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O Trabalho como exercício alegre da Vocação de Deus 1 “Se seguirmos fielmente nosso cha- mamento divino, receberemos o conso- lo de saber que não há trabalho insigni- ficante ou nojento que não seja verda- deiramente respeitado e importante an- te os olhos de Deus” - João Calvino. 2 “Mestre: Qual é o fim principal da vi- da humana ? Discípulo: Conhecer os homens a Deus Seu Criador. “Mestre: Por que razão chamais este o principal fim ? Discípulo: Porque nos criou Deus e pôs neste mundo para ser glorificado em nós. E é coisa justa que nossa vida, da qual Ele é o começo, seja dedicada à Sua glória” - João Calvino. 3 “Esta mania de prazer pode tomar conta das pessoas de tal forma que elas passem a negligenciar seu trabalho, su- as profissões e, até mesmo, sua reputa- ção. O prazer se transforma num poder tão sufocante que elas se deixam con- trolar por ele. Já se levantam pela ma- nhã decididas a ir atrás dele e continu- am até à noite. A happy-hour é o que interessa, não o trabalho pesado hones- to, o trabalho real, não a preocupação com viver uma vida plena” - David Martyn Lloyd-Jones. 4 INTRODUÇÃO: A Palavra de Deus parte do princípio da soberania de Deus sobre todas as coi- sas. Deus é o Senhor! Na Sua relação conosco, Deus estabelece sinais dessa so- berania que servem para nós como indicativo do Seu poder, mantendo-nos sempre 1 Estudo ministrado na Escola Dominical da Igreja Presbiteriana em São Bernardo do Campo, SP., no dia 1 de agosto de 2010. 2 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 77. 3 John Calvin, Catechism of the Church of Geneva, perguntas 1 e 2. In: John Calvin, Tracts and Trea- tises on the Doctrine and Worship of the Church, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1958, Vol. II, p. 37. 4 David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2ª ed. Rio de Janei- ro: Textus, 2004, p. 64-65.

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O Trabalho como exercício alegre da Vocação de Deus1

“Se seguirmos fielmente nosso cha-mamento divino, receberemos o conso-lo de saber que não há trabalho insigni-ficante ou nojento que não seja verda-deiramente respeitado e importante an-

te os olhos de Deus” − João Calvino.2

“Mestre: Qual é o fim principal da vi-

da humana ?

Discípulo: Conhecer os homens a Deus Seu Criador. “Mestre: Por que razão chamais este

o principal fim ?

Discípulo: Porque nos criou Deus e pôs neste mundo para ser glorificado em nós. E é coisa justa que nossa vida, da qual Ele é o começo, seja dedicada à

Sua glória” − João Calvino.3

“Esta mania de prazer pode tomar conta das pessoas de tal forma que elas passem a negligenciar seu trabalho, su-as profissões e, até mesmo, sua reputa-ção. O prazer se transforma num poder tão sufocante que elas se deixam con-trolar por ele. Já se levantam pela ma-nhã decididas a ir atrás dele e continu-am até à noite. A happy-hour é o que interessa, não o trabalho pesado hones-to, o trabalho real, não a preocupação com viver uma vida plena” − David

Martyn Lloyd-Jones.4

INTRODUÇÃO: A Palavra de Deus parte do princípio da soberania de Deus sobre todas as coi-sas. Deus é o Senhor! Na Sua relação conosco, Deus estabelece sinais dessa so-berania que servem para nós como indicativo do Seu poder, mantendo-nos sempre

1 Estudo ministrado na Escola Dominical da Igreja Presbiteriana em São Bernardo do Campo, SP., no

dia 1 de agosto de 2010. 2 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 77.

3John Calvin, Catechism of the Church of Geneva, perguntas 1 e 2. In: John Calvin, Tracts and Trea-

tises on the Doctrine and Worship of the Church, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1958, Vol. II, p. 37. 4 David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2ª ed. Rio de Janei-

ro: Textus, 2004, p. 64-65.

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atentos ao fato de que Deus é o Senhor a Quem devemos amar, honrar e obedecer. Neste sentido, Deus concedeu o domínio aos nossos primeiros pais sobre todas as coisas criadas reservando exclusividade apenas sobre uma árvore (Gn 2.16-17). Deus que nos dá todas as coisas, estabelece o dízimo como o sinal de que tudo que temos Lhe pertence: Deus é o proprietário da terra e o originador de todas as bên-çãos (Lv 25.23; Sl 24.1; 100.3/1Cr 29.11,14/Sl 50.9-13). Portanto, o melhor deve ser dado a Ele (1Sm 2.29; Ml 1.6-14). Quanto ao tempo, Deus como criador e senhor do tempo nos concede o livre uso desse bem. Requer, no entanto, a guarda do sábado, o dia de santo descanso (Ex 20.8-11). Não pensemos com isso que Deus precise da árvore reservada, do nosso dízimo e do nosso tempo; Deus de nada precisa. Deus estabeleceu estes limites para o nosso bem, para a nossa educação e, o principal, para a nossa comunhão com Ele, em quem há vida abundante. Visando a formação da cultura, o nosso desenvolvimento pessoal e social, Deus concede habilidades ao ser humano a fim de que este, no legítimo uso destas habili-dades possa, entre outras coisas, se realizar como pessoa glorificando a Deus no progresso da sociedade, apresentando o fruto do seu trabalho como ato de culto, re-conhecendo em Deus o doador e mantenedor de todas as coisas. Adão e Eva que tinham todas as coisas diante de si, nem por isso foram privados de guardar e cultivar o jardim do Éden (Gn 2.15). Partindo desta perspectiva, a gran-deza de nosso trabalho não está simplesmente no que fazemos ‒ embora haja ativi-dades que sejam em si mesmas repulsivas ou que não deveriam fazer parte de nos-sas expectativas por contribuírem para o prejuízo de nosso próximo5 ‒, mas, em como o fazemos,6 implicando aí o seu objetivo último. Desta forma, a consagração7 às nossas vocações revela a seriedade com que olhamos o nosso Senhor e a nossa missão. Não há satisfação maior do que atender à vocação de Deus. Alegrar-nos em Deus significa ter o prazer da sua comunhão em alegre obediência.8

5 Quanto a estas, veja-se: Klaas Runia, Vocação: In: Carl F.H. Henry, org. Dicionário de Ética Cristã,

São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 604. 6 “Todas as chamadas são de Deus, e tudo o que nós fazemos na vida cotidiana deve ser feito para louvor de Deus, seja estudo, ensino, pregação, negócios, indústria ou trabalho doméstico” (A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 74). 7 “Não há gente pequena e gente grande no verdadeiro sentido espiritual, mas sim, só gen-

te consagrada e gente não consagrada. O problema para cada um de nós é aplicar essa verdade a nós mesmos: será que Francis Schaeffer é o Francis Schaeffer de Deus? (...) O ta-manho do lugar não é importante, mas sim a consagração naquele lugar” (Francis A. Schaef-fer, Não há Gente Sem Importância, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 22,27). 8 “Deus não é um sádico, dirigindo-nos a fazer o que não queremos, só para nos ver sofrer. Ele deseja que tenhamos alegria em tudo o que nos guia a fazer, mesmo naquelas coisas que a princípio recusamos, e que parecem desagradáveis” (J.I. Packer, O Plano de Deus pa-ra Você, 2ª ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2005, p. 117).

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1. O SÁBADO DO SENHOR:

A. Terminologia: O substantivo hebraico tfBa$ (Shabbãt), “sábado”, ao que parece, é derivado

do verbo tabf$ (Shãbat),9 que significa, “cessar”, “desistir”, “descansar”, “deixar”, “desaparecer”, “chegar ao fim” (Gn 8.22; Jó 32.1; Is 13.11; 17.3; Jr 31.36) e, confor-me o contexto, “parar de trabalhar”.10 A correspondência das palavras é extraí-da de Gn 2.2-3, quando diz que Deus depois de concluir a Sua obra, “descansou” tabf$ (Shãbat). Shabbãt ocorre pela primeira vez em Ex 16.23.11 Groningen conclui que, “o ter-mo deve ser entendido como tendo um sentido geral de intervalo, um tem-po entre outros, separado para propósitos religiosos específicos. Em suma, sábado significa um dia santo”.12 No grego, a palavra é apenas transliterada do hebraico, sa/bbaton (Sabbaton), preservando o mesmo sentido. Algumas vezes a palavra indica “semana” inteira (Mc 16.2; Lc 18.12; Jo 20.1,19; At 20.7; 1Co 16.2), visto que os demais dias não tinham nomes, sendo designados por números ordinais: 1º, 2º... O domingo era o primeiro dia da semana.13 No Novo Testamento, encontramos a expressão kuriako/j (kyriakos) (“do Se-nhor”, “pertencente ao Senhor”), que é derivada do ku/rioj (kyrios), “Senhor”. Ku-riako/j só ocorre duas vezes no NT.; em 1Co 11.20, “Ceia do Senhor”, indicando a sua instituição ou posse do Senhor; e, Ap 1.10, quando especificamente fala do “Dia do Senhor” (kuriakh= h(me/ra) (kyriakê hêmera). Já o termo domingo é proveniente do latim, dies dominica, (dia do Senhor) que traduz o grego (kuriakh= h(me/ra) (kyriakê hêmera). A expressão latina teve influên-cia cristã visto que os romanos designavam originariamente esse dia de dies solis

9 Cf. Victor P. Hamilton, Shãbat: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia

do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998 (reimpressão), p. 1521; W. Stott, Sábado: In: Co-lin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, Vol. IV, p. 265. 10

Cf. Victor P. Hamilton, Shãbat: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 1520-1521. 11“Respondeu-lhes ele: Isto é o que disse o SENHOR: Amanhã é repouso, o santo sábado do SE-NHOR; o que quiserdes cozer no forno, cozei-o, e o que quiserdes cozer em água, cozei-o em água; e tudo o que sobrar separai, guardando para a manhã seguinte” (Ex 16.23). 12

Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: Tempo para o Senhor, Tempo de Alegria Nele: In: Fides Reformata, São Paulo: Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, 3/2 (1998): 156. 13

Cf. D.K. Lowery, Dia do Senhor: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988, Vol. I, p. 460.

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(dia do sol).14

B. A Origem: As Escrituras registram que Deus após ter criado todas as coisas: nos céus e na terra; no sétimo dia, descansou da obra da criação;15 Deus completou o que ini-ciou;16 temos então, negativamente, a conclusão de Sua obra criativa e, positiva-mente, a santificação do sétimo dia (Gn 2.2-3).17 Em linguagem ainda antropomórfi-ca, é-nos dito que nesta ocasião Deus “descansou, e tomou alento” (Ex 31.17). “Deus não descansa da fadiga, mas em contentamento pela realização completada”.18 Do mesmo modo, o povo de Deus, juntamente com todos os seus, seguindo o Seu Criador, deve tomar alento nesse dia: “Seis dias farás a tua obra, mas, ao sétimo dia, descansarás; para que descanse o teu boi e o teu jumento; e para que tome alento o filho da tua serva e o forasteiro” (Ex 23.12).

14

Cf. Cf. D.K. Lowery, Dia do Senhor: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da I-greja Cristã, Vol. I, p. 461; Dominar: In: Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fron-teira da Língua Portuguesa, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 276. 15 Notemos que Deus cessou a obra da criação, não de preservação (Jo 5.17). “O termo em si (descansou) não significa ociosidade, inatividade completa. Significa parar de fazer alguma coisa, ficar livre da mesma. Humanamente falando, isso pode ser dito de Deus em relação à sua obra criadora” (Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: Tempo para o Se-nhor, Tempo de Alegria Nele (II): In: Fides Reformata, 4/1 (1999): 133). Veja-se também: Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: Tempo para o Senhor, Tempo de Alegria Nele: In: Fides Reformata, São Paulo: Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, 3/2 (1998): 156). Mas, o que significa preservação? Preservação (conservatio, sustentatio ou preservatio) é aquela contínua operação do poder de Deus, pela qual Ele sustenta e preserva todas as coisas contingentes – a Criação –, a fim de que esta possa cumprir ordenadamente o propósito para a qual foi criada. Isto significa que a Criação de Deus não tem poderes em si mesma para autoexistir; sem a sustentação de Deus o universo deixaria de existir. “Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as cousas pela palavra do seu poder....” (Hb 1.3). A natureza como a criação em geral não pode ser considerada separadamente de Deus, pois deste modo ou ela torna-se o cen-tro de todas as coisas (idolatria) ou, é menosprezada, tornando-se apenas um detalhe cósmico o qual o homem pode usar a seu bel-prazer com objetivos egoístas e, portanto, destruidores. Por isso, parti-lho do conceito de que é impossível uma genuína ecologia divorciada da teologia bíblica. A questão “ecológica” é, antes de tudo, uma questão teológica (Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Salmo 8: A Ma-jestade de Deus na Criação, Maringá, 2010). Sem a preservação de Deus nada mais existiria; tudo teria voltado ao nada. Por isso, podemos a-firmar sem nenhum constrangimento, que até mesmo Satanás e os seus anjos, são alvos da bondade preservadora de Deus; sem a sustentação divina, eles voltariam ao nada, que é a ausência do ser (Dt 33.12, 25-28; 1Sm 2.9; Ne 9.6; Sl 145.14,15; At 17.28; Cl 1.17; Hb 1.3). 16

“Deus está enfatizando nesta passagem que, sendo um Deus fiel, Ele completa o que começa” (Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: Tempo para o Senhor, Tempo de Alegria Nele: In: Fides Reformata, 3/2 (1998): 163). 17

Cf. C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (s.d.), Vol. 1, (Gn 2.1-3), p. 68. 18

Fred Van Dyke, et. al., A Criação Redimida, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 86. Do mesmo modo, Kidner: “É o repouso da realização cumprida, não da inatividade, pois Ele nutre o que cria” (Derek Kidner, Gênesis: introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1979, (Gn 2.1-3), p. 50).

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C. O Significado Social do Sábado: 19 O sábado tem uma função social; nele está embutido o conceito de igualdade entre os homens e a necessidade que todos têm de descanso. O sábado não é para alguns, mas, para todos; ele tem um alcance mundial: homens, mulheres, crianças, cativos, animais e a própria terra. Para os servos e aqueles que estão sob o domínio dos outros, há a possibilidade de alívio de suas tarefas.20 O sábado, além de uma ampla função social, tem também um sentido ecológico; a terra deve descansar, a-lém de semanalmente, em cada sete anos e, finalmente, no quinquagésimo ano. A terra deve também usufruir o ano sabático (Lv 25.1-12). Para o judeu a contagem sabática era mais relevante do que a década; boa parte de sua mensuração do tem-po era feita por meio de sete dias, meses e anos (Gn 7.4,10; 8.10,12; 29.18,20,27).21 Quanto à questão humanitária, vemos a recordação ao povo de que eles foram escravos no passado; portanto, sabiam o quão explorados foram e, como desejavam de forma mais imediata o descanso de suas pesadas cargas. O sábado servia para que todos tomassem alento (Ex 20.10; 23.12; Dt 5.13-15).22 Calvino comenta que “embora o sábado tenha sido ab-rogado, ainda tem vigência entre nós (...) para que servos e trabalhadores tenham um descanso de seu labor”.23 Dando um salto histórico, no Novo Testamento, parece razoável associar o reco-lhimento de oferta para as igrejas necessitadas de Jerusalém com o primeiro dia da semana, o “sábado cristão” (1Co 16.1-2).24

2. O SÁBADO COMO RESULTADO DO TRABALHO: O sábado tem um sentido objetivo e outro subjetivo. Considerando o sábado de forma objetiva, vemos que Deus o criou para ser o dia santificado a Si e, também, o nosso dia de descanso no qual tomamos alento na própria dedicação litúrgica ao Senhor. De modo subjetivo, contudo, o sábado tem sentido de descanso. Portanto, dentro dessa perspectiva, o sábado só pode ser considerado por aquele que traba-lhou arduamente durante os outros dias, não necessariamente os seis dias (nem que seja à procura de trabalho). O descanso segue naturalmente a ordem de traba-

19

Para um estudo mais detalhado sobre o significado do sábado, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Princípios Bíblicos de Adoração Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2009. 20

Cf. João Calvino, As Institutas, II.8.28/II.8.32; Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Comentada por A.A. Hodge, São Paulo: Editora os Puritanos, 1999, p. 381-382; Catecismo de Genebra, Perg. 180: In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos Aires: La Aurora, 1962. 21

Veja-se: Alfredo Edersheim, Festas de Israel, São Paulo: União Cultural Editora, (s.d.), p. 7ss. 22“Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro” (Ex 20.10). 23

João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 8, p. 26. 24

Cf. Cf. Victor P. Hamilton, Shãbat: In: R. Laird Harris, et. al. eds. Dicionário Internacional de Teolo-gia do Antigo Testamento, p. 1522.

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lho extenuante (Ex 34.21; Lv 23.3; Dt 5.13-14).25 O descanso pressupõe uma obra completa, realizada dentro dos nossos recursos, inclusive considerando o tempo disponível (Gn 2.2; Dt 5.13).26

A. O Trabalho como algo essencial ao homem:

"O trabalho afasta de nós três gran-des males: o tédio, o vício e a necessi-

dade" – Voltaire.27

"Melhor é sustentar do suor próprio, que do sangue alheio. (...) Não há maior maldição numa casa, nem numa famí-lia, que servir-se com suor e com sangue injusto" – Padre Antonio Vieira.28

1) O COMPARTILHAR DE DEUS:

“Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe pu-seste” (Sl 8.6). Mesmo não abrindo mão de Sua soberania, Deus compartilha com as Suas cria-turas o Seu poder. O nosso domínio está sob o domínio de Deus. Desde a Criação o homem foi colocado numa posição acima das outras criaturas, cabendo-lhe o domínio sobre os outros seres criados, sendo abençoado por Deus com a capacidade de procriar-se (Gn 1.22)29 Charnock (1628-1680),30 observa que o fato da Criação de Deus ter em si a ca-pacidade de se propagar conforme a ordem divina: "Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei as águas dos mares; e, na terra, se multipliquem as aves" (Gn 1.22) – revela o Poder do Criador. Deus por Sua Palavra cria o mundo e, segundo o exercício des- 25

“Seis dias trabalharás, mas, ao sétimo dia, descansarás, quer na aradura, quer na sega” (Ex 34.21). “13 Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. 14 Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu boi, nem o teu jumento, nem animal algum teu, nem o estrangeiro das tuas portas para dentro, para que o teu servo e a tua serva descansem como tu” (Dt 5.13-14). 26

“Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra” (Dt 5.13). 27

Voltaire, Cândido, São Paulo: Martins Fontes, 1990, XXX, p. 159. 28

Padre Antonio Vieira, Sermão da Primeira Dominga de Quaresma (Pregado na Cidade de São Luís do Maranhão no ano de 1653). In: Sermões, Porto: Lello & Irmão, Editores, 1945, Vol. III, iv, p. 18 e v, p. 22. 29

“Embora aos homens seja de natureza infundido o poder de procriar, Deus quer, entretan-to, que seja reconhecido a Sua graça especial que a uns deixa sem progênie, a outros a-gracia com descendência, pois que dádiva Sua é o fruto do ventre” [Sl 127.3] (João Calvino, As Institutas, I.16.7). 30

S. Charnock, Discourses Upon The Existence and Attributes of God, 9ª ed. Michigan: Baker Book House, 1989, Vol. II, p. 47ss.

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te mesmo poder, capacita as suas criaturas a se propagarem, tornando "o ser hu-mano como co-criador criado".31 Como indicativo da posição elevada em que o homem foi colocado, o Criador compartilha com ele – abençoando e capacitando-o32 – do poder de nomear os ani-mais – envolvendo neste processo inteligência e não arbitrariedade –, e também de dar nome à sua mulher (Gn 2.19,20,23; 3.20). E mais: Deus delega-lhes poderes para cultivar (db;[') (‘abãr) (lavrar, servir, traba-lhar o solo) e guardar (rm;v') (shãmar) (proteger, vigiar, manter as coisas)33 o jardim do Éden (Gn 2.15/Gn 2.5; 3.23), demonstrando a sua relação de domínio, não de exploração e destruição, antes, um cuidado consciente, responsável e preservador da natureza:34 “6 Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: 7 ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo; 8 as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as sendas dos mares” (Sl 8.6-8). Todavia, todas estas atividades envolvem o trabalho compartilhado por Deus com o ser humano. O nomear, procriar, dominar, guardar e cultivar refletem a graça pro-vidente e capacitante de Deus. É neste particular – domínio –, que o homem foi bas-tante aproximado de Deus pelo poder que lhe foi conferido. No entanto, ainda que isto seja demonstrado, especialmente pelo avanço da ciên-cia, novos desafios surgem. A plenitude deste domínio temos em Cristo Jesus, ver-dadeiro Deus e verdadeiro homem. Algo admirável neste salmo, é que o salmista em seu hino começa com Deus, glorificando o nome de Jeová (hwhy), e conclui tornando a Ele, testemunhando com júbilo a magnificência de Seu nome em toda a terra: “Ó SENHOR, Senhor nosso, quão magnífico em toda a terra é o teu nome! Pois expuseste nos céus a tua majes-tade. (...) 9 Ó SENHOR, Senhor nosso, quão magnífico em toda a terra é o teu nome! (Sl 8.1,9). A Criação revela de forma majestosa o nome de Deus. No homem, de modo especial, tal majestade é vista de forma ainda mais eloquente.

2) DEFINIÇÃO DE TRABALHO: Trabalho pode ser definido como o esforço físico ou intelectual, com vistas a um determinado fim. O verbo "trabalhar" é proveniente do latim vulgar tripaliar: tortu-rar com o tripallium. Este é derivado de tripalis, cujo nome é proveniente da sua pró-pria constituição gramatical: tres & palus (pau, madeira, lenho, estaca), que signifi- 31

Devo esta expressão ao teólogo luterano Philip J. Hefner. No entanto, deve ser observado que o autor emprega a expressão numa acepção distinta da minha (Vd. Philip J. Hefner, A Criação: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, editores, Dogmática Cristã, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1990, Vol. I, p. 327. 32

Ver: Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, Campinas, SP.: Luz pa-ra o Caminho, 1995, p. 97. 33

Vejam-se: Gn 3.24; 30.31; 2Sm 15.16; Sl 12.7; Is 21.11-12. 34 Veja-se: Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem, p. 48-50.

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cava o instrumento de tortura de três paus e que também servia para “ferrar os ani-mais rebeldes”.35 O tripallium também era um instrumento de três paus aguçados que, algumas vezes munidos de pontas de ferro, eram utilizados pelos agricultores para bater o trigo, as espigas de milho e o linho para rasgá-los e esfiapá-los.36 A i-déia de tortura evoluiu, tomando o sentido de "esforçar-se", "laborar", "obrar".37 Le Goff nos chama a atenção para uma conexão interessante: a condenação de Adão – que após a Queda obteria o alimento em “fadigas” – e Eva – que daria a luz “em meio de dores”, dizendo: “A origem etimológica da palavra ‘trabalho’ aparece com um sentido particular na locução ‘sala de trabalho’, designando ainda hoje a sala de parto em uma maternidade”.38 Etimologia à parte, devemos observar, que o trabalho, apresenta as seguintes ca-racterísticas:39

a) Envolve o uso de energia destinado a vencer a resistência oferecida pelo objeto que se quer transformar – intencionalidade.

b) O trabalho se propõe sempre a uma transformação.

c) Todo o trabalho está ligado a uma necessidade, externa ou interna. d) Todo trabalho traz como pressuposto fundamental, o conceito de

que o objeto, sobre o qual trabalha, é de algum modo aperfeiçoável, mediante o emprego de determinada energia – esforço e perseve-rança.

35

“O nome da máquina [tripalium] de três pés destinada a ferrar os animais indóceis, torna-da a maneira corrente de designar um instrumento de tortura” (Jacques Le Goff & Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade Média, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 65). 36

Cf. Suzana Albornoz, O Que é Trabalho, 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2004 (6ª reimpressão), p. 10. 37

Cf. Trabalho: In: José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa: Con-fluência, 1956, II, p. 2098; Trabalhar: In: Aurélio B.H. Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1695; Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 779; Trabajar: In: J. Corominas, Diccionário Crítico Etimológico de la lengua Castellana, Madrid: Edi-torial Gredos, (1954), Vol. 4, p. 520-521; Trabalho: In: Antonio Houaiss, ed. Enciclopédia Mirador In-ternacional, São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1987, Vol. 19, p. 10963-10964; Jacques Le Goff, Trabalho: In: Jacques Le Goff & Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Oci-dente Medieval, Bauru, SP/São Paulo, SP.: Editora da Universidade Sagrado Coração/Imprensa Ofi-cial do Estado, 2002, Vol. 2, p. 559-560. 38

Jacques Le Goff, Trabalho: In: Jacques Le Goff & Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temáti-co do Ocidente Medieval, Vol. 2, p. 560. Do mesmo modo: Jacques Le Goff & Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade Média, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 66. 39

Ver Paul Schrecker, Work and History, 1948, Apud Trabalho: In: José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, São Paulo: Loyola, 2001, Vol. 4, p. 2903a.

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3) O HOMEM E O TRABALHO:

A) ALGUMAS PERSPECTIVAS: A visão grega do trabalho era extremamente negativa, sendo considerado algo inferior.40 No mundo Romano, apesar de todo o seu empreendimento, filósofos como Cícero (106-43 a.C.) e Sêneca (c. 4 a.C.-65 dC.), exaltavam o ócio em detri-mento do trabalho.41 Na perspectiva judaica, o trabalho manual era altamente estimado; sendo profun-damente respeitados aqueles que o praticavam, visto ser considerado este talento, uma dádiva de Deus.42 O trabalho faz parte do propósito primevo de Deus para o homem e revela a sabedoria divina (Gn 1.28; 2.15; Ex 20.9; Sl 104.23; Is 28.23-29). Os rabinos, como exemplo desta perspectiva, além do estudo metódico da Lei, apli-cavam-se ao trabalho manual para suprir às suas necessidades (Vd. Mc 6.3; At 18.3). No entanto, foi criada uma dicotomia entre o sagrado e o profano. No Talmu-de, há uma oração (séc. 1º) feita pela perspectiva do escriba, que diz o seguinte:

“Eu te agradeço, Senhor, meu Deus, porque me deste parte junto da-queles que se assentam na sinagoga, e não junto daqueles que se assen-tam pelas esquinas das ruas; pois eu me levanto cedo, eles também se le-vantam cedo; eu me levanto cedo para as palavras da Lei, e eles, para as coisas fúteis. Eu me esforço, eles se esforçam: eu me esforço e recebo a recompensa, eles se esforçam e não recebem recompensa. Eu corro e e-les correm: eu corro para a vida do mundo futuro, e eles, para a fossa da perdição”.43

Na Idade Média –, entre duas tradições antagônicas: a greco-romana que des-prestigia o trabalho e a cristã que o valoriza44 – há de certa forma, um retorno à idéia grega, considerando o trabalho – no sentido manual, (banausi/a), "arte mecânica", como sendo algo degradante para o ser humano,45 e inferior à (sxolh/), ao ócio, descanso, repouso, à vida contemplativa e ociosa (sxola/zw), por um lado, e à ati-

40

Vd. Platão, República, 369ss.; Aristóteles, Política, 1328b; Idem., Metafísica, I.1. Vd. também, a in-terpretação do conceito grego, feita por Ferrater Mora. (Trabajo: In: José Ferrater Mora, Diccionario de Filosofia, 5ª ed. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1969, Vol. II, p. 819-822). 41

Cf. Battista Mondin, O Homem, Quem é Ele?, São Paulo: Paulinas, 1980, p. 193. 42

Vejam-se: J.I. Packer, Carpinteiro: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Te-ologia do Novo Testamento, Vol. I, p. 364-365; Paul Johnson, História dos Judeus, 2ª ed. Rio de Ja-neiro: Editora Imago, 1989, p. 174. 43

Apud Joachim Jeremias, As Parábolas de Jesus, 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 144. 44

Cf. Jacques Le Goff, Trabalho: In: Jacques Le Goff & Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Te-mático do Ocidente Medieval, Vol. 2, p. 566; Jacques Le Goff, Para um Novo Conceito de Idade Mé-dia, Lisboa: Editorial Estampa, 1980, p. 88ss. 45banausi/a, está associada à “vida e hábitos de um mecânico” (ba/nausoj); metaforicamente é a-

plicada à “mau gosto” e “vulgaridade” (Veja-se: Liddell; Scott, Greek-English Lexicon, Oxford: Claren-don Press, 1935, p. 128b). Ver por exemplo: Aristóteles, A Política, Rio de Janeiro: Editora Tecno-print, (s.d.), V.2.1-6. p. 141-143.

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vidade militar pelo outro.46 Na visão de São Tomás de Aquino (1225-1274), o traba-lho era no máximo, considerado "eticamente neutro".47 Conforme já nos referimos, segundo a Igreja romana, "a finalidade do trabalho não é enriquecer, mas con-servar-se na condição em que cada um nasceu, até que desta vida mortal, passe à vida eterna. A renúncia do monge é o ideal a que toda a socieda-de deve aspirar. Procurar riqueza é cair no pecado da avareza. A pobreza é de origem divina e de ordem providencial," interpreta Pirenne.48 Ainda na Idade Média, especialmente a partir do século XI, a posição ocupada pe-lo trabalho era regida pela divisão gradativa de importância social: Oradores (orato-res) (eclesiásticos), Defensores (bellatores) (guerreiros) e Trabalhadores (laborato-res)49 (agricultores, camponeses).50 Desta forma, os eclesiásticos, no seu ócio e abstrações "teológicas" é que tinham a prioridade, ocupando um lugar proeminente. O trabalho manual era imposto ao monge apenas como castigo e penitência.51 Mesmo para designar o trabalho, como acentuam Le Goff e Truong, há duas pala-vras distintivas: Opus e Labor. Opus “é o trabalho criador, o vocábulo do Gê-nesis que define o trabalho divino, o ato de criar o mundo e o homem à sua imagem. Desse termo derivará operari (criar uma obra) operarius (aquele que cria)”.52 Labor, por sua vez, refere-se ao trabalho laborioso, “está do lado do erro e da penitência”.53 No próprio currículo das universidades medievais era explícita a visão desprivile-giada do trabalho: “.... as disciplinas ‘mecânicas’ ou ‘lucrativas’, vítimas do du-plo preconceito dos antigos contra o trabalho manual e do cristianismo con-

46

“A Escolástica [contribuiu] para despojar de todo prestígio e de todo valor espiritual as a-tividades profissionais pela precedência que dava à contemplação sobre a ação” (André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 539). 47

Veja-se: Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, São Paulo: Pioneira, 1967, p. 52ss. Havia na realidade opiniões divergentes entre as ordens eclesiásticas a respeito do valor do trabalho manual. No entanto, a visão de valorização do trabalho comum nunca foi predominante (Ver: Jacques Le Goff, Trabalho: In: Jacques Le Goff ; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Vol. 2, p. 568-570; Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 236 (nota 2). Ryken). 48

H. Pirenne, História Econômica e Social da Idade Média, 6ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 19. 49

“A partir do século VIII, os termos originários da palavra labor, como labores, que desig-nam mais os frutos do trabalho do que castigo, são os signos tangíveis de uma valorização do trabalho agrícola e rural” (Jacques Le Goff; Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade Média, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 66). 50

Ver: Jacques Le Goff, Trabalho: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Te-mático do Ocidente Medieval, Vol. 2, p. 568-569; José Ferrater Mora, Trabalho: In: Dicionário de Filo-sofia, São Paulo: Loyola, 2001, Vol. 4, p. 2901b; Jacques Le Goff; Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade Média, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 66-67. 51

Cf. Jacques Le Goff; Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade Média, Rio de Janeiro: Civi-lização Brasileira, 2006, p. 66. 52

Jacques Le Goff; Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade Média, Rio de Janeiro: Civiliza-ção Brasileira, 2006, p. 64-65. 53

Jacques Le Goff; Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade Média, p. 65.

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tra o dinheiro e a matéria, eram banidas da escola, deixadas para os leigos pecadores e ‘iletrados’ (illiteratus quer dizer aquele que ignora o latim, que não estudou as artes liberais)”.54

B) TRABALHO COMO VOCAÇÃO: UMA PERSPECTIVA REFORM ADA:

“A liberdade está na obediência ao nosso chamado” ‒ Charles Colson; Harold

Fickett.55

“Que tragédia quando grande quantidade dos homens de um país procura cargos, em lugar de vocações”

‒ John Mackay.56

Não nos cabe aqui analisar a história da filosofia do trabalho, contudo, devemos mencionar, que a Reforma resgatou o conceito cristão de trabalho. Biéler, resume: “Calvino, fundamentando-se nas Escrituras, é um dos raros teólogos a pôr em evidência, com tanta clareza, a participação do trabalho do ho-mem na obra de Deus. Dessarte, conferiu ele ao labor humano dignidade e valor espirituais que jamais teve na Escolástica, nem, por mais forte razão, na antiguidade. Este fato irá ter grandes repercussões no desenvolvimento eco-nômico das sociedades calvinistas”.57 Na ética do trabalho, Lutero (1483-1546)58 e Calvino (1509-1564) estavam acor-des quanto à responsabilidade do homem de cumprir a sua vocação por meio do trabalho. Não há lugar para ociosidade. “Quando quis Deus, escreve Calvino, que o homem se aplicasse a cultivar a terra, na pessoa do homem condenou Deus a ociosidade e a indolência. Portanto, nada é mais contrária a ordem da natureza, que consumir a vida comendo, bebendo, e dormindo....”.59 Com isto, não se quer dizer que o homem deva ser um ativista, mas sim, que o tra-balho é uma "bênção de Deus". Lutero teve uma influência decisiva, quando traduziu para o alemão o Novo Testamento (1522), empregando a palavra "beruf" para traba-lho, em lugar de "arbeit" (palavra derivada do latim arvus,60 terreno arável). "Beruf" – com toda a dificuldade de encontrar um equivalente em nossa língua –, acentua mais o aspecto da vocação do que o do trabalho propriamente dito. As traduções posteriores, inglesas e francesas, tenderam a seguir o exemplo de Lutero. A idéia

54

Jacques Verger, Universidade: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Te-mático do Ocidente Medieval, Vol. 2, p. 574. 55

Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 41. 56

John A. Mackay, O Sentido da Vida, 2ª ed. São Paulo: Imprensa Metodista, 1971, p. 27. 57

André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 538-539. 58

Veja-se: Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 236-237. 59

John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 1, (Gn 2.15), p. 125. 60

Arvus significa “arável”. Arvum significa “terra lavrada”, “campo”, “terreno”

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que se fortaleceu, é a de que o trabalho é uma vocação divina.61 Calvino, diz: “Se seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o consolo de saber que não há trabalho insignificante ou nojento que não seja verdadei-ramente respeitado e importante ante os olhos de Deus”.62 Em outro lugar, combatendo a interpretação clerical medieval que estimulava à ociosidade e especu-lações inúteis, diz: “É um erro que aqueles que fogem dos afazeres do mundo e engajem-se em contemplação estão vivendo uma vida angelical. (...) Sa-bemos que os homens foram criados para ocuparem-se com o trabalho e que nenhum sacrifício é mais agradável a Deus do que quando cada um atende ao seu chamado e procura viver completamente em prol do bem comum”.63 O amor ao próximo faz com que o nosso honesto trabalho não se limite a satisfa-zer as nossas necessidades, mas, também, a ajudar aos nossos irmãos: “O amor nos leva a fazer muito mais. Ninguém pode viver exclusivamente para si mesmo e negligenciar o próximo. Todos nós temos de devotar-nos à ação de suprir as necessidades do próximo”.64 Entende que “a indolência e a inatividade são amaldiçoadas por Deus”.65 “Moisés acrescenta agora que a terra foi outorgada ao homem com esta condição: que se ocupasse em cultivá-la, de onde se segue que foram os homens criados para empregar-se em fazer alguma coisa e não para esta-rem ociosos e indolentes. Verdade é que esse labor era bem alegre e agra-dável, longe de todo aborrecimento e cansaço; todavia, quando Deus quis que o homem se afizesse a cultivar a terra, na pessoa dele condenou todo repouso indolente”.66 Todavia, a graça de Deus atenua a severidade de punição, anexando ao labor humano uma dose de satisfação que deveria caracterizar prima-

61

Vejam-se, Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, p. 52 (e notas correspon-dentes); André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo: Casa Editora Pres-biteriana, 1990, p. 628; Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1989, p. 114; Alain Peyrefitte, A Sociedade de Confiança: Ensaio sobre as origens e a natureza do desenvolvimento, Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 344ss. 62

João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 77. Contudo: “Como há muitas ocupações que pouco valem para socorrer os homens em seus deleites lícitos, o apóstolo recomenda-lhes que escolham aquelas que tragam benefício a si e a seu próximo. Nem precisamos admirar-nos disso, pois se aquelas classes voluptuosas de ocupações que só podem trazer corrupção eram denunciadas pelos pagãos, dentre eles Cícero, como sen-do em extremo vergonhosas, um apóstolo de Cristo as incluiria para que figurassem entre as ocupações lícitas recomendas por Deus” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.28), p. 146). 63

John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Mattew, Mark, and Luke, Grand Rap-ids, Michigan: Baker, (Calvin’s Commentaries, Vol. XVI/2), 1981, (Lc 10.38), p. 142,143. 64

João Calvino, Efésios, (Ef 4.28), p. 146. 65

John Calvin, Commentaries on the Second Epistle to the Thessalonians, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, Vol. XXI), 1996 (reprinted), (2Ts 3.10), p. 355. 66

John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 1, (Gn 2.15), p. 125.

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riamente o trabalho.67

C) TRABALHO, VOCAÇÃO E SERVIÇO SOCIAL:

As Escrituras nos ensinam que Deus nos criou para o trabalho (Gn 2.8,15). O trabalho, portanto, faz parte do propósito de Deus para o ser humano, sendo objeto de satisfação humana: “Em vindo o sol, (...) sai o homem para o seu trabalho, e para o seu encargo até à tarde” (Sl 104.22-23). Na concepção cristã, o trabalho dignifica o homem, devendo o cristão estar motivado a despeito do seu bai-xo salário ou do reconhecimento humano; embora as Escrituras também observem que o trabalhador é digno do seu salário (Lc 10.7). Seu trabalho deve ser entendido como uma prenda feita a Deus, independentemente dos senhores terrenos; deste modo, o que de fato importa, não é o trabalho em si, mas sim o espírito com o qual ele é feito; a dignidade deve permear todas as nossas obras, visto que as realizamos para o Senhor. A prestação de contas de nosso trabalho deverá ser feita a Deus; é Ele com o seu escrutínio perfeito e eterno Quem julgará as obras de nossas mãos, daí a recomendação do Apóstolo Paulo:

"E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus (...). Servos, obedecei em tudo aos vossos senhores segundo a carne, não servindo apenas sob vigilância, visando tão-só agradar homens, mas em singeleza de coração, temendo ao Senhor. Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor, e não para ho-mens, cientes de que recebereis do Senhor a recompensa da herança. A Cristo, o Senhor, é que estais servindo; pois aquele que faz injustiça receberá em troco a injustiça feita; e nisto não há acepção de pessoas. Senhores, tratai aos servos com justiça e com equidade, certos de que também vós tendes Senhor no céu" (Cl 3.17,22-4.1)(Vd. Ef 6.5-9).

Portanto, não há desculpas para a fuga do trabalho, mesmo em nome de um mo-tivo supostamente religioso (1Ts 4.9-12/Ef 4.28; 1Tm 5.11-13). Um comentarista bíblico resume bem o espírito cristão do trabalho, afirmando: “O trabalhador deve fazê-lo como se fosse para Cristo. Nós não trabalhamos pelo pagamento, nem por ambição, nem para satisfazer a um amo terreno. Trabalhamos de tal maneira que possamos tomar cada trabalho e oferecê-lo a Cristo”.68 (Vd. 1Tm 6.1-2). Na visão de Calvino o trabalho está relacionado com o progresso de toda a raça humana: “Há modos diferentes de se trabalhar. Para quem ajuda a socie-dade dos homens pela indústria, ou regendo sua família, ou na administra-ção pública ou em negócios privados, ou aconselhando, ou ensinando ou

67

“A aspereza desta pena é ainda atenuada pela clemência de Deus, de sorte que por en-tre os labores dos homens há certa alegria misturada, para que não sejam de todo ingra-tos....” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 1, (Gn 3.17), p. 174). 68

William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, Vol. 11, p. 176.

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de qualquer outra maneira, não será considerado entre os inativos. Paulo censura aqueles zangões preguiçosos que querem viver pelo suor dos outros, não contribuindo assim com nenhum serviço em comum para ajudar a raça humana”.69 O ganho ilícito, por meio do qual o patrimônio de nosso próximo é dila-pidado, é, na realidade – independentemente do nome que se dê, já que o ser hu-mano é pródigo em adjetivar a maldade com termos nobres – não um sinal de inteli-gência, mas de iniquidade: é, portanto, uma forma de furto.70 Portanto, “não se de-ve fazer um uso pervertido dos labores que outras pessoas empreendem em seu próprio benefício”.71

Ainda que o dinheiro emprestado a juros seja permitido,72o trabalho honesto, fruto do nosso labor é que deve ser a nossa fonte de recursos para a manutenção de nossa família; não devemos nos aproveitar das necessidades alheias, vivendo sim-plesmente de transações financeiras. Um princípio justo é que em todas as negocia-ções, haja benefícios para ambas as partes.73 O homem é um ser que trabalha. A sua mão é uma arma "politécnica", instrumen-to exclusivo e incomparável de construção, reconstrução e transformação.74 Faz par-te da essência do homem trabalhar. O homem é um artífice que constrói, transforma, modifica; a sua vida é um eterno devir, que se realiza no fazer como expressão do seu ser orientado e direcionando para valores que acredita serem relevantes. Por-

69

John Calvin, Commentaries on the Second Epistle to the Thessalonians, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, Vol. XXI), 1996 (reprinted), (2Ts 3.10), p. 355. 70

Cf. John Calvin, Commentaries on The Four Last Books of Moses, Grand Rapids, Michigan: Eerd-mans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 3, (Ex 20.15), p. 110-111. 71

João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998 (1Tm 5.18), p. 149. 72

“O lucro que obtém alguém que empresta seu dinheiro no interesse lícito, sem fazer injúria a quem quer que seja, não está incluído sob o epíteto de usura ilícita. (…) Em suma, uma vez que tenhamos gravada em nossos corações a regra de equidade que Cristo prescreve em Mateus: ‘Portanto, tudo quanto quereis que os homens vos façam, fazei-lhes também o mesmo’ [7.12], não será necessário entrar em longa controvérsia em torno da usura” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 15.5), p. 299). Calvino fazia uma distinção importante entre o “empréstimo de consumo ou de assistência” e o “empréstimo de produção ou de aplicação”. Aquele visava socorrer aos necessitados, sendo improdutivo para o devedor. Este, o devedor, com o seu trabalho poderia adquirir uma ampliação desses recursos. Os ju-ros neste caso seriam legítimos. (Ver: André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 588). Alguns princípios de Calvino a respeito deste tema foram expostos em uma carta (07/11/1545), escrita em resposta às indagações de seu amigo Claude de Sachin. Biéler analisa esta carta e outras passagens nas quais Calvino se posiciona sobre o assunto (Ver: André Biéler, O Pensamento Eco-nômico e Social de Calvino, p. 585ss). Em 1580, Beza, juntamente com outros pastores, opõem-se veementemente à criação de um Banco em Genebra, entendendo que as riquezas trazem consigo implicações indesejáveis, tais como o luxo, frivolidades, amor ao prazer, etc., todas incompatíveis com Genebra, que deseja preservar a já conhecida moderação dos costumes (Ver: André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 239-240; André Biéler, O Humanismo Social de Cal-vino, São Paulo: Edições Oikoumene, 1970, p. 66-67; R.H. Tawney, A Religião e o Surgimento do Capitalismo, São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 124). 73

Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 15.5), p. 297-298. 74

Sobre as mãos como instrumento de trabalho, Vejam-se: Oswald Spengler, O Homem e a Técnica, Lisboa: Guimarães e Cª Editores, 1980, III.5. p. 63ss.; Battista Mondin, O Homem, Quem é Ele?, São Paulo: Paulinas, 1980, p. 195-196.

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tanto, o trabalho deve ter sempre um sentido axiológico.75 O ser como não pode se limitar ao simples fazer, está sempre à procura de novas criações, que envolvem trabalho. No trabalho o homem concretiza a sua liberdade de ser. Acontece, que se o homem é o que é, o seu trabalho revela parte da sua essência: a imagem de Deus. A "originalidade" do seu trabalho será uma decorrência natural da sua autenti-cidade.76 O homem autentica-se no seu ato construtivo, ainda que este seja resulta-do de suas tensões. Por isso, nunca poderemos ter como meta da sociedade, a au-sência do trabalho. O trabalho não é resultado do pecado. O homem foi criado para o trabalho não para permanecer na inatividade e indolência.77 Portanto, aposentar-me de um determinado trabalho não significa abandonar a condição de “ser” que trabalha.78 No trabalho nós expressamos e aperfeiçoamos a nossa humanidade. Deixar de trabalhar, significa deixar de utilizar parte da sua potência, equivale a dei-xar parcialmente de ser homem; em outras palavras, seria uma desumanidade.

B. Oração, Trabalho e Descanso:

“Há uma diferença entre lavar louças e pregar a palavra de Deus; mas no to-cante a agradar a Deus; nenhuma em

absoluto” ‒ William Tyndale.79

“Não existe monasticismo no Cristia-

nismo” ‒ Francis Schaeffer.80

Jesus Cristo nos ensinou a orar: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje” (Mt 6.11). Algo surpreendente nesta petição é a passagem da consideração da majesta-de de Deus e da vinda do Seu Reino (Mt 6.10) para "o pão nosso". Isto é maravilho-so!: O Deus que habita o alto e sublime, o Deus soberano, cuja majestade não pode ser contida por todo o universo, também Se preocupa com as nossas necessidades e nos ensina a suplicar-Lhe por elas; faz-nos enxergar o que de fato é prioritário e, ao mesmo tempo, nos ensina a pedir por aquilo que também é necessário para a nossa existência...

75

Tomei este conceito de Raymond Ruyer, Metaphisique du Travail, 1948. Cf. José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Vol. 4, p. 2902. 76

Lewis observou que, "O homem que valoriza a originalidade jamais será original. Mas tente dizer a verdade tal como você a vê, tente trabalhar com perfeição por amor ao trabalho, e aquilo que os homens chamam de originalidade surgirá espontaneamente" (C.S. Lewis, Peso de Glória, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 47). 77 Cf. John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michi-

gan: Eerdamans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 1, (Gn 2.15), p. 125. Este pensamento era consensual entre os Puritanos. Veja-se: Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 37-51. 78

“Para o cristão, a aposentadoria é libertação para serviço. A pessoa aposentada poderá começar um capítulo totalmente novo na vida, em vez de ficar improdutiva. A filosofia cristã de trabalho é a de que o trabalho nunca está totalmente terminado” (E. Elton Trueblood, Trabalho: In: Carl F.H. Henry, org. Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 583). 79

Apud Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 40. 80

Francis A. Schaeffer, Não há Gente Sem Importância, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 27.

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Deus declara em Sua Palavra a respeito de Si mesmo: "Porque assim diz o Alto, o sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos, e vivificar o co-ração dos contritos” (Is 57.15). Lloyd-Jones comenta de forma extasiada:

"Esse é o milagre da redenção. Esse é o sentido mesmo da encarnação, a qual nos ensina que o Senhor Jesus Cristo cuida de nós aqui na terra, li-gando-nos com o Todo-Poderoso Deus da glória. O reino de Deus e o meu pão diário!".81

Uma das coisas fascinantes que este texto de um modo especial nos ensina é que o Deus que cuida do universo, dos seus diversos sistemas e galáxias, susten-tando todas as coisas com o Seu poder, também cuida de nós, das nossas necessi-dades, por mais irrelevantes que elas possam parecer muitas vezes ao nosso seme-lhante. Isto nos enche de reverente gratidão e conforto: Deus cuida de nossas ne-cessidades. Calvino comenta com sensibilidade que, “seja qual for a maneira em que Deus se agrada em socorrer-nos, ele não exige nada mais de nós senão que sejamos agradecidos pelo socorro e o guardemos na memória”.82 Esta petição, que parece tão simples, tem sido, ao longo dos séculos, alvo de grandes disputas a respeito de uma palavra grega que é traduzida como "cada dia" ou "cotidiano" (e)piou/sioj = “suficiente para o dia”, “suprimento para o dia vindouro”, “suficientemente para cada dia”). O problema da tradução desta palavra é que ela era praticamente desconhecida na literatura grega, fora dos textos de Mateus e Lu-cas.83 Não vamos nos alongar nesta questão – inclusive porque tem sido impossível precisar a derivação da palavra84 –, contudo, entendemos que o sentido básico des-

81

D.M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: FIEL, 1984, p. 355. 82

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 40.3), p. 216. 83

Ela é encontrada somente uma vez num papiro do quinto século d.C., com um sentido incerto. (Cf. F. Merkel, Pão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testa-mento, Vol. III, p. 445; W. Foerster, E)piou/sioj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. II, p. 590-591). 84

Vejam-se, por exemplo: F. Merkel, Pão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. III, p. 445-446; W. Foerster, E)piou/sioj: In: G. Kittel; G. Frie-drich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Vol. II, p. 590-599; R.C.H. Lenski, The Inter-pretation of St. Matthew’s Gospel, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1998, p. 268-269; e)piou/sioj: In: Walter Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament, 5ª ed. Chicago: The Chicago Press, 1958, p. 296-297; C. Müller, e)piou/sioj: In: Horst Balz; Gerhard Schneider, eds. Exegetical Dictionary of New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1978-1980, Vol. II, p. 31-33; John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Mattew, Mark, and Luke, Grand Rapids, Michigan: Baker, (Calvin’s Commentaries, Vol. XVI/1), 1981, p. 322-325; J. Jeremias, O Pai-Nosso: A Oração do Senhor, São Paulo: Paulinas, 1976, p. 43-47; John A. Broadus, Comentário do Evangelho de Mateus, 3ª ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1966, Vol. I, p. 205-206; W. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires: La Aurora/ABAP, 1985, p. 103-113; G. Hendriksen, El Evan-gelio Segun San Mateo, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana, 1986, p. 347-348; A.B. Bruce, The Synoptic Gospels, In: W. Robertson Nicoll, ed. The Expositor’s Greek Testament, Vol.

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ta petição é: "O pão que é-nos necessário, dá-nos hoje, dia após dia", estando implí-cita nesta oração a certeza da providência de Deus, bem como a necessidade de es-tarmos sempre atentos a este fato, certos de que o Senhor cuida de nós dia após dia (Sl 37.25). Calvino está correto ao dizer: “A maior de todas as misérias é o des-conhecimento da providência de Deus; e a suprema bem-aventurança é conhecê-la”.85

Como é óbvio, o “pão” aqui – que era a “comida principal de Israel”86 –, significa a nossa comida em geral (1Sm 20.34; Lc 15.17), bem como todas as nossas neces-sidades físicas (Dt 8.3/Mt 4.4/Lc 4.4).87 Portanto, o “pão” deve ser entendido, neste contexto, como sendo tudo aquilo que é necessário à nossa vida: alimento, saúde, lar, esposa, filhos, bom governo, paz, vestuário, bom relacionamento social, etc.88 Aprendemos, de forma decorrente, que Deus não menospreza o nosso corpo; Ele não desconsidera as nossas necessidades vitais; Jesus nos ensina a orar também por elas. Deus cuida do homem inteiro; considera-nos como de fato somos, seres in-tegrais, que têm carências próprias que precisam ser supridas... Analisemos agora, algumas outras lições que podemos aprender com esta peti-ção que, indiretamente está relacionada ao Quarto Mandamento:

1) MODERAÇÃO: Jesus nos ensina aqui a ser moderados em nossos desejos e petições; Ele

I, p. 120-121; John R.W. Stott, A Mensagem do Sermão do Monte, 3ª ed. São Paulo: ABU, 1985, p. 152-153). 85

João Calvino, As Institutas, I.17.11. 86

F. Merkel, Pão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Tes-tamento, Vol. III, p. 444. 87

Veja-se a brilhante análise de K. Barth, In: La Oración, Buenos Aires: La Aurora, 1968, p. 68ss. 88

“Aqui agora consideramos o pobre cesto de pão, as necessidades de nosso corpo e da vida temporal. É palavra breve e simples, mas também abrange muito. Pois quando men-cionas e pedes ‘o pão de cada dia’, pedes tudo o que é necessário para que se tenha e saboreie o pão cotidiano, e, por outro lado, também pedes que seja eliminado tudo o que o impede. Deves, por conseguinte, abrir e dilatar bem os pensamentos, não só até o forno ou a caixa da farinha, mas até o vasto campo e a terra toda que produz e nos traz o pão de cada dia e toda sorte de alimentos. Porque se Deus não o fizesse crescer, não o aben-çoasse e conservasse no campo, jamais tiraríamos pão do forno e nenhum teríamos para pôr na mesa. “Para sumariá-lo em breves palavras: esta petição quer abranger quanto pertence a to-da esta vida no mundo, porque apenas por isso necessitamos de pão cotidiano. Agora, à vida não pertence apenas que o corpo tenha alimento, vestuário e outras coisas necessá-rias, mas também que seja de tranquilidade e em diário comércio e trato e toda sorte de a-tividades; em suma, tudo o que se refere às relações domésticas e vizinhais, ou civis e políti-cas. Pois onde houver obstáculos quanto a essas duas partes, de forma que relativamente a elas as coisas não andem como deveriam andar, aí também está obstaculizado algo que é necessário à vida, de sorte que não se pode conservá-la por tempo dilatado....” (M. Lutero, Catecismo Maior: In: Os Catecismos, São Leopoldo/Porto Alegre, RS.: Concórdia/Sinodal, 1983, §§ 72-73, p. 467. Veja-se também, John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Mattew, Mark, and Luke, Grand Rapids, Michigan: Baker, (Calvin’s Commentaries, Vol. XVI/1), 1981, p. 323-324).

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nos ensina a orar pedindo o pão, não o luxo, o supérfluo; mas, sim, o que é neces-sário à nossa vida. Esta lição encontramos em outros textos bíblicos. Tiago diz: "Pedis, e não rece-beis, porque pedis mal, para esbanjardes em vossos prazeres" (Tg 4.2). Agur suplica a Deus duas coisas: "Afasta de mim a falsidade e a mentira; não me dês nem a po-breza nem a riqueza: dá-me o pão que me for necessário; para não suceder que, es-tando eu farto, te negue e diga: Que é o Senhor? ou que, empobrecido, não venha a furtar, e profane o nome de Deus" (Pv 30.8-9). Paulo aconselha a Timóteo, a fim de que ele também ensine isto: "Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos con-tentes. Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação e cilada, e em muitas con-cupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdi-ção. Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé, e a si mesmos se atormentaram com muitas dores” (1Tm 6.8-10). Aqui não há nenhuma recriminação à riqueza, todavia somos alertados quanto ao seu perigo; por isso, Jesus nos ensina a pedir o necessário. A abundância, com mui-ta frequência, pode nos fazer esquecer de Deus e dos Seus benefícios. Bernardo de Claraval (1090-1153), disse: "Não permitam que eu tenha tama-nha miséria, pois dar a mim o que desejo, dar a mim o que meu coração al-meja, é um dos mais terríveis julgamentos do mundo".89 A moderação é um aprendizado que deve nos acompanhar em toda a nossa vida. Por isso, Jesus nos ensina a começar a disciplinar as nossas orações naquilo que pedimos a Deus, pois somente assim poderemos aprender a estar contentes e a descobrir o quanto Deus nos tem dado. Paulo, preso, pôde escrever aos filipenses: "...Aprendi a viver contente em toda e qualquer situação. Tanto sei estar humilhado, como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias já tenho experiên-cia, tanto de fartura, como de fome; assim de abundância, como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4.11-13). Para Calvino a riqueza residia em não desejar mais do que se tem e a pobreza, o oposto.90 Por sua vez, também entendia que a prosperidade poderia ser uma arma-dilha para a nossa vida espiritual: “Nossa prosperidade é semelhante à embria-guez que adormece as almas”.91 Daí que, para o nosso bem, o Senhor nos ensi-na por meio de várias lições a vaidade dessa existência.92 Os servos de Deus não podem ser reconhecidos simplesmente pela sua riqueza. Esclarecendo uma inter- 89

Apud Jeremiah Burroughs, Aprendendo a Estar Contente, São Paulo: Publicações Evangélicas Se-lecionadas, 1990, p. 28. 90

“Confesso, deveras, que não sou pobre; pois não desejo mais além daquilo que possuo” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 46). “Nossa cobiça é um abismo insaciável, a me-nos que seja ela restringida; e a melhor forma de mantê-la sob controle é não desejarmos nada além do necessário imposto pela presente vida; pois a razão pela qual não aceitamos esse limite está no fato de nossa ansiedade abarcar mil e uma existências, as quais debalde sonhamos só para nós” (João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.7), p. 168). 91

Juan Calvino, El Uso Adecuado de la Afliccion: In Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 19), p. 227. 92

Vd. João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 60.

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pretação errada de Ec 9.1, afirma: ”Se alguém quiser julgar pelas coisas presen-tes quem Deus ama e quem Deus odeia, trabalhará em vão, visto que a prosperidade e a adversidade são comuns ao justo e ao ímpio, ao que serve a Deus e ao que Lhe é indiferente. De onde se infere que nem sempre Deus declara amor aos que Ele faz prosperar temporalmente, como tampouco declara ódio aos que Ele aflige”.93 Comentando o Salmo 62.10, diz: “Pôr o coração nas riquezas significa mais que simplesmente cobiçar a posse delas. Implica ser arrebatado por elas a nutrir uma falsa confiança. (...) É invariavelmente observado que a prosperi-dade e a abundância engendram um espírito altivo, levando prontamente os homens a nutrirem presunção em seu procedimento diante de Deus, e a se precipitarem em lançar injúria contra seus semelhantes. Mas, na verdade o pior efeito a ser temido de um espírito cego e desgovernado desse gênero é que, na intoxicação da grandeza externa, somos levados a ignorar quão frágeis somos, e quão soberba e insolentemente nos exaltamos contra Deus”.94 Em outro lugar: “Quanto mais liberalmente Deus trate alguém, mais prudentemente deve ele vigiar para não ser preso em tais malhas”.95 “Quando depositamos nossa confiança nas riquezas, na verdade estamos transferindo para elas as prerrogativas que pertencem exclusivamente a Deus”.96 A nossa riqueza está em Deus, Aquele que soberanamente nos abenço-a.97 Portanto, “.... é uma tentação muito grave, ou seja, avaliar alguém o a-mor e o favor divinos segundo a medida da prosperidade terrena que ele alcança”.98 Quanto ao dinheiro, como tudo que temos provém de Deus, “o di-nheiro em minha mão é tido como meu credor, sendo eu, como de fato sou, seu devedor”.99 Somos sempre e integralmente dependentes de Deus: “Um ver-dadeiro cristão não deverá atribuir nenhuma prosperidade à sua própria dili-gência, trabalho ou boa sorte, mas antes ter sempre presente que Deus é quem prospera e abençoa”.100 Jesus Cristo é quem nos pedirá conta. O mesmo Jesus, que em sua vida terrena

93

João Calvino, As Institutas, (1541), II.4. 94

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 62.10), p. 580. 95

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 30.6), p. 633. 96

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.17), p. 182. 97

“.... a glória de Deus deve resplandecer sempre e nitidamente em todos os dons com os quais porventura Deus se agrade em abençoar-nos e em adornar-nos. De sorte que pode-mos considerar-nos ricos e felizes nele, e em nenhuma outra fonte” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 48.3), p. 356). 98

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 17.14), p. 346. 99

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 56.12), p. 504. 100

João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 42. “Às vezes pensamos que podemos alcançar facilmente as riquezas e as honras com nossos próprios esforços, ou por meio do favor dos demais; porém, tenhamos sempre presente que estas coisas não são nada em si mesmas, e que não poderemos abrir caminho por nossos próprios meios, a menos que o Senhor queira nos prosperar” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 40-41).

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viveu de forma sóbria e modesta, combatendo todo excesso, soberba, ostentação e vaidade.

2) CONFIANÇA: Esta petição nos desafia a confiar no Pai Celeste, a confiar diariamente no cuidado providente de Deus. Esta oração não nos ensina a pedir para o futuro mas, sim, a pedir para as nossas necessidades diárias; para o nosso hoje. Jesus quer nos ensinar a não ficar ansiosos pelo futuro, diante do desconhecido, antes a confiarmos inteiramente em Deus, colocando diante dEle em oração as nossas aspirações. Je-sus Cristo, no Sermão do Monte, diz: "...Não andeis ansiosos pela vossa vida, quan-to ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo quanto ao que haveis de vestir (...). Não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal” (Mt 6.25,34). Paulo, preso, seguindo os ensinamentos de Cristo, escreve aos filipenses: "Não andeis ansiosos de cousa al-guma; em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graça" (Fp 4.6). No deserto, Deus desafiou o povo a aprender esta lição por meio do maná, que lhes era concedido diariamente. Antes mesmo de Deus promulgar o quarto manda-mento, Ele ensinou o povo a utilizar bem o seu tempo e a confiar nEle.101 O texto Sagrado nos diz a instrução divina: "Eis que vos farei chover do céu pão, e o povo sairá, e colherá diariamente a porção para cada dia, para que eu ponha à prova se anda na minha lei ou não. Dar-se-á que, ao sexto dia, prepararão o que colherem, e será dois tantos do que colhem cada dia" (Ex 16.4-5). Alguns homens, mais "previdentes", tentaram ir além da ordem divina, guardaram o maná para o dia seguinte; resultado: deu bicho e apodreceu (Ex 16.20). O desafio de Deus era para que o povo, manhã após manhã renovasse a sua confiança nEle, aprendendo a descansar nas Suas promessas, sabendo que Deus não falharia. "Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós" (1Pe 5.7). “E devemos confiar que, assim como nosso Pai nos nutriu hoje, Ele não falhará amanhã”.102 Comentando o Salmo 3, Calvino ressalta: “Era um sinal de inusitada fé quan-do, golpeado por tão grande consternação, se aventura a fazer francamen-te sua queixa a Deus e, por assim dizer, derramar sua alma no seio divino. E certamente que este é o único remédio que pode aplacar nossos temores, a saber, lançar sobre ele todas as preocupações que nos atribulam....”103 O Catecismo de Heidelberg (1563), assim comenta esta petição:

“.... Digna-te suprir todas as nossas necessidades corporais, a fim de que,

101

Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: Tempo para o Senhor, Tempo de Ale-gria Nele (II): In: Fides Reformata, 4/1 (1999), p. 133-134. 102

João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO.: Editora Logos, 2003, Cap. 24, p. 67. 103

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 3.1-2), p. 82.

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por esse motivo reconheçamos que és a única fonte de tudo o que é bom, e que sem tua bênção nem nosso cuidado e trabalho, nem os teus dons podem proporcionar-nos qualquer bem. Consequentemente, que re-tiremos a nossa confiança de todas as demais criaturas e a ponhamos somente em ti”.104

Um outro ponto relevante, é a forma que Deus usa para nos educar. Na realidade Deus pode usar qualquer meio que se harmonize com as suas perfeições para nos sustentar ou fazer cumprir toda e qualquer de Suas promessas. No entanto, ao esta-belecer o método que deseja, Deus tem também como objetivo que nossas mentes e corações aprendam a se submeter ao Seu modo de agir. “Por exemplo, embora Ele possa nutrir-nos sem pão, não obstante sua vontade é que nossa vida se-ja sustentada por tal provisão; e se a negligenciarmos, e quisermos designar-lhe outro meio de nutrir-nos, tentamos seu poder”.105

3) TOTAL DEPENDÊNCIA: Todos os homens por mais ricos que sejam, dependem de solo, água, cli-ma, saúde do corpo. Todos estão sujeitos ao estado geral da economia, juntamente com outros fatores sociais, políticos, etc. Estes fatos indicam o quanto dependemos de Deus, o Senhor do universo; dAquele que tem o domínio sobre todas as coisas. "Do alto de tua morada regas os montes; a terra farta-se do fruto de tuas obras. Fa-zes crescer a relva para os animais e as plantas para o serviço do homem, de sorte que da terra tire o seu pão", diz o salmista (Sl 104.13-14). Paulo dá uma interpreta-ção teológica a esta manifestação provedora de Deus, dizendo: "Contudo, não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e de alegria” (At 14.17). Portanto, pedir a Deus que nos dê o pão significa recorrer à Sua Graça, para que nos sustente e não nos deixe perecer. Nesta oração está implícita a certeza de que a vida pertence a Deus. O cientista pode fazer uma semente sintética, porém ela não crescerá, porque não tem vida. Deus é o Senhor da vida; tudo que temos e somos provém dEle, por isso a Ele oramos: o pão nosso de cada dia dá-nos hoje... Calvino (1509-1564), comentando esta passagem, diz:

"Por esta petição, a Seu cuidado nos entregamos e a Sua providência nos confiamos, para que nos dê alimento, sustente, preserve. Pois, o Pai Boníssimo não desdenha tomar sob Sua proteção e guarda ainda mesmo o nosso corpo, para que a fé nos exercite nestas cousas diminutas, en-quanto dEle tudo esperamos, até uma simples migalha de pão e uma go-ta de água".106

104

Catecismo de Heidelberg, Pergunta 125. 105

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 106.14), p. 678. 106

J. Calvino, As Institutas, III.20.44.

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4) DISPOSIÇÃO PARA TRABALHAR: Esta oração não serve de pretexto para as pessoas se acomodarem em seus trabalhos – exercendo a sua função sem dedicação, responsabilidade e criati-vidade –, contando apenas com a "providência de Deus"; antes, ela implica no de-sejo de trabalhar, usando os recursos que Deus nos tem concedido, rogando, ao mesmo tempo, a bênção de Deus para o nosso trabalho. A Bíblia é bem explícita quanto à nossa responsabilidade de usar os meios que Deus nos concede para o trabalho, a fim de que com o trabalho de nossas próprias mãos possamos nos sustentar e àqueles que estão sob a nossa guarda. Paulo, es-crevendo aos tessalonicenses – entre os quais havia alguns homens que estavam desvirtuando a relação entre a fé em Deus e a responsabilidade de trabalhar –, re-lembra: "Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos isto: Se alguém não quer trabalhar, também não coma. Pois de fato, estamos informados de que entre vós há pessoas que andam desordenadamente, não trabalhando; antes se intrometem na vida alheia. A elas, porém, determinamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando tranquilamente, comam o seu próprio pão" (2Ts 3.11-12).

5) HUMILDADE: Esta petição nos ensina também que, apesar de trabalharmos arduamente, sabemos que é Deus Quem nos dá o pão; é Ele Quem provê a nossa subsistência; é Deus Quem nos propicia, de forma muitas vezes imperceptível, as condições para que exerçamos os nossos talentos ou, em outras circunstâncias, Ele inclina o cora-ção de outras pessoas para nos socorrer nos momentos de maior carência... O nos-so sustento, seja de que modo for, vem do Senhor, a Quem oramos de forma cons-ciente: "O pão nosso de cada dia dá-nos hoje". Salomão, o rei mais sábio e rico de toda a história de Israel, dá o seu testemunho: "Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madruga-da, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele o dá enquanto dormem" (Sl 127.1-2). À arrogante igreja de Corinto, Paulo escreve: "Pois quem é que te faz sobressair? e que tens tu que não tenhas recebido? e, se o recebestes, por que te vanglorias, como se o não tivesses recebido?" (1Co 4.7). Tiago, por sua vez, nos lembra que "toda boa dádiva e todo dom perfeito é lá do alto, descendo do Pai das luzes...” (Tg 1.17). Portanto, a nossa atitude deve ser de humildade diante de Deus e do nosso pró-ximo, visto que tudo que temos e somos provêm da misericórdia de Deus (1Co 15.10; 2Co 3.5).

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6) GENEROSIDADE: A oração diz: "Dá-nos" e não "Dá-me". Aqui, em nossas petições, se incluem as necessidades dos crentes em todo o mundo; quando assim oramos, estamos evi-denciando que os filhos de Deus suplicam ao Pai pela manutenção de todo o Seu Povo espalhado por toda a face da terra. Ao assim orarmos, estamos pedindo a ma-nutenção de Deus para a Sua Igreja, que é a família de Deus (Ef 3.15), a "família da fé" (Gl 6.10). Aqui, aprendemos a não ser egoístas, preocupando-nos apenas com as nossas necessidades. Jesus nos ensina, ao mesmo tempo, a pedir e interceder; a suplicar a Deus por nós e pelo nosso próximo. Deste modo, temos uma lição de generosidade a ser apreendida, visto que por mais prementes (= urgentes) que sejam os nossos anseios e/ou carências, Jesus nos convida a olhar à nossa volta e a reconhecer que outros homens também têm necessidades que precisam ser atendidas, por isso, o-ramos: "O pão nosso de cada dia dá-nos hoje". Portanto, "quem repete esta peti-ção e pensa só em seu pão, não tem uma concepção real do significado da mesma".107 Calvino aponta sempre para o fato de que a nossa generosidade é decorrente da consciência de que tudo provém de Deus:

“Portanto, ao fazer o bem a nossos irmãos e mostrar-nos humanitários, tenhamos em mente esta regra. Que de tudo quanto o Senhor nos tem dado, com o que podemos ajudar a nossos irmãos, somos despenseiros; que estamos obrigados a dar conta de como o temos realizado; que não há outra maneira de despensar devidamente o que Deus pôs em nossas mãos, que ater-se à regra da caridade. Daí resultará que não somente juntaremos ao cuidado de nossa própria utilidade a diligência em fazer bem ao nosso próximo, senão que incluso, subordinaremos nosso proveito aos demais”.108

No entanto, esta ajuda não poderá ser com arrogância; antes deve ser praticada com amor, prontidão, humildade, cortesia e simpatia. Ele constata com tristeza:

“Quase ninguém é capaz de dar uma miserável esmola sem uma atitu-de de arrogância ou desdém. (...) Ao praticar uma caridade, os cristãos deveriam ter mais do que um rosto sorridente, uma expressão amável, uma linguagem educada. “Em primeiro lugar, deveriam se colocar no lugar daquela pessoa que necessita de ajuda, e simpatizarem-se com ela como se fossem eles mes-mos que estivessem sofrendo. Seu dever é mostrar uma verdadeira huma-nidade e misericórdia, oferecendo sua ajuda com espontaneidade e ra-pidez como se fosse para si mesmos.

107

W. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires: La Aurora/ABAP, 1985, p. 110 108

J. Calvino, Institución, III.7.5. Ver também André Biéler, O Humanismo Social de Calvino, São Paulo: Edições Oikoumene, 1970, p. 72-74.

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“A piedade que surge do coração fará com que se desvaneça a arro-gância e o orgulho, e nos prevenirá de termos uma atitude de reprovação ou desdém para com o pobre e o necessitado”.109

Em nossa beneficência, nada devemos esperar em troca, ainda que esta seja uma prática comum. Aliás, “quando damos nossas esmolas, nossa mão esquer-da deve ignorar o que a mão direita fez”.110 Comentando o Salmo 68 enfatiza que o Deus da glória é também o Deus misericordioso; em seguida observa a atitude pecaminosa comum aos homens: “Geralmente distribuímos nossas atenções onde esperamos nos sejam elas retribuídas. Damos preferência a posição e esplendor, e desprezamos ou negligenciamos os pobres”.111 E quanto à ingra-tidão tão comum ao gênero humano? Bem, em nossa ajuda aos nossos irmãos não devemos nos preocupar com isso, visto que “ainda que os homens sejam ingra-tos, de modo que pareça termos perdido o que lhes damos, devemos perse-verar em fazer o bem”.112 E mais: “.... não dependemos da gratidão huma-na, e, sim, de Deus que Se coloca no lugar do pobre como devedor, para que um dia venha restituir-nos cheio de solicitude, tudo quanto distribuí-mos....”.113 Esta petição desafia-nos à moderação, a aprender a viver com o que temos, con-fiando no cuidado providencial de Deus, em total dependência, usando dos recursos que Ele nos concede, trabalhando de forma digna onde quer que Ele nos coloque, sabendo, contudo, que a eficácia do nosso trabalho depende da Sua bênção, daí a necessidade de sermos humildes e generosos.

109

João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 39. 110

John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol. XVIII, (At 5.1), p. 196. 111

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 68.4-6), p. 645. 112

João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 8.10), p. 173. “É realmente verdade que não há nada que fira tanto os que possuem uma disposição mental ingênua que quando os perver-sos e ímpios os recompensam de forma um tanto desonrosa e injusta. Mas quando ponde-ram sobre esta consoladora consideração, de que Deus não é menos ofendido com tal in-gratidão do que aqueles a quem se faz a injúria, eles não têm nenhuma justificativa de se magoarem com tanto excesso” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 38.19-20), p. 192). 113

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 16.2), p. 500.

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3. TRABALHO COMO VOCAÇÃO: CULTURA, ÉTICA E ARTE: AN O-TAÇÕES PROVISÓRIAS:

“Se a cosmovisão cristã pudesse ser restabelecida no lugar de destaque e respeito na universidade, isso teria um efeito de fermentação no meio da so-ciedade. Se mudarmos a universidade, mudaremos nossa cultura por intermé-dio dos que a moldam” ‒ J.P. Moreland;

William L. Craig.114

“Ora, se conseguirmos fazer com que os homens fiquem a formular perguntas assim: ‘isto está em consonância com as tendências gerais dos movimentos con-temporâneos? É progressista, ou revolu-cionário? Obedece à marcha da Histó-ria?’ então os levamos a negligenciar as questões efetivamente relevantes. E o caso é que as perguntas que assim insis-tirem em formular são irrespondíveis; vis-to que não conhecem nada do futuro e o que o futuro haverá de ser dependerá muitíssimo, exatamente, daquelas prefe-rências a propósito das quais buscam socorro do futuro. Como consequência, enquanto suas mentes ficam assim a zumbir nesse verdadeiro vácuo, temos nossa melhor oportunidade de até imis-cuir-nos para forçá-los à ação corres-pondente aos nossos propósitos. A obra já realizada neste sentido é enorme” −

C.S. Lewis.115

A. Trabalho e Cultura:

A nossa palavra “cultura” é derivada do latim colere, que tem o sentido de “arte de cultivar” ou mesmo, “o resultado da cultivação”, envolvendo, portanto, a idéia de labor e perseverança. Neste sentido, a palavra é usada tanto para referir-se a um certo refinamento intelectual e estético, como para o cultivo de alguma planta, abe-lhas, etc. Este vocábulo é da mesma raiz da palavra “culto” que, por sua vez pode indicar um homem de “cultura” (referindo-se a algum refinamento) ou a reunião dos fiéis para cultuar a Deus, prestar-lhe um “culto”. O fato é que toda cultura reflete um determinado culto; o cultivo de determinados valores que se expressam no pensar e

114

J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 16. 115

C.S. Lewis, Cartas do Interno, São Paulo: Vida Nova, 1964, p. 160-161

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no fazer, sabendo que o "pensar é para o espírito o que agir é para o corpo".116 A cultura é a linguagem exteriorizada do ser, acumulada, aperfeiçoada e transforma-da ao longo dos séculos.

Somos em muitos sentidos parte de um produto cultural, filhos de uma geração

com uma série de valores que determinam em grande parte as nossas pré-compreensões. A cultura, portanto, nos fornece de modo quase absoluto determinadas perspecti-vas que se configuram como objetivas e, portanto, finais. Parece-nos correta a ana-logia e os comentários de Mohler:

“A última criatura a quem você deveria perguntar como é se sentir mo-lhado é a um peixe, porque ele não faz idéia de que esteja molhado. Uma vez que nunca esteve seco, ele não tem um ponto de referência. Assim somos nós, quando se trata de cultura. Somos como peixes no sentido de que não temos sequer a capacidade de reconhecer onde a nossa cultura nos influencia. Desde a época em que estávamos no berço, a cultura tem formado nossas esperanças, perspectivas, sistemas de significado e inter-pretação, e até mesmo nossos instrumentos intelectuais.”117

Historicamente, no entanto, a palavra apresentou dois significados fundamentais: a) Cultura no sentido de progresso do ser humano, seu melhoramento e refinamento (seria a “Paidéia” grega); b) Cultura no sentido dos efeitos de um modo de vida cul-to; a civilização propriamente dita.118 A cultura é um dom de Deus, contudo, o homem é ao mesmo tempo herdeiro e agente ativo do cultivo, aperfeiçoamento e transformação de sua cultura. Portanto, cada povo tem a responsabilidade pela sua cultura, sabendo, contudo, que não exis-te povo sem cultura.

"A cultura, em seu sentido mais amplo, é uma característica peculiar da humanidade; em qualquer tempo e lugar aonde há agrupamentos hu-manos, há um grau, ainda que mínimo e rudimentar de cultura (...). Toda a sociedade tem o mérito e a responsabilidade de seu desenvolvimento, de seu avanço ou de seu estancamento, de seus progressos ou regres-sos".119

Portanto, podemos considerar a cultura como “a totalidade das manifestações

116

Marie-Joseph Degérando, Dos Signos e da Arte de Pensar, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensa-dores, Vol. 27), 1973, p. 338. 117

R. Albert Mohler Jr., Pregar com a cultura em mente: In: Mark Dever, ed., A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 66. 118

Veja-se o esclarecedor verbete “Cultura”, In: Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 209-213. 119

Rodolfo Mondolfo, Universidad: Pasado y Presente, Buenos Aires: EUDEBA Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1966, p. 57.

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e formas de vida que caracterizam um povo”.120 Uma observação final sobre este ponto. Para nós cristãos, há um interesse espe-cial pela cultura, não pelo seu valor em si: “Temos interesse na cultura porque é onde encontramos os pecadores; o nosso interesse não é fundamentalmen-te a cultura em si. Tudo o que vemos ao nosso redor é passageiro, inclusive a cultura”.121

B. Trabalho, Cultura e Ética: Segundo nos parece, a palavra “cultura” tem em si o sentido de desenvolvi-mento pleno. Dentro desta perspectiva, podemos entender que, o homem culto é aquele que procura se desenvolver em todas as áreas de sua existência a fim de re-alizar o propósito de Deus para a sua vida, buscando sempre o fim último da criação, que é a glória de Deus (1Co 10.31).122 Deste modo, o cristão deve participar ativamente, dentro de sua esfera de ação, na formação, aperfeiçoamento e transformação da cultura, sabendo, de antemão, que neste estado de existência não existe cultura perfeita. E mais, que esta tarefa gerará inevitavelmente conflitos; contudo, estes fazem parte, e podem fazê-lo de forma criativa dentro de nosso processo de amadurecimento e ação no meio no qual vivemos. Na fé cristã sempre existirá o desafio da inculturação por meio da expres-são de sua fé na relatividade da cultura e em fidelidade ao Verbo Encarnado. A cul-tura é a expressão, a forma de ser de uma dada sociedade.

Cremos que a Palavra de Deus apresenta mandamentos que são supracultu-rais;123 eles devem ser observados em qualquer época ou cultura, constituindo-se em imperativos categóricos para todo o cristão em toda e quaisquer circunstâncias. Como princípio orientador que deve permear todas as nossas ações, temos o amor. "O amor é o único candidato para exercer a função de absoluto moral que não é contraproducente, ou seja, que não se anula a si mesmo em sua a-ção".124 O homem é livre para servir a Deus e ao seu próximo, realizando-se na e-xecução deste propósito. Neste sentido, podem-se compreender as palavras de A-

120

Werner Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego, 2ª ed. São Paulo/Brasília, DF.: Martins Fontes/Editora Universidade de Brasília, 1989, p. 6. 121

R. Albert Mohler Jr., Pregar com a cultura em mente: In: Mark Dever, ed., A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 65. 122

Vd. Henry H. Meeter, La Iglesia y el Estado, 3ª ed. Grand Rapids, Michigan: TELL., [s.d.], p. 76-77. 123

“.... Mesmo em face da diversidade cultural, os cristãos devem expressar a autoridade transcultural da Bíblia, porque eles são os únicos no planeta com uma mensagem que é des-tinada a pessoas de todas as culturas. Além disso, nós temos a única mensagem que não precisa ser transformada e redefinida em cada circunstância cultural, porque estamos fa-lando sobre condições permanentes como o pecado, o caráter de Deus e a cruz do Senhor Jesus Cristo” (R. Albert Mohler Jr., Pregar com a cultura em mente: In: Mark Dever, ed., A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 65). 124

Norman L. Geisler, La Etica Cristiana Del Amor, Miami: Editorial Caribe, 1977, p. 120.

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gostinho (354-430): “Conserva, pois, a caridade e fica tranquilo (...). Ama, e assim não poderás fazer senão o bem”.125 A ética do amor reclama o nosso compromisso intelectual e vivencial. A ética cristã é um desafio constante à sua apli-cação às novas situações que o homem se encontra. É uma tentativa humana de entender e aplicar os princípios divinos à cotidianidade humana. É, portanto, um de-safio à conformação de nossa prática àquilo que cremos. “A ética cristã é basea-da no amor, e amor implica relacionamentos. Embora seja mais fácil amar se nunca tenhamos que lidar de fato com uma pessoa, o amor bíblico é aquele tipo complicado que significa se envolver com pessoas reais”.126 “A dimensão ética começa quando entra em cena o outro”.127 A ética cristã parte de princípios eternos que tem a ver com a nossa relação com Deus, co-nosco e com o nosso próximo. Jesus Cristo é o nosso modelo. A única cultura que permanecerá é aquela fundamentada nEle tendo a Sua ética como norma de pensar e agir. A observação de Veith é pertinente:

“A centralidade da Bíblia para os cristãos significa que eles nunca de-vem menosprezar a cultura. Por meio de preceitos, de exemplos, da sua história e por sua própria natureza, a Bíblia nos abre o mundo inteiro da verdade. Porém, a busca desta verdade num mundo pecador e descren-te não deixa de ter seus problemas. As possibilidades e os perigos desse empreendimento talvez possam ser mais bem ilustrados se estudarmos em detalhes um exemplo histórico específico da Bíblia: a educação de Dani-el”.128

Concluo este tópico com as palavras inspiradas, ditas por intermédio do rei Salo-mão no livro de Provérbios: “Filho meu, guarda as minhas palavras e conserva den-tro de ti os meus mandamentos. 2 Guarda os meus mandamentos e vive; e a minha lei, como a menina dos teus olhos. 3 Ata-os aos dedos, escreve-os na tábua do teu coração” (Provérbios 7.1-3).

125

Agostinho, Comentário da Primeira Epístola de São João, São Paulo: Paulinas, 1989, (1Jo 5.3), p. 208. 126

Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 95. 127

Umberto Eco, In: Umberto Eco; Carlo Maria Martini, Em que crêem os que não crêem?, Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 83. 128

Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 24. “A cultura e as instituições humanas são valiosas. Elas são dádivas de Deus aos seres humanos que, criados à imagem de Deus, têm poderes e responsabilidades incríveis e são capazes de realizações notáveis. O próprio Deus trabalha por intermédio das instituições e vocações humanas para conter o mal e prover o pão de cada dia e as outras necessidades físicas dos seres humanos que Ele criou e com quem Ele se preocupa” [Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 62].

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C. Vocação, Trabalho e Arte: No Antigo Testamento encontramos com frequência a ação do Espírito associ-ada à vida intelectual de diversos homens (Vejam-se: Jó 32.8; 35.10,11/Gn 2.7; Ex 31.2-6; 35.31-35; Nm 11.17,25-29; 27.18-21/Dt 34.9).129 O Espírito é o autor de toda vida intelectual e artística; nEle temos o sentido do belo e sublime como expressão da santa harmonia procedente de Deus, que é perfeitamente belo em Sua santidade e majestade. Referindo-se à obra de Bezalel e Aoliabe, Ferguson escreve: “A beleza e a simetria da obra executada por esses homens na construção do tabernáculo não só deram prazer estético, mas um padrão físico no coração do acampamento que serviu para restabelecer expressões concretas da ordem e glória do Criador e suas intenções em prol de sua criação”.130 A Escritura nos mostra que Deus aprecia o belo; este não tem apenas um sentido funcional, antes, é prazeroso, refletindo de alguma forma a grandeza e harmonia da Criação de Deus. Paulo diz que a nossa nova criação espiritual levada a efeito por Deus é uma obra de arte. O homem é a obra-prima de Deus131 e os salvos têm o seu “homem interior”

129”Na verdade, há um espírito no homem, e o sopro do Todo-Poderoso o faz sábio” (Jó 32.8). “Mas ninguém diz: Onde está Deus, que me fez, que inspira canções de louvor durante a noite, que nos ensina mais do que aos animais da terra e nos faz mais sábios do que as aves dos céus?” (Jó 35.10-11). “2 Eis que chamei pelo nome a Bezalel, filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá, 3 e o enchi do Espírito de Deus, de habilidade, de inteligência e de conhecimento, em todo artifício, 4 para elaborar desenhos e trabalhar em ouro, em prata, em bronze, 5 para lapidação de pedras de engaste, para entalho de madeira, para toda sorte de lavores. 6 Eis que lhe dei por companheiro Aoliabe, filho de Aisamaque, da tribo de Dã; e dei habilidade a todos os homens hábeis, para que me façam tudo o que tenho ordenado” (Ex 31.2-6). “31 e o Espírito de Deus o encheu de habilidade, inteligência e co-nhecimento em todo artifício, 32 e para elaborar desenhos e trabalhar em ouro, em prata, em bronze, 33 e para lapidação de pedras de engaste, e para entalho de madeira, e para toda sorte de lavores. 34 Também lhe dispôs o coração para ensinar a outrem, a ele e a Aoliabe, filho de Aisamaque, da tribo de Dã. 35 Encheu-os de habilidade para fazer toda obra de mestre, até a mais engenhosa, e a do bordador em estofo azul, em púrpura, em carmesim e em linho fino, e a do tecelão, sim, toda sorte de obra e a elaborar desenhos” (Ex 35.31-35). “17 Então, descerei e ali falarei contigo; tirarei do Espírito que está sobre ti e o porei sobre eles; e contigo levarão a carga do povo, para que não a leves tu so-mente. (...) 25 Então, o SENHOR desceu na nuvem e lhe falou; e, tirando do Espírito que estava sobre ele, o pôs sobre aqueles setenta anciãos; quando o Espírito repousou sobre eles, profetizaram; mas, depois, nunca mais. 26 Porém, no arraial, ficaram dois homens; um se chamava Eldade, e o outro, Medade. Repousou sobre eles o Espírito, porquanto estavam entre os inscritos, ainda que não saíram à tenda; e profetizavam no arraial. 27 Então, correu um moço, e o anunciou a Moisés, e disse: Eldade e Medade profetizam no arraial. 28 Josué, filho de Num, servidor de Moisés, um dos seus escolhidos, respondeu e disse: Moisés, meu senhor, proíbe-lho. 29 Porém Moisés lhe disse: Tens tu ciúmes por mim? Tomara todo o povo do SENHOR fosse profeta, que o SENHOR lhes desse o seu Espírito!” (Nm 11.17,25-29). “Josué, filho de Num, estava cheio do espírito de sabedoria, porquanto Moisés im-pôs sobre ele as mãos; assim, os filhos de Israel lhe deram ouvidos e fizeram como o SENHOR orde-nara a Moisés” (Dt 34.9). 130

Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, São Paulo: Editora Os Puritanos, 2000, p. 26. 131

Prefácio de Calvino à tradução do Novo Testamento feita por Pierre Olivétan. In: Eduardo Galasso Faria, ed. João Calvino: Textos Escolhidos, São Paulo: Pendão Real, 2008, p. 14. W. Shakespeare, Hamlet, São Paulo: Abril Cultural, (Obras Primas), 1978, II.2.

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criado de novo em Cristo Jesus: “Pois somos feitura (poi/hma = “obra de arte”)132 de-le, criados (kti/zw)133 em Cristo Jesus para as boas obras....” (Ef 2.10). Somos filhos de Deus, criados não por qualquer um, mas, pelo próprio Deus (Sl 100.3). Com base no texto de Efésios, podemos dizer que o homem é o mais belo poema de Deus, cri-ado em Cristo Jesus nosso Senhor! Deus como originador de toda beleza, exercita a arte em toda a Sua Criação. Ainda que a Bíblia não seja um livro que trate de teoria estética, oferece-nos pa-râmetros para avaliar o sentido de arte e o seu propósito.134 Calvino (1509-1564) entendia que a arte e as demais coisas que servem ao uso comum e conforto desta vida são dons de Deus; portanto, devemos usá-las de forma legítima a fim de que o Senhor seja glorificado.135 Quanto mais o homem se apro-funda nas “artes liberais” e investiga a natureza, mais se aproxima “dos segredos da divina sabedoria”.136 Ainda que as artes não tenham poder redentivo, e, a bem da verdade, não é este o seu propósito, elas, contribuem para temperar a nossa vida com mais encanto e beleza. Sendo olhada pelo ângulo correto e abrangente, a arte descreve a nossa situação de pecado e miséria, contudo, deve retratar também a nossa nova humanidade, redimida por Cristo. Assim, ela nos conduz a glorificar a Deus, o Senhor de toda criação. O artista sem a cosmovisão cristã tenderá a cair em um destes dois aspectos: pessimismo ou um otimismo romântico sem um fundamen-to sólido. Somente o cristão com uma cosmovisão cristã consistente pode, de fato, retratar ambos os aspectos da realidade: pecado e restauração; morte e ressurrei-ção em Cristo Jesus, o Deus encarnado.

132

Poi/hma, quer dizer “o que é feito”, “obra”, “criação”, “obra-prima”, “obra de arte”, especialmente um produto poético. O nome da obra de Aristóteles (384-322 a.C.) que foi traduzida para o português com o título de “Poética”, em grego, intitula-se, Peri\ poihtikh/j. Aliás, são estas as palavras com as quais Aristóteles inicia a sua obra. (Vejam-se entre outros: F.F. Bruce, The Epistle to the Ephesians, a Verse-by-verse Exposition, Londres: Pickering & Inglis, 1961, in loc; M. Barth, The Anchor Bible: Ephesians, Garden City, New York: Doubleday, 1974, Vol. I, in loc; Poi/hma: In: William F. Arndt; F.W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, 2ª ed. Chicago: University Press, 1979, p. 689; Poi/hma: A Lexicon Abridged from Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon, London: Clarendon Press, 1935, p. 568). Para um estudo mais detalhado do verbo poie/w e de seus cognatos, Vejam-se: H. Braun, poie/w: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theo-logical Dictionary of the New Testament, Vol. VI, p. 458-484; C. F. Thiele, Trabalhar: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. IV, p. 649-652. 133

Kti/zw, indica uma nova criação de Deus efetuada em Cristo (* Mc 13.19; Rm 1.25; 1Co 11.9; Ef 2.10,15; 3.9; 4.24; Cl 1.16 (2 vezes); 3.10; 1Ts 4.3; Ap 4.11; 10.6). Nesta palavra, como bem observa Lenski, temos o equivalente ao verbo hebraico )frfB, “chamar à existência do nada” (R.C.H. Lenski, The Interpretation of St. Paul´s Epistles to the Ephesians, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1998, p. 425). Para um estudo mais detalhado, Vejam-se: W. Foerster, kti/zw: In: G. Kit-tel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Vol. III, p. 1000-1035; H.H. Esser, Criação: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. I, p. 536-544). 134

Cf. Michael S. Horton, O Cristianismo e a Cultura, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 75. 135

Cf. João Calvino, As Institutas, I.11.12; John Calvin, Calvin's Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol. I, (Gn 4.20), p. 217-218; Vol. III, (Ex 31.2), p. 291. 136

João Calvino, As Institutas, I.5.2.

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Bavinck (1854-1921) escreve de modo magistral, mostrando que a arte provém de Deus:

“A arte também é um dom de Deus. Como o Senhor não é apenas ver-dade e santidade, mas também glória, e expande a beleza de Seu nome sobre todas as Suas obras, então é Ele, também, que, pelo Seu Espírito, equipa os artistas com sabedoria e entendimento e conhecimento em to-do tipo de trabalhos manuais (Ex 31.3; 35.31). A arte é, portanto, em primei-ro lugar, uma evidência da habilidade humana para criar. Essa habilidade é de caráter espiritual, e dá expressão aos seus profundos anseios, aos seus altos ideais, ao seu insaciável anseio pela harmonia. Além disso, a arte em todas as suas obras e formas projeta um mundo ideal diante de nós, no qual as discórdias de nossa existência na terra são substituídas por uma gratificante harmonia. Desta forma a beleza revela o que neste mundo caído tem sido obscurecido à sabedoria mas está descoberto aos olhos do artista. E por pintar diante de nós um quadro de uma outra e mais ele-vada realidade, a arte é um conforto para nossa vida, e levanta nossa alma da consternação, e enche nosso coração de esperança e alegri-a”.137

Na nova dispensação o Espírito continua atuando concedendo dons aos homens para ensinar e dirigir a Igreja na Palavra (1Co 12.11/Ef 4.4-6,11-14). A pregação é, entre outras coisas, uma arte. Por isso é que a homilética, a disciplina que estuda a pregação, é “a ciência da qual a arte é a pregação e cujo produto é o ser-mão”.138 Dentro desta perspectiva, o artista tenta reproduzir a sua percepção da natureza ou a sua visão de como deveria ser. A criação de Deus pode e deve ser valorizada a despeito do pecado e de sua mancha sobre toda a criação. Dentro da visão de Calvino, a arte não tem um fim em si mesma, antes ela está a serviço do homem com o fim de conduzi-lo a Deus.139 Portanto, a Revelação de Deus é o elemento afe-ridor da natureza e do propósito da arte. Devemos então entender que a chamada “arte cristã”, não deve ser caracterizada pelo seu tema (assuntos bíblicos), mas sim pela sua qualidade e pelo seu propósito. Do mesmo modo, nem toda arte que tem como tema assuntos bíblicos é arte cris-tã.140 Por exemplo, pelo fato de eu elaborar uma música com tema “evangélico” ou reproduzir na tela uma cena bíblica, não quer dizer que o meu produto seja necessa-riamente “arte cristã”; na realidade posso apenas ter descoberto que esta é uma boa fatia do mercado no qual devo aplicar o que julgo ser o meu talento e vocação. Ou,

137

Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001. p. 21-22. 138

A. W. Blackwood, The Fine Art of Preaching, New York: The Macmillan Company, 1946, p. 25. 139

Ver: André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo: Casa Editora Pres-biteriana, 1990, p. 573ss. 140

Vejam-se: Francis A. Schaeffer, Some Perspectives on Art. In: Leland Ryken, ed., The Christian Imagination: essays on literature and the arts, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1986, p. 96; Francis A. Schaeffer, A Arte e a Bíblia, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, 2010, p. 28,72-75.

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reproduzir tais temas dentro de uma cosmovisão totalmente secular que me domina ainda que não tenha percebido isso. Por outro lado, podemos ter um escritor cristão que resolva escrever uma obra de ficção ou de administração de empresas e, o faz com competência, com amplo referencial cristão, tendo como meta glorificar a Deus reconhecendo a Sua graça em sua vida e produção; esta obra seria uma “arte cris-tã”. Nesse caso particular, as obras pedagógicas de Comênio e os diversos livros de ficção de C.S. Lewis devem ser considerados como ilustrativos desse princípio.

Tocando em outro ponto de grande efervescência, devemos dizer que nem tudo que fazemos para a glória de Deus é adequado ao culto público. Acredito piamente que quando escrevo este artigo estou glorificando a Deus no propósito de compre-ender e transmitir o sentido bíblico-reformado da arte; no entanto, isso não significa que posso levar meu computador para o período de culto público e ali começar a e-laborar um texto e dizer que estou cultuando a Deus. A questão aqui não é entre o sagrado e o profano, mas, entre o público e o privado.

A dicotomia entre “arte cristã” e a “arte pagã” tem contribuído para que os cristãos muitas vezes se distanciem das expressões artísticas, rotulando-as precipitadamen-te de pagã, sem o devido critério. Por outro lado, e isto é o mais grave, com o nome de arte cristã tem-se pretendido criar um suposto isolacionismo cultural que, na rea-lidade tem sido, em geral, de baixíssima qualidade e, o pior: supostamente para a glória de Deus. Muitas vezes em nome de uma “arte cristã” estamos patrocinando uma “reserva de mercado”, onde a sensatez e o senso crítico não têm vez, visto que neste caso, o que conta é o sentimento, como que este, por si só estivesse acima de qualquer juízo de valor. Horton alerta-nos quanto a isso: “Se vamos escrever litera-tura ‘cristã’ e criar obras de arte e música distintamente ‘cristãs’, deverá ser feito de modo tão plenamente persuasivo intelectualmente e artisticamente que os que não são cristãos ficarão impressionados por sua integridade – mesmo que eles discordem”.141 No campo musical, por exemplo, temos também uma limitação da amplitude da experiência cristã, dando a impressão que temos apenas vitórias, conquistas e su-cesso. Cantamos com muita frequência um amontoado de clichês repetitivos e fáceis de decorar, reproduzindo sempre a mesma experiência.142 De forma ilustrativa, ve-mos que Calvino, considerando a complexidade e a riqueza da experiência cristã, entendia que “os salmos constituem uma expressão muito apropriada da fé re-formada”,143 e que “Tudo quanto nos serve de encorajamento, ao nos por-mos a buscar a Deus em oração, nos é ensinado neste livro [Salmos]”.144 Por-tanto, no Livro de Salmos temos um guia seguro para a edificação da Igreja que po-de cantá-lo sem correr o risco de proferir heresias melodiosas145 Calvino considera-

141

Michael S. Horton, O Cristianismo e a Cultura, p. 89. 142

Ver: Michael S. Horton, O Cristianismo e a Cultura, p. 108. 143

John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo: Pen-dão Real, 1997, p. 336. 144

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, p. 34. 145

Ver: João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 35-36.

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va os Salmos como “Uma Anatomia de Todas as Partes da Alma”.146 Um estudante francês refugiado, que visitou a Igreja de Calvino em Estrasburgo (1545), descreveu emocionado o que viu:

“Todos cantam, homens e mulheres, e é um belo espetáculo. Cada um tem um livro de cânticos nas mãos. (...) Olhando para esse pequeno grupo de exilados, chorei, não de tristeza, mas de alegria, por ouvi-los todos can-tando tão sinceramente, enquanto cantavam agradecendo a Deus por tê-los levado a um lugar onde seu nome é glorificado”.147 A beleza é uma questão de harmonia e proporções. A origem do senso de beleza

está em Deus. Ainda que possamos elaborar um livro, uma peça, um quadro ou mú-sica de qualidade duvidosa com o objetivo de distrair, comover ou entreter, não po-demos simplesmente apresentar isso a Deus como expressão de culto, visto que é Deus mesmo quem estabelece o modo como deve ser adorado.

A Confissão de Westminster (1647) capta bem isso ao dizer: “.... O modo acei-tável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por Ele mesmo, e é tão limita-do pela sua própria vontade revelada, que Ele não pode ser adorado se-gundo as imaginações e invenções dos homens, ou sugestões de Satanás, nem sob qualquer representação visível, ou de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras” (XXI.1).148 Adorar a Deus de modo não prescrito em Sua Palavra é um ato idólatra, pois des-te modo, adoramos na realidade a nossa própria vontade e gosto;149 tornamo-nos “auto-adoradores” (Hug Binning). Aqui há uma inversão total de valores: em nome de Deus buscamos satisfazer os nossos caprichos e desejos;150 Deus se tornou um mero instrumento para a expressão de nossa vontade; a lógica dessa atitude é a se-guinte: desde que estejamos satisfeitos, descontraídos e leves, é isso o que importa. Quem assim procede, já recebeu a sua recompensa: a satisfação momentânea do seu desejo pecaminoso. 151

146

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 33. 147

Apud T. George, Teologia dos Reformadores, São Paulo, Vida Nova, 1994, p. 181. 148

Vejam-se: Catecismo Maior de Westminster, Perg. 109; Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Comentada por A.A. Hodge, São Paulo: Editora Os Puritanos, 1999, Cap. XXI, p. 369. “Deus em muitas passagens proíbe qualquer novo culto desprovido da sanção da Sua Palavra, e de-clara-Se gravemente ofendido pela presunção de tal culto inventado, ameaçando-o de severa punição....” (John Calvin, “The Necessity of Reforming the Church,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 218). 149

Vd. J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 37; Paulo Angla-da, O Princípio Regulador do Culto, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (1998), p. 28ss. 150

Calvino pergunta: “Que pecado cometemos se não queremos aceitar que a maneira legí-tima de servir a Deus seja ordenada pelo capricho dos homens, o que Paulo ensinou ser into-lerável?” (João Calvino, As Institutas, IV.10.9). 151

Ver: João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo, Paracletos, 1997, (Rm 12.1), p. 424-425; (Rm 5.19), p. 198; Commentaries on the Prophet Jeremiah, Grand Rapids, Michigan: Baker Book

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O culto a Deus é caracterizado pela submissão às Escrituras: “É dever de todo

crente apresentar seu corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, como indica as Escrituras. Nisto consiste a verdadeira adoração”.152 Isto não significa que toda obra de arte, independentemente de sua técnica e be-leza, seja agradável a Deus. A arte em seu conjunto reflete a cosmovisão do artis-ta.153 Esta deve ser avaliada a partir de uma cosmovisão bíblica. Como nos adverte Kuyper, “[a] vida que o Calvinismo tem pleiteado e tem selado, não com lápis e pincel no estúdio, mas com seu melhor sangue na estaca e no campo de batalha”.154 A força prática da teologia reformada não está simplesmente em seu vigor e capacidade de influenciar intelectualmente os homens, mas no que tem produzido na vida de milhões de pessoas, conduzindo-as, em submissão ao Espírito, à fidelidade bíblica e a uma ética que se paute pelas Es-crituras. A grande contribuição do Calvinismo não se restringe aos manuais das mais variadas áreas do saber, mas, estende-se à integralidade da vida dos discípulos de Cristo que seguem esta perspectiva. Bavinck assim se expressou:

“Mas apesar de tudo o que a arte pode realizar, é apenas na imagina-ção que nós podemos desfrutar da beleza que ela revela. A arte não po-de fechar o abismo que existe entre o ideal e o real. Ela não pode trans-formar o além de sua visão no aqui de nosso mundo presente. Ela nos mostra a glória de Canaã à distância, mas não nos introduz nesse país nem nos faz cidadãos dele. A arte é muito, mas não é tudo.(...) A arte não pode perdoar pecados. Ela não pode nos limpar de nossa sujeira. E ela não é capaz de enxugar nossas lágrimas nos fracassos da vida”.155

Ser Reformado significa um apego irrestrito ao Deus da Palavra que nos instrui e nos capacita a viver para a Sua Glória desempenhando o nosso papel na sociedade, seja em que nível for, apresentando o fruto de nosso labor como uma oferenda a Deus que nos criou e nos sustenta. Calvino conclui a edição de 1541 das Institutas, com estas palavras:

“Além de tudo mais, se não tivermos a nossa vocação como uma regra permanente, não poderá haver clara consonância e correspondência en-tre as diversas partes da nossa vida. Assim, será muito bem ordenada e di-

House, (Calvin’s Commentaries, Vol. IX), 1996 (reprinted), (Jr 7.31), p. 414; Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.6), p. 305-306; Golden Booklet of the True Christian Life, 6ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1977, p. 21; As Institutas, I.5.13; O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 50.5), p. 403. 152

João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 29. 153

Veja-se: Francis A. Schaeffer, A Arte e a Bíblia, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, 2010, p. 53-54. 154

Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 149. 155

Herman Bavinck, Teologia Sistemática, p. 22.

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rigida a vida de quem a conduzir tendo em vista esse propósito. Desse modo de entender e de agir nos resultará esta singular consolação: Não há obra, por mais humilde e humilhante que seja, que não brilhe diante de Deus e que não Lhe seja preciosa, contanto que a realizemos no serviço e cumprimento da nossa vocação”.156

Devemos, portanto, exercitar as nossas vocações com arte e beleza, glorificando a Deus no exercício alegre e comprometido com que Ele mesmo, graciosamente nos tem concedido. Curiosamente, é justamente na igreja, no culto comunitário que pres-tamos a Deus, que encontramos alento e estímulo para exercitar as nossas voca-ções em todas as esferas nas quais Deus nos convoca: “A vida cristã deve ser vi-vida nas nossas vocações – no local de trabalho, na família, na nossa posi-ção na cultura –, mas é na adoração da Igreja que o cristão é preparado e recebe energia para esse serviço”.157

São Paulo, 01 de agosto de 2010. Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

156

João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. IV, (IV.17). p. 225. 157

Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 93.