O rap e o funk na socialização infantil

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1 1 7Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002

O rap e o funk na socialização da juventude

Juarez DayrellUniversidade Federal de Minas Gerais

Resumo

O texto se propõe a discutir a importância dos grupos musicaisjuvenis nos processos de socialização vivenciados por jovenspobres na periferia de Belo Horizonte, problematizando o pesoe o significado de ser membro de um grupo musical no con-junto da vida de cada um. Tem como foco os integrantes detrês grupos de rap e três duplas de funk, procurando analisaras suas experiências culturais e o sentido que tais práticas ad-quirem no conjunto dos processos sociais que os constituemcomo sujeitos. Significa compreender como eles elaboram assuas vivências em torno do estilo, e os significados que atribu-em a elas, no contexto social onde se inserem como jovenspobres. A discussão aponta que os jovens rappers e funkeiros encon-tram poucos espaços nas instituições do mundo adulto paraconstruir referências e valores por meio dos quais possam seconstruir como sujeitos. Os estilos rap e funk assumem umacentralidade na vida desses jovens por intermédio das formasde sociabilidade que constroem, da música que criam, e doseventos culturais que promovem.Esses estilos possibilitaram e vem possibilitando a esses jovenspráticas, relações e símbolos por meio dos quais criam espaçospróprios, significando uma referência na elaboração e vivênciada sua condição juvenil, além de proporcionar a construção deuma auto-estima e identidades positivas.

Palavras-chave

Juventude – Socialização – Cultura juvenil – Sociabilidade.

Correspondência:Juarez DayrellRua Dores do Indaiá, 104/30131010-360 – Belo Horizonte - MGE-mail: [email protected]

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E d u c a ç ã o e P e s q u i s a , S ã o P a u l o , v . 2 8 , n . 1 , p . 117-136, j a n . /1 1 8

The rap and the funk in the socialization ofyoungsters

Juarez DayrellUniversidade Federal de Minas Gerais

Abstract

The text proposes to discuss the importance of youngstermusic bands in the socialization processes experienced by poory oung s t e r s f r om t h e ou t s k i r t s o f B e l o Ho r i z on t e ,problematizing the weight and meaning of belonging to amusic band in the life of each one of them. The article focuseson the members of three rap bands and three funk duos,attempting to analyze their cultural experiences and themeaning that those practices acquire within the social proces-s e s t h a t c on s t i t u t e t h em a s s ub j e c t s . Tha t en t a i l sunderstanding how they elaborate on their experiences relatedwith their music style and the meanings their attribute to it intheir social context of poor youngsters.The discussion points out that young rappers and funkers findfew spaces in the institutions of the adult world where theycan build up references and values through which they couldconstitute themselves as subjects. The rap and funk styles takeon a central place in the lives of these youngsters by means ofthe forms of sociability that those styles build, the music theycreate, and the cultural events they promote. Those styles havemade possible to those youngsters practices, relations, andsymbols through which they create thei r own spaces ,representing a reference in the elaboration and experience oftheir s ituation as youngsters, apart from al lowing theconstruction of positive identities and self-esteem.

Keywords

Youth – Socialization – Youth culture – Sociability.

Correspondence:Juarez DayrellRua Dores do Indaiá, 104/30131010-360 – Belo Horizonte - MGE-mail: [email protected]

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Nos últimos anos, e de forma cada vezmais intensa, podemos observar que os jovensvêm lançando mão da dimensão simbólica comoa principal e mais visível forma de comunicação,expressa nos comportamentos e atitudes pelosquais se posicionam diante de si mesmos e dasociedade. É possível constatar esse fenômenonas ruas, nas escolas ou nos espaços de agre-gação juvenil, onde os jovens se reúnem em tor-no de diferentes expressões culturais, como amúsica, a dança, o teatro, entre outras, e tor-nam visíveis, através do corpo, das roupas e decomportamentos próprios, as diferentes formasde se expressar e de se colocar diante do mun-do.

O mundo da cultura aparece como umespaço privilegiado de práticas, representações,símbolos e rituais no qual os jovens buscam de-marcar uma identidade juvenil. Longe dos olha-res dos pais, professores ou patrões, assumemum papel de protagonistas, atuando de algumaforma sobre o seu meio, construindo um deter-minado olhar sobre si mesmos e sobre o mun-do que os cerca. Nesse contexto, a música é aatividade que mais os envolve e os mobiliza.Muitos deles deixam de ser simples fruidores epassam também a ser produtores, formandogrupos musicais das mais diversas tendências,compondo, apresentando-se em festas e even-tos, criando novas formas de mobilizar os recur-sos culturais da sociedade atual além da lógicaestreita do mercado.

Esse processo não está presente apenasentre os jovens de classe média. Nas periferiasconstatamos uma efervescência culturalprotagonizada por parcelas dos setores juvenis.Ao contrário da imagem socialmente criada arespeito dos jovens pobres, quase sempre asso-ciada à violência e à marginalidade, eles tam-bém se posicionam como produtores culturais.1

Entre eles, a música é o produto cultural maisconsumido e em torno dela criam seus gruposmusicais de estilos diversos, dentre eles o rap eo funk. Nesses grupos estabelecem trocas, ex-perimentam, divertem-se, produzem, sonham,enfim, vivem determinado modo de ser jovem.

Autores como Mannheim (1982) ouMelucci (1994) recomendam que devemos estaratentos às expressões juvenis, pois estas podemser a ponta de um iceberg, que torna visíveis astensões e contradições da sociedade em que vi-vem. Se seguimos essa orientação, cabe-nos per-guntar: O que pode estar significando esse fenô-meno? Será que é apenas uma moda passagei-ra, como tantas outras patrocinadas pela indús-tria cultural? Ou pode estar nos dizendo sobrenovos modos de ser jovem neste inicio de sécu-lo ou mesmo apontando para novas formas desocialização vivenciadas por eles?

A nossa hipótese é de que a centra-lidade do consumo e a da produção cultural paraos jovens são sinais de novos espaços, de novostempos e de novas formas de sua produção/for-mação como atores sociais. Ou seja, apontampara novas formas de socialização, nas quais osgrupos culturais e a sociabilidade que produzemvêm ocupando um lugar central. É o que nospropomos discutir neste texto. Interessa-nosapreender os significados que os jovens atribu-em à experiência de participação nos gruposmusicais, buscando compreender os sentidos queadquirem no processo de construção social decada um deles. Para tanto, tomaremos comoobjeto de análise jovens da periferia de BeloHorizonte que participam de grupos musicaisligados aos estilos rap e funk.2 Iniciaremos comuma discussão sobre a noção de socialização,

1. Nos limites deste texto não cabe desenvolver uma discussão so-bre violência e juventude, que se torna cada vez mais séria, com índi-ces alarmantes de homicídios envolvendo jovens. Como denunciou ojuiz Geraldo Claret, do Juizado da Infância e da Juventude de BeloHorizonte, morrem assassinados na cidade, por ano, uma média de400 jovens de 12 a 20 anos. (Estado de Minas, 13/10/2001). Mas éimportante ressaltar a necessidade de uma maior problematizaçãodeste tema, superando as aná l ises reducionistas que fazem umavinculação linear da violência à pobreza ou, pior, levam a generaliza-ções preconceituosas que fazem de todo jovem pobre um marginalem potencial, aumentando o fosso social já existente na nossa “cida-de partida”.2. Os dados emp íricos uti l izados são resultado da pesquisa que re-sultou na tese de doutorado intitulada: A música entra em cena: o r a pe o funk na socialização da juventude em Belo Horizonte, apresentadana Faculdade de Educação da USP em julho de 2001. Nela, partimosde um universo de 146 grupos musicais juvenis, de onde foram esco-lh idos se is grupos de r a p e f unk, a par t i r dos quais d iscut imos osprocessos de socialização.

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seguida por uma contextualização social dosjovens pesquisados. Com esse pano de fundo,desenvolveremos uma análise dos estilos rap efunk e os significados que adquirem para osjovens.

Juventude e socialização

Na sociologia clássica, desde Durkheim,desenvolveram-se reflexões sobre a socializaçãoa partir de diversas perspectivas, de acordo como próprio contexto histórico, com concepçõesdistintas de sociedade, dos atores sociais e dasinterações, exprimindo modelos determinadosde sociedade e de cultura. Vários autores ques-tionam se tais paradigmas, produzidos no con-texto de certa concepção clássica de socieda-de, são capazes de explicar os processos soci-ais que ocorrem na sociedade contemporânea,no bojo das profundas transformações quevêm ocorrendo nas últimas décadas.

Van Haetcht (1992), por exemplo, evi-dencia que, nesses paradigmas anteriores, ateoria da socialização dicotomiza a lógica es-trutural e a lógica da atuação, compreenden-do a socialização reduzida a um treino, quegera a interiorização de um “programa” a serexecutado no futuro. Propõe entendê-la comoum processo adaptativo, articulando ator e es-truturas, em que os efeitos da socialização se-riam apenas os parâmetros da ação, não sen-do, assim, irreversíveis. Nessa mesma direção,Dubet (1994) aponta uma série de limites nasociologia clássica para a compreensão dosprocessos socializadores contemporâneos. Paraele, tais teorias buscam entender e explicar asocialização na perspectiva da reprodução so-cial, perguntando como as instituições garan-tem a continuidade social. Nelas o ator é o sis-tema, ou seja, a conduta, a subjetividade, ossentimentos são interiorizações de uma posi-ção objetiva do sistema. Dessa forma, explicaros indivíduos é explicar a determinação de seulugar social sobre sua personalidade, uma vezque haveria um processo de interiorização do

social. O objeto de análise se constitui em tor-no da religião, da família e/ou da escola, ins-tituições que permitem “fabricar” os atorespelo sistema.

O autor propõe uma outra forma deconceber os processos de socialização no con-texto de uma sociedade em mutação, numasuperação dos limites das teorias clássicas. ParaDubet, os atores e as instituições não são maisredutíveis a uma lógica única, a um papel e auma programação cultural de condutas, comoera pensada a socialização na sociedade indus-trial. Passa a ocorrer uma heterogeneidade deprincípios culturais e sociais que organizam ascondutas, com os atores podendo adotar si-multaneamente vários pontos de vista. Hámutações globais dos quadros de referência, enenhuma delas assume uma centralidade. Nãohá mais uma unidade do sistema e do ator. Oator não é totalmente socializado a partir dasorientações das instituições nem a sua identi-dade é construída apenas nos marcos das ca-tegorias do sistema.

Para o autor existem três sistemas queformam o conjunto social, cada qual regidopor uma lógica diferente: uma comunidadeestruturada por uma lógica de integração; umou mais mercados competitivos, dependendode uma lógica da estratégia e um sistema cul-tu r a l co r r e sponden t e a uma l óg i c a dasubjetivação. Os indivíduos constroem-se soci-almente através das experiências sociais, enten-didas como a capacidade de o indivíduo arti-cular esses tipos de ação, numa dinâmica queleva à constituição da subjetividade do ator esua reflexividade. É a experiência social quearticula o trabalho do indivíduo, que constróiuma identidade, uma coerência e um sentidoàs suas ações sempre dialogando com as lógi-cas de ação que já se encontram determinadas.Nessa medida a socialização e a formação dossujeitos são entendidas como o processo me-diante o qual os atores constroem sua experi-ência, evidenciando uma equação na qual osindivíduos se constroem e ao mesmo tempo

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são construídos socialmente (Dubet, 1997).Nessa mesma direção, Charlot (2000)

avança ao enfatizar um lugar à questão daação do indivíduo sobre o mundo e no mun-do. É nesse autor que nos inspiramos paradefinir determinada compreensão dos proces-sos de socialização. Acreditamos que a socia-lização dos jovens pode ser compreendidacomo os processos por meio dos quais os su-jeitos se apropriam do social, de seus valores,de suas normas e de seus papéis, a partir dedeterminada posição e da representação daspróprias necessidades e interesses, mediandocontinuamente entre as diversas fontes, agên-cias e mensagens que lhes são disponibilizadas.Em outras palavras , cada um dos jovensrappers ou funkeiros encontra-se em determi-nado grupo social, mas não se reduz a essevínculo e ao que pode ser pensado a partir daposição desse grupo em um espaço social. En-contra-se em uma sociedade cujas agênciasclássicas de socialização, como veremos nocaso da escola e do trabalho, se mostram frá-geis, não sendo uma referência de valores enormas. Destas, a única instituição que conti-nua tendo forte referência formativa é a famí-lia. Mas nenhuma delas, no contexto de umasociedade em mutação, oferece certezas e se-guranças como no passado. Como lembraMelucci (1996), as seguranças de que necessi-tamos devem ser construídas por nós mesmos.

Por outro lado, esse jovem vai abrindooutros espaços, nos quais o grupo de pares, oestilo ao qual adere e o consumo dos meios decomunicação de massa vão cada vez mais seconstituindo como parâmetros de avaliação eorganização das relações interativas com a re-alidade externa. Esse jovem tem acesso a múl-tiplas referências culturais, constituindo umconjunto heterogêneo de redes de significadoque são articuladas e adquirem sentido na suaação coti-diana. Assim, ele interpreta a suaposição social, dá um sentido ao conjunto dasexperiências que vivencia, faz escolhas, age nasua realidade: a forma como ele se constrói e

é construído socialmente, como se representacomo sujeito, é fruto desses múltiplos proces-sos.

O contexto: jovens pobres ouexcluídos?

Para melhor compreensão dos signifi-cados que os jovens pesquisados atribuem àvivência dos estilos rap ou funk, é necessáriocontextualizar a realidade deles, apreendendoa forma como elaboram o conjunto das expe-riências que vivenciam no cotidiano. Por maisóbvio que possa parecer, é importante ressal-tar que nenhum deles é um rapper ou funkeirovinte e quatro horas ao dia. No cotidiano, amaioria deles trabalha, alguns estudam, possu-em família, vivenciam conflitos, divertem-se,amam, sofrem, possuem desejos e propostas demelhoria de vida. Privilegiaremos, assim, asinstâncias do trabalho, da escola e da famíliapara traçar o contexto em que se inserem.3

Os jovens rappers e funkeiros pesqui-sados estão situados no limiar da precarie-dade. Praticamente, todos eles começaram atrabalhar muito cedo, em ocupações típicas deadolescentes pobres, tais como lavar carros eser office-boy. Além de ser uma forma de con-tribuir em casa, o trabalho era a condição paraa vivência da condição juvenil:

A época do lava-jato foi a época que eumais tinha condição. Eu ganhava super-pouco, eu fazia a feira de casa, eu compravao frango, entendeu, eu tinha a minha roupa,eu bebia, eu namorava... Lá a gente ralavasábado, entendeu, sábado tinha vez que eusaía oito horas de lá, meu. Chegava em casa,deitava no tapete do meu quarto, todo sujode graxa. Dormia até umas nove horas, aí

3. Reafirmo que estou me baseando na realidade dos dezoito inte-grantes dos t rês grupos de r a p e t r ê s d e f u n k pesquisados. Essesjovens se situam, na sua maioria, na faixa etária entre 17 e 24 anos,sendo que apenas quatro deles estão acima dessa idade. Catorze delessão solteiros, morando com os pais, e apenas quatro são casados.

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tomava um banho, jantava. Tinha uma gar-rafa de vinho na geladeira, eu abria, tomavao vinho, ia pra rua. Chegava e encontravano Vilarinho com a turma, aí a gente dança-va e zoava pra caralho... (Nilson, 26 anos,rapper)

Como evidenciam inúmeras pesquisas,o trabalho juvenil não pode ser compreendidoapenas pelo contexto de pobreza em que vivemos jovens. Aparece também como condiçãopara maior autonomia e liberdade em relaçãoà família, pela possibilidade do consumo debens e pela garantia de um mínimo de lazer,enfim, é o trabalho que possibilita a vivênciada própria condição juvenil. Mas o que podiaser visto como uma etapa inicial, tornou-seuma constante em suas trajetórias no merca-do de trabalho. Nenhum deles conseguiu sequalificar em alguma profissão e todos sobre-vivem ainda de bicos e empregos precários.Expressam o contexto de uma crise pela qualpassa a sociedade brasileira, o que afeta as ins-tituições clássicas responsáveis pela socializa-ção. Essa crise se manifesta na desestru-turação do mercado de trabalho e no aumen-to do desemprego juvenil, atingindo mais di-retamente os jovens pobres (Pochmann,1998).

Dessa forma, o mundo do trabalho nãolhes aparece como um espaço de escolhas, aocontrário, nenhum deles gosta do que faz, nãovendo nessas atividades nenhuma centralidadea l é m d a r e n d a . P a r a m u i t o s d e l e s , oenvolvimento com a música implicou uma ten-são entre o tempo do trabalho e o tempo damúsica:

Chegava dentro de uma firma e minha cabe-ça num era pra aquilo lá, trabalhei em mui-tos lugares, cara, mas minha cabeça numaceitava... era aquele trauma, ficava nervosoporque eu pensava:“Pô, eu tenho de fazer émúsica, o meu negócio é aquilo lá, é só comisso que eu me entretenho, é nisso que eutenho uma vontade, cara!” (Pedro, 24 anos,rapper)

Eles fazem uma dissociação entre oemprego atual e a carreira musical: um éaquele ao qual se vêem coagidos a exercer,cuja valência é instrumental; a outra, a car-reira musical, aponta para a possibilidade deum trabalho que é visto como fonte de sa-tisfação pessoal e como atividade criativa.Como diz um deles, gostar de trabalhar euaté gosto; a questão não é de não gostar detrabalhar, é de fazer o que não gosto...

Podemos entender a postura dessesjovens como uma recusa das condições quea sociedade lhes oferece para sua inserçãosocial. Por intermédio da música, experi-mentam a possibilidade de uma atividadecom sentido e não querem aceitar a sujei-ção às alternativas que lhes são postas. Des-sa forma, o trabalho não constitui fonte deexpressividade. Reduz-se a uma obrigaçãonecessária para uma sobrevivência mínima,perdendo os elementos de uma formaçãohumana que derivavam de uma cultura quese organizava em torno do trabalho.

Esses jovens são exatamente os me-nos contemplados pela escola. A maioriadeles foi excluída da escola nos mais vari-ados estágios e , grande parte , antes decompletar o ensino fundamental, com umatrajetória marcada por repetências, evasõesesporádicas e retornos, até a exclusão defi-nitiva. Apenas quatro jovens continuam aestudar, alguns no ensino fundamental eoutros no ensino médio, sendo possível per-ceber que os significados que atribuem aessa experiência é bem diversa. Para aque-les que ainda estudam, a escola aparececomo uma instituição distante e pouco sig-nificativa:

Antes eu não gostava de da escola de jeitonenhum... Agora, tipo assim, eu tive quegostar porque é uma coisa que eu depen-do dela, tipo assim, eu aprendi a gostarporque eu sei que preciso... mas se dessepra viver sem escola eu preferia viver semescola... (Flavinho, 17 anos, funkeiro)

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A escola se realiza como uma prova-ção , uma “chat i ce necessá r ia” para umcredencia-mento que tem um peso relativono mercado de trabalho. Já para outros, aexperiência escolar carrega um sentido ne-gativo, contribuindo para reproduzi-los nacondição de subalternos:

Eu larguei a escola depois que tomei a se-gunda bomba na 5ª série, isso eu tavacom 14 anos, já tinha tomado pau na 2ª,e na 5ª série eu tomei dois. Minha lem-brança da escola é péssima, eu nem gostomuito de tocar nesse assunto não. Porque assim, quando eu era novo eu eramuito complicado, ocê entendeu? Eu con-testava muito, eu tenho um senso críticomuito grande comigo mesmo. Então a es-cola nunca aguçou esse lado meu, enten-deu? A professora falava lá, eu não gosta-va desses papos lá... eu sempre contestan-do o que ela falava. Sempre batendo decontra, pelo menos o que eu achava. Ig-norando, também, o lado da ignorânciaminha. Eu queria mais era brincar, e sem-pre caía na turma dos mais bagunceiros.Ah, sei lá, escola pra mim era um saco.Resumindo, era um saco mesmo, era mui-ta pouca coisa de escola que eu gostavamesmo... (João, 21 anos, rapper)

A construção de auto-imagens, comoa de “mau aluno”, ou as reprovações são al-guns dos mecanismos internos à organiza-ção escolar que terminam por levá-los àexclusão. A forma como muitos deles elabo-ram a saída da escola é marcada pela culpae pelo arrependimento: consideram-se osúnicos responsáveis pela falta de qualifica-ção na qual se encontram atualmente. Nãolevam em conta os mecanismos sociais per-versos que interferiram nas suas escolhas,com um sentimento de culpa que tende aminar a auto-estima.

Dessa forma, as experiências escola-res desses jovens, mesmo apresentando situ-

ações específicas, deixam claro que a insti-tuição escolar é pouco eficaz no seu apare-lhamento para enfrentar as condições adver-sas de vida com as quais vieram se defron-tando, não constituindo referência de valo-res no seu processo de construção comosujeitos.

A situação desses jovens se vê agra-vada pelo encolhimento do Estado na esfe-ra pública, que não oferece soluções pormeios de políticas que contemplem a juven-tude, gerando privatização e despolitizaçãodas condições de v ida. Além da fa lta depolíticas nas áreas básicas de emprego ousaúde, se defrontam com a falta de acessoaos bens culturais. Todos afirmam não fre-qüentar cinema com a regularidade com quegostariam de fazê-lo; grande parte nuncafreqüentou um teatro; todos gostariam defazer algum curso l igado à música, entreoutros exemplos, e não o fazem por falta derecursos financeiros.

Para aqueles que se encontram de-sempregados, o cotidiano se mostra vazio.Andando pelos bairros de periferia nos diasde semana, é possível ver dezenas de jovenspelas ruas e calçadas, conversando em gru-pos ou simplesmente sentados, passando odia sem ter o que fazer, sem acesso a equi-pamentos sociais, como centros culturais oumesmo praças públicas, sem espaços e tem-po que os estimulem, que ampliem as suaspotencialidades. Não têm outra alternativa anão ser levar uma vida empobrecida não sóde recursos materiais, mas, principalmente,de recursos simbólicos que os capacitem aenfrentar as transformações pelas quais asociedade vem passando. Talvez esteja aíuma das principais razões que levam os jo-vens pobres a se envolverem com as drogase a marginalidade. Para os jovens ligadosaos grupos musicais, existe pelo menos osonho de se tornarem cantores, gravar, fazersucesso. Um sonho que, independentemen-te das possibilidades da sua realização, dáum sentido ao cotidiano deles.

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Nesse contexto, as famílias se vêemcada vez mais responsabilizadas por garantir areprodução dos seus membros, não contandocom quem possa “ajudá-las a se ajudar”. Comolembra Telles (1992, p. 89),

a centralidade da família pode ser vistacomo registro de uma sociedade na qual achamada questão social foi equacionada nasf o rma s d e uma pob r e za co l on i z ada ,despolitizada e privatizada nas suas formasde manifestação.

Não é sem razão que para a grandemaioria desses jovens a família ocupa um lu-gar central: as relações que estabelecem, aqualidade das trocas, os conflitos e os arran-jos existentes para garantir a sobrevivência sãodimensões que marcam a vida de cada um,constituindo-se um filtro por meio do qualtraduzem o mundo social, significando umespaço de experiências estruturantes. Nessesentido, a família ainda é uma das poucas ins-tituições do mundo adulto com a qual essesjovens podem contar.

Uma primeira tendência seria caracteri-zar esses jovens como excluídos. Mas tanto Castel(1995) quanto Martins (1997) nos advertem so-bre a imprecisão desse conceito, criticando cer-to fetichismo da idéia da exclusão que tende asuprimir as mediações existentes entre a econo-mia e outros níveis e dimensões da realidade so-cial. Para Martins (1997, p. 20), o modelosocioeconômico brasileiro implementa

uma proposital inclusão precária e instável,marginal. São políticas de inclusão de pes-soas nos processos econômicos, na produçãoe circulação de bens e serviços, estritamenteem termos daquilo que é racionalmenteconveniente e necessário à mais eficiente re-produção do capital.

Assim, é mais esclarecedor caracterizá-los como jovens pobres, vivenciando formasfrágeis e insuficientes de inclusão num contex-

to de uma nova desigualdade social: aquelaque implica o esgotamento das possibilidadesde mobilidade social para a maioria da popu-lação. Nela, a pobreza mudou de forma, deâmbito e de conseqüências. Se para as geraçõesanteriores estava posta, mesmo que remota-mente, a perspectiva de mobilidade por meioda escola e/ou do trabalho, para os jovens dehoje essa alternativa não mais se apresenta.Nesse sentido se instaura o quadro da crise4 :os velhos modelos nos quais as instituições ti-nham um lugar socialmente definido já nãocorrespondem à realidade. O trabalho não ofe-rece mais um tipo de regulação da sociedade,a escola não cumpre a função de moralizaçãoe mobilidade social, e novos modelos aindanão estão delineados. O que antes se caracte-rizava como possibilidade de passagem domomento da exclusão para o momento da in-clusão, hoje, para parcelas de jovens pobres,está se transformando em meio de vida.

Vivemos no Brasil uma situação para-doxal. Nas últimas décadas vem ocorrendo umamodernização cultural, consolidando uma so-ciedade de consumo, ampliando o mercado debens materiais e simbólicos, mas que não éacompanhada de uma modernização social.Assim, os jovens pobres inserem-se, mesmo quede forma restrita e desigual, em circuitos deinformações, por meio dos diferentes veículosda mídia, e sofrem o apelo da cultura de con-sumo, estimulando sonhos e fantasias, alémdos mais variados modelos e valores de huma-nidade. A esfera do consumo cultural torna-seum momento importante para as trocas soci-ais, propiciando o acesso aos estilos, por exem-plo. No caso dos jovens pesquisados, foi comoconsumidores culturais de músicas, CDs, showsde rap e funk que eles puderam se transformarem produtores e, nessa experiência, ressigni-ficar a sua trajetória, criando formas própriasde ser jovem.

4. A noção de crise é ut i l izada não no sentido de ruptura, de caos,mas de mutações e recomposições profundas nas relações sociais,nas quais se esgotam modelos anteriores e ainda não estão delineadasas novas relações, como sugere Melucci (1994).

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Mas se há uma ampliação de possibi-lidades, há uma restrição ao seu acesso, sen-do uma das faces perversas da nova desigual-dade. Os jovens pobres se vêem, assim, priva-dos da escola, do emprego, acompanhados dalimitação de meios para a participação efetivano mercado de consumo, da limitação das for-mas de lazer, da limitação dos direitos devivenciar a própria juventude e, o que é maissério, vêem-se privados da esperança.

É nesse contexto que temos de entenderos significados que adquirem para esses jovens aexperiência nos grupos musicais, sejam de rap oufunk.

Juventude e música: o rap e ofunk

Em outro artigo,5 procurei discutir aimportância da música para os jovens, ressal-tando que a relação entre a música e a juven-tude é uma construção histórica, iniciada prin-cipalmente a partir dos anos 1950 com o jazz.Mas foi a partir da década de 1970 que essarelação adquiriu maior visibilidade, tanto pelaexpansão quanto pela diversificação de estilos,além de os jovens se posicionarem mais dire-tamente como produtores musicais, e não ape-nas como fruidores. Essa mudança foi resulta-do de uma série de fatores, dentre eles dapopularização da aparelhagem eletrônica emesmo do estímulo do movimento punk, como seu lema do it yourself – “faça sua música,o seu estilo, não se acomode na postura doespectador vazio”– apontando uma forma pos-sível de produzir arte no contexto da culturade massas.

É também dessa mesma época umagrande diversificação social da juventude urba-na, com a crescente inserção dos jovens pobresno mercado de trabalho, gerando a ampliaçãodo consumo juvenil, principalmente na modae no lazer, e criando espaços próprios de diver-são nas periferias dos grandes centros, comoos bailes e sons. Desde então, a visibilidade so-cial dos jovens vem se dando principalmente

por intermédio dos grupos culturais existentes,sucedendo-se uma lista considerável de movi-mentos e tendências, umas mais passageiras,outras ainda persistentes, envolvendo jovens dediferentes camadas sociais, com diferentes pro-jetos, níveis diferenciados de envolvimento,mas tendo em comum uma proposta deestilização6 e a eleição de determinado ritmomusical. São os punks nas suas diversas varia-ções, como o trash, o hardcore, o anarco-punk.São os darks, o heavy metal, o reggae. É nes-sa esteira que podemos situar o hip hop e ofunk.

Esses dois estilos possuem uma mesmaorigem – a música negra americana –, que in-corporou a sonoridade africana, baseada noritmo e na tradição orais. Eles são herdeirosdiretos do soul que, depois de ser a trilha so-nora dos movimentos civis americanos da dé-cada de 1960 e um símbolo da consciêncianegra, perdeu essas características revolucioná-rias com a sua massificação. O funk radicalizouo sou l, empregando ritmos mais marcados earranjos mais agressivos, mas o funk tambémsofreu um processo de comercialização, com aremoção de sua base cultural, tornando-seuma música mais digerível do grande público.

O rap surgiu, nesse período, como maisuma reação da tradição black. Ele surge juntoa outras linguagens artísticas, como a das ar-tes plásticas, a do grafite, da dança – o break– e da discotecagem – o DJ. Juntas tornaram-se os pilares da cultura hip hop, fazendo darua o espaço privilegiado da expressão cultu-ral dos jovens pobres. O rap, palavra formadapelas iniciais da expressão rhythm and poetry(ritmo e poesia), tem como fonte de produçãoa apropriação musical, sendo a música com-

5. Ver Dayrel l (1999).6. Estou entendendo “estilo” como uma manifestação simbó l ica dasculturas juvenis, expressa em um conjunto mais ou menos coerentede elementos materiais e imateriais, que os jovens consideram re-presentativos da sua identidade individual e coletiva. Na construçãode um esti lo, os jovens escolhem determinado gênero musical queconsomem, criam um tipo de visual e espaços próprios de diversão eatuação. Assim o estilo pressupõe o cruzamento dos campos do lazer,do consumo, da mídia e da criação cultural (Dayrell,1999; 2001).

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posta pela seleção e combinação de partes defaixas já gravadas, a fim de produzir uma novamúsica. “Mixando”7 os mais variados estilos dablack music, o rap cria um som próprio, pesa-do e arrastado, reduzido ao mínimo, no qualsão utilizados apenas bateria, scratch8 e v o z .Mais tarde, essa técnica seria enriquecida como surgimento do sampler. Desde então, o rapaparece como um gênero musical que articulaa tradição ancestral africana com a modernatecnologia, produzindo um discurso de denún-cia da injustiça e da opressão a partir do seuenraizamento nos guetos negros urbanos.9

No Brasil, a difusão do funk e do hiphop remonta aos anos 1970, quando da pro-liferação dos chamados “bailes black” nas pe-riferias dos grandes centros urbanos. Embala-dos pela black music americana, principalmen-te o soul e o funk, milhares de jovens encon-traram nos bailes de finais de semana uma al-ternativa de lazer até então inexistente. Desen-volveram-se nos mesmos espaços, por jovensde uma mesma origem social: pobres e negros,na sua maioria. Tanto a música r ap e funkquanto o seu processo de produção continu-am apresentando algumas semelhanças, fiéis àsua origem, tendo como base as batidas, a uti-lização de aparelhagem eletrônica e a práticada apropriação musical. Os dois estilos sãomais democráticos, não tendo como pré-requi-sito a utilização de instrumentos musicais, odomínio de habilidades técnicas musicais nemmesmo maiores custos com a montagem e aorganização dos locais para exibição pública.Para os jovens da periferia que, geralmente,não têm acesso a uma formação musical, o rape o funk são dos poucos estilos que lhes per-mitem realizar-se como produtores musicais eartistas. Não é sem razão que grupos de rap eduplas de MCs10 tendem a cantar apenas suaspróprias músicas, sendo raro que cantem mú-sicas de outros grupos.

Mas, no processo da sua elaboração ereelaboração nos grandes centros urbanos bra-s i le i ros , o rap e o funk foram assumindo carac-terísticas próprias. As letras expressam outros

sentidos, as formas de sociabilidade possuemespecificidades, assim como os rituais queconstituem cada um desses estilos, ganhandosignificados próprios para os jovens que delesparticipam. É o que veremos a seguir na des-crição dos grupos de rap e duplas de funk emBelo Horizonte. O scratch consiste na obten-ção de sons, girando manualmente o disco soba agulha em sentido contrário, produzindoefeitos sonoros próprios.

Os jovens e o rap

O rap começou a d i fundir-se em BeloHorizonte a partir do final dos anos 1980.Desde então, veio se construindo uma cena rapque, mesmo ocupando um espaço marginal nocircuito cultural, se mantém viva e atuante,apesar das oscilações entre momentos delatência e de maior visibilidade. Ao mesmotempo, existe uma parte ainda mais submersa,formada por um sem-número de jovens que sereúnem e formam seus grupos nos bairros porsimples diversão, na maioria das vezes comuma curta trajetória, sem se tornarem conhe-cidos no próprio meio hip hop. Durante todoes se t empo ex i s t iu e ex i s t e a inda umarotatividade de grupos muito grande, vários sedesfazendo ou mesmo trocando de integran-tes, e muito poucos permanecendo do iníciodo movimento na cidade.

Os três grupos pesquisados expressamessa realidade:

• O grupo Processo Hip Hop – For-mou-se no início de 1998 e teve uma vida re-lativamente curta, extinguindo-se no final de1999. Era formado por três jovens, com idadevariando de 17 a 22 anos, sendo dois negros

7. A mixagem é a mistura de mús icas fe i ta pe lo DJ, que ut i l i za oaparelho mixer.8. O sc ra tch consiste na obtenção de sons girando manualmente odisco sob a agulha em sentido contrário, produzindo efeitos sonorospróprios.9. Para maiores detalhes da história do hip hop; ver , dentre outros,Dayrell (2001), Sposito (1993), Silva (1998) e Tella (2000). Para umah i s tó r i a do funk, ver Vianna (1987) e Herschmann (1997, 2000).10. O MC é o mest re de cer imôn ia , como se autodenominam oscantores de f unk, quase sempre formados por duplas.

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e um branco, todos moradores do Aglomera-do da Serra, região centro-sul da cidade. É umexemplo de grupos que se formam e se desfa-zem sem ganhar maior projeção na cena rap,não tendo CD nem fita demo gravados.

• O grupo Máscara Negra – É um gru-po formado, desde 1996, por três integrantes,todos negros, sendo dois com 20 anos e umcom 27 anos. Tem projeção na cena rap, t en-do sido escolhido o melhor grupo de rap em1997. O grupo não tem nenhum CD gravado,apenas fita demo.

• O grupo Raiz Negra – Formou-se noinício dos anos 1990, sendo o mais antigo dosgrupos pesquisados e um dos poucos desse pe-ríodo que ainda permanecem ativos. É forma-do por quatro integrantes, três deles negros,com idade variando de 24 a 28 anos. Dentreos grupos pesquisados, é o que apresenta operfil mais profissional, possuindo um CD gra-vado.

A experiência desses jovens nos gruposmusicais revela múltiplos significados, interfe-rindo diretamente na forma como se constro-em e são construídos como sujeitos sociais ecomo elaboram determinada identidade indivi-dual e coletiva.

Um primeiro aspecto a ser salientado éa dimensão da escolha. Recuperando a trajetó-ria dos grupos, constatamos inicialmente quetodos os jovens aderem ao estilo como consu-midores do gênero musical. A passagem paraa condição de produtores significou para todosum processo de envolvimento gradativo. Épossível perceber alguns fatores comuns queexplicam a escolha que realizam: o lugar so-cial que ocupam e o capital cultural a que têmacesso, os poucos pré-requisitos do rap para aprodução cultural, a identidade com o ritmo ea temática abordada pelo estilo, dentre outros.Significa dizer que a escolha e a adesão aoestilo são frutos de uma complexa trama naqual estão presentes os determinantes sociais,mas também a expressão da subjetividade.

Mas o exercício da escolha não se dáapenas no momento da adesão ao estilo. Os

jovens revelam que em vários momentos ocor-reram dúvidas e crises, quando se perguntavama si mesmos se o caminho era realmente o damúsica. Alguns se afastaram para depoisretornar; outros, como o Processo Hip Hop, s edissolveram. Mostram, assim, que a trajetóriano estilo não está separada da vida, com assuas dúvidas e perplexidades, quando depara-mos sempre com a necessidade de escolher.

Outro aspecto que ganha importânciana vida de cada um é a experiência, comum atodos, como produtores culturais. Como já ob-servamos, todos só cantam suas próprias mú-sicas, sendo muito raro cantarem músicas deoutros grupos, o que envolve um exercício dacriatividade. Geralmente o processo de produ-ção das músicas é individual e coletivo, sendoum momento rico de trocas entre os integran-tes do grupo quando todos discutem, opiname interferem na criação. Todos são autodida-tas, mas expressam o desejo de estudar músi-ca e algum instrumento, condição essencialpara a profissionalização.

Em cada grupo sempre existe um quetende a compor as “rimas”, através das quaisdesenvolvem uma interpretação poética de simesmos e da condição social em que vivem.Para muitos deles, compor a letra é um mo-mento de extravasar, de traduzir em forma depoesia os sentimentos que vivenciam:

Escrever as letras é tipo assim, uma muleta,quando eu tô sentindo muita melancolia,quando eu tô sentindo muitas vezes só, eusento e escrevo... Eu sempre escrevo quandoeu tô muito melancólico... (Nilson, 25 anos)

Nessa produção poética, a estruturadas let ras , a f ide l idade ao terr i tór io e aexplicitação de uma temática social são ele-mentos identificadores do r ap em qualquerlugar, seja no Brasil ou nos Estados Unidos. Aomesmo tempo, o conteúdo poético tende arefletir o lugar social concreto onde cada jo-vem se situa e a forma como elabora suasvivências, numa postura de denúncia das

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condições em que vive: a violência, as drogas,o crime, a falta de perspectivas, quando so-breviver é o fio da navalha. Mas também can-tam a amizade, o espaço onde moram, o de-sejo de um “mundo perfeito”, a paz. Comodiz um deles, eu sou um mero observador docomportamento do ser humano... num tenhoestudo, num sou nada, mas eu fico observan-do o comportamento das pessoas. Nesse sen-t ido , o rap pode ser visto como uma crônicada realidade da periferia.

Eles atribuem a si mesmos o papel de“porta-vozes” da periferia, um dos elementosda identidade do estilo. Alguns deles se atri-buem a “missão” de problematizar a realida-de em que vivem através das músicas quecantam, com a pretensão de “conscientizar oscaras” dos problemas e riscos que o meiosocial lhes impõe:

O que a gente passa com a música é umpouquinho de consciência, de amor pró-prio, de auto-estima... a gente quer levar onosso povo pra frente, a minha vontade éessa, de revolucionar, abrir a cabeça de ume de outro para eles terem consciência esaber o que está fazendo, aprender o direi-to deles, nem que for um pouquinho, en-tendeu? (Pedro, 26 anos, rapper)

Para muitos desses jovens, o rap to r -na-se uma forma de intervenção social, masem outros moldes. Por meio da linguagempoética, do corpo, do lazer propõem uma pe-dagogia própria, que tem como um dos ins-trumentos a polêmica. Talvez esteja aí umadas dificuldades de estabelecerem um diálo-go com as organizações políticas do mundoadulto, como sindicatos, partidos e até mes-mo o movimento negro, diante dos quais semostram desconfiados, mantendo distancia-mento. Ao mesmo tempo, os grupos MáscaraNegra e Raiz Negra desenvolvem esporadica-mente algumas atividades sociais, como ofi-cinas de hip hop em escolas públicas e festasbeneficentes.

Um momento muito significativo paratodos os grupos são as apresentações que re-alizam. Para muitos, é no palco que se sentemverdadeiramente rappers. A freqüência e o ca-ráter dos shows são diferentes entre os grupos:enquanto o Processo Hip Hop tem um núme-ro limitado de apresentações e sempre emeventos no próprio bairro, o Raiz Negra e oMáscara Negra se apresentam com mais regu-laridade tanto em eventos quanto em festaspromovidas em danceterias no centro da cida-de. Todos os jovens reforçam a importânciados shows na vida de cada um. Alguns ressal-tam a emoção e o prazer – a maior adrenalina– de estarem no palco mostrando o resultadoda sua produção. Outros ressaltam a auto-afir-mação do que os shows representam, sendouma forma de resgatar a própria dignidade:

Trabalhava de faxina e o maior orgulho meuera estar lá fazendo faxina e quando euchegava no palco eu era um rapper, enten-deu? Eu tenho pouco estudo, nunca tive umemprego bom, mas eu tenho uma cabeçapra revolucionar, eu tenho dignidade porqueeu chego em casa e sou um rapper, tenhouma missão... (Pedro, Máscara Negra)

Outros ainda enfatizam a importânciade serem reconhecidos no próprio meio em quevivem. Podemos dizer que, para esses jovens,aderir ao estilo possibilitou-lhes a abertura denovos espaços, onde eles passaram a se colo-car na cena pública em outros termos, comoartistas, como criadores, como sujeitos de umprojeto. Nesse sentido, o rap é um meio de quese servem para articular uma auto-imagem po-sitiva, uma forma de se afirmarem como “al-guém” numa sociedade que massifica e ostransforma em anônimos. Ao mesmo tempo,através das letras das músicas, do corpo e dovisual que valorizam a estética negra, na afir-mação positiva do espaço da per i f e r i a , o rappossibilita a muitos desses jovens reelaborar aexperiência social imediata em termos cultu-rais, traduzida em forma de autoconsciência

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diante do processo de segregação espacial edos preconceitos sociais e raciais que se acir-ram em Belo Horizonte, possibilitando a cons-trução de uma identidade positiva como po-bres e negros.

Por outro lado, podemos constatar queo estilo proporciona algumas circunstânciascentrais na construção de uma identidade ju-venil: a música e um quadro de referênciascomuns por meios dos quais fazem uma leiturada realidade; as práticas coletivas, tanto naprodução musical quanto na fruição do lazer;além de um conjunto de ícones que os distin-guem do mundo adulto.

Para grande parte deles, a adesão aoestilo se deu na adolescência, coincidindo comum momento no qual procuravam romper comtudo aquilo que os prendia ao mundo infan-til, buscando outros referenciais para a cons-trução da identidade fora da família, onde ogrupo de amigos passa a cumprir um papelfundamental. Desde então, o r ap funcionoucomo uma referência para a escolha dos ami-gos, bem como das formas de ocupação dotempo livre. Inicialmente centrada no bairro, oenvolvimento com o estilo e a participação noseventos proporcionaram a quase todos umaampliação da rede de relações, estimulando-osa se apropriarem da cidade.

As redes de relações construídas emtorno do rap apresentam densidades distintas,o que l eva os jovens a d i s t ingu i r ent re“colegagem” e amizade. Aquela é mais fluida,e esta é uma relação que traz uma conotaçãofamiliar, de “irmão”, quase sempre presente nasrelações que se constroem no grupo musical.Em cada um deles a rotina de encontros en-tre os seus integrantes é variável, dependendodo ritmo dos ensaios e da disponibilidade parao lazer de cada um.

Uma característica desses grupos é asua rotatividade. Todos narram uma trajetóriana qual há um contínuo nascer e renascer degrupos, fazendo com que o percurso de cres-cimento e as experiências de agregação sejammuito dinâmicos e singulares. Essa descon-

tinuidade dos grupos e das relações pode servista como uma característica da própria dacondição juvenil, e não tanto do esti lo em si.

Mas o grupo é sempre uma referênciamuito forte, aparecendo como um espaço pri-vilegiado de investimento emocional e de cons-trução de relações de confiança, numa comple-xa trama de conflitos e acordos, em um equi-líbrio instável. Mas em todos eles parece quea individualidade dos seus membros é assegu-rada, fazendo com que as relações sejam umacontínua negociação com as diferenças e osdesejos individuais. Essa característica, percep-tível em todos os grupos, parece mostrar anecessidade que os jovens têm de garantir es-paços, tempos e projetos individuais no cole-tivo. Podemos dizer, com Torti (1994, p. 62),que sinalizam para novas formas da sociabili-dade na sociedade contemporânea, que “indu-zem dinâmicas recíprocas de distanciamento eaproximação. Nós nos aproximamos para de-pois nos distanciarmos num jogo entre neces-sidades de agregação e exigências de espaçosde individuação...”.

Mas as relações não se reduzem aog r upo , e s t e n d endo - s e a uma r e d e d e“colegagem”. Encontram-se nos momentos delazer, nas festas e nos eventos. Mesmo nãoestabelecendo relações mais próximas, existeuma solidariedade própria para com quem sesente parte de um mesmo movimento. Os pro-gramas de lazer são um pouco desiguais noritmo e na qualidade, dependendo do momen-to de vida de cada um. Para aqueles mais no-vos, existe uma procura constante de progra-mas, mobilizados pela diversão e pelo desejo deestarem juntos com a turma de amigos. Acentralidade do lazer e dos amigos tende a setransformar com o avanço da idade, dos com-promissos afetivos com as esposas ou namo-radas e das responsabilidades que cada um vaiassumindo, diminuindo a sua intensidade. Nogeral, os programas mais comuns são a fre-qüência à casa de amigos, os bares e as festasde rap, que lhes abrem as possibilidades de umlazer além da sua região, gerando um desloca-

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mento que desafia a lógica perversa da metró-pole, que tende a segregá-los nos bairros dis-tantes da periferia, tornando-se uma formapossível de ocupação da cidade.

Os jovens e o funk

O funk em Belo Horizonte é herdeirodireto dos bailes black que se difundiram naperiferia da cidade desde os anos 1970. Atéo início da década de 1990, os jovens fre-qüentadores dos bailes não se identificavamainda como funkeiros, agregando-se em tor-no da música e no prazer da dança. Nos bai-les não havia, como não há, uma fidelidade aum estilo musical, convivendo os mais dife-rentes sons eletrônicos, além do rock e até dopagode. Foi nos meados dessa década que co-meçam a aparecer os “mestres de cerimônias”(MCs) locais, duplas ou grupos que cantavamsuas músicas, influenciados pelo processo denacionalização do funk iniciado no Rio de Ja-neiro. Foi quando começou a se delinear, def a to , o funk como estilo, com os jovens seidentificando como funkeiros. A cena funk nacidade está presente no circuito cultural for-mal, em grandes danceterias e programas emrádios comerciais, mas também no circuito al-ternativo, nos bailes promovidos nos bairros,em quadras cobertas ou em escolas. Isso sedeve à característica do estilo ser baseada nosbailes, um tipo de lazer que tradicionalmen-te atrai uma massa de jovens, quer se identi-fiquem como funkeiros, quer não.

O funk, na forma como veio sendoconstruído em Belo Horizonte, é uma reelabo-ração do estilo difundido no Rio de Janeiro. Nãosignifica, porém, que haja uma imposição line-ar da mídia na produção do estilo local. O quepodemos constatar é um processo por meio doqual os jovens se apropriam do estilo difundi-do pelos meios de comunicação e o reelaborama partir das condições concretas em que vivem,dos recursos de que dispõem, excluindo elemen-tos ou ressignificando práticas.

Essa constatação põe em discussão os

processos de difusão cultural no contexto deuma sociedade cada vez mais globalizada. Oes t i l o funk, mas também o estilo rap, como ex-pressões de uma cultura juvenil, não podem servistos como resultado de uma progressivahomoge-neização e massificação cultural, quehomologaria a um único registro uma produ-ção cultural juvenil, independentemente dascondições estruturais concretas nas quais es-ses jovens estariam inseridos.

Ao contrário, a realidade dos grupos derap e funk e a história de cada um deles na ci-dade apontam para a existência de uma iden-tidade própria a esses rappers e funkeiros. Umaidentidade que é fruto de uma reinterpretaçãodos sons e ícones associados a esses estilos,numa construção em que os sentidos que lhesão atribuídos expressam não só as condiçõesestruturais nas quais se situam, mas tambémo próprio contexto cultural do meio social noqual vieram se construindo como sujeitos. Nes-se sentido, concordamos com Sansone (1997,p. 171), quando questiona as teses de homo-geneização de uma cultura juvenil, mostrandoque, “ao lado de uma inquestionável globa-lização do universo da cultura juvenil, man-tém-se uma série de aspectos locais, determi-nados por uma história local e contextos es-pec í f i co s ” , f azendo com que o “ loca l ”reinterprete o “global” de formas diferen-ciadas.

O funk será refletido a partir da reali-dade de três grupos pesquisados:

• A dupla Flavinho e Maninho – Am-bos têm 17 anos, são brancos e moram com ospais. Começaram a cantar juntos no início de1998 e atualmente fazem parte da equipe deDJ Vitor, a qual acompanham nas festas pro-movidas quase sempre na região norte da ci-dade. Já participaram de uma coletânea, comuma música gravada, além de vários CDs demo.

• A dupla Marcos e Fred – Cantavamjuntos desde 1995, separando-se no final de1998. Marcos é branco e tem 18 anos; Fred énegro e tem 19 anos. Eles são um bom exem-plo de centenas de duplas que se formam,

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ganham alguma projeção, mas depois se desfa-zem, desiludidas com as perspectivas profissio-nais abertas pelo mercado musical. Por doisanos fizeram parte da equipe Funk Music, do DJVitor, fazendo shows em Belo Horizonte, nointerior de Minas Gerais e no Espírito Santo.Chegaram a ter suas músicas gravadas em doisCDs coletânea, que tiveram certa repercussão nomeio funk em BH.

• Os Cazuza – O grupo formou-se em1996, contando com quatro integrantes, todosnegros, com idade variando entre 19 e 21 anos,sendo dois deles casados. Gravaram uma músi-ca em um CD coletânea, e na época se dividi-am entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro, ten-tando a gravação de um CD e a contratação poralguma equipe carioca.

Para esses jovens, aderir ao funk signi-fica uma escolha, condicionada pela própriacondição juvenil e o campo de possibilidadescom o quais se deparam. Os fatores são seme-lhantes aos do rap: a atração pelo ritmo e peladança, a inexistência de maiores pré-requisitospara a produção musical e a influência da mídia.Mas o que parece ter influenciado de fato nadecisão dos jovens em se tornarem MCs foi aidentificação com o clima de alegria caracterís-tico dos bailes, além de se destacarem diantedos seus pares e, principalmente, das meninas.Assim, a escolha pelo funk expressa determinadaforma de vivenciar a condição juvenil, com ên-fase na diversão e na alegria que os bailes re-presentam.

Da mesma forma como no r ap, os MCsse colocam como produtores culturais, mas pou-co interferem na produção das bases musicais,uma tarefa dos DJs e de seus pequenos estú-dios espalhados pela periferia. A música funk,diferentemente da música rap, não tem muitosentido em si mesma, cumprindo o seu papelefetivo como meio de animação dos bailes. As-sim, a produção musical é caracterizada pelatransitoriedade, por ser descartável, executadapor um período relativamente curto, sendo logosubstituída por outra. Os temas abordados sãodiretamente ligados ao universo das vivências

juvenis, sendo comum abordarem as relaçõesafetivas, a descrição de bailes e sua animaçãoou temas jocosos de situações ocorridas na ci-dade, além da exaltação das diferentes galeras.Outras características presentes em várias letrassão a exaltação da paz e a crítica às brigas,numa resposta possível às situações de violên-cia que ocorriam em alguns bailes.11

Os temas expressam aspectos davivência juvenil, não deixando de ser uma for-ma de refletirem sobre si mesmos e resgataremo prazer e o humor que são tão negados em umcotidiano permeado pela lógica instrumentaldominante, o que é coerente com o sentido queatribuem a si mesmos como MCs – serem osmensageiros da alegria, promovendo a agitaçãoda galera.

O MC tem a obrigação de levantar a galera,incentivar mesmo, procurar passar uma paz,um agito, um ânimo pro pessoal pular mes-mo, balançar, soltar os cachorros. Eu achoque o MC se expressa num modo de progre-dir a festa, fazer a festa encaminhar. . .(Flavinho,17 anos)

Se o rappers se vêem como porta-vozesda periferia, assumindo a dimensão da denún-cia, os MCs se percebem como aqueles quecontri-buem para criar a alegria da festa. As-sumem, assim, dimensões particulares de umamesma realidade, pontuando questões cruciaisvividas pelos jovens.

Para esses jovens, ser um MC é uma ex-periência muito marcante. Assim como osrappers, para os jovens funkeiros o estar no pal-co é fonte de emoção e prazer:

11. A pesquisa foi conclu ída antes da meteór ica ascensão do f u n kem 2000, não sendo pois objeto de aná l ise desse trabalho. Mas énecessár io pontuar a estigmatização promovida pela m ídia, numanegação do estilo. As criticas sobre a qualidade das letras, o machismo,a erotização pública exagerada, etc., se são até certo ponto pertinen-tes, não levam em conta que os jovens expõem na cena pública ascontradições do tecido social. Eles expressam, nas músicas e na dan-ça, o caldo de cultura em que estão inseridos, fruto das condições emque vivem e do acesso que possuem aos bens simbó l icos. Mais doque negar, é preciso aprofundar-se nos seus múltiplos significados.

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Nó, cara, é bom demais, né, ver aquele povolá, a gente entrar e a massa ir ao delírio!Depois gritando: “Marcos e Fred! Marcos eFred!” isso e aquilo, é gostoso demais...quando a gente sobe a gente treme, vemuma ad rena l ina ! Dá uma vontade deesguelar, sair gritando, pular lá em baixo,curtir com o pessoal mesmo... (Fred, 18anos)

Participar de shows e ter suas músicasdifundidas nas rádios é o desejo mais imedia-to desses jovens. Essas são formas de partici-pação que os destacam da multidão anônima,permitindo-lhes que se sintam alguém, comreflexos na auto-imagem. Ao mesmo tempo,proporciona-lhes descobrir e desenvolver aspróprias potencialidades, como compor e can-tar, tornando-os sujeitos criativos.

Como jovens, o grupo de amigos, ou agalera, constitui uma referência importante. Epara esses MCs o grupo de amigos mais pró-ximo se articula em torno do funk. Os compa-nheiros de dupla tendem a se tornar os ami-gos mais próximos, sendo com eles que se en-contram com mais freqüência, conversam so-bre os problemas ou casos afetivos, numa re-lação mais íntima. Mas, assim como no rap,existe uma mobilidade muito grande de gru-pos e duplas, expressão de um momento deexperimentações, típico da condição juvenil.Também o funk possibilitou a esses jovens aampliação da rede de relações. Por meio dosbailes e shows, estabeleceram uma rede de re-lações amplas – os conhecidos – que não pos-sui uma estrutura de coesão tão forte entreaqueles que dela participam: reconhecem-se nofunk, compartilham situações lúdicas, encon-tram-se nos bailes, sentindo-se parte de umarede simbólica (Arce, 1999).

Para esses jovens, o estilo se constróiem torno dos bailes. Este é o elemento centrala partir do qual se articula a identidade dofunk. É neles que podem expressar os outroselementos: o encontro com os amigos, o gos-to pela música funk, um determinado jeito de

dançar e, principalmente, a oportunidade de semostrarem como MCs. Podemos dizer que obaile funk representa, antes de tudo, a celebra-ção da amizade, o espaço por excelência paraviverem dimensões constitutivas da condiçãojuvenil: a explosão emocional da alegria, aidentificação coletiva, o sentir-se em grupo.Vianna (1987, p. 58) reforça essa dimensão aoafirmar que “as pessoas freqüentam o bailenão por um tipo de música, mas principalmen-te pelo ambiente, isto é, as outras pessoas, osamigos que se encontram e se divertem juntos,a alegria de viver em bando”. Dessa forma, oba i le funk constitui um espaço de sociabilida-de, uma massa composta por grupos de ami-gos e galeras. Pode ser visto como uma opçãode agrupamento metropolitano, numa reaçãopossível à massificação da sociedade contem-porânea.

Mas, afinal de contas, o que é serfunkeiro? A própria definição é fluida, comodiz o Marcos:

O funk é um modo de pensar, d’ocê estar debem com a vida... mas não é uma idolatria,um tipo de religião como o rap, é mais ummodo d’ocê estar solto com a vida, não nummodo de não ter responsabilidade, masd’ocê ser alegre...

Esse depoimento parece esclarecer oscontornos da identidade desses jovens com ofunk. S e r funkeiro não implica um conjunto devalores e comportamentos comuns, como uma“religião”, mas constitui uma forma determi-nada de vivenciar as demandas dessa fase davida. A identidade do funk é a oferecida peloestilo de possibilidades de viver e expressar aspulsões, os desejos e as necessidades que ca-racterizam a condição juvenil. Tanto é que nãoexiste nenhuma exigência de coerência entre ocomportamento pessoal e o comportamentocomo um MC, o que vimos existir entre os jo-vens que aderem ao rap. Outro elemento é aquestão da cor e da origem social, quandoparecem não estabelecer relações entre o funk

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Nesse contexto o rap e o funk cumpri-ram e vêm cumprindo um papel significati v ona vida desses jovens. Um primeiro aspecto dizrespeito ao exercício da criatividade. Os estilosrap e funk possibilitam que esses jovens se in-troduzam na cena pública para além da figu-ra do espectador passivo, colocando-se comocriadores ativos, contra todos os limites de umcontexto social que lhes nega a condição decriadores. Dessa forma, a experiência nos gru-pos musicais assume um valor em si, comoexercício das potencialidades humanas. A mú-sica que criam, os shows que fazem, os even-tos culturais dos quais participam aparecemcomo forma de afirmação pessoal, além doreconhecimento no meio em que vivem, con-tribuindo para o reforço da auto-estima. Aomesmo tempo, através da produção culturalque realizam, principalmente o rap e seu cará-ter de denúncia, colocam em pauta no debatepúblico o lugar social do pobre e da pobreza.

Mas cada um dos estilos possui a suaespecificidade. A melhor forma de caracterizá-las é pelo duplo sentido que a palavra “diver-são” oferece. Em um deles temos a diversãocomo ato ou efeito de distrair ou distra i r-se:falta de atenção, abstração, irreflexão, esque-cimento, divertimento (do latim, distractione) .É o sentido do funk, no qual predominam asemoções, mediadas pela música. Podemos vernele a expressão do direito legítimo dos jovensà alegria, à fruição, ao prazer. Por outro lado,a diversão surge como um ato ou efeito dedivergir: mudança de direção, desvio (do latim,diversione). É o sentido do rap. Mais do que ofunk, o est i lo rap estimula o jovem a refletirsobre si mesmo, sobre seu lugar social, contribu-indo para a ressignificação das identidades dojovem como pobre e negro. Ao mesmo tempo, elecria uma forma própria de o jovem intervir nasociedade, por meio das suas práticas culturais.Mas não significa necessariamente que se colo-que como uma forma de resistência ou mesmocomo uma expressão política de oposição declasse. Prefiro ressaltar o seu sentido formativo,detectado numa pedagogia que parece gestar

e a identidade étnica ou como pobres. Enfim,podemos dizer que, diferentemente do rap, ofunk não se coloca como espaço de constru-ção de uma identidade como negros e pobres.

Essas considerações indicam que aidentidade que esses jovens constroem comofunkeiros é fluida e efêmera, uma imbricaçãocom elementos simbólicos apropriados da cul-tura popular, da indústria cultural em geral,como manifestação cultural híbrida. Essa iden-tidade apresenta-se como uma fronteira pro-visória e móvel, operando a partir de múltiplosregistros na construção mais ampla de umaidentidade desses sujeitos como jovens. Pode-mos dizer que o funk é parte de determinadoestilo de vida juvenil, um marco identitário quecontr ibui para que esses jovens possamvivenciar e se afirmar como sujeitos numa de-terminada fase da vida.

Os significados dos gruposmusicais na socialização dosjovens

As experiências desses jovens rappers efunkeiros nos levam a constatar que eles vie-ram se construindo e sendo construídos comosujeitos sociais numa complexidade de espaçose tempos, estabelecendo múltiplas relações apartir do seu meio social, mas com uma refe-rência central nos grupos musicais e na soci-abilidade que produzem. Nesse processo, é evi-dente como eles encontram poucos espaços nasinstituições do mundo adulto para construir re-ferências e valores por meio dos quais possam seconstruir com identidades positivas, colocar-se nacena pública como sujeitos, como cidadãos quesão. A sociedade não lhes oferece muitas pers-pectivas. O mundo do trabalho lhes fecha as por-tas, a escola se mostra distante, não conseguin-do entender nem responder às demandas quelhes são colocadas. Apesar de motivados e envol-vidos com a música, não encontram estímulos eespaços para aprimorar o potencial criativo quedemonstram, não existindo em Belo Horizonteuma política cultural que os contemple.

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1 3 4 Juarez DAYRELL. O r a p e o funk na socialização da juventude

entre eles. Uma pedagogia da palavra, emitidapelas letras, por meio da qual não pretendemimpor uma compreensão da realidade, mas “fa-zer o cara pensar”, como nos disseram váriosdeles. Uma pedagogia na qual há o respeitopela diversidade, quando propõem que o ou-tro, na sua condição de indivíduo, pense porsi mesmo e tire suas próprias conclusões. Essapostura é coerente com as relações que esta-belecem nos grupos, em que o coletivo nãosubsume o individual, o “nós” não abdica dacondição do “eu”.

Apesar dessas especificidades, podemosconstatar significados comuns aos dois estilos.Um deles diz respeito à dimensão da escolha.O rap e o funk se colocam como um dos pou-cos meios pelos quais os jovens puderam exer-cer o direito às escolhas, elaborando modos devida distintos e ampliando o leque das expe-riências vividas. Essa dimensão se torna maisimportante quando levamos em conta que é oexercício da escolha, junto com a responsabi-lidade das decisões tomadas, uma das condi-ções para a construção da autonomia. Se aescolha e a autonomia são frutos de aprendi-zagens, podemos nos indagar: Quais os espa-ços que esses jovens encontram no mundoadulto onde possam exercitar a prática de es-colhas responsáveis, onde possam ir construin-do-se como sujeitos autônomos?

Outra dimensão é a possibilidade queesses estilos proporcionam de vivência da con-dição juveni l . Para a maior ia dos jovenspesquisados, os estilos funcionaram como umrito de passagem para a juventude, fornecen-do-lhes elementos simbólicos, expressos naroupa, no visual ou na dança, para que pudes-sem construir uma identidade juvenil. Desdeentão, passaram a ser uma referência para a es-colha dos amigos, bem como para as formas deocupação do tempo livre, duas dimensões – ogrupo de pares e o lazer – constitutivas da

condição juvenil. A convivência continuada nogrupo ou na dupla possibilitou a criação de re-lações de confiança e a aprendizagem de rela-ções coletivas, servindo também de espelhopara a construção de identidades individuais.

Todos enfatizam que a adesão aos es-tilos gerou uma ampliação dos circuitos e re-des de trocas, evidenciando o rap e o funkcomo produtores de sociabilidades. A dinâmi-ca das relações existentes, o exercício da razãocomunicativa, a existência da confiança, agratuidade das relações, sem outro sentido quenão a própria relação, são aspectos que apon-tam para a centralidade da sociabilidade noprocesso de construção social desses jovens.Nesse sentido, os estilos podem ser vistoscomo respostas possíveis à despersonalização eà fragmentação do sistema social, possibilitan-do-lhes relações solidárias e a riqueza da des-coberta e do encontro com os outros.

Podemos concluir constatando que orap e o funk, mesmo com abrangências diferen-ciadas, significaram uma referência na elabora-ção e vivência da condição juvenil, contribuin-do de alguma forma para dar um sentido à vidade cada um, num contexto onde se vêem rele-gados a uma vida sem sentido. Ao mesmo tem-po, o estilo de vida rap e funk possibilitou amuitos desses jovens uma ampliação significa-tiva do campo de possibilidades, abrindo espa-ços para sonharem com outras alternativas devida que não aquelas, restritas, oferecidas pelasociedade. Querem ser reconhecidos, queremuma visibilidade, querem ser alguém num con-texto que os torna invisíveis, ninguém na mul-tidão. Querem ter um lugar na cidade, usufruirdela, transformando o espaço urbano em umvalor de uso. Enfim, querem ser jovens e cida-dãos, com direito a viver plenamente a sua ju-ventude. Este parece ser um aspecto central:pelos estilos rap e funk, os jovens estão reivin-dicando o direito à juventude.

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1 3 5Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002

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Recebido em 25.02.2002

Aprovado em 03.05.2002

Juarez Tarcisio DayrellJuarez Tarcisio DayrellJuarez Tarcisio DayrellJuarez Tarcisio DayrellJuarez Tarcisio Dayrell é formado em Ciências Sociais pela UFMG. Tem vários artigos publicados além do livro Múltiplos olharessobre educação e cultura, pela Editora da UFMG. Atualmente é professor-adjunto na Faculdade de Educação da UFMG.