ligação com o pensa-mento filosófico orientado ao dualismoespírito/matéria que veio à tona no sécu-lo XVII através de René Descartes. Des-cartes via a natureza como derivada deuma divisão entre dois reinos indepen-dentes: o da mente e o da matéria. A cha-mada divisão" cartesiana" levou ao trata-mento do objeto como algo separado doobservador, legitimando uma visão domundo como uma máquina de enormesproporções onde tudo poderia ser previs-to e, sobretudo, controlado. Na interpre-tação de Fritjof Capra, físico que popula-rizou a crítica à ciência tradicional, a filo-sofia de Descartes, ao invés de levar o ho-mem ocidental a igualar sua identidade atodo o seu organismo, conduziu-o a igua-lá-la apenas à sua mente. 13

Também dedicado a clarificar as rela-ções que, inadvertidamente, desenvolve-mos em relação a nós mesmos e às pes-soas e coisas ao nosso redor, Ken Wil-ber r', bioquímica e editor-chefe do ReVi-SiOI1 [ournal, percebe que a fragmentaçãotem sua gênese na identificação de umeu dissociado de tudo o mais, como sehouvéssemos traçado uma linha limítro-fe. Assim, verifica-se uma dicotomia: oeu e o não-eu. A essa. dicotomia, Wilberassocia. quatro níveis de identidade, con-figurando o que chamou de "espectro daconsciência". Inicialmente, temos o nívelda persona, onde o indivíduo reduz suaidentidade a apenas uma parte de suapsique, a persona, alienando e reprimin-do os aspectos dela indesejáveis, a quechamou de sombra. O segundo nível é onível do ego, onde o indivíduo identifi-ca-se principalmente com a sua menteou ego, deixando o corpo para além dalinha limítrofe. No terceiro nível, senti-mo-nos unidos ao nosso organismo co-mo um todo, o qual já não estabelece a

distinção mente/ corpo, mas ainda semque nos percebamos unidos ao todo. Es-te é denominado o nível do organismototal. Na base do espectro, que Wilberdenomina consciência da unidade, a li-nha limítrofe deixa de manifestar-se e apessoa sente que está unida ao universo,que o seu verdadeiro eu não é apenas oseu organismo, mas toda a criação. Esteseria o nível exaustivamente descrito pe-los místicos e que já começa a ter respal-do de vários ramos da ciência, em espe-cial da neurociência e da psicologiatranspessoal.

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Visto sob outro ângulo, isto é, partindoda totalidade, Wilber argumenta que "...passamos do universo para uma faceta douniverso chamado 'o organismo'; do organis-mo para uma faceta do organismo chamada 'oego'; do ego para uma faceta do ego chamada'a persona' - são estas apenas algumas dasfaixas mais importantes do espectro da cons-ciência. .. Assim, no nível do organismo comoum todo, o meio ambiente aparece fora do li-mite do eu, estranho, externo, não-eu. Mas nonível da persona, tanto o meio ambientequanto o corpo e certos aspectos da própriapsique do indivíduo parecem externos, estra-nhos, não-eu". 15

Admitindo-se a prevalência da atitudereducionista que herdamos do modelocartesiano e as indiscutíveis barreiras de-finidas pela linha limítrofe eu/não-eu ca-racterizada por Wilber, parece claro es-tarmos diante de um impasse. Um im-

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passe que não pode ser abordado segun-do os mesmos moldes que configuram anossa atual concepção do universo. Ha-verá alguma saída?

BUSCANDO SAíDAS PARA O IMPASSE

A maneira como apreendemos a reali-dade através de teorias e modelos, em es-pecial quanto implícitos, pressupostos enão questionados, define um caráter or-ganizador auto-realizável e auto-avalia-dor da experiência, levando à modifica-ção da percepção, sugerindo áreas depesquisa, dando formas à investigação edeterminando a interpretação dos dados.Essa argumentação adquire especial im-portância quando nos dispomos a inves-tigar saídas para os impasses produzidospor nossa própria maneira de tratar arealidade. Isso significa dizer que buscarsoluções segundo os mesmos pontos devista que originaram os problemas éequivalente a enredar-se em definiçõestautológicas.

No que se refere à fragmentação da vi-da humana, parece não fazer sentido in-vestigar superações a partir dos pressu-postos que a geraram. Existirão outroscaminhos? Na busca desses caminhosnão podemos esperar pela comodidadedas prescrições, que sempre caracteriza-ram a teoria organizacional. Ao contrá-rio, devemos ousar, inovar e, acima detudo, reconhecer as limitações da racio-nalidade, a qual se traduz em apenasuma das dimensões humanas.

Tendo em comum o reposicionamentoda ciência clássica e o entendimento doser humano segundo uma perspectivamultidimensional, muitas idéias vêmsurgindo no sentido de desenvolver críti-cas e, ao mesmo tempo, propor alternati-vas para superar as limitações impostaspelo recurso atualmente disponível: afragmentação.

Da física quântica ao estudo do cére-bro, passando pelas ciências sociais e hu-manas, várias são as investigações queapontam para um tratamento menos re-ducionista e compartimentalizado dos fe-nômenos. Verifica-se um nítido movi-mento em direção à percepção das inter-dependências, ao entendimento da com-plementaridade entre os opostos e ao re-conhecimento da complexidade da natu-

reza humana.Foi nesse contexto que a física moder-

na passou, a partir dos trabalhos de Eins-tein, Neils Bohr, Werner Heisenberg eoutros, de um universo determinísticopara a consideração da incerteza dentrode uma realidade probabilística. Nemmesmo a matéria e a radiação passaramincólumes, admitindo serem tratadas oracomo partículas, ora como ondas. Outraspesquisas, como as desenvolvidas pelaequipe do físico Alain Aspect ", chegam aapontar para o fato de não ter significadofalarmos de coisas e objetos como sendoreais além da mente do observador. Namesma direção aponta David Bohm 17, aofalar de duas ordens no universo, que seinterpenetram. Da ordem implicada, do-brada, não-manifesta, emerge a explica-da, desdobrada, manifesta, que se traduzno que vemos à nossa volta.

Na esfera das relações sociais, a oni-presença das interpretações baseadas noconceito de Homo Economicus, ou de qual-quer outra abordagem que vê as pessoasem pedaços, já dá lugar à compreensãode que nos manifestamos como um todocujos diferentes elementos estão intima-mente interligados.

Influenciando diretamente o estudo docomportamento organizacional, é essaampliação de enfoque que, como argu-menta Chanlat ", leva cada vez mais pes-quisadores a contestar a concepção ins-trumental, adaptativa, simplificadora epor vezes manipuladora do ser humano,e a buscar outras perspectivas teóricasque incorporem o que ele chamou de di-mensões esquecidas do indivíduo. Identi-ficando cinco níveis em permanente rela-cionamento - do indivíduo, da interação,da organização, da sociedade e do mun-do -, Chanlat dá início a uma teoria an-tropológica das organizações que buscaresgatar a relevância dos seres humanosnas organizações e no contexto sócio-his-tórico, bem como reafirmar o papel dosimbólico nas organizações.

Quanto ao nível da interação a que serefere Chanlat, Habermas 19 desenvolveuma teoria que contrapõe ao agir instru-mental característico de nossa sociedadecontemporânea, o que designa por agircomunicativo. Se o primeiro faz a media-ção entre a teoria e a prática através depostulados técnicos, o segundo media

16. TALBOT, Michael. Beyondthe quantum. New York: Mac-millan, 1986.

17. WILBER, Ken (org.) O para-digma holográfico e outros pa-radoxos. Op. cil.

18. CHANLAT, Jean-François.L 'individu dans /'organization.Quebec: Éditions Eska, 1990.

19. HABERMAS, Jürqen, Moralconsciousness and communica-tive action. Cambridge: PolityPress, 1990.

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20. WILBER, Ken. A consciênciasem fronteira~. Op. clt,

21. WALSH, Roger N., VAUG-HAN, Frances. Além do ego: di-mensões transpessoais em psi-cologia. São Paulo: CultrixlPen-samento, 1980.

22. WALSH, Roger N., VAUG-HAN, Frances. Op. cít,

23. HARMAN, Willis, HOR-MANN, John. O trabalho criati-vo: o papel construtivo dos ne-gócios numa sociedade emtransformação. São Paulo: Cul-trix, 1990.

24. KUHN, Thomas S. A estru-tura das revoluções cientifícas.São Paulo: Perspectiva, 1982 ..

25. BORDIEU, P., PASSERON,J. C. A reprodução: elementospara uma teoria do sistema deensino. Rio de Janeiro: Francis-co Alves, 1975.

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pelo diálogo entre os agentes sociais. Afala é, então, um meio de entendimento,seja pelos questionamentos que provoca,seja pela aceitação a que conduz. Vital noagir comunicativo de Habermas é que aodiscurso corresponda, realmente, o pen-samento e a ação, o que implica valoresrelacionados à verdade, à autenticidade,à justiça.

Se buscas, como a de Habermas, têmsido realizadas no sentido de uma com-preensão mais abrangente da interaçãohumana, também são observadas aquelasdirigidas ao indivíduo em particular.

Investigando as abordagens que nessesentido têm surgido, veremo-nos comoque navegando sobre o "espectro daconsciência" proposto por Wilber.20 Vol-tada para a expansão do campo de pes-quisa psicológica, a psicologia transpes-soal é um bom exemplo dessas novasabordagens. Incluindo áreas da experiên-cia e do comportamento humanos asso-ciadas com saúde e bem-estar extremo,ela se apóia tanto na ciência ocidentalquanto na sabedoria oriental. 21

Nos últimos anos de sua vida, Mas-low", que é bastante conhecido pela"hierarquia das necessidades" e quemuito influenciou a Teoria das RelaçõesHumanas, sustentava pontos de vista dapsicologia transpessoal. Segundo ele, asnecessidades superiores (metanecessida-des) tais como as facetas transcendentes,religiosas, estéticas e filosóficas da vida,são tão reais e Intrínsecas à natureza hu-mana quanto quaisquer necessidadesbiológicas. Indo além, Maslow argumen-tava que a vida espiritual ou dos valoresseria passível de desenvolvimento a par-tir de técnicas como a meditação e a con-templação, enquadrando-se bem no rei-no da natureza, em vez de constituir umdomínio distinto e oposto a ele. Propu-nha, ainda, que ela poderia ser investiga-da tanto por psicólogos como por cien-tistas sociais.

A vinculação das metanecessidades ànatureza humana, provavelmente, en-contra-se associada ao crescente númerode pessoas que buscam as práticas psico-energéticas e que se voltam para os ensi-namentos das culturas tradicionais e dis-ciplinas espirituais, embora possamosadmitir que, muitas vezes, tais buscas sedêem de forma equivocada e, até mesmo,

por motivações aéticas.De qualquer forma, são muitas as pro-

postas que têm sido formuladas no senti-do de estabelecer um tratamento globali-zante para a experiência humana e dereunificar as diversas facetas originadasde uma formação que sempre privilegiouo reducionismo e a fragmentação. Inde-pendente dos enfoques, das origens e dasorientações, parece ficar claro que as res-postas só podem surgir a partir da inten-ção sincera de adotarmos novas formasde ver a realidade, de passarmos a fazerescolhas em novas bases, de integrarmosao dia-a-dia das organizações a noção detrabalho criativo.P Se considerarmos queas transformações que estão em curso,dando corpo a um processo de mudançaparadigmática 24, afetam as organizações,parece lúcido admitir que os programasde formação e desenvolvimento de admi-nistradores são, entre outros, espaços pri-vilegiados para a busca de superação daslimitações até então enfrentadas no tratoda complexidade do mundo moderno.Revisitá-los parece tarefa que se impõe.

REVISITANDO OS PROGRAMAS DEFORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DEADMINISTRADORES

Não são poucas as críticas existentesaos sistemas de educação, pelo compro-metimento que demonstram com a ma-nutenção de determinado conjunto dedogmas e valores. Para essa circunstâncianos alertam Bordieu e Passeron 25 ao afir-marem que a educação, seja nas escolas,empresas, exército, igreja, família e ou-tras instituições, perpetua o status quo, se-gundo interesses da classe dominante,configurando um processo ao que cha-maram de reprodução.

Se, por um lado, não podemos deixarde admitir a significativa relevância dotrabalho daqueles autores para a com-preensão mais ampla da natureza daeducação e do quanto esta produz ele-mentos para o controle social, por outro,devemos admitir que a teoria da repro-dução não considera a possibilidade decriação, intervenção, resistências dos se-res humanos. É como se os autores ne-gassem a si próprios. A teoria da repro-dução oferece pouca esperança no senti-do de mudanças.

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EM BUSCA DA VISÃO DE TOTALIDADE

É para a possibilidade de mudançaque os chamados teóricos da resistência,criticando a teoria da reprodução, vol-tam-se, procurando argumentar que opo-sição, pensamento crítico e questiona-mentos, freqüentemente recusam, negamas mensagens educacionais e, nesse senti-do, podem influenciar e modelar um no-vo agir. No entanto devemos, como Ci-roux ", estar atentos ao fato de que mui-tas vezes a contestação pode não se ex-

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pressar em uma resistência emancipado-ra, mas sim, estar instruída em uma outralógica dominadora.

Aplicada ao debate em torno da ade-quação dos programas de formação e de-senvolvimento de administradores, a ar-gumentação de Ciroux-" permite colocarem destaque aspectos importantes, levan-do-nos a refletir sobre o que vem sendodesenvolvido corno substituto ou comple-mentar ao que se encontra sob crítica.

Alvos de questionamentos contunden-tes28, os centros de ensino de administra-ção têm sido acusados de enorme des-compasso frente às reais necessidades doambiente de negócios. Esterelizados emsuas dimensões crítico-criativas, os admi-nistradores estariam sendo preparadospara atuar em um contexto que tem mui-to pouco a ver com as prescrições racio-

nalistas e quantitativas que lhes ocupama quase totalidade do período de forma-ção. Como que insensíveis ao que se pas-sa na sociedade mais ampla, as escolas deadministração estariam sendo atropela-das pelas mudanças em curso. Na tentati-va de minimizar as disfunções desse qua-dro, várias iniciativas foram desenvolvi-das no sentido de capacitação dos admi-nistradores, principalmente no interiordas empresas, através de treinamento edesenvolvimento gerencial. Entretanto, oque se vê na prática é uma simples justa-posição de componentes cognitivos eemocionais-atitudinaís, quando se tratados programas considerados mais mo-dernos; ou a exclusividade dos compo-nentes cognitivos, no caso dos programasclássicos. 29

Ocorre que esses componentes nãocorrespondem à totalidade do ser huma-no. Devemos ter' claro que somos um to-do integrado de natureza física, intelec-tual, emocional e espiritual, o qual estápresente e manifesto durante todo o tem-po, independente das reduções voluntá-rias ou involuntárias que se tente fazer, edo fato de estarmos atuando em nossa vi-da profissional ou pessoal que, de resto,só podem ser separadas pela nossa visãofragmentada. Se aceitamos a concepçãomtegrada do indivíduo, onde os níveis fí-sico, intelectual, emocional e espiritualsão indissociáveis e encontram-se emconstante interação, passamos a identifi-car com mais clareza as origens do fra-casso de tantos programas de formaçãode administradores. Não existem dúvi-das quanto à importância dos componen-tes até então enfatizados. Todos são in-dispensáveis à prática gerencial. O quenão se justifica é a negligência dos de-mais e o fato de serem vistos como de ca-ráter desviante.

Caminhar para urna visão totalizante eintegrada da realidade parece indicar pa-ra o fato de que o duelo globalização-fragmentação tem início em nós mesmos,o que justifica concent.rar no indivíduo osesforços de superação. Até quando conti-nuaremos adiando essa decisão?

Permitindo antever contribuições ex-pressivas, Moscovici 30 apresenta urnaconcepção holíst.ica de desenvolvimentoonde os quatro níveis do ser humano sãoconsiderados e trabalhados de forma

26. GIROUX, Henry A. Theoriesof reproduction and resistancein the new sociology of educa-tion: a criticai analysis. HstvsrdEducational Review, v. 53. n. 3,p.257-93,Aug.1983.

27.ldem, ibidem.

28. KLI KSBERG, Bernardo. AGerência na década de 90. Re-vista de Administração Pública,Rio de Janeiro, n. 22, p. 59-85,Jan./Mar. 1988; MCCORMACK,Mark H. O que não se ensinaem Harvard Business SchooJ.São Paulo: Harbra, 1984. PE-TERS, Thomas J., WATERMAN,Hobert H. venceuüo i1 crise. SãoPaulo: Harbra, 1986.

29. MOSCOVICI, Feia. Renas-cença organizacional. Rio de Ja-neiro: LTC, 1988.

30. Idem, ibidem.

29

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jJ!JlJ ARTIGO

31. COLEMAN, Win, PERRIN,PaI. O livro de pragmágica deMari/yn Ferguson. Rio de Janei-ro: Record, 1992.

32. CHANLAT, Jean-François.Op. cít,

33. VERGARA, Sylvia Constan!.Sobre a intuição na tomada dedecisão. Revista de Adminis-tração Pública, Rio de Janeiro,FGV,v. 27, n. 2, Abr./Jun. 1993.

34. LARROYO, Francisco. Histó-ria geral da pedagogia. SãoPaulo: Mestre Jou, 1970.

30

equilibrada. Coerente com as tendênciasque se verificam nas fronteiras do conhe-cimento, esta concepção aponta para aimportância que igualmente deve seratribuída tanto aos conteúdos lógicos eobjetivos, quanto à imaginação, à criativi-dade, à antevisão de resultados. Nessa li-nha, Coleman e Perrin ", reunindo teoriase métodos desenvolvidos por cientistas eoutros profissionais das mais diversascorrentes de pensamento, apresentamum guia prático para o autodesenvolvi-mento. Tal guia inclui lógica e disciplina,em um processo voltado ao pragmatis-mo, e também deflagra a intuição, bemcomo sentimentos de risco, de surpresa,de mistério, de prazer, em um processoque envolve, sobretudo, magia. O guia

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apresenta, então, técnicas específicas pa-ra a compreensão dos processos cere-brais, corporais e espirituais.

Se recorrermos às sabedorias milena-res, passando pelos pensadores gregos eos místicos do oriente e do ocidente, veri-ficaremos que os fundamentos de umaconcepção holística do ser humano sem-pre estiveram presentes na história dahumanidade. O esforço atual é no senti-do de resgatá-los dentro de um novo con-texto, onde a vida humana é marcada porenorme complexidade.

Se, portanto, faz-se sentir a necessidadede uma visão integrada do ser humanoque lhe resgate as dimensões esquecidas,como diria Chanlat F, igualmente faz-se

sentir a necessidade de integrar o conhe-cimento fragmentado pela ciência tradi-cional, associando contribuições indivi-duais de cada campo do saber, bem comoas contribuições coletivas dos campos. In-teressante, também, é a possibilidade deutilizar tais contribuições em conjunto pa-ra o estudo de um mesmo tema, proble-ma, fenômeno, evidenciando, portanto, osdiferentes focos pelos quais eles podemser vistos, as diferentes linguagens pelasquais podem ser descritos e as diferentesracionalidades que podem presidir taisdescrições.P Este exercício pode provocara compreensão, um tanto esquecida, deque diferenças de entendimento acerca deum fenômeno, menos do que desnuda-rem fragilidades intelectuais, podem re-velar os diferentes ângulos pelos quaisum fenômeno pode ser visto. O exercíciotem, portanto, em si, um caráter empáti-co, integrador, ajudando, inclusive, nasrelações sociais. Não é por ingenuidadeque a racionalidade dialógica de Haber-mas só pode ser construída sobre umacoerência entre teorias distintas, percebi-das como fragmentos de um complexomuldicisplinar. É útil, igualmente, vincu-lar conceitos às ações cotidianas, ofere-cendo-lhes um sentido significativo.

Vale a pena buscar inspiração nas teo-rias e metodolcgías pedagógicas, aindaque admitindo estarem elas, predominan-temente, voltadas para a prática comcrianças, o que pode significar limites. Ahistória da pedagogia nos revela, porexemplo, os chamados métodos predomi-nantemente globalizadores, como os"centros de interesse" de Ovídio Decroly,o "método de projetos" de W. Kilpatrick,o "método de complexos" de Blonsky e os"temas globaliza:n.tes" de Braune, Kruegere Rauch ", todos desenvolvidos no iníciodesse século e, no entanto, tão atuais.

Decroly, ao perceber que as criançastendem para representações globais, deconjunto, de totalidades, reagiu à organi-zação fragmentada do ensino, propondoum processo que designou por centros deinteresse. Assim, em torno de centros co-mo a família, a escola, o mundo animal, omundo vegetal, o mundo geográfico, ouniverso, idéias seriam associadas, confi-gurando, visões integradas da realidade.

Kilpatrick com seu método de projetosvoltou-se, originalmente, para o trabalho

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manual, mas foi além. Propôs que, atra-vés de um trabalho desta natureza, comoa construção de uma casa de coelhos, porexemplo, fossem integrados conceitos as-sociados à geometria, ao desenho, ao cál-culo, à história natural e outros.

Blonsky criou o método de complexos,também denominado de temas sintéticos.Consiste em concentrar a aprendizagemem torno de três grupos de fenômenos: anatureza, o trabalho produtivo e as rela-ções sociais, todos atrelados a um temacentral: o trabalho humano. Os comple-xos tratam de problemas que Blonsky

Enffentbr Um ambiente globalizado4 -e caracterizado p'Of fenàmenos

Interdependentes, a párt;' de umalermação humana quepriv;/eg;a

o:pensamento reducionista efragmentado, parece decisão que

e

merece ser re'l;sta.

considerava vitais: o ambiente da criança,a comunidade, o município, a república,as relações internacionais.

Braune, Krueger e Rauch, por sua vez,propuseram uma organização de ensinona qual planos e programas configurado-res de visões fragmentadas do mundo,seriam substituídos por temas globali-zantes, trabalhados por professor e alu-nos sob a forma de troca livre de impres-sões a respeito de algo.

Outros métodos e práticas podem serpensados e, certamente, têm sido, aindaque timidamente, utilizados. Uma pesqui-sa empírica que levantasse o que vem sen-do realizado, tanto em universidades, co-mo em outras organizações, na busca da

visão de totalidade, não só enriquecerianossos conceitos, como nossas própriaspráticas. Nesse sentido, a investigação se-ria, também, um elemento integrador.

CONCLUSÃO

Enfrentar um ambiente globalizado ecaracterizado por fenômenos interdepen-dentes, a partir de uma formação huma-na que privilegia o pensamento reducio-nista e fragmentado, parece decisão quemerece ser revista. Também merece revi-são fazer do método cartesiano de pensaro bode expiatório, o mitigador de nossossentimentos de culpa e de impotência,diante dos desafios com os quais nos te-mos defrontado.

Alternativas devem ser buscadas. Elasnão podem estar referidas aos mesmospontos de vista que originaram as gran-des questões para as quais não temos en-contrado respostas significativas. Agirdesta forma seria o equivalente a enre-dar-se em definições tautológicas.

Urge, portanto, buscar aquelas alterna-tivas que, referidas à visão de totalidadee unicidade, resgatem a integridade per-dida do ser humano e do que ele cons-truiu. É nesse contexto que se inserem osprogramas de formação e desenvolvi-mento de administradores.

Se aceitarmos que as dimensões física,intelectual, emocional e espiritual do serhumano são indissociáveis, se aceitar-mos que as áreas do saber são manifesta-ções diferenciadas de um único saber,bem como se aceitarmos que conceito eprática só assumem significado quandolhes percebemos a vinculação, podere-mos entender as origens do pouco êxitodaqueles programas, que insistem nasdissociações. No entanto, contraditoria-mente, poderemos encontrar nos progra-mas, se redimensionados, uma saída al-ternativa dirigida ao encontro da visãototalizante e integrada da realidade. Épara esta possibilidade que o presentetrabalho sinaliza. O

PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento gerencial, educação, mudança de paradigma.

KEY WORDS: Executive deoelopment, educaiion, paradigm change.

31Artigo recebido pela Redação da RAE em setembro/as, aprovado para publicação em outubro/93.