O sus necessário e o sus possível

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1 Instituto de SaúdeColetiva, UniversidadeFederal da Bahia.Rua Basílio da Gama, s/n,Campus do Canela.40110-040 Salvador [email protected]

O SUS necessário e o SUS possível: estratégias de gestão.Uma reflexão a partir de uma experiência concreta

The needed Brazilian Health System and the possibleBrazilian Health System: management strategies.An experience-based reflection

Resumo O presente texto constitui uma reflexãosobre a experiência do autor como gestor de umasecretaria de saúde de um município de grande por-te, durante dois anos e meio. Apresenta uma siste-matização dos projetos estratégicos, das atividadespolíticas e técnicas e da rotina gerencial em que seenvolveu enquanto gestor. Parte da identificação detrês níveis (macro, meso e micro) e de quatro di-mensões da gestão (sociopolítica, institucional, téc-nico-sanitária e administrativa senso estrito). Emcada dimensão, nos três níveis, são discutidas estra-tégias de gestão, propostas para contribuir com a cons-trução de um SUS efetivamente universal e eqüitati-vo. Ainda que seja prematuro avaliar o grau de im-plantação e os efeitos das estratégias propostas, a suadiscussão pode ser útil na medida em que adota umquadro de análise das práticas de gestão fortementebaseado em elementos empíricos. Conclui-se que,embora a consolidação do SUS seja uma luta políticaque extrapola o espaço da gestão, os gestores são agen-tes importantes que precisam saber desenvolver es-tratégias consistentes com os princípios da universa-lidade e da equidade.Palavras-chave Gestão em saúde, Gestor de saúde,SUS

Abstract The present text presents a reflection aboutthe author’s experience as head of a Health Depart-ment of a big city during two and a half years. Itpresents a systematization of the strategic projects,the political and technical activities and the mana-gerial routine, in which he was involved. It identifiesthree levels (macro, meso and micro) and four di-mensions of management (social-political, institu-tional, technical-sanitary and administrative in thestrict sense). In each dimension, on the three levels, itdiscusses management strategies designed to contrib-ute to the construction of a universal and equitableBrazilian Health System (SUS). Although it may bepremature to evaluate the degree of implantation andthe effects of the proposed strategies, their analysisand discussion can be useful for being strongly basedon empirical elements. The paper concludes that, eventhough the consolidation of the SUS is a politicalstruggle that surpasses the management arena, man-agers are important agents who need to know how todevelop strategies able to foster the principles of uni-versality and equity.Key words Healthcare management, Healthcaremanager, Brazilian Health System

Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza 1

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Introdução

A implantação do SUS requer uma sociedade emque todos os cidadãos tenham assegurado umpadrão de vida digno. É difícil se pensar em umsistema de saúde universal e eqüitativo em um país,como o Brasil, onde a muitos faltam condições desobrevivência.

Todavia, se é difícil ter o SUS legal cabalmenteimplantado nas atuais condições sociais do país,não é menos difícil reverter esse quadro sem umapolítica de saúde baseada nos princípios de uni-versalidade e equidade. Na verdade, o SUS é umaestratégia das mais importantes para a construçãode um país socialmente justo.

Nesse sentido, o SUS necessário, para que te-nhamos uma sociedade mais justa, está definidonos seus princípios legais. Por sua vez, o SUS possí-vel hoje é aquele que se encontra no funcionamentocotidiano dos serviços de saúde. Apesar dos signifi-cativos avanços desde o início dos anos noventa, oSUS possível ainda está longe do SUS necessário.

As estratégias para aproximá-los são eminen-temente políticas. Têm a ver com a luta pelo poderentre, de um lado, os beneficiários do statu quo e, deoutro, aqueles que podem melhorar suas condi-ções de vida com o funcionamento efetivo do SUS.

Na realidade brasileira, há uma maioria de pes-soas pobres que depende do SUS para ter acessoaos serviços de saúde e, portanto, ao menos emtese, se interessa pela efetivação completa do seuideário.

Há, em oposição à maioria, grupos que aufe-rem benefícios com as dificuldades do SUS: mui-tos dos que têm negócios no setor privado da saú-de, inclusive os que vendem insumos para serviçosde saúde, e aqueles que se opõem a maiores inves-timentos públicos - em saúde ou em qualquer área- que representem um risco de menor remunera-ção do capital financeiro.

Pode-se ainda identificar um terceiro contin-gente de pessoas com níveis de renda alto ou mé-dio que, tendo resolvido sem o SUS parte dos seusproblemas de acesso aos serviços de saúde, não semobilizam pela sua melhoria.

A luta política, como é de sua natureza, se de-senrola nos mais diversos planos da vida social.No caso da saúde, as diferentes propostas de or-ganização da atenção são objetos de disputa nosplanos ideológico, econômico e institucional.

No plano institucional, a gestão de organiza-ções públicas de saúde é uma relevante arena dedisputa entre os defensores e opositores do SUS. Enão poderia ser de outro modo: as instituições desaúde representam espaços de exercício de poder.

Para refletir sobre estratégias de gestão queaproximem o SUS possível do SUS necessário,deve-se, portanto, em primeiro lugar, compreen-der a implantação do SUS como uma luta política.

Em segundo lugar, é útil adotar um conceitoamplo de gestão, pois é abrangente o escopo doSUS e, por conseguinte, das atividades do gestorda saúde. Pode-se distinguir, seguindo Garcia1, umamacrogestão, referida às ações de formulação depolíticas; uma mesogestão, relacionada às ativida-des de condução de uma organização; e uma mi-crogestão, atinente à coordenação dos processosde trabalho desenvolvidos em uma organização.

Por último, deve-se considerar os três níveis degestão nas diferentes dimensões da administraçãoda saúde. As dimensões correspondem a atividades-fins que o gestor é obrigado a desenvolver para cum-prir seu papel de dirigente. A partir de nossa experi-ência prática, classificamos as dimensões em quatrogrupos, relativos a quatro objetivos de gestão:

1) Sustentação social do projeto político do SUS;2) Viabilização institucional do projeto político;3) Fortalecimento da condução técnica da or-

ganização de saúde;4) Garantia da coordenação administrativa da

organização.

A dimensão sociopolítica

A dimensão sociopolítica contempla as ações vol-tadas para obter o apoio da população às políticasdo SUS. Se, em tese, a maioria da população tendea apoiar a efetivação do SUS, na prática é precisoque as pessoas percebam os benefícios que o SUStraz para que se mobilizem em sua defesa.

É certo que houve, nos últimos dezessete anos,uma expansão significativa de serviços. Contudo,persistem dificuldades de acesso motivadas pelabaixa oferta, assim como há problemas de quali-dade técnica. Por isso, a estratégia fundamental paraaproximar o SUS possível do SUS necessário, con-quistando o apoio da população, é expandir emelhorar a qualidade dos serviços de saúde.

Outra importante estratégia se refere à partici-pação popular. Sendo o SUS um projeto democra-tizante, o gestor não pode negligenciar as ações quevisam ao fortalecimento da participação de usuári-os, trabalhadores da saúde e prestadores de servi-ços na definição e no acompanhamento das políti-cas de saúde. A abertura de canais institucionais departicipação permite que os interessados no suces-so do SUS influenciem as decisões governamentais.

Para viabilizar essas estratégias, ações nos trêsníveis de gestão são necessárias.

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No nível macro, é preciso tomar, de forma ine-quívoca, a decisão de alocar recursos suficientespara a expansão e a qualificação dos serviços epara apoiar a participação.

Na nossa experiência, optamos por expandir equalificar os serviços em duas frentes: a atençãobásica, através do Programa de Saúde da Família(PSF), e a atenção às urgências, a partir da implan-tação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgên-cia (Samu). Asseguramos recursos da ordem deR$ 60 milhões (cerca de 25% do orçamento anualda Secretaria Municipal da Saúde - SMS) para oPSF, prevendo dobrar o número de equipes só noprimeiro ano de gestão. Para o Samu, foram ga-rantidos cerca de 24 milhões (10% do orçamento).No que concerne à participação, foram previstosrecursos suficientes para a implantação de Conse-lhos Locais em todas as Unidades de Saúde, para arealização das Conferências de Saúde e para a ca-pacitação de conselheiros.

No nível meso, é preciso comandar os diversossetores da instituição – áreas técnicas, setor admi-nistrativo, setor financeiro, etc. – para executaremas ações correspondentes à decisão de expandir emelhorar os serviços. No caso da participaçãopopular, a organização como um todo deve incor-porá-la como uma diretriz permanente, o que podeexigir a criação de instâncias internas específicaspara apoiar a participação.

Na prática, implantamos duas forças-tarefa,diretamente subordinadas ao Gabinete do Secre-tário, com a participação de técnicos da Coorde-nação de Atenção e Promoção da Saúde, da Coor-denação Administrativa e da Coordenação de De-senvolvimento de Recursos Humanos, para con-duzir as atividades relativas à expansão do PSF e àimplantação do Samu. Criamos também uma As-sessoria Especial de Gestão Participativa, que seincumbiu de coordenar o processo de apoio à par-ticipação popular.

No nível micro, o gestor tem que desencadear eacompanhar os processos de trabalho referentes àsações de expansão e melhoria dos serviços: o plane-jamento e a programação, a elaboração de normase rotinas técnicas, a contratação de empresas defornecedores de materiais, a alocação e capacitaçãodos trabalhadores e a dotação de recursos financei-ros. O fortalecimento da participação, por sua vez,requer que os vários setores da instituição apren-dam a contemplá-la nos seus processos de traba-lho. Por exemplo, o setor de pessoal tem que funci-onar rotineiramente com a mesa permanente denegociação com os trabalhadores da saúde.

Na nossa rotina, as atividades relativas à ex-pansão e qualificação dos serviços de saúde eram

objetos permanentes de cobrança e prestação decontas. O processo de implantação da mesa denegociação foi desencadeado no início da gestão esuscitou muito debate, tanto dentro da prefeitura(em particular, com a Secretaria Municipal da Ad-ministração), quanto com os sindicatos dos tra-balhadores. Dois anos depois, a mesa foi formal-mente implantada.

Todas essas medidas produziram resultados po-sitivos no que diz respeito ao fortalecimento da par-ticipação popular: instalou-se um novo ConselhoMunicipal de Saúde, muito mais ativo, organiza-ram-se muitos conselhos locais, realizaram-se vári-as conferências, capacitaram-se os conselheiros.

No que se refere à expansão e melhoria dosserviços, a implantação do Samu foi um êxito. Oserviço foi reconhecido pela população como amaior realização do governo municipal. No casodo PSF, no entanto, os avanços obtidos, no pri-meiro ano de gestão, foram progressivamente re-vertidos, a partir do ano seguinte, pela irregulari-dade que se instalou nos repasses dos recursos fi-nanceiros da Secretaria Municipal da Fazenda paraa SMS.

A dimensão institucional

Pela nossa vivência, podemos dizer que o gestor éobrigado a dedicar bastante tempo e energia àsrelações da organização sanitária com outros ór-gãos. O seu desafio é torná-las úteis ao projeto deconsolidação do SUS universal.

A estratégia de gestão mais importante, nessadimensão, é, a partir da identificação dos interes-ses comuns, distintos e conflitantes existentes en-tre as instituições, fortalecer as relações com osaliados e neutralizar os adversários.

No nível da macrogestão, essa estratégia exigeuma análise apurada dos interesses de cada insti-tuição. No nível meso, a organização deve adotarprocedimentos que fortaleçam as alianças, cola-borando com as instituições que têm interessescomuns. No nível micro, o gestor tem que fazeradaptações nos processos de trabalho, visando aatender às necessidades postas pelas relações inte-rinstitucionais.

Alguns exemplos ajudam a compreender asnuances da estratégia de alianças institucionais ca-pazes de contribuir para aproximar o SUS real doSUS necessário.

No que concerne às instâncias do setor – Mi-nistério e Secretarias da Saúde –, procuramos esta-belecer relações cooperativas. Pela própria configu-ração do SUS, o alcance das metas de saúde depen-

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de da conjunção de esforços das três esferas de go-verno. Se o gestor adota uma abordagem baseadana boa técnica sanitária, a cooperação tem maischances de sucesso. Ressalte-se que as opções polí-tico-partidárias dos gestores influenciam o tipo derelacionamento que se estabelece. A nossa afinida-de política com a direção do Ministério da Saúde sereverteu em forte apoio do nível federal à SMS.Mesmo com o gestor estadual, de outra agremia-ção partidária, foi possível estabelecer relações decolaboração, a partir da ênfase em questões técni-cas.

As relações com o Legislativo variam muito. Seos apoiadores são maioria, a situação é mais tran-qüila. Mesmo uma oposição moderada pode aju-dar o gestor, alertando-o, com suas críticas, paraos pontos fracos da organização. No nosso caso,enfrentamos uma oposição violenta. Em um pri-meiro momento, respaldados pelo prefeito, conse-guimos estabelecer um diálogo construtivo com osvereadores. Posteriormente, por uma série de fato-res, a violência oposicionista intensificou-se, che-gando a prejudicar o desempenho da organização,ao impor uma agenda estranha aos objetivos dagestão. Persistimos no diálogo, designando inclusi-ve um assessor parlamentar. Os resultados forammitigados, com vitórias e derrotas pontuais.

As relações com o Poder Judiciário e o Ministé-rio Público (MP) têm destaque na agenda dos ges-tores da saúde. Uma legislação generosa como a doSUS oferece larga margem de atuação àqueles quezelam pela aplicação da lei. A rigor, enquanto o SUSnão for realmente universal, integral e eqüitativo,juízes e promotores poderão cobrar sempre maisações. Até onde não ferem o princípio da razoabili-dade, tais cobranças ajudam o gestor. Procuramosconstruir relações de cooperação com as institui-ções judiciais. Para isso, tentamos dar transparên-cia às ações da organização, instruindo detalhada-mente os processos administrativos. Buscamosatender a todas as solicitações oriundas desses ór-gãos. E solicitamos, muitas vezes, orientações ou oacompanhamento de processos por parte de técni-cos da Justiça ou membros do MP. O resultado foibastante positivo: instaurou-se, de fato, uma rela-ção de colaboração, com ganhos para todos.

O relacionamento com a mídia é bastante com-plexo. Em primeiro lugar, os órgãos de comunica-ção são empresas com interesses comerciais. Emsegundo, têm posições ideológicas ou partidáriasmais ou menos explícitas. Em terceiro, trabalhamcom um objeto – a informação – que requer umtratamento específico para atrair a atenção do pú-blico e dos anunciantes. Por diversas razões, ostemas da saúde interessam à mídia. Isso pode re-

presentar uma oportunidade ou uma ameaça parao gestor. Será uma ameaça, se o gestor menospre-zar o papel da comunicação de massa. Para forta-lecer o SUS, é preciso formular uma política decomunicação eficiente, que contemple os aspectoscomerciais e políticos, tanto quanto os aspectospropriamente jornalísticos. A nossa assessoria deimprensa foi um dos setores da Secretaria que maistrabalhou. Conscientes da relevância da comuni-cação, enfrentamos uma mídia, em geral, oposici-onista e viciada em esquemas clientelistas. Fomosalvos de muitas críticas, freqüentemente baseadasem distorções de fatos ou mesmo em puras inven-ções, mas conseguimos muitas vezes comunicarao público a nossa posição.

As relações intragovernamentais também exi-gem atenção. Há sempre a necessidade de articula-ção com os mais variados órgãos da administra-ção pública. Os processos de elaboração e de exe-cução do orçamento governamental são os exem-plos mais claros disso.

Na nossa experiência, a colaboração com osdemais órgãos de governo enfrentou algumas di-ficuldades. A maior delas decorreu da escassez derecursos frente às demandas por serviços públi-cos. Em conseqüência, a definição das prioridadesfoi sempre motivo de conflitos. Uma outra dificul-dade resultou das diferenças nas rotinas de funcio-namento dos vários órgãos, o que gerava obstá-culos operacionais à cooperação.

Para favorecer a colaboração, tentamos pro-blematizar junto ao prefeito e aos colegas a ques-tão da necessária articulação. Adotamos rotinasorganizacionais que envolviam o intercâmbio deinformações com outros órgãos. E orientamosnossos subordinados a adotarem posturas cola-borativas com os colegas das outras secretarias.Com isso, foi possível manter relações colaborati-vas com muitos setores da administração munici-pal ou, ao menos, gerir os conflitos sem desgastesdesnecessários.

A dimensão técnico-sanitária

A dimensão técnico-sanitária relaciona-se ao ob-jetivo de conduzir a organização de acordo com ospreceitos técnicos da Saúde Coletiva. Na prática,refere-se às ações de identificação e priorização deproblemas de saúde e de proposição e aplicação desoluções. Trata-se da dimensão que confere espe-cificidade à gestão da saúde.

O setor da saúde apresenta particularidadesque tornam complexa a tarefa de administrá-lo2.Em primeiro lugar, a saúde constitui um valor em

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si mesmo. Em segundo, lida com a diferença entrea ética médica, que orienta a relação singular mé-dico-paciente, e a ética administrativa, que rege asdecisões administrativas que visam a coletivos depessoas. Em terceiro lugar, os problemas de saúdesão multidimensionais, envolvendo aspectos bio-lógicos, sociais, econômicos, culturais, tecnológi-cos, etc. E em quarto, o risco da ocorrência de situ-ações de emergência está sempre presente.

A estratégia de fortalecimento da racionalida-de técnico-sanitária, para aproximar o SUS possí-vel do SUS necessário, se desdobra em várias ações.

No nível da macrogestão, o desafio é formularpolíticas e programas de saúde consistentes. A sele-ção de problemas e respostas é influenciada porfatores de ordem política geral, mas caso se preten-da favorecer a racionalidade técnico-sanitária, nãose pode negligenciar o papel das competências pró-prias dos sanitaristas, (adotamos a seguinte defini-ção de sanitarista, a partir de conceitos elaboradospor Mendes-Gonçalves3, sem limitá-la, todavia, aosmédicos: são aqueles trabalhadores, de formaçãouniversitária, cujo trabalho propriamente dito con-siste em controlar o processo de trabalho em saúdede todos os trabalhadores da saúde).

Políticas de saúde são respostas, produzidassocialmente e conduzidas pelo aparelho estatal, àsnecessidades de saúde de toda a população, aindaque não sejam iguais para todos4. O conceito depolítica de saúde, na sua acepção mais técnica, re-mete à idéia de modelo de atenção à saúde. Pormodelo de atenção, entende-se a forma de combi-nação das tecnologias (conhecimentos, técnicas,equipamentos) disponíveis para atender às deman-das ou necessidades de saúde5. Se, atualmente, épredominante um modelo biologicista, curativistae individualista, o SUS necessário só se materiali-zará em um modelo de atenção integral, em quesejam oferecidas – considerando-se as necessida-des de saúde – tanto as ações curativas e individu-ais quanto as ações promocionais e preventivas.As díades problema-resposta priorizadas devem,nesse sentido, integrar as ações de promoção e asde assistência.

Na nossa prática, o processo de formulação depolíticas foi duplamente interessante: de um lado,pela mobilização dos trabalhadores da saúde e dasrepresentações comunitárias; de outro, pelo apor-te técnico fornecido pelos sanitaristas da SMS, como apoio de consultorias externas. Assim, consegui-mos dar consistência às políticas.

No nível da mesogestão, a dimensão técnico-sanitária se realiza nas atividades de planejamentoe avaliação. Os planos plurianuais de saúde, asprogramações e os relatórios de gestão são os ins-

trumentos dessas atividades. Esses instrumentossão valiosos como produtos, ou seja, como docu-mentos que dão conhecimento público das açõesde saúde e servem de guias para a prática dos mem-bros da organização, mas são também importan-tes como expressão de um processo que envolvetrabalhadores e usuários na proposição das açõesde saúde.

As organizações públicas de saúde têm peculi-aridades que dificultam adoção de uma racionali-dade técnica. Em primeiro lugar, sofrem influênciado contexto político, às vezes contrário às concep-ções do SUS legal. Em segundo, a capacidade dedecisão do dirigente é limitada por autoridadesexternas. Por fim, são obrigadas a seguir normasdefinidas por outras instâncias ou organizações.

Diante dessas peculiaridades, para incorporaras ações programadas à rotina organizacional,valorizamos as atividades de planejamento e avali-ação e adotamos o plano e a programação comoguias das práticas da organização, utilizando-oscomo instrumentos de acompanhamento das açõesde saúde, tanto através de seminários específicos,quanto na rotina administrativa.

No nível da microgestão, a dimensão técnico-sanitária se apóia nos processos de trabalho dossanitaristas. A nossa principal tarefa, como gestor,foi a de assegurar aos sanitaristas os meios neces-sários à execução de seu trabalho, o que incluiu aautorização para circular pelos diversos setores eacompanhar a atuação de todos os colaboradoresda SMS.

Dessa forma, várias políticas e programas fo-ram elaborados e bem-sucedidos: o controle daraiva e da tuberculose, a humanização e o acolhi-mento, o atendimento às urgências, a saúde dapopulação negra. Houve avanços também nas áre-as de saúde mental e saúde bucal.

O processo de habilitação do município na ges-tão plena do sistema de saúde foi conduzido comhabilidade e fortaleceu as atividades da regulação,com uma melhor organização do acesso aos servi-ços especializados e um maior controle sobre osprestadores de serviços.

Por outro lado, a política de expansão do PSF,após certo êxito inicial, fracassou. Certamente, pe-las razões já mencionadas das dificuldades finan-ceiras e não por problemas da política em si.

A dimensão administrativa

A dimensão administrativa senso estrito refere-seao objetivo de garantir a coordenação da organi-zação. Concretamente, reúne as ações de mobili-

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zação e de uso eficiente dos recursos humanos,financeiros e materiais.

A gestão do trabalho em saúde engloba desde aformulação das políticas de pessoal até as rotinasde trabalho dos funcionários do “setor de recur-sos humanos”, passando pela estrutura de pessoalda organização.

A força de trabalho em saúde representa umnó crítico para a gestão do SUS. Não há uma polí-tica de pessoal articulada com as políticas de saú-de. São insuficientes a quantidade e a qualificaçãode profissionais na rede pública. Em uma mesmaorganização, coexistem diferentes jornadas, salári-os e vínculos de trabalho. Ademais, as condiçõesde trabalho são, em geral, precárias. O resultado éa desmotivação e o descompromisso de muitostrabalhadores para com o SUS.

Aqui, a estratégia central para aproximar o SUSpossível do SUS necessário é formular uma políti-ca de gestão do trabalho coerente com as políticasde saúde.

No nível macro, é preciso articular todos osinteressados na questão para discutir uma políticade pessoal, identificando o perfil da mão-de-obranecessária, em quantidade e qualidade, para alcan-çar os objetivos das políticas de saúde.

Deve-se ter em conta que os interesses envolvi-dos são numerosos, às vezes contraditórios, e exi-gem um complexo processo de negociação. Con-duzir o processo de elaboração da política de for-ma transparente é a melhor tática, pois ajuda a es-vaziar as pressões a favor de interesses ilegítimos.

Na nossa experiência, desencadeamos um pro-cesso bastante participativo de discussão sobre apolítica de pessoal, envolvendo os conselheiros desaúde, os sindicatos dos trabalhadores e as secre-tarias sistêmicas da prefeitura municipal – Admi-nistração, Fazenda e Governo.

No nível da mesogestão, é mister ampliar e qua-lificar o quadro de pessoal, assim como implantarplanos de cargos, carreiras e vencimentos. Além dis-so, todo esforço deve ser feito para oferecer condi-ções adequadas de trabalho, com salários compa-tíveis com a realidade do mercado e com um ambi-ente e instrumentos de trabalho apropriados.

Convocamos mais de 500 profissionais con-cursados, de diversas categorias, e intensificamosas atividades de capacitação. Elaboramos ainda umnovo plano de cargos, carreiras e vencimentos. Noprimeiro ano da gestão, convencemos o prefeito aconceder um aumento de 50% nos salários de to-dos os colaboradores da SMS, sendo 35% a títulode incentivo ao desempenho.

No nível micro, o gestor deve ter mecanismosde acompanhamento do trabalho profissional. As

ações de saúde, para serem efetivas, precisam estarlastreadas em competências que são inerentes àsatividades dos profissionais. Nesse sentido, favore-cer a autonomia profissional é fundamental. Noentanto, sem o devido acompanhamento, não hácomo assegurar a coerência entre essas atividades eos objetivos da política de saúde ou da organiza-ção6. Para acompanhar o trabalho profissional,implantamos um sistema de avaliação, que consi-derava tanto o desempenho individual, quanto ocoletivo (da Unidade de Saúde). Os critérios de ava-liação remetiam à implantação da política de hu-manização e ao fortalecimento do programa decontrole da tuberculose. E o resultado da avaliaçãocondicionava o recebimento do incentivo salarial.

Enfim, podemos dizer que iniciamos uma po-lítica de valorização dos trabalhadores da saúde.Infelizmente, a implantação do plano de cargos e arealização do concurso foram barradas pelas difi-culdades financeiras da prefeitura, decorrentes, emparte, das opções políticas do chefe do governo.

Quanto à gestão financeira, nesse momento, aprincipal estratégia é assegurar um fluxo regularde recursos para a saúde nos patamares mínimosestabelecidos pela emenda constitucional nº 29.

No nível da macrogestão, a ação mais impor-tante é lutar pela regulamentação em lei da EC-29.O SUS precisa, no curtíssimo prazo, de um au-mento de recursos financeiros. Como membro doConselho Nacional de Secretarias Municipais deSaúde (Conasems), envolvemo-nos diretamenteno processo de mobilização política junto ao Con-gresso Nacional pela aprovação do projeto de lei01/2003, que regulamentava a EC-29.

No nível meso, a organização de saúde deve terautonomia para gerir os recursos. Trata-se, evi-dentemente, de uma disputa por poder, dentro daestrutura do governo. A transferência automáticade recursos para a saúde significa uma redução damargem de liberdade do gestor financeiro. Toda-via, não se pode desrespeitar a determinação polí-tica de priorizar a saúde, expressa na EC-29, mes-mo que implique a limitação do poder de decisãodos gestores financeiros – e dos chefes do Executi-vo – quanto às prioridades de governo.

Na prática, tivemos aqui a nossa maior difi-culdade. A Secretaria Municipal da Fazenda (Sefaz)nunca aceitou realizar repasses automáticos parao Fundo Municipal da Saúde e conseguiu fazer pre-valecer seu ponto de vista junto ao prefeito. Pior:quando as dificuldades financeiras se acentuaram,com as despesas correntes superando as receitas, aSefaz não hesitou em atrasar os pagamentos dascontas da Saúde.

No nível da microgestão, o desafio é conseguir

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que a área financeiro-administrativa e a área técni-ca trabalhem de maneira coordenada. Alcançar umnível ótimo de coordenação não é simples, pois aslógicas de trabalho das duas áreas são distintas.Como tática, vale aproximar os técnicos para queentendam os trabalhos uns dos outros. Uma pro-gramação feita de forma participativa e a existên-cia de mecanismos coletivos de acompanhamentodas ações também ajudam. Efetivamente, a nossadiretriz nesse sentido foi cumprida e houve umaverdadeira aproximação entre as duas áreas. Tal-vez, paradoxalmente, as dificuldades financeirastenham contribuído para isso.

A gestão de recursos materiais, por sua vez,envolve as atividades relacionadas à aquisição, àconservação e ao uso apropriado de imóveis, equi-pamentos, veículos e insumos.

Aqui, a estratégia geral é valorizar o conceito deeficiência dentro da organização.

No nível macro, é preciso formular uma políti-ca de gestão de materiais. O grau de centralizaçãodos processos de aquisição e de manutenção e aopção pela organização própria ou pela terceiriza-ção dos serviços de apoio são decisões fundamen-tais a serem tomadas com base em consideraçõesfinanceiras e em estilos de gestão.

No caso do nosso município, encontramos umalto grau de centralização, em mãos da Secretariada Administração, e uma elevada proporção deserviços terceirizados. Na busca de maior autono-mia para a SMS, conseguimos descentralizar a ges-tão de recursos típicos da saúde, como os medica-mentos. Quanto à terceirização, houve uma políti-ca geral da prefeitura de reforçar a administraçãodireta, através da contratação de pessoal concur-sado (houve também a criação da guarda munici-pal, mas que não chegou a ser implantada). Fo-ram iniciativas que, no caso concreto, melhora-ram a eficiência da gestão municipal.

No nível da mesogestão, a principal tarefa dogestor refere-se à definição dos fluxos dos proces-sos administrativos entre os vários setores da ins-tituição. A importância de uma definição corretados fluxos não é pequena: o grau de fluidez dosprocessos é determinante do nível de eficiência daorganização.

Discutimos bastante a questão dos fluxos, atédecidimo-nos por uma alternativa. Não consegui-mos, no entanto, obter o consenso suficiente paraque todos aderissem ao modelo escolhido. Ao con-trário, estabeleceu-se uma disputa interna pelocontrole dos processos administrativos. As tenta-tivas de resolução do conflito, através da definiçãoprecisa de atribuições para cada setor, não forambem sucedidas. Talvez medidas mais profundas,

com a substituição de assessores, devessem ter sidotomadas. O fato é que a eficiência da organizaçãofoi comprometida.

No nível micro, a gestão de materiais exige aarticulação dos processos de trabalho da área ad-ministrativa com aqueles das áreas técnicas, hajavista a dependência mútua entre ambas. Um pro-blema comum é a falta de práticas regulares deplanejamento e avaliação das atividades adminis-trativas típicas. Torná-las regulares é, portanto, umatarefa do gestor.

A nossa área administrativa aproximou-se dasáreas técnicas e adotou, concretamente, práticasde planejamento e avaliação de suas atividades pró-prias. Com isso, conseguiu melhorar seu desem-penho. Entretanto, os conflitos acima referidos e oacúmulo progressivo de dificuldades financeirasacabaram por impor ao setor uma rotina de en-frentamento de crises que, em certa medida, fezretroceder a melhoria alcançada.

Comentários finais

A implantação do SUS universal, integral e eqüita-tivo depende de mudanças sociais que extrapolamo espaço de governabilidade dos gestores da saú-de. Isso não diminui, no entanto, a importânciado papel desses agentes.

De fato, a gestão das organizações de saúde fazparte da luta política pelo SUS. Nesse sentido, asestratégias de gestão, adotadas por partidários doSUS, podem ser mais ou menos facilitadoras doseu avanço.

A partir de uma experiência prática, vivenciadapor alguém com formação especializada em SaúdeColetiva, durante dois anos e meio, em uma Secre-taria da Saúde de um município de grande porte,foram apresentadas estratégias de gestão que visa-vam contribuir para a efetivação de um sistema desaúde universal.

Como se viu, houve êxitos e fracassos, avançose recuos. Não se tratou, no entanto, de uma avali-ação sistemática da nossa gestão. Tratou-se ape-nas de uma tentativa de ressaltar a importância e acomplexidade da formulação de estratégias de ges-tão das organizações públicas de saúde, na lutapela efetivação do SUS.

Esperamos que esta apresentação possa con-tribuir para o debate sobre a gestão institucionalda saúde, tão necessário quanto o debate nos pla-nos ideológico ou econômico.

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Referências

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Artigo apresentado em 24/09/2007Aprovado em 03/12/2007

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