O Remédio via Justiça (AIDS) - MS

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O Remédio via Justiça Um estudo sobre o acesso a novos medicamentos e exames em HIV/Aids no Brasil por meio de ações judiciais

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  • O Remdio via Justia Um estudo sobre o acesso a novos medicamentos

    e exames em HIV/Aids no Brasil por meio de aes judiciais

  • Ministrio da SadeSecretaria de Vigilncia em SadePrograma Nacional de DST e Aids

    O Remdio via JustiaUm estudo sobre o acesso a novos medicamentos

    e exames em HIV/Aids no Brasil por meio de aes judiciais

    Srie Legislao n 3

    Mrio Scheffer (Coordenador)Andrea Lazzarini Salazar

    Karina Bozola Grou

    Braslia, DF2005

  • 2005. Ministrio da Sade permitida a reproduo parcial ou total desta obra,

    desde que citada a fonte.Tiragem: 4.000 exemplares

    PRESIDENTE DA REPBLICALuiz Incio Lula da Silva

    MINISTRO DE ESTADO DA SADEHumberto Costa

    SECRETRIO DE VIGILNCIA EM SADEJarbas Barbosa

    Produo, distribuio e informaesMINISTRIO DA SADESecretaria de Vigilncia em SadePrograma Nacional de DST e Aids

    Av. W3 Norte, SEPN 511, Bloco CCEP 70750-543 Braslia, DFDisque Sade / Pergunte aids: 0800 61 1997Home page: www.aids.gov.br

    Srie Legislao n 3 PN-DST/AIDS

    Publicao financiada com recursos do Projeto BRA 914/11.01

    Diretor do Programa Nacional de DST e AidsPedro Chequer

    Diretores-adjuntos do Programa Nacional de DST e AidsRaldo BonifcioRicardo Pio Marins

    Assessor de Comunicao/PN-DST/AIDSAlexandre Magno de A. Amorim

    EditorDario Noleto

    Editoras-assistentesNgila Paiva e Telma Sousa

    Projeto Grfico, capa e diagramaoAlexsandro de Brito Almeida

    FICHA CATALOGRFICA

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    Brasil. Ministrio da Sade. Secretaria de Vigilncia em Sade. Programa Nacional de DST e Aids. O Remdio via Justia: Um estudo sobre o acesso a novos medicamentos e exames em HIV/aids no Brasil por meio de aes judiciais / Ministrio da Sade, Secretaria de Vigilncia em Sade, Programa Nacional de DST e Aids. Braslia: Ministrio da Sade. 2005.

    136p. Srie Legislao n.o 3

    1.Direitos Humanos. 2. Sndrome da Imunodeficincia Adquirida. 3. Medicamentos anti-retrovirais. 4. SUS.

    I. Brasil. Ministrio da Sade. II. Secretaria de Vigilncia em Sade. Programa Nacional de DST e Aids. III. Ttulo. IV. Srie.

  • Apresentao

    com grande satisfao que apresentamos a publicao O Remdio Via Justia, resultado de um estudo indito e minucioso sobre as aes judiciais relacionadas ao fornecimento de medicamentos e exames em HIV e aids no Brasil.

    Alm de analisar o comportamento do Poder Judicirio e de outros atores envolvidos no acesso a novos medicamentos e a novas tecnologias, o estudo traa a complexa tramitao da incorporao dos anti-retrovirais na rede pblica de sade, ressaltando as variantes do contexto em que se inserem as aes judiciais.

    O Programa Nacional de DST e Aids, ao mesmo tempo em que reafirma o compromisso deste governo de garantir o acesso universal ao tratamento da aids no Brasil, manifesta, com esta publicao, sua preocupao quanto necessidade de melhor entendimento da dinmica e do impacto das aes judiciais que pleiteiam novos medicamentos e exames.

    incontestvel o direito dos cidados em recorrer Justia e tambm irrefutvel a fundamentao jurdica das aes e decises, calcadas na garantia do direito sade e vida. No entanto, preciso compreender para melhor intervir em todos os fatores que tm contribudo para o crescente nmero de aes judiciais.

    Neste sentido o presente trabalho fundamental, pois aponta as eventuais falhas do poder pblico que demora na incorporao dos novos medicamentos, mas tambm chama a ateno para a possvel influncia de outros fatores, a exemplo do marketing da indstria farmacutica que investe no incentivo a prescries mdicas capazes de gerar aes judiciais.

    Instrumento de exerccio de cidadania e resultado da mobilizao da sociedade, especialmente das entidades de defesa dos direitos das pessoas que vivem com HIV e aids, as aes judiciais revelam ainda as deficincias da administrao pblica e as imbricadas relaes inerentes a uma fatia do mercado farmacutico altamente rentvel e competitivo, que inclui os medicamentos anti-Aids.

    A partir das concluses deste estudo, o Programa Nacional de DST e Aids ter elementos para aperfeioar ainda mais os processos de incorporao de novos medicamentos e exames no Sistema nico de Sade. Ao mesmo tempo em que assume esta tarefa, prope a todos os envolvidos - gestores, tcnicos, comunidade mdica, operadores do direito, ONG, indstria farmacutica e Poder Judicirio a uma reflexo sobre quais devem ser os melhores instrumentos para a garantia do acesso, a todos os cidados que vivem com HIV e aids, aos melhores diagnsticos e tratamentos disponveis, um dos compromissos prioritrios do Programa Nacional de DST e Aids.

    Pedro ChequerDiretor do Programa Nacional de DST e Aids

  • Sumrio

    Introduo ............................................................................................................................. 9

    Metodologia ........................................................................................................................ 13

    I A incorporao dos novos medicamentos no Brasil .................................................... 15

    Ii O caminho at o Sistema nico de Sade .................................................................. 39

    Iii O marketing da indstria farmacutica ..................................................................... 61

    Iv Direito sade das pessoas vivendo com HIV/aids no Brasil .................................. 81

    V O comportamento da justia ....................................................................................... 99

    Concluses e recomendaes ........................................................................................... 127

    Referncias bibliogrficas ................................................................................................ 131

    Agradecimentos ................................................................................................................ 135

    Elaborao ......................................................................................................................... 136

  • 9Introduo

    A sade como pressuposto de vida digna, sempre esteve no palco das relaes sociais. A conscincia de que a sade essencial at mesmo para o exerccio de outros direitos trouxe a necessidade de sua regulao.

    Praticamente todos os pases do mundo adotaram, em seus diplomas legais, a sade como direito dos cidados, em geral detalhando as aes, servios e responsabilidades.

    No Brasil, um dos maiores desaos manter a coerncia entre o direito em sade e arealidade, dirimir os conitos gerados pela discrepncia entre os diplomas legais e oque de fato cumprido.

    Nesse sentido, a sociedade ora clama por mudanas e inovaes na legislao, com o objetivo de ver reetido no texto da lei as suas necessidades, ora reivindica e exige quea lei conquistada saia do papel e seja aplicada na prtica.

    A sociedade civil, em especial as organizaes no-governamentais de luta contra a aids, os prossionais de sade e governos trilharam rduo caminho at a conquista delegislao adequada de proteo aos direitos das pessoas vivendo com HIV/aids. No entanto, a luta para que essas normas sejam respeitadas ainda travada diariamente.

    O programa brasileiro de combate aids, que tem sua imagem exemplar construda a partir da poltica de distribuio universal dos medicamentos anti-retrovirais, ainda convive com inmeras aes judiciais que pleiteiam a garantia deste acesso.

    O presente estudo O Remdio via Justia trata justamente da luta da sociedade brasileira para ver garantido seu direito sade, mais especicamente o direito dos portadoresde HIV e doentes de aids ao acesso universal a medicamentos e exames diagnsticos, exercido pela via judicial.

    Surge aqui o primeiro questionamento: por que necessrio reivindicar os medicamentos e exames por meio de aes judiciais?

    Este trabalho relaciona esforos que vm sendo empregados para fazer com que o direito aos tratamentos anti-aids, j consagrado por textos legais - Constituio Federal, Lei Orgnica da Sade e leis especcas seja observado pelos rgos competentes e, porsua vez, exercido pelos cidados. Os esforos so reetidos aqui na atuao dos autoresde centenas de aes judiciais e dos seus benecirios em busca de tratamento paragarantir a sade e a vida. Mas quem so eles? Como se comportam nessa luta? Quais os instrumentos que utilizam?

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    As aes so movidas para reivindicar medicamentos que esto em falta na rede pblica e para solicitar medicamentos ou exames ainda no incorporados pelo Sistema nico de Sade.

    A fundamentao jurdica dessas aes est baseada na garantia do direito sade e vida, assegurado ampla e textualmente na legislao brasileira. Mas os mltiplos aspectos do contexto em que se inserem as aes devero ser igualmente considerados: a prpria evoluo da epidemia do HIV/aids, a mobilizao da sociedade, as conquistas legais especcas, a dinmica dos avanos mdico-cientcos, a velocidade das pesquisase descobertas, os aspectos administrativos e oramentrios da gesto governamental, o tempo que um medicamento novo leva para ser introduzido no SUS, bem como a disputa de mercado travada pela indstria farmacutica multinacional, entre outros.

    Nunca, em toda a histria, uma doena e suas conseqncias suscitaram tamanho investimento em novas tecnologias em to curto espao de tempo. Da noticao decasos de uma doena rara que atingia homossexuais, em 1981, a um dos mais graves e complexos problemas de sade pblica da atualidade, avanos signicativos foramregistrados, sobretudo nas reas de diagnstico e teraputica.

    Em pouco mais de 20 anos de existncia da aids, sabe-se quase tudo sobre o HIV: seu ciclo de replicao, sua diversidade e sua interao com as clulas. Da vieram os sosticados e caros anti-retrovirais. O tratamento da aids progrediu indiscutivelmente aps a introduo da combinao dessas drogas, dos exames marcadores da evoluo da infeco e dos medicamentos que permitem o controle das doenas oportunistas. Os benefcios compensaram os esforos desencadeados em todo o mundo no sentido de pesquisar novos frmacos e agentes antivirais, o uso de novas associaes teraputicas e o emprego mais racional dos princpios ativos j disponveis. Para a parcela mnima da populao mundial infectada pelo HIV que tem acesso aos medicamentos os brasileiros, inclusive , a aids hoje uma doena crnica, graas combinao das drogas potentes. O aumento da qualidade e de anos de vida dos pacientes assim como a economia de recursos para os cofres pblicos, so os impactos mais visveis da poltica de acesso universal.

    Mas apesar dos avanos, h limites e incertezas quanto aos medicamentos atuais, pois no so capazes de erradicar totalmente o vrus, as resistncias a eles so inevitveis e seus efeitos colaterais preocupam mdicos e pacientes.

    Em um pas como o Brasil, que mantm milhares de pacientes com HIV/aids em tratamento h muito tempo, sempre haver aqueles que, por necessidade de sade, situao clnica, resistncia ou intolerncia aos esquemas disponveis, demandaro a prescrio de novas drogas, recm lanadas no mercado.

    Isso leva a uma situao de dependncia e a uma busca frentica por novos medicamentos, lucro certo para a indstria, mas que asseguram a manuteno da sade e da vida das pessoas infectadas pelo HIV. As novas drogas geralmente mais potentes, mais fceis de tomar e com menos efeitos colaterais devero beneciar as pessoas HIV-positivasvirgens de tratamento e sero alternativas para aqueles que se tornaram resistentes ou intolerantes aos medicamentos atualmente disponveis.

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    No so poucos os dilemas suscitados pelos tribunais do pas. Por exemplo, devem ser fornecidos medicamentos ainda no padronizados pela rede pblica de sade? Como decidem os juzes sobre essa questo?

    Mas no apenas o compromisso com a vida e com a sade que move essa engrenagem. Pelo contrrio, h uma guerra de gigantes travada pelos laboratrios multinacionais, que visam o lucro e usam de todas as armas disponveis no mundo capitalista e globalizado para impor cada nova droga anti-aids num mercado altamente competitivo, promissor e em franca expanso, uma vez que a epidemia no pra de crescer.

    O mercado anual de medicamentos anti-HIV movimentou, em 2003, aproximadamente 6 bilhes de dlares, e poder atingir valores superiores a 8 bilhes de dlares at o ano de 2013 1 .

    Desde a aprovao do AZT, a primeira droga para o tratamento da aids, em 1987, at julho de 2004, o arsenal teraputico para enfrentar o HIV/aids inclua 18 anti-retrovirais liberados pelo FDA Food and Drug Administration. Com esses medicamentos possvel chegar a 1.333 combinaes entre eles, conhecidas como coquetis. Eles esto distribudos em cinco classes teraputicas, descritas a seguir, acompanhadas pelos nomes genricos das drogas: 1) inibidores da transcriptase reversa anlogos de nucleosdeos: zidovudina, didanosina, zalcitabina, estavudina, lamivudina, abacavir, emtricitabina e tenofovir; 2) inibidores da transcriptase reversa no anlogos de nucleosdeos: nevirapina, delavirdina e efavirenz; 3) inibidores da protease: saquinavir, ritonavir, indinavir, amprenavir, lopinavir e atazanavir; e 4) inibidores de entrada ou fuso: enfuvirtida.

    Esse mercado dever ser impulsionado pelo surgimento de novas classes teraputicas e aperfeioamento das classes j disponveis, o que far aumentar a cada dia as opes de tratamento, alm de novos exames marcadores da evoluo da infeco pelo HIV. As frustradas tentativas de descoberta, em curto prazo, de uma vacina contra a aids, seja preventiva ou teraputica, ressalvados os esforos em curso, apontam para um cenrio em que os medicamentos anti-retrovirais continuaro, por muito tempo, sendo imprescindveis.

    Sem a pretenso de esgotar o tema e chegar a respostas e concluses denitivas, esteestudo apresenta a seguir uma radiograa dos fatos, dos atores envolvidos, dos meiosutilizados para o exerccio do Direito, do comportamento do Poder Judicirio, dos motivos e das conseqncias das demandas judiciais que visam o fornecimento de medicamentos e exames.

    Espera-se, com isso, chamar a ateno sobre os caminhos que ainda precisam ser percorridos para a garantia da cidadania plena e da sade como um direito de todas as pessoas que vivem com HIV/aids no Brasil.

    1 Segundo o estudo Human Immunodeficienty Vrus, da Pharmacor, instituto de pesquisa e consultoria especializado em avaliaes de mercado na rea farmacutica. 2003

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    Metodologia

    O estudo O Remdio via Justia percorreu o caminho das aes judiciais que pleiteiam medicamentos e exames sobretudo anti-retrovirais para portadores do HIV e doentes de aids.

    Da coleta de informaes ao processamento e interpretao do material coletado, buscou-se responder questionamentos como o porqu da grande quantidade de aes; quais os impactos tanto para os cidados quanto para os gestores pblicos da sade; e, ao mesmo tempo, apontar possveis solues alternativas para minimizar os aspectos negativos.

    Para o captulo dedicado ao direito sade, foi pesquisada a legislao pertinente relativa ao direito sade em geral e sade dos portadores de HIV/aids, em especial o acesso gratuito a medicamentos. Tambm foi realizada pesquisa bibliogrca, comseleo de artigos e textos jurdicos para o aprofundamento da questo.

    A anlise das aes judiciais demandou uma ampla pesquisa de jurisprudncia junto aos principais tribunais do pas, selecionados de acordo com as regies mais afetadas pela epidemia, segundo dados do Programa Nacional de DST e Aids1. Mesmo sem ter acesso a todo o universo quantitativo de aes pois muitas das decises que versam sobre o tema correm em segredo de justia foi possvel obter amostra qualitativa bastante signicativa, que somou mais de 400 casos.

    Integraram a pesquisa: o Supremo Tribunal Federal - STF, o Superior Tribunal de Justia - STJ, os Tribunais Regionais Federais das 1., 2., 3., 4. e 5. regies 2 , e os Tribunais de Justia dos estados do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, de So Paulo, do Rio de Janeiro, do Cear e do Distrito Federal. Nas Cortes Superiores (STF e STJ), buscou-se a ntegra de todas as decises sobre medicamentos para portadores de HIV/aids. Dos demais Tribunais, a partir da leitura das ementas, foram coletadas as ntegras das decises que se destacaram.

    Os critrios considerados na anlise da jurisprudncia, bem como a metodologia de anlise das decises, esto detalhados em captulo especco.

    1 www.aids.gov.br

    2 O TRF1 abrange o Distrito Federal e os estados do Acre, Amazonas, Amap, Bahia, Gois, Maranho, Mato Grosso, Minas Gerais, Par, Piau, Rondnia, Roraima e Tocantins; o TRF2 atinge os estados do Rio de Janeiro e do Esprito Santo; o TRF3 abrange os estados de So Paulo e Mato Grosso do Sul; o TRF4 abrange os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paran; o TRF5 abrange os estados do Cear, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe e Paraba.

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    Foram essenciais a essa parte do trabalho visitas e entrevistas realizadas junto a organizaes no-governamentais que mantm assessoria e servios jurdicos e s coordenaes estaduais e municipais de DST/aids de So Paulo e do Rio de Janeiro, alm do Programa Nacional de DST e Aids.

    Tambm foi elaborado questionrio visando obter detalhes das aes judiciais estudadas, que foi remetido rede virtual de advogados e operadores de direito em HIV/aids que atuam junto sociedade civil, e que mantm grupo de discusso na Internet.

    Posteriormente, novas perguntas, especicamente sobre o cumprimento das decisesjudiciais pelo Poder Pblico, foram enviadas queles advogados que responderam ao primeiro questionamento.

    Com relao ao captulo sobre a incorporao dos novos medicamentos e exames e a histria da epidemia no Brasil, foi levantada a bibliograa sobre o tema, bem comoarquivos de ONGs e Programas de Aids, relatos orais de ativistas e prossionais desade, e matrias veiculadas em jornais de grande circulao, especialmente a Folha de S. Paulo, de 1983 a 2003.

    Para a elaborao do captulo que descreve e analisa o caminho dos novos medicamentos at o Sistema nico de Sade, foram consultados tcnicos e arquivos do FDA, do Programa Nacional de DST e Aids, da Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria Anvisa; e da Comisso Nacional de tica em Pesquisa Conep, do Conselho Nacional de Sade.

    Por m, o captulo que trata do marketing da indstria farmacutica voltado aosmedicamentos anti-retrovirais utilizou bibliograa internacional, face ao poucomaterial disponvel no Brasil sobre o tema, alm de matrias jornalsticas locais e anlise emprica de fatos e informaes relacionadas.

    O segredo de justia envolvido em parte das aes; a diculdade de visitar todas asassessorias jurdicas de ONGs e programas governamentais; a falta de resposta, por parte de vrias ONGs, aos questionrios enviados foram algumas das diculdades enfrentadasna elaborao do presente estudo. Esses limitadores, no entanto, no comprometeram o alcance de resultados altura das expectativas inicialmente traadas.

  • 1A incorporao dos

    novos medicamentos e exames no tratamento de

    HIV/aids no Brasil

    1 - O primeiro exame, o primeiro medicamento, a primeira ONG

    2 - Do contrabando e garrafadas s primeiras conquistas

    3 - Cai por terra a monoterapia

    4 - A chegada do coquetel, a revoluo no tratamento

    5 - As aes pioneiras e a lei do acesso universal no Brasil

    6 - As primeiras compras de medicamentos

    7 - O boom de aes judiciais

    8 - Quando a polmica ganhou a mdia

    9 - Os exames diagnsticos

    10 - O impacto positivo da terapia anti-retroviral

    11 - O futuro do tratamento e a continuidade das aes judiciais

    12 - Aes judiciais referentes a outras patologias

  • 17

    A incorporao dos novos medicamentos e exames no tratamento de HIV/AIDS no Brasil

    Para abordar a trajetria da incorporao dos exames diagnsticos e dos medicamentos para o tratamento da aids no Brasil necessrio resgatar parte da histria da epidemia no pas e no mundo.

    O desenvolvimento de medicamentos anti-aids e a conseqente presso e reivindicao de acesso dos pacientes s inovaes de tratamento tiveram incio na dcada de 80, que foi marcada pela descoberta do primeiro caso de aids, pela identicao do HIV, pelaaprovao do primeiro teste para detectar o vrus, e pela aprovao da primeira droga para tratar a doena o AZT.

    Nestes anos, surgiram tambm os primeiros medicamentos para tratar e prevenir as doenas oportunistas, bem como foram introduzidos o conceito e o mecanismo de acesso expandido para uso de uma terapia promissora antes mesmo de sua aprovao ocial. Ainda sem remdio ecaz disponvel, os pacientes viviam muito pouco apsdesenvolverem a doena e os servios de sade que atendiam aids no Brasil, alm de precrios, viviam lotados. Nesse perodo e at hoje as casas de apoio acolhiam os pacientes excludos da sociedade, a exemplo da Casa Brenda Lee, criada em 1984, que teve sua fundadora, a transexual Brenda Lee, assassinada em 1996.

    At a aprovao do AZT pelo FDA, em 1987, o Brasil e o mundo assistiram atnitos chegada e evoluo da epidemia de uma doena incurvel, sem tratamento e altamente letal. Os casos de pneumonia por Pneumocystis carinii e um cncer raro, o sarcoma de Kaposi, entre homossexuais masculinos, relatados em 1981 por mdicos em Los Angeles e Nova Iorque, nos Estados Unidos, logo foram batizados pela imprensa de cncer gay.

    Em seguida, a nova sndrome foi relacionada ao sangue e passou a ser identicadano s em homossexuais, mas em mulheres, homens heterossexuais usurios de drogas injetveis, hemoflicos, receptores de transfuso de sangue e recm-nascidos. Renomeada aids, foi tambm classicada como epidemia pelo CDC (Center for Disease Control and Prevention), dos EUA. Em 1982, 14 pases relataram casos da doena, inclusive o Brasil. Neste mesmo ano, o FDA recebeu o primeiro pedido para avaliar um tratamento para a doena.

    Quando duas equipes de pesquisadores, lideradas pelo Dr. Luc Montaigner, na Frana, e pelo Dr. Robert Gallo, nos EUA, isolaram um retrovrus, em seguida identicadocomo a causa da aids, j estavam conrmados 3.000 casos da doena nos EUA, com

  • O Remdio via JustiaMinistrio da Sade - SVS - Programa Nacional de DST/ Aids18

    cerca de 1.300 bitos. Chegou-se a instalar grande pnico no mundo quando se cogitou que a doena poderia ser transmitida pelo ar e utenslios domsticos, aps terem sido relatados casos de infeco em crianas.

    A aids ganhou a mdia no Brasil no dia 3 de junho de 1983 quando o jornal Folha de S. Paulo publicava matria com o ttulo Congresso debate doena comum entre homossexuais. Alguns dias depois, em 12 de junho, foi a vez do Jornal do Brasil: Brasil registra dois casos de cncer gay; enquanto o hoje extinto jornal Notcias Populares estampava na edio de 16 de junho a manchete Aids: doena de gays.

    Comea, ento, a surgir no pas o movimento comunitrio de luta contra a aids, a partir da ao de militantes do movimento homossexual dos anos 80. O alvo era o terror, a desinformao e o preconceito com que a doena era tratada no meio mdico e pela mdia.

    Imediatamente, os ativistas passaram a exigir respostas governamentais e a acompanhar e reivindicar o pouco que existia de informaes e instrumentos para enfrentar a aids. Movidos pela urgncia, pelo medo de morrer e pela perda de amigos, familiares ou companheiros, membros de grupos gays organizados uniram-se a tcnicos comprometidos com a sade pblica e propiciram a criao do primeiro programa governamental de combate aids, implementado em 1983, junto Secretaria de Estado da Sade de So Paulo, sob a coordenao do Dr. Paulo Roberto Teixeira.

    O processo de redemocratizao e de legitimao dos direitos humanos no pas ajudou a criar cenrio propcio s primeiras aes necessrias para o combate aids. A presena marcante do movimento sanitrio e a gesto do ento governador Franco Montoro, progressista, eleito democraticamente em So Paulo, tambm foram fatores decisivos para o acolhimento das reivindicaes (TEIXEIRA, 2003).

    1 O primeiro exame, o primeiro medicamento, a primeira ONG

    Em 1985, quatro anos aps os primeiros casos de aids, o FDA aprovou o primeiro exame diagnstico para detectar anticorpos anti-HIV, o teste Elisa. A demora da sua utilizao na triagem em massa nos bancos de sangue causou milhares de infeces, inclusive no Brasil, que passou a adot-lo obrigatoriamente em 1986.

    Tambm em 1985, enquanto ocorria o primeiro congresso mdico sobre aids, em Atlanta, EUA, com a doena j relatada em 51 pases, era fundado em So Paulo o Grupo de Apoio e Preveno Aids (GAPA), primeira organizao no-governamental de luta contra a aids do Brasil, cujos integrantes j se reuniam desde 1984.

    Somente na Conferncia Internacional de Aids, ocorrida em Paris, Frana, em 1986, que foram relatadas as primeiras experincias mais consistentes sobre o uso do AZT. Tambm neste ano foi consolidado o Programa Nacional de Preveno de DST e Aids do Ministrio da Sade 1, quando a noticao da aids tornou-se obrigatria no pas.

    Em 1986 era criada a ABIA Associao Brasileira Interdisciplinar de Aids ONG que reunia, dentre outros, os militantes polticos Herbert Daniel e Herbert de Souza e que,

    1 O Programa Nacional de DST/Aids foi criado oficialmente em 2 de maio de 1985 (Portaria MS N 236).

  • 19

    em seu discurso, alava o combate aids e o acesso ao tratamento ao campo das polticas pblicas.

    Em maro do ano seguinte, em 1987, o FDA aprova o AZT, a primeira droga para o tratamento da aids, desenvolvida nos anos 60 para tratamento do cncer. lanado o teste Western blot, um exame mais especco, que passaria a ser usado obrigatoriamentecomo teste conrmatrio para resultados HIV-positivos pelo teste Elisa. Neste ano sofundados os GAPAS de Minas Gerais e Par e, no ano seguinte, o GAPA Bahia.

    No demora muito, em 1988, pr-aprovado o uso da didanosina (ddI), ainda em protocolo, para pacientes com aids intolerantes ao AZT. No mesmo ano, o AZT liberado para uso peditrico e so aprovados vrios medicamentos para tratar doenas oportunistas, como pneumocistose, sarcoma de Kaposi e citomegalovrus.

    Em dezembro de 1988, ativistas brasileiros realizam os primeiros atos pblicos de repercusso nacional, anunciando o que seria, dali em diante, uma das marcas do movimento. A manifestao no Congresso Nacional contra a comercializao de sangue no testado e o ato nas escadarias do Corcovado, no Rio de Janeiro, onde foi estendida a faixa Aids, solidariedade inauguraram o ativismo de rua, que se tornou importante instrumento de presso para o acesso aos novos medicamentos.

    Em 1989 fundado no Rio de Janeiro, pelo escritor Herbert Daniel, o Grupo Pela Vidda (Valorizao, Integrao e Dignidade do Doente de Aids), que tem como principal bandeira a condenao da morte civil e a defesa dos direitos das pessoas vivendo com HIV/aids, entre eles o acesso a tratamento e medicamentos. Seguiu-se a criao de outros GAPAs, em Porto Alegre, no Rio de Janeiro e Cear; do Grupo de Incentivo Vida (GIV), em So Paulo, dentre tantos outros.

    Da em diante, multiplicaram-se as organizaes no-governamentais de luta contra a aids. So entidades que conferem controle social poltica de acesso universal a medicamentos. Atualmente so cerca de 500 no pas, organizadas em fruns estaduais, com diferentes pers, formando uma rede heterognea, complexa, que atua emdiversas frentes, da preveno assistncia, passando pelo ativismo em sade e direitos humanos. Somam-se as redes de soropositivos, movimentos de minorias, associaes comunitrias e religiosas.

    2 Do contrabando e garrafadas s primeiras conquistas

    Logo aps a Conferncia Internacional de Aids de 1989 em Montreal, Canad, ocorre no Brasil encontro nacional de grupos que trabalham com aids, em Porto Alegre/RS, onde foi redigida a Declarao dos Direitos dos Soropositivos que proclama, dentre outros pontos: todo portador do vrus da aids tem direito assistncia e ao tratamento, dados sem qualquer restrio, garantindo sua melhor qualidade de vida.

    Cresce no pas a prescrio mdica e a presso, por parte dos pacientes e ONGs, pelo uso do AZT, do ddI e dos medicamentos para tratar as doenas oportunistas. Alguns pacientes com recursos nanceiros importavam os medicamentos ainda no disponveisno Brasil; outros valiam-se de amigos que viajavam ao exterior e conseguiam trazer o AZT ou o ddI de forma clandestina.

  • O Remdio via JustiaMinistrio da Sade - SVS - Programa Nacional de DST/ Aids20

    O Estado de So Paulo primeiro a capital, depois a cidade Santos foi pioneiro na distribuio do AZT, em 1989, mas a primeira compra atendia apenas 7% dos pacientes que precisavam do tratamento.

    Diante dos resultados pouco promissores do AZT, houve pacientes que chegaram a utilizar o DNCB (2,4 dinitroclorobenzeno), produto usado no processamento de lmes fotogrcos. Colocado sobre a pele, acreditava-se que causava uma estimulaoimunolgica, mas nunca teve sua eccia comprovada. Existiam tambm aqueles querecorriam toterapia, a exemplo das famosas garrafadas do Professor Accorsi,referncia a infuses com plantas medicinais que eram distribudas gratuitamente para tratamento coadjuvante da aids, pelo Dr. Walter Radams Accorsi, de Piracicaba/SP, atualmente professor Emrito da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de So Paulo (ESALQ/USP). Tambm havia o candidato brasileiro a medicamento anti-aids, o SB-73, extrado de um fungo pelo mdico Odilon da Silva Nunes, em Birigui/SP, e que chegou a ser testado em diversos pacientes, pelo Centro Corsini, de Campinas/SP, sem nunca ter demonstrado qualquer valor teraputico.

    A Assemblia Nacional Constituinte, que em 1988 havia denido a Sade como direitode todos e dever do Estado, foi seguida da Lei Orgnica da Sade (Lei 8.080/90), que consolidou, no pas o movimento da reforma sanitria, em defesa da sade e por melhores condies de vida, traduzido na luta por um sistema de atendimento pblico de qualidade universal, acessvel a toda a populao.

    A presso dos ativistas e a deciso dos tcnicos de disponibilizar os primeiros medicamentos anti-aids estavam, portanto, respaldadas pelos preceitos do Sistema nico de Sade. A distribuio de medicamentos, pelo Ministrio da Sade, para doenas oportunistas da aids j acontecia muito timidamente desde 1988, mas somente em 1991 passaria a ser disponibilizado o AZT, um ano depois de j estar sendo usado em larga escala no mundo, com recomendaes de dosagem, do uso proltico (antesda aids avanada) e do uso em crianas.

    Em certos locais do pas, as recomendaes do Ministrio da Sade de fornecer os medicamentos apenas para pacientes matriculados na rede pblica deram margem comercializao destes medicamentos. Pacientes pobres vendiam para quem podia pagar. Isso no acontecia em So Paulo, onde a distribuio era universal, mesmo para aqueles atendidos por servios particulares e planos privados de sade (TEIXEIRA, 2003).

    No nal dos anos 80, ainda no eram cogitadas aes judiciais para garantia dosmedicamentos, mas j eram fortes algumas aes das ONGs junto aos rgos governamentais, a aliana com parlamentares, a ocupao de espaos nos conselhos e conferncias de sade; a visibilidade por meio da imprensa e dos meios de comunicao.

    Outro instrumento das ONGs para divulgar e exigir os novos medicamentos eram seus boletins informativos. Merece destaque a pioneira publicao Cadernos Pela Vidda, do Grupo Pela Vidda/SP, especializada em tratamentos. Lanada em setembro de 1990 e mantida at hoje trazia em seu primeiro nmero um editorial assinado por Hebert Daniel Informar-se, uma questo de vida, alm de notcias sobre o AZT.

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    3 Cai por terra a monoterapia

    No incio da dcada de 90, a indstria farmacutica investiu no desenvolvimento de novos medicamentos e foram consolidadas a aprovao acelerada e o acesso expandido2. Surgiram os inibidores da transcriptase reversa (uma enzima essencial para a produo de novos vrus), a primeira categoria de medicamentos desenvolvidos para tratar a infeco pelo HIV.

    Em 1991, ano em que o Ministrio da Sade comeou a distribuir o AZT, j estava sendo liberado o ddI e autorizada nos EUA a distribuio, em protocolo, do ddC para pacientes resistentes ou intolerantes ao AZT. Neste ano, as ONGs brasileiras, durante encontro nacional, protestaram contra a ineciente poltica de combate aids dogoverno Collor. Alm da falta de verbas para medicamentos e exames, denunciaram as campanhas publicitrias equivocadas, que semeavam o pnico e o preconceito.

    O tratamento disponvel, mas pouco ecaz, ainda no correspondia s expectativas. Ojornalista Aureliano Biancarelli narrou bem a situao da poca 3:

    (...) naquele ano de 1992, a festa do Halloween, marcada para o fim de outubro, foi adiada por trs finais de semana. No primeiro deles, algum morreu na vspera. Nos outros dois, as mortes ocorreram no prprio sbado da festa. O grupo ento determinou que o Dia das Bruxas seria comemorado no final de semana seguinte, de qualquer jeito. Outra morte voltou a ocorrer na sexta; os colegas foram ao enterro no sbado e noite se reencontraram para a festa. Comemorar revelia da morte ilustrava a teimosia do grupo. Na poca, o AZT j estava na rede pblica, mas tom-lo era apenas um sinal de que o fim estava prximo. O GIV (Grupo de Incentivo Vida), em parceria com outras ONGs, tentava desgrudar a mscara de morte que marcava a aids. A cura estava dentro de cada um, diziam... durante os primeiros 15 dos 20 anos de histria da aids, a morte sempre foi esperada. No incio dos anos 90, na agenda dos reprteres que cobriam a doena, os nomes e telefones dos poucos doentes que aceitavam mostrar a cara eram escritos lpis. Vrios morreriam nos anos seguintes, Jos Roberto Peruzzo, do GIV; Herbert Daniel, do Grupo Pela Vidda; Paulo Csar Bonfim, do Gapa; Betinho, da Abia.

    Aps a aprovao acelerada do ddC e do d4T (estavudina) para uso expandido, em 1992, e com a divulgao da consistente pesquisa europia Concorde que descobre, em 1993, que o AZT isoladamente no era eciente, d-se incio era da terapia combinada, quemais tarde seria chamada de coquetel.

    Mesmo em clima pr-impeachment do ento presidente Fernando Collor, alguns avanos ocorreram, com as mudanas de comando na sade federal, em 1992, aps a nomeao do cardiologista Adib Jatene para o Ministrio da Sade e o retorno da Dra. Lair Guerra de Macedo Rodrigues, para a coordenao do Programa Nacional de DST e Aids. Em 1994, j no governo Itamar Franco, rmado o primeiro acordo entre oBrasil e o Banco Mundial para o combate aids, com emprstimo de 160 milhes de dlares, mais 90 milhes de contrapartida do governo federal (PARKER, 2003).

    2 Regulamentado no Brasil em dezembro de 1999, por meio da Resoluo RDC 26 da Anvisa, o acesso expandido um instrumento imprescindvel que pode assegurar o acesso dos pacientes com doenas graves a medicamentos potencialmente eficazes, ainda no registrados pelas autoridades sanitrias do pas, na ausncia de outras alternativas teraputicas. No caracterizado como ensaio clnico, mas o laboratrio deve submeter o protocolo de acesso expandido para anlise da Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria e da Comisso Nacional de tica em Pesquisa, dentre outros requisitos.

    3 BIANCARELLI, Aureliano. O dia em que a Aids mudou. Revista da Folha 28/11/2001.

  • O Remdio via JustiaMinistrio da Sade - SVS - Programa Nacional de DST/ Aids22

    nessa poca que as organizaes da sociedade civil passaram a receber nanciamentopara a implementao de projetos, incluindo alguns servios jurdicos estruturados, que mais tarde iriam viabilizar parte das aes judiciais por medicamentos.

    O modelo de assessoria jurdica foi iniciado pelo GAPA-So Paulo, desde sua fundao, em 1985, e pelo Grupo Pela Vidda do Rio de Janeiro, em 1989. As reivindicaes no judicirio e proporcionaram a formao de larga jurisprudncia que estabeleceu a obrigao do Estado de oferecer tratamento integral, gratuito e universal s pessoas com HIV/aids (VENTURA, 2003)

    Em 2003, existiam 32 assessorias jurdicas de ONGs, com projetos nanciadospelo PN-DST/AIDS, sem contar os servios mantidos por outros grupos, sem nanciamento governamental. Violao de direitos, discriminao, reclamaestrabalhistas e previdencirias, negao de atendimento pelos planos de sade, e a falta de medicamentos na rede pblica so os casos freqentemente atendidos pelos advogados das ONGs, que atualmente mantm uma rede virtual de comunicao e grupo de discusso permanente por meio da Internet.

    O corte de verbas do Ministrio da Sade, que comprometia a compra de medicamentos; a burocracia nas compras e a demora na liberao de verbas, levaram falta do medicamento ddI em vrios pontos do pas, em 1994, o que gerou protestos das ONGs, com grande impacto na mdia. Nessa poca, devido ao grande nmero de doentes e poltica de distribuio de medicamentos, o Brasil entrou na rota dos ensaios clnicos de medicamentos contra aids, conduzidos do exterior.

    Um novo grupo de drogas para o tratamento da infeco passou a ser estudado: os inibidores da protease. J nas primeiras divulgaes sobre os estudos, instala-se um estado de euforia. Chegou-se a falar at na cura da aids. Entretanto, logo veio a evidncia de que o tratamento combinado no eliminava o vrus do organismo dos pacientes.

    4 A chegada do coquetel, a revoluo no tratamento

    Em 1995 j era evidente que diferentes inibidores da transcriptase reversa, usados em combinaes, funcionavam melhor do que o uso de uma droga apenas. Mas foi com a aprovao do primeiro inibidor da protease, uma nova classe de drogas, tambm em 1995, que o tratamento passou por uma verdadeira revoluo.

    No espao de um ano foi liberado o inibidor da protease invirase (Saquinavir), para uso em combinao com outros medicamentos; foi garantida a aprovao acelerada da lamivudina (Epivir ou 3TC) para uso com o AZT; e foi lanado o Zeritavir (d4T), para os casos de intolerncia aos j usuais AZT, ddI e ddC.

    Em Campinas/SP, no dia 14 de agosto de 1995, 40 manifestantes, entre portadores do HIV e familiares, ocuparam o pao municipal para reivindicar o coquetel.4 No dia 26 de setembro, inmeras ONGs protestaram contra a falta dos novos medicamentos jogando litros de uma mistura que simulava sangue em frente s Secretarias Estadual e Municipal de Sade de So Paulo. A avenida Paulista, em So Paulo, foi palco de grande ato no dia 1 de dezembro do mesmo ano, com dezenas de corpos estendidos pelo cho.

    4 Folha de S. Paulo - 15/08/1996

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    Atos semelhantes pipocavam pas afora e extrapolavam o mbito dos grupos organizados. O estilista carioca Luiz de Freitas, por exemplo, colocou no nal deseu desle 15 portadores do HIV em protesto pelo preo e diculdade de acesso aosmedicamentos. J o cengrafo Jos Roberto de Godoy fez um protesto no Pavilho da Bienal, em So Paulo. Nu, em meio a caixas de medicamentos 5, protestou contra a falta dos anti-retrovirais.6

    A imprensa dava amplo destaque aos lanamentos dos remdios. O mdico e articulista Jairo Bouer 7 destacava, com entusiasmo, em jornal de grande circulao, os novos medicamentos de combate aids, comentando as pesquisas promissoras de drogas que seriam liberadas no ano seguinte (o MK-639, mais tarde denominado Crixivan; e o ABT-538, o fututo Kaletra), as quais estavam sendo testadas tambm no Brasil.

    O ano de 1996 signicou, de fato, um divisor de guas. Foi aprovado o ritonavir (Norvir);ocorreu a aprovao acelerada do indinavir (Crixivan), que passou a ser comercializado 42 dias depois; o saquinavir (Invirase) chegou ao mercado; e a nevirapina (Viramune) tambm teve aprovao acelerada. Outra conquista foi a aprovao do primeiro teste de carga viral (Amplicor HIV-1 Monitor Test), importante indicador para medir a evoluo da infeco pelo HIV. Em maro de 1996, a publicao Cadernos Pela Vidda8, em editorial de capa, dava o clima do ativismo na poca:

    (...)Assistimos a liberao do saquinavir e 3TC nos Estados Unidos e sequer encontramos a combinao de AZT e ddI em nossas unidades de sade. Ouvimos falar da importncia do teste de PCR, para medir a carga viral, mas no conseguimos realizar a obsoleta contagem de CD4 na rede pblica. Estudos submetem pacientes a um s antiviral, quando a conduta agora a terapia combinada. (...)

    J em novembro de 1996, Europa e EUA apresentariam diminuio de 50% no nmero de mortes por aids aps um ano da adoo da terapia composta por trs drogas. O especialista David Ho defendia, em novembro daquele ano, durante o 3 Congresso Internacional de Tratamento da Infeco pelo HIV, a teoria do bater cedo e forte, com incio precoce da terapia tripla para todos os infectados.

    Essa posio inuenciou a conduta mdica e diretrizes teraputicas no mundo. Maistarde, a conduta seria revista, por causa dos efeitos colateriais de mdio e longo prazo, das resistncias e das diculdades de adeso ao tratamento. Os primeiros resultados depacientes tratados com trs drogas no Brasil, na cidade de Santos, e depois em Valinhos, ambas em So Paulo, foram encorajadores. Estava inaugurada a era do coquetel.

    Embora houvesse algumas divergncias sobre o melhor momento para se iniciar a administrao dos novos medicamentos e antes mesmo da adoo de um consenso teraputico nacional que inclusse as novidades, os mdicos brasileiros passaram a prescrev-los. Os pacientes e as ONGs passaram imediatamente a reivindic-los, pois ainda no estavam disponveis na rede pblica.

    5 Folha de S. Paulo - 20/09/1996

    6 Folha de S. Paulo - 02/12/1996

    7 BOUER, JAIRO. O vrus perde o flego - Folha de S. Paulo. Caderno Mais 01/10/1995

    8 Cadernos Pela Vidda. So Paulo, ano VI, n 18.

  • O Remdio via JustiaMinistrio da Sade - SVS - Programa Nacional de DST/ Aids24

    Foi criada, no mbito do Ministrio da Sade, uma comisso tcnica que revisou as normas teraputicas no pas e concluiu, em 31 de dezembro de 1996, o Guia de Condutas Teraputicas para HIV/Aids .

    Logo aps concludo o primeiro consenso teraputico brasileiro, j surgiram novas drogas: em maro de 1997 o FDA aprovou o nelnavir (Viracept), primeiro inibidor deprotease tambm para uso em crianas. Em abril foi aprovado a delavirdina (Rescriptor), um inibidor da transcriptase reversa no-anlogo do nucleosdeo usado em combinao com outros anti-retrovirais. Em setembro, foi a vez do Combivir (combinao de AZT com 3TC), mesmo ms em que foi aprovado o Fortovase, uma nova formulao do saquinavir (Invirase).

    Os pesquisadores descobrem que, mesmo com o coquetel, e com a carga viral indetectvel nos testes, o HIV se mantm em reservatrios escondidos no organismo. Isso faz diminuir o otimismo, mas j so milhares os pacientes que dependem do coquetel para viver.

    A Unaids (Programa das Naes Unidas de Combate Aids) divulga, no nal de 1996, quea epidemia do HIV pior do que se previa, com uma estimativa de 30 milhes de pessoas vivendo com HIV/aids no mundo inteiro e 16.000 novos casos de infeco diariamente.

    A demanda pelos novos medicamentos havia entrado denitivamente na pauta dosmeios de comunicao de massa, aps cobertura da Conferncia Internacional de Aids de Vancouver, Canad, em julho de 1996, que anunciou ao mundo o coquetel.

    Vale destacar os depoimentos a jornais da poca do socilogo Herbert de Souza, o Betinho, hemoflico, portador do HIV, liderana emblemtica falecido em agosto de 1997. Betinho falava dos benefcios dos medicamentos que ele mesmo tomava desde maro de 1996, importados, graas ao auxlio de amigos. A melhora notvel. Mas h a parte dramtica, j que s as pessoas que tm recursos podem comprar a nova medicao. Aqueles que no podem comprar vem as notcias pelos jornais e televiso e cam esperando a morte chegar, declarou 9. Betinho incentivava publicamente os pacientes de aids a entrar na Justia para conseguir os remdios.

    5 As aes pioneiras e a lei do acesso universal no Brasil

    Dentre as aes ajuizadas pleiteando o fornecimento gratuito de medicamentos pelo Poder Pblico que sero tratadas em captulo parte uma teve especial importncia: aquela movida pela advogada do Grupo de Apoio Preveno Aids (GAPA-SP), urea Celeste da Silva Abbade, em favor da professora e ativista da luta contra a aids, integrante do Grupo de Incentivo Vida (GIV), Nair Soares Brito, perante a 1 Vara da Fazenda Pblica do Estado de So Paulo, contra o Estado de So Paulo. Foi uma das primeiras aes do pas a obter liminar favorvel, determinando o imediato fornecimento da medicao solicitada, o que abriu precedente para o ajuizamento de outras demandas.

    A ao 10, que foi motivo de ato pblico em frente Secretaria de Estado da Sade, baseou-se no fato de que a autora era portadora do HIV, doente de aids e que os medicamentos

    9 Jornal Folha de S. Paulo, de 13/07/1996.

    10 Como fundamentos jurdicos, a ao, proposta em 4 de julho de 1996, valeu-se da Constituio Federal, da Constituio do Estado de So Paulo (artigos 219 e 220), da Lei n 8.080/90 (artigos 2o., 5o., 6o. e 7o.) e da Lei Complementar n 791, de 9 de maro de 1995.

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    disponveis na rede pblica para tratamento poca e por ela utilizados AZT e o ddI no produziam mais efeitos. Assim, Nair necessitava, segundo sua mdica da rede pblica de sade, dos medicamentos saquinavir, Epivir e Neodecapytil.

    O pedido liminar foi atendido pelo ento Juiz da 1 Vara da Fazenda Pblica, Dr. Marco Aurlio Paioletti Martins Costa e, em 25 de julho de 1996, Nair recebeu, da Secretaria de Estado da Sade, os medicamentos deferidos por determinao judicial.

    Em seguida, o GAPA-SP obteve liminar favorvel em aes semelhantes, inclusive uma ao em favor de mais de 20 pacientes. O governo estadual havia, no entanto, entrado, sem sucesso, com pedido de cassao da liminar, sob a alegao de que isso poderia criar um precedente perigoso para as nanas estaduais.

    Em novembro de 1996, aps mobilizao da sociedade e da Coordenao Nacional de Aids, o Congresso Nacional aprovou a Lei 9.313, do Senador Jos Sarney, que obrigava o Estado a fornecer os medicamentos anti-aids.

    O advogado carioca Marcelo Turra, outro pioneiro nesse tipo de aes, publicou um artigo 11 no qual comemorava o fato de, pela primeira vez, o Judicirio do Rio de Janeiro ter concedido a um doente de aids o direito a tratamento. Turra referia-se deciso, proferida em setembro de 1996, obrigando a Secretaria de Estado da Sade a fornecer um inibidor de protease, semelhana da ao movida meses antes em So Paulo.Tambm em 1996, em abril, o Grupo FAA (Fundao Aoriana para o Controle de Aids), de Florianpolis/SC, moveu ao judicial buscando aquisio de anti-retrovirais. Um pouco antes, o GAPA-RS pleiteara judicialmente medicao importada para conter infeces oportunistas em favor do ativista Adelmo Turra. O movimento organizado de luta contra a aids havia, denitivamente, encontrado o caminho da Justia.

    A histria de Luciane Aparecida de Conceio, a Lu, de Sorocaba/SP, que completou 17 anos em 2005, bastante conhecida entre os que atuam na luta contra a aids. Durante uma transfuso de sangue, no oitavo ms de gestao, sua me foi infectada pelo vrus da aids no Hospital Regional de Sorocaba e morreu dois anos depois. Luciane nasceu com HIV e foi uma das primeiras crianas no mundo a ser tratada com uma combinao de anti-retrovirais contendo inibidor de protease.

    Diante da sade debilitada da menina de apenas oito anos, que apresentava tuberculose, pneumonia e outras doenas oportunistas, sua mdica decidiu pela utilizao do coquetel anti-retroviral, empregando d4T, 3TC e o inibidor da protease Norvir. Em outubro de 1996, o Gepaso Grupo de Educao e Preveno Aids de Sorocaba, em Sorocaba/SP, obteve deciso favorvel concesso do coquetel para criana 12.

    Mas o medicamento s foi fornecido aps nova solicitao judicial para sua compra pela Secretaria de Estado da Sade, tendo em vista a indisposio inicial do governo em razo da inexistncia de comprovao da eccia da terapia para crianas. At hojea menina Lu mantm a mesma terapia, com a mesma dosagem, e passa muito bem.

    A repercusso e a demanda de aes pelos novos medicamentos foram tamanhas que o GAPA-SP passou a disponibilizar e distribuir um kit para advogados de outras ONGs

    11 TURRA, Marcelo. Artigo: Remdios, liminares e Aids

    12 O pedido foi formulado na ao indenizatria movida contra o Estado, devido contaminao ocorrida durante a transfuso de sangue da me de Luciane Aparecida de Conceio.

  • O Remdio via JustiaMinistrio da Sade - SVS - Programa Nacional de DST/ Aids26

    de todo o pas, com modelos de peties iniciais e informaes sobre como se dirigir ao Judicirio 13.

    6 As primeiras compras de medicamentos

    Ao mesmo tempo em que se multiplicavam as aes, o Ministrio da Sade anunciava a compra dos trs inibidores de protease existentes no mercado. Tudo estaria muito bem se os pacientes pudessem aguardar a burocracia estatal - a interminvel licitao para a aquisio destes medicamentos, o prazo dispendido pelos laboratrios para o incio da entrega dos mesmos e seu posterior repasse aos estados da Federao, ressaltava Marcelo Turra poca 14.

    A ento coordenadora do Programa Nacional de DST e Aids, Dra. Lair Guerra, referia-se ao pedido de compra dos medicamentos da terapia tripla, incluindo inibidores da protease. Espero contar com os medicamentos at julho, mas no sei se teremos o dinheiro, armou em entrevista imprensa 15. De fato, a primeira compra do medicamento 3TC pelo Ministrio da Sade ocorreu somente em novembro de 1996; do saquinavir e ritonavir em dezembro; do indinavir, em janeiro de 1997; e do d4T, em julho de 1997.

    Mesmo aps a primeira compra, at a adequao da demanda e distribuio a estados e municpios, vrias aes judiciais continuavam em andamento. Somente em maio de 1997, os inibidores da protease estavam disponveis para 46% dos pacientes, parcela que tinha indicao para o uso dos novos remdios. Os gastos com anti-retrovirais em 1996 foram de R$ 14 milhes, saltando para R$ 140 milhes em 1997 16.

    Em setembro de 1997, o Encontro Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, promovido pelos grupos Pela Vidda/RJ e Pela Vidda/Niteri, reuniu mais de 1.000 pessoas na cidade do Rio de Janeiro/RJ. A diculdade de acesso aos medicamentos eraum dos temas principais, assunto que passaria a ocupar espao tambm nos Enongs Encontros Nacionais de ONGs/Aids e nas manifestaes de primeiro de dezembro, Dia Mundial de Luta Contra a Aids.

    Em maio de 1998, teve repercusso a ao em que os desembargadores da 1 Cmara Cvel do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro decidiram que um portador do HIV deveria receber todos os medicamentos de que precisasse para seu tratamento, e no apenas os constantes na lista padronizada pelo Ministrio da Sade. Em setembro daquele mesmo ano, foi aprovado o efavirenz (Sustiva) e trs meses depois o abacavir (Ziagen). As aes para novos medicamentos j estavam incorporadas na rotina dos advogados das ONGs e das secretarias de Sade.

    No dia 1 de dezembro de 1998, membros de ONGs do Rio de Janeiro protestaram com esparadrapos nas bocas contra o possvel corte de verbas do Ministrio da Sade para a compra de medicamentos. No dia 8 de setembro de 1999, foi organizado o Dia Nacional de Luta Por Medicamentos, com manifestaes em 11 estados do pas. Na poca, a desvalorizao cambial havia encarecido o preo dos medicamentos para aids e o governo armava no dispor de recursos. As ONGs se mobilizaram novamente

    13 Depoimento de urea Celeste da Silva Abbade, do Grupo GAPA-SP.

    14 TURRA, Marcelo - artigo Remdios, liminares e Aids.

    15 Entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, de 15 de junho de 1996.

    16 Gasto do Governo Federal com medicamentos anti-retrovirais - PN DST/AIDS - 9/6/2005.

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    em novembro de 2000, quando a rea econmica do governo tentou impor cortes no oramento do Ministrio da Sade. Uma das estratgias foi a campanha do e-mail, dirigida ao ento ministro da Fazenda, Pedro Malan.

    7 O boom de aes judiciais

    Em abril de 1999, o FDA garantiu a aprovao acelerada do amprenavir (Agenerase), pouco depois de aprovar a nova gerao do teste de carga viral. A neviparina comeava a ser indicada em casos de gestantes soropositivas, para evitar a transmisso do HIV da me para a criana, o que era feito somente com o AZT at ento.

    Neste mesmo ano, o consenso teraputico brasileiro alterava o uso da combinao de dois para trs medicamentos para incio de terapia, procedimento j em uso no exterior.

    Em meados de 2000, a Revista Consultor Jurdico, conhecida publicao na rea do Direito, divulgava uma reportagem em que comentava a grande quantidade de decises judiciais que reforavam o direito de pessoas com aids a receber remdios do Estado17. Os Tribunais esto xando posio favorvel proteo da vida em detrimento deeventuais problemas oramentrios do governo, armava a revista.

    A aprovao do lopinavir + ritonavir (Kaletra) em setembro de 2000 medicamento que iria resultar inmeras aes foi seguida da aprovao da nova formulao do ddI, o Videx EC, mais fcil de tomar e com menos efeitos colaterais que a verso anterior da droga. Em novembro, o FDA aprova o Trizivir (combinao de abacavir, AZT e 3TC).

    Novamente em 2000, veio a ameaa do Ministrio da Fazenda de cortes oramentrios que poderiam afetar o Programa Nacional de DST e Aids e a compra de medicamentos, o que motivou uma nova onda de protestos das ONGs em todo o Brasil.

    Naquele mesmo ano, na Conferncia Internacional de Aids de Durban, frica do Sul, ocorre o reconhecimento internacional da acertada poltica brasileira na rea de medicamentos, indicando o protagonismo e a liderana do pas nas discusses sobre acesso universal, propriedade intelectual e patentes de medicamentos.

    Em setembro de 2001, foi aprovado o teste de genotipagem, usado para identicara resistncia do HIV frente s drogas que compem o coquetel. A reivindicao da realizao do exame, que ser relatada adiante, motivou muitas aes judiciais e, por conseqncia, intensa polmica.

    O tenofovir (Viread) recebeu aprovao acelerada em outubro de 2001, medicamento que tambm motivou muitas aes judiciais (sua incorporao na rede pblica tambm ser detalhada mais adiante).

    Nesse mesmo ano, acontece o Encontro Nacional de ONGs/Aids em Recife/PE, com participao de representantes de cerca de 300 entidades. Naquele momento a principal pauta do ativismo j no era mais a reivindicao de novas drogas, mas a quebra das patentes, para garantir o acesso, do Brasil e do mundo em desenvolvimento, s drogas j existentes.

    17 ERNANNY F. Drault e ELIAS Maria Cristina . Tribunais decidem pelo fornecimento gratuito. Revista Consultor Jurdico, 27 de julho de 2000.

  • O Remdio via JustiaMinistrio da Sade - SVS - Programa Nacional de DST/ Aids28

    Em 2001, as aes judiciais tiveram grande impacto no oramento pblico. S no Programa Estadual de DST/Aids de So Paulo, cerca de 80% (R$ 3 milhes) do oramento estadual previsto para a compra de medicamentos anti-aids no ano, foi consumido no cumprimento de ordens judiciais favorveis a pacientes. Eram principalmente aes para a compra do medicamento Kaletra, que ainda no fazia parte dos anti-retrovirais distribudos pelo Ministrio da Sade. Para no faltar os demais medicamentos previstos, o Programa foi obrigado a pedir suplementao oramentria ao Estado. 18

    O boom de prescries do Kaletra, certamente o anti-retroviral que mais gerou aes judiciais no pas, um fenmeno que merece ser aprofundado, o que este estudo no se props a fazer. Mas o fato pode estar relacionado a uma combinao de fatores: as qualidades teraputicas do medicamento que passaria a beneciar inmeros pacientes,a demora na sua incorporao na rede pblica e as agressivas aes de marketing e promoo implementadas pelo laboratrio produtor, o Abbott.

    Em agosto de 2001, o Programa Nacional de DST e Aids divulgou nota ocial em quedemonstrava preocupao com a grande quantidade de aes judiciais:

    Reconhecemos que o acesso a tratamento direito indiscutvel e decises dos Tribunais Superiores tm obrigado a disponibilizao de medicamentos de todos os tipos, tanto para o tratamento especfico do HIV, quanto de suas complicaes.Todavia, devemos estar atentos para a possibilidade de ocorrncia de interaes medicamentosas imprprias e a prescrio de substncias que no tm eficcia e segurana reconhecidas cientificamente, tais como certos fitoterpicos, e outros frmacos que ainda esto em fase de estudo clnico. Na defesa contra solicitaes judiciais tecnicamente inadequadas de medicamentos anti-retrovirais ainda no padronizados e, mais recentemente, dos testes de avaliao de resistncia aos anti-retrovirais (cuja indicao parece ser mais restrita do ponto de vista de benefcio aos pacientes) deve ser ressaltado que a literatura mdico-cientfica mundial tem, reiteradamente, afirmado que tanto o incio como a substituio de drogas anti-retrovirais por eventual falha teraputica no caracterizam uma emergncia mdica, como grande parte dos advogados que ajuzam esses pedidos vm colocando em suas peties judiciais. Freqentemente, essa argumentao coloca os juzes em situao difcil, pois como no so conhecedores de assunto to especializado, vem-se muitas vezes obrigados a expedirem seus mandatos para disponibilizao de medicamentos ou exames para cumprimento imediato (24 a 48 horas).

    Assim, a Coordenao Nacional recomenda que se solicite percia mdica judicial, com avaliao individualizada do caso, para permitir a deciso final do juiz, da mesma forma que normalmente ocorre com outros problemas de sade, particularmente nas reas cvel e trabalhista. 19

    Nesta nota do Programa Nacional, a referncia prescrio de substncias que no tm eccia e segurana reconhecidas cienticamente, tais como certos toterpicos merece ser ponderada, pois se trata de uma exceo. No ano de 2000, em meio s dezenas de aes propostas para reivindicar novos medicamentos, uma chamou a ateno: um pedido para o Canova, um medicamento toterpico que supostamente seria ecazpara tratamento da aids e do cncer.

    18 LEITE, Fabiane Justia faz Poltica de Medicamentos Folha de S. Paulo 18/08/2002.

    19 Extrado de documento do Programa Nacional de DST/Aids divulgado em 14/08/2001.

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    O pedido liminar foi concedido 20 pelo ento MM. Juiz da 13. Vara da Fazenda Pblica do Estado de So Paulo, obrigando o Estado a fornecer vrios medicamentos solicitados em uma mesma ao, entre eles o Canova. Antes de cumprir a deciso judicial, o programa Estadual de DST/Aids de So Paulo solicitou parecer tcnico da Coordenao Nacional, que se manifestou assim:

    (...) o mtodo Canova um tratamento homeoptico cujos pesquisadores da Universidade Federal do Paran e do laboratrio argentino como o mesmo nome do produto afirmam aumentar a imunidade. Entretanto, esse produto no apresentou at o momento nenhuma evidncia cientfica, dentro dos moldes atualmente aceitos pela cincia contempornea, que justificasse tal efeito. 21

    A deciso judicial foi cumprida em relao aos demais medicamentos, mas a Secretaria de Estado da Sade de So Paulo recusou-se a comprar o Canova.

    Apesar de ser um fato isolado, importante chamar a ateno para esse tipo de prescrio, que resultou em ordem judicial para fornecimento de medicamento sem eccia comprovada. Mas vale tambm ressaltar que no cabe ao advogado proponenteda ao e nem ao Poder Judicirio proceder a avaliao tcnica da receita mdica. papel e compromisso tico do mdico indicar a melhor alternativa para tratamento do paciente, e das autoridades sanitrias exercerem a scalizao e o controle dosmedicamentos.

    Mesmo sem comprovao da eccia e sem registro na Anvisa, at junho de 2004circulavam notcias dando conta de que o Canova receitado e comercializado. 22

    8 - Quando a polmica ganhou a mdia

    Principal aspecto deste estudo, que ser tratado mais adiante, as aes judiciais que visam garantir o acesso a novos medicamentos tm como uma das principais discusses a competncia dos entes governamentais para fornecer o remdio. Este debate teve grande repercusso quando da publicao de artigo do jornalista Josias de Souza 23, colunista do jornal Folha de S. Paulo, que abordava ao movida por quatro pacientes de Joinville, em 2001, para obteno de medicamentos no fornecidos na rede pblica.

    (...) o SUS refugou a prescrio. Impacientes, os pacientes foram ao Ministrio Pblico. O procurador Davy Lincoln Rocha comprou-lhes a briga em julho de 2001. Acionada, a juza federal Erika Giovanni Reupke cobrou explicaes s autoridades. Lanado ao poro do SUS, o caso migrou da seara mdica para a jurdica. Braslia iniciou a tortura. Alegou que s lhe cabe planejar e formular polticas. No se sente obrigada especificamente prestao dos servios de sade

    20 A tutela antecipada foi concedida nos seguintes termos: 1- Defiro a gratuidade processual, bem como o segredo de justia para a preservao da intimidade dos envolvidos, vendando a terceiros o acesso aos autos. 2. Ante a necessidade comprovada dos medicamentos, de levado custo, incompatvel com a modesta condio econmica dos autores, que deles necessitam para o controle de grave enfermidade, e o disposto no artigo 196 da Constituio Federal, que proclama a sade como direto de todos e dever do Estado, sendo que o bem da vida, sob perigo real e concreto, tem primazia sobre todos os demais interesses juridicamente tutelados, CONCEDO antecipao de tutela para que o Estado, com dispensa de licitao em razo da urgncia, fornea aos autores medicamentos, exames e tratamentos que forem prescritos pra o tratamento da sua enfermidade. 3. Oficie-se ao Senhor Secretrio estadual da Sade para imediato cumprimento. 4. Aps, cite-se e com a rplica tornem cls. Int. S.P., 21.09.2000.

    21 Ofcio n. 12966 GAB (UDAT)/CN-DST e Aids/SPS/MS 9 de outubro de 2000.

    22 Medicamento homeoptico usado no tratamento de Aids e Cncer, notcia de 18 de junho de 2004 do Jornal Laboratrio do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Paran (www.comunicacao.jor.br).

    23 SOUZA, Josias de. Sade pblica vira doi-codi ps-moderno. Folha de S. Paulo, 30/03/2003.

  • O Remdio via JustiaMinistrio da Sade - SVS - Programa Nacional de DST/ Aids30

    (pgina 55 do processo judicial). Santa Catarina deu sequncia sesso de maus-tratos. Argumentou que Unio e Estados repassam verbas, mas o municpio quem ser responsvel pela garantia da prestao de servios (pgina 181 dos autos). Joinville completou o ciclo de crueldade. Ora, se cabe ao Ministrio da Sade o registro, a autorizao de importao [...], incompetente o municpio para decidir se este ou aquele medicamento deve ser utilizado (pgina 67).

    Em sentena vlida para todo o pas, a juza Erika Reupke ordenou o fornecimento das drogas. Sob ameaa de priso, os agentes do poro recorreram sucessivas vezes. Acumularam derrotas. Um doente, em estgio terminal, desceu cova. Outros trs, graas aos novos medicamentos, tiveram a carga viral reduzida a zero (...) Os pacientes, que j se imaginavam a salvo do pau-de-arara administrativo, voltaram a sentir o bafo acerbo da burocracia no dia 10 de maro. Atendendo a novo recurso de Braslia, o juiz Teori Albino Zavaski, presidente do TRF-4, revogou a sentena que impusera o fornecimento dos remdios. Aceitou-se a tese de que a deciso imporia transtornos econmicos incontornveis ao governo.

    Logo em seguida, o jornal publicou resposta do ento diretor do Programa Nacional de DST e Aids, Paulo Roberto Teixeira 24:

    Causou-me estranheza o ttulo e o tom do artigo de Josias de Souza, em que ele afirma que o Sistema nico de Sade pratica tortura em pacientes com aids ao recorrer de aes na Justia para evitar a prescrio de remdios que no constam do consenso do Ministrio da Sade. (...) A Coordenao Nacional de DST/Aids recomenda aos mdicos que evitem receitar remdios que ainda no entraram no Consenso Teraputico Anti-Retroviral, explorando as inmeras combinaes existentes antes de infligir ao paciente uma angstia maior do que a que ele j sofre na luta contra o HIV.

    Apenas uma percia mdica baseada em exames de carga viral, de CD4 e de genotipagem que a rede pblica disponibiliza a todos os pacientes pode indicar com preciso qual o medicamento a ser usado. Se essas recomendaes fossem adotadas, a Justia no precisaria ser acionada.

    O assunto foi ainda comentado pelos ativistas da luta contra a aids Jorge Beloqui (Grupo de Incentivo Vida - GIV) e Mrio Scheer (Grupo Pela Vidda/SP) 25:

    As decises da Justia para garantia de medicamentos fora do consenso teraputico realmente no podem ser validadas para todos os pacientes. Mas no podemos admitir que as aes sejam genericamente desqualificadas e taxadas de irresponsveis (...)

    (...) Foram estas aes judiciais individuais, movidas pelas ONGs em nome dos pacientes, que garantiram ou pelo menos apressaram a chegada de diversos medicamentos (...)

    (...) Jamais abriremos mo de recorrer ao Ministrio Pblico e Justia. As aes judiciais so instrumentos de ativismo e de exerccio de cidadania; ao lado da

    24 TEIXEIRA, Paulo Roberto. Coluna Painel do Leitor. Folha de S.Paulo. 02/04/2003.

    25 BELOQUI, Jorge e SCHEFFER, Mrio. Proteo vida ou transtorno econmico?, artigo publicado no site do Grupo de Incentivo Vida (www.giv.org.br)

  • 31

    garantia de legislaes especficas; dos espaos de controle social; da defesa da produo de genricos e da quebra das patentes; das manifestaes pblicas e outras formas legtimas de presso.

    9 Os exames diagnsticos

    A Justia no chegou a ser acionada no Brasil para a garantia de fornecimento dos exames anti-HIV (Elisa e Western blott), para diagnstico do vrus da aids, apesar do nmero de testes realizados por ano no pas no ser at hoje considerado satisfatrio.

    J a falta de exames de CD4 e carga viral na rede pblica, imprescindveis para o acompanhamento da evoluo da infeco pelo HIV e da efetividade do tratamento, levou pacientes e ONGs a acionar o Ministrio Pblico e o Judicirio por diversas vezes. O problema acentuou-se a partir de junho de 2001, com a descentralizao da compra dos reagentes desses exames para estados e municpios. O desabastecimento sistemtico, em vrios locais, levou o Ministrio da Sade a reassumir a responsabilidade pela aquisio e distribuio para uma rede de mais de 70 laboratrios.

    Apresentam-se a seguir os casos da introduo do exame de genotipagem e do teste rpido, procedimentos diagnsticos que foram motivos de aes envolvendo o Ministrio Pblico e a Justia.

    O exame de genotipagem

    O teste de genotipagem permite a identificao de mutaes que determinam a resistncia do HIV aos anti-retrovirais. Por ser um procedimento novo, quando foi introduzido no Brasil em 2001 no estavam claras as regras para sua melhor utilizao. Diante de inmeras prescries mdicas solicitando o exame, sem que estivesse disponvel na rede pblica, muitas aes foram ajuizadas em todo o pas.

    Em julho de 2001, o Ministrio Pblico Federal em So Paulo instaurou um procedimento administrativo, a partir de informaes e diversas receitas mdicas encaminhadas pela assessoria jurdica do Grupo de Apoio e Preveno Aids (GAPA-SP), em nome do Frum de ONGs/Aids de So Paulo.

    Os Procuradores da Repblica Dra. Adriana da Silva Fernandes e Dr. Marlon Alberto Weichert decidiram ajuizar, no dia 6 de novembro de 2001, perante a Justia Federal de So Paulo, uma ao civil pblica contra a Unio, Estado de So Paulo e o Municpio de So Paulo, com o objetivo de fornecimento gratuito e ininterrupto pelo Poder Pblico de exames de genotipagem a todos os portadores do vrus da aids.

    O Juiz Aroldo Jos Washington, da 4 Vara Federal da Subseo Judiciria de So Paulo, acatou os argumentos do MP e determinou imediato fornecimento de exames de genotipagem aos usurios do SUS, fixando a multa diria de R$ 10.000,00 devida solidariamente pelos rus, no caso de descumprimento.

    Em sua deciso determinou que o paciente tem direito de escolher o seu mdico e este tem o direito de requerer o exame de genotipagem, desde que fundamente o pedido, sem necessidade de submeter a solicitao a outro mdico. Alm disso,

  • O Remdio via JustiaMinistrio da Sade - SVS - Programa Nacional de DST/ Aids32

    determinava que a realizao deste exame no pode estar presa a critrios econmicos, quotas mensais, e sim necessidade do paciente.

    A Unio, o Estado e o Municpio recorreram da deciso, ao mesmo tempo em que o Ministrio da Sade implantava a Rede Nacional de Genotipagem (Renageno), que funcionava como uma pesquisa operacional, com definio da rede de laboratrios e critrios de incluso do paciente para realizar os exames, baseados em consenso de especialistas.

    O debate acirrou-se aps nova deciso do Juiz Aroldo Jos Washington, da Justia Federal, que estipulou as situaes nas quais o exame deveria ser realizado, mais abrangentes que a norma da Renageno. O juiz levou em conta depoimentos, prescries mdicas e tambm documentos internacionais que divergiam em alguns pontos das diretrizes do Ministrio da Sade, a exemplo do The EuroGuidelines Group for HIV Resistance 26 ; e das normas para os testes de genotipagem formuladas em um encontro de especialistas da Sociedade Internacional de Aids (IAS). 27

    O Programa Nacional de DST e Aids do Ministrio da Sade tornou pblica sua posio em duas notas oficiais, ambas dirigidas imprensa. Na primeira, divulgada em janeiro de 2002, afirmava que o exame de genotipagem indicado apenas para os pacientes que apresentassem a primeira falha no tratamento com anti-retrovirais e que estivessem usando um inibidor de protease (um dos grupos de medicamentos que compem o coquetel). Isso significaria seis mil testes em 2002, em um universo de 113 mil pessoas que, naquele ano, usavam medicamentos anti-retrovirais em todo o Pas.

    Em fevereiro, nova nota informava que o Ministrio da Sade iria recorrer da sentena proferida pelo juiz da 4 Vara Federal de So Paulo, que obrigava a ampliao dos testes de genotipagem oferecidos pelo Sistema nico de Sade. Alm de rebater tecnicamente cada critrio estipulado pela Justia, a nota afirmava:

    Insistimos que as recomendaes adotadas por este Ministrio para realizao dos testes de genotipagem foram estabelecidas por um Comit Assessor independente formado por especialistas de universidades, centros de referncia e servios de sade. Este comit estabeleceu os critrios diante das evidncias cientficas disponveis. Sendo assim, qualquer deciso contrria s condutas do Ministrio estar contradizendo renomados especialistas brasileiros que definiram as regras e critrios com bases cientficas confiveis e disponveis no momento. Desta forma, os testes adquiridos pelo Ministrio da Sade para este ano estaro a disposio dos pacientes que possam de fato se beneficiar dos resultados do exame. Destacamos que os reagentes da genotipagem para o HIV esto liberados para estudos e ainda no possuem registro no Brasil. Por isso, a Renageno os utiliza em carter de pesquisa operacional, o que um passo importante para sua validao no pas.

    26 Publicado em fevereiro de 2001 na revista Aids (15: 309-320, 2001)

    27 Publicado no JAMA (283: 2417-2426, 2000).

  • 33

    A polmica estendeu-se, envolvendo ONGs, governo, meios de comunicao, at que um despacho da Desembargadora Federal Marli Ferreira do Tribunal Regional Federal da Terceira Regio, publicado em 8 de novembro de 2002, acatou os argumentos da Unio, sustando a eficcia da deciso anterior. A ao ainda aguardava at a concluso deste trabalho sentena do juiz da 4 Vara Federal de So Paulo.

    No entanto, as aes judiciais no foram imediatamente descartadas, pois h mdicos que ainda prescrevem o exame de genotipagem fora das regras da Renageno. Por exemplo, em agosto de 2004, a Unio e o Estado de Santa Catarina foram condenados a pagar um exame de genotipagem para uma portadora do HIV. A 3 Turma do Tribunal Regional Federal da 4 Regio negou, por unanimidade, recurso do Estado, confirmando deciso da Justia Federal de Florianpolis.

    O teste rpido

    O Juiz Rmulo Russo Jnior, da 5. Vara da Fazenda Pblica de So Paulo, no dia 15 de outubro de 2004, julgou procedente 28 a ao civil pblica proposta pelo Ministrio Pblico de So Paulo para condenar o Estado de So Paulo a fornecer quantidade suficiente de teste rpido para diagnstico de HIV em gestantes. O exame deve estar disponvel em todos os hospitais e maternidades da rede estadual de sade que realizem ou venham a realizar partos, quer da rede direta, quer dos conveniados ao SUS. A deciso fixa multa diria de R$5 mil para cada hospital ou maternidade da rede pblica que no dispuser do teste rpido aps o prazo que for concedido pelo Judicirio. Sua fundamentao, da qual se extrai o trecho abaixo, baseada em especial na Constituio Federal que como se ver adiante o principal diploma legal utilizado tanto nas aes como nas decises judiciais:

    (...)

    Por outro lado, importante admitir a interveno da ao civil pblica no real implemento de polticas pblicas, se verifica-se que tais polticas pblicas se destinam ao fiel cumprimento de direitos fundamentais, tais e quais so aqueles direitos constitucionais atrelados preservao da vida humana e do controle de mal srio (aids) sade da populao, mormente aquela camada da populao paulistana to desprovida de recursos financeiros.

    Esta sentena, pois, no impe e no cria, ou determina a realizao de nenhuma poltica pblica. No. Apenas determina o implemento de poltica pblica prevista na Carta poltica de 5/10/88, decorrente de normas constitucionais programticas que exigem perfeita eficcia.

    (...)

    Crave-se, portanto, que verdade que preciso redelinear o contedo e os limites atividade discricionria do administrador pblico, posto que lhe compete, por fora da ordem constitucional, o implemento da realizao do interesse coletivo escrito na Carta Poltica de 5/10/88. Nem mais, nem menos.

    28 Em novembro de 2002, o juiz Marco Aurlio Paioletti Martins da Costa, da 5a Vara da Fazenda Pblica do Estado de So Paulo, proferiu deciso liminar favorvel ao MP. Contudo, essa deciso havia sido revogada, em maio de 2003, pela Nona Cmara de Direito Pblico do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo. Na ocasio, prevaleceu o argumento de que a medida poderia causar dificuldades para a administrao pblica.

  • O Remdio via JustiaMinistrio da Sade - SVS - Programa Nacional de DST/ Aids34

    A Promotoria de Justia de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infncia e da Juventude da Capital, representada pelos promotores Vidal Serrano Nunes Jnior e Motauri Ciocchetti de Souza, reivindicava judicialmente que a Secretaria de Estado da Fazenda de So Paulo disponibilizasse quantidade suficiente do referido exame desde outubro de 2002, quando ingressou com a ao civil pblica 29.

    Inicialmente, o MP props ao Governo do Estado e Prefeitura do Municpio de So Paulo a celebrao de um compromisso de ajustamento de conduta. A Prefeitura do Municpio aceitou o acordo e obrigou-se a cumprir metas pr-estabelecidas para tornar o exame obrigatrio nos hospitais municipais. Porm, o Governo do Estado se recusou a firmar o compromisso. A secretaria estadual de Sade alegou que a realizao do teste rpido prejudicaria o teste convencional, realizado durante o pr-natal, mais eficaz e mais barato para o Estado.

    A deciso do MP de recorrer Justia, por sua vez, foi motivada por uma srie de fatores, tais como: o grande nmero de crianas que nascem infectadas pelo HIV; a possibilidade de drstica reduo das taxas de transmisso vertical com a oferta de tratamento anti-retroviral durante a gestao; o fato de que dois teros das grvidas do luz sem ter conhecimento de que so portadoras do vrus; e as falhas dos sistemas de sade que deixam de oferecer o teste anti-HIV durante o pr-natal.

    10 O impacto positivo da terapia anti-retroviral

    O Brasil registrava, em junho de 2005, o nmero estimado de 600.000 pessoas infectadas pelo HIV e 158.000 pessoas em tratamento na rede pblica. Cerca de 150.000 brasileiros j morreram por causa da aids, desde 1980 e o pas ainda registra 15.000 novos casos da doena por ano. 30 Os nmeros no podem ser menosprezados, mas fato que o Brasil conseguiu estabilizar a epidemia da aids, com taxa de prevalncia menor do que 1%.

    No incio da dcada de 90 foi iniciada a poltica de distribuio universal e gratuita de anti-retrovirais, mas foi a partir de 1996, com a chegada dos inibidores da protease, que a taxa de mortalidade por aids no Pas teve uma queda signicativa. Houve reduo deaproximadamente 50% do nmero de bitos no Brasil, entre os anos de 1995 a 2001, e queda de 80% nas internaes hospitalares por doenas oportunistas ou sintomas graves da aids, o que gerou uma economia substancial de recursos.

    Um estudo avaliou 3,6 mil pacientes de aids adultos, que comearam a procurar o Centro de Referncia e Tratamento - CRT/SP (um dos maiores servios que atendem HIV/aids na capital paulista) entre 1992 e 1998 e que estavam sendo acompanhados entre 1992 e 2003. Observou-se que, a partir de 1997, todos os pacientes passaram a viver mais, em virtude do amplo acesso terapia anti-retroviral. Daqueles que se infectaram por via sexual, 70% ainda estavam vivos cinco anos depois.

    29 A ao civil fundamentou-se basicamente na Constituio Federal, na Conveno sobre os Direitos da Criana, no Estatuto da Criana e do Adolescente e tambm na Constituio Estadual do Estado de So Paulo. Ainda mereceu destaque o aspecto econmico da questo. Segundo o MP, enorme o descompasso entre o custo para o Estado do tratamento de um paciente portador do vrus HIV e o da realizao do teste rpido (R$5,00), que pode evitar a infeco.

    30 Programa Nacional de DST/Aids. Balano do perodo 2003/2004. www.aids.gov.br

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    Outro estudo conduzido pelo Ministrio da Sade, em 2002, provou que o tratamento reconstitui o sistema imunolgico dos pacientes (VITORIA, 2003). Alm disso, depois da disponibilizao dos anti-retrovirais no pas, os gastos com aposentadoria e auxlio doena por causa da aids caram mais de 25%.

    Houve, certamente, economia para os cofres pblicos, pois o custo para a disponibilizao da terapia anti-retroviral , em grande parte, compensado pela reduo de gastos com medicamentos para tratamento das infeces oportunistas e das internaes hospitalares.

    Em 2003, os gastos do governo federal com anti-retrovirais foi de cerca de R$ 551 milhes 31 totalmente nanciados pelo Tesouro Nacional, na dotao oramentria doMinistrio da Sade. Mas se no fosse possvel a fabricao de parte dos medicamentos por laboratrios nacionais, os gastos mais que dobrariam.

    Por isso h preocupaes quanto ao futuro da poltica brasileira de acesso universal. Anal, os recursos do SUS so limitados e o nmero de doentes de aids s tende aaumentar no Brasil. Alm dos cerca de 180 mil pacientes em tratamento at o nal de2005, o pas tem milhares de infectados, assintomticos, que mais cedo ou mais tarde dependero do coquetel. Com o fato de a aids ter se tornado uma doena de carter crnico, os pacientes deixaram de morrer e tendem e permanecer indenidamente emtratamento.

    No entanto, com o passar do tempo, a combinao de drogas que as pessoas esto tomando poder no fazer mais efeito. Tero que contar com os novos medicamentos, que so protegidos por patentes. Nos prximos anos, boa parte dos novos medicamentos do coquetel estar devidamente patenteada. Isso tornar o custo do tratamento invivel, uma vez que o Brasil ter de import-los a preos aviltantes.

    A poltica brasileira de acesso universal tem sido vivel graas, em parte, aos laboratrios nacionais, que produzem, desde 1995, alguns medicamentos de marca, em forma de produtos similares ou genricos. Das 20 drogas que compem atualmente os coquetis anti-aids, sete j so produzidas no Brasil. Nesses casos, as cpias so legais, no so protegidas por patentes, pois o pas s passou a reconhecer o registro das marcas a partir de 1996, aps a aprovao da Lei de Patentes.

    A cada nova droga, h negociao direta do Ministrio da Sade com o laboratrio produtor. Tambm foi alterado o Decreto Presidencial 32, incorporando exibilidade lei de patente, permitindo a importao de genricos pelo Brasil caso o pas decrete a licena compulsria 33, ameaa que tem ajudado na hora da negociao de preo.

    A rede pblica viveu grave desabastecimento de medicamentos anti-Aids no nal de2004 e nos primeiros meses de 2005, devido a falhas de gesto do Ministrio da Sade, o que gerou uma onda de protestos das ONGs e ampla repercusso na mdia.

    A sociedade civil passou a protestar contra a demora do governo federal - que foi chamado em manifestos de tigre sem dentes - em decretar o licenciamento compulsrio de

    31 Documento: Gastos ( em milhes de US$) com aquisio de medicamentos ARV pelo Ministrio da Sade. 1996 a 2003. Fonte: PN DST/AIDS, UDAT.

    32 Decreto N 4.830, de setembro de 2003.

    33 Programa Nacional de DST/Aids. Balano do perodo 2003/2004. www.aids.gov.br

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    quatro medicamentos patenteados que , juntos, consomem cerca de 80% do oramento federal para medicamentos. Armava-se que a medida era absolutamente compatvelcom a legislao j existente no pas, com o respaldo das exibilidades previstas noacordo TRIPS da Organizao Mundial de Comrcio e na Declarao de Doha.

    Ao mesmo tempo, o movimento organizado comemorou a aprovao pela Cmara dos Deputados, em junho de 2005, do Projeto de Lei 22/2203 que deixa de reconhecer as patentes dos medicamentos de Aids no Brasil. O projeto, no entanto, ainda seria analisado pelo Senado Federal. 34

    Por mais que avancem as aes relacionadas a licenciamento compulsrio, quebra de patentes e produo de genricos, por muito tempo ainda estar na ordem do dia a disputa voraz dos laboratrios multinacionais pelos vultosos recursos pblicos brasileiros destinados aos anti-retrovirais, assim como haver a reivindicao, pela comunidade mdica e pacientes, da imediata incorporao das novidades patenteadas.

    11 O futuro do tratamento e a continuidade das aes judiciais

    A descoberta de uma vacina seria a nica forma de acabar com a aids, mas a comunidade internacional e os laboratrios privados no investem recursos sucientes na pesquisa. Deacordo com o diretor da Iniciativa Internacional para uma Vacina contra a Aids (IAVI), Seth Berkley, seriam necessrios pelo menos 1,1 bilho de dlares anuais para avanar nos estudos. Em menos de dez anos, acredita-se, no haver uma vacina ecaz.35

    Os anti-retrovirais, por sua vez, continuam recebendo toda a ateno da indstria. A indstria farmacutica espera que o crescimento das vendas seja robusto nos prximos anos, principalmente com a introduo de novas classes de drogas e novas opes de tratamento. Acredita-se que o esquema teraputico mais usado atualmente, que combina trs drogas, ir dominar a maior fatia de mercado por um bom tempo. 36

    O provvel lanamento de novas classes tais como os inibidores da integrase , inibidores da fuso e inibidores de quemoquinas iro representar novas opes, mas para pacientes em estado crtico. Do ponto de vista tcnico, um dos maiores desaos compreenderas mutaes que levam a cepas de HIV resistentes, fazendo com que a terapia fracasse e o vrus volte a se replicar. So as resistncias cruzadas , bem como o surgimento de efeitos adversos, que podem limitar as opes futuras para um tratamento de segunda ou terceira linhas.

    A combinao de medicamentos j existentes mais uma estratgia da indstria. 37

    Tambm existem vrios outros anti-retrovirais em estudo atualmente, que em curto e mdio prazo estaro no mercado. 38 Os laboratrios apostam em terapias com um

    34 A Declarao de Doha, de 14 de novembro de 2001, deu autonomia aos pases-membros da OMC para definir motivos para declarao de emergncia nacional e interesse pblico, e previu o uso do licenciamento compulsrio. Outra resoluo da OMC , de 30 de agosto de 2003, estabeleceu diretrizes para a aplicao da Declarao de Doha

    35 Financial Times Aids Vaccine a decade away - 2/9/200436 Segundo o estudo Human Immunodeficienty Vrus, da Pharmacor, instituto de pesquisa e consultoria especializado em avaliaes de mercado na rea farmacutica

    37 Em agosto de 2004, o FDA autorizou duas novas combinaes de anti-retrovirais em doses fixas: o abacavir (ABC) + lamivudina (3TC), do laboratrio Glaxo-Smithkline, que recebeu o nome comercial Epizicon; e a associao de tenofovir (TDF) com emtricitabina (FTC), batizada de Truvada, da Gilead Sciences.

    38 As drogas anti-Aids com pesquisas mais avanadas, em agosto de 2004, eram as seguintes: inibidores da protease (tipranavir; TMC-114; VX-385; DPC-681); inibidores da transcriptase reversa no-anlogos de nucleosdeos (capravirina; TMC-125; DPC-083; Calanolide A); inibidores da transcriptase reversa anlogos de nucleosdeos (racivir ou Alovudina; SPD-754; elvucitabina; Reverset ou DPC-817; Amdoxovir; GS-7340); inibidores de fuso (PRO-542; BMS-488043; NX-355); inibidores de quemoquinas (UK-427,857; Sch-D; Sch-C; AMD-070; PRO-140); inibidor da integrase (L-870,810); inibidores do Zinc-Finger (azidocarbonamide/ADA).

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    mnimo de toxicidade a longo prazo; em novas classes de drogas, que agem em estgios diferentes da replicao do HIV; em medicamentos que retardam o mximo possvel a resistncia; em terapias para tratar os efeitos colaterais dos coquetis; em formulaes pequenas e compactas de comprimidos; e em terapias de tomada nica diria.

    Assim, se medidas no forem tomadas, o Brasil ir conviver por muito tempo com as aes judiciais que visam novos medicamentos. 39.

    Podem somar-se s demandas de anti-retrovirais as aes que visam fornecimento de novos medicamentos para tratar doenas oportunistas. Alguns exemplos: o interferon peguilado, para hepatite C, j liberado no pas, tem sido alvo de algumas aes de portadores do HIV que no se enquadram no consenso do Programa de Hepatites Virais do Ministrio da Sade. Ressalta-se que o interferon alvo de grande presso e disputa de dois laboratrios multinacionais. Poder haver prescries para o Valcyte, da Roche, novidade que combate o citomegalovrus e que foi motivo de embate da empresa com a Anvisa, por suposta demora na concesso da patente 40.

    Um exemplo de que os medicamentos para oportunistas podem continuar gerando aes deu-se em maio de 2004, quando um portador do HIV de Florianpolis/SC obteve na Justia Federal o direito de receber trs medicamentos para tratamento de doenas oportunistas 41.

    O futuro aponta, ainda, para medicamentos ou tratamentos que visam solucionar os efeitos colaterais do coquetel e que podero ser igualmente objeto de aes, caso haja demora na incorporao pela rede pblica 42. Em So Jos do Rio Preto/SP, a Justia obrigou em 2004 a Direo Regional de Sade a fornecer a uma portadora do HIV o cido hialurnico, para tratamento da lipodistroa, em ao movida pelo GADA Grupo de Apoio aos Doentes de aids. 43 Nestes casos, caberia uma discusso, ainda pouco explorada no Brasil, acerca da co-responsabilidade da indstria farmacutica em sanar efeitos adversos dos seus anti-retrovirais colocados no mercado.

    Por m, vale citar os atos pblicos promovidos pelos Fruns de ONGs/Aids, nodia 26 de agosto de 2004, em 12 estados do pas, sob o lema Onde est o melhor programa de aids do mundo?. Os manifestantes apontaram, dentre vrios problemas, as diculdades de estados e municpios em assegurar o fornecimento permanentede medicamentos para tratar as doenas oportunistas. Na mesma data, vrias ONGs acionaram o Ministrio Pblico. 44 Em resposta ao movimento, o Ministrio da Sade decidiu garantir o abastecimento dos medicamentos para doenas oportunistas nos

    39 Em 2004 o T20, de uma nova classe de medicamento, j era reivindicado para diversos pacientes com resistncia a outras drogas. Um prximo medicamento que poder ser reivindicado o Emtriva (FTC, emtricitabina), da Gilead, que foi liberado em 2 de junho de 2003 pelo FDA e ainda no estava registrada no Brasil at meados de 2004.

    Tambm h novos anti-retrovirais em teste no pas. o caso do tipranavir (da Boehringer Ingelheim) em associao com o ritonavir, em teste em centros brasileiros em 2004.

    40 Anvisa barra nova droga da Roche contra Aids. Jornal Valor Econmico, de 23/04/2004.

    41 A liminar que determinou o fornecimento foi concedida pelo juiz substituto da 3 Vara Federal de Florianpolis, Cludio Roberto da Silva. Os custos do tratamento devem ser suportados em conjunto pela Unio, pelo Estado de Santa Catarina e pelo Municpio de Florianpolis, segundo a deciso. Os medicamentos so Ciproflaxacim 500 mg, Claritromicina 500 mg e Etambutol 400 mg prescritos pela mdica infectologista que atende o paciente. Foi fixada multa diria de R$ 500 em caso de descumprimento da deciso. Cabe recurso ao Tribunal Regional Federal da 4 Regio. Fonte: Revista Consultor Jurdico, 20/05/2004.

    42 O Programa nacional de DST/Aids divulgou nota no dia 2 de dezembro de 2004, afirmando que o Ministrio da Sade incluiria, em 2005, na tabela do Sistema nico de Sade (SUS) oito novos procedimentos indicados para portadores do vrus HIV que sofrem com a lipodistrofia.

    43 Folha de S.Paulo 02/09/2004. A ao foi movida pelo advogado do